Revista Recine nº 1 - 2004

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Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo

Ano 1

Nยบ 1

Arquivo Nacional

Setembro de 2004



© 2004 by Arquivo Nacional Praça da República, 173 CEP 20211-350 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministro-Chefe da Casa Civil da Presidência da República José Dirceu de Oliveira e Silva Secretário-Executivo da Casa Civil da Presidência da República Swedenberger do Nascimento Barbosa Diretor-Geral do Arquivo Nacional Jaime Antunes da Silva

Coordenação Geral de Processamento e Preservação do Acervo Mônica Medrado

Apresentação

Coordenação Geral de Divulgação e Acesso à Informação Documental Alexandre Manuel Esteves Rodrigues

Boleslaw Matuszewski

Editores Clovis Molinari Jr. e Márcia Mello Supervisão Editorial Alba Gisele Gouget Alzira Reis Giselle Teixeira Edição de Texto e Revisão Alba Gisele Gouget

Nasce uma idéia

e o construtivismo cinematográfico João Luiz Vieira

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Cultura Cinematográfica

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Jean Epstein

Falsificações Cinema, história e Marc Ferro

Tratamento e Digitalização Fotográfica Mauro Domingues Fabiana Lopes Flávio Ferreira Lucas Molinare Assistente de Coordenação Inez Stampa Haroldo Mescolin Regal Apoio Administrativo Janaína Cristina Vilar Elias Mirian Kaufmann Sheila Moreira Ceccheitti Agradecimentos Agence France Presse João Luiz Vieira (UFF) Jurandyr Noronha Michel Marie Silvio Tendler Tempo Glauber Rocha

44

Sheila Schvarzman

54

Laurent Véray

66

Glauber Rocha

Jurandyr Noronha, um homem de cinema Pesquisa de Imagens Clovis Molinari Jr. Márcia Mello Sérgio Lima Tereza Eleutério de Souza

32

Marc Ferro

EZTETYCA DA FOME Capa e Ilustração Primeira Página Marília Nogueira

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Vanguarda revolucionária: Eisenstein, Vertov

A história pode ser feita com arquivos fílmicos? Projeto Gráfico e Diagramação Alzira Reis

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Clovis Molinari Jr.

70

Mauro Domingues

A reconstrução da memória

72

Silvio Tendler

Filmes de arquivos

82

Yann Beauvais

Os murmúrios do mundo O Ateliê de Pesquisa Cinematográfica em Maio 68 Sébastien Layerle

Depois das revoluções...

94 106

Ilana Feldman

Luz, câmera, revolução Clóvis Brigagão

115


AN PH/FOT/ 229(5)

Conflito entre estudantes e policiais na Avenida Rio Branco. Rio de Janeiro, 21/6/1968. Acervo Correio da Manh達


REVOLUÇÕES

7

Um jornal ou uma

revista precisa ser como os gatos, ter sete vidas; ou como a chuva que molha as ruas, não pode acabar; ou como a noite que sempre cai mas nunca se machuca.

A

comparação pode parecer insólita, mas quem a fez com certeza viveu na carne o esforço de experimentar a produção editorial pela sobrevivência do pensamento livre. O tempo da frase anônima, juntando uma sabedoria aqui outra ali, era de luta forte, às vezes sangrenta, e já se passaram mais de vinte anos desde que os dias de chumbo foram derretidos no Brasil. A cada periódico que surge, a frase repercute como uma advertência que enuncia um desejo e um receio. Neste ano de 2004, junto com o Recine – Festival Internacional de Cinema de Arquivo, realizado desde 2002 no Arquivo Nacional, esta publicação que acaba de nascer pretende acompanhar o tema de cada ano do evento cinematográfico, e reunir textos consistentes de pensadores cuja criação se mantém em permanente atividade, com os olhos voltados para a vida passada em imagens em movimento. Se no primeiro ano o Recine exibiu os filmes mais antigos do cinema brasileiro; e no segundo remexeu o baú da censura, agora se volta para as revoluções que aconteceram na segunda metade do século XX. Como o tema do Recine 2004 são os movimentos políticos e culturais do pós-guerra, reunimos nesta edição artigos que contribuem para o estudo do cinema como fonte de pesquisa e produção de audiovisual. O cinema nasceu e praticamente se desenvolveu por todo o século XX, e a partir dos seus cinqüenta anos já estaria suficientemente maduro para reconhecer a importância e seriedade do acervo acumulado. Os arquivos e cinematecas demoraram muito para se estabelecer. Mas, quando isso se deu, cresceram as chances de olhar com uma atenção especial, até

mais de uma vez, para tudo o que se passava na tela. Então, os filmes já não foram mais vistos apenas como uma oportunidade de diversão ou meros exemplares probatórios de um determinado período ou acontecimento histórico. A visão imediata deu lugar à compreensão de que fazer um filme, mesmo uma simples reportagem, é afirmar um conceito. Sendo assim, os realizadores dos filmes não são retratistas neutros da história, mas produtores que manipulam o tempo e o espaço. E um olhar minucioso iria revelar mais claramente que os filmes mostram muito mais do que querem seus realizadores. Desde que o cameraman polonês Boleslaw Matuszewski chamou a atenção para o fato de que as películas cinematográficas necessitavam ser preservadas e vistas como importantes registros que favoreceriam o trabalho dos historiadores, confirmando a compreensão de Jurandyr Noronha – quando disse que mesmo um filme de ficção, com o tempo, acaba por se tornar em documentário –, muitos estudos tiveram início tendo como base as imagens em movimento, até então apreciadas apenas pelo público em sua prática corrente de entretenimento. Por isso publicamos o manifesto do livreto de 1898, Une nouvelle source de l’histoire. Esta edição traz também estudos que datam de pouco tempo, alguns ainda inéditos, sobre os filmes de arquivo e sua inesgotável utilidade como ferramenta. Do cineasta Yann Beauvais, “Filmes de arquivos”; do realizador e autor de textos Laurent Véray, “A história pode ser feita com arquivos fílmicos?”; do cineasta Silvio Tendler, “A reconstrução da me-


REVOLUÇÕES

mória”; e da historiadora Sheila Schvarzman, “Cinema, história e Marc Ferro”.

também marcada a presença forte da potência criadora de Jean-Luc Godard.

Apesar do inquietante peso da dúvida, se efetivamente seria possível reviver uma experiência histórica – se alguém seria mesmo capaz de reconstruir o passado, dado o fato de que estamos todos submetidos ao presente que sempre se esvai e, sendo assim, o passado só poderia ser construído –, os filmes também existem para alimentar máquinas críticas que reinterpretam o passado e rompem com a tradição para produzir o novo . O filme não é uma imagem do mundo, mas uma imagem do criador de imagens que está em um determinado mundo. Com essa nova abordagem, não estamos a assistir à morte do filme, mas diante de outra maneira de ver. Nesse conceito, em um filme não há nada para entender, mas muito por utilizar. Não há nada por interpretar nem significar, mas muito por experimentar.

Mas, nenhuma renovação ou revolução estética seria fértil para as gerações se não existisse quem se preocupasse com a preservação. Por isso a homenagem ao cineasta brasileiro Jurandyr Noronha é a forma que encontramos de fazer justiça à memória, e demonstrar como uma vida pode realizar o que há de melhor para não cair no abismo, levantar a cabeça e ver como funcionam o cinema e a história. O artigo de Ilana Feldman, “Depois das revoluções...”, é um levantamento dessas possibilidades. Com tanto esforço, gente e talento, o cinema perdeu seu antigo rosto de fotografias vivas e indiscutíveis, para dar por iniciada a construção de um novo corpo e uma nova aventura.

Não é por acaso que juntamos nesta edição as reflexões do historiador francês Marc Ferro, em uma entrevista que revela as técnicas que podem falsificar a produção audiovisual, que podem enganar a compreensão de um espectador ainda entorpecido pelo espetáculo e acostumado à idéia de que na tela a vida passa como num espelho que reflete o mundo, como se as imagens, de tão eloqüentes, superassem seus próprios inventores. Ser revolucionário é ser percorrido pela própria vida, ter um poder idêntico à vida. Se a vida é um modo de vida, uma revolução é um movimento para outras maneiras de viver. Isso também acontece no plano da estética. Assim, publicamos um capítulo do livro Sprit de cinéma, de Jean Epstein, no qual ele trata da “Cultura cinematográfica”, e o estudo do professor João Luiz Vieira “Vanguarda revolucionária: Eisenstein, Vertov e o construtivismo cinematográfico”. As revoluções mais recentes, das quais ainda se pode sentir o cheiro de pólvora no ar, estão no manifesto Uma estética da fome, do cineasta Glauber Rocha e em “Murmúrios do mundo: o Ateliê de Pesquisa Cinematográfica em maio de 68”, de Sébastien Layerle, para deixar

Os trabalhos aqui reunidos podem concorrer para o acompanhamento das fotos expostas e dos filmes exibidos, em sessões de longas e curtasmetragens, dentro do Recine 2004. O mundo na segunda metade do século XX assistiu a muitos filmes, enquanto os acontecimentos sociais eclodiam por toda parte. Na França, o fluxo desordenado do maio de 68 colocou em xeque o status quo , apenas com pedras nas mãos. No Vietnã, um povo nu resistiu, como num grande épico, a um gigante com roupas e armas avançadas. Em Portugal, uma ditadura desmoronou, repercutindo nas colônias da África. No Chile, um governo popular e poético caiu pela força das armas. Nos Estados Unidos, jovens abandonaram a família nuclear e dançaram na eletricidade da fumaça e na chuva ácida do rock and roll. Na Irlanda e na Espanha, grupos separatistas explodiram teimosamente suas fúrias. Na China, uma revolução pela primeira vez foi chamada de cultural. O Muro de Berlim desabou sobre as duas Alemanhas, enquanto as repúblicas soviéticas se desgarravam de uma grande célula de ferro. No Oriente Médio, a Guerra dos Seis Dias veio para nunca mais acabar, mudando de tempos em tempos o território do terror. A Primavera de Praga passou como uma breve estação da liberdade, no enigmático ano de 1968. Não foi assim tão passageira uma das cora-

josas revoluções latino-americanas, que mexeu com vara curta a grande fera do maior dos impérios capitalistas. O mundo ficou ameaçado de acabar sob bombas atômicas e esse medo foi chamado de Guerra Fria. Os astronautas chegaram à lua, os estudantes e operários foram à luta, artistas livres romperam com tudo que era convencional: o segundo ato do século XX foi de arrepiar! A história vê o cinema, o cinema vê a história. Esse é o sentido do Recine, o evento e a revista. Pensar o cinema em suas imbricações com a história parece redundância, pois o cinema está sempre na história. O cinema faz e revisita a história, nutre-se de estórias, constrói a história, ainda que iludido muitas vezes pela inclinação de querer encontrar uma verdade. E dentro da história, dentro do cinema, ali estão as revoluções. As revoltas, as conflagrações, as sublevações, as transgressões, as transformações radicais, suas tentativas e oposição. Uma revolução pode ser armada ou desarmada, pode acontecer em minutos ou séculos, mas sempre compreenderá um salto: a efetiva instalação do novo e, por conseqüência, a deflagração de uma série de novas relações. Uma revolução pode acontecer na explosão de uma estrela nova; num só planeta ou em suas sociedades; em grupos menores ou maiores, e até na solidão da vida de um corpo em sua infinita multiplicidade. Poderemos ver nos filmes e nas fotos, que nas revoluções e contra-revoluções existiram sempre alguns personagens recorrentes que nunca estiveram ali por acaso: o militar, o sacerdote, o legislador, o político, o subversivo, o artista, o anônimo. A revolução é uma contenda, um intenso e violento debate físico e de idéias, embora em todos os planos venham a ocorrer golpes e contragolpes; isto é, uma ruptura de encadeamentos que traz a derrota, porque também faz parte do plano o fracasso. De insucesso em insucesso, mesmo assim, as revoluções não param de acontecer. Por isso as revoluções assustam aos que temem as marolas vibrantes da vida. Não foram raras

e nem foi a última vez na história que alguém se antecipou para dizer: “Antes que os revolucionários façam a revolução, façamo-la nós!” Existem falsas mudanças que se realizam para impedir verdadeiras mudanças. Há um medo espreitando as revoluções. Um povo invadido, um filho rebelde, um vizinho tresloucado, um professor irreverente, um pensamento diferente. É dessas incríveis combinações que deriva o desejo de revolver. Por isso a idéia de revolução nunca envelhece, e nem os revolucionários que se mantêm vivos na ebulição de cada dia. Sempre existirá alguém que se levantará na noite sombria das assembléias, secretas ou não, para dizer: “Não estou de acordo!” Mas, quem tem medo do novo? O que é o novo? Teria sido revolucionário o que vimos nos últimos cinqüenta anos? O que temos visto? Somos verdadeiramente capazes de ver? O Recine 2004 é uma verificação, através das imagens, das chamadas revoluções contemporâneas. As agitadas e necessárias; heróicas e equivocadas; corajosas e arriscadas lutas que varreram da face da terra milhares de vidas, se pensarmos apenas nos acontecimentos da segunda metade do século XX. Uma sucessão de imagens e pensamentos sobre esse período – Meio Século de Revoluções – nos levará a tomar contato com experiências bastante recentes. Como, por exemplo, a construção e desconstrução do socialismo; a difícil e custosa batalha contra o imperialismo econômico e cultural; o agitado inconformismo contra a fome e as ditaduras, fossem elas capitalistas ou comunistas, na América, Ásia e Europa. Todas essas interrogações estão postas nesta publicação que se inicia e dialoga com a programação do Recine 2004. Ao tomar a revolução como tema, convidamos o Cinema e a História, os que fazem história e cinema, os que falam de cinema e de história; os que ainda encontram forças revolucionárias para ver filmes, mudar a história e conquistar a Vida.

Clovis Molinari Jr. Coordenação de Documentos Audiovisuais e Cartográficos do Arquivo Nacional do Brasil

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AN EM / COC - P / 8001 (14)

ComĂ­cio pelas reformas de base na Central do Brasil. Rio de Janeiro, 13/3/1964. Acervo AgĂŞncia Nacional


Boleslaw Matuszewski Cameraman polonês, empregado da Lumière, propôs a criação do Depósito Cinematográfico Histórico, assim reconhecendo a significação de preservar o material filmado para a posteridade.

REVOLUÇÕES

Nasce uma idéia1

O

filme cinematográfico, em que de mil fotos se compõe uma cena e que, passado entre um foco luminoso e uma tela branca, faz se erguerem e andarem os mortos e os ausentes, essa simples fita de celulóide impressionada constitui não só um documento histórico, mas uma parcela da história, e da história que não desapareceu, que não precisa de um gênio para ser ressuscitada. Está aí apenas adormecida, e como aqueles organismos elementares que, vivendo uma vida latente, reanimam-se após alguns anos, com um pouco de calor e umidade, só necessita, para acordar e viver novamente as horas do passado, de um pouco de luz que atravesse uma lente no seio da escuridão!... Trata-se de dar a essa fonte talvez privilegiada da história a mesma autoridade, a mesma existência oficial, o mesmo acesso que aos outros arquivos já conhecidos... Bastará dotar as fitas cinematográficas que tiverem um caráter histórico de uma seção de museu, de uma prateleira de biblioteca, de um armário de arquivo. O depósito oficial será feito na Biblioteca Nacional, ou na do Instituto, sob a guarda de uma das academias que se

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ocupam de história, ou no Arquivo, ou ainda no Museu de Versalhes. Vamos escolher e decidir. Uma vez realizada a fundação, as remessas gratuitas ou mesmo pagas não deixarão de chegar. O preço do aparelho de filmagem, assim como o dos filmes cinematográficos, muito alto nos primeiros dias, diminui rapidamente e tende a cair ao alcance dos simples amadores da fotografia. Muitos deles, sem contar os profissionais, começam a se interessar pela aplicação cinematográfica dessa arte e só desejam contribuir para a constituição da história. Os que não trouxerem sua coleção voluntariamente nos deixarão o legado. Um comitê competente receberá e separará os documentos propostos, depois de ter apreciado o seu valor histórico. Os rolos negativos aceitos serão lacrados em estojos, etiquetados, catalogados; serão os tipos em que não se tocará. O mesmo comitê decidirá das condições de acesso aos positivos e deixará em reserva aqueles que, por questões de conveniência particular, só poderão estar liberados para o público depois de decorridos alguns anos. Faz-se a mesma coisa em alguns arquivos. Um conservador do estabelecimento escolhido terá a seu cargo a guarda dessa coleção nova, pouco numerosa a princípio, e fundar-se-á uma instituição futura. Paris terá seu Depósito de Cinematografia Histórica.

1 Este texto foi extraído de Une nouvelle source de l’historie (création d’un dépôt de cinématographie historique). Brochura publicada em Paris, em março de 1898, na qual Boleslaw Matuszewski lançou pioneiramente a idéia de criar arquivos de cinema. Publicado em Correio da Unesco , ano 12, n. 10, out. 1984. Tradução de Eliane Zagury

Ilustração extraída do jornal La Cinémathèque Française , nº 6, fevereiro de 1986


AN EM / COC - P / 8001 (42)

ComĂ­cio pelas reformas de base na Central do Brasil. Rio de Janeiro, 13/3/1964. Acervo AgĂŞncia Nacional


João Luiz Vieira Doutor em Estudos Cinematográficos pela New York University. Crítico, pesquisador e professor do Departamento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da Universidade Federal Fluminense.

Vanguarda revolucionária:

Eisenstein, Vertov e o construtivismo cinematográfico

In Mount, Christopher. Stenberg brothers : constructing a revolution in soviet design. New York: The Museum of Modern Art, 1997

O

Cartaz do filme O homem da câmera (1929), criação dos irmãos Vladimir e Georgi Stenberg

termo vanguarda, no âmbito do cinema, refere-se diretamente à tradição de seu uso a partir da avant-garde francesa, conforme testemunhamos já no final da primeira década do século XX e, com toda a força, na década seguinte. De forma mais abrangente, a avant-garde referese ao conjunto de movimentos artísticos de radical renovação e profunda ruptura com o passado, movimentos esses iniciados ainda na primeira metade do século XIX, que, conforme expõe Linda Nochlin, vão equacionar arte revolucionária com uma política também revolucionária depois dos eventos de 1848 na França.1 No caso do cinema, entretanto, esse impulso vanguardista ganhou contornos diferentes, visto que a mobilização não só era voltada para o então presente da forma cinematográfica como, surpreendentemente, para seu próprio futuro. Mal soavam as trombetas do futurismo italiano, já se configurava uma forma específica de representação de imagens em movimento. Tal forma, que vinha se esboçando desde o limiar do registro das imagens em movimento, talvez pela própria natureza mimética da imagem fotográfica e seu poder de copiar “fielmente” a realidade, foi ganhando um contorno que, aliado à herança de formas narrativas anteriores – em especial o teatro e o romance do século XIX –, acabou por definir um rumo mais ou menos único para o cinema. Identificado com o cinema narrativo, clássico, cuja matriz é Hollywood, essa forma dominante, esse modo institucional de representação era calcado na orientação psicológica dos personagens, centrados, por sua vez, na busca de uma continuidade narrativa encontrada na lógica

1 NOCHLIN, Linda. The invention of the avant-garde: France, 1830-80. In: HESS, Thomas e ASHBERRY, John. Avant-garde art . New York: MacMillan, 1968. p. 3-24.

REVOLUÇÕES

Este ensaio é resultado de pesquisas e anotações de aula dos cursos Cinema soviético, O cinema de Eisenstein e Vertov e a avant-garde realizados durante o meu doutorado na New York University, oferecidos pela professora Annette Michelson, e também de muitas conversas informais com o professor Jay Leyda. A eles – Jay Leyda, in memoriam, pelo rigor dos debates, inspirada interlocução e pela amizade, dedico este texto.

da causa e efeito. Buscava-se o efeito naturalista em consonância com as tradições da forma linear e do espaço ilusionista. Por outro lado, enquanto essa forma hegemônica se configurava como regime narrativo dominante, começavam a surgir reações ligadas a outras manifestações artísticas como as artes plásticas, a literatura, a poesia, a música e a arquitetura, que colocavam em xeque esse modo de representação. É Fernand Léger, em Funções da pintura, quem parece ter esboçado uma definição bastante particular daquilo que veio a se compreender como cinema de vanguarda. Diz ele que

pensada mais como uma maneira de romper com os limites da própria pintura, encontrará ressonância em artistas tão singulares e diferentes quanto, por exemplo, Francis Picabia, Marcel Duchamp, Man Ray, Moholy-Nagy e Salvador Dali.

“[...] a história dos filmes de vanguarda é muito simples. É uma reação direta contra os filmes de roteiro e o estrelismo. É a fantasia e o jogo indo de encontro à ordem comercial dos outros. E isto não é tudo: é a revanche dos pintores e dos poetas. Numa arte como esta, onde a imagem deve ser tudo, há que se defender e provar que as artes da imaginação, relegadas a meros acessórios, poderiam, sozinhas, por seus próprios meios, construir filmes sem roteiro, considerando a imagem móvel como personagem principal”.2

Ainda na década de 1910, período-chave para a configuração dos contornos gerais do cinema dominante clássico e logo após o período de formação na produtora American Biograph, levada a cabo por David Wark Griffith entre 1908 e 1913, surgem duas reações alternativas para o paradigma hegemônico. Em 1916, enquanto Hollywood estreava Intolerância, seu mais ambicioso projeto cinematográfico até então, na Europa era lançado o manifesto do cinema futurista, ligado à literatura e à poesia, enfatizando a vertigem da vida urbana moderna ao consagrar a máquina como quintessência do futuro. Muito mais retórico do que efetivamente prático – só um filme chegou a ser feito dentro desses parâmetros, Vita futurista, de Arnaldo Ginna, nesse mesmo ano de 1916 –, o manifesto promovia o ritmo e a rapidez dos novos tempos, antecipando, de uma certa maneira, o investimento efetuado na montagem pelos soviéticos durante os primeiros anos da década seguinte.

Léger, por ser fundamentalmente um artista plástico, trouxe uma interpretação bastante pessoal para uma forma de expressão do cinema da avantgarde, ou seja, aquela mais ligada diretamente às funções pictóricas da imagem em movimento e suas qualidades gráfico-plásticas. A formulação de Léger,

Na Alemanha, agora vinculado mais às artes plásticas e à arquitetura, o expressionismo também reagia contra a ditadura da chamada “vocação natural” do cinema para o naturalismo, radicalizando a realidade pró-fílmica como forma de compensar o determinismo mimético fotográfico presente no aparato ótico de registro. Já

2 LÉGER, Fernand. Funções da pintura . São Paulo: Estúdio Nobel, 1990.

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VANGUARDA

REVOLUCIONÁRIA:

EISENSTEIN, VERTOV

que não se poderia, àquela altura, alterar a configuração ótica que produzia um olhar naturalista, que se alterasse, então, tudo o que existia à frente das câmeras. Cenários, iluminação, vestuário, interpretação e movimentação de atores são investidos de uma radical estilização, criando-se um visual único, que, anos mais tarde, entre outros frutos, serviu de inspiração para os fotógrafos e diretores do film noir norte-americano.

Essa busca e necessidade de experimentação, de procurar alternativas para a já então inevitável consagração de um modo único de se fazer e consumir cinema, encontraram seu campo mais fértil na União Soviética nos primeiros anos da Revolução de Outubro. É Alexei Gan, teórico influente desses primeiros tempos, quem explica:

“Não podemos nos esquecer de que nossa sociedade atual é de transição, do capitalismo para o comunismo, e que o construtivismo não pode ser dissociado da base, isto é, da realidade econômica de nossa atual sociedade; os construtivistas consideram sua única escola a realidade prática do sistema soviético, no qual são desenvolvidos experimentos sem fim, de forma incansável e persistente”. 3

Esse cinema, em sua prática – e como qualquer outro –, só pode ser mais bem compreendido quando colocado dentro do contexto geral histórico, sociopolítico e econômico do qual se originou. Cineastas soviéticos, conforme sabemos, atuaram num momento histórico decisivo para o século XX. Portanto, enquanto membros

In Gray, Camilla, The russian experiment in art : 1863-1922. New York: Harry Abrams, 1971

Com o início da década de 1920, outras possibilidades foram sucessivamente experimentadas, sobretudo na França. Analogias com a música, a poesia e o sonho foram articuladas dentro de princípios mais ou menos comuns. O surrealismo, por exemplo, ao procurar paralelos entre a visão fílmica e os mecanismos do inconsciente, capazes de produzir condensações e deslocamentos, contribuiu para subverter a noção tradicional do tempo e espaço e da linearidade entre causa e efeito defendida pelo cinema dominante. É essa vertente, por exemplo, que vai influenciar a primeira geração de realizadores norte-americanos que deslancharam o New American Cinema no início da década de 1940, nos trabalhos pioneiros de Maya Deren, Kenneth Anger e Jonas Mekas.

REVOLUÇÕES

E O CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO

Cenografia desenhada por Varvara Stepanova para a peça A morte de Tarelkin , produção de Meyerhold, Moscou, 1922

3 GAN, Alexei. Constructivism. In: BANN, Stephen (ed.). The tradition of constructivism . New York: Viking, 1974, p. 40.

de uma vanguarda artística, cineastas como Serguei Eisenstein, Dziga Vertov, Ester Schub, entre outros, desempenharam seus papéis de forma análoga à vanguarda política de seu país. Cada um, dentro de perspectivas particulares, desenvolveu uma prática cinematográfica de acordo com as novas necessidades revolucionárias exigidas de qualquer trabalhador seriamente engajado na construção do então novo estado socialista. Aqui, a idéia de construção deixa de ser apenas um mero recurso retórico para se transformar num projeto maior, incluindo o movimento estético que moldou a nova cultura soviética durante os anos 20. As diversas artes, tais como a pintura, escultura, arquitetura, teatro, desenho industrial e cinema, possuíam um idioma comum que refletia a necessidade de reconstrução do todo do organismo social, estabelecendo um forte equilíbrio entre arte e sociedade, que fez dos anos 20 na União Soviética um momento privilegiado da história da cultura do século XX. Com o objetivo de entender melhor os aspectos mais salientes da prática cinematográfica soviética enquanto articulação do projeto geral construtivista, é necessário ter-se em mente que, em consonância com outros movimentos de vanguarda que o precederam, as noções prévias de arte foram rejeitadas ao se estabelecerem novos papéis para o artista e para o objeto de arte. A articulação daquele projeto cultural originava-se dentro dos novos parâmetros socioeconômicos mais amplos possibilitados pela Revolução de Outubro, que, sob condições muito especiais, permitiram a convergência de objetivos práticos e criativos. Em manifesto publicado em 1922, intitulado Construtivismo, Alexei Gan já declarava guerra à arte. Tal atitude não era de forma alguma inédita, especialmente durante a segunda metade da década anterior, como já vimos, rica numa profusão de manifestos propondo novos objetivos para a arte, de acordo com agendas variadas e muito específicas. Nas palavras de Gan, porém, o ataque ao conceito de arte ganhava uma perspectiva diferente, clara-

mente animada pelas condições sociais ditadas pelo pensamento marxista revolucionário. Em franca oposição à noção de arte como mera expressão isolada, romântica, individual, natural e emocional – indissoluvelmente ligada à teologia, à metafísica e ao misticismo –, a polêmica diatribe de Gan, conforme sua definição, propunha a expressão comunista das construções materiais, do trabalho artístico organizado, pertinente à nova era industrial.

“A arte está morta... Arte e religião são atividades escapistas, portanto perigosas... Vamos acabar com a nossa atividade especulativa (pintar quadros) e assumir as bases saudáveis da arte – cor, linha, formas e materiais – no campo da realidade, da construção prática.”4

Dois anos antes do manifesto de Gan, Alexander Rodchenko e sua mulher, a pintora e artista gráfica Varvara Stepanova, publicaram o programa do grupo produtivista, uma outra instância do impulso construtivista em que a influência do pensamento marxista – em especial da primeira parte de A ideologia alemã (1845) – é seminal. Com os produtivistas, formula-se um postulado que afirma o conhecimento e a percepção das tentativas experimentais dos soviéticos como resultado de um transplante das atividades experimentais do abstrato (transcendental) para o real.5 A tarefa exigida por aquele novo posicionamento implicava, entre outras coisas, a participação real da produção intelectual como elemento importante na construção da nova cultura comunista. Isto significou, principalmente, um contato direto com todos os centros produtivos e órgãos principais do mecanismo soviético unificado, que tornou possível, na prática, novas formas de vivência e experiência. A ordem, então, era sair para as ruas, para as fábricas, únicos locais onde os artistas poderiam reformular os conceitos materialistas e realizá-los na vida prática, sintetizando as idéias de Marx referentes aos cientistas, ou seja, os artistas, nas mais variadas formas, têm interpretado o mundo, mas sua tarefa é transformá-lo.

4 Idem. 5 RODCHENKO, Alexei e STEPANOVA, Varvara. Program of the productivist group. In: The tradition of constructivism, p. 19.

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REVOLUCIONÁRIA:

EISENSTEIN, VERTOV

In Gray, Camilla, op. cit.

In Gray, Camilla, op. cit.

Bule de chá desenhado por Kasimir Malevich em 1920 para a Cerâmica do Estado, Leningrado

Capa de Construtivista , revista internacional de artes, desenhada por El Lissitzky e editada, em Berlim, em 1922

E O CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO

A ênfase na produção e na produtividade encontrava-se profundamente enraizada na determinação geral que caracteriza a primeira década da então nova sociedade soviética. A construção do socialismo passava pela reconstrução da economia e da indústria, profundamente abaladas desde a I Guerra Mundial. De uma maneira geral, essa tarefa implicava um competente planejamento e administração da modernização econômica, através de um processo de industrialização em que as máquinas desempenhariam um papel fundamental. O país precisava desesperadamente satisfazer três condições básicas que levariam à recuperação econômica, a saber: a necessidade de energia elétrica – cujo projeto principal seria a construção da hidrelétrica de Dnieprostroi; a construção de estradas de ferro – o projeto Turksib seria a meta principal, pois possibilitaria levar cereais do norte para as regiões algodoeiras da Ásia Central; e a mecanização da agricultura com a construção da fábrica de tratores de Stalingrado. Foi emoldurado dentro desse panorama geral que se desenvolveu o trabalho cultural, e artistas, escritores e cineastas, num esforço inédito e coletivo, dirigiram suas atenções e energias para a construção da então nova sociedade. Na medida em que qualquer processo de desenvolvimento econômico e social necessita de graus extremos de organização e planejamento, o mesmo acontece com as formas culturais, e o conceito de arte seria, rapidamente, amalgamado às idéias de produção e utilitarismo. O papel do artista ganha novos contornos com a idéia de um “artista-engenheiro”, sublinhando a nova síntese entre arte e tecnologia. A preocupação com formas e materiais – exemplos claros no trabalho de Vladimir Tatlin e de Rodchenko – ligava-se diretamente à indústria e os artistas tornavam-se técnicos, aprendendo a usar ferramentas e materiais da produção moderna com o objetivo de canalizar todas as energias em benefício do proletariado. Esta era a função da arte, almejada pela nova cultura revolucionária. Alexei Gan diria: “nada ao acaso, não calculado, partindo de um gosto cego, e de uma arbitrariedade estética. Tudo deve ser tecnicamente e funcionalmente dirigido”.6

REVOLUÇÕES

In Gray, Camilla, op. cit.

VANGUARDA

Os grandiosos cenários construtivistas concebidos por Alexandra Exter e Isaac Rabinovich para o filme Aelita (1924)

Por meio da liderança iluminada de Anatoli Lunacharsky, Comissário do Povo para a Educação, no período compreendido entre 1918 e 1929, o novo sistema político e social continuamente confrontava artistas com esse novo papel para a arte. As ruas são os nossos museus , arte dentro da vida e arte para as massas tornaram-se os slogans principais adotados por artistas que trabalharam materiais diferentes tirados de setores diversos da produção industrial, tais como ferro, vidro, metal ou madeira. Voltando-se para outros domínios da vida em que a síntese entre arte e tecnologia tornava-se mais palpável, artistas como Varvara Stepanova e Liubov Popova preocupavam-se com aspectos práticos e industriais como, na área têxtil, a estamparia de tecidos, enquanto outros, como Rodchenko ou os irmãos Vladimir e Georgii Stenberg, criavam cartazes de propaganda e trabalhavam com fotografia, fotomontagem e ti-

pografia. Kasimir Malevich, além de ser o mestre do suprematismo, desenhava peças de porcelana enquanto os irmãos Stenberg logo se especializaram no design de cartazes para filmes. Foi o trabalho conjunto desse grupo de artistas que lançou os fundamentos do moderno desenho industrial e gráfico, provocando um impacto forte e decisivo no desenvolvimento de uma tipografia européia nos anos de 1920, com ressonâncias até os nossos dias. Grandes áreas chapadas de cor sob formas geométricas básicas, a imagem agressiva e frontal das fotomontagens, a dinâmica das composições em diagonal e a utilização de letras vazadas em cartazes, capas de livros e revistas tornaram-se marcas visuais características de toda uma época. 7 Tanto o teatro quanto principalmente o cinema, em razão do seu caráter essencial de produto voltado para as massas, formaram os outros canais por meio dos quais a visão construtivista do artista ordenando o mundo tornou-se realidade. Foi através do teatro que Eisenstein, então trabalhando como cenógrafo para Meyerhold, teve um contato mais próximo com outros artistas, como Vesnin, Popova e Stepanova, todos mergulhados na busca dos meios mais radicais de expressão criativa. Uma instância que hoje restaura um bom exemplo ilustrativo do visual de um projeto construtivista de cenografia pode ser observada no filme Aelita (1924), de Yakov Protazanov, em que as seqüências imaginárias no planeta Marte foram acentuadas pelo uso de um palco gigantesco, cenários que privilegiavam diagonais e um vestuário futurista criados por Alexandra Exter e Isaac Rabinovich. Dziga Vertov também trabalhou com Rodchenko na série de cinejornais Kino-Pravda (1922-25). Ambos – Eiseinsten, mais diretamente, e Vertov – foram, por sua vez, influenciados

6 Afirmação atribuída a Gan, segundo o crítico Standish Lawder em Eisenstein and constructivism. In: The essential cinema . New York: Anthology Film Archives/NYU, 1975, p. 60. 7 Além dos cartazes, um ótimo exemplo da forma como a tipografia afetou o cinema pode ser observado nos letreiros dos filmes. Vertov usou letreiros de forma sofisticada através de um cuidado extremo com a composição formal dos títulos, baseada geralmente em grandes blocos de letras que enchem toda a tela. Na série de cinejornais Avante Sovietes! (1926) a função dessas composições gráficas era reforçar os elementos que carregavam os significados mais fortes, de forma a combiná-los numa cadeia sintagmática que reduplicava o sentido das imagens. Como exemplo podemos citar as cartelas de números 39, 40, 41 e 42, compostas em letras maiúsculas e minúsculas da seguinte forma: LENINE no balcão dos SOVIETES clama/ por grandes SACRIFÍCIOS.

