Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região v. 26 n. 2 Brasília 2022
ISSN 0104-7027
Rev. do Trib. Reg. Trab.10ª R. Brasília v. 26 n. 2 p. 1- jul./dez. 2022
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região v. 26 n. 2 Brasília 2022
ISSN 0104-7027
Rev. do Trib. Reg. Trab.10ª R. Brasília v. 26 n. 2 p. 1- jul./dez. 2022
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Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região
Endereço: SAS Quadra 1, Bloco “D” Praça dos Tribunais Superiores - Brasilia/DF - CEP: 70097-900 Telefone: (61) 3348-1100 CNPJ:02.011.574/0001-90 http://www.trt.jus.br
Escola Judicial do TRT-10ª Região - SGAN 916, Lote A2 - Asa Norte - Brasília/DF CEP: 70.790-160 (61) 3348-1870 https://escolajudicial.trt10.jus.br/ email: escola.judicial@trt10.jus.br
Catalogação na Fonte elaborada pela Seção de Pesquisa e Documentação Márcia Basílio Lage – Bibliotecária – CRB 732
Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. v. 1, n. 1, 1982/1983- . – Brasília: TRT 10ª Região, 1982/83 – . Bienal: 1982/1987. Anual: a partir de 1994.
Publicação interrompida durante o período de 2012 a 2014. Numeração reiniciada a partir do v. 20 de 2016.
ISSN 0104-7027
1. Direito do trabalho – periódicos. 2. Jurisprudência trabalhista.
CDD 342.6
Os textos doutrinários e de jurisprudência desta Revista são de estrita responsabilidade de seus autores. Coordenação: Desembargador João Luis Rocha Sampaio Produção: Anastácia Freitas de Oliveira Projeto gráfico e diagramação: Weslei Marques dos Santos Colaboração: Seção de Biblioteca, Pesquisa e Documentação
A Revista do TRT-10ª Região é indexada em: JusLaboris - Biblioteca Digital do Tribunal Superior do Trabalho Rede RVBI (formada pelas bibliotecas da Advocacia-Geral da União, Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa do Distrito Federal, Ministério da Justiça, Procuradoria-Geral da República, Senado Federal, Supremo Tribunal Federal, Tribunal Superior do Trabalho, Superior Tribunal de Justiça, Superior Tribunal Militar, Tribunal de Contas do Distrito Federal, Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios)
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Desembargadores
Alexandre Nery de Oliveira - Presidente
José Ribamar Oliveira Lima Júnior - Vice-Presidente e Corregedor
João Amílcar Silva e Souza Pavan Flávia Simões Falcão
Mário Macedo Fernandes Caron
Ricardo Alencar Machado Elaine Machado Vasconcelos
André Rodrigues Pereira da Veiga Damasceno
Pedro Luís Vicentin Foltran
Maria Regina Machado Guimarães Brasilino Santos Ramos
José Leone Cordeiro Leite
Dorival Borges de Souza Neto Elke Doris Just Cilene Ferreira Amaro Santos
Grijalbo Fernandes Coutinho João Luís Rocha Sampaio
1ª
Desembargador Alexandre Nery Rodrigues de Oliveira - Presidente
Desembargador José Ribamar Oliveira Lima Júnior - Vice-Presidente
Desembargador João Amílcar Silva e Souza Pavan
Desembargadora Elaine Machado Vasconcelos
Desembargador André Rodrigues Pereira da Veiga Damasceno
Desembargadora Maria Regina Machado Guimarães
Desembargadora Elke Doris Just
Desembargadora Cilene Ferreira Amaro Santos
Desembargador João Luís Rocha Sampaio
2ª
Desembargador Alexandre Nery Rodrigues de Oliveira - Presidente
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Desembargador José Ribamar Oliveira Lima Júnior - Vice-Presidente
Desembargadora Flávia Simões Falcão
Desembargador Mário Macedo Fernandes Caron
Desembargador Ricardo Alencar Machado
Desembargador Pedro Luiz Vicentin Foltran
Desembargador Brasilino Santos Ramos
Desembargador José Leone Cordeiro Leite
Desembargador Dorival Borges de Souza Neto
Desembargador Grijalbo Fernandes Coutinho
Primeira Turma
Desembargadora Elaine Machado Vasconcelos - Presidente
Desembargadora Flávia Simões Falcão
Desembargador André Rodrigues Pereira da Veiga Damasceno
Desembargador Dorival Borges de Souza Neto
Desembargador Grijalbo Fernandes Coutinho
Segunda Turma
Desembargadora Maria Regina Machado Guimarães - Presidente
Desembargador João Amílcar Sílva e Souza Pavan
Desembargador Mário Macedo Fernandes Caron
Desembargadora Elke Doris Just
Desembargador João Luis Rocha Sampaio
Terceira Turma
Desembargador Ricardo Alencar Machado - Presidente
Desembargador Pedro Luis Vicentin Foltran
Desembargador Brasilino Santos Ramos
Desembargador José Leone Cordeiro Leite
Desembargadora Cilene Ferreira Amaro Santos
Brasília (DF)
SEPN 513, Bloco B, Lotes2/3, CEP 70.760-522
01ª Vara do Trabalho - Titular: Juíza Martha Franco de Azevedo
02ª Vara do Trabalho - Titular: Juíza Larissa Lizita Lobo Siveira
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03ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Francisco Luciano de Azevedo Frota
04ª Vara do Trabalho - Titular: Juiza Naiana Carapeba Nery de Oliveira
05ª Vara do Trabalho - Titular: Juíza Elisângela Smolareck
06ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Antonio Umberto de Souza Júnior
07ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Mônica Santos Emery
08ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Urgel Ribeiro Pereira Lopes - Vice-Diretor do Foro
09ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Fernando Gabriele Bernardes
10ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Márcio Roberto Andrade Brito
11ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Rubens Curado Silveira
12ª Vara do Trabalho - Titular: Juíza Patrícia Germano Pacífico
13ª Vara do Trabalho - Titular: Juíza Juíza Ana Beatriz do Amaral Cid Ornelas - Diretora do Foro
14ª Vara do Trabalho - Titular: Juíza Idália Rosa da Silva
15ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Augusto C. A. de Souza Barreto
16ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Luiz Fausto Marinho de Medeiros
17ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Paulo Henrique Blair de Oliveira
18ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Jonathan Quintão Jacob
19ª Vara do Trabalho - Titular: Juíza Patrícia Soares Simões de Barros
20ª Vara do Trabalho - Titular: Juíza Júnia Marise Lana Martinelli
21ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Luiz Henrique Marques da Rocha
22ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Gilberto Augusto Leitão Martins
Taguatinga (DF)
QNC 4/5 Avenida Samdu Norte, CEP 72115-540
1ª Vara do Trabalho - Titular: Juiz Alexandre de Azevedo Silva - Diretor do Foro
2ª Vara do Trabalho - Titular: Juíza Rosarita Machado de Barros Caron - Vice Diretora
3ª Vara do Trabalho - Juíza Noemia Aparecida Garcia Porto
4ª Vara do Trabalho - Titular: Juíza Elaine Mary Rossi de Oliveira
5ª Vara do Trabalho - Titular: Juíza Luciana Maria do Rosário Pires
Gama (DF)
Praça 02 Lote 06, Setor Central - Gama-DF, CEP 72405-610
Titular: Juíza Tamara Gil Kemp
Palmas (TO)
Quadra 302 Norte, Conjunto QI 12, Alameda 2, Lote 1A, CEP 77700-000
1ª Vara do Trabalho - Juiz Reinaldo Martini
2ª Vara do Trabalho - Juíza Débora Heringer Megiorin
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Araguaína (TO)
Av. Neief Murad, 1131, Bairro Jardim Goiás, CEP 77.824-022
1ª Vara do Trabalho - Juiz Rogério Neiva Pinheiro
2ª Vara do Trabalho - Juíza Sandra Nara Bernardo Silva - Diretora do Foro
Gurupi (TO)
Rua Antônio Lisboa da Cruz, 2031, Centro – Setor Central - CEP: 77.405-090
Titular: Juiz Denilson Bandeira Coêlho
Dianópolis (TO)
Avenida Wolney Filho, Qd. 69-A, Setor Novo Horizonte, CEP 77300-000
Titular: Juíz Oswaldo Florêncio Neme Junior
Guaraí (TO)
Avenida Araguaia, Esquina com a Avenida Bernardo Sayão N° 1360, CEP 77700-000
Titular: Juiz Mauro Santos de Oliveira Goes
Juízes substitutos
Solyamar Dayse Neiva Soares Érica de Oliveira Angoti Patrícia Birchal Becattini Rossifran Trindade Souza Cristiano Siqueira de Abreu e Lima José Gervásio Abrão Meireles João Batista Cruz de Almeida Thais Bernardes Camilo Rocha Acélio Ricardo Vales Leite Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes Marcos Alberto dos Reis Raquel Gonçalves Maynarde Oliveira Osvani Soares Dias de Medeiros
Raul Gualberto F. Kasper de Amorim Claudinei da Silva Campos Audrey Choucair Vaz
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Maurício Westin Costa
Rejane Maria Wagnitz
Daniel Izidoro Calabro Queiroga Adriana Zveiter
Carlos Augusto de Lima Nobre
Laura Ramos Morais
Vilmar Rego Oliveira
Vanessa Reis Brisolla
Natália Queiroz Cabral Rodrigues
Almiro Aldino de Sateles Júnior Gustavo Carvalho Chehab Elysangela de Souza Castro Dickel
Alcir Kenupp Cunha
Renato Vieira de Faria
Edísio Bianchi Loureiro
Ricardo Machado Lourenço Filho
Francisca Brenna Vieira Nepomuceno
Roberta de Melo Carvalho Angélica Gomes Rezende
Regina Célia Oliveira Serrano
Maximiliano Pereira de Carvalho
Fernando Gonçalves Fontes Lima
Marcos Ulhoa Dani Fernando Gonçalves Fontes Lima
Jaeline Boso Portela de Santana Strobel
Margarete Dantas Pereira Duque
Wanessa Mendes de Araújo Amorim
Simone Soares Bernardes
Katarina Roberta Mousinho de M. Brandão
Natalia Luiza Alves Martins
Maria José Rigotti Borges
Ananda Tostes Isoni
Shirley da Costa Pinheiro
Luana Marques Domitilo Azaro D’Lippi
Bruno Lima de Oliveira
Joao Otavio Fidanza Frota Gisele Bringel de Oliveira
Escola Judicial Diretor - Desembargador João Luis Rocha Sampaio
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Vice-Diretora - Flávia Simões Falcão
Conselho Consultivo
Desembargadora João Luis Rocha Sampaio
Desembargadora Flávia Simões Falcão
Desembargador Brasilino Santos Ramos
Juiz do Trabalho Rubens Curado Silveira
Juíza do Trabalho Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes Servidora Susan Carla Lavarini dos Santos
Comissão da Revista e outras publicações
Desembargador João Luis Rocha Sampaio (Diretor da Escola Judicial) - Presidente
Desembargadora Flávia Simões Falcão (Vice-Diretora da Escola Judicial)Vice-Presidente
Juiz Vilmar Rego Oliveira
Juiza Maria José Rigotti Borges Servidora Anastácia Freitas de Oliveira
Escola Judicial do TRT 10ª Região
Secretaria Executiva da Escola Judicial - SEEJUD
Secretária Executiva: João Batista Português Júnior
Seção de Formação Jurídica - SCFJU - Vinicius Barbosa Araujo
Seção de Formação Técnico-Administrativa e Gerencial - SCFTG - Flávia Naves David Amorim Boaventura
Seção de Educação a Distância - SCEAD - Carolina Franca Noleto Taveira
Seção Administrativa de Apoio a Eventos - SCAPE - Shirley Ayres Oliveira
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UM OLHAR PRÁTICO SOBRE OS LUGARES NA FILOSOFIA
Claudinei da Silva Campos Marcelo Freire Gonçalves
DA ECONOMIA GIG À ECONOMIA DE PLATAFORMA: A EVOLUÇÃO DA ECONOMIA DIGITAL NO TRABALHO HUMANO
Claudinei da Silva Campos Marcelo Freire Gonçalves
A JUSTIÇA 4.0 E O ACESSO SOB A LENTE DA AGENDA 2030 DA ONU 2030 DA
Karla Yacy Carlos da Silva Camila Miranda de Moraes
JUSTIÇA RESTAURATIVA EM LIDES PENAIS E MODELOS ALTERNATIVOS DE CONCILIAÇÃO INCOMPATÍVEIS COM O DIREITO E O PROCESSO DO TRABALHO Grijalbo Fernandes Coutinho
TRABALHO, MULHER E IGUALDADE: BREVES REFLEXÕES SOBRE O PROGRAMA EMPREGA + MULHERES Natália Luiza Alves Martins
DOS MECANISMOS DE INGERÊNCIA E MODULAÇÃO DO TRABALHO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO: PARA ALÉM DOS INDÍCIOS DE INSUBORDINAÇÃO JURÍDICA Wanessa Mendes de Araújo
LEI APLICÁVEL AOS CONTRATOS DE TRABALHO DE TRIPULANTES DE NAVIOS DE CRUZEIROS MARÍTIMOS Valério de Oliveira Mazzuoli
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É inegável que a filosofia contribui para o aperfeiçoamento da compreensão do estudo do Direito. Compreender os lugares é fundamental para desenvolver uma argumentação convincente. Através deste artigo, propõe-se avaliar alguns tipos de lugares de natureza mais geral: quantidade, qualidade, ordem, existente, essência e pessoa, e algumas possibilidades de interação, de modo a lançar luzes sobre a compreensão desses elementos filosóficos, utilizando exemplos práticos para facilitar a compreensão e seu efetivo uso na argumentação, especialmente a jurídica.
