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Canto do canto e solto a voz do centro de um coração roraimado | elimacuxi

Canto do canto e solto a voz do centro de um coração roraimado | elimacuxi

Roraima é nome de monte, montanha antiga em forma de mesa, em volta dela terras planas foram se empestando de gente, mas o Roraima é de antes de gente andar na Terra. E é terra habitada, disputada, amada e desprezada por gente que nela anda.

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Tomo pra mim a tarefa de falar do sotaque da minha terra. Feito gente que se apropria inapropriadamente do que é de todos: “minha terra”. Essa Roraima, que está na Terra antes dos homens andarem sobre ela e muitos dirão: é distante, é desconhecida.

Eu não. Mesmo em São Paulo nascida, digo que Roraima é meu centro, lugar de onde avisto céu e chão.

Centro de toda confusão.

Voltas no tempo.

Makunaima entre irmãos. Eram deuses ancestrais e quando criaram a riqueza dessa terra, já o fizeram derrubando árvores. Wazaká caiu e todos seus frutos se espalharam. E os deuses antigos nem era velhos nem sábios, mas homens guerreiros entre outros homens, vencendo dificuldades comezinhas. Assim me chegam as narrativas que o vento preserva do passado, reverberado na voz das, agora, indígenas vovozinhas. Esses deuses não me espelham. É nelas que me vejo, nas vovós com suas peles vincadas e cabelos longos, as vovozinhas que um dia homens de longe disseram indígenas, as vovozinhas nascidas perto da montanha velha, agora velhas e vincadas, e retas, como ela: montanhas. As vovozinhas que sabem os segredos do barro e das plantas, a quem ensinaram o canto das areruias quando ainda eram moças de pele esticada e cujas vozes não foram ouvidas. Mas hoje essas vozes silenciadas são as mesmas que dão conta de nos contar tanta história. Meus espelhos não são as águas do rio da minha terra: me vejo melhor refletida nas vovós que, um dia, homens de longe disseram indígenas. É nelas que prevejo minha futura memória.

E quando chegaram os homens de longe, logo afirmaram que longe era ali. E foi ficando, fincando ideia de lonjura, de sertão, de abestada barbárie que não aproveita riqueza. No tempo em que as vovós não tinham nascido. O monte assistindo a tudo. Gente que trouxe gente, que trouxe vidro, que trouxe roupa. Que trouxe dinheiro e papel. Gente que trouxe dinheiro e papel pra quem não assinava nada e nem usava dinheiro e papel, assinar papel e sair dali de onde estava, “nas lonjuras”

pra outra gente fazer dinheiro. Gente que não ouvia o canto do vento soprando fendas nos montes, arribando poeira no campo, ondulando a pele das lagoas, gente que eram reis, que eram “A coroa”, que era gente que não se misturava com essa gente e queria limpar essa terra, queria fazê-la brilhar revirando suas entranhas expostas em ouro.

E foi ficando e fincando essa ideia de lonjura e de riqueza escondida na terra e a montanha que já era mesa e já era Roraima antes, quase deixa de ser vista, porque essa ideia de lonjura e riqueza a se explorar era fumaça, não fumaça pra avivar espírito nem fumaça pra fazer roça, fumaça que escondia tudo e entorpece e mata. E sob ela não se via mais nem montanha nem a mata, porque a fumaça das gentes que tinham papel e dinheiro e assinavam tudo, assassinava as coisas trocando seus nomes. Queçoene virou Branco e era longe e era riqueza escondida. Aqui: nem cheia, nem vazante, nem tamanduá, nem jabuti. Na fumaça do desejo vindouro, nem monte verde, nem céu azul, nem homem nem mulher vermelhos: apenas sol e amarelo ouro.

O tempo passa, acaricia a montanha, voa alto, cai no chão, feito vento, cruviana. E ouro não se comia e veio mais gente, que trouxe gado e que trouxe cerca e que trouxe pólvora e que trouxe mais papel e mais dinheiro e que sal e que trouxe açúcar, feito de sangue e de suor de preto. Os produtos do tempo nas entranhas da terra, diamante e ouro, foram rasgados por essa gente estranha de longe, que tudo era longe pra essa gente que vinha subindo rio, enfrentando chuva, com suas botinas e suas capas e suas armas e suas coisas de seduzir e sujeitar, essa gente que também vinha pra casar e calar moças, desbotando suas peles e mudando seus nomes: brancas, como o rio.

O tempo roça a pele de quem anda pela terra e, na liça, gente não se sente mais se afirma mestiça, e se afirma de fora e se afirma de dentro e gente e gente que se afirma. E a montanha assiste, impávida, ao movimento surdo que ecoa em sotaques que são um: grunhidos de gente que, se afirmando, passa. O monte, velho, vincado e sábio como uma vovozinha, permanece sólido em sua força e graça.

Eu sou gente que como toda gente que essa terra abraça, é parasita na pele dessa que eu canto e digo terra minha. Ora tomada da soberba dos deuses antigos e da gente que veio de longe, ora entoando o encantamento da vovozinha.

Meu canto não é de lonjura senão para quem longe está. Sai do centro do meu peito para se integrar ao centro do que por ora é o meu lugar. Lugar onde ecoam antigos e novos sotaques expressos em diversos jeitos de nomear. E sob o tempo, tudo se choca, tudo colide, tudo disputa, tudo exige. Menos a montanha. Ela diz a quem quer ouvir, assim como eu proseio com você que lê, se me lê. Ensaiando vida e amor, no centro

de nós, atados por tantos descaminhos. Sem ilusão de ser mais do que sou. Quando escrevo, me amontanho, me roraimo.

E o Roraima segue impávido, como quem a um tempo, sobrevivendo ao tempo, guarda e despreza todas essas gentes, que assim como o tempo, não param de passar.

elimacuxi | poeta e historiadora. Pode ser encontrada na web pelo @elimacuxi e em sites de poemas, www.elimacuxi.blogspot.com

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