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Entre as anotações retiradas de seu diário, podemos, igualmente, encontrar uma melhor definição e proposição para o ataque à idéia de um cinema de “arte” e aos roteiros:

“Opomo-nos ao cinema de ‘arte’. Com as migalhas que sobram dos recursos utilizados pelo cinema de arte e sem recursos de espécie alguma, às vezes construímos nossos filmes. Naturalmente, preferimos os cinejornais secos à interferência do roteiro na vida diária dos seres vivos. Não interferimos na vida de ninguém. Filmamos os fatos e os organizamos para apresentá-los, na tela, diretamente à consciência dos trabalhadores. Nossa tarefa principal, conforme a entendemos, é a interpretação da vida”.9

O cine-olho de Vertov em O homem da câmera (1929)

Fotograma de O homem da câmera (1929), dirigido por Dziga Vertov

O trabalho de Esther Schub também defendia a perspectiva de um cinema sem atores, na medida em que ela privilegiava apenas a realidade intrínseca do material documental, trabalhado na mesa de montagem a partir de sobras e fragmentos de filmes abandonados e resgatados de depósitos e arquivos. Sua própria contribuição, além de ter sido provavelmente a primeira pessoa a chamar atenção para o material fílmico como documento e, conseqüentemente, para a

8 VERTOV, Dziga. Textes et manifestes, Cahiers du Cinéma , n. 220-221, edição especial de maio-junho de 1970. Paris: Éditions de l’Étoile, 1970. A tradução é de minha autoria. 9 MICHELSON, Annette (ed.). Kino-eye : the writings of Dziga Vertov. Berkeley: University of California Press, 1984, p. 49. A tradução é de minha autoria.

necessidade de preservação da memória cinematográfica, localizava-se na fase de montagem.10 A “interpretação da vida”, segundo a leitura de Marx feita por Vertov, implicava uma crença de que a câmera era um meio poderoso de revelação da verdade e do conhecimento. Indo ao encontro de um forte preceito construtivista, Vertov era igualmente fascinado pelas máquinas. Para ele, a câmera seria o olho aperfeiçoado que os homens não possuíam. A câmera era um novo olho, uma nova máquina para se ver e entender melhor o mundo. Tal qual os mais influentes artistas construtivistas, Vertov buscava entender o mundo pelo prisma de sua própria técnica e, como Tatlin, exercer, através de seu material de trabalho, o controle sobre todas as formas encontradas no novo cotidiano.

fo, sobreposto em fusão a imagens da represa hidrelétrica e da fábrica têxtil. A câmera-máquina, através dos olhos de Vertov, olhava para outras máquinas como algo vivo, não apenas mecânico e sim animado, orgânico, em conjunto com certos princípios construtivistas.

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De forma brilhante, Eisenstein também nos dá um ótimo exemplo de como impregnar a máquina com vida, na famosa seqüência do separador de creme em A linha geral (1929). A câmera de Eisenstein, já no plano de abertura do seu primeiro longa-metragem, está montada numa grua

Sergei Eisenstein, na plataforma superior, ensaiando a peça Máscaras de gás (1924), dentro da Usina de Gás de Moscou

Assumindo o fato de que o cinema seria um instrumento filosófico que nos revelaria mais sobre a vida do que qualquer outra forma de arte, Vertov iria, então, elaborar todo um projeto de filmes calcado no desenvolvimento de estratégias específicas de filmagem, que materializariam os poderes epistemológicos daquele meio. Se existe um filme que literalmente ilustra a inscrição direta da câmera-máquina dentro do seu modo de produção é O homem da câmera (1929), que mostra imagens do operador de câmera e sua máquina sobrepostas a diferentes cenas de rua e da vida de uma cidade. A presença da câmera também aponta para o fato de que estamos diante de um filme que está sendo feito, em processo, incorporando em si um discurso sobre seu modo de produção específico e, com isso, definindo o cameraman como mais um produtor-trabalhador, simetricamente nivelado aos outros setores da produção econômica, como a indústria têxtil. Em determinada seqüência do filme, fica mais clara a posição mediadora do fotógra-

10 Esther Schub (1894-1959) foi uma pioneira do chamado filme de compilação, de acordo com o historiador Jay Leyda em Film beget films (New York: Hill and Wang, 1971). Segundo Leyda, ela era uma excelente e talentosa montadora, responsável por dar ao jovem Eisenstein o seu primeiro emprego em cinema. Schub defendia ardorosamente em sua prática as noções construtivistas de uma atitude analítica frente à verdade dos materiais e à destruição de objetivos puramente estéticos. De sua filmografia, vale a pena destacar A queda da dinastia dos Romanov (1927), O grande caminho (1928) e A Rússia de Nicolau II e Leon Tolstoy (1928). Junto com Vertov, ela é uma das mais influentes realizadoras no desenvolvimento do documentário no período pós-revolucionário.

In Leyda, Jay & Voynov, Zina. Eisenstein at work . New York: Pantheon/The Museum of Modern Art, 1982

por uma outra cineasta, Esther Schub, companheira do principal teórico do construtivismo, Alexei Gan. O trabalho destes três cineastas só pode ser mais bem compreendido e analisado dentro dos parâmetros estabelecidos pela moldura construtivista, não apenas no que diz respeito às exigências sociais cobradas ao artista revolucionário, como também, e principalmente, em relação às formas específicas pelas quais ambos realizaram sua prática cinematográfica. Vertov corporifica um desejo de desenvolver os princípios do construtivismo em todos os níveis de expressão cinematográfica, do formal e técnico ao social e ideológico. Assim como Alexei Gan, ele rejeitava a noção de um cinema de “arte” que, para ele, sempre estivera associado à burguesia da Rússia pré-revolucionária através de um cinema definido exatamente pelos seus padrões hegemônicos, clássicos, excessivamente teatrais e narrativos, calcado na interpretação de atores. No primeiro manifesto do grupo liderado por Vertov, os kinoks, também havia, logo de início, a inevitável decretação da morte do “cinema de arte”: “Declaramos que os velhos filmes dramatizados são leprosos! Não se aproxime deles! Não os veja! Perigo de morte! Contagioso! Declaramos que o futuro da arte cinematográfica está na negação do seu presente!”8

REVOLUÇÕES

E O CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO

In Michelson, Annette (org). Kino-eye, the writings of Dziga Vertov. Berkeley: The University of California Press, 1984

EISENSTEIN, VERTOV

cit.

REVOLUCIONÁRIA:

In Michelson, Annette (org.), op.

VANGUARDA


REVOLUCIONÁRIA:

EISENSTEIN, VERTOV

mecânica que avança por dentro do espaço de uma fábrica, afinal o lugar mais natural para a arte, como o próprio Eisenstein já havia experimentado antes, ao montar a produção da peça Máscaras de gás (1924), também no espaço interno de uma fábrica. É interessante observar aqui a formulação concreta dessa nova ordem construtivista de “sair para as fábricas” animando diversas propostas artísticas soviéticas que, embora em contextos e com significados diferentes, testemunham a apropriação da presença industrial da fábrica em, pelo menos, três momentos emblemáticos: a fábrica de atrações, de Eisenstein, a fábrica de fatos, de Vertov, e a fábrica do ator excêntricoFEKS, de Grigori Kosintsev e Leonid Trauberg. O desenvolvimento de estratégias de realização do projeto vertoviano de dimensões epistemológicas insistiria, sobretudo, na materialidade concreta do cinema, por meio de uma organização extrema dos recursos cinematográficos e da posição-chave desempenhada nesse processo pela montagem. A ênfase na organização encontrava eco na noção construtivista de uma arte de produção introduzida na vida como um aspecto maior do esforço criativo do artista em estabelecer, sob novas formas, a aparência externa da vida e da complexidade dos objetos que circundam o nosso ambiente. Segundo interesses específicos, os artistas também conseguiram transformar em prática a análise em laboratório dos materiais que constroem as formas. Para Vertov, a questão principal localizava-se no significado real da montagem. A resposta vinha mediante uma radicalização do processo a partir da filmagem do material, em que já se pressupunha uma seleção de temas, lugares, tamanho dos planos, enquadramento, e daí para a sala de montagem, com a articulação de seus diferentes estágios, tais como a avaliação dos documentos, planejamento e duração dos planos (síntese da montagem), discussão das relações gráficas da justaposição de diferentes imagens, entre outros procedimentos. O homem da câmera, mais uma vez, é o filme-chave, no qual aparece uma exposição literal do processo. Enfatizando a noção construtivista do contato mais

REVOLUÇÕES

E O CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO

íntimo entre artista, trabalhador e máquina, são apresentadas, nesse filme, imagens da moviola e do montador organizando o material fílmico dentro da sala de montagem, onde o filme está sendo editado. Tal nível de reflexividade se constrói diante do espectador, apresentado na materialidade ótica das tiras de filme que Elizaveta Svilova, a montadora do filme (e companheira de Vertov), mantém penduradas lado a lado, e das quais seleciona, isola, fragmentos e planos específicos (como o da garotinha olhando para a câmera, ou o da velha senhora), trazendo-os à vida, outra vez, na fluidez da cadência dos fotogramas agora em movimento. Num processo idêntico ao da pintura construtivista, iniciado no momento em que os artistas deixaram de representar em suas telas a aparência externa do mundo, privilegiando as formas construtivas que repousam na base da realidade visual, Vertov, na tentativa de desmistificar o ilusionismo cinematográfico, também desenvolveu um conjunto de procedimentos materiais com o objetivo de revelar a verdade que existe por trás da ilusão. E chegou à conclusão de que, de todos os artifícios disponíveis ao cineasta, os mais poderosos eram aqueles ligados às características do cinema enquanto um meio temporal, ou seja, o congelamento da imagem e o movimento reverso, como se você estivesse vendo tudo de trás para frente. Tais conclusões devemse ao fato de que os dois procedimentos, ao representarem o conhecimento, enfatizam exatamente processos cognitivos encontrados diretamente no cinema. A primeira série dos cinejornais Kino-Glaz (1924) sintetiza muito bem tais procedimentos ao mostrar os modos de produção de carne e pão através da negação do tempo, onde os espectadores são capazes de recompor todo o desenvolvimento inverso do processo, do produto final até suas origens. Nesse movimento ao contrário, a ligação entre campo e cidade fica também estabelecida, reiterando na sociedade soviética a natureza da produção de um bem material. A lição é clara para quem ainda não desconfiava: o pão comido em Moscou é feito do trigo que vem de outras regiões mais distantes.

De igual modo, Eisenstein desenvolveu estratégias específicas no sentido de provar o potencial fílmico ao expor o ilusionismo em termos da violação de uma cronologia pró-fílmica, através das distensões temporais, como na famosa seqüência do levantamento da ponte em Outubro (1927). Os resultados das formulações específicas, tanto de Vertov quanto de Eisenstein, com relação a um cinema que procurava decisões intelectuais por parte do espectador, estavam em perfeita consonância com o credo construtivista que definia o racionalismo e o axioma do controle consciente do processo criativo como elementos a serem refletidos na obra de arte. Assim, inseridos na paisagem histórica da primeira década da sociedade soviética, os filmes desse período, no plano formal, também fizeram a crônica de temas originados da reconstrução da economia soviética, em sintonia com a base construtivista para o trabalho teatral, ou seja, movimento e ação. A câmera, montada nas mais diversas ferramentas industriais, tais como gruas e guindastes, trens suspensos, vagões ou roldanas, seria um olho privilegiado que se move por cima de uma hidrelétrica, nas mãos do operador, ou avança através da extensão da fábrica, quase junto ao teto, movendo-se da frente para o fundo, tal como em A greve (1925), ou em O 11° ano, de Vertov (1928). Outra peça montada por Eisenstein, intitulada O sábio (1923), também projetava um ator sobre as cabeças dos espectadores, numa espécie de “invasão” do espa-

ço espectatorial semelhante às esculturas construtivistas de Tatlin, com seus contra-relevos ou relevos-de-canto, construídos a partir de uma superfície bidimensional, mas que se projetavam para a frente do espectador, numa galeria de arte ou num museu. No filme O 11° ano, Vertov também “seqüestra” o espectador sentado em sua poltrona em termos puramente visuais. Um plano, logo no início do filme, mostra a enorme pá mecânica de uma escavadeira que avança em sentido frontal para a platéia e invade o espaço do espectador. Numa perspectiva inteiramente construtivista, esse movimento cinético enfatizava dois fatos principais. Primeiro, que o cinema soviético, em sua fase considerada heróica, lançou mão e ampliou consideravelmente o repertório de movimentos de câmera existente até então no cinema. Segundo, que a qualidade desse movimento em Vertov é um correspondente formal do próprio movimento de construção da indústria e da sociedade. Desta maneira podemos afirmar que os cineastas soviéticos nos anos de 1920 literalmente escreveram, de maneira cinematográfica, e numa perspectiva construtivista, o processo de industrialização da União Soviética. Revendo o passado desses mais de cem anos de existência das imagens em movimento, e talvez com uma ultrapassada, porém quase que inevitável nostalgia, me dou conta, de repente, de como o cinema já esteve muito mais interligado com a sociedade, refletindo, construindo e, sobretudo, transformando a História do século XX.

In Michelson, Annette (org.), op. cit.

VANGUARDA

O trabalho da montagem explicitado em O homem da câmera (1929)

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AN PH/FOT/ 4636(51)

Soldado cubano vigiando maquinário doado pelo governo soviético. Havana, Cuba, 25/5/1964. Acervo Correio da Manhã


Jean Epstein

REVOLUÇÕES

Cultura Cinematográfica

O

cinema tem cinqüenta anos,1 e um quarto de século se passou desde o momento em que Canudo inventou chamá-lo de o caçula, a sétima das artes. Efetivamente, o cinema era então – e devia permanecer ainda durante alguns anos – uma arte menor, uma arte parasita. Ele vivia de empréstimos feitos a todas as outras artes, a todos os outros meios de expressão. O roteiro imitava a fabulação de um romance ou de uma peça de teatro. Os atores representavam como se estivessem em cena. O câmera mais ambicioso procurava quadros à Brueghel, iluminações à Rembrandt, imagens vaporosas à Carrière. Um maquiador e um figurinista mais ousados faziam cubismo sobre o rosto e sobre as roupas dos personagens. Um subtitulador depositava uma dissertação entre as imagens. E estas retiravam o que lhes faltava em poder emocionante de um acompanhamento musical contínuo. Assim, simultânea ou sucessivamente, todos os gêneros literários, todos os ramos da técnica teatral, todos os estilos da pintura, da arquitetura, da música, impregnavam a arte do filme. Em uma época – que ainda não passou completamente – foi moda monografar as influências de cada uma das outras artes sobre o cinema, que aparecia crivado de dívidas insolúveis. Hoje, a posição do cinema é muito diferente. Há doze anos já, Gilbert Mauge anotava em seus Moralistas da inteligência:

1 Escrito em 1945.

“1436: Gutemberg e Furst imaginam a imprensa. 1936: o livro é abandonado; as idéias entram diretamente pelas orelhas e as imagens diretamente pelos olhos.” Na verdade, não é preciso exagerar a importância e a novidade do ensino recebido pela orelha, primeiro porque o ouvido só exerce, sobre a formação intelectual, uma ação muito inferior à que é exercida pela vista; também porque o ouvido transmite principalmente o que já se acha congelado no velho molde clássico da linguagem falada, muito semelhante à linguagem escrita; enfim, porque o rádio, novo meio de detecção e transmissão nesse domínio, permaneceu até agora em um estágio primitivo de impessoalidade. A prodigiosa expansão da imagem, e sobretudo da imagem animada, é que constitui o fato novo, comandando a aparição de uma nova forma de cultura diretamente visual. Atualmente, o homem da rua, que talvez não tenha lido quinze livros, desde que saiu da escola até os seus quarenta anos, viu seguramente, ainda que à razão de um espetáculo por mês, uns trezentos filmes. Esse homem, quando sabe alguma coisa da existência do padre Foucauld, dos costumes dos esquimós, da inteligência das formigas, aprendeu não pelo livro, pela via analítica das palavras abstratas, reunidas logicamente no quadro da sintaxe raciocinada, mas pelo filme, pela via emocionante, in-

Texto e foto extraídos do livro Esprit de cinéma, de Jean Epstein, Éditions Jeheber, Genève-Paris, 1955. Tradução de Luiz Izidoro.

tuitiva, de imagens justapostas de modo muito simples, representações muito mais sintéticas e próximas da realidade concreta. Que falem ou leiam a seu respeito, o padre Foucauld é um nome, uma data, um itinerário, uma citação moral, um esquema seco de palavras que tendem natural e rapidamente a se descolorir completamente no esquecimento; mas, na tela, é a solidão de um eremitério perdido na imensidão das areias, um rosto emagrecido e apaixonado, um olhar fervoroso e bom, um sorriso que perdoa de antemão os assassinos: família de imagens supersaturadas de emoção, de signos dramáticos que continuam a viver por muito tempo na lembrança, com vida própria e também a se multiplicar e a crescer, por sua própria força interior. Seria fácil acumular outros exemplos, todos mostrando que, na cultura geral do homem médio, a parte livresca e verbal é agora obrigada a ceder algo de sua preponderância a uma parte imagética, cujos elementos mais ativos são de origem cinematográfica. Evidentemente, por cultura entendemos aqui, não a erudição de minorias especializadas por longos estudos, mas esse fundo disparatado de conhecimentos que constitui o dominante do clima mental de uma época e do qual todo espírito se ocupa, sem o procurar, exercendo banalmente suas faculdades. Cultura sumária, mas difundi-

da infinitamente e utilizada continuamente, por toda parte, sob cuja luz todo mundo é cultivado sem o saber; cultura que hoje o filme forma mais do que o livro, alimentando de imagens muito poderosas nossa memória e nossa imaginação. Além dessa influência geral sobre os espíritos, sensível de modo particular nos meios pouco letrados, o cinema exerce também uma ação, cujos resultados são aparentes, sobre os escritores e os artistas. Os jornais, as revistas que apresentam “filmes” de tal ou tal acontecimento em uma seqüência de ilustrações subtituladas de modo conciso; as propagandas de publicidade, os cartazes que utilizam visões fragmentárias, o primeiro plano, os aspectos deformados pelo movimento; o estilo literário que se esforça freqüentemente para rivalizar em rapidez com o desenvolvimento cinematográfico da ação, renunciando, por causa disso, à correção gramatical plena, que, além do mais, substitui uma exposição didática muito longa pela sugestão de uma imagem visual; a decoração e a moda, que se inspiram em modelos criados para o filme; até mesmo a técnica teatral que se esforça, por sua parte, para se separar do que tem de factício e afetado, para se aproximar da variedade e da verdade documentária da miseen-scène e da interpretação na tela; todas essas artes, por sua vez, encontram-se doravante devedoras em relação ao cinema. E é preciso reconhecer que nenhuma outra técnica de expressão possui atualmente uma esfera de influência tão vasta. O cinema tornou-se realmente uma arte maior, que conduz mais do que se

deixa guiar. A sétima? A julgar pelas multidões a que se dirige e por sua influência sobre suas mentalidades, parece mais justo tomá-la pela primeira ou em via de se tornar. Assim, a cultura cinematográfica manifesta-se como transformação dos elementos e dos modos de pensar mais simples e mais comuns e também como modificação das artes e das técnicas, dos sistemas de expressão mais elevados. Por que um poder revolucionário tão geral? Porque o cinema é não só uma arte do espetáculo, capaz de suplantar o teatro, e uma linguagem imagética, podendo rivalizar com a palavra e a escritura, mas também, e antes de tudo, um instrumento privilegiado que revela, como a luneta ou o microscópio, aspectos do universo desconhecidos até então. Se telescópios e microscópios, colocando ao alcance da vista seja o infinitamente grande e longínquo, seja o infinitamente pequeno e próximo, renovaram a cultura humana, o cinema, por sua vez, permite ao olhar penetrar o movimento e o ritmo das coisas, analisar o infinitamente rápido e o infinitamente lento. Certamente, as ciências, a filosofia, a religião, a consciência que o homem tem de si próprio, tudo isso mudou graças às imagens criadas pelas lentes de aumento, mas essa revolução teria sido ainda mais rápida, seria ainda mais profunda, se existisse uma arte espetacular da telescopia e da microscopia, que assegurasse às aparências dos astros e das moléculas uma publicidade verdadeiramente popular. Ora, o cinema realiza precisamente essa conjuntura de um divertimento pú-

blico e de uma descoberta de realidades novas, em um mesmo aparelho. Compreendemos então que as inovações trazidas pelo filme se propagam largamente, ainda que o cinema tenha, até agora, sacrificado sua missão de descobridor a seu papel, mais lucrativo, de animador. É preciso procurar os caracteres essenciais da cultura cinematográfica, cujo nascimento assistimos, nos caracteres do instrumento que a constrói, que a propaga. Pois um fato evidente na história da civilização é que todo instrumento refaz, recria, mais ou menos, à sua maneira, o espírito que o concebeu, que o criou. O cinema é, por excelência, o aparelho de detecção e de representação do movimento, isto é, da variação de todas as relações no espaço e no tempo, da relatividade de toda medida, da instabilidade de todas as referências, da fluidez do universo. Profundamente, portanto, a cultura cinematográfica será a inimiga de todos os sistemas que supõem modelos absolutos, valores fixos; inimiga de todas as concepções, ainda em vigor atualmente, que se fundam sobre a experiência extracinematográfica, cem vezes milenar, de um mundo estável e sólido; logo, inimiga também das formas muito rígidas de expressão, da bela linguagem, das palavras escritas ou faladas, concreções de pensamentos envelhecidos, petrificados como mortos; inimiga ainda dos racionalismos clássicos, que pretendem apreender a perpétua mobilidade do sentimento em uma regra invariável. Cultura revolucionária, sem dúvida, e que, à primeira vista, pode parecer bárbara, mas na qual já adivinhamos extremas sutilezas.

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AN PH/FOT/ 5640(57)

“Pelotão de soldados da Frente de Libertação Nacional – FLN”. Argélia, 20/8/1960. Acervo Correio da Manhã


E N T R E V I S T A concedida por Marc Ferro a Bernado Frey, Jacques D’Arthuys, Priscila Soares e Vitor Martins, em Portugal, no final da década de 1970, e divulgada no Brasil pela Coordenação Central de Atividades de Extensão da PUC-Rio, em apostila do Departamento de História.

© Sophie Bassouls/Sygma

É certo que um bom número de documentos fílmicos sofre do mesmo defeito, são também documentos parcialmente falsos, porque emanam de instituições também elas interessadas em dirigir a sociedade. Por exemplo, a televisão

Portanto, o documento fílmico pode apresentar o mesmo tipo de inconveniente que o documento escrito, a diferença é que o primeiro traz, sem querer, uma informação que vai contra as intenções daquele que filma, ou da empresa que mandou filmar. Por exemplo, quando se filma a cerimônia de condecoração de um general, naturalmente as câmeras do exército estão presentes, as câmeras do governo francês (se isto se passar na França) estão lá e filmam o general no momento em que um outro general lhe coloca a medalha. Mas, se por detrás, ao mesmo tempo, há pessoas que se manifestam ou riem, ou que protestam, a câmera também os apanha, enquanto num texto nunca ficarão vestígios desse tipo de fenômeno. Se eu pegar, por

PH/FOT/ 113761(21)

evidentemente dar uma adição exata, ou seja, não é pelo fato de fazer a crítica dos dados da produção de trigo na União Soviética e mostrar que ela é falsa, segundo os números, que passo a ter uma visão exata do problema da produção de trigo na União Soviética. Dá-se o mesmo no que se refere ao preço do petróleo, acerca do qual todos os tipos de dados oficiais nos advertiram que deveria baixar, dados esses estabelecidos pelos melhores estatísticos, analistas, economistas e historiadores, quando afinal o preço do petróleo subiu porque se tinha emitido um certo número de fatores que não figuravam na tradição escrita nem mesmo oral.

mentos nunca procuram examinar a origem do fenômeno.

francesa ou a empresa econômica Fox enviam repórteres para filmar qualquer coisa, dão suas ordens para que se filme Chipre no momento de uma crise, ou Portugal no momento das eleições. Percebemos que há mil documentos sobre a desordem em Chipre, os turcos matando os gregos, ou os gregos a matar os turcos, mas que nunca há documentos sobre a vida cotidiana em Chipre, fora dos momentos de crise, quando é justamente essa vida cotidiana que está na origem da crise. Assim, o documento fílmico é por vezes tão falso, ou antes, tão parcial como o documento escrito, respondendo às necessidades dos organismos que lhe dão lugar, ingleses ou americanos, porque no final das contas o que todos esses documentos mostram é que em Chipre as pessoas não podem se governar sozinhas, porque passam a vida a matar-se; esses docu-

AN

MF: Digamos que o documento filme tem uma dependência maior relativamente às instituições que organizam a sociedade do que o documento escrito, tradicional, e mesmo do que o discurso. Porque geralmente o historiador que escreve apóia-se em fontes institucionalizadas, isto é, fontes políticas que pertencem a partidos ou sindicatos, contas de empresa ou estatísticas de gestores, o que equivale a dizer que a maior parte desses documentos que servem de suporte ao trabalho histórico têm uma função de regulamentação da sociedade, de regulamentação da produção, portanto são fontes que têm maior importância pelo seu funcionamento do que na verdade pelo seu conteúdo. Por exemplo, se eu quiser escrever uma história da URSS e me ativer às fontes escritas, vou

encontrar milhões de estatísticas sobre a produção agrícola, e sabemos bem que esses livros cheios de estatísticas são duplamente falsos, porque as estatísticas são falsas e pouco interessa a razão disso – aliás, dar-se-ia a mesma coisa se se tratasse do poder de compra dos franceses ou dos portugueses, ou dos investimentos americanos no Chile. O que eu quero dizer é que toda esta visão da história que se apóia sobre as fontes referidas como sendo justas, exatas, precisas, científicas, nos dá finalmente um discurso completamente falso sobre a sociedade, nos dá apenas reflexos de um discurso oficial – oficial que não é apenas o do governo mas também o da oposição, ou seja, de todos os grupos políticos, econômicos, sociais, que têm por finalidade tomar a sociedade sob sua alçada. Naturalmente os historiadores de qualidade tentam fazer a crítica desses documentos escritos, mas dois algarismos falsos não podem

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AN PH/FOT/ 13761(78)

Falsificações Falsificações

M: Qual é, para o senhor, a diferença entre o documento escrito e o documento filmado e como tratá-los?

REVOLUÇÕES

exemplo, uma das manifestações do 1º de Maio de 1976 a que tive ocasião de assistir no Porto, e se comparar um filme ou uma fotografia das manifestações de ontem com uma das manifestações do ano passado, percebo imediatamente um fenômeno formidável, é que já não há soldados de uniforme. E nos jornais que leio não se fala desse problema. Esse problema não está presente nas análises das organizações que fazem textos sobre a Revolução em Portugal e a evolução da situação, porque o seu sistema tático, estratégico, é talvez falar de outras coisas, e o seu discurso escrito vai esconder um fenômeno que o discurso cinematográfico ou fotográfico pode nos dizer. Eis um primeiro ponto. Portanto, o discurso com o filme é necessariamente diferente do discurso com os textos e pode fornecer uma história que não é mais exata nem melhor, mas que é dife-

Protesto de ingleses contrários à visita do primeir-ministro português, Marcelo Caetano. Londres, 16/7/1973. Acervo Correio da Manhã


L S I F I C A Ç Õ E S

REVOLUÇÕES

AN PH/FOT/ 18837(244)

FA

Presidente Charles De Gaulle cumprimentando argelinos. Argélia, s.d. Acervo Correio da Manhã

rente e se confronta com as outras histórias e com as outras análises. Utilizo essa possibilidade de confrontação, por exemplo, no filme sobre a guerra de 1914, em que os documentos são com freqüência usados no sentido contrário ao da significação que tinham quando foram filmados. M: As instâncias do poder nunca tentaram se apoderar dos arquivos fílmicos do mesmo modo que o fizeram com os arquivos de textos? MF: O poder naturalmente procura lançar mão dos arquivos, mas a multiplicação das câmeras e as necessidades da produção industrial criam uma contradição que leva ao seguinte resultado: num país em que são controladas de um modo particular as fontes de informação sobre a sociedade, como por exemplo na União Soviética, há também um grande número de filmes que escapam ao controle do poder, porque há milhares de jovens cineastas e indivíduos, simples cidadãos, que com uma câmera e meios mo-

destos chegam a fazer filmes. Esses filmes não figuram nos arquivos oficiais de Moscou, mas nem por isso deixam de existir e ser vistos, um dia na França, outras vezes no interior, por pequenos grupos na Geórgia ou em Samarcand, e é de notar que há muitos desses filmes nas repúblicas mais afastadas do centro do poder político. Por conseguinte, há sempre uma vontade de controle. O governo de De Gaulle, por exemplo, não propriamente De Gaulle mas alguns dos seus servidores, suprimiu dos arquivos documentos que mostram Georges Bideau, no dia da libertação, ao lado de De Gaulle. Já não é possível encontrar esse documento. Portanto, há sempre uma vontade de controle e se dou este exemplo é porque na França é o mais conhecido, o mais simples. E apesar de tudo não há muitos exemplos, porque os poderes políticos ainda não compreenderam o papel que o filme pode desempenhar como elemento de crítica política e social. Além do mais, porque os dirigentes políticos não sabem ler o filme,

não sabem utilizá-lo, olham para o argumento, para o comentário, mas as censuras que fazem são simplistas. Por exemplo, Pompidou foi vaiado em Reims em 1971; nas atualidades é possível vê-lo ao vivo, depois de ser cortada a seção em que foi vaiado e depois de uma montagem. Todos os regimes fazem isso, toda organização censura, não creio que se possa considerar que a censura seja privilégio de um tipo de regime e que apenas a democracia... Mas onde reina a democracia? M: O senhor não acha que o poder, além de manipular um certo número de documentos incômodos, é ele próprio quem produz a maior parte destes documentos; é ele próprio quem produz a maior parte dos documentos fílmicos sobre um acontecimento, um período etc., e finalmente, mesmo se existe um documento contestatório, a grande massa dos que se podem recolher sobre um período é influenciada pelo menos pelo pensamento dominante da época? MF: Sim, certamente, foi o que Godard disse e dou-lhe completamente razão. Mas isso não impede que o filme seja matéria na qual há o maior número de lapsos, isto é, em que uma certa realidade, para além daquela que se quer mostrar, aparece apesar de tudo. Algumas vezes há lapsos nos textos, mas no filme há lapsos a todo o momento, porque a realidade que se quer representar não chega a esconder uma realidade independente da vontade do operador de câmera. Quero dizer que, se agora se fizer um filme sobre Portugal, há toda uma quantidade de imagens que reproduzi-

rão o discurso oficial das organizações, isto é, do governo, dos socialistas, dos comunistas, dos sindicatos, mas a câmera mostrará, apesar de tudo, que as pessoas que votam em partidos diferentes se vestem todas da mesma maneira, que têm por vezes o mesmo estilo de vida, toda espécie de verdade que o discurso oficial das organizações recusa ver. Por conseguinte, mesmo uma ideologia dominante que financia e ordena um armazenamento de informação orientada fornece matéria para uma contrahistória, contra a sua vontade. M: Para além dessas questões, o senhor pensa que algum dia o cinema deixará de ser utilizado apenas para desmascarar o discurso oficial para mostrar a realidade, para passar a dar conta da realidade, da verdadeira realidade social? MF: Creio que se assiste a uma grande vontade de agir nesse sentido, mas ao mesmo tempo creio que nunca há uma grande eficácia porque, no atual estado das sociedades, que vivem na opressão social, na alienação do trabalho, o filme é ainda compreendido, na atual condição e por grande parte das pessoas, como um elemento de distração. Portanto, todo filme que, para ser militante, reproduz as condições e as dificuldades da realidade social não tem sucesso, porque aponta para uma verdade que as pessoas que sofrem não querem conhecer. Porque, quando se aponta para as razões reais de seu sofrimento, as pessoas ficam de tal modo desesperadas que perdem completamente a esperança. Daí que seja necessário que mascarem em si próprias

uma parte da realidade. Mostrar a origem da realidade não é possível senão em períodos de crise, durante um ou dois anos, como em Maio de 1968, na França, ou ainda, talvez, mais seis meses ou um ano aqui em Portugal. Pode-se imaginar um cinema militante ativo que as pessoas aceitarão porque estão em plena fase de abertura, mas se já têm essa capacidade de modo concreto, imediato, real, os filmes que analisam a realidade social finalmente só serão eficazes e só darão prazer aos que o fizeram. Seria preciso imaginar um outro estágio em que já não houvesse separação de poder entre o cineasta e a sociedade que filma; que chegasse um momento em que a própria sociedade se filmasse a si própria, aí então ter-se-ia libertado dos problemas porque se sentiria criadora, já não estaria dominada por voyeurs que analisam os seus dramas, o que nunca é agradável porque ninguém gosta que penetrem na sua vida social ou privada. Se você mostrar a um operário que ele é explorado, iludido, enganado pelo seu patrão, pelo seu sindicato, pelo seu partido político etc., e se não houver uma solução imediata, ele não vai querer saber disso, porque não há lugar para a esperança. M: Os nazis na Alemanha fizeram trucagem com as fotografias... MF: Evidentemente que o fizeram, mas foram mesmo a ponto de falsificar os documentos. Não penso que a trucagem material seja o instrumento favorito de um sistema institucional. Penso que se lhe dá uma maior atenção porque é uma manifestação da capacidade do cinema

de representar uma falsa realidade. 35 Somos mais marcados por uma falsa realidade na imagem do que pelo mesmo efeito no discurso. Quando se faz um discurso falso e “trucado” é normal... Mas, quando se mostra uma imagem “trucada”, é considerado diabólico. Evidentemente que há documentos “trucados”, mas a falsificação não participa assim tanto de processos mecânicos. Conheço alguns exemplos, mas não especialmente alemães... Alguns são americanos, outros russos, mas não creio que por isso se possa dizer que os americanos fizeram mais falsificados que os nazis. Os nazis “trucaram” mil vezes mais, mas de maneira diferente, não por processos técnicos, “trucaram” porque tinham um conhecimento mais preciso da capacidade do cinema de mostrar uma falsa realidade sem usar a trucagem. Ousaram e souberam utilizar o cinema como uma arma política, levando-a mais longe que os outros, não “trucaram” propriamente as imagens como quem conta uma mentira num discurso porque tinham outros meios, não valia a pena. M: O senhor disse uma vez a Serge Daney que apenas os nazis privilegiaram os filmes porque eram plebeus que não tinham tido acesso a outra cultura. O senhor é capaz de precisar essa importância dada pelos nazis à imagem, ao filme, ao filmado? MF: Sim. A maior parte dos nazis, exceto talvez Goebbles, não era o que se pode chamar homens de biblioteca, diferentemente do que acontece com os marxistas, como disse aos Cahiers du Cinéma. Pertenciam a uma outra camada social,


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tenciam a um meio diferente do ponto de vista social e iam sempre e acima de tudo ao cinema. Hitler, Goering etc., todo o período de 1925 a 1942, estando ou não no poder, passavam a vida indo ao cinema. Viram os filmes de Fritz Lang dez ou vinte vezes, tinham uma grande cultura cinematográfica, mas isso não se chamava cultura na época. Para eles, era natural se dirigirem pela propaganda para organizar as multidões ou através do discurso teatral, que Hitler e Goebbles praticavam; foram eles os primeiros a organizar o discurso Adolf Hitler falando ao povo alemão em uma festa cívica em Bückeberg e discursando no Reichstag, em Berlim. teatral. Sempre que HiAcervo Correio da Manhã tler e Goebbles falavam, davam o máximo de amais plebéia, pequeno-burguesa; e atenção à iluminação, aos micronão apenas no que se refere à sua fones, à sincronia entre a música e clientela, mas também quanto à sua o discurso. As pessoas de outros origem social, ao seu gosto. Era partidos políticos, ou de outros pauma gente que ia muito ao cine- íses, os homens políticos na Franma, enquanto os marxistas da mes- ca, na Inglaterra etc., teriam conma época, quer os comunistas ale- siderado escandaloso, ridículo, abmães, quer os russos ou os france- surdo e degradante utilizar processes, não iam nunca ao cinema. A so de ator para falar em público. O primeira vez que os comunistas resultado disso é que eram menos franceses pensaram no cinema de ouvidos, não sabiam falar, não prouma maneira ativa foi em 1936, duziam tanto efeito mágico entre os quando pediram a Jean Renoir para espectadores. Quando as pessoas fazer um filme de propaganda para ouviam Hitler, por um lado, ouvias eleições, portanto, de um modo am mais ou menos o que ele dizia, muito objetivo, preciso, e foi uma mas, sobretudo, eram envolvidas em coisa excepcional, um pouco como num espetáculo de som, luz, drama, se organiza uma feira, uma exposi- muito mais espetacular; e assim iam ção, não era hábito se ocuparem a essas manifestações sem se preode cinema; enquanto os nazis per- cuparem muito com o que no fun-

REVOLUÇÕES

do era dito sobre o capitalismo, um pouco como quem vai à missa, para a cerimônia, para encontrar os amigos, os cheiros, a música, sem ouvir muito bem o que diz o padre, exceto, é claro, em momentos excepcionais. Para os nazis, era perfeitamente normal utilizar os filmes como instrumento de massas para fazer passar as suas idéias, e é o que explica, primeiro, que tenham conferido às pessoas que faziam cinema uma dignidade de criadores, que não lhes teria sido reconhecida na sociedade burguesa, porque aí o criador era o escritor, o professor. É de notar que Goebbles tenha dito “quando ouço falar de cultura puxo o revólver”. Ora, para ele, a cultura eram os textos, os livros, a ponto de queimar os livros hostis. Desenvolveram a sua visão da sociedade alemã através dos filmes porque para eles era o meio de continuar a comunicação global com milhões de pessoas, que encontravam no filme as duas horas de repouso, de divertimento, de que todas as pessoas têm necessidade quando vivem numa sociedade em que trabalham, em que a vida é difícil. Houve, portanto, uma compreensão global do fenômeno cinematográfico muito maior, o que não quer dizer que os filmes da época nazi tenham tido um papel particularmente importante: foram numerosos, atraíram o público, mas sabe-se que, do ponto de vista artístico, não foram os melhores. O certo é que não se pode medir se essa política cinematográfica teve êxito, sabe-se apenas que ela foi um dos pontos principais da política nazi.