Palavras-chave: Lugares. Filosofia do 1 CAMPOS, C. S. Mestrando em Regulação e Empresa Transnacional da Universidade Nove de Julho/SP (UNINOVE) e Juiz do Trabalho Substituto. Currículo do sistema currículo Lattes. Brasília, atualizado em 25 fev. 2022. Disponível em: http://lattes.cnpq. br/5136051413074576. Acesso em: 27 abr. 2022. 2 GONÇALVES, M. F. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012) e Desembargador Federal do Trabalho. Currículo do sistema currículo Lattes. Brasília, atualizado em 27 abr. 2022. Disponível em: < http://lattes.cnpq. br/7082051387248069>. Acesso em 27 abr. 2022.
Direito. Argumentação jurídica.
Os lugares são valores e hierarquias estruturados em espaços onde podem ser encontrados com facilidade, construídos a partir de premissas aceitas pela maior parte dos interlocutores a quem se destinam. A partir deles, podem ser extraídos argumentos, que podem ser utilizados para convencimento. Há premissas bastante genéricas, aplicáveis a todas as ciências e para um número maior de circunstâncias, os chamados lugares comuns, ao passo que há outras bastante específicas e limitadas a uma determinada ciência ou auditório, os chamados lugares particulares.
A importância para o estudo do direito é inegável, à medida em que conhecer os lugares permite usar de forma segura um argumento de modo a conferir-lhe maior adesão, finalidade última de todo o profissional do direito, pois, em regra, a atividade do Operador do Direito é convencer o auditório a aderir a seus argumentos, seja em caso de lide contenciosa, seja em caso de parecer ou opinião sobre uma questão jurídica.
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Os lugares podem ser classificados de diversas formas, de acordo com o autor estudioso do assunto, de modo que não seria possível em um único artigo todas as classificações possíveis de lugares, os quais variam conforme o autor. Assim, busca o presente artigo tratar de alguns tipos de lugares, de natureza geral, a exemplo dos lugares de quantidade, qualidade, ordem, existente, essência e pessoa, relacionando-os com a prática argumentativa.
Neste estudo, limitaremos a exposição a explicar alguns lugares, de natureza mais geral, mas cujo grau de abstração permite usálos no âmbito jurídico, quais sejam: lugares de quantidade, qualidade, ordem, existente, essência e pessoa, de modo a permitir uma compreensão mais acurada desses conceitos filosóficos, de modo a empregá-los de forma mais segura na argumentação.
Os lugares de quantidade estabelecem que uma coisa é melhor que a outra em razão da quantidade que lhe é superior, ou, em sentido contrário, uma coisa é pior que a outra, em razão de quantidade inferior. Os lugares de quantidade também servem para estabelecer hierarquia de valores, apontando valores maiores, em relação a outros considerados menores.
Assim, pode ser considerado, dentro desse argumento, que um maior número de objetivos alcançáveis é preferível a um menor número, que o que é duradouro e mais estável é preferível ao que é temporário e instável, que um mal menor é preferível a um mal maior e que aquele que age em prol dos outros é maior do que o que age em prol de si mesmo.
Exemplo dessa argumentação tem lugar em Parecer da Advocacia-Geral da União (RORIZ; MADEIRA; FRANCA, 2018), no qual menciona que é preferível a transação criminal à ação penal, utilizando lugares de quantidade, apontando a obtenção de valores mais elevados com a transação do que a condenação criminal, a exemplo da
obtenção de informações que levem ao desmantelamento da conduta criminosa, eventual dificuldade de prova da conduta criminosa, com o consequente risco de impunidade e substituição da punição da conduta por meios não penais, objeto da transação:
A razão primeira para se admitir que sejam entabuladas tratativas aptas a desembocar em uma espécie de convenção em que o Estado - em sua faceta jurisdicional ou administrativa sancionadora - se comprometa a mitigar o rigor da sanção ou mesmo a se abster de punir aquele que transgrediu a regra de conduta protetora de um bem jurídico relevante, é a expectativa de que serão obtidas informações que possuem o condão de propiciar a satisfação de um interesse público que transcende à mera retribuição penal individualizada ao autor do fato típico, antijurídico e culpável, e que se realiza no mundo sensível por ocasião do desmantelamento de uma organização criminosa potencialmente executora de uma continuidade delitiva e na recuperação de recursos públicos desviados ou de alguma forma indevidamente apropriado por delinquentes, bem como a preservação da atividade econômica. 20. Não se pode perder de vista que, para punir um fato, o Poder Público sancionador precisa ter conhecimento de sua ocorrência e conseguir prová-lo, dentro de um quadro de devido processo legal. Assim, a ignorância estatal pode representar verdadeira frustração da aplicação de uma penalidade.
[...]
Com efeito, a quadra atual da história é marcada pela constatação de que o aparato clássico do Direito Penal se revela incapaz de combater as novas formas e espécies de desvios sociais difusos. É nesse cenário que os agentes estatais responsáveis
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pelo combate à corrupção e outras espécies delitivas atuam munidos de um outro instrumento que não aqueles relacionados ao litígio processual e suas típicas estratégias belicosas. [...]. (RORIZ; MADEIRA; FRANCA, 2018).
Os três objetivos citados são superiores em quantidade à punição criminal, alcançando políticas mais elevadas de Estado em relação ao poder punitivo criminal do Estado. Desse modo, a transação criminal é colocada em um patamar quantitativo de objetivos superior ao de mera persecução criminal.
O filosofo chinês Lao-Tse, que viveu nos séculos V e IV a.C (KOHN; LAFARGUE, 1998) utiliza o argumento de quantidade ao opor sabedoria e inteligência, controle de si
não a si próprio, principalmente em situações em que for provocada, hipótese em que seu poder sobre o outro pode desaparecer. Isso acontece em situações de sequestro com reféns, cuja falta de autocontrole por parte do negociador pode estragar a negociação com o sequestrador. Há, dessa forma, superioridade quantitativa dos valores sabedoria e autocontrole em relação aos valores inteligência e controle do outro.
O argumento do provável sobre o improvável é utilizado quando se trabalha com hipóteses dentro de planejamento futuro. A superioridade do argumento provável deve ser destacada para afastar o improvável, ou, ainda, o mais provável em relação ao menos provável, principalmente em projetos que envolvam riscos de insucesso. Argumentos desse tipo podem ser utilizados por advogados, ao fundamentar
“O valor sabedoria é colocado em um patamar quantitativo superior, porque se pressupõe que quem tem sabedoria também tem inteligência, mas quem tem inteligência não necessariamente tem sabedoria, tanto que inúmeras pessoas são consideradas sábias com pouco conhecimento acadêmico”
e controle do outro, atribuindo uma escala de superioridade aos valores de inteligência e autocontrole:
Conhecer os outros é inteligência, conhecer-se a si próprio é verdadeira sabedoria. Controlar os outros é força, controlar-se a si próprio é verdadeiro poder (Lao-Tse).
O valor sabedoria é colocado em um patamar quantitativo superior, porque se pressupõe que quem tem sabedoria também tem inteligência, mas quem tem inteligência não necessariamente tem sabedoria, tanto que inúmeras pessoas são consideradas sábias com pouco conhecimento acadêmico. O mesmo raciocínio se aplica ao autocontrole. Se a pessoa pode controlar a si mesmo, obviamente ela terá mais poder para controlar o outro do que aquela pessoa que tem habilidade para controlar o outro, mas
que uma eventual demanda terá ou não probabilidade de sucesso. Como exemplo, pode-se citar a explicação do advogado a um cliente sobre a probabilidade de sucesso da demanda dele, em razão de existir entendimento jurisprudencial sedimentado no tribunal no mesmo sentido de sua causa, a qual tem o risco de ser revista, contudo, sem existir essa perspectiva em um horizonte próximo. O sucesso da demanda do cliente foi colocado no lugar provável, superior em valor ao menos provável sucesso.
Ao utilizar desse lugar, busca-se traduzir que uma situação dita normal seja uma norma comum e, como tal, dê-se a entender que o normal é se conformar a ela, para, a partir disso, fundamentar o entendimento que pretende ser aceito. A utilização do lugar de quantidade é feita quando há argumentos que se opõem, valendo-se de argumento que coloque os
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passos da fase pré-processual, então –na maioria das vezes – induz a opinião pública a consolidar o consenso hegemônico de que o suspeito é culpado do crime que lhe é imputado.
A mídia - e a opinião pública por ela manipulada - condena o suspeito antes mesmo do julgamento da causa pelo órgão competente do Poder Judiciário. Implica dizer, necessariamente, antes da produção das provas, antes de ouvi-lo nas oportunidades de sua defesa e, por vezes, antes mesmo de concluído o inquérito. (ANDRADE, 2007).
valores que se está defendendo em patamar quantitativo superior.
Os lugares de qualidade são utilizados para refutar os lugares de quantidade. Valer-se dos lugares de qualidade implica colocar os números decorrentes do lugar de quantidade em patamar inferior aos do lugar de qualidade.
Nesse sentido, esse lugar é usado quando se busca contrapor-se a uma maioria, desqualificando-a, pondo o argumento em um lugar de qualidade, superior ao lugar de quantidade. Exemplo disso é a contraposição ao argumento dominante da opinião pública a respeito da culpabilidade de um réu em processo penal, valendo-se, para tanto, da colocação do processo em lugar superior de qualidade. Andrade (2007) menciona que a opinião pública não pode pautar a atuação do Poder Judiciário, pois pode levar a falsos consensos de culpa, sem o devido processo legal:
Quando os órgãos da mídia emprestam o máximo de sensacionalismo às informações oriundas dos primeiros
A opinião pública, colocada em lugar de quantidade superior ao Poder Judiciário é refutada pelo lugar de qualidade, na medida em que só o Poder Judiciário pode dar ao réu um julgamento técnico, justo, com direito a produção de provas, contraditório e ampla defesa.
O lugar de qualidade serve também para enfatizar e valorizar o que é único, não tem preço e não pode ser reparado, uma vez violado. Esse argumento é utilizado como justificativa para medidas urgentes no âmbito do Poder Judiciário, a exemplo de concessão de tutelas que assegurem a concessão imediata de remédio de alto custo pela rede pública de saúde, a exemplo de julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:
AGRAVO DE INSTRUMENTOAÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZERFORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS - DECISÃO DESCUMPRIMENTO - BLOQUEIO DE VERBA PÚBLICA POSSIBILIDADE. - Cuida a hipótese de
Agravo de Instrumento, com pedido de atribuição de efeito suspensivo, ofertado contra a decisão que determinou o bloqueio e sequestro de verba pública destinada à aquisição de medicamento necessário ao tratamento de saúde da Autora, ora
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Agravada. - O bloqueio e sequestro de verba pública para compra de medicamentos essenciais não afrontam o disposto nos artigos 730 do Código de Processo Civil e 100 da Constituição Federal e atendem aos Princípios Constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana e do Direito à Saúde e a Vida. - Matéria que já restou pacificada com a aprovação por este E. Tribunal de Justiça da Súmula nº 178. - Possibilidade de bloqueio de verba para compra do medicamento necessário ao tratamento de saúde da Agravada, cuja ausência poderá importar em grave dano ou colocar sua vida em risco. - Decisão agravada mantida. Aplicação do caput do art. 557 do Código de Processo Civil.Recurso a que se nega liminarmente seguimento. (BRASIL, 2014).
A ênfase, no caso trazido à colação, se dá à vida, colocada no lugar de qualidade superior em relação a outros valores que são objetos de discussão, utilizando-se, em defesa da tese, o fato desse bem jurídico estar situado no patamar mais alto de dignidade constitucional.
