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Deslocar | Danilo Mendonça Martinho
Deslocar | Danilo Mendonça Martinho
Para mim tudo era passageiro, as vidas que cruzava, os prédios e casas que ficavam para trás. Reconhecia seus rostos, inventava histórias, imaginava encontros. Ilusões. Como tudo efêmero deste lugar, basta dobrar a esquina para se esquecer. Vi o calor castigar, a chuva escorrer por essas janelas que recortam o mundo. Aqui dentro éramos um amontoado, como os grãos de uma safra e, embora do mesmo tipo, nossos destinos e caminhos não poderiam ser mais diferentes. É engraçado que o animal humano seja aquele com a linguagem mais desenvolvida e ainda assim é o animal que menos a usa. Passei a maior parte da minha vida aqui, em trânsito. Indo de um lugar ao outro, coincidindo com outras pessoas mas nunca nada além do acaso. Quantas vezes aqui não pensei no interior de lugar nenhum. Onde o mundo é só até onde a vista alcança, onde tudo é controlável, onde o futuro não promete, nem decepciona; onde a sociedade ainda não apagou a natureza. Quando as pessoas vêm para as capitais muitas vezes se sentem perdidas, oprimidas, maravilhadas. Mas não há motivo para tanto. Os que aqui vivem apenas fingem saber a direção. O tempo desfaz o concreto. E a beleza está nas fortes e sobreviventes árvores que destoam no horizonte que na verdade esconde o horizonte. Acho que é mal humano sempre desejar outra vida que não a do seu caminho. Mas não reclamo, apenas constato. São os anos de experiência que os ônibus me deram. Este tempo de olhar para fora, de olhar para os outros, de sentir o que parece rotina mas na verdade é vida. É interessante perceber que a vida não está apenas no nosso olhar sobre o mundo. Ainda assim, tudo passou. As paisagens que reconheço, mas não reparo. As pessoas que se repetem e sempre partem. Independente da nossa consciência é preciso chegar na próxima estação.
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Pois agora veio essa nova era que isolou, sem dúvida, nossos corpos, mas tenho certeza de que a cada dia mais percebemos que isolaram nossas almas. Dentro do meu carro tudo passa ainda mais rápido e com o olhar focado no caminho todo resto fica mais irrelevante. Nem mesmo a minha preciosa chuva tem tempo de escorrer pelo vidro, de me sussurrar um verso. Odiamos semáforos, engarrafamento e qualquer outra coisa que nos faça parar no tempo, nos faça perceber nossa realidade, que estenda a mão pedindo ajuda. Nesse ar-condicionado já não entendo mais o calor, tudo tem sabor artificial. Só há o meu caminho, ninguém que desce no mesmo ponto, que trabalha no mesmo lugar. Só os meus próprios pensamentos. Nenhuma perspectiva diferente, nenhuma anedota para contar. Meu trânsito virou um lugar perigoso. Muita raiva, muita briga, muita inconformação, muita coisa errada, muita irritação.
Quem diria, o engarrafamento é o verdadeiro câncer dessa sociedade. Não olhamos na cara de ninguém, só precisamos da nossa própria razão, indiferentes, solitários, arrogantes. Todo mundo nessa cidade tem um “eu motorista” que se olhar de perto, ninguém deveria se orgulhar. O som desse lugar é buzina, escapamento, sirene, motor. Onde se acha a palavra nisso tudo? Que voz pode ser ouvida? E qual diz a verdade? Na rádio em que a gente liga buscamos uma música conhecida, para distrair a cabeça, esquecer nossa condição. Desligar-se é a melhor maneira de dirigir, mas nada nos faz esquecer. Somos animais sensíveis ao contato que reagem a timbres de voz, que se emocionam com os olhos de uma criança. O que a gente vê por esse vidro fumê? O que a gente sente nesse tempo, se não a solidão?
Ah, mas na natureza dessa cidade tem uma garoa fina. Eu aproveitei para não ligar o para-brisa. Quem sabe esses pequenos prismas me façam enxergar melhor. Abro uma fresta do vidro para também te ouvir. Você vem tímida, sem força, discreta. Logo você é foco antes de qualquer depois. É assim que se sobrevive. Não existe nada mais presente na fala de um paulistano do que a sobrevivência. Identificar de onde vem as pessoas não está apenas no jeito que se fala, mas no peso que cada palavra carrega. Aqui sempre temos um leve tom de lamentação. O encontro que não deu tempo, o amigo que não se encontra, tudo que se adia, tudo que te consome. A busca constante por fôlego, o silêncio sem direção. Mas ali espremida antes do ponto final uma esperança, quase tola, e imprescindível. Sinto falta das caminhadas, tinha mais chance de encontrá-la. Ser passageiro faz mais sentido.
Danilo Mendonça Martinho, escritor e poeta desde 2002. Um livro lançado Poeta da Colina – Um romântico no século XXI e participação em diversas outras coletâneas. Atualmente produz conteúdo de prosa e poesia para as redes sociais. Basta procurar por Poeta da Colina.