M: E isso explica certamente o gesto de Goebbles enquanto discursava... MF: Sim, no filme que montei vêse que Goebbles estudava e ensaiava os seus discursos, um pouco como hoje na televisão, depois da vitória de Kennedy, todos os homens políticos franceses sabem que é necessário ter muita atenção à imagem que dão de si na televisão. Agora os homens políticos têm lições com atores, exigem ver a gravação para saber com que cara ficam, como falam, e isso foram os nazis os primeiros a compreender, porque utilizavam o cinema como se utiliza hoje a televisão. M: Essa importância dada pelos nazis ao cinema explica de algum modo a insistência com que convidam os cineastas alemães que estavam no estrangeiro a regressar à Alemanha. Foi o que se passou com Fritz Lang, a quem convidaram a ficar em Berlim para dirigir o departamento de cinema alemão. O mesmo, aliás, aconteceu com outros cineastas. MF: Sim, para os nazis do estadomaior, no fundo, foram os cineastas que desempenharam o papel que para os outros dirigentes de organizações políticas desempenhava a cultura escrita. Hitler, para só dar um exemplo, sabemo-lo hoje, utilizava os gestos que em M, o vampiro de Dusseldorf são gestos do chefe das organizações de gangsters da cidade. Quando se conhece bem o filme de Lang e se vê as imagens dos discursos de Hitler, percebemos como ele copia, como faz exatamente os mesmos gestos. O que quer dizer que para os nazis os cineastas foram uma espécie de pais-

educadores do ponto de vista cultural. Talvez não seja tão claro como isto, de qualquer modo foi esse seu papel. Do mesmo modo que um regime político como o comunista quis conservar os seus intelectuais, para ter uma grande imagem da marca cultural, os nazis quiseram conservar os cineastas, e Goebbles e Hitler pediram a Fritz Lang para não partir. Ele respondeu “mas sou judeu, serei perseguido”, ao que eles replicaram “não, não, não, não. Você é cineasta, portanto o caso é diferente”. M: E, no entanto, Lang não ficou, apesar de muitos o considerarem um homem de direita. MF: Não creio que se possa considerar Lang como um homem de direita. Lembre-se que em Metropolis, por exemplo, que é seu filme político mais claro, ele se situa na perspectiva da exploração dos trabalhadores pelo capital. Hoje dizemos que o filme é de direita porque no final os operários, ou antes, o contramestre – e as pessoas nunca repararam que é o contramestre – aperta a mão do patrão. Nós hoje, e à distância que o tempo permite, damo-nos conta de que o filme transforma a luta de classes numa colaboração de classes. Aliás, já em 1930 algumas revistas notaram isso, não muitas, mas algumas. Mas é porque, segundo a nossa análise de hoje, a colaboração de classes corresponde a uma opção dos corporativistas e de um certo número de organizações de direita para esconder e para aniquilar a luta de classes, que podemos ser levados a dizer que Fritz Lang é um homem de direita.

M: Brecht disse, sobre as posições 37 de Lang na América: é um tipo que procura posições privilegiadas em Hollywood, que tenta fazer esquecer que é um exilado, mas nem por isso deixa de apresentar para explicar o seu exílio razões de ordem política, e que se aproveita desse estatuto para defender os seus interesses, que são, afinal, ganhar alguns milhões. MF: De acordo; mas apresentado da maneira como o faz Brecht e lido hoje, pode-se dizer que Fritz Lang visa alcançar uma glória pessoal, o lucro, o que não o define necessariamente como um homem de direita ou de esquerda, porque muita gente procura a glória e o lucro, e no entanto estes tomam formas diferentes: uns amam o dinheiro, outros o poder. Isto é um primeiro ponto. Agora um segundo ponto: quando se fala de Hollywood e, sobretudo, quando este é visto através de Brecht, tem-se imediatamente uma imagem de capitalismo... Mas é preciso dar conta de um certo aspecto de Hollywood e dos Estados Unidos: enquanto Fritz Lang está em Hollywood, a América é o país do mundo que combate mais fortemente o nazismo. É preciso não esquecer que Roosevelt foi o primeiro antinazi, com muito mais vigor do que o que tiveram na mesma altura os dirigentes políticos franceses, com muito mais lucidez que os franceses ou os ingleses; que Roosevelt é o democrata americano e que todos os refugiados de todos os países mantiveram na América um discurso antifascista muito mais conseqüente do que nos outros lugares. Foi a América a primeira a armar-se... Sem dúvida


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que foi surpreendida em Pearl Habour por um erro do estado-maior, o que não passa de um detalhe, mas Roosevelt esteve dez vezes mais atento ao perigo de fascistização e nazificação da Europa e do mundo. No contexto americano foram feitos muitos filmes antinazis, mas não se fizeram filmes antinazis na França ou na Inglaterra. Se vocês virem filmes ingleses de 19351940, perceberão que os maus, os espiões, têm sotaque russo. O anticomunismo é mais forte do que o antinazismo no nível da classe dirigente, o que não se passa na América. Na América, antes de 1942, o anticomunismo existe, é provável, mas não é virulento, não é de modo nenhum violento, enquanto o antinazismo é extremamente vigoroso. Antes de 19411942, antes da declaração de guerra, fizeram-se mais de cinqüenta filmes antinazis nos EUA e paralelamente mostravam-se filmes soviéticos, enquanto na França não se mostravam filmes soviéticos e não se faziam filmes antinazis, e do mesmo modo na Inglaterra. M: E na URSS? MF: Também os soviéticos fizeram um certo número de filmes antinazis, fizeram uma boa dúzia deles, e mesmo no momento do Pacto, o que prova que nem tudo estava bem organizado, se é que posso me exprimir assim. Não pretendo defender Fritz Lang, mas apenas refletir sobre o seu comportamento. Fritz Lang poderia considerar que estava num país onde podia julgar da natureza do nazismo, dizer aos americanos o que se passava. No interior desse quadro geral, em que tinha boa cons-

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ciência de cumprir o seu dever de democrata, talvez tenha procurado o seu lucro pessoal, mas daí a dizer que é um homem de direita corresponde a não enquadrar as coisas no seu verdadeiro lugar na época. M: Os revolucionários não podem usar o cinema como fizeram os nazis, com constante manipulação; o que era possível fazer então? Por exemplo, o que fizeram os russos depois da Revolução para despertar a consciência das pessoas para alguns de seus problemas? MF: A experiência soviética de utilização do cinema é muito particular, e isto se deve ao fato de os comunistas russos, os bolcheviques, não terem qualquer cultura cinematográfica, exceto talvez Lunatcharsky, não pensaram noutra coisa senão em dominar o cinema, mas fizeram-no de uma forma superficial. Durante alguns anos houve um cinema de revolução, Eisenstein, Pudovkin, mas digamos que este cinema escapava às instâncias bolcheviques, isto é, ao partido; é por isso que o acolhimento dado a esses filmes na Rússia e nomeadamente pelo partido bolchevique não era entusiástico. “De acordo, o Encouraçado Potemkin é muito bom”, mas já Outubro esteve sujeito a muitas críticas e A g reve ainda mais. Por quê? Porque esses cineastas escapavam à organização do Partido Comunista e contavam a Revolução como a tinham visto, e na sua história da revolução nunca falavam do partido bolchevique. Se repararem bem, nos filmes de Eisenstein nunca se fala do partido bolchevique, exceto em alguns inserts, o que não entra na estrutura

do argumento, no cerne da história da revolução. São as massas, são os sovietes, são os comitês, os soldados, os camponeses, os operários que fazem a revolução, mas não o partido. Assim, a cada passo falase do partido operário, mas para que não fique esquecido, embora não entre no argumento, se é que posso me exprimir assim. Em Outubro fala-se um pouco de Lenin, mas o partido como força organizacional não está presente. O resultado é que os dirigentes comunistas ficaram contentes com esse cinema, porque era um cinema grandioso, belo, que glorificava e justificava o sucesso da Revolução, mas não tinha a mesma preocupação que os dirigentes em mostrar o papel do próprio partido bolchevique. Nesses filmes compreendem-se um pouco todos os revolucionários, os socialistas revolucionários, os mencheviques, os bolcheviques... Não, os mencheviques são criticados... Não é claramente definida a identidade de cada grupo, todos são revolucionários, só que há os bons e os maus, mas no interior dos bons não são mostradas as categorias. Os comunistas levaram muito tempo para compreender esses problemas, e houve muitos filmes que podem ser qualificados, que eles, os bolcheviques, qualificaram de contra-revolucionários, durante a Revolução, em 1917, 18, 19, 20, 25, 28... Vi alguns filmes que são a favor da revolução mas contra o partido bolchevique. O partido bolchevique acabou por compreendê-lo, e a partir de 1927, 1928, o que se chama de época stalinista, mas não ainda a era de Stalin, mas sim de Jdanov etc., quis fazer filmes que exprimis-

sem a visão dos dirigentes. É a época de filmes como Tchapaiev, dos irmãos Vassiliev, que é um exemplo típico; é também a época dos filmes de Donskoi, a versão da Mãe feita por Donskoi é completamente diferente da primeira versão, de Pudovkin, é muito mais do lado dos bolcheviques do que A mãe de Pudovkin, que era mais revolucionária e nada bolchevique. Esse cinema terá tido mais eficácia? Não se pode dizer, porque quanto ao primeiro não se sabe se chegou a ser eficaz, porque o público russo que vivia nas cidades e que compreendia, muitas vezes militava no partido e era formado por revolucionários da França ou da Espanha, que diziam “que belos filmes revolucionários”. E as massas populares não compreendiam uma linguagem cinematográfica tão vanguardista, tão modernista como a de Eisenstein, por exemplo. As alegorias e os símbolos não eram compreendidos. Era um cinema para cineastas ou para pessoas esclarecidas. Não se pode dizer se esse cinema foi eficaz mesmo em relação à própria Rússia. Penso que só após mais de vinte anos é que os cineastas soviéticos têm um papel na sociedade; em filmes como Lágrimas ou como Soyez les bienvenus, nos filmes da época da desestalinização, sobretudo no período de Krutchev, é que os cineastas têm oportunidade de desempenhar o papel que desejam na sociedade, isto é, alertar as pessoas para os problemas. Para responder à sua pergunta, penso que numa outra sociedade, revolucionária, o problema é um pouco diferente. Penso que o fim do ca-

minho será no dia em que toda gente tiver uma câmera ou uma máquina fotográfica para tomar consciência por si mesma das coisas importantes. No início, isto não é ainda pensável por razões econômicas e sobretudo por razões de mentalidade. Aqui, por exemplo, neste país, é evidente que a função revolucionária do filme não é compreensível de modo nenhum, as pessoas vão querer primeiro ver os filmes que lhes dêem prazer porque sofreram muito; sendo assim, penso que se quisermos evitar essa fase, será um fracasso. É necessário que as organizações revolucionárias, utilizando o cinema, façam uma seleção cuidadosa dos filmes, para que a sua mensagem não seja contra-revolucionária; é preciso que a mensagem seja compreendida, que não seja demasiado difícil, mas é necessário que as pessoas que vão vê-los tenham um pouco de prazer na vida, e que associem também as organizações e os filmes que vêem às pessoas que participam na sua emancipação. Se se começar a fazer filmes de vanguarda, filmes sobre lutas em fábricas, não me parece que as pessoas a quem os filmes dizem respeito possam ver nesse cinema de combate o que desejam os organizadores. Verão esse cinema como um jornal político que, como qualquer outro, dará origem a discussões criadoras certamente, mas que só terão efeito sobre pequenos grupos, muito reduzidos. Os filmes militantes na França têm sucesso em meio operário, camponês... O filme O Lazarc, por exemplo, não teve sucesso no Lazarc, só teve sucesso em Paris, entre aqueles que protestam por causa do Lazarc. Penso que é necessário refletir esses problemas e que um

filme político não é necessariamen- 39 te um filme para militantes, um filme pode exercer uma função política por outros meios. E pessoalmente creio que os filmes devem ser um pouco enquadrados, de uma maneira discreta: no programa de um cineclube se diz “vamos apresentar tal filme”, mas é preciso fazê-lo em quatro linhas e não em quatro páginas – este filme mostra de que modo um operário pode ser explorado sem dar por isso em determinada situação. E basta. Depois se mostra o filme, e se for agradável, a pessoa reflete. Isto numa primeira etapa. M: Aqui em Portugal foi apresentado o Encouraçado Potemkin em fábricas e quartéis e o resultado foi bom! MF: Sim, mas o Encouraçado é um filme que se pode mostrar por toda parte e em qualquer momento. Não está entre os filmes que foram contestados, é um filme que tem um sucesso universal. Mas não se pode passar eternamente o Encouraçado... Aliás, penso que o sucesso do Encouraçado faz refletir. Assim, enquanto as estruturas sociais de diferentes países são variáveis – Espanha, França, Itália, Rússia –, a estrutura interna de uma organização militar como o exército ou a marinha é semelhante. Isto quer dizer que um marinheiro português compreende todo o Encouraçado, um oficial português, grego, turco ou argentino também compreende tudo. Mas se for um filme sobre a classe operária, ou sobre a burguesia, ou o prazer e erotismo da vanguarda parisiense, não estou certo de que seja compreendido noutros países. É necessário refletir um pouco sobre a história paralela das


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Cartaz de Outubro

sociedades para ver se um filme pode ou não funcionar, pois há filmes que só funcionam na sociedade em que foram produzidos. M: O senhor falou de Eisenstein, Pudovkin... mas, e Vertov? MF: Creio que há dois Dziga Vertov, um que sonha com uma câmera-olho presente em toda parte, que faz atualidade de que eu gosto muito e é o inventor que compreendeu a função do cinema, sua função política e social, desse eu gosto muito. E há um outro Dziga Vertov, que é o mesmo, que faz filmes em que revela mais a vontade de poder do cineasta de utilizar as imagens para comunicar a sua visão do mundo, é o caso de O homem da câmera, e onde utiliza essencialmente efeitos de cinema, uma prática muito refinada e muito refletida da

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capacidade do cinema de criar o sonho, uma certa visão da realidade, este Dziga Vertov interessame menos do ponto de vista das lutas políticas e sociais e desconfio disso como desconfio de todas as instâncias que utilizam um processo, seja ele qual for, para conseguir poder. Desse Dziga Vertov já não gosto. Mas é uma questão de gosto pessoal. Há demasiadas pesquisas técnicas com o fim de justificar o direito do criador, do artista, de mostrar a sua visão da sociedade e da realidade. No fundo, nos filmes desse Dziga Vertov, como em O homem da câmera , os problemas sociais foram esquecidos, há muitos efeitos de câmera. Mas, e numa perspectiva revolucionária, como é a Rússia de 1926? Utilizar a câmera de doze maneiras para representar uma realidade seria o trabalho fundamental? E o outro Vertov, o revolucionário, teria compreendido que, pela captação da realidade com a câmera, se pode educar, se pode ajudar a elevar o nível de consciência geral? O segundo Vertov não terá matado o primeiro? Ao dizer isto, vou contra os fanáticos de Dziga Vertov.

como um carniceiro relativamente à sociedade. O espectador russo culto, da intelligentsia, compreende, e hoje nós, na França, em Portugal, que temos estudos, que temos uma formação clássica, que sabemos o que é um discurso, uma alegoria, uma representação, um símbolo, um parêntese, compreendemos essa linguagem, mas o próprio Eisenstein contou que, quando apresentou o filme no campo, os camponeses riram e disseram: “Olha, olha, agora nos mostram bois, por quê?” Por outro lado, nem sequer ficaram emocionados ao ver correr todo aquele sangue, porque matar um boi para um camponês é uma coisa banal, cotidiana e de nenhum modo o símbolo de um crime, pelo que a intenção do filme, que consistia em dramatizar a maneira como o regime czarista assassinava os trabalhadores, falhou por completo. Portanto o cineasta deve refletir e saber para quem se dirigem os seus filmes, sob pena de que o discurso se perca completamente.

M: E nota-se diferença na recepção, por parte do povo e dos dirigentes russos, do primeiro Dziga Vertov relativamente ao segundo?

MF: Refere-se à história que se faz ou à história do passado?

MF: Sim, e mesmo com Eisenstein. Sabe-se que no filme A greve , a cena do talho, onde Eisenstein alterna os planos de fuzilamento dos camponeses com o plano do talho em que se abatem reses, o sangue dos bois simbolizando o sangue dos operários, é uma alegoria para explicar que o Estado se comporta

M: Que trabalho é necessário para filmar a História?

M: Talvez seja melhor o senhor dividir a sua resposta segundo as suas conveniências. De qualquer modo, eu estava falando em A tomada do poder por Luís XIV, de Rosselini, e nos filmes de Allio, mas também nos seus filmes sobre a história contemporânea. São duas maneiras diferentes de filmar a história. E de qualquer maneira, a I Guerra Mundial também já é passado.

co tradicionalista. Por conseguinte, creio que um dos trabalhos do filme é tentar referenciar os estratos numa realidade social e ver o peso relativo da modernidade, da tradição e das permanências, que não são sequer compreendidas como permanências, na família, no trabalho artesanal ou noutra coisa. Isto, para dizer que a oposição formal entre a história do presente e a história do passado não me parece ser uma oposição exata. E eu diria que os filmes correspondem a duas categorias (não filmes sobre o séc. XX ou filmes sobre o passado, como Allio etc.): os filmes que sobre o passado fazem compreender o presente e filmes que sobre o passado ficam fechados no passado e não têm utilidade ou significação para explicar o presente.

MF: Então eu vou responder a essas questões de maneira diferente. Primeiro, creio que não há fronteiras entre o passado e o presente... Pode-se filmar ao mesmo tempo o passado e o presente. O que quer dizer que se pode muito bem fazer um filme, como eu nunca fiz, mas que talvez venha ainda a fazer, que mostra como numa sociedade – vocês podem pensar em Portugal e eu na França ou na Itália, tanto faz – o que se julga ser o presente, participa em camadas, níveis, sedimentações de épocas diferentes. Quer dizer, há nos comportamentos sociais, individuais ou coletivos, seções que são completamente modernas, atuais, no discurso como na realidade social, que são criação imediata, há seções que derivam da experiência de toda uma vida, há seções que participam de duas ou três gerações, como há as que participam de uma história fortemente enraizada. Para dar apenas um exemplo, veja-se o caso em que há um comportamento social muito modernista e revolucionário e um comportamento familiar muito tradicional e reacionário. Ou o inverso, pode-se ter um comportamento familiar e sexual modernista e um comportamento profissional e técni-

É por isso que a escolha do período me parece um falso problema, ou melhor, um problema que depende de imperativos técnicos, porque não se pode fazer um filme sobre a época de Luís XIV da mesma maneira que um filme sobre a revolução portuguesa. No entanto não estou assim tão certo disso. Se eu fosse com um gravador de som ou uma câmera para uma região qualquer e interrogasse os campo-

neses, doutores, e padres sobre o 41 que se passou há cinqüenta anos, cem anos, sobre as recordações que têm, sobre o que lá se conta sobre o cerco de La Rochelle na época de Luís XV, ao mesmo tempo que obtendo uma narração do que numa aldeia se conservou como recordação do que se contava, mesmo que falso, estou mais próximo de uma história do passado, que é recente e atual porque dela ficou o rasto. Se, por outro lado, utilizar as gravuras do Museu do Louvre sobre o cerco de La Rochelle no Poitou e frases de Luís XIII e de Mazarino ou de Richelieu, já não sei bem, sobre o que diziam os protestantes, e o que diziam os católicos, faço um filme que pode ser mais histórico, mas que não tem de modo algum a mesma função. Para mim, a fronteira não é entre o passado e o presente, mas entre os filmes ou as obras escritas (e aí não faço distinção) que têm uma prolongação no presente, que fornecem uma explicação do nosso tempo, e as obras, filmes, escritos ou livros que permanecem no passado, como um sonho, como uma evasão, sem que o leitor ou o espectador faça uma ligação particular com sua situação ou o seu estatuto atual.

In Mount, Christopher, op. cit.

In Mount, Christopher. Stenberg brothers : constructing a revolution in soviet design. New York: The Museum of Modern Art, 1997

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Cartaz de O Encouraçado Potemkin


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Estudantes franceses montam barricada no Quartier Latin. Paris, Franรงa, 23/5/1968. Acervo Correio da Manhรฃ


Sheila Schvarzman

Doutora em História pela Unicamp, professora visitante do Programa de Pós-Graduação do Departamento de

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Multimeios da Unicamp.

Cinema, história e Marc Ferro

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assados mais de trinta anos do surgimento dos estudos sobre cinema e história, já é possível historiar como e por que filmes começam a interessar os historiadores. Se visões de história são datadas, as formas de abordálas também. Cabe então revê-las. Se escrever a história é um exercício incessante, se visões se sobrepõem umas as outras, este texto tratará não apenas de como se pode trabalhar historicamente com filmes, mas sobretudo de como esse trabalho foi também historicamente determinado. 1 É da natureza do cinema registrar a realidade. Pode-se especular sobre o fato de esta arte aparecer no século do realismo, em que a literatura se empenhou em copiar a natureza, em recriar os fatos tal como são susceptíveis de acontecer.

In Cadernos do Terceiro Mundo

Se durante anos foi possível discutir se o cinema era ou não uma arte, tal disputa ocorria exatamente a partir da capacidade do cinema de reproduzir as coisas tais como são. Em A arte do cinema, Rudolph Arnheim compara as possibilidades do cinema com as da pintura:

“Na pintura, o caminho da realidade ao quadro passa pelo olhar do artista, seu sistema nervoso, sua mão, e por último pelo pincel que aplica toques sucessivos sobre a tela. O processo nada tem de mecâni-

co, ao contrário do que se produz na fotografia, em que a reflexão de raios luminosos sobre um objeto, ligada por um sistema de lentes e dirigida sobre uma placa luminosa, provoca precipitações químicas”. 2

Essa natureza “objetiva” destina ao cinema o papel de produtor constante de documentos sobre a realidade e a maneira como se constitui. Puras ficções ou o que efetivamente acontece, a presença da câmera é a garantia de permanência. 3 Assim, a história está inscrita no cinema: a trama das imagens absorve, conscientemente ou não, o momento histórico de sua produção: móveis, roupas, penteados e gestos documentam modos de se relacionar com as coisas, testemunham maneiras de observá-las. Quer se trate de um filme histórico (como O Encouraçado Potemkin , de Eisenstein, de 1925), quer de um drama ( Sangue mineiro , de Humberto Mauro, de 1929), as imagens que deslizam sobre a tela oferecem um ângulo privilegiado de observação – ao mesmo tempo constroem e são essa realidade. Diante do mais simples dos filmes (digamos, A chegada do trem na gare Ciotat, dos irmãos Lumière, de 1895), o observador não pode se furtar à constatação tão óbvia quanto revolucionária: esses seres que desfilam na tela existiram; a locomotiva, os funcionários, as pessoas que aguardam na plataforma nos informam sobre uma maneira de estar nas coisas, de presenciá-las, de experimentá-las.

1 “A historicidade obriga a inserir a história numa perspectiva histórica. Há uma historicidade da história que implica o movimento que liga uma prática interpretativa a uma prática social”. LE GOFF, Jacques. Enciclopédia Eunaudi . Lisboa: Einaudi, 1984, p. 159. 2 ARNHEIM, Rudolf. A arte do cinema. Lisboa: Aster, 1960 (original de 1933), p. 21. 3 BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinéma ? Paris: Cerf, 1975, p. 9.


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No entanto, o cinema foi desdenhado pelos historiadores porque se baseia em imagens, é invenção que ilude o espectador com montagens, truques e técnicas que fogem ao seu campo de conhecimentos. Mas a história é tão diferente assim?

Marc Ferro, história, historiografia e cinema Quando Marc Ferro se decide pelo estudo do cinema como fonte historiográfica (1969), as bases de seu pensamento histórico já estavam lançadas. Historiador da Revolução Russa, enfrenta constantemente o controle dos documentos necessários à sua pesquisa nos arquivos de Moscou. O cinema será uma fonte da qual lança mão para, evitando a censura às fontes escritas, poder realizar o seu trabalho de forma autônoma. Observando suas obras, quer tratem da relação com o cinema, ou da Revolução Russa, notaremos como é pela exposição da pluralidade de visões sobre um mesmo objeto que monta a sua argumentação. Da La Révolution Russe de 1917 – Octobre, naissance d’une societé, de 1976,4 até o programa de televisão “Histoire Parallèle”, que apresentou numa emissora francesa (19892002), onde são analisados filmes de atualidades que enfocam um mesmo assunto de diferentes pontos de vista – alemão e francês, por exemplo –, o que torna a história possível, no seu exercício, é a pluralidade e a contraposição de visões. Trabalhando o cinema, Ferro contesta o poder do historiador que determina o que é ou não digno de história. Em entrevista em 1975, Ferro falava do ofício do historiador como o de “devolver à sociedade a história tomada pelos aparelhos (Estado, partidos políticos, sindicatos etc.)”. Assim fazendo, enuncia a pertinência política de seu ofício: um resgate que se propõe autônomo em relação aos documentos pesquisados e às visões históri-

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cas já existentes, produzidas sob a influência de partidarismos que o historiador deve criticar e dos quais deve ser capaz de se desprender, e contra uma visão una que, necessariamente, implica a sobreposição de outras. Isso significa dizer que, a partir do cinema, é possível mostrar as virtualidades de uma história crítica em seus pressupostos, que se faz não pela reunião de documentos, mas pelo seu contraponto, pela tensão que se estabelece entre eles. Múltipla e multifacetada. No segundo tomo do livro sobre a Revolução Russa, Outubro, nascimento de uma sociedade, por exemplo, Ferro opõe a “revolução imaginada e a revolução imaginária”. Compõe um quadro de como os diferentes segmentos sociais construíram suas idéias e ideais sobre a revolução, e de como esta foi vivenciada na prática. A partir daí é capaz de mostrar qual das visões prevaleceu e de que forma o seu grupo porta-voz pôde dominar pela força, pela censura e pelo controle da sociedade, os outros sentidos que informavam a revolução na sua origem. Esse grupo detém a “verdade”, a visão que preponderou sobre as outras e que justificou toda a opressão e o controle em seu nome. “A revolução, tal como os revolucionários a haviam imaginado antes de 1917, era uma revolução imaginária. No entanto, como, de acordo com suas previsões, ela havia efetivamente estourado, eles não colocaram em causa nem suas análises, nem suas certezas.”5 A história não se organiza por uma verdade que o historiador descobre e elege nos documentos. Ao contrário, o historiador assinala a fatuidade desses documentos, e a sua constante ressignificação a serviço de cada momento histórico, em busca de autonomia, contra a imposição de verdades “universais” que instrumentalizam o domínio de uma cultura pela outra. É a emergência do discurso do “outro”, não apenas daquele por quem a história sempre foi escrita.

4 FERRO, Marc. La Révolution de 1917 , 2. Octobre, naissance d’une société. Paris: Aubier-Montaigne, 1976. 5 Ibidem, p. 13.

Dessa forma, de uma maneira singular, própria, Ferro se juntava a seus pares que nos anos de 1970 já procuravam abrir a história para aqueles a quem o discurso histórico tinha antes calado: operários, mulheres, pobres, camponeses, povos colonizados. Se Michelle Perot, Le Goff, Pierre Nora, Le Roy Ladurie procuravam demarcar seus campos e seus objetos, Ferro o fazia tendo por tema a construção de uma nova sociedade e, por fonte, expressões próprias ao tempo que interrogava, dentre elas, o cinema. Assim, Cinema e história foi gestado como uma tática de guerrilha do conhecimento histórico. Esta idéia – apenas aparentemente cabotina – expressa, com termos vizinhos ao universo que a gestou, a natureza dos processos e das questões de que procura dar conta. Quando Ferro começou a usar o filme para estudar a União Soviética, em 1969, o cinema fazia o papel de partisan6 que, clandestinamente, furava o cerco do inimigo poderoso no seu próprio campo. Através dele, obtinha um conhecimento parcial, aos pedaços, e que tirava sua riqueza não de um corpo documental coerente, mas elementos de contraponto que, ao fornecerem uma outra visão sobre o mesmo tema, eram capazes de colocá-lo em questão. Se essas imagens de “combatente clandestino” aparecem, elas não vêm por acaso. Em primeiro lugar, evocam o universo que Ferro estudou inicialmente, a União Soviética, a eclosão de uma revolução. Em segundo lugar, o momento em que Ferro trabalhou essas idéias: depois de 1968. Evocam também menções discretas de Ferro a sua participação na Resistência durante a guerra, o quanto esse período é embaraçoso para os franceses. Evocam a Europa, e o universo de onde tudo isso se origina. E evocam também os Annales e seus primeiros historiadores.

Uma relação datada? A relação entre história e cinema, como foi desenvolvida por Marc Ferro no início dos anos de 1970, é determinada pela natureza dos fenômenos que analisava. Os filmes lhe dão a possibilidade de penetrar em dados que seria impossível acessar por outras fontes. As imagens, o caráter artístico e ficcional do cinema, dificultam o controle das instituições (Estado, partidos políticos, sindicatos etc.) sobre o seu conteúdo. Dificultam, sobretudo, o controle por burocratas acostumados a ver no som, e não na imagem, o verdadeiro perigo. O controle político incide sobre o som, sobre o que os personagens dizem, enquanto a censura moral é que corta o que o filme mostra.7 A natureza do cinema permitia que lapsos de toda ordem se evidenciassem. Se havia censura, havia um conteúdo latente. E o cinema, baseado em imagens, permitia que esses fragmentos do não-dito aflorassem, apesar dos controles. Analisá-los possibilitava ao historiador o acesso a uma documentação inédita e diferente daquela encontrável nos arquivos controlados pelo Estado, ou pelo Partido Comunista. Antes disso, em 1964, Ferro participa como consultor histórico da produção de um documentário sobre a Primeira Guerra Mundial. O contato com os chamados “filmes de atualidade”, documentários e cinejornais produzidos oficialmente, leva o historiador a constatar, de imediato, a necessidade de conhecer a linguagem do meio para usá-lo como fonte. O Estado, produtor desses filmes, usa o efeito de credibilidade da imagem para “vender” os acontecimentos mostrados como absolutamente verídicos. Ferro encontrou entre esses filmes trechos em que a câmera filmava o exército inimigo de frente, atirando. Ora, isso supunha que o cinegrafista encarregado de fixar essas imagens fosse menos um cinegrafista do que um alvo privilegiado.

6 Combatente clandestino da Resistência francesa durante a ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial. 7 FERRO, Marc. Cinéma et histoire. Paris: Denoel, 1977, p. 85. Neste sentido, é interessante a consulta ao capítulo “Critique du document filmique, critique du film de montage” em FERRO, M. Analyse de film, analyse de sociétés. Paris: Hachette, 1976, p. 18 a 38.