Colocar um fato no lugar de qualidade, pela característica da unicidade, pode servir para enfatizar sua importância, atrair público ou simplesmente colocá-lo em um patamar de destaque. Exemplo disso é a divulgação da prefeitura da cidade de Torres, no Rio Grande do Sul, do Campeonato Brasileiro de Balonismo pela primeira vez. O ineditismo é colocado no lugar de qualidade como argumento para atrair turistas e moradores da cidade para participar do evento:
Torres sedia pela primeira vez o Campeonato Brasileiro de Balonismo
O Prefeito Carlos Souza recebeu no gabinete municipal os representantes da Confederação Brasileira de Balonismo para anunciar que Torres sediará o 34° Campeonato Brasileiro de Balonismo, entre os dias 12 a 17 de outubro de 2021.
Na oportunidade juntamente com os Secretários Municipais, de Turismo, Fernando Nery, da Cultura e do Esporte, José Mauri Rodrigues, os representantes da Confederação Brasileira de Balonismo, o presidente Johnny Alvarez, o diretor técnico Ricardo Almeida e a balonista torrense, Laís Pinho, participaram da assinatura de convênio.
A competição de balões de ar quente será promovida pela Confederação Brasileira de Balonismo – CBB e pela Prefeitura de Torres. O evento conta com os melhores pilotos do Brasil em busca do mais cobiçado título da categoria, em uma competição com características diferentes do Festival Internacional, servirá para pontuação para o campeonato mundial e tem o viés competitivo.
Para o Secretário de Turismo, Fernando Nery, o evento será mais um atrativo para os turistas e moradores que terão o privilégio de ver o tradicional céu colorido de Torres nos dias do campeonato.
O Prefeito Carlos Souza enaltece que Torres é a capital do balonismo e espera que o campeonato brasileiro seja um sucesso e possa ser realizado na cidade em mais oportunidades. (PREFEITURA DE TORRES, 2021).
No âmbito jurídico, pode ser utilizado para destacar o ineditismo de determinado julgamento e a singularidade e importância da causa, seja pelo tribunal, para julgar com especial apreço e cuidado, seja pelos defensores da causa, para empregar maior esmero em relação a outras causas que defende.
O lugar de ordem firma a superioridade do antecedente sobre o consequente, dando ao primeiro, prevalência, em caso de discussão sobre hierarquia de valores. No âmbito
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jurídico, tem sido utilizado para justificar a Constituição Federal no ápice hierárquico do ordenamento jurídico. Importa destacar que a ordem do antecedente sobre o consequente não é necessariamente cronológica. Quando se trata de colocar a Constituição no ápice do ordenamento jurídico, ainda que existam leis anteriores a ela em pleno vigor, se essas leis não forem compatíveis com a Constituição Federal, não podem ser exigíveis, pois a Constituição está acima delas em lugar de ordem, pouco importando a cronologia do seu surgimento, como esclarece Silva Neto (2009):
Assim, com o propósito de evitarse o infindável trabalho de reiniciar a construção do sistema de normas ordinárias, apercebeu-se que muito mais apropriado e coerente seria fazer com que as leis inferiores à Constituição pudessem ser aproveitadas quando compatíveis com as normas constitucionais,
de abstração, inclusive fundamentando-as:
Segundo nos parece, princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam (CARRAZZA, 2002, p. 33).
O lugar de ordem tem sido utilizado como meio de sempre buscar a fonte primária para tornar o argumento mais forte, por estar em lugar superior de ordem, como causa e razão. Por exemplo, quando se busca explicar as razões do racismo no Brasil, sempre é necessário fazer uma digressão à escravidão no país, operando o que se cognominou de racismo estrutural, e assim o é para explicar diversos fenômenos, a exemplo do Tratado de Tordesilhas, fonte explicativa do fato de o
originando, desse modo, o fenômeno chamado de recepção constitucional.
Com isso, no Brasil, aplica-se o princípio da continuidade da Ordem Jurídica, que significa o aproveitamento dos atos legislativos anteriores quando compatíveis com a nova Constituição. (NETO, 2009, p. 145).
Ainda no âmbito jurídico, o lugar de ordem tem sido utilizado para apor os princípios em posição de superioridade em relação às leis. Nesse sentido, aponta Carrazza (2002) que o princípio ocupa posição de proeminência em relação a outros tipos de normas, em razão do elevado grau
Brasil ser o único país de língua portuguesa da América do Sul.
Os lugares do existente dão prevalência ao que existe, é atual e real em relação ao possível, eventual ou impossível.
Esses lugares são muito úteis quando se trata de planejamento e projetos. É necessário que decisões sejam tomadas com base em elementos existentes ou, se não existentes, passíveis de aferição. Na área do Direito, não se pode autorizar a exploração de atividade econômica significativamente poluidora sem que seja realizado previamente
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Depois de extintas as relações de trabalho, a reparação de direitos sociais violados se dá sob margens infinitamente inferiores àquelas prometidas no ato da contratação obreira.
Estudo de Impacto Ambiental, bem como não se pode autorizar a realização de grandes empreendimentos, a exemplo de shopping centers, sem que se avalie previamente os impactos na vizinhança, o planejamento viário, o transporte urbano, a existência de áreas de expansão comercial próximas ao entorno do shopping e, evidentemente, o impacto ambiental, a exemplo da poluição sonora, a coleta de lixo e o aumento da emissão de gás carbônico no local. Exemplo de análise nesse sentido foi feita em artigo a respeito da possibilidade de construção de um Shopping Center no Município de Aral Moreira-MS, em artigo publicado na Editora Atena:
[...] A construção de um shopping center gera impactos positivos, como valorização imobiliária comercial do entorno, geração de emprego e renda a população local.
Atualmente escolhe-se um lugar para estabelecimento, embasados em um levantamento socioeconômico e pressupõe-se que terá um grande número de pessoas que se deslocará para comprar, essa área de influência terá aumento de fluxo de veículos no trânsito, onde serão construídos outros empreendimentos satélites, sendo com a construção de shoppings são em áreas carentes de serviços, tornam-se estruturadores urbanos trazendo empreendimentos (VALOR ECONÔMICO, 2012). Outro benefício da ICC por ser um setor crescente, é a interferência no desenvolvimento econômico com a geração de emprego, sendo uma área que contribui para o desenvolvimento regional com oferta de empregos formais, implicando em melhoria de renda para a população mais carente, sendo o setor que mais emprega no Brasil, melhorando a economia, pois estimula a população a consumir e possibilita bemestar social (OLIVEIRA; MEDEIROS; PEREIRA, 2015).
A construção de um empreendimento como um shopping center traz
benefícios socioeconômicos a região de implantação, e neste caso será de grande importância para trazer mais empreendimentos e movimentar a economia local, assim como a geração de empregos que possibilitará melhor qualidade de vida a população da região, entre outros benefícios.
É natural que os impactos ambientais tenham surgido a partir da evolução humana, desde que o homem começou a progredir em seu modo de vida, aumentando gradativamente os impactos gerados na natureza, como na derrubada de árvores para construção de abrigo e obtenção de lenha, tornando cada vez mais visíveis as alterações no meio ambiente. As alterações na cadeia alimentar, mudanças climáticas e diminuição da biodiversidade foram possivelmente alguns dos primeiros impactos ocasionados pela ação do homem (RIOS, 2014).
Por outro lado, a construção desde mesmo shopping center, pode trazer impactos negativos aos ambientes naturais, por isso se faz necessário grande responsabilidade
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dos envolvidos na obra, como seguir criteriosamente as normas e regimentos ambientais, assim como grande mobilização social e principalmente de órgãos competentes afim de fiscalizar tais empreendimentos, para evitar possíveis impactos e aplicar punições severas em situações que ferem os códigos ambientais.
Praticamente todas as atividades desenvolvidas durante a construção civil são geradoras de resíduos (AZEVEDO, 2006). A construção civil é um setor onde as atividades geram grandes impactos ambientais, desde a extração de matérias primas para fabricação de produtos, até o descarte de resíduos gerados, provocando grande mudanças na paisagem (BARRETO, 2005). Durante a construção de um empreendimento, o ambiente sofre alterações em sua paisagem, devido ao uso excessivo dos recursos naturais juntamente com elevada produção de resíduos, a ICC consolida-se como atividade altamente degradante ao ambiente (SILVA et. al., 2015) [..]. (TRENKEL.; FEITOSA; GUEDES, ; RODRIGUES, 2021).
Com efeito, ao aprovar a licença para construção de um Shopping, a Administração Pública Municipal não pode deixar de analisar todos os impactos na legislação urbanística, trânsito, meio-ambiente, econômicos e sociais, dentre outros relevantes para avaliação do impacto do empreendimento na vida dos munícipes. E para essa análise, deve utilizar de dados concretos, que permitam analisar seus impactos não só no presente, mas no futuro, devendo se valer, dessa forma, do lugar do existente.
Debate a respeito do lugar do existente foi travada quando se discutia o fim da prisão após decisão de segunda instância. Defensores da manutenção do regime de prisão em segunda instância advogavam que 22 mil pessoas seriam postas em liberdade, caso a decisão do STF a revogasse (SOUSA,
2018). Ocorre que esse número era de presos provisórios e nem todos eles seriam libertos, porque a liberdade deles, ou não, dependia da manutenção, ou não, dos requisitos que tratam da prisão temporária, não da prisão definitiva. O número real, todavia, segundo dados do CNJ seria 4.895 presos (DEVENS, 2019). Opor números e estatísticas reais a dados não confiáveis ou irrelevantes para o que se pretende decidir são estratégias para colocar o argumento que se quer defender no lugar do existente.
Os lugares de essência apontam que prevalece a essência sob a forma de que se reveste. Figueiredo (2012), em sua dissertação de mestrado, ao falar da essência, aponta que ela é definida a partir de um conjunto de características que tornam algo único e definem sua essência, a partir do exemplo do elemento químico Carbono:
O carbono, por definição, é um elemento químico que possui número atômico seis, massa atômica doze, possui duas formas alotrópicas naturais, o diamante e o grafite e, se encontra em estado sólido à temperatura ambiente. Todas as propriedades enumeradas na definifição do carbono são essenciais. Visto que a propriedade de ser um elemento químico de número atômico seis e massa atômica doze é atribuída exclusivamente ao carbono, independente das condições ambientais às quais as suas partículas sejam submetidas ou do seu modo de apresentação na natureza. Assim como, a propriedade de ter o grafite e o diamante como formas alotrópicas naturais é essencial na medida em que o carbono não poderia não ter o grafite e o diamante como formas alotrópicas naturais. Portanto, estas propriedades são essenciais individuadoras. E, por fim, a propriedade de ser sólido à temperatura ambiente é essencial em função dela caracterizar o único estado possível para as partículas de carbono sob tais circunstâncias. Ou
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seja, jamais encontraremos partículas de carbono no estado líquido ou gasoso sob temperatura ambiente.
A propriedade de ser sólido à temperatura ambiente é comum a diversos elementos químicos, como a prata, o ouro, dentre outros, por isso, esta propriedade é essencial naoindividuadora. Em suma, conhecer a natureza de um objeto significa conhecer a sua definição, isto é, o conjunto das suas propriedades essenciais que caracteriza e identifica o objeto enquanto tal em qualquer circunstância (FIGUEIREDO, 2012, p. 10).
Os lugares de essência apontam que prevalece a essência sob a forma de que se reveste. Esse argumento é muito usado no Direito do Trabalho, no qual relações contratuais cíveis são desconstituídas, ao argumento de que se tratavam, na verdade, de relação de emprego. Ou seja, apesar de a forma que envolvia aquela relação aparentemente parecer determinada coisa, em essência, era outra. Destaque nesse sentido a notícia julgado prolatado no Eg. TRT-4ª Região, no qual um empregado foi obrigado a constituir Pessoa Jurídica para prestar serviços nesta condição, mas trabalhava como se empregado fosse:
Reconhecido vínculo de emprego a trabalhador obrigado a constituir empresa para receber salários
A 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS) manteve o reconhecimento de vínculo de emprego entre um trabalhador e a Br Tronic Eletrônica, empresa que presta serviços à Thyssenkrupp Elevadores. Os desembargadores confirmaram, nesse aspecto, entendimento da juíza Julieta Pinheiro Neta, titular da Vara do Trabalho de Guaíba. Cabe recurso ao Tribunal Superior do Trabalho (TST).
A decisão ocorreu pela constatação da fraude chamada de “pejotização”. Trata-se do procedimento no qual
a empresa obriga um empregado a criar pessoa jurídica em seu nome (daí o apelido “pejotização”), para que receba salário como se fosse prestador de serviços, o que exclui encargos trabalhistas como férias, décimo terceiro, Fundo de Garantia, entre outros.
No caso analisado, segundo os magistrados da 2ª Turma, ficou comprovado que o empregado trabalhava anteriormente na própria Thyssenkrupp Elevadores. Posteriormente, a fábrica de elevadores terceirizou um dos seus departamentos e a Br Tronic Eletrônica foi criada para prestar esse serviço terceirizado. O trabalhador foi convidado a integrar a nova empresa inicialmente como sócio a partir de agosto de 2004 e permaneceu nessa condição até maio de 2005. No período seguinte, seguiu trabalhando, sem assinatura em Carteira de Trabalho, até agosto de 2006, quando foi “forçado” a criar empresa em seu próprio nome para continuar desenvolvendo suas atividades, condição que manteve até 2013.
No processo, entretanto, foi comprovado que o reclamante era gerente da empresa Br Tronic Eletrônica, inclusive com poder de mando diante dos empregados, e que, portanto, a criação da empresa individual em seu nome teve apenas o objetivo de sonegar direitos trabalhistas. Segundo o relator do recurso apresentado à 2ª Turma, desembargador Marcelo José Ferlin D’Ambroso, “a constituição de pessoa jurídica, nestes casos, funciona como máscara da relação de emprego existente, assim como para frustrar a aplicação dos preceitos consolidados, furtando-se o real empregador a arcar com ônus de seu negócio na medida em que busca, fraudulentamente, fugir à conceituação do art. 2º da CLT, assim como tenta descaracterizar
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seus empregados do tipo do art. 3º do mesmo diploma”.
Reconhecido o vínculo empregatício, a Br Tronic Eletrônica deve pagar todos os encargos trabalhistas decorrentes.
Os desembargadores da 2ª Turma atenderam o pedido do trabalhador de considerar a Thyssenkrupp Elevadores e uma terceira empresa, de propriedade da esposa de um dos sócios da Br Tronic, responsáveis subsidiários pelos créditos devidos. Apesar de ter reconhecido o vínculo empregatício na primeira instância, a juíza Julieta Pinheiro Neta havia excluído do processo essas duas empresas. Com a responsabilidade subsidiária, caso não a BR Tronic não pague as parcelas devidas, as demais empresas devem arcar com as quitações.
Relação de trabalho é qualquer relação admitida pelo ordenamento jurídico em que uma pessoa coloca sua força de trabalho à disposição de uma pessoa física ou jurídica. Como exemplos, existem o trabalho voluntário, o trabalho autônomo, o estágio, a relação de emprego, entre outros.
A relação de emprego é aquela definida pelos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho. Conforme o dispositivo legal, para que haja relação de emprego é necessário que o trabalho seja prestado por pessoa física, com pessoalidade (o empregado contratado deve prestar o serviço pessoalmente, não pode se fazer substituir por outro), onerosidade (as atividades são realizadas mediante salário), não eventualidade (o trabalho deve repetir-se ao longo do tempo na empregadora, não pode ser um evento isolado) e subordinação (o
empregador tem direito de dirigir o trabalho, dar ordens ao empregado, que está juridicamente subordinado à empresa). Pelo princípio da primazia da realidade, se estes requisitos estiverem presentes, mas a situação formal de um trabalhador estiver caracterizada como outra relação, os órgãos de proteção do trabalho devem desconstituir a situação formal e reconhecer a situação real, já que o artigo 9 da CLT prevê que são nulos de pleno direito os atos que visem fraudar a relação de emprego. Processo 0021209-20.2014.5.04.0221 (RO) (MACHADO, 2016).
A figura popular do “lobo em pele de cordeiro” é uma utilização figurativa em fábula do lugar de essência, em sua transposição para a realidade, quando uma pessoa de aparente personalidade dócil e cordeira é, na verdade, má e traiçoeira, em sua essência.
Uma aplicabilidade muito corrente do lugar de essência ocorre para definir o conceito de um determinado Instituto Jurídico, quando é necessário apreender sua essência para entender seu significado. Cavalcanti (2012) faz exatamente isso quando ao conceituar o instituto civil de Perigo, busca se reportar ao que está na gênese de sua essência, o estado de necessidade da pessoa, o que a leva a assumir uma obrigação excessivamente onerosa:
[...] Da simples leitura do artigo, é possível extrair a essência do instituto, que se baseia, sobretudo, na noção de necessidade. O necessitado assume a obrigação excessivamente onerosa como forma de evitar um dano. (CAVALCANTI, 2012).
Dessa forma, o lugar de essência é fundamental para definição da natureza das coisas ou da extensão conceitual de relações que as envolvem ou até mesmo para refutar argumentações que visam colocar determinada situação em lugar de essência, quando, na verdade, não está.
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Para desenvolvimento de determinada argumentação, os lugares não são utilizados isoladamente, mas de forma correlacionada, a depender da linha de argumentação a sustentar.
Por exemplo, ao combinar o lugar de ordem com o de qualidade, o inicial é considerado superior, único e determinante. Com base nessa linha argumentativa, podemos considerar: os horrores da 2ª guerra mundial como fundamentais para o surgimento da Declaração de Direitos Humanos; a exploração dos trabalhadores na revolução industrial como fundamentais para o surgimento do Direito do Trabalho; e a escravidão como causa do racismo no Brasil. Tomemos como exemplo a argumentação sobre Direitos Humanos, no site H Fundo Brasil:
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi ocasionada, principalmente, pela tragédia humanitária ocorrida no período da Segunda Guerra Mundial (19391945). Esse marco na história da humanidade, revelou ao mundo situações de genocídio que transcenderam os campos de batalha. Houve um verdadeiro extermínio de pessoas, milhões delas. Apenas pelo fato de existirem e serem quem são, judeus, crianças, mulheres, negros, homossexuais, idosos e camponeses tiveram suas vidas extintas.
Com o conhecimento dos povos sobre tal catástrofe, sentimentos de revolta e medo fizeram com que as pessoas buscassem o resgate da racionalidade humana. O objetivo era estabelecer um consenso universal de que todos os seres humanos têm o direito de viver. Sem ressalvas, independente de onde morem, que línguas falem, qual condição social possuam ou quaisquer outras características.
Sendo assim, em 1948, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos foi constituída em 30 artigos destinados à preservação da vida humana para todas e todos (H FUNDO BRASIL, 2022).
Embora possam ter ocorrido outras tragédias humanitárias na história da humanidade, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) é colocada no lugar de ordem, como fonte primária e superior a todas as outras como causa da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Além do lugar a causa, é colocada no lugar de qualidade, enfatizando valores humanitários que jamais poderiam ter sido violados na magnitude que o foram. Desse modo, a linha argumentativa com sobreposição de lugares para a causa da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a torna única e determinante.
Uma outra sobreposição possível é dar importância ao lugar de qualidade por ampliar lugares de quantidade. Essa linha argumentativa ocorre, por exemplo, quando se enfatizam as características de um líder, o qual pode influenciar um grande número de pessoas pelas suas características únicas. O argumento da quantidade (grande número de pessoas admiradoras) somase ao argumento de qualidade (líder com características únicas), com o fito de enfatizar, positivamente, as características de um líder.
O lugar da essência pode somar-se ao argumento do existente para justificar a existência de Deus. Argumento muito consistente nesse sentido está no versículo do Salmo 19 da Bíblia Sagrada: Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos. (Salmos 19,1).
Em argumentação sobre a existência ou não de Deus, quem defende sua inexistência pode sustentar que ele não existe porque ele não pode ser visto. Em contraposição a esse argumento, pode-se dizer que as obras dele podem ser vistas e elas atestam sua existência (definem a essência de Deus pelas suas obras), deixando claro que nem os céus nem o firmamento são obras humanas. A esse lugar, o da essência, se sobrepõe o lugar do existente, pois o céu e o firmamento,
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assim como todas as coisas, têm uma fonte, uma origem, um nascedouro, e a essa fonte se atribui a Deus nessa argumentação.
Outro exemplo de correlação de lugares é argumentação sobre o Estado de Perigo, desenvolvida por Cavalcanti (2012). Ao discorrer sobre o Estado de Perigo, o autor, não apenas se reporta ao conceito legal para definir o Instituto Jurídico, se valendo do lugar de ordem, utilizando de outros lugares em sua argumentação. O autor também explica o conceito a partir de sua essência (lugar de essência) e também se vale do lugar de existência, na medida em que se reporta a elementos históricos do direito comparado, para situar o instituto jurídico na história e se utiliza o autor, ainda, do argumento de quantidade, para exemplificar diversas situações ensejadoras do estado de perigo, utilizando de vários lugares como o fito de demonstrar a compreensão conceitual do Instituto Jurídico:
Para o início do estudo do tema, necessário a análise do texto legal e do contexto no qual está inserido. Enuncia o Código Civil:
Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.
Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias (ANGHER, 2007, p. 206).
Da simples leitura do artigo, é possível extrair a essência do instituto, que se baseia, sobretudo, na noção de necessidade. O necessitado assume a obrigação excessivamente onerosa como forma de evitar um dano.
Lotufo (2003) ensina que a categoria dogmática do estado de perigo e do estado de necessidade é fruto do desenvolvimento da ciência jurídica da Europa Continental, notadamente da cultura germânica do período oitocentista, com profundas raízes na tradição medieval.
O Direito Romano, embora em experiência tênue, fixou as primeiras bases do instituto do estado de perigo como conhecemos hoje. Na época justiniana, o contrato celebrado em estado de perigo era considerado válido “se uma pessoa recebia alguma coisa por defender outra da violência dos inimigos, ou dos ladrões, ou do povo, já que esta última assumira a obrigação de dar alguma coisa em pagamento” (LOTUFO, 2003, p. 425). No entanto, aproveitar-se do estado de perigo poderia ser considerado o mesmo que ter incutido tal temor, podendo o negócio ser anulado.
Outra aplicação do instituto derivava da Lex Rhodia, relacionada a regras do Direito Marítimo, aplicáveis no âmbito da Bacia do Mediterrâneo. Partia do pressuposto de que entre os proprietários de cargas de um mesmo navio havia uma comunhão para assumir os riscos inerentes ao perigo do transporte (sinistros marítimos), sendo autorizado ao comandante da embarcação jogar ao mar mercadorias para aliviar o peso da embarcação. Pela comunhão de perigo, os proprietários das mercadorias salvas ficavam obrigados a indenizar os proprietários das mercadorias perdidas, proporcionalmente ao valor da embarcação e da mercadoria salva.
Lotufo (2003) aponta que nos diplomas civilistas germânico e austríaco observa-se expressa previsão somente quanto ao estado de necessidade. Na Itália, o Código Civil de 1942 já dispõe sobre as regras para rescisão do contrato em estado de perigo.
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No Direito Brasileiro a fonte mais remota de alusão ao estado de perigo encontrava- se no Código Comercial, arts. 735 a 739, revogados pela Lei nº .542/86, e estava relacionada ao Direito Marítimo. Consoante informa Nery Junior e Nery (2005, p. 248), “o estado de perigo, como vício do negócio jurídico, era previsto no art. 319 do Projeto Coelho Rodrigues e, posteriormente veio a constar do art. 121 do Projeto Beviláqua”. A norma fora rejeitada pela comissão revisora do Código de 1916.
No anteprojeto do Código das Obrigações de 1963, que serviu de base para a elaboração do novel Código Civil, Caio Mário da Silva Pereira consignou ao lado da lesão, o estado de perigo, no capítulo referente aos defeitos do negócio jurídico.
Pela leitura do texto legal, entendese que ocorre o estado de perigo quando o agente, diante de situação de grave perigo conhecido pela outra parte, emite declaração de vontade para salvar-se ou pessoa próxima, assumindo obrigação excessivamente onerosa.
É, portanto, “a situação de extrema necessidade que conduz uma pessoa a celebrar negócio jurídico em que assume obrigação desproporcional e excessiva” (GONÇALVES, 2005, p. 392).
São exemplos trazidos pela doutrina, extraídos de Gagliano e Pamplona Filho (2004), Diniz (2004) e Gonçalves (2005): o indivíduo que está se afogando promete quantia exorbitante ao seu salvador; indivíduo abordado por assaltantes promete recompensa ao seu libertador; vítima de acidente de automóvel que assume obrigação excessivamente onerosa para que
não morra no local do acidente; o doente, em perigo de vida, que paga honorários excessivos para o cirurgião atendê- lo. (CAVALCANTI, 2012).
São inúmeras as possibilidades de combinação de lugares, as quais não são possíveis esgotar no bojo deste trabalho. Saber apor os argumentos em lugares corretos e adequadamente combinados torna mais consistente a argumentação.
Os lugares são premissas, subtendidas e não mencionadas expressamente, para justificar as escolhas argumentativas para convencimento de determinado auditório. Embora seja um tema geral de filosofia, aplicável em todas as áreas do conhecimento, a maior parte dos exemplos de aplicabilidade prática foram centrados na área jurídica.