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Daí poder-se concluir que o documentário, em vez de documentar cenas “reais”, compunha-se com freqüência da montagem de cenas registradas no campo de batalha com outras, encenadas. Essa conclusão – hoje evidente – não invalida o “filme de atualidade”, nem o cinema em geral como fonte, embora reafirme a necessidade de o historiador colocar em xeque, permanentemente, suas fontes. De outro ponto de vista, ela chega a alargar, mesmo, a importância dessas imagens, na medida em que elas passam a informar, desde que vistas convenientemente, sobre uma série de outros fenômenos, que vão desde a batalha travada pelo controle e difusão da informação visual, seu impacto sobre o moral das populações, tal como visado pelos estadosmaiores, até o tipo de imagem que cada estado envolvido nos conflitos procura difundir deles: a sua “verdade”, tal como se traduz em imagens.8

mar o conhecimento existente a partir de documentos escritos. O segundo tomo de sua La Revolution Russe de 1917 (Octobre, naissance d’une societé) contém amostras da abrangência desse procedimento. É o caso de uma das cenas do filme A vida em um subsolo, de 1925: um casal consulta uma folhinha para calcular quando vai nascer o filho que esperam. O calendário, de tipo comum, tem a data de 1924: mas já está ornado por um grande retrato de Stalin. Ora, uma folhinha de 1924 não poderia ter uma foto de Stalin: teria sido impressa em 1923. Em 1925, ao contrário, Stalin já se apossava pessoalmente, por assim dizer, do aparelho de Estado, inclusive o de propaganda. Assim, a folhinha do filme “erra”, do ponto de vista realista. Mas, é justamente quando pratica esse erro grosseiro que o filme torna-se um indicador precioso da cronologia da tomada do poder por Stalin, e dos métodos que usou para tomá-lo. Esses erros são reveladores da tensão entre o que se diz e o que se quer dizer, o que se pode e deve dizer.9 Isso lhe permite “legitimar a imagem como fonte histórica em relação às fontes sagradas, os textos oficiais, as estatísticas econômicas, os ar-

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A partir do estudo de uma série de filmes soviéticos, Ferro começa então a utilizar o cinema como fonte de uma outra história, que permite ao historiador criticar, reformular ou, ao contrário, reafir-

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quivos notariais”.10 Desta forma, Ferro ataca dois problemas do historiador ao mesmo tempo: por um lado, romper com o controle sobre os documentos, e por outro, ter, diante de seus pares, uma justificativa suficientemente científica para a inclusão do cinema entre os seus objetos de interesse. A esse respeito é interessante notar que, se o uso do cinema pelo historiador já é incluído no terceiro volume da obra Faire de l’histoire, de Le Goff e Pierre Nora11 – que trata dos novos objetos, com um artigo de Ferro a respeito – um historiador dos Annales como Peter Burke, em 1990,12 trata de Ferro como um dos únicos “historiadores novos” a trabalhar com a época contemporânea, citando suas obras sobre a Primeira Guerra Mundial e a União Soviética, sem qualquer menção ao trabalho com o cinema. Certamente essa omissão de Burke não é desinformação. Revela como o assunto é evitado ou tratado com desconfiança pelo historiador. É como se essa questão fosse exterior ao livro que escreve, quando na realidade não o é. Muito pelo contrário. São os pressupostos teóricos dos Annales e da nova história, com suas propostas de uma história das mentalidades, seu interesse pelo material, o cotidiano, a psicologia, uma história crítica em relação aos documentos, interdisciplinar nas abordagens e com novos objetos, que permitem a Ferro introduzir o cinema como assunto de interesse e como um documento estratégico para evitar o controle da informação e, conseqüentemente, o controle sobre a história que se produz. O trabalho com o cinema e o controle sobre as informações conduzem Ferro a incluir no seu universo de interesses outros meios que vêm invadindo e controlando a memória dos homens desde os fins do século XIX: o ensino primário, a imprensa e a televi-

Desfile militar na Praça Vermelha em comemoração aos 40 anos da Revolução Russa. Moscou, 9/11/1957

8 Nesse sentido, ver capítulo “Critique du document filmique, critique du film de montage”, op. cit., p. 18 a 38. 9 FERRO, Marc. Cinéma et histoire, p. 104.

são. Michel Foucault analisou como esses meios e mais a literatura popular contribuíram para a perda da memória das experiências pessoais passadas, substituída por outra, encenada e retocada. Ferro vai justamente mostrar, em suas obras sobre esses assuntos, como o livro didático, as emissões de TV e a imprensa se apropriam da história, tomando-a para si.13 Sua abordagem e preocupações fazem eco também com o que escreviam e pensavam colegas seus, como Michel de Certeau, que na “Operação histórica”14 fala da influência e do controle das instituições sobre o que o historiador produz. Les lieux de mémoire, de Pierre Nora,15 ao tratar da institucionalização da memória, dialoga com Ferro, que procura no filme a memória permitida. Mas essa relação, como outras tantas no próprio conhecimento, tem história. Por um lado, a apropriação do cinema como fonte de estudos para o historiador é tardia. Embora o cinema tenha mais de cem anos, foi só há cerca de trinta que passou a ser estudado pelos historiadores de forma sistemática. Por outro lado, o que se buscava então no cinema e as formas de obtê-lo foram determinantes dos métodos que se estabeleceram, e de como o cinema era visto, de modo a permitir sua introdução no exercício historiográfico. Um percurso individual? Há ainda um último ponto a introduzir nesta “gênese” de cinema e história. O trajeto pessoal de Marc Ferro, que, ao menos na França, parece ter sido efetivamente o primeiro a propor esses estudos. Marc Ferro viveu na Argélia, onde foi professor do curso secundário. A vivência e o contato com outra cultura diametralmente oposta à sua, a situação de colonizador que partilha também as

10 GARÇON, François e SORLIN, Pierre. De Braudel à ‘Histoire parallèle’, entretien avec Marc Ferro. Cinemáction, n. 65, Paris, Corlet-Télérama, 1992, p. 53. 11 LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (org.). Faire de l’histoire. Paris: Gallimard, 1974. 12 BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Unesp, 1991. 13 Nas obras A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação (São Paulo: Ibrasa, 1983), sobre as visões de história construídas pelos livros didáticos; O Ocidente diante da Revolução Russa , trad. Carlos Nelson Coutinho (São Paulo: Brasiliense, 1984), sobre como os jornais ocidentais reportaram os eventos da revolução de 1917; e em artigos como Médias et intelligence du Monde, publicado no Le Monde Diplomatique de janeiro de 1993, sobre a televisão. 14 CERTEAU, Michel de. Operação histórica. In: LE GOFF, J. e NORA, P. (org.), op. cit., p. 3-41. 15 NORA, Pierre. Les lieux de mémoire . Paris: Gallimard, 1984. v. I e II.

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experiências do colonizado, deram-lhe uma visão multifacetada da realidade. Como colonizador, transmitia seus conceitos, sua cultura; em resposta ouvia o contraponto de alunos que exprimiam seus próprios valores. O que para ele podia ser positivo, para o outro era a perda da identidade. Assim, percebe na prática que não há um discurso, uma verdade, uma interpretação da história. Elas são muitas, se excluem, encobrem, mas por questões políticas, uma se sobrepõe a outra e procura inclusive abarcá-la (como o caso que cita sobre os livros didáticos africanos: povos negros sob dominação francesa aprendiam que seus ancestrais foram gauleses!). O que é certo para os argelinos, é deplorável para os franceses. Em 1962, de volta à França, ainda como professor do ensino médio, observa que a televisão já se constituía, entre os estudantes, numa cultura fora da escola, baseada em imagens. Chocou-se. Foi a partir desse momento que começou a fazer filmes didáticos, o primeiro deles em 1964 sobre a Primeira Guerra Mundial. Estudou cinema. “Foi realizando este filme que comecei a fazer a minha terceira reflexão histórica: as imagens que eu via eram diferentes dos livros que eu tinha lido, ainda que fossem a mesma história. Logo, havia duas versões da história. Não somente para os árabes e franceses, mas também para textos e imagens.”16 Dessa forma, seu pensamento e sua crítica se constroem sobre dualidades: há versões dos colonizadores e dos colonizados, do texto e da imagem, do visível e do não-visível. Toda a sua crítica se baseia nessas constatações. A sua tarefa como historiador é desvendar um discurso que se sobrepõe a outro. Não apenas como ideologia, mas também a partir de diferentes “focos”17 que produzem a história, conceito que desenvolve em seu livro A história vigiada, de 1985, no qual trata do discurso feito pelas instituições como o Estado, o Partido Comunista russo, e das contra-histórias que aparecem na literatura,

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no cinema, nas festas populares. Aí localiza as fissuras, os lapsos, os silêncios que lhe permitem operar o seu trabalho.18 Assim, a segunda tarefa do historiador, de acordo com ele, consiste em confrontar os diferentes discursos para descobrir por detrás deles o que se esconde: “O historiador deve ajudar a sociedade a tomar consciência dessa mistificação. Desta forma pode devolver à sociedade a História tomada pelos aparelhos”.19 Em 1975, as questões do desvendamento conformam o âmbito das pesquisas de Ferro até aquele momento, pela natureza dos fenômenos que estudava e dos filmes que “lia”: stalinismo, nazismo, filmes franceses da época de Vichy, que inegavelmente são produtos de uma tensão entre a realidade da época, entre o que se podia e o que se devia mostrar dela. Diante desse universo fílmico, onde consciente ou inconscientemente os filmes procuram transmitir mensagens políticas e uma certa apropriação da história, é possível entender o papel que tem o conceito de ideologia nesse universo conceitual, para a compreensão do cinema. Já em 1985, em A história vigiada, obra de historiografia, sua preocupação não está centrada na dualidade dos significados. A ênfase central é quanto à apropriação e controle sobre a obra de história. Aborda os vários “focos” que produzem visões de história, e as possibilidades desses focos na construção de visões pluralistas, tornando possível de novo fugir do controle das instituições. Os focos vão dos silêncios da história, das festas à memória popular, ao cinema.20 Aqui Ferro agrega as idéias de Michel de Certeau (“Operação histórica”), de Pierre Nora ( Les lieux de mémoire), de Hobsbawm (A invenção das tradições ). 21 A multiplicidade de focos emissores de visão da história sucede à dualidade. A noção de controle sobre a história, de seus usos e abusos, toma o lugar da ideologia e do desvendamento.

16 Marc Ferro e a imagem da História. Folha de S. Paulo , São Paulo, 12 ago. 1986. p. A.36. 17 No original, “foyers”. 18 FERRO, Marc. A história vigiada . Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1989. 19 FERRO, Marc. Histoire et cinéma , p. 91. 20 Idem. 21 HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições . São Paulo: Paz e Terra, 1984.

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Nesse livro, ao tratar do cinema como “foco” produtor de visões de história, e não apenas como fonte, preocupa-se não com as informações inéditas, mas com o tipo de construção que o cineasta é capaz de produzir. Nessa e em obras posteriores, deixa de sugerir classificações pelo tipo de tratamento que a história tem nos filmes, e se interessa por aqueles que são capazes de produzir filmes – visões de história – autônomos. “Quando o cineasta é capaz de uma análise autônoma, exprime sua própria visão do mundo, independente das ideologias e das instituições no poder.”22 E a contribuição desses filmes reside justamente em serem capazes de colocar a história em questão e não apenas valorizá-la pela encenação. Em Révoltes, révolution, cinéma, de 1989,23 passa em revista as revoltas e revoluções que foram encenadas pelo cinema no mundo todo. Na introdução, Ferro historia como os homens haviam construído as noções de revolta e de revolução e como o cinema as aplica. No caso da Revolução Francesa, diz: “Observa-se que os filmes franceses sobre a Revolução Francesa nunca lhe são completamente favoráveis”; ou sobre a utilização de uma revolução no enredo dos filmes: “A revolução no cinema exerce a função da catástrofe que se abate na vida dos personagens, que interfere em sua vida pessoal...”24 Por outro lado, na China, a revolução que se encena é sempre tributária do regime.25 Na Hungria, “o cinema dos anos 80 ficou estreitamente ligado à história nacional, através da qual se perfila a dolorosa lembrança de 1956. Assim, numerosos filmes fizeram da sua evocação o tema principal desse período”.26

Dessa forma, o interesse se desloca do significado dos filmes para como os filmes constroem a história: “Percebe-se que o tema de um filme tem menos importância do que o seu tratamento. Os cineastas que tratam explicitamente de um fenômeno revolucionário procuram valorizá-lo, ao invés de colocá-lo em questão. Mas a ação revolucionária dos cineastas se exerce de outra forma”.27 A forma privilegiada de tratar a história para a maioria dos cineastas é a reconstituição, mas não é essa forma que efetivamente contribui para a compreensão histórica. Nada que um livro de ilustrações ou um romance de época não traga.

“Nota-se que a maior parte dos cineastas que aborda o filme histórico identifica a história a um e um só dos seus procedimentos, a narrativa de reconstituição, e não à análise ou questionamento dos problemas que coloca o passado e sua relação com o presente. [...] A narrativa de reconstituição na ordem histórica representa o grau zero de análise, ao menos suas premissas. Já Encouraçado Potemkin é uma grande reconstrução.”28

Assim, a questão que se coloca é efetivamente de filmes que contribuam para a compreensão da história sem reconstituição, ou seja, sem ilustrar a história, apenas reiterando o que já se conhece, em visões de história já consagradas, mas “descobrindo pelo imaginário uma via real para compreender a história e torná-la inteligível”.29

22 FERRO, Marc. 1975-19.. Le cinéma au service de l’histoire. Cinémaction 60, Paris, Corlet-Telérama, juillet 1991, p. 172. 23 FERRO, Marc; DELAGE, C.; FLEURY-VILATTE, B. (org). Révoltes, révolutions, cinéma. Paris: Éditions Centre Pompidou, 1989. 24 Ibidem, p. 32-33. 25 Ibidem, p. 133. 26 Ibidem, p. 125. 27 Ibidem, p. 34. 28 Ibidem, p. 35. 29 Idem. Nessa categoria, além de Eisenstein, ele cita filmes como Os deuses malditos, de Visconti, Napoléon, de Abel Gance e Ceddo, filme do africano Osmane Sembene.


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“Abrindo os braços para o Novo Mundo”: visita do presidente Charles De Gaulle ao Brasil. Rio de Janeiro, outubro/1964. Acervo Correio da Manhã


Laurent Véray Conferencista da Universidade de Paris X – Nanterre e secretário-geral da Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma (AFRHC). Realizador de filmes e de instalações de vídeo com imagens de arquivo para museus e autor de textos sobre história do cinema e a relação entre cinema e história.

A história1 pode ser feita com arquivos fílmicos?

REVOLUÇÕES

Este artigo foi publicado em 1895 – Archives , Revue de l’Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma, n. 41, octobre 2003. p. 71-83. Tradução de Ivana Medeiros.

“A prova cinematográfica, onde milhares de clichês compõem uma cena, e

que, desenrolada entre uma fonte luminosa e um pano branco, faz levantar os mortos e os ausentes, essa simples tira de celulóide impressa constitui não só um documento histórico, mas também uma parcela da história.

Boleslaw Matuszewski, Une nouvelle source de l’histoire: le cinématographe (1898)

Os historiadores fazem o mesmo que os a rtistas: falam da vida e da “morte dos homens. ” René Allio, Carnets (1991)

A

s cinematecas são lugares de memória, no sentido definido por Pierre Nora, que conservam milhares de quilômetros de arquivos fílmicos salvos do desaparecimento. Inumeráveis visões documentárias, de atualidades do passado. Registros de acontecimentos quaisquer ou excepcionais, públicos ou privados. Traços, fragmentos da vida cotidiana de nossos predecessores. Tantos instantes únicos e sombras projetadas da realidade subtraídas do tempo que passa. Mergulhar nessas imagens variadas, com sua quantidade de detalhes infinitamente realistas (os famosos “efeitos de realidade” de que falamos após as visões Lumière), mas também suas numerosas lacunas (nem tudo é “visível”, longe disso), suas representações convencionais de autenticidade duvidosa (a parte da encenação pode ser importante e manipuladora), sempre me provoca o mesmo júbilo. Sobretudo porque elas constituem formidáveis terrenos de exploração e de experimentação para possíveis abordagens fílmicas da história contemporânea.2 Meu objetivo, no âmbito muito limitado deste artigo, não é entrar no detalhe de uma reflexão teórica (que permanece por ser feita) sobre a escrita fílmica da história com base em imagens de arquivo, mas evocar, mediante um caso concreto, uma experiência pessoal de realização documentária, uma tentativa voltada modestamente para esse sentido. 3 Entretanto, algu-

mas observações prévias se impõem. Quando se fala em filmes de história, pensa-se imediatamente, com ou sem razão, em filmes de arquivos – os filmes de montagem, como se dizia em uma época –, que integram planos de natureza e de proveniências diversas, utilizando ao máximo seu estatuto de verossimilhança. Eles representam apenas uma categoria documental entre outras, mas cuja especificidade faz-nos considerá-los quase espontaneamente como os melhores exemplos na matéria. A prática não data de ontem, visto que as primeiras montagens inteiramente compostas de imagens de arquivos parecem ter sido realizadas no fim da Primeira Guerra Mundial. À época, já se insistia sobre o valor documental das imagens registradas durante o conflito e sua excepcional capacidade em “fazer a história”.4 Uma afirmação, entre muitas outras, de Ricciotto Canudo, datando de 1923, é suficiente para confirmar isso: “Os únicos filmes históricos, no sentido puro e emocionante da palavra, são evidentemente aqueles que em cinema se denominam ‘atualidades’, dos quais os mais trágicos permanecem os documentários da guerra”.5 Em seguida, a produção de tais filmes, sobre diferentes assuntos, foi relativamente constante, mas sem atingir proporções significativas. Entretanto, é preciso mencionar um dentre eles,

“ Cameraman no front em 1916: poderia ser um dos dois personagens do filme...“ (Coleção do autor)

1 A história aqui é considerada como disciplina científica, prática interpretativa do passado. Neste artigo, não se trata de falar de arquivos fílmicos como fontes históricas, mas de refletir, então, sobre sua utilização como objeto, material para uma escrita documentária da história.

2 A representação em imagem de um passado mais antigo coloca, em contrapartida, inúmeros problemas. 3 Trata-se de um documentário, L’heroïque cinématographe (50 min; Quark Productions/France 2), co-realizado com Agnés de Sacy em 2002-2003. 4 Ver VÉRAY, Laurent. Fiction et non-fiction dans les films sur la Grande Guerre de 1914 à 1928: la bataille des images. 1895 – Revue de l’Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma , n. 18, out. 1995. p. 235-257. 5 CANUDO, Ricciotto. Films historiques. Paris-Midi, 27 janeiro 1923.

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porque sem dúvida alguma constitui uma data marcante na utilização dos arquivos: Paris 1900 (1947), de Nicole Vedrès.6 André Bazin, jovem crítico no L’Écran Français, fortemente impressionado por esse filme, fala a seu respeito de “cinema puro”, de “pureza dilacerante até as lágrimas”. 7 Sua reação, muito emocionada e impregnada de nostalgia, testemunha o imenso interesse que atribui a essas imagens apresentadas não só como traços reais e incomparáveis do tempo passado, mas também, e sobretudo, como alguma coisa fundamental do ponto de vista estético, eis a quintessência do cinema:

“Nicole Vedrès, e a pequena equipe da qual sei que seria profundamente injusto separar dela, realizaram, com esse filme de montagem composto apenas de documentos autênticos, algo monstruosamente belo, cuja aparição embaralhou as normas estéticas do cinema, tão profundamente quanto a obra de Marcel Proust pôde embaralhar o romance. [...] Proust encontrava sua recompensa do Tempo reencontrado na alegria inesgotável de mergulhar em sua lembrança. Aqui, ao contrário, a alegria estética nasce de uma dor, pois essas ‘lembranças’ não nos pertencem. Elas realizam o paradoxo de um passado objetivo, de uma memória exterior à nossa consciência. O cinema é uma máquina para reencontrar o tempo para melhor perdê-lo. Paris 1900 marca o nascimento da Tragédia especificamente cinematográfica, a do Tempo. Que não se acredite, entretanto, que o mérito dos autores seja diminuído pela existência de todos os documentos cinematográficos de época que utilizaram exclusivamente. Seu triunfo é devido, ao contrário, a um sutil trabalho de médium, à inteligência de sua escolha num material imenso. Ao tato e à inteligência da montagem, a todas as astúcias refinadas do gosto e da cultura que seria preciso colocar na obra para aprisionar esses fantasmas”.8

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O que são eles hoje? Após uma quinzena de anos, os documentários de arquivos conhecem uma espantosa retomada de interesse,9 e é sintomático que seu número ainda recentemente tenha aumentado, tanto nas televisões hertzianas quanto nas emissoras temáticas a cabo.10 Quaisquer que sejam, evidentemente, várias precauções são tomadas, e todas as compilações de atualidades antigas não poderiam ser consideradas como documentários históricos dignos desse nome. Primeiro, o essencial é não só o interesse do projeto, isto é, simultaneamente a escolha do assunto, o sentido e o alcance da demonstração, mas igualmente a forma escolhida, pois se trata, não o esqueçamos, de cinema. É importante, portanto, considerar a especificidade desse modo de expressão, sua própria história, as questões apaixonantes mas complexas que ele provoca. Enfim, acredito que somente a partir de uma verdadeira reflexão, longa e minuciosa, sobre os arquivos cinematográficos, é possível sair dos lugares-comuns e, por meio dos cruzamentos da imagem e do tempo, imaginar outros usos mais pertinentes orientados para um caminho propriamente histórico. A utilização dos arquivos sem esforço de conhecimento e de pensamento não apresenta interesse para a historiografia. O risco maior é a perda de sentido de todas essas imagens polissêmicas, pois nem sempre temos os bons referentes socioculturais para compreender e interpretar corretamente o que elas representam. O analista deve, portanto, na medida do possível, desembaraçar-se dos prejulgamentos retrospectivos que podem influenciar sua percepção e, conservando sua subjetividade, esforçar-se para recontextualizar os arquivos e deles extrair plenamente o conteúdo. Apesar de tudo, é forçoso reconhecer que “fazer história” dessa maneira suscita ainda in-

6 É necessário assinalar de passagem que ela foi precedida por duas realizações pioneiras do filme de arquivos: Esther Choub ( La chute de la dynastie des Romanov, 1927) e Germaine Dulac (Le cinéma au service de l’histoire , 1935). 7 BAZIN, André. Paris 1900. À la recherche du temps perdu. L’Écran Français, 30 set. 1947, retomado em Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Cerf, 1958, tomo 1, e em Le cinéma français de la liberátion à la Nouvelle Vague (1945-1958) . Paris: Cahiers du Cinéma, coll. Essais, 1983, p. 167. 8 Ibidem, p. 167-168. 9 Depois da queda do muro de Berlim e da abertura dos fundos cinematográficos dos países do Leste, assistiu-se a uma multiplicação dos filmes de arquivo (ver, a esse respeito, Les images venues de l’Est renouvellent le documentaire historique, Le Monde , suplemento televisão de 9-10 fevereiro 1997). 10 Arte contribuiu amplamente para o renascimento do documentário em geral, e do filme de arquivos em particular, por meio de casos emblemáticos como “Les mercredis de l’histoire”, “Grand format” e “La Lucarne”.

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terrogações, dúvidas, talvez reticências da parte dos historiadores profissionais cuja fonte principal não é a imagem. É evidente que um filme e uma obra histórica não podem representar de maneira equivalente o passado. No entanto, como admitia com lucidez o historiador Henry Rousso, há documentários que, considerando a diversidade dos arquivos, e pelos efeitos que lhes são próprios, chegam a recriar os movimentos do tempo e permitem assim melhor apreender as mudanças ocorridas no curso do século XX.11 É verdade que os métodos empregados por certos realizadores não estão tão distantes daqueles que se poderia creditar aos historiadores. Chegam, inclusive, a se assemelhar singularmente. Filmando ou escrevendo, ambos investem na busca de arquivos, empregando um cuidado extremo nessa investigação. Escolhem, então, entre os materiais heterogêneos do passado dos documentos, examinam-nos, separam-nos, colocam-nos em perspectiva, articulam-nos uns em relação aos outros, interpretam-nos segundo uma problemática dada (sendo evidentemente o interesse das imagens diretamente proporcional ao fundamento das questões que lhes são colocadas). De fato, a exemplo das duas concepções possíveis da história, pode-se dizer que existem dois tipos de documentários históricos com base em arquivos. Por um lado, há o documentário clássico, pelo qual por muito tempo se privilegiou a acumulação de planos sem muita preocupação com sua origem exata, nem com seu verdadeiro sentido. Como o discurso positivista, esse gênero de filme pretende dar conta da história, consoante uma trama cronológica dos acontecimentos a partir de um conjunto de imagens “representando o real” ou, pelo menos, que se quer fazer passar por ele. Ora, o objetivismo da imagem dita autêntica é muito aleatório: há muito se sabe que visões idênticas, segundo as circunstâncias, podem servir a interpretações absolutamente contrárias (parece-me que, precisamente

durante a Grande Guerra, se assiste a um primeiro questionamento das pretensões da imagem mecânica a exprimir a realidade de um acontecimento). Por outro lado, há uma forma de escrita documentária que, oposta à precedente, renuncia à busca ilusória da objetividade total. Próxima da pesquisa histórica moderna (a que se desenvolveu depois da escola dos Annales), ela se elabora numa perspectiva crítica, em particular em relação às imagens montadas e ao que supostamente significam de maneira evidente ou subjacente. Desde então, o documentarista, como o historiador, porém, com meios de significação diferentes, se distancia para se interrogar sobre a ordenação de seu assunto e os princípios de inteligibilidade do real que emprega. Essa escrita fílmica da história assume também uma parte da imaginação e uma forma de sensibilidade em relação à maneira de considerar o passado. É uma conduta com um ponto de vista de autor que, finalmente, está muito próxima da que reivindicava o eminente medievalista Georges Duby, grande apaixonado das imagens,12 quando afirmava no fim de sua brilhante carreira: “Meu trabalho concerne mais à arte que à ciência, pois nele entra uma parte decisiva de subjetividade”.13 Isso implica, no mínimo, duas coisas: primeiro, qualquer que seja o acontecimento relatado, o que conta é o ponto de vista expresso; depois, o sentido e a verdade podem emergir completamente por meio de uma relação entre o real e o imaginário. A esse título, vários nomes de cineastas se impõem. Na primeira fila deles figuram Chris Marker, Harun Farocki, Edgardo Cozarinsky, Peter Forgacs ou Pierre Beuchot, cujos filmes, abundantemente compostos de arquivos (poderse-ia dizer inclusive que constituem a matériaprima de seu trabalho), são simultaneamente criações e obras audaciosas de caráter histórico, com seus meios próprios de expressão, a

11 Ver Filmer le passe dans le cinema documentaire : les traces et la mémoire. Paris: L’Harmattan, coll. Cinéma Documentaire n. 3, mai. 2003, p. 62. 12 Aliás, seu gosto pelas imagens levou-o não só a considerar sua decifração, enquanto historiador, mas também a criar para a televisão obras audiovisuais de caráter histórico, sobretudo em 1985 para o canal cultural Sept, que presidiu durante aqueles anos. 13 DUBY, Georges. L’histoire continue . Paris: Odile Jacob, 1991.

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originalidade de seu estilo; em oposição aos lugares-comuns, eles se inclinam para as diferentes maneiras de se apropriar das imagens. Seu objetivo consiste menos em tentar reconstituir uma hipotética verdade histórica de que seriam a ilustração mais ou menos fiel, do que em refletir suas significações profundas. Os arquivos fílmicos trazem, com efeito, o traço de uma época, ou mais exatamente de um olhar voltado para uma época. Por conseqüência, não se coloca mais prioritariamente a questão de sua exatidão. A reconstituição do passado já não é a única motivação, nem o único foco de interesse. Assim como os historiadores, esses cineastas não procuram reconstituir a realidade de ontem em estado bruto. Ao contrário, eles interrogam o engano evidente das imagens que utilizam, questionam sua pretensa objetividade, propõem outras leituras. Sabendo que não podem ensinar com exatidão sobre todos os aspectos do passado, reorganizam-nas, associamnas a sons e a vozes, confrontam-nas com outros documentos, sublinham as contradições, tudo para tentar dar-lhes uma consistência de história. Elaborando seu assunto a partir de elementos encontrados nos arquivos ( stock-shots ou outros), eles também mantêm uma distância, adotam um ponto de vista, constroem seu objeto com atenção. Às vezes encenam-no jogando com a polivalência das imagens e dos signos que as compõem. Esse recurso ao artifício pode surpreender à primeira vista. Ora, como sublinha com justiça Jean-Louis Comolli, o engano e o artifício no cinema documental não são forçosamente inimigos da verdade, às vezes eles são inclusive os meios de emergência;14 por fim, o interessante não é a clivagem entre realidade e ficção, mas sim a maneira de combiná-las. Desse ponto de vista, o documentário não é o contrário da ficção, que, aliás, não é forçosamente estranha ao real (já se sabe há muito que a oposição simplista entre documentário e

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ficção não é verdadeiramente operante). Conforme o raciocínio de Jacques Rancière, que parte do exemplo emblemático do filme dedicado a Alexandre Medvedkine, Le tombeau d’Alexandre , de Chris Marker (aquele que, provavelmente, entre os cineastas que fizeram dos arquivos um de seus assuntos prediletos, melhor soube forjar um estilo pessoal, reconhecível entre milhares: um dos pensadores mais exigentes na matéria), poder-se-ia dizer que o filme de arquivo, no melhor dos casos, pelo tratamento que se impõe a esse material de origem – podendo às vezes modificar completamente sua significação –, 15 visa instaurar um discurso analítico coerente. Esse discurso, como explica o filósofo, fundado a partir de diversas representações do real – que jamais lhe são idênticas –, procura propor possibilidades de pensar de outra maneira a história.

“O cinema documentário [...] por sua própria vocação retira do real as normas clássicas da conveniência e da verossimilhança; pode, melhor que o cinema dito de ficção, jogar concordâncias e discordâncias entre vozes narrativas e séries de imagens de idade, de proveniência e de significação variáveis. Ele pode unir o poder de impressão, o poder de palavra que nasce do encontro do mutismo da máquina e do silêncio das coisas, com o poder da montagem – no sentido amplo, não técnico, do termo – que constrói uma história e um sentido pelo direito que se arroga de combinar livremente as significações, de re-ver as imagens, de encaixá-las de outro modo, de restringir ou ampliar sua capacidade de sentido e de expressão.” 16

Rancière acrescenta mais adiante, sempre em referência ao filme de Marker, que se trata de uma “ficção histórica documentária vindo a identificar-se a um filme do cinema sobre seu próprio poder de história”.17

14 COMOLLI, Jean-Louis em BIZERN, Catherine (dir.). Cinéma documentaire : manières de faire, formes de pensée. Paris: Yellow Now, 2002, p. 77. 15 Aliás, o sentido das imagens é freqüentemente modificado sob o efeito de seus usos sucessivos. 16 RANCIÈRE, Jacques. La fable cinématographique . Paris: Le Seuil, 2001, p. 206. 17 Ibidem, p. 214.

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Em definitivo, esse entrelaçamento entre as noções de história, de documentário e de ficção, e as relações que mantêm entre si para criar sentidos, atingir uma parte de verdade, não está tão afastado que se poderia creditá-lo à historiografia. Sabe-se, com efeito, sobretudo depois dos escritos de Michel de Certeau, que as narrativas históricas são determinadas não só pelos caracteres específicos dos objetos de pesquisa, mas também por estratégias e dificuldades discursivas. Desde então, fazer história é proceder a uma construção metódica, um agenciamento ordenado de fatos e idéias correspondente a um argumento. A narração histórica não é a verdade definitiva do que se passou e a pretensa objetividade do historiador e de seu aparelho explicativo é apenas uma ilusão: “Considera-se rapidamente uma realidade da história o que é somente a coerência de seu discurso historiográfico, e uma ordem na sucessão dos fatos o que é somente a ordem postulada ou formulada por seu pensamento”.18 Entendamos bem, isso não chega a contestar a legitimidade científica da narrativa histórica, mas a reconhecer que ela repousa sobre condições de ordenações particulares, sobre diferentes categorias de análise, de argumentação, visando todas (em graus variáveis) certa veridicidade e plausibilidade que, como todos sabem, evoluem consideravelmente ao longo do tempo. Enfim, os laços estreitos entre essa história e o presente de sua escrita são igualmente conhecidos. Lucien Febvre já os sublinhava em 1948: “O passado, dizia ele, é uma reconstituição das sociedades e dos seres humanos de outrora por homens e para homens engajados no tecido das realidades humanas de hoje”.19 Assim como a história em sua escrita não pode se subtrair aos procedimentos literários, o registro em filme da história não pode ser feito sem levar em conta as características do cinema.

Desse fato, a questão da dupla competência (em história e em cinema) apresenta-se invariavelmente. Pode-se utilizar conscientemente as imagens fílmicas provenientes dos arquivos numa perspectiva histórica independentemente do conhecimento científico e prático de sua realização? É interessante notar que, em 1971, pouco depois do lançamento de seu célebre filme Le chagrin et la pitié, Marcel Ophuls apresentava suas expectativas em relação a uma evolução das formações audiovisuais nessa direção:

“Espero que em vinte ou trinta anos o gênero de trabalho que faço atualmente já não exista. Porque acredito que a cultura audiovisual exige uma nova forma de especialização, e, portanto, que certos trabalhos até o presente separados serão reunidos num só trabalho, numa só e mesma pessoa; isto é, não vejo razão para que no futuro haja uma formação universitária científica para os realizadores [...], não deveria haver qualquer justificativa para que pessoas como André Harris e eu – por formação jornalística inteiramente clássica, ou por formação de realizador e técnico do cinema – ainda possam fazer isso. Se por enquanto o fazemos, é porque ainda não há substitutos, pessoas com diplomas, uma formação universitária que deveria corresponder ao nível do professorado. O que quero dizer bem precisamente é que, no futuro, o trabalho de professor de história, ou de ciências políticas e o trabalho de realizador de documentários políticos ou históricos serão dois trabalhos que deverão se reencontrar e unificar-se na mesma pessoa”. 20

Essa aspiração expressa por Ophuls, há trinta anos, não se concretizou. Ainda hoje, o papel do historiador se limita ao de “conselheiro histórico”, conforme a fórmula consagrada, às vezes de autor, raramente de realizador. Deve-se isso a essa ausência de apren-

18 CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire . Paris: Gallimard, reedição 2002, p. 349. 19 FEBVRE, Lucien. Avant-propos à Charles Morazé, Trois essais sur histoire et culture , Armand Colin, Cahiers des Annales, 1948, p. VIII. 20 OPHULS, Marcel. L’honnêteté et la méthode, Jeune Cinéma , n. 55, mai. 1971, p. 9.

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dizagem (na universidade ou alhures) dos modos de utilização dos arquivos fílmicos numa perspectiva de escrita documentária da história? É possível. Em todo caso, é lamentável que nenhuma formação propriamente dita associe a teoria e a prática, o passado e a maneira de interpretá-lo em imagens (sem contar que seria necessário estabelecer uma estreita parceria entre as universidades, os lugares de criação e de difusão, as cinematecas, assim como todos os centros de arquivamento). Decerto, “a ficção histórica documentária”, para retomar a expressão de Rancière, não pode reorientar os assuntos e os suportes da pesquisa da história. Deve-se para isso renunciar, quando se é historiador, a servir-se das imagens fílmicas para fazer seu trabalho de outra maneira? Talvez seja tempo de reconsiderar a questão, de ir mais longe. De considerar com atenção, como há muito tempo já fazem certos pesquisadores americanos como Robert A. Rosenstone,21 uma outra escrita histórica, pensada e inteiramente constituída de imagens animadas (considerando inteiramente sua especificidade), com trama (o que notadamente apresenta a vantagem de ampliar a difusão do conhecimento histórico a um outro público que o dos especialistas). Uma forma documentária teatralizada que renove as narrativas tradicionais tomando emprestado as regras da ficção, quiçá da dramaturgia. Se é incontestável que o arquivo fílmico não pode substituir o escrito, ele pode, em contrapartida, participar da reconstrução do passado à sua maneira, com os meios que lhe são próprios, isto é, considerando

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suas possibilidades e suas lacunas. Uma escrita fílmica original, singular em sua concepção, rigorosa em sua demonstração, mas não despida de inovações criadoras. Reagenciadas como fontes históricas, as imagens, sob o olhar atento do historiador cineasta, dão a pensar tanto ou mais que dão a ver. Escrever a história e filmar a história pode depender de um mesmo regime de sentido e de verdade. A tarefa é cada vez mais necessária, pois as imagens de arquivos agora fazem parte da atualidade midiática.22 Com efeito, todo mundo pode constatar que, no quadro do frenesi das comemorações, as emissoras de televisão utilizamnas cada vez mais como caução histórica, como aposta de memória.