Alguns desses lugares utilizamos de maneira inconsciente, a exemplo do lugar de quantidade, quando buscamos utilizar o maior número de argumentos para sustentar nossa tese. O lugar de qualidade é usado a todo momento no dia a dia, ao se destacar qualidades
únicas do objeto ou da pessoa a favor de quem se argumenta. O lugar de ordem busca lugares de hierarquias superiores, utilizado na argumentação jurídica quando busca fundamentar seus argumentos no mais alto patamar jurídico (a Constituição Federal e os julgados do STF em matéria constitucional). O lugar do existente busca amparar os argumentos em elementos concretos ou passíveis de concreção, desviando-se de argumentos não amparados em fontes verdadeiras ou dados reais. O lugar de essência é utilizado quando se pretende desconstituir uma relação jurídica, que aparenta ser uma coisa, mas é outra. Todos esses lugares podem ser combinados de modo a reforçar a argumentação e tornar mais crível a argumentação. Importa destacar que, em nível de contraditório, há de colocar em lugar correto de modo a superar a força argumentativa do adversário, de modo que
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o correto manejo dos lugares é fundamental para construir um texto convincente, mormente na área jurídica, no qual o manejo correto dos argumentos pode ser decisivo para obtenção de uma vitória judicial.
Sem ter a pretensão de esgotar o assunto, este breve estudo procurou demonstrar como o conhecimento filosófico a respeito dos lugares pode auxiliar na construção de uma argumentação convincente, especialmente no âmbito jurídico. O conhecimento a respeito dos lugares e sobre como colocar/ordenar os argumentos em lugares corretos de modo a exercer convencimento sobre o auditório é uma inegável contribuição da filosofia para o estudo do Direito.
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Os avanços em tecnologias de informação fizeram com que fosse ressignificado o conceito clássico de economia GIG, a partir da introdução das plataformas digitais para alcançar uma ampla gama de atividades, nas quais a economia de plataforma deixou de ser uma mera ferramenta de trabalho e passou a ser o principal motor impulsionador da economia GIG. Através deste artigo, propõe-se avaliar os principais tipos de plataforma digital, finalidades e efeitos no mundo do trabalho, de modo a evidenciar seus aspectos nocivos para o trabalhador e apontar caminhos a ser adotados na direção de um trabalho digno para os GIG-Workers
1 CAMPOS, C. S. Mestrando em Regulação e Empresa Transnacional da Universidade Nove de Julho/SP (UNINOVE) e Juiz do Trabalho Substituto. Currículo do sistema currículo Lattes. Brasília, atualizado em 25 fev. 2022. Disponível em: http://lattes.cnpq. br/5136051413074576. Acesso em: 27 abr. 2022. 2 GONÇALVES, M. F. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012) e Desembargador Federal do Trabalho. Currículo do sistema currículo Lattes. Brasília, atualizado em 27 abr. 2022. Disponível em: http://lattes.cnpq. br/7082051387248069. Acesso em 27 abr. 2022.
Palavras-chave: GIG Economy. Plataformas digitais. Mercado de trabalho free-lance. Microtrabalho. Uberização.
O conceito clássico de economia GIG (GIG Economy) tem relação direta com a forma de realização do trabalho. Também chamada de “economia compartilhada”, ocorre quando empresas ou empregadores optam por contratar funcionários independentes autônomos (freelancers) ou temporários, em vez de contratar funcionários em período integral.
O termo GIG-workers designa todos aqueles contratados para concluir uma tarefa ou projeto, ou suprir uma demanda de trabalho temporário no âmbito da chamada GIG Economy, alcançando os trabalhadores temporários e os freelancers. O trabalhador temporário é contratado pela empresa de trabalho temporário e não pela empresa para a qual trabalhará. A agência de trabalho temporário atua como intermediária entre o trabalhador e a empresa, contrata empresas interessadas, cobra os clientes e paga diretamente os trabalhadores temporários. Já os freelancers (autônomos),
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também conhecidos como contratantes independentes, atuam como seus próprios gerentes e são responsáveis por garantir o trabalho e cobrar o cliente pelo serviço realizado.
Os avanços em tecnologias sofisticadas de informação e comunicação geraram no âmbito da economia GIG o trabalho por intermédio de plataformas digitais, ferramentas de intermediação entre os que atuam no mercado de trabalho. Consequentemente, os avanços tecnológicos decorrentes do uso de ferramentas tecnológicas avançadas fizeram com que fosse ressignificado o conceito clássico de economia GIG, para alcançar uma ampla gama de atividades, nas quais a economia GIG passou a ser vista do ponto de vista das plataformas digitais, passando a ser chamada entre os estudiosos do tema de “economia de plataforma” ou “GIG +” (HEALY; NICHOLSON; PEKAREK, 2017).
Neste trabalho, serão avaliados aspectos concretos da economia GIG ou GIG+ e o que isso significa para os trabalhadores em geral.
Da GIG economy à economia de plataforma
Há registros de que o termo “GIG”, na língua inglesa, já estava em uso em 1905, porém esse uso era desconhecido. Com certeza etimológica, passou a ser utilizado para designar shows de músicos de Jazz em 1915 (HARPER, 2021).
A utilização do termo em shows de Jazz evidencia a natureza da expressão. O show de Jazz pode se repetir ou não, pode ficar em cartaz por uma noite ou alguns meses. Não há garantia de cobertura dos custos da apresentação e há liberdade na estipulação da remuneração. A temporariedade, incerteza e precariedade são elementos presentes em um show musical dessa natureza em relação aos trabalhadores da banda. E não só a tarefa dos músicos é marcada por essa sazonalidade e incerteza, mas também a daqueles que do show dependem diretamente, como técnicos
de som, iluminação e trabalhadores de artes gráficas audiovisuais em shows.
Com base nessa etimologia, o termo GIG foi usado pela primeira vez para designar um trabalho temporário e sem vínculos em 1952, conforme explica Mena (2016):
Murer diz que a Gig Economy não pode ser considerada uma invenção e deve ser entendida como uma confluência de fatores econômicos, políticos e sociais. Segundo Geoff Nunberg, o termo ‘gig’ aparece pela primeira vez numa peça de Jack Kerouac, de 1952, na qual ele narra um trabalho temporário realizado para ferrovia Southern Pacific, em San Jose. É na década de 1950, também nos Estados Unidos, que a geração ‘beat’ vai aceitar qualquer tipo de trabalho parcial e sem vínculos como parte de uma experiência de vida (MENA, 2016).
Em ambas as situações, o uso do termo GIG está associado à realização de trabalhos temporários, passando, ao longo do tempo, a ser acrescido da expressão Economy (GIG Economy) em associação direta ao trabalho. Outros termos também são utilizados para designar esse trabalho: “Freelance Economy”, “Economia sob demanda” ou “1099 Economy” (Op. Cit., 2016). Trata-se do mercado de trabalho que alcança trabalhadores temporários e sem vínculo de emprego (autônomos, freelancers) e empresas que os contratam para serviços sob demanda e de natureza temporária. A expressão associa-se ao conceito econômico na medida em que pressupõe uma transformação no mercado de trabalho pela substituição de empregos permanentes em locais e horários fixos por formas mais flexíveis, trabalhos sob demanda e remuneração por serviço.
Na GIG Economy, a mão de obra pode ser contratada de acordo com demandas pontuais e em variados mercados e regiões, sendo constituída por trabalhadores diversos, e o trabalho realizado, a depender da sua natureza, pode até ser realizado à distância, sem definição de horário e com liberdade para
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definição da remuneração do serviço, fixada ao alvedrio das partes e sem interferência estatal.
Durante muito tempo, a atividade autônoma e temporária conviveu em relativa harmonia com a atividade permanente, marcada por relações jurídicas de emprego e de natureza mais duradoura, sendo cada uma delas marcada pela natureza das atividades que as regulam. Assim, por exemplo, uma universidade normalmente contrataria um professor por relação de emprego, porque essa é a atividade fim da universidade e, dessa forma, a necessidade de mão de obra dessa natureza é permanente. Se essa mesma universidade precisasse de mão de obra temporária para conduzir um professor de casa para o trabalho em razão de uma momentânea dificuldade de locomoção, contrataria um profissional autônomo
trabalho, acarretando situações, em sua maior parte, desfavoráveis a esses trabalhadores, como veremos na sequência ao analisarmos as diversas formas de realização do trabalho.
Categorização das plataformas
Segundo a OIT (2018), as plataformas digitais podem ser categorizadas da seguinte forma:
a) Plataformas baseadas na web: propõem um trabalho virtual, via remota, que independe da localização geográfica dos interessados e ofertantes, permitindo a utilização de um mercado de trabalho global: a.1) Mercado de trabalho free-lance (ex. Upwork e Freelancer);
“Com o advento da Internet e o surgimento das plataformas digitais de intermediação, essa situação mudou. As plataformas agregaram tecnologias que permitiram que a economia GIG se expandisse de forma substancial e crescente para domínios inalcançáveis aos trabalhadores individualmente considerados, incluindo venda de mercadorias, serviços e prestação de trabalho”
(taxista), situado no âmbito da GIG Economy.
Com o advento da Internet e o surgimento das plataformas digitais de intermediação, essa situação mudou. As plataformas agregaram tecnologias que permitiram que a economia GIG se expandisse de forma substancial e crescente para domínios inalcançáveis aos trabalhadores individualmente considerados, incluindo venda de mercadorias, serviços e prestação de trabalho. Dessa forma, a economia GIG passou a ser somente parte de uma nova economia expandindo, de forma cada vez mais crescente, seu domínio sobre a economia. Essa nova economia é a chamada economia de plataforma, economia compartilhada ou GIG+.
Dessa forma, os GIG-Workers passaram a utilizar o trabalho em economia de plataforma para a venda de sua força de
a.2) Execução de microtarefas em plataformas digitais (ex. AMT, Clickworker); a.3) Trabalho criativo baseado em concursos (ex. 99designs).
b) Plataformas locais: propõem trabalhos não virtuais, baseados em uma tarefa material, não virtual:
b.1) Alojamento (ex. Airbnb); b.2) Transporte (ex. Uber, Lyft); b.3) Entregas (ex. Devileroo);
b.4) Serviços domésticos e cuidados (ex. Taskrabbit).
As plataformas de trabalho free-lance são mediadoras de atividades profissionais não permanentes de média duração, a
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exemplo de: marketing, TI, revisão, tradução, contabilidade, design, desenvolvimento de softwares e engenharia. Essas tarefas podem exigir alta qualificação, como graduação, mestrado ou doutorado, ou pouca ou nenhuma qualificação. A depender da atividade, o contratante pode exigir qualificação para o exercício da tarefa, como experiência anterior e qualificação legal. Em relação ao ingresso na plataforma, não há barreira ou vigilância quanto à localização geográfica do participante. Ao contrário, estimula- se que seja alcançado o máximo de nações, para ampliar tanto a oferta quanto a procura, ampliando e estimulando a competitividade. A dispersão geográfica facilita a disponibilização de mão de obra 24 horas por dia, por força dos diferentes fusos horários de origem geográfica dos integrantes da plataforma. As plataformas atuam de modo semelhante: exigem um cadastro com discriminação das habilidades e competências, permitem uma interação direta com o futuro contratante e possibilitam pagamento por intermédio da própria plataforma, consoante esclarece Sartor (2019) sobre o trabalho nas plataformas freelancer.com e upWork:
UpWork é uma plataforma muito
popular fora do Brasil. Trabalha com diversos tipos de freelancers além de redatores, como designers, desenvolvedores de softwares e engenheiros.
Os clientes postam seus pedidos e aguardam contato dos profissionais. A partir disso, combinam detalhes sobre cada demanda. No site, é comum adotar o valor com base na hora de trabalho ou pelo projeto todo.
O pagamento é feito pela própria plataforma, o que deixa o processo mais seguro. No entanto, assim como os sites já mencionados, uma parcela do valor é direcionada à própria UpWork.
O site original é em inglês, então se você tem boa fluência na língua, é uma super oportunidade. Mas também é possível encontrar pedidos para redatores brasileiros. Muitas vezes, são clientes que moram fora do país e precisam da ajuda de alguém daqui.
No site Freelancer.com, é só cadastrar seu perfil, preenchendo detalhes pessoais, talentos, habilidades e competências. Há oportunidades para uma variedade de trabalhos além da redação, como marketing, TI, revisão, tradução, contabilidade.
Depois, é só pesquisar por projetos, usando tags, para que apareçam aqueles mais adequados. Ao encontrar um chame a sua atenção, você envia uma mensagem ao solicitante e aguarda o retorno.
É interessante saber que o cliente receberá várias outras propostas junto das suas. Assim, quanto mais você investir no seu perfil e na sua forma de apresentação, mais inclinado ele ficará a acertar o job com você.
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(SARTOR, 2019).
Há várias plataformas que permitem trabalhar como free-lancer, voltadas para públicos e profissionais específicos, dentre as quais as plataformas acima citadas são apenas dois exemplos, apontando para uma tendência de difícil reversão.
As microtarefas são tarefas-padrão categorizadas em plataformas, cuja realização depende do exercício da inteligência humana, como, por exemplo, web design, investigação de dados, classificação de vídeos, marcação de imagens, reconhecimento facial, transcrição de áudio e vídeo, investigação de dados, transcrição e categorização, criação de tráfego artificial em redes sociais e web sites, pesquisa na Internet e sequenciação de eventos.