L’héroïque cinématographe é um filme que já tem muito tempo. Como todos os filmes, ele tem sua própria história. Difícil, com momentos de dúvida, acasos que seria cansativo detalhar aqui.23 Mas também, felizmente, uma história feita de entusiasmos, de encontros ricos e estimulantes, é que lhe permitiu nascer. A esse título, o encontro com Agnès de Sacy, que é cenarista de ficção,24 foi determinante. Nossos caminhos se cruzaram em 1996, em torno de uma filmagem em Belgrado, justo após os acordos de Dayton que, acreditem, colocavam fim ao conflito na ex-Iugoslávia. Discutimos sobre essa experiência comum insólita, depois lhe falei de um projeto de documentário que escrevera sobre o percurso de dois cameramen durante outra guerra, a de 1914-1918. Decidimos então desenvolvê-lo juntos.25

21 Ver ROSENSTONE, Robert A. Visions of the past: the challenge of film to our idea of history. Harvard University Press, 1955; e Film historique/vérité historique, em XXe Siècle , Revue d’Histoire , n. 46, abr.-jun. 1995, Christian Delage (dir.). 22 Assiste-se inclusive atualmente a uma espécie de fascinação pelos arquivos fílmicos: ver a esse respeito a admiração do público pelas montagens de imagens em cores da Segunda Guerra Mundial ( Ils ont filme la guerre em couleurs , recentemente difundido por France 2, reuniu 20% do mercado na primeira parte da exibição, o que é um recorde de audiência para um filme desse tipo). 23 Não é inútil precisar que os parâmetros econômicos têm um papel decisivo na realização de um filme de arquivos como esse. Assim, um dos maiores obstáculos reside no custo da operação. Os detentores dos direitos das imagens exigem, de fato, tarifas freqüentemente proibitivas (em torno de 1.500 euros por minuto utilizado para uma difusão televisiva em escala européia). Isso explica em grande parte as dúvidas das emissoras e o fato de elas só se dirigirem a realizadores considerados “experientes” que, com muita freqüência, se ligam a uma concepção tradicional do gênero, o que constitui evidentemente um entrave à sua renovação. Outra conseqüência é que os produtores, na maior parte do tempo, só se lançam na aventura do filme de arquivos quando fazem um acordo no mínimo com uma cinemateca. Por fim, o filme se constrói unicamente, ou quase, com as imagens disponíveis (isto é, livres de direito), o que, é óbvio, limita consideravelmente a margem de manobra do documentarista. 24 Ela colaborou, entre outros, com os cenários do filme de Hélène Angel, Peau d’homme, coeur de bête (1999) e de Orso Miret, De l’histoire ancienne (2000). 25 Outras colaborações foram igualmente preciosas. As de Patrick Winocour e Juliette Guigon, os produtores, que constantemente sustentaram o projeto; e certamente a de Françoise Bernard, a montadora, que, por sua experiência com arquivos (ela particularmente montou La foi du siècle de Patrick Rotman e o filme Roman Karmen, um cinéaste au service de la révolution , de Patrick Barberis e Dominique Chapuis), teve um papel considerável.

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Tudo começou no início dos anos de 1990 por uma pesquisa ligada a minha história pessoal, a lembranças de infância sempre presentes num canto de minha memória. Isso se traduziu por um estudo aprofundado sobre os noticiários realizados durante a Grande Guerra, conduzidos num enquadramento universitário. Centenas de horas passadas para projetar filmes montados ou rushes . Um longo trabalho de gestação ao longo do qual aprendi a me familiarizar com as imagens dessa época, tentei compreender sua especificidade para embaralhar as antigas certezas provenientes de uma visão superficial desses arquivos. Uma pesquisa a partir da qual a idéia de realizar um documentário amadureceu, até tornar-se uma verdadeira necessidade. Decidi então construir uma narrativa em torno de duas personagens, dois operadores de câmera, um francês e um alemão, a fim de oferecer maior diversidade de percepção. Supus que cada um fez um diário em que teria inscrito suas impressões e comentários sobre as imagens rodadas que vemos. Inventado a partir da observação atenta das próprias imagens, de fontes variadas e de experiências vividas, o percurso desses dois homens (eles não aparecem na tela, somente em voz off ) é organizado num todo coerente para colocar em evidência e em perspectiva as apostas da representação filmada desse acontecimento. Essa aproximação comparativa, sob forma de montagem paralela, é finalmente um atalho que atravessa a história, um atalho de cinema.

De fato, poderia dizer que meu desejo do filme partiu de uma paixão e de um sentimento de raiva. A paixão é, como diz com justiça a historiadora Arlette Farge, “o gosto do arquivo” e sua parte de nostalgia. É verdade que meu trabalho de reflexão provocou uma atração particular por essas imagens cinematográficas. Primeiro pelo que têm suscitado em mim de intensas sensações, de reações afetivas. Em seguida, porque fiquei surpreso pela extraordinária qualidade estética de algumas dentre elas. A descoberta dessas visões animadas silenciosas, raiadas de chuva e tachadas de negro sob a ação do tempo, 26 lembranças visuais de uma época longínqua saída de sua caixa, é sempre emocionalmente forte. É um pouco como se esse mundo dos desaparecidos que é o passado surgisse de súbito das silhuetas felizes ou patéticas. Uma espécie de vida que não é dita pelas palavras, que não podemos extrair dos textos contemporâneos. Ainda hoje, tenho a impressão de que os filmes, abolindo o tempo, permitem, para retomar uma expressão de Michelet a propósito da história, “ressuscitar os mortos” (“a morte deixará de ser absoluta”, anunciava o jornal La Poste a propósito dos primeiros filmes Lumière em 1895), lhes dar nova vida. 27 Sua capacidade para restituir figuras do real, ilustres ou desconhecidas, é de fato surpreendente. Esse peso de existências referenciais de que são dotados os arquivos (o valor ontológico da imagem de outrora evocada por Bazin que, con-

26 Os defeitos devidos ao desgaste ou à deterioração química da película de nitrato produzem uma dimensão estética nova, que, acentuando o charme melancólico das imagens, materializam igualmente, de maneira simbólica, a passagem do tempo. Yervant Gianikian e Ângela Ricci Lucchi, verdadeiros artistas do arquivo, servem-se deles (colorindo-os e às vezes enquadrando-os com o que denominam sua “câmera analítica”) há muitos anos para evocar poeticamente o passado, revelar por trás da inquietante tranqüilidade das imagens o terrível caos do século XX. É também o caso do americano Bill Morrison, que desenterra da Biblioteca do Congresso partes de atualidades dos anos de 1910 aos anos de 1940, apresentando uma decomposição parcial da emulsão para explorar seu potencial pictórico, o lado quase abstrato. É preciso mencionar também o trabalho dos videastas e dos autores de instalações multimídia, sobretudo o de Bárbara Lattanzi. Esta última, na linhagem das reflexões levadas durante os anos 70 pelo cineasta experimental americano Hollis Frampton, reutiliza imagens de arquivos que reúne a elementos díspares, a fim de criar novas obras (sempre interativas) destinadas principalmente a Net. É possível assim descobrir atualmente alguns de seus movies clips realizados a partir de planos do filme de F.W. Murnau, Nosferatu (1922) em seu website: www.wildernesspuppets.net (para mais informações sobre a originalidade dos dispositivos utilizados por essa artista, ver HILL, Chris. (Re)performing the Archive: Bárbara Lattanzi & Hollis Frampton in dialogue, Millennium Film Journal , n. 39-40, Winter 2003, p. 66-81). 27 Jules Michelet pensava que ao historiador cabe a tarefa de defender a memória e fazer justiça aos homens deliberadamente ignorados. Dizia ele: “Jamais em minha carreira perdi de vista esse dever do historiador. Dei a vários mortos esquecidos a assistência da qual eu mesmo teria necessidade. Exumei-os para uma segunda vida”; prefácio de L’histoire du XIXe siècle , 1873.

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soante ele, “serve para salvar os desaparecidos de uma segunda morte espiritual”) 28 reveste-se a meus olhos de uma importância capital. Entre essas aparências carnais gravadas na emulsão sensível da película, são os traços deixados, as marcas de vidas comuns de homens e mulheres pertencentes à massa dos esquecidos da história que mais me tocam. Essa potência da ilusão (o famoso “isso foi” de que falava Barthes), tornando visíveis rostos anônimos, corpos em movimento, gestos sem importância ou excepcionais em via de se efetuar, é simultaneamente apaixonante e perturbadora. Toca-se, sem dúvida, nessa possibilidade essencial que essas imagens têm de estabelecer laços. Com efeito, esses olhares, esses sorrisos, esses gestos, esses signos efetuados na direção do câmera, somos nós, espectadores atuais, doravante seus destinatários. O espaço de um instante, o espaço de uma projeção, os vivos de então, esses que habitualmente não se vê, e que a morte aniquilou, renascem, revivem sob nossos olhos. Eles se agitam e parecem se comunicar conosco, antes de reencontrar a imobilidade, a obscuridade das cinematecas. Esses reinos de sombras que os abrigam. Sempre fui igualmente impressionado pela potência de evocação desses planos. Em muitos deles, há uma infinidade de acontecimentos minúsculos, de subentendidos, de elementos que permanecem da ordem do enigma, sem significação aparente ou, ao contrário, plenos de sentido que só pedem para ser explicitados: dito de outra maneira, simplesmente, uma formidável potencialidade para relatar alguma coisa. Entre as imagens da Grande Guerra, há inúmeras que têm essa impressionante capacidade de deixar entrever os horrores do conflito, aí compreendidos quando a priori nada se passa, e mesmo na artificialidade das encenações, e malgrado o papel da censura ou da propaganda. Não é raro, com efeito, que a câmera registre o imprevisto, o acaso. Aparece então, enfiada sob sua pretensa realidade, essa incomparável alteridade (uma parte de inesperado e

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de inocência) reenviando para o que é escondido, proibido: hors champ . Por essa razão a noção de traços me interessa enormemente. Sou muito sensível a eles, pois com freqüência são mais evocativos que a própria ação que quase sempre permanece invisível. Desde então, como não evocar esses inúmeros planos seqüências (figuras favoritas dos operadores da época), essas longas panorâmicas do no man’s land , lancinantes e melancólicos, que são tantos alongamentos do espaço e do tempo, carregados de marcas e cicatrizes indeléveis. Há aí, para mim, uma verdadeira especificidade cinematográfica que deve ser estudada e utilizada como uma espécie de conceito histórico. A raiva foi sentida ao observar a maioria dos documentários sobre o assunto. Freqüentemente realizados num quadro comemorativo e no esquecimento da história, eles integram imagens de arquivos destacadas de seu contexto de origem para ilustrar um discurso redigido a posteriori . Eles me incitaram a considerar um outro filme. Como uma recusa da interpretação global do acontecimento (que é impossível) e de sua presumida verdade (que é sem cessar inacessível). A Primeira Guerra Mundial é uma das maiores tragédias do século XX, sempre presente na consciência coletiva, sobretudo pelo viés das inúmeras imagens chegadas até nós. Ora, a maioria delas é utilizada pelo que presumivelmente mostra e não pelo que é realmente. Acontece também dessa utilização ser totalmente falaciosa. Em particular, quando se decide mostrar os combates: simplesmente porque não há imagem de batalha, as que aparecem em todos os filmes de montagem não são autênticas. Foram reconstituídas no decorrer e sobretudo após a guerra, durante os anos 60. Algumas delas, aliás, acabaram por mudar de estatuto, tornando-se “falsas verdadeiras imagens de arquivos”. Os realizadores, na falta de efeitos espetaculares, ainda se servem delas regularmente. Os filmes de atualidade rodados durante a Grande

28 BAZIN, André. Ontologie de l’image photographique, em Qu’est-ce que le cinéma? op. cit., p. 10.

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Guerra, como todos os documentos de época, são portadores de realidade e de mentiras (a cena sob controle das representações da guerra pelo poder civil e militar implica evidentemente diversas manipulações). Sabemos, com efeito, que as imagens, quaisquer que sejam, podem ser enganosas. Elas escondem da mesma maneira que mostram. É fácil fazê-las dizer tudo e o contrário. Por conseqüência, importa desconfiar da semelhança e da verossimilhança que parecem impor. São arquivos nem mais nem menos reais que outras fontes. Não têm de modo algum valor de prova. Daí a necessidade de identificá-las bem, de lhes colocar questões (algumas das quais fazem eco com as interrogações atuais), de torná-las inteligíveis. Dito de outra maneira, de tornálas um objeto de história, reapropriando-se delas. Um objeto para reinventar em função de hipóteses pertinentes, sem excesso nem falta de imaginação. Decerto, não se tratava de ilustrar minha tese, mas de encontrar uma forma original, a fim de oferecer um esclarecimento inédito sobre essa imensa matéria bruta e sensível. Sublinhei isso anteriormente: as imagens fílmicas são documentos que, considerada sua própria natureza, impõem exigências para sua utilização numa perspectiva histórica. Desde então, entre trabalho de pesquisa e criação, refleti sobre uma construção discursiva adaptada ao objeto estudado, uma espécie de análise cinematográfica da história que, operando uma narração (com sua parte de artifício), possa tornar melhor perceptível sua especificidade. Isto é, restituir às imagens de arquivos seu sentido verdadeiro ancorando-as no presente com o qual elas entram inevitavelmente em ressonância. Daí a idéia de inventar duas personagens cuja palavra foi construída a partir de diversos materiais de época (testemunhos de cameramen , correspondências, diários, extratos de romances...) associados entre si. O texto que, para

parafrasear Marker, não comenta as imagens sem que as imagens ilustrem o texto. Criar esses dois itinerários, era uma maneira de dar sentido às imagens sem ser obrigado a utilizar um comentário didático dizendo: “Essa é a verdade!” Ainda mais que esses personagens são não só contemporâneos dos acontecimentos, mas também partes integrantes de suas representações, visto que se supõe que rodaram as imagens constituintes do filme. Isso permite esclarecer, tanto quanto possível, as circunstâncias de sua elaboração e “analisá-las” sem fazer didatismo, oferecendo ao contrário vários níveis de leitura. O tratamento sonoro é similar. A banda sonora foi concebida para ser constitutiva da narrativa fílmica, mais do que adicional e ilustrativa. Seria preciso evitar a todo custo a sonorização forçada, os abusos de sonoplastia: portanto, recriamos sons que, evocando essas imagens, foram inteiramente elaborados a partir de elementos contemporâneos sem qualquer relação com a época representada, como um distanciamento indispensável para melhor compreender. Em seguida, esses sons foram misturados a alguns registros de época reencontrados nos arquivos e a uma criação musical original. 29 Marc Bloch afirmava que toda obra de história é forçosamente um compromisso entre o presente e o passado, o próximo e o longínquo. L’héroïque , à sua maneira, é uma narrativa metonímica no sentido em que, por meio do percurso dos dois operadores de câmera, falase da guerra de 1914-1918, mas trata-se sobretudo de propor, entrecruzando a história desse conflito e a do cinema, uma reflexão histórica sobre a representação da guerra no cinema. Não só da Primeira Guerra Mundial, mas finalmente de todas as guerras mediatizadas da época até nossos dias. É um pouco, para retomar uma fórmula godardiana, uma outra maneira de abordar “a história do cinema, o cinema de atualidade, e a atualidade da história”.

29 A concepção sonora é de Martin Wheeler (um verdadeiro expert em samples...), a música original é de Stephane Bortoli e Martin Wheeler.

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GL AUBER numa barra pesada...

Não aceito a sociedade em que vivo e o sistema moral que a rege. Pode-se contribuir de uma forma efetiva para que essas coisas sejam modificadas. Nesse sentido eu me considero um revolucionário. Digo isso sem orgulho, sem empáfia, sem me colocar numa posição moral avantajada. Eu, inclusive, me dou a liberdade de duvidar do que acredito. Mas dentro dessa medida, sou um revolucionário

” AN PH/FOT/ 40260(3)

com a maior humildade possível.

Tempo Glauber Rocha

O sé c u l o e s t á e n t r a n d o


Glauber Rocha

REVOLUÇÕES

EZTETYCA DA FOME

Tempo Glauber Rocha

Este texto foi extraído de Revolução do Cinema Novo , Rio de Janeiro, Alhambra-Embrafilme, 1981.

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Tese apresentada durante as discussões em torno do Cinema Novo, por ocasião da retrospectiva realizada na Resenha do Cinema Latino-Americano, em Gênova, janeiro de 1965, sob o patrocínio do Columbianum . O tema proposto pelo secretário Aldo Viganó foi Cinema Novo e cinema mundial. Contingências forçaram a modificação: o paternalismo do europeu em relação ao Terceiro Mundo – foi o principal motivo da mudança de tom.

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ispensando a introdução informativa que se transformou na característica geral das discussões sobre a América Latina, prefiro situar as relações entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizam a análise do observador europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como um sintoma trágico, mas apenas como um dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino. Eis – fundamentalmente – a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizaram problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da Arte mas contaminam sobretudo o terreno geral do político. Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e este primitivismo se apre-

senta híbrido, disfarçado sob as tardias heranças do mundo civilizado, mal compreendidas porque impostas pelos condicionamentos colonialistas. A América Latina permanece colônia e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma aprimorada do colonizador: e além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes. O problema internacional da América Latina é ainda um caso de mudança de colonizadores, sendo que uma libertação possível estará ainda por muito tempo em função de uma nova dependência. Este condicionamento econômico e político nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso a esterilidade e no segundo a histeria. A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente em nossas artes, onde o autor se castra em exercícios formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas. O sonho frustrado da universalização: artistas que não despertaram do ideal estético adolescente. Assim, vemos centenas de quadros nas galerias,

empoeirados e esquecidos; livros de contos e poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo em São Paulo, provocaram inclusive falências)... O mundo oficial encarregado das artes gerou exposições carnavalescas em vários festivais e bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, coquetéis em várias partes do mundo, além de alguns monstros oficiais da cultura, acadêmicos de Letras e Artes, júris de pintura e marchas culturais pelo país afora. Monstruosidades universitárias: as famosas revistas literárias, os concursos, os títulos. A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má política por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte popular. Mas o engano de tudo isso é que nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico, mas de um titânico e autodevastador esforço no sentido de superar a impotência; e, no resultado desta operação a fórceps, nós nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores do colonizador; e se ele nos compreende, então, não é pela lucidez de nosso diálogo, mas pelo

humanitarismo que nossa informação lhe inspira. Mais uma vez o paternalismo é o método de compreensão para uma linguagem de lágrimas ou de mudo sofrimento. A fome latina, por isto, não é somente um sistema alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida. De Aruanda a Vidas secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais, pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria. Este miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente


F O M E

rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos puramente industriais. Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem este tipo de filme. O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. Os próprios estágios do miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo Dahl, vai desde o fenomenológico (Porto das Caixas), ao social (Vidas secas), ao político (Deus e o Diabo), ao poético (Ganga Zumba), ao demagógico (Cinco vezes favela), ao experimental (Sol sobre a lama), ao documental (Garrincha, a alegria do povo), à comédia (Os mendigos), experiências em vários sentidos, frustradas umas, realizadas outras, mas todas compondo, no final de três anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai caracterizar o período Jânio-Jango: o período das grandes crises de consciência e de rebeldia, de agitação e revolução, que culminou no Golpe de Abril. E foi a partir de abril que a tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil, ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo. Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entende. Para o europeu, é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro, é uma vergonha nacional. Ele não come, mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não

REVOLUÇÕES

será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem, mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência. A mendicância, tradição que se implantou com a redentora piedade colonialista, tem sido uma das causadoras de mistificação política e da ufanistas mentira cultural; os relatórios oficiais da fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o fito de construir escolas sem criar professores, de construir casas sem dar trabalho, de ensinar o ofício sem ensinar o alfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a política pede: o Cinema Novo, no campo internacional, nada pediu: impôs-se a violência de suas imagens e sons em vinte e dois festivais internacionais. Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Antão é primitivo? Corisco é primitivo? A mulher de Porto das Caixas é primitiva? Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino. De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação, mas um amor de ação e transformação. O Cinema Novo, por isto, não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre fo-

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Tempo Glauber Rocha

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Tempo Glauber Rocha

E Z T E T YC A

Cena do filme Deus e o diabo na terra do sol

Glauber em ação

ram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de amar com fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido; a Dandara de Ganga Zumba foge da guerra para um amor romântico; Sinhá Vitória sonha com novos tempos para os filhos; Rosa vai ao crime para salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre precisa romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O desafio rompe com o amante porque prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a mulher em São Paulo S.A. quer a segurança do amor pequeno-burguês, e para isto tentará reduzir a vida do marido a um sistema medíocre. Já passou o tempo em que o Cinema Novo precisava explicar-se para existir: o Cinema Novo necessita processar-se para que se explique, à medida que nossa realidade seja mais discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade, e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cine-

asta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. A integração econômica e industrial do Cinema Novo depende da liberdade da América Latina. Para esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se, em nome de si próprio, de seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais fortes. É uma questão moral que se refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na Filosofia: não é um filme mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência. Não temos por isto maiores pontos de contato com o cinema mundial. O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isto mesmo, todas as fraquezas conseqüentes de sua existência.


um homem de cinema!

NORONHA

JURANDYR “

A geração nova precisa conhe cer essas histórias que não

podem ser esquecidas. Nossos pioneiros são verdadeiros heróis nacionais, sem nenhum exagero. É através do cinema que podemos motivar o nosso povo...

Sempre pensei no cinema com esse sentido.

R

edator, escritor, cinegrafista, diretor, pesquisador, entre tantas outras atribuições, Jurandyr Noronha nasceu em 1916 na cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais, e até hoje está ligado à preservação do cinema, sua história e suas personagens. Na revista Cinearte , Cinédia, Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), TV Tupi, Instituto Nacional de Cinema, Jurandyr, desde 1936, desenvolveu diversas atividades profissionais. Conviveu com Adhemar

Gonzaga,1 que sempre esteve preocupado com a melhoria do padrão técnico do filme brasileiro, e Humberto Mauro,2 um dos maiores talentos do nosso cinema. Além das grandes personagens do cinema, Jurandyr conviveu com técnicos que, normalmente, ficam esquecidos pelos escritores e documentaristas. A obra de Jurandyr Noronha resgata laboratoristas, montadores, técnicos de som, entre outros. Na sua experiência como pesquisador, foi possível perceber a fragilidade do filme e a necessidade de arquivos climatizados e de

uma política de restauração de acervos. Durante o período em que dirigiu o Departamento do Filme Educativo do Ministério da Educação, organizou o primeiro depósito de matrizes de filmes da América Latina. Outra iniciativa, na tentativa de preservar o cinema brasileiro, foi a criação do Museu de Cinema. Em 1966, em artigo publicado na revista Filme Cultura , da Embrafilme, Jurandyr Noronha fala da necessidade da criação de um Museu de Cinema para dar solidez à memória. Os equipamentos, fotografias, cartazes vão se acumulando até que, em 1976, o

1 Rio de Janeiro/RJ, 1901–1978. Produtor, diretor, crítico, pesquisador, ator, fundou no Rio de Janeiro a Cinédia, o primeiro grande estúdio do país. Dirigiu Barro humano , em 1929, e produziu diversos filmes, tais como Lábios sem beijos (1930) e Ganga bruta (1933), ambos dirigidos por Humberto Mauro, Bonequinha de seda (1936), dirigido por Oduvaldo Viana e O é brio (1946), dirigido por Gilda de Abreu, que se tornou um dos filmes com mais espectadores no Brasil. 2 Volta Grande/MG, 1897–1983. Diretor, produtor, ator, fotógrafo, dirigiu seu primeiro filme em 1925, Valadião, o cratera , na bitola 9,5mm, em Cataguases/MG. Junto com o fotógrafo Pedro Comello e os comerciantes Homero Cortes e Agenor de Barros, cria a Phebo Sul América Film. Dirige Na primavera da vida (1926), Tesouro perdido (1927), Brasa dormida (1928) e Sangue mineiro (1929).. Esse período ficou conhecido

museu é criado pelo Instituto Nacional de Cinema. O longa-metragem Panorama do cinema brasileiro (1968), os curtas Inconfidência mineira – sua produção (1971), Cinegrafista de Rondon (1979),3 entre os 35 filmes de curta e longa-metragem realizados por Jurandyr Noronha, se utilizam de fragmentos de filmes perdidos para sempre, reescrevendo a história do cinema brasileiro. Seus livros, No tempo da manivela (Embrafilme, 1987) e A longa luta do cinema brasileiro – os pioneiros (Funarte, 2002), e o CD-ROM

Pioneiros do cinema brasileiro, detalham como esse cinema foi construído. Imagens raras de técnicos, atrizes e equipamentos contam uma história que durante muitos anos se julgava perdida. Os filmes produzidos e dirigidos por Jurandyr Noronha se encontram na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, e no Centro Técnico Audiovisual da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, no Rio de Janeiro. Seu acervo de fragmentos de filmes, fotografias de diretores, produtores, atores, técnicos, equipamentos,

salas de cinema, além de textos e pesquisas relativas ao cinema brasileiro, foram encaminhados para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Seus filmes, livros, e até mesmo uma simples conversa com Jurandyr Noronha, nos permitem compreender um dos mais significativos períodos do cinema brasileiro.

Mauro Domingues Fotógrafo /Restaurador Rio de Janeiro, 2004

como o ciclo de Cataguases. Em 1930, convidado pelo produtor Adhemar Gonzaga, vem para o Rio de Janeiro e dirige Lábios sem beijos e Ganga bruta , produzidos pela Cinédia. Em 1935 dirige Favela dos meus amores , produzido pela Brasil Vita Filmes, da produtora Carmen Santos. Ainda no Rio de Janeiro, em 1936, recebe convite de Edgard Roquette-Pinto para trabalhar no Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), onde realiza centenas de filmes didáticos. Em 1937 dirige para o Instituto do Cacau da Bahia o longa-metragem O Descobrimento do Brasil. Em 1952 produz e dirige seu último longa-metragem, O canto da saudade. Seu último filme é o curta-metragem O carro de bois (1974). 3 Disponíveis em vídeo e DVD no Centro Técnico Audiovisual (CTAv) da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura – (21)2580-3631.


E N T R E V I S T A

concedida a Claudio Bojunga e publicada em Filme Cultura, n. 44, abril-agosto, 1984.

REVOLUÇÕES

A reconstrução da memória

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Silvio Tendler e o resgate da história política recente através da emoção

Silvio Tendler: e se o artista fosse Lumière em vez de Meliès?

FC: Quais as diferenças entre documentário e ficção? O documentário é um gênero menos nobre? Silvio: No filme A chinesa, JeanLuc Godard faz um paralelo genial entre o que ele chama de “cinema de atualidades” – que é o documentário – e a ficção. Ele diz que o cinema nasceu “atualidades”, “documentário” com Lumière. Lumière filmava operários saindo da fábrica, um trem entrando na estação etc... O cinema se revela ficção com Meliès. Com Viagem à Lua e outros filmes. Porém, nos diz Godard, a estética da época, dos grandes impressionistas, pintava bancos de praças e trens entrando nas estações. E Godard concluiu genialmente que o que Meliès previa aconteceu realmente, o homem foi à Lua etc... portanto o documentarista foi Meliès. Enquanto que o artista pode muito bem ter sido Lumière, com seus assuntos aparentemente prosaicos, que foram os assuntos de toda a pintura moderna. Na verdade, as pessoas acham que a arte se desenvolve a partir do imaginário e não do real. É um preconceito contra o real. É como se elas dissessem que o que você vê na vida e capta com a câmera é uma

facilidade, que o difícil é a reinvenção da realidade. Por isso o documentário acabou como um gênero menor, a não ser no caso dos grandes “documentaristas” que peitaram o preconceito, como Joris Ivens, Chris Marker e, no Brasil, um cara como Vladimir Carvalho. É preciso dizer que no Brasil há excelentes documentaristas... FC: Muita gente sustenta que o Cinema Novo começa com Aruanda, curta de Linduarte Noronha, e Arraial do Cabo , curta de Paulo Cesar Saraceni e Mario Carneiro, em princípio dois documentários, um do Norte, o outro do Sul... Silvio: Justamente. O problema é que as pessoas vêem o documentário como um degrau, um negócio que você faz para aprender a fazer cinema e então se expressar de verdade. Aliás, você próprio sempre cobrou do Chris Marker o fato de ele não ter desejado chegar à ficção... FC: Não, só o fato de ele não ter explorado de forma mais solta sua poesia, não a ficção. Certa vez me disse que considerava La jetée seu filme mais importante. Talvez esti-

vesse deprimido naquele dia, não sei. Não se trata portanto do prosaico da ficção tradicional, falava do delírio possível com imagens verídicas que La jetée parecia abrir, como acho que abriu para Alain Resnais, por exemplo. Mas, você leva a sério esse negócio de “dar a palavra ao documento”? Silvio: Você sabe que o Millôr nunca morreu de amores pelo Jango. Mas ele gosta do meu filme e de mim. Quando ele me encontrou ele disse: “você fez uma grande fábula”. FC: Você concorda com ele? Silvio: Eu quero superar essa coisa de documentário como degrau. Acho que cada tema determina sua forma. Eu posso amanhã fazer um filme de ficção e, em seguida, voltar ao documentário. O importante no caso é que se eu tivesse todo o dinheiro do mundo e tivesse contado a história do Jango em ficção ela não teria a força desse filme feito com imagens sujas e arranhadas pelo tempo. A importância é o resgate dessas imagens. E as pessoas que se emocionaram com essas imagens, daquilo que

Silvio: A história joga com o sentimento. Não há história isenta. Você pode fazer as pessoas chorarem hoje contando a história da Comuna de Paris. Na hora de contar a história você deve trabalhar com emoções. Trata-se de cinema, de arte.

Silvio: O discurso cinematográfico é mais elaborado. Eu tinha mais maturidade, já tinha feito o JK, já tinha mesmo levado uns puxões de orelha do Joris Ivens. A propósito do JK, ele me disse: o filme é excelente, mas falta emoção, é um filme frio. Simples: percebi que você não precisa ser frio para ser verdadeiro. Ele me deu um exemplo dessa frieza: a seqüência dos marinheiros – um ótimo material – utilizado de forma fria no JK. No Jango fiz aquela montagem paralela.

FC: Dessa vez seu trabalho com as emoções parece mais consciente, não?

FC: Você acha que o Joris estava sugerindo um cinema mais engajado? Menos de historiador?

elas viveram ou desconheciam, imagens de um país real. FC: Você não estaria “faturando” a emoção à custa do verídico?

Silvio: Acho que ele me propôs mais engajamento, mais envolvimento emocional com o assunto. Isso não significa não ser historiador... FC: O filme é dedicado a ele, Joris Ivens, e a Chris Marker. Por quê? Silvio: São os meus mestres... FC: Queria que você falasse da sua formação cinematográfica... Silvio: Bom, eu tenho que voltar a 1968 e ao fato mais antigo de que eu sempre tive uma paixão por documentários. Via sempre os documentários sobre a guerra, no cine-

Jango menino: do álbum de família de um futuro presidente


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RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA

ma e na televisão. Em 1968, eu tentei fazer um primeiro filme (que não deu certo) sobre o marinheiro João Cândido, líder da revolta da Chibata em 1910. Fui mesmo o último a entrevistá-lo. FC: Há uma menção à presença dele no episódio dos marinheiros em Jango ... Silvio: Verdade. Mas, por essa época, eu li uma pequena publicação editada pela Cinemateca do MAM sobre o Joris Ivens. Mas não me passou pela cabeça conhecê-lo pessoalmente. Há um outro fato interessante: em 1968, um amigo meu levou uma série de curtas-metragens para a Europa, 90% dos quais eram documentários. Filmes que haviam participado do Festival JB. Em Paris ele organizou uma sessão e convidou uma série de pessoas. Surpresa: a primeira pessoa a chegar foi Joris Ivens. Em 1972, eu viajo do Chile para a França e entro em contato com alguns amigos. Em função do tipo de cinema que desejo fazer, me sugerem procurar o pessoal do grupo Slon, mais tarde grupo Iskra, ligados a Chris Marker. Eu já tinha ouvido falar nele, mas eu não o conhecia muito bem. Mas eu sabia que ele era ligado à América Latina, etc... O pessoal do Slon me recebeu friamente, mas eu deixei, de qualquer forma, um bilhete do gênero “compañero estoy aqui” numa mistura de espanhol e francês arranhado. Uns 15 dias depois recebo um telefonema no meu hotel: “compañero, ici Chris Marker”. Eu pensei que fosse brincadeira, mas não era não. Vem então o golpe no Chile e a possibilidade de trabalhar com a equipe dele num filme sobre o assunto.

FC: Joris Ivens e Chris Marker podem trabalhar em equipe, mas são muito individualistas, muito particulares, e sempre levam muita emoção a seus filmes... Silvio: Cinema é emoção. Os dois deram certo no documentário porque sacaram isso. Se não fosse um grande cineasta, Chris seria um grande escritor. Mas aí eu vou trabalhar com eles e – coincidência das coincidências – quem estava montando na sala ao lado era o Joris Ivens. Era um grande estúdio de montagem chamado Auditel, na avenida du Maine, nº12. Minha cabeça pirou nesse momento: no andar de baixo ficava a sala de montagem de Jean-Luc Godard. Na época ele estava piradão e achava que a direita podia atacá-lo a qualquer hora. A sala dele parecia uma verdadeira jaula. Na sala ao lado da nossa ficava o Joris Ivens. E, como se isso não bastasse, no andar de cima Orson Welles montava Verdades e mentiras. Você me imagina aos 23 anos trabalhando num lugar que era o meu universo cinematográfico.

REVOLUÇÕES

FC: A topografia do estúdio de montagem é reveladora. Você começou a entrevista falando em Godard, dedicou Jango a Joris e a Chris. E Verdades e mentiras de Orson Welles? Não estará levantada aí a questão das revelações do documentário com a ficção? Silvio: Vamos por partes. A grande lição que aprendi com Chris Marker foi deixar o texto desbundar a imagem verídica – que nem por isso fica menos verdadeira. O Chris na verdade me ensinou a olhar. O olhar dele é fulminante. Já Joris é importante pelo conjunto da obra dele, por sua coerência, seu trajeto. Ele é o documentarista do nosso século: Espanha, China, Vietnã, Chile... tem uma frase dele a respeito: “onde há alguma coisa pegando fogo, eu estou lá”. Em 1935 ele realiza o primeiro filme militante do Ocidente: Borinage . Em seguida, vem a guerra sino-japonesa, a Guerra Civil espanhola, a Segunda Guerra Mundial, quando ele vai aos Estados Unidos aju-

Jango deposto: imagem arranhada pelo tempo

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Tocar na memória, mas onde a memória nos toca, tocar no cinema

dar o Frank Capra naquela série Por que combatemos. No final da guerra ele vai à Indonésia como alto comissário do governo holandês para fazer cinema. Chega lá, vê que não é nada daquilo e adere aos rebeldes indonésios. Por causa desse apoio ele perde o passaporte holandês e fica sete anos sem poder voltar à Holanda. Repara: ele foi ao Chile já na posse do Allende. É um sujeito ligado nos problemas do Terceiro Mundo, Vietnã, Cuba, Mali, Laos. E nada do que ele faz é chato. Nunca dispensa a ajuda de grandes escritores, o próprio Chris já fez textos para ele. E voltamos ao texto. Chris Marker me indicou o caminho do texto para cinema como algo reflexivo, interpretativo, não redundante em relação à imagem. Uma tentativa já presente no JK. Esse período com o Joris Ivens e com o Chris Marker foi fundamental. O Joris é um cara que é didático, tem o saco de ficar discutindo com você, montando com você. Ele dá dicas fundamentais.