Muitas dessas atividades são utilizadas para coletas de dados para treinar algoritmos de aprendizagem, baseados em Inteligência Artificial. A tarefa dessa natureza encerra em si um contrassenso, na medida em que os próprios trabalhadores contribuem com seu trabalho para que seu próprio trabalho seja extinto em um futuro próximo, através da futura automação.
Uma das plataformas de microtrabalho mais conhecidas é a AMT (Amazon Mechanical Turk). A maioria das tarefas são de simples realização. Envolvem “reconhecer rostos, transcrever recibos, moderar comentários, fotos, vídeos e áudios” (NEPOMUCENO, 2021). A remuneração paga depende do número de tarefas feitas na plataforma, avaliadas em unidades denominadas HITs. Quanto mais HITs acumuladas, mais oportunidades de melhor remuneração. Portanto, a remuneração é variável. Algumas tarefas são pagas como 0,01 centavos de dólar e outras podem chegar a $5,00 por hora (Op. Cit., 2021).
Uma outra forma de microtarefa são as plataformas de fazendas de clique, utilizadas por influencers, artistas, políticos, empresas
e outros profissionais com o objetivo de comprar seguidores e curtidas em redes sociais como Instagram, Facebook, YouTube e TikTok, obtendo, assim, engajamento nas redes. Isso ocorre por intermédio de milhares de pessoas que recebem valores na casa dos centavos por cada tarefa dessa natureza realizada. Elas passam o dia clicando, seguindo e comentando em redes sociais e, para sobreviver dessa tarefa, precisam ter múltiplas contas, em vários computadores e smartphones (GROHMANN; SOARES; MATOS; AQUINO; AMARAL; GOVARI, 2021).
Além da baixa remuneração, a principal crítica ao microtrabalho é o pouco cuidado à saúde e à segurança dos que executam as microtarefas, tarefas repetitivas que poderiam se assemelhar a boots humanos.
em concursos
A plataforma de trabalho criativo baseado em concursos envolve o trabalho em plataformas especializadas em conteúdo específico, voltadas para a criação de conteúdo criativo, cuja contratação é precedida de um concurso. Normalmente, é promovido um concurso, competição ou fórum on-line entre interessados, e a pessoa vencedora é contratada.
Exemplo desse tipo de plataforma é a plataforma 99designs, cuja página na Internet menciona um concurso dessa natureza vencida por um designer mexicano, em concurso com um designer americano e um designer vietnamita para criação de marca para a empresa australiana Levels, localizada em Melbourne, na Austrália (99DESIGNS, 2021).
Segundo o site Wikipédia (2019), marcas famosas globais têm investido em trabalhos criativos, que podem alcançar diversas atividades profissionais, cuja criatividade é predominante para sua realização, incluindo: design de vestuário, escrita, composição de canções, arquitetura, vídeo, projeto de música/som, design
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gráfico, publicidade, artes, testes e desafios empresariais (WIKIPÉDIA, 2019, tradução nossa).
Alojamento Plataformas de alojamento permitem conectar ofertantes e interessados em acomodações e hospedagens de curta duração.
Segundo o Wikipedia (2021), a maior plataforma de hospedagem do mundo é o AIRBNB, com 10 milhões de usuários. No Brasil, não há regulamentação específica sobre a plataforma. No entanto, vários países a regulamentaram, com o objetivo principal de diferenciar esse contrato dos contratos de locação típicos:
No mundo, centenas de cidades possuem restrições para locações de curto prazo. Na Europa, cidades como
em 180 dias por ano o tempo que um imóvel pode ser alugado.
No Brasil ainda não há legislação que regulamente o Airbnb. No entanto, em abril de 2021, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que condomínios residenciais podem impedir o uso de imóveis para locação pelo Airbnb.
Segundo a Quarta Turma do Tribunal, o sistema de reserva de imóveis pela plataforma digital é caracterizado como uma espécie de contrato atípico de hospedagem –distinto da locação por temporada e da hospedagem oferecida por empreendimentos hoteleiros, que possuem regulamentações próprias.
Desse modo, caso a convenção do condomínio preveja a destinação residencial das unidades, os proprietários não poderão alugar
“A grande vantagem das plataformas de acomodação é, sem dúvida, o preço. Pode-se optar por locação de apartamento/casa inteira, quarto e quarto compartilhado. Na opção locação de apartamento/casa inteira, os apartamentos são mobiliados e as cozinhas são dotadas de utensílios para cozinhar, o que traz mais conforto”.
Barcelona, Amsterdã, Paris e Veneza, impuseram restrições à plataforma nesse sentido. Em Paris, por exemplo, os anfitriões não podem alugar seus imóveis por mais de 120 dias por ano e estes devem estar regulares perante a prefeitura e adimplentes com os tributos.
Nos Estados Unidos cidades como Washington D.C., Los Angeles e Santa Monica, possuem restrições similares.
No Japão a situação não é diferente. A regulamentação nipônica exige registro dos anfitriões para que possam anunciar seus imóveis na plataforma. Ainda assim, limitando
seus imóveis por meio de plataformas digitais como o Airbnb. No entanto, a convenção do condomínio pode autorizar a utilização das unidades nessa modalidade de aluguel. A alta rotatividade, que pode ameaçar a segurança, o sossego e a saúde do condomínio, são algumas das justificativas da decisão (WIKIPÉDIA, 2021).
A grande vantagem das plataformas de acomodação é, sem dúvida, o preço. Pode-se optar por locação de apartamento/ casa inteira, quarto e quarto compartilhado. Na opção locação de apartamento/casa inteira, os apartamentos são mobiliados e as cozinhas são dotadas de utensílios para cozinhar, o que traz mais conforto e permite
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uma experiência de hospedagem muito próxima a estar na própria casa por um preço muito mais acessível, que dificilmente seria conseguido se a hospedagem fosse em um hotel ou hostel.
As plataformas de transporte intermediam clientes interessados em se deslocar e pessoas em condições de efetuar esse deslocamento por um determinado preço.
A plataforma mais conhecida por esse tipo de serviço é a plataforma Uber. Fundada em junho de 2010, na cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, inicialmente focada em um serviço com carros de luxo, a empresa expandiu rapidamente sua presença pelo mundo e atualmente está presente em mais de 10 mil cidades no mundo, alcançando, em 2020, a impressionante marca de 101 milhões de usuários no mundo (UBER NEWSROOM, 2020).
O sistema baseia-se em modelos de previsão espaço-tempo e sistema de geolocalização, que permite ao usuário identificar os motoristas mais próximos e escolher um deles. O sistema de avaliação por estrelas é o meio de o cliente avaliar o motorista. Embora pareça uma simples avaliação pessoal do serviço, notas abaixo de certo patamar podem significar o desligamento do motorista da plataforma.
O sistema Uber é criticado e enfrenta oposição por diversos motivos. Os taxistas das diversas cidades opõem-se ao sistema, com o qual concorrem diretamente em sua atividade profissional. Riscos de violência e assalto estão sempre presentes, especialmente pelo fato de aceitar dinheiro, fato que encorajou a plataforma a incentivar o uso de cartão de crédito para pagamento das corridas. Custos crescentes, especialmente combustível, manutenção e depreciação do veículo reduziram a remuneração, de modo que alguns deles podem receber abaixo do salário mínimo nacional, apesar de ter que trabalhar muitas horas por dia. Os preços
do serviço são fixados pela plataforma e não pelo fornecedor do serviço. Os sistemas de avaliação são rígidos, de modo que simples reclamações ou quantidades de estrelas abaixo do nível esperado podem significar o desligamento da plataforma. Tantas resistências e objeções fizeram alguns países, a exemplo da China, proibirem o Uber de operar dentro de suas fronteiras. Apesar de tantas objeções, o desemprego e a busca por um trabalho flexível ainda o fazem atrativo para muitos trabalhadores, que veem na plataforma um meio de sobrevivência ou complementação de renda.
O sistema Uber evoluiu e tornouse viável economicamente contrapondo-se à indústria de táxi. Sem as amarras fiscais e tarifárias necessárias para licenciar e para operar um veículo de táxi, o custo de operação do sistema ainda é minimizado por intermédio de uma plataforma inteligente, que substitui o sistema de radiotáxi com bastante eficiência. Outra premissa na qual o sistema baseia-se está em considerar aqueles que operam na plataforma como profissionais autônomos, sem os direitos próprios de um empregado, embora haja diversos aspectos de seu trabalho bastante controlados, a exemplo da própria remuneração, que não é estipulada pelo motorista, e sim por um
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sistema algoritmo.
Outra plataforma de transporte que opera nos EUA e é concorrente direta do Uber é o LYFT, especializada em corridas compartilhadas. A quantidade de passageiros transportados na mesma rota é limitada, a depender da capacidade do veículo. No entanto, esse sistema permite menor custo de transporte para o passageiro e uma maior renda para o motorista, em relação ao transporte individual de passageiros.
As plataformas de entrega atraíram grande número de trabalhadores, pela flexibilidade e pouca infraestrutura para operar no sistema. Basta um cadastro na plataforma e um meio de transporte, que pode ser carro, motocicleta e até bicicleta. A flexibilidade, todavia, é apenas aparente, pois a demanda maior de alimentação por entrega é nos horários de almoço e janta e nos finais de semana - sexta, sábado e domingo -, e não estar presente na plataforma nesses horários significa menores ganhos. Um ponto negativo é que as entregas precisam ser rápidas, para gerar satisfação para os clientes, que avaliam o profissional, e isso gera para o entregador a constante necessidade de andar de forma rápida no trânsito, aumentando o risco de acidentes. Além disso, no trabalho em plataformas de transporte, há a constante tensão de má avaliação por parte dos clientes e a dispensa sumária dos entregadores.
Na Europa, destaca-se a plataforma Deliveroo, originária da Irlanda e hoje presente em diversos países, saindo de uma situação financeira ruim após investimento da Amazon, que passou a ser dona de 16% da startup. Essa plataforma não apenas entrega comida pronta para consumo, mas também produtos de supermercado, o que representa 10% da receita da empresa, consoante destaca Sollito (2021) no site NeoFeed:
O sucesso da Deliveroo foi impulsionado por conta do aumento da demanda durante a pandemia. Após anos operando no vermelho,
a companhia de Will Shu se tornou lucrativa no segundo semestre do ano passado.
Além da entrega de comida, o app permite que seus consumidores comprem produtos de supermercado e a modalidade já representa 10% da receita da empresa.
Em 2020, o faturamento da companhia foi de £ 1,2 bilhão (US$ 1,7 bilhão), alta de 54%. No período, a empresa movimentou £ 4,1 bilhões (aproximadamente US$ 5,7 bilhões) em pedidos de restaurantes e supermercados, um crescimento de 64,3%.
Apenas no Reino Unido, a Deliveroo tem cerca de 50 mil entregadores cadastrados. No ano passado, 20 mil novos restaurantes passaram a fazer parte da plataforma. Hoje, o cliente tem mais de 30 mil opções. Outras 36 redes de supermercados e lojas de alimentos também passaram a oferecer seus produtos no aplicativo da startup.
Apesar do bom resultado no segundo semestre de 2020, a companhia fechou o ano no vermelho, com perdas de £ 223,7 milhões (aproximadamente US$ 310 milhões). No início da pandemia, no entanto, a Deliveroo quase foi a falência, o que fez com que as autoridades antitruste do Reio Unido dessem sinal verde para um investimento de US$ 575 milhões, em rodada liderada pela Amazon, que passou a deter uma fatia de 16% da startup.
O aporte da Amazon havia sido anunciado em maio de 2019, mas foi suspenso pelas autoridades de antitruste, que alegaram preocupações com a competição.
O ano de 2021 já começou com bons resultados. O valor total das
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transações feitas na plataforma em janeiro registrou um aumento de 130% em relação ao ano anterior, na Inglaterra e Irlanda e 112% nos outros mercados em que opera.
Desde sua fundação, em 2013, Deliveroo já captou US$ 1,7 bilhão. Além do Reino Unido está presente em outros países. Na Europa, os serviços estão disponíveis na Bélgica, França, Itália, Holanda e Espanha. A startup tem operações também em Hong Kong, Austrália, Cingapura, Kuwait e Emirados Árabes Unidos (SOLLITO, 2021).
As reclamações dos trabalhadores quanto ao trabalho nessa plataforma são basicamente as mesmas dos outros tipos de trabalho por plataforma: baixa remuneração, riscos de acidente sem qualquer cobertura e nenhum benefício assistencial (férias, subsídio para doença, etc.).
As plataformas de trabalho doméstico e de cuidados atuam com o objetivo de intermediação entre trabalhadores dessa categoria e clientes interessados.