FC: Esquecemos o andar de cima: Orson Welles... Silvio: Esse é um mito do cinema, e não só para mim. O que eu acho fantástico nele é o lado mágico do cinema. É esse jeito que ele tem de mexer com o tempo e que rompe com a linearidade da narrativa. Dois filmes me marcaram muito: Cidadão Kane e Verdades e mentiras. Em Verdades e mentiras ele brinca com a imagem, com o verdadeiro e o falso. Em Cidadão Kane ele brinca com o tempo. Há nesse filme um corte de 20 anos entre dois planos: Kane menino diz “Boas Festas”, tac, 20 anos mais tarde, “Feliz Ano Novo”. Resumindo: há na minha formação e nas minhas influências o lado europeu forte e discursivo, do outro o negócio da mágica cinematográfica. E é o que Godard mais respeita nos americanos, isso só para fechar essa coisa dos três andares. A frase é do Godard: “nós europeus temos o cinema na cabeça, os americanos têm

o cinema no sangue”. E em Verdades e mentiras, a relação documentário-ficção é bastante relativa. Verdades e mentiras não é um documentário, mas um documento. FC: Quais as diferenças entre Os anos JK e Jango? Silvio: Em Os anos JK eu tinha medo de fugir da verdade, caso eu trabalhasse com a emoção. Foi um filme contido, reprimido. Na época eu não sabia disso, mas agora eu sei que achava que se eu mexesse com a emoção do espectador estaria sendo menos honesto, menos verdadeiro. Havia aquela coisa de “passar a informação”. FC: Resquícios de CPC? Silvio: A estética CPC não é um problema da minha geração. O JK é forte onde passa a emoção, onde eu não introduzo o distanciamento, basicamente quando fala de um período que eu já peguei, dos anos


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RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA

60 para cá. Quando eu ponho um coração pulsando no momento da decretação do AI-5, aquele coração é o meu, o da gente. Antes disso o filme é seco: o texto legenda e segura a imagem. No Jango eu trabalhei muito a trilha sonora para criar um clima em que a emoção passasse junto com a informação. FC: Entre um filme e o outro você me disse que ficou apaixonado pelo Meu tio da América, do Alain Resnais... Silvio: Um filme que eu gostaria de ter feito. Um filme que junta tudo: ficção, documentário, paixão pelo cinema. Por exemplo: aquela sacação dele de as pessoas imitarem inconscientemente os atores. O cara desce a escada e é o Jean Gabin descendo a escada. É uma memória que também é uma homenagem ao cinema, uma memória que passa por uma formulação cinematográfica. Ele toca na memória, mas lá onde a memória o toca, que é o cinema. Ele podia tocar na memória como teatro, como pintura, mas ele vê as pessoas imitando o cinema. FC: A memória é então algo de reinventado, o presente rememorado e não o passado reconstituído. Você não diz: “olha, foi assim”. Mas, fala de um menino que não viveu aquilo tudo, mas cuja emoção resistiu. Isto está no poema final, não? Silvio: Veja, é importante que um historiador legitime uma versão. E tire a história dessa coisa careta e asséptica. Não se pode deixar a história nas mãos de Pedro Calmon. Não há história isenta de um lado, e uma interpretativa e ideológica do outro. Todas são

REVOLUÇÕES

ideológicas. Acho que a história dele é reacionária e a minha não.

Jango em nome do conhecimento científico...

mo? E isso em nome das necessidades do momento atual?

FC: Só a direita erra?

Silvio: No início fiquei grilado com o raro consenso formado em torno do filme. Numa sessão, estavam sociólogos de postura tão diferentes como Otavio Ianni, Francisco Weffort, Bolívar Lamounier. Claro, houve restrições aqui e ali, mas todos acharam importante que essas cartas tenham sido colocadas na mesa. Veja, aqueles fatos foram analisados nos livros deles, tanto o Ianni como o Weffort estudaram exaustivamente o populismo, etc... Mas, ver aquelas caras, aquelas imagens, e alguém interpretando aquilo tudo lhes pareceu importante. Tive também receio de certas objeções vindas do PT. Mas – e isso pode ser muita pretensão minha – acredito que o filme não é estranho ao processo que levou Lula a chamar Denise Goulart ao palanque no comício da Candelária. Os ataques vieram mesmo da direita...

Silvio: Desde o início eu sabia que ia fazer um filme simpático ao Goulart, tanto que não tive o menor problema em procurar documentos com sua família. Olha, houve um momento durante a feitura do filme que a idéia do Maurício Dias, o autor do texto, era cobrar a incompetência da esquerda. Eu disse francamente para ele que ele era livre para abandonar o filme “porque eu não estava a fim de dar um pau na esquerda”. A esquerda leva pau há 20 anos. Claro que eu tenho críticas a fazer à atuação da esquerda naqueles anos, atuação de Jango e de Brizola, mas isso não é o essencial, hoje. É evidente que se a história brasileira começar a ser discutida de forma séria essas críticas terão de ser aprofundadas. E isso nos livros ou em outros filmes. Mas, numa primeira obra que é, sobretudo, uma provocação, temos que pegar as coisas pelo outro lado. Quer dizer: colocar nas páginas da história uma figura cujo problema era não de ser pixada, mas de estar sendo ocultada . Porque o problema de Jango não é que se tenha criado durante esses anos todos uma versão desfavorável a ele. O problema é a sonegação: simplesmente ele foi retirado dos livros de história. Os manuais escolares têm duas linhas sobre ele. Mas acho que nesse momento as pessoas compreenderam a esterilidade dessa discussão. Se o filme tem alguma importância não é daqui para trás, é daqui para a frente. Não se trata de uma memória nostálgica, é um troço voltado para o futuro. O que

Silvio: Claro que não. Há uma história militante totalmente equivocada, não porque toma partido, mas porque subordina a verdade a uma tese. Na medida em que você corta, escolhe o plano, redige um texto, você está selecionando. E eu acho que a história tem de ser mesmo interpretativa e opinativa. Isso não a fará menos verdadeira de uma outra que se quer asséptica, mas que não é... FC: Você fala da história como se fosse um sonho. A memória funcionando não como reconstituição, mas como reconstrução. Freud observou que no sonho a gente está sempre presente... Silvio: Não é gratuito que o filme atinja seu ápice no momento em que o Brasil inteiro esteja brigando pelas eleições diretas como uma etapa intermediária pela democracia. Nesse sentido é um sonho brasileiro, a maneira pela qual a gente se reencontra. É o tema do reencontro do cinema com a política. Há momentos em que a gente fica cético em relação à política, mas a campanha pelas diretas, independentemente de seus resultados práticos, deixa claro o quanto a política é fundamental para a nossa vida cotidiana. O país mudou de cara – isso é da ordem do sonho. O cidadão emerge acima dos partidos políticos e das lideranças carismáticas. FC: Há quem diga que você fez um “editorial” e tenta invalidar

FC: O que você temia nas críticas da esquerda? Silvio: Os Anos JK foi o filme criticado por ter “resgatado o populismo”. Ora, eu nunca quis resgatar a imagem do JK. O que eu sempre quis foi resgatar a democracia no Brasil. O importante é a questão da democracia. Compare o comício da Central com o da Candelária. No primeiro, havia as lideranças e a massa que aplaudia. No segundo, o comício está nas ruas. Achei importante resgatar o comício anterior para essas pessoas que hoje estão no asfalto. FC: Você não teria omitido a crítica das falsas alianças do populis-

a gente quer do país daqui para a frente? A gente quer poder discutir e ver as pessoas na rua. FC: A emoção, o patético que o filme passa, não estão ligados profundamente à nossa identificação com a incompetência do Jango-personagem histórico? Silvio: Se o Jango estivesse vivo eu não teria feito o filme. Ele inclusive não deixou uma herança política. Muita gente pode reivindicá-la, mas você não tem uma carta-testamento janguista. Olha: eu jamais faria um filme sobre JK se ele hoje representasse um programa político. O mesmo vale para Jango. Não estou endossando correntes partidárias. Se estivesse, eu teria que aprofundar certos aspectos do filme. Mas, na medida em que o Jango é uma personagem maldita da história, “o presidente

rico de um país pobre” – como diz 77 o filme –, um fazendeiro que é o primeiro presidente do Brasil que topa falar em reforma agrária etc... fica difícil questionar as intenções dele, sobretudo porque ele foi apeado do poder à força. Dizer que ele não faria a reforma agrária porque era dono de terras é pura especulação. O fato é que ele assinou um decreto expropriando terras, ao longo das rodovias. Portanto, ele iniciou o processo de uma reforma agrária. Foi também maldito por ser o único presidente brasileiro a morrer no exílio. Como então falar da incompetência de um presidente deposto à força? Sua competência poderia ser, sim, questionada em relação ao fato de ele não ter organizado a resistência. Mas isso foi uma opção. Deixo apenas a imagem de um homem, de sua classe social, de seu nacionalismo, de seu reformismo.

Joris Ivens fotografado por Silvio Tendler: “Onde há alguma coisa pegando fogo, eu estou lá”


A

RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA

FC: Mas, à medida que o filme avança, vamos ficando deprimidos. Alguém que não viveu aquela fase fará perguntas que ficam sem respostas. Por exemplo, como um presidente da República que detém o poder político se reduz a uma peça dentro de uma engrenagem? Por que ele não conseguiu dirigir seu próprio destino? Silvio: O filme formula interpretações e faz perguntas. Mas não responde tudo. Levanta, entretanto, alguns pontos. Acho, por exemplo, que o depoimento de Celso Furtado no filme deixa bem claro como o Jango ficou de mãos atadas pelo esquema que deveria controlar. E isso de forma dramática. Era o vice de um outro partido e não daquele que havia eleito o Jânio com maioria quase absoluta de votos. Mãos atadas ainda ao PSD que lhe permitia administrar o Congresso. E, do outro lado, ao Brizola que lhe havia dado posse na marra e que tinha compromissos mais radicais do que os dele. O governo de Jango durou muito pouco: de setembro de 1961 a março de 1964, sendo que de setembro de 1961 a janeiro de 1963 ele permaneceu de mãos atadas por um sistema parlamentar implantado de forma casuística. Não teve tempo de exercer sua personalidade. E quando tentou, foi deposto. Evidente que poderia ter havido um outro Jango que tomasse o poder na marra em 1961 através de um banho de sangue e com o Congresso fechado. Em suma, um Jango que traísse seus compromissos reformistas. Cada um pode escolher o seu Jango. O meu foi o que governou através de soluções de compromisso.

O cara que cai porque empunha a bandeira das reformas de janeiro a março de 1964. Mesmo não analisando tudo, tentei compreender a coerência dele, por exemplo, não resistindo militarmente à sua deposição. Em vez de criticá-lo, do ponto de vista do seu fracasso, escolhi compreender a argumentação dele. FC: É um ponto importante. A propósito de Os anos JK, Paulo Sergio Pinheiro levanta a questão. No Filme Cultura 38/39 ele escreve: “a personagem de JK é tratada sob a ótica triunfalista do próprio período do final dos anos 50. A interpretação se deixa contaminar pelo espírito daquela época, o ufanismo relido através do Plano de Metas, 50 anos em cinco” [...] Mais adiante, ele hesita em sua crítica e escreve: [...] “seria pueril cobrar de Silvio Tendler não ter feito isso no filme (é sempre fácil cobrar o que foi feito)” e, mais adiante, a pergunta fundamental: “quem sabe esse seria o debate a prolongar entre cineastas e analistas políticos e historiadores: se filmes da reconstrução histórica devem se satisfazer em recuperar a atmosfera do período ou se devem levar em conta as revisões que foram feitas sobre o próprio período”. Não seria um absurdo julgar os anos 50 cinematograficamente do ponto de vista de quem já sabe que vai haver uma crise do petróleo no início dos anos 70? Silvio: Acho que o próprio Paulo Sergio Pinheiro deve ter revisto essa postura pois ele escreveu que Jango é um filme “The day after” ao qual nós todos sobrevivemos. Ele já não cobra uma interpretação crítica a posteriori, ele se deixa en-

REVOLUÇÕES

volver pela emoção. O período de Jango, por ser mais controvertido e contraditório, é mais rico do que o de Juscelino. O período de JK pode comportar teses opostas, mas você conhece o período. O de Jango é mais obscuro, cada um tem sua versão, inclusive dentro das mesmas correntes ideológicas. Dentro do Partido Comunista, por exemplo, existem três formas de se julgar João Goulart. FC: Sua postura seria então compreensiva e não partidária... Silvio: Cinema não é tese. Trabalho a emoção do documento, não quis usar a imagem como suporte para uma tese. Quando escrevi uma tese, aliás, foi sobre a imagem, o cinema de Joris Ivens. O que me incomoda não é tanto o que me dizem à esquerda, mas de uma cobrança de direita, e também das madalenas arrependidas, como, por exemplo, Paulo Francis, de Nova Iorque, que deita falação sobre o João Goulart histórico que ele não conheceu direito (esteve uma vez com ele, com um grupo de intelectuais) do tipo “Jango não tinha programa, era incompetente, etc...”. Bobagens. Isto é, na verdade, um acerto de contas dele com seu passado que incomoda a ele , não a mim. Muito pelo contrário: acho que o Francis está ótimo lá em Nova Iorque, como um Roberto Campos que não deu certo. O outro é o Dines que apoiou 1964, foi conivente com mil arbitrariedades praticadas e não vai agora confessar que errou em ter dado seu apoio à deposição de um presidente legalmente empossado. O Dines sempre apoiou o regime, pelo menos

até o dia em que o regime o defenestrou. O Dines não o abandonou: o regime foi quem abandonou o Dines. Como pode ter ele algum carinho pelo Jango sem passar por uma autocrítica? FC: O sucesso de público de Jango abre caminho para o documentário? Silvio: No Cinema Leblon tivemos uma bilheteria competitiva com Laços de ternura. Como falar da inviabilidade comercial do documentário? Quando um filme fala das pessoas e elas se reconhecem nele, elas estão pouco se lixando se é ficção ou documentário. O importante é que o filme seja bom. O filme foi lançado com seis cópias e agora já tem 19 – uma solicitação do mercado exibidor. Eu não tenho marcações a fazer no Norte. O filme desmistifica ainda praças

até então julgadas impensáveis. O preconceito não vem do público. Ele vem de certos cineastas que parecem hoje estar perdidos.

Francisco Sérgio Monteiro, Mil- 79 ton Nascimento, Wagner Tiso, Geraldo Ribeiro, José Wilker, Maurício Dias, etc. etc.

FC: Você foi criticado por ter recebido ajuda da família de Goulart...

FC: Como foi o encontro do Cinema Independente, em Gramado?

Silvio: Eu pergunto: se tivesse sido financiado pelo Estado meu filme teria sido mais isento? Já recusei trabalhos mais remunerados. Eu não estava em busca de isenção, foi uma adesão consciente da minha parte. Não se consegue mentir com emoção. Todos os técnicos e artistas envolvidos no filme não receberam um tostão. Foi tudo na base de percentagem. E agora que Jango está dando dinheiro a postura das pessoas continua a mesma. Não é aquela coisa mesquinha “quero o meu”. Todos foram excelentes: Lucio Kodato,

Silvio: Como diz um amigo meu, ironicamente, o problema do cinema independente é que suas reuniões nem sempre reúnem as mesmas pessoas. Há uma rotatividade muito grande, o fracasso é mortal. Nós somos mais sensíveis ao mercado porque se esses filmes não se pagarem, nós vamos para o brejo. Eu só posso fazer o próximo filme se o último tiver dado certo. O bonito em Gramado foi que os filmes tão diferentes como Verdes anos , Extremos do prazer e Jango tivessem encontrado um terreno comum.

“O período de Jango, por ser mais controvertido e contraditório, é mais rico do que o de Juscelino”


AN PH/FOT/ 23731(1)

Divulgação

GODARD e de liberdade que se avalia AN PH/FOT/ 23731(6)

Não é em termos de destino

a direção cinematográfica e, sim, pela força que tem o engenho de se lançar sobre os objetos, com uma invenção perpétua... Só se olha para o que se sente e para o que não se deseja ter como segredo.


Yann Beauvais Cineasta, curador e pesquisador francês, realizou cerca de trinta filmes, entre eles Work and progress (1999), com Vivian Ostrovsky e Adrift (2002).

Filmes de arquivos

REVOLUÇÕES

Este artigo foi publicado em 1895 – Archives , Revue de l’Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma, n. 41. Paris: AFRHC-FCAFF, p. 57-70, octobre 2003. Tradução de Helen Alexandrevha Pseluiko.

1 Outer space de Peter Tscherkassky (1999). © Light Cone

ou seus programas. Por outro lado, os telejornais ou os programas de atualidades das emissoras temáticas reprisam as mesmas seqüências, extraídas dos arquivos dos quais se servem avidamente. Alguns arquivos chegam a dominar o mercado; eles tentam então fazer com que o domínio do cinema evolua segundo o modelo da fotografia, a saber, constituindo monopólios.

O

cinema experimental há muitos anos usa freqüentemente found footage. Esse termo designa tanto o objeto – uma seqüência escolhida – como uma prática de montar um filme, apropriando-se dos elementos encontrados, dissimulados, retidos, desviados, não filmados pelo cineasta, mas que ele recicla. Essa prática engloba tanto os filmes de compilação, como os filmes mais pessoais que incorporam um extrato ou uma seqüência de uma ou várias películas. Diferentemente dos filmes de compilação, os filmes pessoais não formam catálogos nem coleções, lançam mão, ocasionalmente, de fragmentos de noticiários ou de filmes feitos em casa. Proteiforme, a utilização do found footage não pode em caso algum definir um gênero: abrange uma enorme variedade de intervenções por parte

dos cineastas. Intervenções estas que se multiplicaram, depois que o acesso do grande público ao videocassete e aos computadores se expandiu, tornando cada usuário um programador em potencial. O recurso à rede de computação permite manipular à vontade as informações armazenadas no sistema binário. Dessa forma, opera-se um deslocamento que consagra o império da variação: os dados é que são manipuláveis, não mais a película. À sombra desse abandono do celulóide em prol da computação é que se compreendem os últimos filmes de Peter Tscherkassky (fig. 1) e sua radical insistência em trabalhar o suporte em prata. A utilização de found footage não se restringe aos documentaristas e cineastas experimentais. As redes de televisão, grandes consumidoras de imagens, apelam cada vez com mais freqüência para os arquivos, ao elaborar uma transmissão

Se os arquivos cinematográficos, durante muito tempo, privilegiaram a aquisição de filmes narrativos, desde os anos de 1990 consideraram outros aspectos do cinema que, até então, eram do domínio reservado de arquivos especializados. Paradoxalmente, o recente interesse dos arquivos pelos filmes até então ignorados torna o acesso a eles cada vez mais difícil. Os filmes restaurados, adquiridos prioritária e quase que exclusivamente pelos estabelecimentos reconhecidos oficialmente, vêem sua circulação bastante limitada. A noção de preservação leva paradoxalmente a uma difusão restrita: o objeto filme torna-se precioso, visto que restaurado. Para os cineastas de hoje que queiram trabalhar o filme com found footage, resta apenas a possibilidade de se apropriar, mais ou menos legalmente, dos elementos cobiçados. Nos anos de 1950, era fácil procurar filmes educativos, a partir dos quais se podia produzir uma obra. A movie , primeiro filme de Bruce Conner, é um bom exemplo do uso que pode ser feito de filmes educativos e de noticiários. Ele critica a sociedade de consumo e seu fascínio pelo espetáculo da destruição, por meio de um conjunto de seqüências até então reservadas a

um uso doméstico. Essa apropriação contraria as intenções originais dos filmes; reflexos da sociedade que os produz, representam seus ritos, as tragédias humanas ou naturais, cotidianas ou excepcionais, as catástrofes. No meio da colisão, da justaposição e do encadeamento, Bruce Conner suscita outras interpretações. As certezas que eram pressentidas nesses filmes vacilam; outras perspectivas surgem graças ao humor das montagens, os contra-sensos vêm atentar contra as idéias recebidas. Bruce Connor trabalha os clichês cinematográficos de um passado recente e já desvalorizado, que são, antes de tudo, uma memória comum a um grupo, uma classe, uma sociedade. Seus meios ligam-se à apropriação de objetos domésticos glorificados pela pop art na Inglaterra e nos Estados Unidos no final dos anos de 1950. Mesmo sendo singular, A movie, como os filmes de Raphael Montanez Ortiz, Maurice Lemaître e de alguns outros, desenvolve as seqüências dos filmes, apropriando-se delas e reciclando-as, de modo a criar novas relações que pervertem o sentido original. Os utilizadores de found footage, retirando as imagens de seu contexto, revelam seu sentido oculto, freqüentemente contrário ao sentido original, assim como os Novos Realistas recolocavam em evidência a significação primordial das imagens que era resgatada pela destruição dos cartazes. Esse deslocamento é essencial, à medida que marca a apropriação, e também a irrupção do intempestivo, constituindo uma significativa inovação. Para designar esse desacordo, os lettristes falam em burilamento das ima-

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gens e de “discrepância” a propósito do som.1 À diferença de outros cineastas, os lettristes não utilizam apenas o found footage , por vezes rodam seqüências que alteram de diversas maneiras: listras, pinturas, aplicação de letras... Observemos que, naqueles anos, as questões relativas à propriedade e aos direitos autorais não eram tratadas da mesma forma que hoje em dia, o jurídico ainda não era o parâmetro a partir do qual se definia o estatuto econômico do autor, tal como se vê freqüentemente nas sociedades (corporações) que os representam. A apropriação de seqüências modifica a maneira pela qual os objetos cinematográficos são apreendidos: o objeto de desvio não é a totalidade do filme,2 mas sim uma ou várias partes. Sua integridade é colocada em questão, quando o filme é considerado como um catálogo de planos e não como um todo indivisível. Estuda-se, trabalha-se, cita-se, preestabelece-se para formar um novo objeto. Trabalha-se não mais para apresentar uma visão original por meio de planos filmados por nós, mas sim montando as cenas rodadas por outros. O trabalho do cineasta consiste, sobretudo, na pesquisa de documentos, daí a necessidade de se ter acesso às bibliotecas, aos arquivos públicos ou privados e aos diversos estabelecimentos comerciais que vendam cópias de filmes e fitas em geral. Fazer filmes de found footage, nos anos de 1950 e 1960, é, antes de tudo, trabalhar a partir de noticiários; cada vez mais raramente ver-se-ão imagens retiradas de filmes comerciais. O formato é sempre um grande obstáculo para os cineas-

2 e 3 Instabile Malerei de Jürgen Reble (1995) © Light Cone

tas experimentais que não dispõem de meios para fazer reduções a partir do formato padrão, 35 mm. Mais tarde, sobretudo a partir dos anos de 1980, o recurso do found footage receberá outras significações, que ultrapassarão a crítica das representações. A importância da imagem animada, seu impacto sobre o cotidiano, dará origem ao trabalho de alguns cineastas: eles utilizam imagens que veneram ou odeiam, invertendo, de uma só vez, a maneira de encarar a relação com o cinema e a sua espetacularização do mundo no século XX. O material facilmente acessível nesses anos é o 16mm: os noticiários cuja atualidade limita-se à vida útil do suporte e dos filmes educativos. O recurso a essas imagens manifesta, em primeiro lugar, a continuidade de uma tradição crítica da arte moderna, que sempre considerou a dimensão lúdica da filmagem, junto com sua dimensão política: o dadaísmo, o surrealismo, o situacionismo e também a pop art, numa medida menor... O trabalho de filmagem no cinema, a partir de found footage, implica a apropriação de um documento utilizado como é ou transformado; ele é reciclado.3 Distancia-se da citação em prol da crítica e da análise, conforme o projeto artístico do cineasta. Se, para os lettristes, a incorporação de seqüências de filmes célebres permite render homenagens a determinado momento da história do cinema, na maior parte do tempo, para outros cineastas, trata-se de atacar a natureza da representação, como é proposta pelo cinema comercial. Essa atitude é adotada por Raphaël Montanez Ortiz em seus primeiros dois filmes, Cow-boy and Indian films (1958) e News Reel (1958), em que ele trunca, remonta, transforma e modifica um western, a fim

1 Ver ISOU, Isidore, Esthétique du cinéma e LEMAÎTRE, Maurice, Le film est déjà commencé. ION, número especial sobre o cinema, 1o abril 1952. Paris: André Bonne, 1952. 2 Por vezes o desvio se efetua sobre a integridade do filme. Joseph Cornell reduz um longa-metragem a vinte minutos em Rose Hobart (1936), utilizando subtítulos. René Vienet retoma os filmes inteiros em La dialectique peut-elle casser des briques? (1974) e Les filles de Kamaré (1974). Ou então Ken Jacobs coloca sua assinatura num filme anônimo ( Perfect film ). Pierre Huyghe e também inúmeros artistas contemporâneos apropriam-se integralmente de filmes que mostram lado a lado em suas diferentes versões ( Titanic) ou que estendem até 24 horas: 24 hour psycho (Douglas Gordon, 1993). 3 Para uma análise histórica mais detalhada das técnicas empregadas pelos cineastas de found footage , ver LEYDA, Jay. Films beget film, a study of compilation film . Londres: Georges Allen & Unwin Ltd, 1964; Found Footage Filme aus gefundenem Material, Blimp , n. 16, Viena, 1991; WEEDS, William. Recycle images , New York, Anthology Film Archives, 1993; BONNET, Eugeni (dir.). Desmontage: film, video / appropiation, reciclaje , Valence, Ivam 1993; Yann Beauvais, Plus dure sera la chute (1995), retomado em Yann Beauvais, Poussière d’images , Paris experimental, 1998.

de denunciar a posição adotada, ideológica e racial, pelas produções hollywoodianas, assim como pelos noticiários dos anos de 1940 e 1950. News Reel denuncia a guerra de uma maneira aberta, bem como alguns de seus promotores, como o papa Pio XII. A mesma tendência encontra-se nos cineastas e videoastas contemporâneos, quando questionam a identidade, o fato de se pertencer a uma raça, uma cultura, um gênero. Richard Fung, Nguyen-tan Hoang, Charles Lofton, Wayne Yung e Shawn Durr incluem em seus vídeos os elementos de found footage para enfatizar o pertencimento a uma dupla minoria, gay, asiática ou black na América do Norte. Seus trabalhos evidenciam um humor corrosivo, diferente daquele dos anos 50 e 60.4 A apropriação de seqüências de filmes de gênero em Nguyen-tan Hoang ou Charles Lofton favorece uma leitura camp desses mesmos filmes, que os dinamiza assim como os dinamita. Atitude reencontrada em 1000 Cumshots (2003) de Wayne Young, que denuncia o império do macho branco na pornografia gay. Esse modo de apropriação artística não é novo: através dos tempos, os músicos, os escritores, os pintores inspiraram-se em obras mais antigas, pegando emprestado um motivo, uma melodia, um tema, uma idéia, até recopiando de boa vontade toda ou parte de uma obra. Não há obra sui generis que não apele ou não tome emprestado obras anteriores. Hoje em dia a diferença marcante é a transferência do direito do autor para seus representantes legais, que, em nome do poder econômico, confiscam o direito do autor em favor dos interesses que defendem. Isso explica que o uso de found footage no cinema e no vídeo contemporâneos seja muitas vezes adverso à questão da difusão fora de seus próprios circuitos, à medida que esses últimos escapam ao controle dos representantes legais. A reciclagem das imagens pode ser feita em todos os tipos de filmes, a partir do momento em

4 Em relação a isso, os filmes The situationist life (1958-1967) de Jens Jorgen Thorsen são exceções, que se inscrevem numa tradição provocadora herdeira do lettrisme e do surrealismo.

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que os meios de reprodução e de captura estão disponíveis. Observemos, sob o ângulo da reciclagem, dois filmes que são importantes por razões distintas, os dois se interessam pelos aspectos do cinema utilizados com menos freqüência nos anos 60 e que vão nutrir a maior parte de trabalhos do final dos anos 80 até o presente. La verifica incerta (1964), de Gianfranco Baruchello e Alberto Gitti, e Au début (1967), de Artavazd Pelechian. O filme de Pelechian coloca uma alternativa à montagem “das atrações” como a definiu Eisenstein, recorrendo a uma montagem que privilegia as formas circulares e a constituição de blocos onde as variações são efetuadas. Trata-se de uma montagem que, pela repetição de seqüências num mesmo bloco ou de um bloco a outro, faz explodir o sentido único em favor da ressonância. Ao lado dos noticiários de todas as procedências que celebram as revoltas, figuram extratos de filmes de Eisenstein e de Vertov. Essa irrupção de clássicos marca um reconhecimento de dívida com essas obras, além de revelar a nova maneira de examinar um filme. Para lhes devolver o impacto que haviam perdido, Pelechian duplica as seqüências conhecidas sobre emulsões de alto contraste. Para fazer seu filme, Grifi e Baruchello resgataram quarenta e sete cópias de filmes de 35mm dos anos 50 e 60 antes de sua destruição.5 Esses filmes comerciais, na maior parte americanos, são desfeitos e depois refeitos para produzir um filme que, embora respeitando a trama dos filmes clássicos, dessacraliza os clichês hollywoodianos. La verifica reconhece a importância de Hollywood como provedor de estereótipos e de clichês fascinantes ao mesmo tempo que revoltantes, todos revelando os limites deste empreendimento de diversão que recorre aos mesmos códigos independentemente do argumento do filme. Ele propõe uma crítica lúdica dos clichês, dos códigos hollywoodianos, que opera por excesso, superoferta e acumulação. A eficácia da demonstração decorre da utilização de um grande núme-

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ro de seqüências de vários filmes; ela abre uma via possível de investigação para os cineastas do futuro, quer tenham visto ou não La verifica. Isso evidencia, mais uma vez, a necessidade de tornar os filmes acessíveis. O acesso e a democratização favorecem a apropriação. Essa “amostragem aleatória” prefigura os gestos iconoclastas dos cineastas dos anos de 1990, que, a partir de seus videocassetes, privilegiam a arte do espectador, ou mais exatamente do programador, e constituem coleções de fragmentos escolhidos em detrimento da integridade de uma obra. O olhar se desloca graças a ferramentas que permitem o consumo particular de um entretenimento que, até então, era um espetáculo de massas.6 Por seu modo de apropriação e de reciclagem das imagens, La verifica e Au début anunciam a prática de amostragem tal qual se desenvolveu no domínio musical, depois no das imagens em movimento, no final dos anos 80. Essa arte de olhar que privilegia a escolha daquele que olha permite transformar a maneira de abordar as noções de autor e de obra. Os filmes e os vídeos contemporâneos examinam o cinema, fornecedor e difusor das imagens do real, mas também artífice, manipulador desta mesma realidade e ao mesmo tempo do nosso imaginário. A invasão progressiva do cinema no decorrer do século XX fez com que muitas das seqüências dos filmes virassem ícones contemporâneos, imagens públicas que assombram a memória de cada um. Outras imagens de caráter privado, vindas dos filmes de família, permitem que nos revejamos como éramos antigamente e nos mostram também a maneira como percebíamos o mundo, retransmitido pelo olhar das testemunhas próximas ou distantes. Pode-se então revisitar a história familiar mediante algumas de suas representações (como o ritual da refeição em família em Stories, de Cecile Fontaine), ou por meio de uma verdadeira celebração do tempo definitivamente determinado em Nikita Kino

5 Para uma apresentação desse filme, CELANT, Germano (dir.). Identité italienne. Paris: Centre Pompidou, 1981. 6 Peter Szendy descreveu magnificamente essa arte do espectador, no domínio musical, em SZENDY, P. Un art de l’écoute. Paris: Éditions de Minuit, 2000.

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4 Lyrisch Nitrat de Peter Delpeut (1990). © Light Cone

(2001), de Vivian Ostrovsky. Esse filme revive a viagem à URSS, tal qual a havíamos filmado em conjunto, Vivian e eu, no Work & Progress (1999). Aqui não é mais a viagem, a descoberta, que desencadeia a reciclagem de atualidades, mas sim a visita ao passado através das seqüências colhidas pela cineasta ao longo dos anos.

pertence à mesma veia que os filmes que se servem da alteração do suporte para investir no passado. Não se trata de rever os eventos filmados no passado, mas sim de tirar proveito da materialização da passagem do tempo, da transformação do grão da emulsão. Não está em questão a sentimentalidade nostálgica, mas sim a estética.

Nesse espírito de reconsideração do passado, os cineastas trabalham os filmes encontrados aqui e ali, que permitem mostrar outros costumes do mundo sob a coberta do anonimato. Peter Tscherkassky apresenta, em Happy end (1996), uma coleção de filmes de Ano Novo rodados por um casal dos anos 60 aos anos 80. Essa investigação faz parte de uma análise que nos permite captar a evolução do olhar lançado pelo casal sobre a sua própria imagem. Ela questiona igualmente a posição de um terceiro, invisível, de quem nos ocupamos ao assistir ao filme; a quem se dirige esta família burguesa, quando finge a felicidade de um ano vindouro? Happy end

Se La verifica incerta prefigura os trabalhos de compilação que geraram o cinema experimental e a arte do vídeo após os anos 80, é porque trabalha a partir do cinema comercial, que permanece como a prática dominante do cinema. A partir dos anos de 1980, as salas de cinema já não detêm o monopólio do cinema de ficção: pode-se vê-lo em shoppings ou em casa, graças ao videocassete. Essa ferramenta permite, bem aceleradamente, o retorno da duplicação e da compilação. O consumidor pode então fabricar fitas personalizadas, a seu gosto; o que significa o aumento da pilhagem de seqüências, favorecendo simulta-


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5 Scratch de Christoph Girardet (2002). © Light Cone

neamente a produção de novas obras a partir do seqüenciamento, da amostragem de filmes de todos os gêneros. O resultado é um certo número de trabalhos que propõem somas particulares de situações (Home stories, 1991, de Matthias Müller; Scratch, 2002, de Christoph Girardet, fig. 5) ou gestos (Téléphones, 1995, de Christian Marclay). Os cineastas obtêm novos significados de filmes clássicos ou conhecidos. É o caso de Marc Arnold, que faz uso de imperfeição da imagem enquanto instância de descobrimento e eclipsamento em Pièce touchée (1989), assim como em seus filmes posteriores; é também o caso de Chun-hui Wu que, em Psycho shower (2001), trabalha os diferentes planos da célebre cena do chuveiro do filme de Hitchcock. A partir de uma cena superconhecida, o cineasta cria uma coreografia que coloca em cena o corpo estático de uma mulher antes de sua morte. Nesse filme, como nos filmes de Arnold ou de Ortiz, o jogo do adiado e do avanço entrecortado, com seus desvios, suas reprises, suas demoras, é que constitui o motor da ação cinematográfica. Trabalho lúdico que coloca em crise o desfile regrado de uma projeção em favor do entrecorte, paradigma do cinema, abolido após o aparecimento da imagem eletrônica. No entanto, o cinema hollywoodiano também pode ser objeto de manipulações e de transforma-

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ções que permitem escrever histórias que Hollywood não soube ou não quis contar. No Meeting of two queens (1991), Cecilia Barriga propõe uma história de amor entre Greta Garbo e Marlene Dietrich, a partir de uma montagem de seqüências que, além das histórias, funcionam como hábeis campos contracampos fictícios. Por sua vez, Bárbara Hammer incorpora em Nitrate kisses (1992) um filme célebre de Watson e Webber, Lot in Sodom (1933), assim como as seqüências de raios X de filmes científicos rodados nos anos de 1940 pelo mesmo Watson. Em Matinee idol (1999), Ho Tam levanta o catálogo do rei do cinema da China Meridional, dos anos 30 aos anos 60, retirando curtos extratos em sua filmografia. À diferença de Home stories ou Phantom (2001) de Matthias Müller, Matinee idol não mostra uma nova ficção, é antes de tudo a transformação de um rosto. Alguns filmes reutilizam filmes de entretenimento. Eles evocam uma época, um momento na história do cinema, uma fascinação por um gênero de cinema, o das estrelas... não criam mundos, mas comentam simultaneamente o mundo e o cinema. Propõem novas leituras, novos conjuntos, arranjos diferentes, trabalhando em um catálogo de seqüências mais ou menos conhecidas, que são arquétipos. Matthias Müller tem muitas obras recentes, constituídas de representações hollywoodianas, que mergulham num clima de pura nostalgia.7 Matthias Müller, como inúmeros cineastas surgidos nos anos 80, mistura às imagens que rodou uma grande quantidade de seqüências encontradas e tomadas de empréstimo da história do cinema – principalmente melodramas e comédias musicais hollywoodianas. Seu filme Aus der Ferne é sintomático dessa fagocitose progressiva de Hollywood pelos cineastas experimentais nos anos 80. Por sua vez, Mike Hoolboom e Caspar Strake anexam todo o cinema e não somente os filmes hollywoodianos. Tom (2001), de Mike Hoolboom, convoca a história das representações nova-

7 Como sublinhou justamente Isabelle Ribadeau-Dumas, isso se aplica também a muitos episódios do ciclo Phoenix tapes (1999) co-realizado com Christoph Girardet em torno dos filmes de Hitchcock.

iorquinas no cinema, para fazer a biografia do cineasta Tom Chomont. Camadas de imagens tecem uma história composta da cidade. Essas espessuras de imagens remetem à constante transformação arquitetônica de Manhattan. Elas evocam paisagens imaginárias de uma cidade que associa à nossa visão resíduos de um outro tempo, bem como numerosos clichês. A cidade já não é vista diretamente, mas experimentada sob uma mistura visual que, no entanto, a torna mais tangível, mais palpável. A sensação torna-se muito mais física, material: dá vontade de pegá-la.8 É como se o vídeo permitisse sentir a pele da cidade graças às sobreimpressões, superposições de imagens que são como vitrais. A textura particular dessas imagens aproxima o estilo desse filme daquele dos trabalhos que utilizam o found footage, acentuando a decomposição, a alteração, portanto, a fragilidade do suporte cinematográfico. A fascinação pela decomposição do suporte pode ser considerada como uma nostalgia da emulsão, de suas qualidades particulares, de seu grão e de sua textura. Isso leva os cineastas a trabalharem as seqüências recortadas de fitas de vídeo, desenvolvendo-as de maneira artesanal, para lhes dar novamente a qualidade tão característica do suporte em prata. O trabalho de Jürgen Reble situa-se exatamente nessa linha, que visa transformar o suporte, fazendo explodir literalmente sua materialidade no Instabile Malerei (1995, fig. 2 e 3), ou em suas performances filmadas de Alchemy (2000). A manipulação radical do suporte no processamento ou durante a produção da cópia, por viragem, e os ataques químicos efetuam-se sobre elementos esquecidos pela maior parte dos filmes científicos ou dos documentários de animais. Presenciamos um procedimento que revela o suporte das imagens em detrimento das figuras que aí se manifestam, a fim de nos conduzir para

outros horizontes pela abolição progressiva dos elementos figurativos, sem os quais o deslocamento para esse “além” não poderia ocorrer. Nesse procedimento inscreve-se uma dimensão mística que se aproxima do espírito em que trabalha Mike Hoolboom, mesmo que os objetos cinematográficos e as intenções difiram e mesmo que o cineasta há alguns anos prefira o vídeo ao filme. Mike Hoolboom radicaliza ainda sua proximidade em certas partes de Imitations of life (2002), estendendo o campo de suas tomadas aos videoclipes, às publicidades e aos filmes esportivos que, em alguns de seus trabalhos, mistura aos filmes hollywoodianos. Abigail Child e Craig Baldwin trabalharam, no final dos anos 80, na mesma direção, misturando diversos gêneros de filmes. Mas, às vezes, a narração clássica se refaz: quando a cineasta refilma os home movies anônimos para fazer Covert action (1984, fig. 6), percebe que esse material é fonte de ficção. Ignorando a proveniência desses filmes de família, tendo apenas fragmentos, ela completa as lacunas para reconstituir uma história a partir do found footage.9 Em Mercy (1989), multiplica as fontes de empréstimo, incorporando filmes educativos e filmes científicos, sem se referir a qualquer narrativa. Se uma importante parte dos filmes de found footage realizados nos anos 90 são vídeos, No damage (2002), de Caspar Strake, anexa seqüências inteiras a fim de devolver à cidade sua pluralidade, mediante a multiplicidade de suas representações. É o que foi feito com estrondoso sucesso por Craig Baldwin em Tribulations 99, Alien anomalies under América, criando, a partir de um mosaico de documentos cinematográficos, uma fábula paranóica cujo fio condutor é constituído pelas vozes da banda sonora. Esses discursos ligam as representações oriundas de fontes diversas, numa narrativa que se desenrola como uma seqüência de complôs, dos quais o filme será uma das manifestações virtuais.10

8 Sobre essa qualidade haptique do vídeo contemporâneo, ver MARKS, Laura U. Touch. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002. 9 Ver Abigail Child em WEES, William. Recycled images , op. cit. 10 A introdução de uma versão livresca do filme mantém essa interpretação, mediante a assinatura “Jane Austen”, que mais tarde se manifestará de novo num vídeo de Keith Sanborn, a propósito das noções de apropriação e de copyright, com as quais o filme de Baldwin não se preocupara. Tribulation 99 Craig Baldwin, New York, ediciones La Calavera, 1991.

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6 Covert action de Abigail Child (1996). © Light Cone

7 De profundis de Laurence Brose (1996). © Light Cone

Em seus últimos trabalhos, Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi continuam o trabalho começado no início dos anos 80, do qual Dal Polo all Equatore (1986) é um dos maiores sucessos: o recurso a filmes de arquivos ou a coleções privadas. Nesse filme e nos seguintes, eles selecionam, tingem, reenquadram as seqüências escolhidas, eclipsando-as no material que colocam em circulação. Nenhum ou poucos intertítulos são acrescentados, situando o material. Esse mergulho nostálgico num passado para sempre terminado oscila entre fascinação por um tempo da representação no cinema e plasticidade de um material surrado pelos anos e estocado em más condições. Em Dal Polo all Equatore , os dois cineastas reuniram filmes da coleção de Luca Comerio que, no fim dos anos de 1920, juntou sob o mesmo título diferentes seqüências rodadas por ele – notadamente a do pólo Norte e as da Primeira Guerra Mundial – e também filmes científicos rodados por outros cameramen . A pilhagem do filme inicial limita-se à sua reorganização em quatro capítulos. 11

Dal Polo all Equatore ilustra o interesse crescente dos cineastas, a partir dos anos 80 e 90, pela “efemeridade” do suporte, sua vulnerabilidade, sua degenerescência. Esse objeto fascinante – o filme – deseja que o suporte sucumba, se dissolva, se pulverize, se dobre, numa palavra, se decomponha.

11 Para uma descrição detalhada da prática dos dois cineastas, ver GIANIKIAN, Yervant e LUCCHI, Angela Ricci. Catálogo do Museu Nazionale del Cinema. Florence: Hopefulmonster editore, 1992.

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Em No damage como no Dal Polo , os cineastas apropriam-se dos filmes para criar um outro: respeitam totalmente o suporte, não se permitindo qualquer deslize para um outro material ou a partir de um outro material. O filme só pode ser gerado por um filme. A essa lógica pertencem o trabalho de Peter Delpeut em Lyrisch Nitrat (1900, fig. 4 ) ou os dois filmes de Gustav Deutsch, Film ist 1-6 (1998) e sua seqüência Film ist 7-12 (2002), que recorrem a empréstimos autorizados de filmes de arquivos. Em contrapartida, Mike Hoolboom, Marc Plas e outros não se embaraçam com tais constrangimentos quando pilham alegremente o cinema: fazem obra de cinema a partir de imagens tiradas de cassetes ou de DVD, fontes mais acessíveis hoje para quem quer trabalhar a partir de representações existentes. Na China, por exemplo, artistas desviam e pervertem filmes publicitários, à semelhança do que faz Negativland 12 em suas emissões de rádio e em alguns CDs. Inúmeros videastas agem assim atualmente, por exemplo, quando têm necessidade de contrariar a informação oficial em caso de conflito armado. Durante a segunda guerra do Golfo, cineastas e videastas produziram filmes veiculados pela internet, que se apresentavam como uma alternativa à propaganda oficial. Outro domínio de apropriação, considerado como um gênero menor e reservado na maior parte do tempo a um uso privado: o cinema pornográfico. Eis o terreno de apropriação de Lary Brose ( De profundis , 1996, fig. 7 ), Steve Reinke (algumas fitas da série The hundred vídeos ), Michael Bryntrupp ( All you can eat , 1993), Yves Mahé ( Fuck , 1999 e Va te faire enculer , 1999). Por vezes os cineastas retomam as mesmas imagens: All you can

eat utiliza seqüências que também encontramos em Barely human . 13 Nos dois casos, trata-se de uma acumulação de planos de rostos de homens ao longo de um dia, extraídos de vídeos hard gay . Para Steve Reinke, essa acumulação de rostos estáticos torna os protagonistas quase inumanos: não completamente fantasmas, de preferência anjos. Por sua vez, De profundis privilegia imagens pornográficas menos familiares (na maior parte datam do final dos anos 20), que são refilmadas e tratadas de modo que sua antiguidade e sua alteração, pelas agressões que o cineasta lhes faz sofrer, sejam palpáveis. A manipulação das imagens, que cria uma textura, torna-as mais táteis. Elas são por assim dizer (visualmente) acariciadas. A insistência em devolver o caráter palpável da película de prata encontra-se nos videastas, quando, por meio de super e subexposições, devolvem uma espessura à imagem, que não passa de uma fina película, mas que se torna pele. Utilizando o vídeo ou o DVD, os cineastas sempre voltam a privilegiar o aspecto material do filme; procuram torná-lo tangível para os espectadores. Mesmo quando escolhem imagens virtuais, buscam fazer passar uma sensação de textura, não se satisfazem com o aspecto liso das novas imagens. Apreciam antes de tudo a materialidade da película, os efeitos estéticos que só o envelhecimento do suporte produz. Portanto, parece bem necessário hoje preservar as imagens animadas, assim como é necessário favorecer o acesso a elas. Os arquivos, os bancos de dados, pertencem freqüentemente a instituições cuja gestão se revela muito difícil, mas são um mal necessário: permitem a salvaguarda e a conservação em condições ótimas e agem como uma memória que se torna viva com a condição de partilharem seus tesouros.

12 Negativland é um coletivo de músicos que questionou a noção de uso respeitoso da reciclagem. Seu combate foi ilustrado quando tomaram emprestado uma canção do U2. Ver o site www.negativland.com. 13 Essa fita é a décima da série The hundred vídeos, de Steve Reinke. Ver o catálogo com o mesmo nome editado por Philip Monk Power Plant, Toronto, 1997.

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Sébastien Layerle Doutorando em estudos cinematográficos e audiovisuais da Sorbonne Nouvelle (Paris III) e professor na Université Michel de Montaigne (Bordeaux III), prepara uma tese dedicada ao cinema militante como testemunho dos acontecimentos de Maio de 68 na França.

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Os murmúrios do mundo

Este artigo foi publicado foi publicado em CinémAction, n. 110, Le cinéma militant reprend le travail. CinémAction-Corlet, 1o trim. 2004. p. 66-73. Tradução de Mauro Pinheiro.

O Ateliê de Pesquisa Cinematográfica em Maio 68

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a Pierre David

a França, o mês de maio de 1968 suscitou no cinema militante três orientações sobre a prática coletiva: as atividades perenes de grupos afiliados a formações políticas ou sindicais, os procedimentos espontâneos de comitês de ação de estudantes, as experiências autônomas executadas alguns meses antes acerca de Loin du Viêtnam, da Universidade Crítica e das primeiras greves com ocupação. Se, por um lado, o Ateliê de Pesquisa Cinematográfica (Atelier de Recherche Cinématographique – ARC) decorre desta última tendência, ele se baseou mais numa idéia de cinema do que numa ideologia política exclusiva. 1 Para seus defensores, esta história de afinidades não foi nada menos do que uma “evidência”.

A FGERI Durante o ano de 1967, a Federação de Grupos de Estudos e de Pesquisas Institucionais (Fédération de Groupes d’Études et de Recherches Institutiuonnelles – FGERI) sediou rodas de discussão nas suas instalações parisienses de Villa des Ternes. As sessões reuniam médicos, psicólogos, professores, interessados nos métodos da

psicoterapia institucional.2 Aplicadas à clínica do Château de La Borde, perto de Blois, elas orientavam as relações entres os que curam e os que são curados no sentido de uma maior abertura para com o mundo. Os exercícios colocavam o paciente em um contexto mais denso e sua “liberação” não pertencia mais ao quadro familiar do Édipo de Freud ou Lacan. Entre outros meios, as artes plásticas, o teatro e o cinema tentavam incentivar a expressão pessoal, deixando a cada um a iniciativa de se exprimir. “Em La Borde, fazíamos filmes que não eram diretamente políticos. O mais importante era abolir fronteiras, fronteiras entre pessoas doentes e sadias, entre cineastas e atores” lembra Jean-Denis Bonan. “Os roteiros eram elaborados pelos internos e nós filmávamos com eles. Isso resultava em filmes cujo produto final não se encontrava sempre à altura de nossas ambições, mas o essencial era o próprio procedimento. O projeto, em si, era muito cativante”. Mireille Abramovici realizou uma oficina audiovisual. Para ela, “as relações encontravam-se subitamente invertidas. Um novo tipo de cinema se abria para nós. Respeitávamos as pessoas que filmáva-

1 Este artigo se seguiu a uma mesa-redonda organizada em Paris, em 13 de maio de 2001, na presença de seis dos antigos membros do ARC, por isso constam apenas os depoimentos deles: Mireille Abramovici, Michel Andrieu, Jean-Denis Bonan, Pierre David, Jacques Kébadian et Renan Pollès. Agradecimentos a Jean-Noël Delamarre. Os filmes do grupo são citados em CinémAction , n. 110, Le cinéma militant reprend le travail , CinémAction-Corlet, 1 o . trim. 2004. 2 Em 1952, o psicanalista francês Georges Daumezon definiu e teorizou a “psicoterapia institucional para designar uma terapêutica nova e dinâmica da loucura que exige uma reforma da instituição dos asilos. As experiências pioneiras datam do início do século XX. Na França, a liberalização das estruturas psiquiátricas se impõe durante a Segunda Guerra Mundial através do engajamento político e da resistência antinazista. A partir de 1943, em Saint-Alban em Lozère, os terapêutas e militantes Lucien Bonnafé (comunista) e François Tosquelles (libertário) realizam seminários num hospital sobre psiquiatria comunitária. Em 1969, no domínio da FGERI, da crítica institucional e da antipsiquiatria (cujo resultado é o L’Anti-Œdipe , escrito em 1972 com Gilles Deleuze), Félix Guattari cria o Centro de Estudos, Pesquisa e Formação Institucional (CERFI), que publicará a revista Recherches .

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mos. Aprendíamos muito sobre elas. Eu sei, por exemplo, que Jean-Denis maquiou os doentes. Cada maquiagem era feita de acordo com a vontade daquele que era filmado. É verdade que não era algo muito comum na obra dos cineastas que admirávamos. Era um terreno que estávamos explorando, mesmo se havia Jean Rouch e Joris Ivens”. Libertária, esta prática terapêutica diz respeito à sociedade inteira. Seus defensores nunca censuraram suas fortes convicções e seu engajamento político. Jean Oury e Félix Guattari cuidaram do estabelecimento de Cour Cheverny. Fernand Deligny e Jean-Claude Polac trabalharam nesse local. Em plena contestação à intervenção americana no Vietnã, essa quarta geração de psicanalistas, esquerdista, procurou meios de estender a “liberação” dentro e fora das fronteiras, apoiando movimentos antiimperialistas. Para alimentar as discussões, eles têm a idéia de filmar os movimentos sociais e as lutas que estão ocorrendo naquele momento. Jean-Claude Polac apresenta a equipe de cinema de La Borde a um jovem assistente de Robert Bresson, em um momento considerado oportuno para mostrar os textos de Anton Tchekhov e Edgar Poe com os internos. Jacques Kébadian criou um pequeno grupo de realização com antigos colegas do Institut des Hautes Études Cinématographiques – IDHEC (Françoise Renberg, Michel Andrieu, Renan Pollès). Após algumas filmagens selvagens, esta associação informal de amigos cria um projeto de atualidades revolucionárias, sem diretriz nem motivo de adesão. Algo original em uma década que tem como exemplo a militância coletiva, a partir da qual surgem os movimentos de extrema-esquerda, o Comitê Vietnã e o Comitê de Ação Estudantil.

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O IDHEC Se, por um lado, todos condenaram desde a adolescência o modelo stalinista e apoiaram as mobilizações anticolonialistas, Jacques Kébadian é o único nessa época a aderir a um engajamento coerente com as militâncias dos anos de 1960. Durante a guerra da Argélia, ele apóia a FLN (Frente de Libertação Nacional). Quando da revolução cultural chinesa, ele estabelece novos laços com as organizações trotskistas e maoístas. Seduzido pela presença de uma jovem moça que vendia o jornal Garde Rouge na rua, “um pouco como Jean Seberg em A bout de souffle” (no Brasil, Acossado), ele adere à Juventude Comunistas Revolucionária, mas defende o Pequeno livro vermelho. Nesse mesmo momento, Michel Andrieu e Renan Pollès evoluem em uma “espécie de margem ideológica”.3 Eles recordam ter preferido as inflexões de “Socialismo ou barbárie” e da Internacional Situacionista às orientações marxistas-leninistas. “Sempre tivemos vontade de ter um grupo paralelo a todos os projetos pessoais de filmes de cada um”, diz Michel Andrieu. “Nós tínhamos em mente um trabalho coletivo político e social”. Durante o inverno de 1963, eles convenceram seus colegas a filmar a grande greve que paralisava as minas de carvão no norte da França, e que a ORTF não estava cobrindo. Os operários do setor nacionalizado pediam um aumento de salário. O governo Pompidou estabeleceu contra eles um decreto impopular de requisição que estendeu o conflito até o mês de abril. Após as filmagens em Valenciennes, a equipe improvisada deixou seus rushes (positivos de filme) nas mãos de uma seção local da CGT. O filme desapareceu. Uma lição foi tirada desse acidente, quatro anos mais tarde, nas primeiras manifestações sindicais contra as reformas que queriam efetuar no estatuto da Previdência Social.4 Entre essas

3 Seu perfil se assemelha ao dos “ativos inorganizados” evocado por Élisabeth Salvaresi (“Chamo de inorganizados os numerosos militantes que, não se reconhecendo no seio de nenhuma organização, e com freqüência hostis à própria idéia de organização, ainda assim executavam ações políticas e contínuas”, Mai en héritage, coll. Alternatives, éd. Syros, 1988, p. 11). 4 Na primavera de 1967, em vez de se esgotar em confrontos parlamentares, o quarto governo Pompidou tomou a via contestada das ordenações. Cinco setores estão envolvidos: o emprego (criação da Agência Nacional para a Proteção do Emprego), a reforma da Previdência Social (fim do regime de gestão das caixas por administradores eleitos pelos assegurados), a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, sua adaptação à concorrência, e a modernização ou reconversão de determinados setores de atividade.

duas datas, e durante o período que separa o final da guerra na Argélia e as manifestações de solidariedade ao povo vietnamita, todos tiveram oportunidade de realizar seu primeiro curta ou de trabalhar na assistência ou na montagem.5

namento histórico. A ascensão simultânea das técnicas leves e sincrônicas serve de resposta formal a este “desejo de contemporaneidade”.6 Autoriza um projeto que era considerado subversivo na época: o direito de se exprimir.

Cinéfilos, eles constituem uma geração que freqüentava assiduamente a cinemateca. Suas primeiras paixões são o cinema clássico e o film de genre, aos quais dedicaram seus trabalhos quando estudantes. O que não significa que suas temáticas permanecessem insensíveis às emoções que afetavam direta ou indiretamente a sociedade francesa. Lembra Jacques Kébadian que, “no IDHEC e mesmo durante o ano de preparação ao concurso para o liceu Voltaire, existiam realmente duas tendências, Alain Resnais e Jean-Luc Godard: um cinema marxista, Hiroshima mon amour e, do outro lado, A bout de souffle. Pelo seu estilo, Godard era freqüentemente tratado de fascista pelos marxistas, enquanto Robert Bresson e Jean Grémillon eram rotulados como cristãos. Eu não concordava com isso, mas havia uma ideologia muito severa e brutal que dizia respeito ao conteúdo e ao estilo”. Renan Pollès vai ainda mais longe. Segundo ele, não se podia tomar uma posição de maneira pertinente sem fazer escolhas de ordem estética. “Eu tinha a impressão de que o que era verdadeiro no cinema era revolucionário, que o que era falso e relativamente trabalhado era de direita, e que os problemas eram mais artísticos do que políticos”. Com relação a isso, o grupo revela-se pragmático: vê o ato cinematográfico como um posicio-

A circunscrição da FGERI se adapta às aspirações de cada um: o instante comanda, as divergências políticas são consideradas ultrapassadas e a palavra é mais dada do que tomada. No último trimestre do ano de 1967, um local de reunião lhes é oferecido. Eles ainda são apenas um círculo de reflexão a respeito do lugar e do status do cineasta.7

A Universidade Livre Em 1967, a mobilização contra a guerra do Vietnã se radicaliza. Como reflexo à falta de reação dos líderes ocidentais, os grupos de protesto ficam cada vez mais numerosos.8 Para muitos, desde o estudante até o operário, o conflito é uma forma de contestar a ordem mundial do pós-guerra e as diferentes formas de opressão. Cabe somente ao estudante materializar os comportamentos de revoltas antiautoritárias. Na França, greves selvagens estouram em várias zonas industriais do interior (Besançon, Mulhouse, Caen, Redon). Os jovens trabalhadores criticam a ação sindical dos mais velhos e denunciam suas condições de trabalho. Responsável pelo texto coletivo Loin du Viêtnam (março-dezembro),9 o grupo SLON se dedica a esses centros de con-

5 Durante o verão de 1967, Jacques Kébadian assina um primeiro curta-metragem engajado, Trotsky (50min, 16mm, Cor). 6 A expressão é de Pascal Ory (“Introduction à l’histoire culturelle de l’après-Mai”, La décentralisation théâtrale: Mai 68, le tournant , tome III, Cahiers n. 8, éd. Actes Sud Papier, 1994, p 169 e s.). As experimentações espontâneas com a obra nos happenings dos anos de 1960 traíam uma obsessão da historicidade. Confundem duas concepções artísticas: uma vida a serviço da arte (criação) e uma arte a serviço da vida (intervenção). 7 Foi em dezembro de 1967 que se fixou o nome Atelier de Recherche Cinématographique – ARC. O nome é sóbrio, neutro, para evitar problemas com a censura ou as forças militares, apenas explícito para pretender um status associativo que o grupo acabou não registrando. 8 O Comitê Vietnã, constituído em novembro de 1966 contra a intensificação da intervenção americana, está na origem de várias manifestações em 1967 e 1968. Em maio de 1967, as organizações de apoio à China da União da Juventude Comunista Marxista-Leninista (UJCML) e do Partido Comunista MarxistaLeninista da França (PCMLF) criaram seus próprios comitês Vietnã como base de apoio ao povo vietnamita. No final de 1967 e durante todo o ano que se seguiu, comitês estudantis de ação prolongaram suas ações, mas não sobrevivem a Maio de 68. 9 A produção francesa conduzida por Chris Marker, Loin du Viêtnam (1967) é um manifesto coletivo reunindo mais de uma centena de cineastas, atores e técnicos profissionais, “em solidariedade ao povo vietnamita em sua luta contra a agressão”. O filme foi convidado a participar de muitos festivais internacionais (Montreal, Nova York, Leipzig) e de avant-premières (usina Rhodiaceta de Besançon, Théâtre National Populaire em Paris), antes de ser lançado para o público no dia 13 de dezembro de 1967 em quatro cinemas parisienses.

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Daniel Cohn-Bendict, líder estudantil francês, convocando alunos da Universidade de Frankfurt à greve. Frankfurt, Alemanha, 24/5/1968. Acervo Correio da Manhã

Policiais detendo manifestante contrária à intromissão americana na Guerra do Vietnã. s.l., 11/5/1972. Acervo Correio da Manhã

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testação, chegando a entregar sua “câmera aos operários”. O ARC investe então seu tempo em um movimento estudantil, disposto a se unir contra o imperialismo e contra essa “miséria” que toma conta do meio universitário.10 No dia 20 de dezembro, em Paris, a Mutualité é invadida por ordem dos comitês de base. Três mil pessoas fazem uma homenagem ao sétimo aniversário da Frente Nacional de Liberação. Na noite do 29 ao 30 de janeiro, a ofensiva do Têt liderada pelo Vietnã do Norte desestabiliza as posições americanas em Saigon e nas grandes cidades do Sul. Alguns dias mais tarde, a parte ocidental de Berlim acolhe o Congresso Internacional de Solidariedade à Revolução Vietnamita. Quinze países europeus são representados e, ao mesmo tempo, surge a Juventude Internacional. O Ateliê envia sua primeira equipe de filmagem. Foi feita uma associação na ocasião com Paul Bourron, que, no verão anterior, filmara em Havana um curta-metragem didático sobre a conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade. No dia 17 fevereiro, num anfiteatro da escola técnica, foi com duas câmeras que os operadores parisienses filmaram a intervenção de Rudy Dutschke. O líder da Alemanha Oriental da Federação de Estudantes Socialistas propõe a possibilidade de uma terceira via, entre o capitalismo conquistador do Ocidente e as ditaduras burocráticas da Europa Oriental. Antes e durante a manifestação do dia seguinte, o grupo realiza encontros com os principais fundadores da Universidade Crítica. 11 De volta à França, todos se sentiram entusiasmados por terem participado de um momento importante da história. Dois filmes são realizados: uma crônica (Berlin 68) e o retrato de um estudante engajado (Université critique: Sigrid).

Na Alemanha Federal, a equipe conheceu simpatizantes da Juventude Comunista Revolucionária. Seus membros cruzaram também com Daniel Cohn-Bendit, que foi convidado às sessões de montagem. A seu pedido, Michel Andrieu, Jacques Kébadian e Renan Pollès projetam filmes antiimperialistas no campus da Faculdade de Letras de Nanterre. Só alguns dias depois eles resolvem filmar, quando o projeto de uma universidade crítica parisiense vem à tona. No dia 22 de março, o anúncio da prisão de quatro estudantes secundários acusados de terem pilhado uma loja da American Express, praça da Ópera, provoca a ocupação do prédio administrativo da faculdade. Na mesma noite, o Manifeste des 142 leva à criação de um movimento unitário, predominantemente espontaneísta e libertário, do qual se aproximam os membros do ARC. Ao final dos feriados de Páscoa, as manifestações e os combates com as forças de ordem se intensificam. No dia 2 de maio, durante a “Jornada de estudos sobre o imperialismo”, a ameaça de uma ofensiva do grupo de extrema-direita Occident cai sobre os enragés (furiosos). Oito dentre eles são intimados a comparecer na segunda-feira seguinte ao conselho de disciplina da Universidade de Paris. À tarde, Michel Andrieu e Jacques Kébadian exibem um filme sobre o Black Power no lugar e na hora da aula de René Rémond. O professor é violentamente vaiado quando tenta retomar sua aula. Mais tarde, o reitor Roche e o decano Pierre Grappin, sob ordens do ministro Alain Peyrefitte, decidem suspender as aulas até que a ordem seja restabelecida. Os estudantes reagem preparando para o dia seguinte um protesto no pátio da Sorbonne.

10 Da miséria no meio estudantil, considerada sob todos os seus aspectos, econômico, político, psicológico, sexual e sobretudo intelectual, e de quaisquer meios para remediá-la , folheto situacionista da Associação Federativa Geral dos Estudantes de Strasbourg, novembro de 1966. 11 Criada em 1962 por Tom Hayden, a Universidade Livre berlinense provocou diversas reformas pedagógicas e administrativas, inclusive a criação de um Parlamento Estudantil. Pressionada pelas instâncias dirigentes favoráveis aos interesses americanos por intermédio da OTAN e após o assassinato do estudante no dia 2 de junho de 1967 por um policial à paisana, durante a visita do xá do Irã à Alemanha Federal, ela radicalisou suas posições. No dia 11 de julho de 1967, foi fundada a Universidade Crítica na presença de Herbert Marcuse, um dos filósofos da Escola de Frankfurt, com considerável influência sobre os estudantes.

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Esses prelúdios deixaram marcas: Ce n’est qu’un début é um desses raros filmes que foram exibidos durante a primavera de 1968. Seu lançamento foi no dia 20 de maio.

No coração dos acontecimentos O grupo filma, monta e exibe sem interrupção durante três meses. Dispondo de seu próprio equipamento e com alguns subsídios, fazem um investimento em películas.12 No dia 11 de abril, após a tentativa de assassinato contra Rudy Dutschke, um canal de televisão compra alguns minutos de imagem de Berlin 68 . Quando o Quartier Latin se inflama, o Ateliê é um dos primeiros grupos a chegar ao local. Em 14 de maio, Michel Andrieu e Pierre-William Glenn se encontram em Nantes, militando pela Organização Comunista Internacionalista. Em conflito declarado com a direção há mais de um mês, os operários de Sud-Aviation-Bouguenais são os primeiros a ocupar sua fábrica. No dia 3 de maio, Pierre David junta-se à ARC aconselhado por Chris Marker e Mario Marret. Seu testemunho ilustra muito bem o estado de espírito com o qual eles abordam o acontecimento. “Na época, me atraía o que propunham os situacionistas. Era uma verdadeira linguagem política: Onde está a verdade? Ela é visível? O cinema a pode transmitir e, aliás, para que serve? Trata-se somente de uma imagem a serviço do sonho e do comércio, ou pode-se fazer com ele o que se faz com a literatura, ou seja, novelas ou ensaios? Não éramos doutrinados. Queríamos saber como nos organizar, onde encontrar pelí-

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cula, um telefone, uma motocicleta, e quem filmaria o quê. Antes e durante Maio de 68, algo se parte de maneira fundamental: todo mundo pode falar. As propostas e as ações são simultâneas. Armazenam-se ao máximo imagens e sons. Mais tarde veremos o que fazer com eles, sabendo muito bem que temos nas mãos um tesouro que não nos pertence. Somos uma espécie de escritores públicos. Tudo é inacreditável. É a primeira vez que me digo: ‘Estou numa manifestação e não é por estar com uma câmera que não posso me manifestar como os outros!’ O comportamento militante é ao mesmo tempo filmar e ser um ‘manifestante filmando’. As duas coisas não se separam. Daí uma certa humildade. O fato de termos uma câmera não nos faz mais fortes que os outros. E sinto-me incapaz de analisar aquele movimento. Não disponho de um sistema de leitura. Sei apenas que estou contente. Politicamente, aqueles momentos representam exatamente algo que me seria difícil acreditar, ainda que me houvessem apresentado isso três ou quatro meses antes. Uma espécie de júbilo: a idéia de que a verdade vai se revelar por si só.” Graças à mobilização do mundo do audiovisual em Maio de 68, o ARC se beneficia de um auxílio técnico por parte da Films de la Guéville (Yves Robert e Danielle Delorme), do Serviço de Pesquisa da ORTF em greve e da Comissão de Produção. Ele se enriquece igualmente com os recém-chegados, 13 que permitiram a criação de cinco equipes que invadem as ruas da capital, as universidades e as fábricas. Segundo Jean-Denis Bonan, surge um “cinema bruto, balbuciante, fundido nos movimentos”. As reuniões cotidianas existem para coordenar cada filmagem e para orientar as sessões de pré-montagens, ao sabor dos eventos. O Ateliê leva seu apoio à realização de

12 É preciso, ainda, lembrar aqui as condições técnicas de filmagem de documentário na época: câmeras Coutant 16 mm e gravador Nagra, os dois ligados por um fio, e utilização de película preto e branco – a cor era um luxo reservado à ficção. 13 Jean-Noël Delamarre, Nathalie Perret, Daniel Ollivier, André Glucksman são amigos próximos. Anna Rosenheim, François Lecoeur tiveram presença ativa na época. Jean-Pierre Thorn e Jean Lefaux, cansados de assistir a assembléias, passam a freqüentar as reuniões, antes de ir filmar cada um de seu lado (Oser lutter, oser vaincre e Écoute Joseph, nous sommes tous solidaires ). Algumas mudanças pontuais ocorreram com Claude Miller, Gérard de Battista, Pierre-William Glenn, Paul Bourron, Romain Goupil, Walter Ball, Sophie Tatischeff... No momento da separação em 1969, o ARC contava com uns vinte membros.

novos trabalhos: o explosivo Brigadier Mikono de Jean-Michel Humeau, e um projeto em duas partes de Boudjema Bouhada sobre os Travailleurs immigrés, infelizmente perdido. O grupo funciona então como uma verdadeira agência de notícias independente. Da mesma forma, as relações com os États généraux du cinéma são pelo menos conflituosas, e assim permanecerão. Em 1969, quando a Associação com o mesmo nome lança a idéia de uma “centralização da produção e difusão” que permita a partilha das conquistas de Maio de 68, o ARC opõe sua autonomia de funcionamento, gestão, difusão e seu modelo de “democracia organizacional”.

O futuro dos filmes Após os sobressaltos da primavera, o Ateliê conta com milhares de metros de película. Uma parte do material desapareceu durante tratamento em laboratórios clandestinos, franceses ou estrangeiros. Algumas imagens seduziram certos cineastas (JeanLuc Godard, por exemplo, Un film comme les autres),14 ou gerou a cobiça de pessoas mal-intencionadas. O essencial, contudo, foi preservado. Os membros do Ateliê pensam em realizar um “filme total” que, ao longo de mais de um ano, trace o panorama dos movimentos de luta na França. Diferente do filme de síntese desejado pelos États généraux du cinéma, este projeto nasceu apenas de uma premonição. “Em 1967, recorda-se Michel Andrieu, tínhamos decidido não finalizá-lo imediatamente. Achávamos que era preciso continuar a filmar os eventos sociopolíticos do momento antes de fazer um filme. Não sabíamos muito bem que filme, apenas que era preciso estarmos lá, e filmar.”

Diante dos acontecimentos, um conjunto de roteiros foi improvisado sobre temas incertos: a violência, a solidariedade entre estudantes e trabalhadores, a experiência de um comitê de ação de um bairro, e a greve no setor terciário. Durante o verão de 1968, os capítulos intermediários destinados a se fundirem num conjunto mais denso começam a surgir. A equipe se reúne para definir o sentido da montagem final. E fracassa diante da amplitude da tarefa. Os quatro episódios se tornam entidades autônomas, oscilando entre o agit-prop (agitação e propaganda política) e a crônica. Se a personalidade e o estilo de seus autores são perceptíveis, todos respeitam o anonimato dos sujeitos originais e a natureza coletiva de sua concepção: Le joli mois de mai, Le droit à la parole, Comité d’action du Treizième Arrondissement e Galeries Lafayette. Esta última reportagem, realizada por Renan Pollès, Nathalie Perret e Jean-Noël Delamarre, nunca será mostrada. Ao final do mês de junho, Pierre David parte para os Estados Unidos. Com bobinas na mala, ele encontrará os principais coletivos norte-americanos: American Documentary Films e, sobretudo, Newsreel,15 do qual o ARC se tornou interlocutor privilegiado depois da manifestação de Berlim. O intercâmbio de filmes e de catálogos prossegue: o sonho é a criação de uma rede internacional de difusão militante. No outono, Montreal realiza uma semana do cinema militante. Todo um programa dedicado ao Maio de 68 da França. Na Europa, o grupo está em contato com seus homólogos belgas (La ligne générale), alemães, italianos, suecos e tchecos. Algumas cópias são enviadas para a África (Nigéria) e América Latina (Argentina, Uruguai). Através de Anatole Dauman, Le droit à la parole consegue mesmo agradar a Columbia. Uma ver-

14 No IDHEC, Jean-Luc Godard encontra Michel Andrieu, que finalizava Joli mois de mai : “As imagens de Maio são você. Não quero escolher. Vá até o laboratório e tire um minuto a cada dez minutos”. 15 Newsreel foi criada no outono de 1967 por Robert Kramer, Dan Brown e Robert Lacativa. Entre Nova York e San Francisco, o grupo realiza documentários políticos e filmes de agitação social, opondo-se ao tratamento das notícias mostradas pela TV americana.