Ao contrário das demais formas de trabalho por plataforma, o trabalho doméstico exige um pouco mais de cuidado na contratação, devido à proximidade desse tipo de trabalhador com o cliente, ainda que por um curto período de tempo. Preocupações com o histórico criminal do trabalhador, legalidade da situação migratória e habilidade nos trabalhos são cuidados mais que necessários nesse tipo de trabalho. Além da característica já presente em outros trabalhos por plataforma, a baixa remuneração, ainda há o custo de transporte, elemento que reduz ainda mais a remuneração, visto que os trabalhadores se encontram em locais distantes das residências dos clientes e têm um custo elevado para deslocamento. Além do mais, existe a pouca valia que se dá a esse tipo de trabalho, que tende a receber as mais baixas remunerações possíveis em relação a
outros tipos de profissão.
Surgida nos Estados Unidos, a plataforma Taskrabbit está presente em vários países do mundo e propõe-se a oferecer trabalhadores para tarefas domésticas, não apenas relacionadas à limpeza, mas também relacionadas aos cuidados com o lar, como pendurar quadros, montar móveis, auxiliar em mudanças. No site PCguia, Freire (2021) explica como funciona a plataforma, a qual não diverge muito das outras plataformas do gênero:
Um serviço que liga pessoas que precisam de serviços aos fornecedores. Uma espécie de Uber das tarefas.
TaskRabbit é uma app de serviços e tarefas do Grupo Ikea, detentor do Ikea, que serve para ligar clientes a ‘taskers’ que fornecem serviços domésticos e recados por toda a cidade, como limpeza, instalação, montagem de mobiliário, jardinagem, reparações e mudanças.
A aplicação funciona de forma fácil em que o utilizador tem de indicar o que pretende e ser-lhe-á apresentada uma lista com os ‘taskers’ qualificados e disponíveis. Depois basta seleccionar o fornecedor e o serviço será adjudicado.
A TaskRabbit permite ainda que ver avaliações dos prestadores de serviços, dar avaliações, falar com os mesmos caso tenha alguma dúvida e realizar o pagamento das tarefas via app.
A aplicação já existe em diversos países e chega agora a Portugal com 4500 ‘taskers’. O serviço está também disponível na plataforma web e nas lojas IKEA e tem a garantia ‘Compromisso para a Satisfação’, que pretende assegurar que os
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clientes ficam satisfeitos e prevê compensações em alguns casos (FREIRE; 2021).
Essas plataformas têm se popularizado e expandido com muita velocidade. No Brasil, podemos citar: a Triider, plataforma em operação desde abril de 2016, com atuação em Porto Alegre, Curitiba e Belo Horizonte, que já efetivou 20 mil serviços, divididos em oito grupos (limpeza, ar-condicionado, elétricos, hidráulicos, reforma, montagem de móveis, fretes e assistência técnica) e realizados por cerca de 300 profissionais cadastrados (HOJE EM DIA, 2019); e a Parafuzo, plataforma em operação desde 2014, com atuação em mais de 100 cidades do país, espalhadas por 18 estados do país, com milhares de profissionais cadastrados nas áreas de limpeza (padrão e pesada), passadoria e montagem de móveis (PARAFUZO.COM, 2022).
Desafios do trabalho por plataforma do ponto de vista dos trabalhadores
Uma característica presente em todos os tipos de plataforma é a baixa remuneração. Causada por diversos fatores, o principal deles é a farta oferta de mão de obra, especialmente nos tipos de plataforma não limitados geograficamente, que podem alcançar trabalhadores em quaisquer locais do mundo. O excesso de oferta faz com que o preço da mão de obra seja aviltado, já que, muitas vezes, ela é advinda de locais em que o valor do trabalho é mais barato. Usualmente, o trabalho é mais bem remunerado em outras formas de relação jurídica diversa do trabalho por plataforma, até mesmo naquelas amarradas geograficamente.
Uma vantagem dos trabalhos em plataforma não limitados geograficamente é a possibilidade de trabalhar em casa, com baixo investimento, em um trabalho que pode ser realizado com acesso a um computador, smartphone e acesso a rede de Internet banda larga. Ocorre que a aparente liberdade e aparente vantagem de trabalho nessas condições tornam-se relativas, na medida em que diversas formas de controle tornam o trabalhador refém da plataforma. Um exemplo disso são as capturas de tela feitas
pela plataforma Upwork, de forma aleatória a cada 10 minutos. Se a captura da tela apontar o uso de atividades não relacionadas à plataforma, o trabalhador não será pago por esses 10 minutos (WOODCOOK, J.; GRAHAM, M., 2020).
O sistema de avaliação por estrelas, feita pelo cliente, é condição adotada pela plataforma para permanência nela. Algumas dessas plataformas adotam um sistema de avaliação extremamente exigente, como, por exemplo, média superior a 4,7 de um total de 5 (Op. Cit., 2020). Isso gera uma constante tensão para o trabalhador, que precisa ser extremamente perfeccionista e cuidadoso com o cliente. Até mesmo uma palavra mal interpretada pode gerar uma nota negativa pelo cliente e consequentemente aumentar o risco de desligamento da plataforma. Um exemplo da tensão gerada pela avaliação por estrelas é relatado em artigo científico de autoria de Mason (2019), então Motorista da Lyft e doutoranda da Universidade da Califórnia:
Todas as semanas, Lyft envia aos seus motoristas um “Resumo Semanal de Feedback” personalizado. Isto inclui comentários dos passageiros das corridas da semana anterior e uma recém-calculada avaliação do motorista. Também contém um gráfico de barras que mostra como a classificação atual do motorista “acumula-se” em relação às semanas anteriores, e menciona se eles foram “sinalizados” por limpeza, simpatia, navegação ou segurança. No início, aguardava ansiosamente os meus resumos; na sua maioria, foram um estímulo bem-vindo à minha autoestima. A minha classificação variou consistentemente entre 4,89 e 4,96 estrelas, e os comentários diziam coisas como: “Ótima motorista, atitude positiva” e “Obrigado por me levar ao aeroporto a tempo!” Havia também a ocasional crítica, tal como “Ela é estranha” ou apenas “Atitude”, mas no geral os comentários serviram como uma espécie de mecanismo de reforço positivo. Eu me sentia bem
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sabendo que estava ajudando as pessoas e que as pessoas estavam gostando de mim.
Mas uma certa semana, depois de ter completado o que me parecia como um milhão de viagens, abri o meu resumo de feedback para descobrir que a minha classificação tinha caída de 4,91 (“Incrível”) para 4,79 (“OK”), sem comentários. Atordoada, passei pelo meu histórico de viagens tentando lembrar de qualquer interação incomum ou passageiros insatisfeitos. Nada. O que aconteceu? O que é que eu fiz? Senti-me mal do estômago.
Como as classificações dos motoristas são calculadas usando suas últimas 100 avaliações de passageiros, uma solução lógica é substituir as classificações antigas e ruins por novas – presumivelmente melhores – tão rápido quanto humanamente possível. E foi exatamente isso que eu fiz.
Durante as semanas seguintes, evitei deliberadamente abrir os meus resumos de feedback. Estoquei o meu veículo com garrafas de água, barrinhas de café da manhã e balinhas para inspirar os passageiros a alcançar aquela quinta estrela. Eu desenvolvi um hábito obsessivo de aspirar e passei a minha rotina de lava-jato de duas vezes por semana a cada dois dias. Eu experimentei com diferentes difusores de aroma e estações de rádio. Eu dirigia, dirigia e dirigia (MASON, 2019).
As plataformas de microtrabalho consideram o trabalhador uma ferramenta substituível e responsável apenas por uma parte de um trabalho. Na maioria das vezes, as tarefas são tão divididas entre centenas ou milhares de pessoas que fica impossível para o trabalhador saber em qual parte do todo seu trabalho se encaixa.
Os trabalhadores de plataforma estão no desabrigo de qualquer organização sindical. Isso os deixa fora das conquistas sindicais, especialmente melhores salários e condições de trabalho.
Ademais, um novo desafio que se impõe nos dias atuais é a competição entre plataformas. Várias plataformas passam a concorrer entre si oferecendo o mesmo tipo de serviço. Isso oferece novos desafios aos trabalhadores, pois a tendência é que a mão de obra disponibilizada seja equiparada a mercadoria e seja aviltada ainda mais com a concorrência das plataformas entre si.
A atuação global e coletiva dos trabalhadores mediante sindicatos de natureza internacional é medida necessária para os trabalhadores se contraporem às medidas de precarização do trabalho. Há amparo legal internacional para a constituição de sindicato internacional de trabalhadores, visto que não somente os trabalhadores subordinados têm direito à organização sindical internacional, mas também todos aqueles que exercem uma atividade digna, consoante o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos humanos constantes do Protocolo de San Salvador, de 1988, o qual estabelece o direito ao trabalho mediante o desempenho de uma atividade lícita, livremente escolhida e aceita, o que obviamente inclui os trabalhadores autônomos. A aludida convenção estabelece claramente, dentre os direitos desses trabalhadores, o direito de formar organizações sindicais internacionais:
Artigo 8
Direitos sindicais 1. Os Estados Partes garantirão: a. O direito dos trabalhadores de organizar sindicatos e de filiar-se ao de sua escolha, para proteger e promover seus interesses. Como projeção desse direito, os Estados Partes permitirão aos sindicatos formar federações e confederações nacionais e associarse às já existentes, bem como formar organizações sindicais internacionais
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e associar-se à de sua escolha. Os Estados Partes também permitirão que os sindicatos, federações e confederações funcionem livremente;
b. O direito de greve.
2. O exercício dos direitos enunciados acima só pode estar sujeito às limitações e restrições previstas pela lei que sejam próprias a uma sociedade democrática e necessárias para salvaguardar a ordem pública e proteger a saúde ou a moral pública, e os direitos ou liberdades dos demais. Os membros das forças armadas e da polícia, bem como de outros serviços públicos essenciais, estarão sujeitos às limitações e restrições impostas pela lei.
3. Ninguém poderá ser obrigado a pertencer a um sindicato (CIDH, 2020).
Em relação ao Brasil, a CLT admite a constituição de sindicatos por parte dos profissionais autônomos:
Art. 511. É lícita a associação para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou atividades ou profissões similares ou conexas (BRASIL, 1943).
A Internet pode ser utilizada como instrumento de agregação dos trabalhadores em sindicatos. Os numerosos profissionais dessas plataformas, uma vez unidos em organizações internacionais, podem reivindicar direitos com mais força e coesão. Dentre esses direitos, está o direito à informação. Os trabalhadores associam-se a plataformas de trabalho sem ter ciência dos projetos em que estão envolvidos, sem saber detalhes de suas atividades, sem compreender o funcionamento da plataforma, quais os mecanismos de controle e quais as condições de permanência. Em
algumas delas, sabe-se sequer qual é o critério para o cálculo das taxas de pagamento. E não basta apresentar um contrato para adesão na tela da plataforma, porque ninguém vai ler um contrato cuja adesão é condição necessária e obrigatória para sua participação na plataforma. São necessários cursos, vídeos tutoriais e um mínimo de treinamento antes mesmo do início de qualquer atividade dentro da plataforma.
Assim, faz-se necessário aos trabalhadores e à sociedade de um modo geral unir forças por meio de tribunais para a edição de regulamentos legais, nas diversas esferas de competência, local, regional e nacional. Embora divirja em alguns aspectos da relação de emprego, é necessário que aspectos da realização do trabalho nas plataformas sejam regulamentados por lei. Exemplo nesse sentido ocorreu com a recente edição da Lei nº 14.297 de 05 de Janeiro de 2022, que imputou à empresa de aplicativo de entrega a obrigatoriedade de contratação de seguro contra acidentes com cobertura mínima contra acidentes pessoais, invalidez permanente ou temporária e morte, às suas expensas, além de assistência financeira em caso de entregador acometido de Covid-19 e obrigatoriedade de Equipamentos de Proteção Individual contra Covid-19, como máscaras e álcool gel (BRASIL, 2022). Outra inovação legal foi a prioridade de pagamento via Internet, medida importante para evitar que os entregadores fiquem expostos a riscos de assalto. Tal medida legal representa um enorme avanço no sentido de dar a esses trabalhadores o mínimo de dignidade e pode servir de exemplo para que outros países façam o mesmo. Forçoso reconhecer que plataformas de alcance global usam seu poderio econômico para escapar da regulamentação local/regional/nacional, quando não raro, fazendo campanha contra alterações legislativas, ameaçando retirar do escopo de sua atuação a localidade em que atua, caso a legislação local atinja seus interesses econômicos e efetivamente o fazendo quando isso acontece. Exemplo disso é a suspensão dos serviços de Uber e Lyft na Califórnia após decisão judicial que os obrigou a considerar os seus motoristas como empregados e não trabalhadores autônomos:
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Uber e Lyft devem encerrar operações na Califórnia nesta sexta
Interrupção vem após um juiz do estado norte-americano classificar motoristas como funcionários e não mais como trabalhadores autônomos.