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são em inglês é feita em 35 mm com o título The right to speak. À exceção de filmagens em algumas áreas industriais em greve em 1969 (Thomson, Rhône-Poulenc, Solac Thionville…), os esforços do grupo se concentram na distribuição: produções internas, de cineastas amigos ( CitroënNanterre de Guy Devart e Edouard Hayem, Oser lutter, oser vaincre de Jean-Pierre Thorn, Le Cheminot de Fernand Moskowitz…), e filmes de banc-titre (dispositivo para filmar imagens fixas ou genéricos) estrangeiros traduzidos. A atividade, porém continua arcaica e limitada. Trata-se de uma “difusão física” (levar o filme à estação de trem, participar da projeção), dependente de redes paralelas já constituídas. Neste aspecto, os antigos membros do ARC fazem sua autocrítica. Ao final de 1968, ainda que fossem profissionais do cinema, eles são também, e cada vez mais, militantes. Temendo uma recuperação “burguesa” e para conservar sua independência, eles limitaram o futuro de seus trabalhos proibindo sua promoção (imprensa e festivais).

Em outros lugares Em agosto de 1968, as coisas mudam. A Tchecoeslováquia é invadida pelo Exército Vermelho. Em janeiro de 1969, uma parte da equipe (Jean-Denis Bonan, Pierre David e Daniel Ollivier) dirige-se para Praga. “Quando tudo aconteceu, observa Pierre David, ninguém conseguiu recuperar aquela inverossímil palavra de ordem: ‘só resta reinventar a vida’. Nos debates, viu-se o retorno de pessoas que tinham uma prática verdadeira do discurso político. Fiquei realmente incomodado quando começaram a me dizer ‘Venha, vou explicar para você o que é a luta de classes!’”

16 MORIN, Edgar. Mais , éd. Néo, 1988, p. 111.

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Edgar Morin escreveu que “a difusão do marxismo corresponde à degeneração e à fossilização das idéias de Maio. Isso significa que o pós-Maio é um curso regressivo onde se degeneram as idéias regeneradoras e se fossilizam as idéias primaveris”. 16 No último trimestre de 1969, o grupo se separa. Sem atrito. Para Renan Pollès, o frágil equilíbrio no qual haviam apostado os membros da equipe estava em mau estado: “Havia reuniões das quais todos participavam. Nessas ocasiões, havia discussões políticas e discussões práticas. As discussões políticas não se sobrepunham nunca porque tínhamos enormes problemas práticos a resolver. Assim que Maio de 68 passou, a tendência se inverteu”. Jacques Kébadian acrescenta que “foi através da ação que o espírito do grupo manteve-se bastante aberto antes e durante Maio de 68. Após a queda do movimento, houve subitamente escolhas individuais. Nos demos conta de que a revolução era possível. Cada um deve ter dito a si mesmo ‘vou continuar, mas em outro lugar’. Quando isso foi percebido, houve uma reação partilhada: tudo que o grupo havia conquistado permaneceria, fazia parte do movimento e não pertencia a ninguém em particular. Isso foi respeitado até hoje. Esses filmes ficaram no espírito em que foram feitos. Não foram recuperados por nenhum de nós”. Esta ruptura consentida é um reflexo da associação. Alguns voltaram ao cinema ou à televisão. Outros mantiveram seu compromisso com o nome do grupo Eugène Varlin, tendo um único curta-metragem, Albertine ou les souvenirs parfumés de Marie-Rose (1974). Jacques Kébadian ingressou num comitê de base de Vive la révolution! depois se tornou ‘fixo’ na fábrica de Valentine de Gennevilliers. Michel Andrieu participou das primeiras experiências de vídeo militante com Cineastas Revolucionários Proletários. Em 1973, Jean-Denis Bonan e Mireille Abramovici fundaram o Cinélutte com seus camara-

das do IDHEC e de Vincennes, 17 coletivo que deu origem a uma rede dinâmica de produção e difusão militante (das universidades e das fábricas ao reconhecimento dos festivais). Freqüentemente, se reencontraram para trabalhar juntos em projetos sem que, em momento algum, surgissem problemas de paternidade. Em 1978, a experiência anterior chega a uma conclusão com a apresentação da íntegra de seus filmes no programa Mai 68 par lui-même, exibido no cinema Saint-Séverin, em Paris, 18 pelas Productions de la Lanterne. Uma alternativa e uma vitória evidentes num momento em que as imagens de Maio são recuperadas como arquivos sem jamais terem existido como filmes.

"Onde então está a verdade? De frente ou de perfil? E antes de mais nada, o que é um objeto? Talvez seja aquilo que permite unir... passar de um

sujeito a outro, e assim viver em sociedade, estar junto. Mas então, posto que a relação social é sempre ambígua, posto que meu pensamento divide tanto quanto reúne, que minha palavra aproxima pelo que exprime e isola pelo que se cala, que uma fossa imensa separa a certeza subjetiva que tenho de mim mesmo e a verdade objetiva que sou para os outros, posto que não paro de me sentir culpado enquanto me sinto inocente... Posto que cada acontecimento transforma minha vida cotidiana, que fracasso incessantemente na comunicação, quero dizer em compreender, amar e me fazer amado, e que cada revés me traz a solidão... Posto que não posso me extirpar da objetividade que me esmaga nem da subjetividade que me exila, posto que não me é possível elevar-me até o ser, nem cair no nada, é preciso que eu ouça. É preciso que eu olhe ao meu redor mais do que nunca... O mundo... Meu semelhante. Meu irmão..."

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Jean-Luc Godard, Deux ou trois choses que je sais d'elle, 1967

O cineasta Jean-Luc Godard e os poetas Alain Jouffroy e Eugène Guillevic, dentre outros, participando da passeata do Sindicato dos Atores Franceses. Paris, 29/5/1968. Acervo Agence France Presse

17 Ver em CinémAction n. 110, 1 o trim. 2004, entrevista com Richard Copans por Monique Martineau e Valérie Loiseau. 18 Três sessões serão propostas: “L’imagination et les armes du pouvoir”, “Sous les pavés, la grève” e “L’histoire minutueuse”. Foi nessa ocasião que se apresentou pela primeira vez o filme de William Klein, Grands soirs et petits matins .


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A cantora Janis Joplin no carnaval carioca e ao fundo, à direita, o disc-jóquei Big Boy. Rio de Janeiro, 9/2/1970. Acervo Correio da Manhã


Ilana Feldman Formada em Cinema pela Universidade Federal Fluminense; colaboradora da revista eletrônica Cinestesia; diretora; e realizadora das mostras “Miragens do sertão” e “A tela aberta – ilusões da democracia”

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Depois das revoluções... “O único que tem mais ilusões que o sonhador é o homem de ação”

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Oscar Wilde, citado em Antes da Revolução, de Bernardo Bertolucci

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esde a segunda metade do século XX, o cinema tem-se dedicado a tematizar revoluções políticas de diversos grupamentos humanos e nações, respondendo a uma legítima necessidade de construção de história, memória, povo e país. Como já escreveu Hobsbawm, se “toda história é um discurso de exclusão”, ou seja, se todo discurso histórico é a eleição de uma perspectiva em detrimento de outras, cabe a cada cineasta, seja motivado por interesses oficiais ou pessoais, privilegiar seu ponto de vista, criar imagens para determinados fatos históricos e, assim, instaurar suas interpretações. Em Ararat (2002), de Atom Egoyan, isso é radicalizado. O personagem de um cineasta armênio, empenhado em mostrar em um filme o massacre contra seu povo negado pelos agressores turcos, reinventa o episódio histórico, permitindo-se liberdades factuais para atender a sua meta. A arte deixa de representar a história oficial, nesse caso, e passa a construir uma história própria, sem compromisso com a objetividade, mas apenas com a necessidade de um povo. Nenhum olhar, portanto, é imparcial. Nietzsche bem nos mostrou, em sua crítica à “vontade de verdade” ocidental, que “não existem fatos, só interpretações”. Isso não significa que todas as interpretações se equivalem, ao contrário, é preciso avaliá-las constantemente, o que não quer dizer julgá-las em nome dos “valores superiores”, da origem moral da noção de verdade, e sim avaliá-las em nome da vida, à qual nenhum valor superior se superpõe. Segundo o filósofo, a

vida é em si mesma inocente, tem a inocência do devir, mas já as interpretações, estas são sempre interessadas. E os interesses, às vezes, são acima de tudo manipulações conscientes de transformações operadas na história, como nos mostra Ararat, assim como quase todo o cinema de programa ideológico ou propaganda de Estado. Em um documentário como O triunfo da vontade (1936), de Leni Riefenstal, por exemplo, a imagem atende ao interesse de um partido, o Nacional-Socialista, e modela forma, fatos e contextos para, em última instância, criar a imagem que Hitler queria para a Alemanha. Era o que Walter Benjamin1 chamava de “estetização da política” em detrimento da “politização da arte” operada pelo cinema soviético dos anos de 1920, tendo à frente Sergei Eisenstein e Dziga Vertov. Para Benjamim, só o regime socialista estaria apto a produzir obras verdadeiramente revolucionárias, cuja forma e conteúdo estariam sintonizados com um projeto de transformação ampla da sociedade. Os soviéticos, é preciso ressaltar, não fizeram um cinema revolucionário porque apenas atenderam ao chamado do Estado, mas porque revolucionaram a arte mesmo estando a serviço de um programa político. Ainda hoje permanecem como referências fundamentais, sobretudo, por suas conquistas artísticas, tendo introduzido no cinema as primeiras teorias sobre montagem, herdadas pelo cinema mundial décadas afora. Vinculado à postura de Walter Benjamin, em O que é cinema? (1980),2 Jean-Claude Bernardet

1 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política : ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. 2 BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 1981.

nos advertia que “o grande capital não financiaria uma produção que não se enquadrasse nos seus interesses ideológicos ou financeiros”. Recolocamos a questão: é possível o grande capital financiar um filme revolucionário? Mas, o que é um filme revolucionário? Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, em seu momento histórico, não foi? Ou a arte revolucionária só é assim considerada apenas porque está a serviço de organizações políticas? No plano conceitual, identificamos um paradoxo. Como se manter em um projeto de cinema revolucionário quando o grupo ao qual o cineasta adere assume o poder, substituindo o programa de transformações radicais por estratégias de manutenção desse mesmo poder, por meio de uma arte engajada propagandística? O cinema revolucionário também é assim considerado se tem como principal tarefa perpetuar uma classe ou um grupo no poder? Isso não seria um cinema conservador?

Revolução: restauração ou transgressão? O conceito de revolução, como conhecemos e do qual fazemos uso, tributário da teoria marxista, tem origens mais remotas, aquém do século XIX, pelas quais seria interessante de início caminhar. 3 Cotidianamente, não discordamos quanto ao fato de que toda revolução é a tentativa, acompanhada do uso da violência, de uma subversão total da ordem constituída, por meio de mudanças profundas nos sistemas político, social e econômico.

Orson Welles. s.l., 10/1/1965. Acervo Correio da Manhã

Se foi Karl Marx quem deu a forma completa e um fim ainda mais grandioso à revolução, laboriosamente lapidada como instrumento essencial para a conquista da liberdade – identificada com o fim da exploração do homem pelo homem e com a possibilidade de realização de justiça social –, tal definição, em seu início, era desprovida de um uso propriamente político. Criada na Renascença, numa referência ao lento, regular e cíclico movimento dos astros, no qual um corpo móvel volta à sua posição inicial, a palavra revolução indicava que as mudanças políticas não se poderiam apartar de “leis” universais implícitas. Foi somente no século XVII que o termo adquiriu significado político, designando o retorno a um estado antecedente de coisas, a uma ordem preestabelecida que foi perturbada. A idéia de revolução não era, assim, entendida como a instauração de algo original e inédito, mas, ao contrário, como uma re-volução a um estado

3 Tomo como referência BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Ed. UnB, 1997. v. 2.


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justo e ordenado que havia sido perturbado, ou seja, como restauração. Contudo, foi durante a Revolução Francesa que se verificou uma mudança decisiva no significado do conceito de revolução: de mera restauração de uma ordem perturbada pelas autoridades, se passou à fé na possibilidade de criação de uma ordem nova. Sob as formulações teóricas dos iluministas, a razão se erguia contra a tradição ao legislar uma constituição que assegurasse não só a liberdade, mas trouxesse a idéia de felicidade ao povo. Podemos dizer que o conceito de revolução, entendido em sua etimologia e em seu uso original, é um conceito, enquanto restaurador, também conservador. E essa associação entre revolução/conservação é aqui fundamental para pensarmos uma múltipla gama de filmes sobre revolução, que fazem de diversas revoluções seus temas, seus assuntos, seus discursos, mas sempre na imagem e nunca da imagem. Em oposição a estes, certamente escassos, estão os filmes propriamente revolucionários, cujos discursos são a própria linguagem. Rogério Sganzerla, um dos nossos grandes inquietos e revoltosos, dizia, apropriando para o cinema uma famosa frase de Maiakovski, que “não existe cinema revolucionário sem forma revolucionária”. Mas o que seria revolucionário hoje, quando a quase totalidade de experimentações estéticas já foi incorporada, estilizada, quando não normatizada? E qual seria o sentido de revolução depois do fim da Guerra Fria, das guerras de descolonização, da revolução sexual e ascensão das democracias liberais no mundo ocidental? Como não fazer com que esta palavra soe anacrônica, démodé, quase arcaizante e esvaziada de seu potencial político? Como convocar uma revolução no/do presente, se a própria noção de povo, imprescindível à revolução, foi também esfacelada? Como pensar em povo se o alicerce desta categoria, o trabalho, transformou-se em promessa e deixou de ser condição? E, por ora, como transformar todas essas questões em cinema, num cinema cujo devir seja revolucionário, sem que tal adjetivo seja minado em sua força instauradora de mundos, sem que tal adjetivo seja, apenas, nicho de

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mercado? E como driblar um mercado internacional cuja quase totalidade dos filmes simpáticos às reações populares ou contra a tirania reproduzem a normatização narrativa do sistema contra o qual estão se colocando? Em 1964, Luchino Visconti, de família nobre e marxista, refletia sobre os impasses de sua época, ao adaptar para o cinema o romance do escritor Giuseppi Tomasi de Lampedusa, acerca do imobilismo nas mudanças políticas durante o período de unificação italiana. No belíssimo O Leopardo, dois personagens, Tancredi e seu tio, o príncipe Fabrizio de Salina, repetem a mesma frase: “Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”. Visconti sabia que o aburguesamento do país, em meados do século XIX, não pressupôs o rompimento com a nobreza, e sim a assimilação dela no novo sistema, com a absorção de seu status e seus valores. Também sabia que a frase de Lampedusa tinha duplo alcance: valia para os anos de 1860, época retratada no filme, e para os anos de 1964, quando nada, na configuração político-econômica da Itália, havia mudado significativamente, apenas os personagens nos bailes do poder. Também em Fahrenheit 9/11 (2004), Michael Moore, o polêmico representante do atual cinema político, também chamado por alguns de “documentário de guerrilha”, evoca George Orwell, em 1984: “A conseqüência de uma guerra é manter intacta sua estrutura social” ou, ainda, “uma guerra não é para ser ganha, mas para ser eternizada”. Esta última assertiva parece refletir sobre a conseqüência espetacular de um conflito belicoso e sobre o próprio método do diretor. Como fugir do assédio de um espetáculo bélico ou de uma representação espetacular de uma revolução? Michael Moore, a despeito de sua montagem de eventos espetaculares, resolve magistralmente a cena do 11 de setembro. Não dá imagem a uma imagemevento já institucionalizada pelo governo Bush, em torno da qual se construiu e se legitimou toda a operação de contra-ataque. No lugar das imagens dos aviões explodindo nas torres e estas desmoronando no ar, prefere filmar as pessoas que ficaram no solo, suas reações às perdas, humani-

zando o atentado que, de outro modo, era visto apenas sob a ótica do ataque. Esta simples seqüência é um exemplo de como um novo recorte, realizado pela transformação de um material já existente, instaura uma nova forma de percepção de um evento já tão sedimentado pelas imagens que nos bombardeiam. Possibilidade e potência criadora de qualquer cinema colado em seu momento histórico, cujas questões contemporâneas entram em conflito, quando não em choque, com o próprio presente. Porque a revolução, seja ela de que ordem for, pessoal ou social, só se faz hoje através do embate e da atualização da memória, individual ou coletiva, uma memória que se inscreve na imagem como duração, como tempo tomando forma e não como metáfora de um passado arquivado. Os filmes sobre revoluções, em sua maioria, trabalham com o tempo histórico e cronológico, com a reconstituição de época e com idéias de que as páginas da história já foram viradas e que o presente vem sempre para corrigir, e não para problematizar, as ações passadas, evitando que

se repitam no futuro. São filmes que acreditam na temporalidade hegeliana e, portanto, na evolução e totalização da história. Fazendo uso da mitificação e heroificação de personagens de outrora, em muitos desses filmes sobre momentos históricos de transição, de ruptura ou de esfacelamento de uma ordem asfixiante, enfoca-se o evento como parte de um processo encerrado e já arquivado no museu da história, como se a representação dos fatos fizesse parte de uma realidade paralela sem conexão com nossos dias. O olhar é, em geral, de algo já ultrapassado, de diagnóstico do fracasso travestido de elogio da reação, com convicção ou populismo, como se filmar as reações no passado cumprisse um papel político no presente. Em Diários da motocicleta (2004),4 de Walter Salles, temos um caso exemplar. Ao se filmar episódios de um momento da juventude de Ernesto Guevara, efetua-se o elogio da solidariedade e da congratulação entre os povos latino-americanos, tratando-se as situações vividas pelo personagem como sementes de um futuro revolucionário, mas a instância narradora nos é contemporânea, quando sabemos que

Revolução dos Cravos: militares e civis portugueses em frente ao quartel da Guarda Republicana onde se encontrava o presidente Marcelo Caetano. Lisboa, Portugal, 27/4/1974. Acervo Agence France Presse

4 EDUARDO, Cléber. Dois cinemas na América Latina – Diários de motocicleta, de Walter Salles e O pântano , de Lucrecia Martel. Disponível em: http://www.contracampo.he.com.br/60/cienaga-diarios.htm.

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Cuba se tornou um país isolado no mapa ideológico e político, portanto, quando já fracassou o projeto frutificado pelas sementes plantadas durante a viagem iniciática por parte das entranhas da América do Sul. Filma-se o primeiro impulso transformador com a consciência de que as transformações resultantes desse impulso foram interrompidas. Com a consciência do fracasso, portanto, com visão singela, reconfortante, adocicada, anedótica, mais apaziguadora que contundente. Ken Loach tem igual tratamento para a Guerra Civil Espanhola em Terra e liberdade (1995). Importam menos as condições políticas motivadoras do conflito e quase só a grandeza humana do voluntariado de guerra antifascista. Suspira-se de saudosismo pelos tempos nos quais o mundo tinha ideologia, mas não se tematizam as razões e a complexidade do conflito, tampouco se permite abrir a forma cinematográfica ao confronto. Também em Capitães de abril (2000) Maria de Medeiros adota uma visão adocicada e anedótica da Revolução dos Cravos. Se o filme promove uma visão lúdica e lírica da Revolução, menos comprometida com o ideal de verdade e reconstituição histórica, e mais vinculada a um olhar infantil, perde sua credibilidade dramática ao idealizar demais o que seria o povo, tratá-lo como homogêneo e simplório, como se este fosse simplesmente massa de manobra, passivo, desvinculado da instituição de poder e sem nenhuma adesão ao regime fascista. E hoje? O que o filme diz sobre o Portugal de hoje? Atende a quais necessidades contemporâneas? O que mudou, de fato, e o que permaneceu? Essas perguntas poderiam ter sido colocadas para todos os filmes que tratam de revoluções. Afinal, quais são as intenções de seus diretores ao escolherem determinados recortes? Vemos que, se as implicações dos movimentos revolucionários são, contemporaneamente, um tanto turvas e liquefeitas, as implicações estéticas e, portanto, políticas dos filmes estão nas evidências. Em geral, impera conciliação e reformismo, unidos numa forma, quando não totalmente burocrática, desprovida de vigor.

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Fugindo de temas urgentes, contemporâneos, sem desfecho já dado, a maior parte dos filmes de reconstituição histórica cai na principal armadilha daqueles que acreditam estar reconstituindo a História: a busca de objetividade e compromisso com a Verdade. São raras as empreitadas como as de Elia Suleiman em Intervenção divina (2002), que, além de romper com a gramática convencional do cinema político dialogado, transmitindo o absurdo da panela de pressão palestina exclusivamente com imagens, lida com a impossibilidade de uma conclusão para seu conflito, pois este está em andamento, mas não abre mão de adotar sua postura pessoal para o caso Israel-Palestina, chegando a instalar uma posição nada conciliatória. Para Suleiman, existe só a sua verdade, baseada na experiência de vida dos palestinos e dele mesmo, não uma verdade-painel, de conjuntura, de revelação e conscientização. O filósofo grego Cornelius Castoriadis perguntaria: como destruir a pretensão à cientificidade, último reduto das velhas opressões que permanece? Também Gilles Deleuze, 5 herdeiro direto da crítica da verdade em Nietzsche, para quem “o mundo verdadeiro não existe e se existisse seria inacessível, inevocável, e se fosse evocável, seria inútil, supérfluo”, defendia que a alternativa real/fictício deveria ser ultrapassada em favor da afirmação do falso, ou das potências do falso , entendido não como um erro, uma falha ou uma confusão, mas como uma potência que torna o verdadeiro indecidível. Segundo Deleuze, a potência do falso é o tempo em pessoa, não porque os conteúdos do tempo sejam variáveis, mas porque a forma do tempo como devir põe em questão todo o modelo formal de verdade. Resulta disso um novo estatuto de imagem e narrativa. A imagem deixa de ser regida pelo modelo “imagem-movimento” (modelo dominante antes da Segunda Guerra, sustentado por cortes racionais, encadeamentos e montagem, no qual o tempo deriva do movi-

5 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo . São Paulo: Brasiliense, 1990.

mento), sujeita a um efeito de verdade, para fazer parte do regime “imagem-tempo”, sustentado por cortes irracionais e reencadeamentos, no qual o movimento deriva do tempo, logo, um movimento em falso, que substitui o efeito de verdade pela potência do falso como devir. Assim também a narração liberta-se da necessidade de ser verídica, de aspirar a uma verdade unívoca e universalizante, para se fazer essencialmente múltipla e falsificante. Elevando o falso à potência, a vida se liberta tanto das aparências quanto da verdade. Para Deleuze, esse era o caso de Orson Welles. Um artista revolucionário pois criador de verdades, porque “a verdade não tem que ser encontrada nem reproduzida, ela deve ser criada”. Desse modo, o que se opõe à ficção não é o real, não é a verdade que é sempre a dominante, mas é a função fabuladora. E para que tal função seja exercida, é preciso que o personagem seja primeiro real para afirmar a ficção como potência e não como modelo: é preciso que ele comece a fabular para se afirmar ainda mais como real, e não como fictício. O personagem está sempre se tornando outro, e não é mais separável desse devir que se confunde com o povo. Mas, por onde anda “o povo”? Essa entidade, hoje, tão abstrata e fictícia? Ainda segundo o filósofo, a primeira grande diferença entre o cinema clássico e o moderno é que no cinema clássico o povo estava presente, embora oprimido, enganado, submetido ou inconsciente. No cinema americano ou no cinema soviético da primeira metade do século XX, o povo era, simultaneamente, real e ideal. Daí a idéia de que o cinema como arte das massas pudesse ser a arte revolucionária por excelência, ou democrática, porque fazia das massas um verdadeiro sujeito. Mas vários fatores comprometeram essa crença: o surgimento de Hitler dava como objeto ao cinema não mais as massas que se tornaram sujeito, mas as massas assujeitadas; assim como o stalinismo substituía a unidade dos povos pela unidade tirânica de um partido. Em suma, para Deleuze, se houvesse um cinema político moderno, seria sobre a seguinte base: “o povo já não existe, ou ainda não existe... o povo está

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As ruas de Dantzig ostentam o aspecto de uma cidade alemã em 1939. Acervo Correio da Manhã

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Jovens alemães. s.l. e s.d. Acervo Correio da Manhã


DAS REVOLUÇÕES

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faltando”. Se o cinema já não reivindica a tarefa de conscientização do povo, vista como equivocada ou ultrapassada, e se parece não encontrar outras ferramentas de intervenção social, Deleuze nos adverte, diante desse impasse, que se ainda há alguma tomada de consciência possível, esta é “a tomada de consciência de que não há povo”. Esta constatação de um povo que falta não é uma renúncia ao cinema político, mas, ao contrário, a nova base sobre a qual ele tem de se fundar, no Terceiro Mundo e nas minorias, como sugere o filósofo. Porém, tratar-se-ia não de se dirigir a um povo suposto, já preexistente, e sim de contribuir para a invenção de um povo, porque o povo que falta é um devir, ele se inventa, nas favelas, nos campos ou nos guetos, com novas condições de luta, para as quais uma arte verdadeiramente política tem de contribuir. E para desenvolver tal tarefa, seria preciso que o cinema exercesse a função de fabulação , em que o personagem se põe a ficcionar, não cessando de ultrapassar as fronteiras entre o real e o fictício, o privado e o político, dando ao falso a potência de construir uma memória e produzindo, assim, enunciados coletivos. Também é imprescindível que o cinema contemporâneo, não conseguindo se constituir sobre uma possibilidade de evolução e revolução, como o cinema clássico, tematize suas impossibilidades, seus impasses, sem poupar-se da indecidibilidade, do absurdo e do intolerável. Deleuze chamaria este cinema do intolerável de “cinema de agitação”, mas uma agitação que não decorre mais de uma tomada de consciência, ao contrário, a consciência se dá agora num vazio, consistindo, antes, em fazer tudo entrar em transe, o povo e seus senhores, a própria câmera, em levar tudo à aberração, tanto para pôr em contato violências quanto para fazer a crítica do mito, referindo o arcaico ao estado das pulsões numa sociedade atual. Assim define Terra em transe (1967) de Glauber Rocha: “O transe, o fazer entrar em transe é uma transição, passagem ou devir: é ele quem torna possível o ato de fala através da ideologia do colonizador, dos

mitos do colonizado, dos discursos do intelectual. Glauber faz entrar em transe as partes, para contribuir à invenção de seu povo, que é o único capacitado a constituir o conjunto”. Mas é importante ressaltar que esse conjunto é constituído com base na fragmentação, no estilhaçamento, o que não quer dizer que o estado de combustão permanente desse povo seja uma impossibilidade imobilizante, inversamente, se o povo falta, se ele se estilhaça em minorias, “sou eu que sou primeiro um povo”. Glauber era, ele mesmo, um povo e inventou muitos povos. Jean-Luc Godard também o fez e continua fazendo. Em Vento do Leste (1969), parceria com Jean-Pierre Gorin e outros colaboradores, sob o grupo Dziga Vertov, uma organização cinematográfica empenhada em fazer filmes militantes de esquerda, que se situava contra o cinema de Hollywood e contra a tradição eisensteiniana, questionavam-se as formas das imagens e dos sons, colocando-se num cinema de encruzilhada. Em dado momento, o próprio Glauber, convidado a uma participação especial, posto de braços abertos numa bifurcação do caminho, é questionado por uma moça grávida: “Qual o caminho do cinema político?” Ao que ele responde: “O caminho do cinema de aventura é pra lá e o caminho do cinema do Terceiro Mundo, o cinema divino, perigoso e maravilhoso, é pra cá”. A moça grávida titubeia e segue o sentido do cinema de aventura... Godard e Gorin, munidos de ironia, tratavam da impossibilidade de uma representação revolucionária mediada pelas convenções ilusionistas da representação burguesa, tendo como alternativa a autoreferencialidade, a revelação dos artifícios da encenação, de modo a cultivar a consciência do espectador, sem tentar iludi-lo. A questão não era, assim, a busca de um caminho verdadeiro para a arte e para o cinema, mas a construção de um diálogo que poderia ser amarrado a partir de todo esse questionamento, literalmente, disparado pela posição de câmera – posicionamento moral, segundo Godard –, pelas intervenções, en-

6 Entrevista concedida a Jane de Almeida. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 jul. 2004. Caderno Mais!

cenações, ruídos e discursos. Como disse Gorin em recente entrevista,6 os cineastas se enquadram em dois grupos: os do idioma e os da gramática. Os do idioma tendem a funcionar melhor na estabilidade das convenções, já os da gramática são inclinados a interrogá-la. Como diria Deleuze,7 citando Proust, trata-se de ser estrangeiro em sua própria língua, estimular uma certa gagueira da linguagem, questionando as noções correntes e as imagens e idéias ajustadas. Questionar é romper. As rupturas dentro da linguagem artística não estão a serviço de transformações sociais, não têm tarefas ou funções fora dos limites da arte, propondo, sobretudo, uma alteração da percepção de quem a assimila, alteração essa sempre política e transformadora, por propor outros estatutos e outros universos possíveis. Uma arte com obrigações políticas, a serviço de uma ideologia ou de uma causa, torna-se programática, um meio de se alterar o mundo, como um partido político ou um panfleto, sem necessariamente propor uma forma que, por sua negação das convenções, altera o olhar do espectador, mesmo que momentaneamente. Um cinema revolucionário, de fato, pode ser traçado, se assim traçar novos percursos, novos circuitos, se promover curtos-circuitos, se tematizar e potencializar seus impasses, seus absurdos, seus intoleráveis. Toda revolução pressupõe uma nova sociedade, uma nova arte, um novo homem, que vai se relacionar com o mundo através de uma nova forma de percepção. Em Antes da Revolução (1964), de Bernardo Bertolucci, Fabrizio, o jovem protagonista, dotado de mais lucidez que fervor revolucionário, nos diz, já apontando para um antes e um além da revolução: “Não me bastam os acontecimentos de julho de 60, as revoluções de um dia, não me bastam as greves, as agitações sindicais com suas bandeiras vermelhas. Nem os protestos não me bastam mais. Quero um homem novo”. Fabrizio é aquele para quem a vida é o valor que deve estar acima da violência como método revolucionário, é aquele para quem o “homem novo” precisa constituir-

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Godard e Jean Renoir, s.l. 15/3/1968

se na alegria de viver, de certa forma já indicando a demanda por prazer e contra a repressão que estaria por vir. Quatro anos mais tarde, em maio de 68, os situacionistas pichariam num muro de Paris: “O tédio é anti-revolucionário”. E anti-revolucionária também é a institucionalização da rebeldia. Fazendo a ponte entre a geração dos anos de 1960 e a dos anos de 1990, O pornógrafo (2002), de Bertrand Bonello, coloca em foco com contundência a passagem da geração de seu protagonista, um cineasta francês de filmes pornô, para a geração de seu filho, ainda estudante. Em certo momento, Jean-Pierre Léaud, o cineasta, diz a seu filho: “Enquanto minha geração ia às ruas lutar em nome da liberdade e contra a repressão, a sua vai às ruas reivindicar um lugar social, reivindicar emprego”. O que era anteriormente um protesto de contestação torna-se uma manifestação de pedido de adesão ao sistema. O mesmo aconteceu com o cinema pornô, antes empregado como um gesto libertário pelo personagem de Léaud e por seus companheiros de geração, e agora incorporado pelo mercado, tornando-se uma mera atividade de sua sobrevivência. Apesar da resistência de seus ideais, agora não mais a serviço de uma transformação total da sociedade, mas de uma luta pela possibilidade de ainda resistir à conformidade, a grande revolução possível, para o personagem de Jean-Pierre Léaud e para todos nós, é o esforço em não deixar a rebeldia ser assimilada e assim se tornar apenas mais uma mercadoria.

7 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.


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Revolta dos marinheiros a favor da suspensão das penas disciplinares impostas à Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. Fotógrafo Décio. Rio de Janeiro, 26/3/1964. Acervo Correio da Manhã

a

evolução, esse fenômeno recorrente na história da humanidade, implica a quebra de uma determinada ordem constituída – vista como injusta e opressora – para, então, abrir caminho, pela violência, a uma nova ordem revolucionária... A idéia de movimento em direção a um novo início da aventura humana é o cerne do conceito de revolução e fundamenta o direito de resistência à opressão, ao despotismo e às estruturas injustas, para consagrar a emancipação e o triunfo do povo conflagrado. Em princípio, a revolução clama pela Liberdade, pela Igualdade e Fraternidade para todos, democratizando as estruturas sociais, políticas e econômicas anteriores. Mas ela mesma poderá (re)criar a uniformidade, a censura e novas proibições que exalam o ressurgimento de novas formas de terror e novas estruturas autoritárias… E aí poderá irromper o ímpeto do início de nova revolução… Os momentos e os processos revolucionários sempre despertam paixões das massas, criam violências próprias contra os que detinham o poder da velha ordem, polarizando posições ideológicas e políticas… Nesse furacão social, como nos exemplos ocorridos na segunda metade do século XX, as revoluções passaram pelo crivo, pelos flashes e registro da nova tecnologia, a da máquina fotográfica. A arte – ou o meio de popularizar a arte – ganha status de prodígio ao recriar pelo instantâneo, pelo enquadramento rigoroso, pela imagem-denúncia ou pelo instântaneo-de-rua o poder de testemunhar os episódios humanos e desumanos das revoluções – antes registrados pela escritura ou pela pintura. Pela comicidade ou pela dramaticidade, a fotografia é esse olhar mágico que a nova tecnologia, a serviço da arte, faz com que momentos, processos, panoramas ou ações espetaculares expressem as Revoluções e, assim, tenhamos a reconstrução de suas histórias e da sua própria memória social. É essa a principal contribuição que o Recine, tão oportunamente organizado pelo Arquivo Nacional – composta pelo acervo do combatente jornal Correio da Manhã e pela riqueza da Agência France Presse –, oferece ao público: é mirar, sorver e aprender como as Revoluções no século XX tornaram-se realidades imperecíveis pela arte fotográfica.

Clóvis Brigagão Cientista político e escritor, é diretor-adjunto do Centro de Estudos das Américas,

Mao Tse-Tung com tropa comunista. Pequim, China, janeiro/1949. Acervo Agence France Presse

do Instituto de Humanidades da Universidade Candido Mendes.


FA

L S I F I C A Ç Õ E S

Forças policiais peruanas vigiando a casa do embaixador japonês devido à invasão dos guerrilheiros do Tupac Amaru. Lima, Peru, 5/1/1997. Acervo Agence France Presse


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