Uber e Lyft estão se preparando para suspender seus serviços de transporte na Califórnia a partir da manhã de sexta-feira (21), a menos que algum tribunal decida, de última hora, que as empresas não podem ser forçadas a tratar seus motoristas como funcionários, ao invés de trabalhadores autônomos.
A Lyft afirmou em seu blog nesta quinta-feira (20) que suspenderá suas operações na Califórnia à meia-noite.
A Uber disse em seu blog disse que deixará de operar temporariamente, a menos que o tribunal de apelações intervenha.
A interrupção veio após um juiz na Califórnia dar ganho de causa a um pedido do Estado norte-americano para impedir que as empresas classifiquem seus motoristas como prestadores de serviço ao invés de funcionários.
As empresas buscam a intervenção de um tribunal de apelações para barrar uma liminar emitida por um juiz na semana passada, decisão que forçou as empresas a tratar motoristas como funcionários a partir de sextafeira, mas Uber e Lyft disseram que levariam meses para implementar medidas para isso ocorrer.
A decisão das empresas no estado mais populoso dos EUA marca uma escalada sem precedentes numa antiga disputa entre reguladores, sindicatos e empresas de serviços por aplicativos que transformaram os modelos tradicionais de emprego.
A Califórnia representa 9% das corridas globais da Uber e dos pedidos do Uber Eats, mas gera quantia insignificante de lucro ajustado para a empresa. A Lyft, que opera apenas nos Estados Unidos e não tem uma unidade de entrega de alimentos, disse na semana passada que a Califórnia representa cerca de 16% do seu total de viagens.
Ambas as empresas afirmaram que a grande maioria de seus motoristas não quer ser considerada funcionário. Também afirmam que seu modelo de negócios flexível sob demanda não é compatível com a legislação trabalhista tradicional e defendem o que chamam de uma “terceira opção” entre funcionários ou independentes.
Lyft, Uber, DoorDash, Instacart e Postmates estão gastando mais de 110 milhões de dólares para apoiar um referendo que acontecerá em novembro na Califórnia, a Proposta 22, que concretizaria sua proposta para uma “terceira opção”.
Grupos trabalhistas rejeitam as alegações das empresas de que as leis atuais não são compatíveis com horários de trabalho flexíveis. Eles dizem que a aprovação da Proposta 22 criaria uma nova subclasse de trabalhadores com menos direitos e proteções (G1 ECONOMIA TECNOLOGIA, 2020).
Outra medida que pode ser buscada para tornar o trabalho mais digno é estimular a criação de plataformas digitais locais e geridas pelos próprios trabalhadores, por intermédio de Cooperativas de Trabalho ou outras formas juridicamente válidas de gestão da plataforma. Sendo titulares da gestão, os trabalhadores podem, por exemplo, adotar medidas para uma remuneração justa, limitar o número máximo de horas extras, adotar ações para tornar o trabalho seguro e valerse de regras mais transparentes.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Por fim, entende-se ser necessário assegurar ao trabalhador canais de atendimento telefônico e presencial no local de prestação de serviço do trabalhador para relatar reclamações, denúncias, abusos e quaisquer práticas nocivas feitas pela plataforma, com direito a recurso em caso de não atendimento, sem prejuízo do acesso às vias judiciais, sendo vedado o atendimento exclusivamente digital.
A economia GIG, relacionada ao trabalho autônomo e ao trabalho temporário, adquiriu novos contornos com o advento das plataformas digitais.
Impulsionadas pelo avanço da tecnologia, as plataformas digitais expandiram-se de forma bastante substancial, alcançando trabalhadores em escala global e fazendo ser ressignificado o termo “economia GIG” para torná-lo uma expressão do conceito de trabalho por plataforma.
O desemprego e a flexibilidade na realização do trabalho atraíram os trabalhadores para o trabalho mediante plataforma. Contudo, o modo de realização do trabalho e a grande oferta de mão de obra levaram a uma precarização na realização do trabalho. Remunerações inferiores ao salário mínimo nacional, trabalho sem limitação de jornada e excessivo controle do trabalho são apenas alguns dos problemas trazidos aos trabalhadores que optaram por realizar trabalho por intermédio de plataformas.
Diante desse quadro, novos desafios impõem-se aos trabalhadores, de modo a resgatar o conceito de trabalho digno no âmbito do trabalho por plataforma. Reorganizar a atuação dos sindicatos para alcançar essas relações jurídicas bem como regular normativamente a atividade econômica são alternativas possíveis para alcançar esse fim. Por certo, haverá resistência por parte das empresas que exploram o trabalho digital, especialmente as transnacionais, em razão do poderio econômico que dispõem. Para se opor a
isso, ações como a criação de plataformas nacionais concorrentes, até mesmo geridas por trabalhadores, podem ser uma atitude contra a resistência das empresas à regulação normativa.
Não resta dúvida de que a economia de plataforma expandiu-se de forma considerável no mundo do trabalho. Cabe agora à sociedade politicamente organizada assegurar a esses trabalhadores um rol de direitos trabalhistas mínimos que lhes permita exercer com dignidade o seu trabalho.
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Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
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Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
A justiça brasileira tem empreendido esforços no sentido de adequar a prestação de serviços à evolução tecnológica, a partir da utilização de recursos modernos para ampliação do acesso. Neste contexto, o Programa Justiça 4.0 é orientado pela eficiência, transparência, otimização na governança do Poder Judiciário, acessibilidade, assim como para sua aproximação com o cidadão e para a redução de despesas, tanto processuais quanto estruturais. O presente artigo científico objetiva auxiliar na busca de soluções eficientes para a entrega da prestação jurisdicional, através da utilização dos recursos disponibilizados pela política pública implementada pelo Conselho Nacional de Justiça intitulada Programa Justiça 4.0, assim como analisar sua relação com o atingimento dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda
1 Mestranda em Direito e Gestão de Conflitos pela UNIFOR. Juíza do Trabalho Substituta no Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região. Email: karlayacy80@ gmail.com
2 Doutora em Direito do Trabalho pela PUC-SP. Mestre em Direito Constitucional pela UNIFOR. Juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região. Email: camillebr@yahoo.com
2030 da Organização das Nações Unidas.
Palavras-chave: Justiça 4.0. Modernização. Acessibilidade. Sustentabilidade. Agenda 2030 ONU.
O Judiciário brasileiro, assim como as demais estruturas estatais, busca, de forma constante, pautar sua atuação com observância dos princípios constitucionais do acesso à justiça e da eficiência, consubstanciados nos artigos 5º, XXXV e 37, caput, da Constituição Federal de 1988.
Esta análise leva a questionamentos de diversa natureza, não somente no Brasil. Garantir o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis é uma preocupação mundial, elevada a objetivo de desenvolvimento sustentável no compromisso assumido por 193 países intitulado Agenda 2030 da ONU.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Sob esta perspectiva, como objetivo geral do presente artigo, analisaremos o Programa Justiça 4.0, implementado pelo Conselho Nacional de Justiça e sua relação com o conceito moderno de acesso à justiça, a partir da desmaterialização, assim como sua contribuição para a melhoria da prestação de serviços pelo Poder Judiciário, possibilitada pelo uso da internet.
Como objetivo específico, analisaremos a relação entre o Programa Justiça 4.0 e sua contribuição para o atingimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas.
Quanto aos aspectos metodológicos, as hipóteses apresentadas foram investigadas mediante pesquisa bibliográfica, em obras, nacionais e estrangeiras, e pesquisa documental, onde exploramos diversos diplomas normativos existentes atinentes aos tópicos discutidos. A tipologia da pesquisa, segundo a utilização dos resultados, é pura. Segundo a abordagem, a tipologia da pesquisa é qualitativa, visto que busca desenvolver a problemática com base em uma pesquisa subjetiva, preocupada com o aprofundamento e abrangência da compreensão das ações e resultados na melhoria da prestação jurisdicional. Quanto aos objetivos, a pesquisa é descritiva e exploratória, uma vez que procura aperfeiçoar as sugestões e ajudar na formulação de hipóteses para posteriores pesquisas.
O tema acesso à justiça, dada sua importância, fora tratado no art. 8º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) da seguinte forma: “Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”.
Aludida declaração trouxe a
associação das ideias de acesso à justiça e efetividade da tutela estatal diante de lesão a direitos fundamentais, o que levou ao alargamento do conceito de acesso à justiça.
Contribuição importante para o estudo da matéria adveio do relatório elaborado a partir do projeto interdisciplinar de pesquisa que estudou a evolução do sistema de acesso à justiça, capitaneado por Mauro Capeletti e Bryant Garth nos anos de 1970, cujos resultados foram publicados sob o título “Acesso à justiça”.
Aludida pesquisa identificava o acesso como, além de um direito social fundamental, o “ponto central da moderna processualística” (CAPELETTI; GARTH, 1988).
Sob essa perspectiva, buscava-se investigar dificuldades e obstáculos para o acesso à justiça, além de propor soluções de melhoria, de modo a reduzir a necessidade de burocracia e ampliar o alcance dos cidadãos.
Os autores já sugeriam, na ocasião, que “é conveniente tornar o judiciário tão acessível fisicamente quanto possível, e uma possibilidade é mantê-lo aberto durante a noite, de modo que as pessoas que trabalham não sejam inibidas pela necessidade de faltar ao serviço” (CAPELETTI; GARTH, 1988).
Àquela época, a internet ainda não era acessível para o mundo inteiro, o que somente ocorreu a partir de 1990. Ainda assim, mais de 30 anos atrás, o relatório intitulado “Acesso à Justiça” fazia um apelo no sentido de que os tribunais criassem procedimentos rápidos e disponíveis para as pessoas comuns, ao mesmo tempo em que reconhecia a dificuldade de se vencer a oposição tradicional à inovação.
Atualmente, é renovado o estudo do acesso à justiça, por meio do projeto de pesquisa (em andamento), intitulado “Global Access to Justice Project”3, sob a coordenação do Professor Bryant Garth, que realiza uma investigação, à semelhança do Projeto de Florença, agora com ênfase nos avanços da inteligência artificial em escala global.
3 Disponível em: https://globalaccesstojustice.com Acesso em: 14 jan. 2022
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
A nova pesquisa avalia iniciativas deflagradas sob estímulo das ondas renovatórias, assim como uma análise que envolve outras dimensões, inclusive “as barreiras econômicas, sociais, culturais e psicológicas que impedem ou inibem muitos, e não apenas os mais pobres, de acessarem e fazerem uso do sistema de justiça”.
A nova pesquisa, que remonta às tradicionais ondas de Capeletti e Garth, analisa aspectos mais atuais, incluindo novas “ondas” que contemplam “iniciativas promissoras e novas tecnologias para aprimorar o acesso à justiça” (6ª), a “educação jurídica” (10ª) e os “esforços globais na promoção do acesso à justiça” (11ª).
Sob essa ótica, em artigo intitulado “Melhorando o acesso à justiça nos Tribunais
encontrar alguém para cuidar dos filhos) e psicológicos (pressões por faltar ao trabalho).
Sugeriu, então, respostas a esse problema, a partir da introdução da tecnologia de plataformas online. Após examinar meses de dados dos tribunais estaduais adotados, o autor apresentou evidências do potencial desta prática para a redução do tempo que levam os cidadãos para resolverem suas disputas, com a superação das barreiras mencionadas.
Foram apresentadas, ainda, evidências empíricas de que a adoção de plataformas online melhora a satisfação dos litigantes e reduz os índices de inadimplência.
A contribuição da arquitetura da internet para a ampliação ao acesso à
“A extinção do encontro presencial como uma condição imprescindível para a resolução dos conflitos representou a quebra de uma barreira que impedia a apresentação de muitas demandas. Diversos obstáculos foram superados a partir da redução de custos, da facilidade de apresentação de demandas online e da conveniência da comunicação assíncrona utilizando computador ou telefone.”
Estaduais com tecnologia de Plataforma”, no qual foram destacadas as dificuldades enfrentadas pelos cidadãos em relação aos serviços judiciais na forma tradicionalmente concebida, que os obriga ao deslocamento para os fóruns. Ressaltou Prescott (2017) a existência de dificuldades ao acesso à justiça decorrentes de tempo, transporte, obrigações como empregados e cuidados com os filhos. Acrescentou que “ir fisicamente ao tribunal custa dinheiro, leva tempo, cria medo e confusão, e apresenta riscos reais e percebidos” (tradução nossa).
Referido estudo mostrou a existência de relevantes custos extraprocessuais decorrentes do comparecimento ao que chamou de “tribunais de tijolos e argamassa” a ser superados, tanto econômicos (despesas com deslocamento, perda de pagamento de um dia de trabalho para os profissionais autônomos) quanto físicos (possibilidade de acidentes e assaltos, dificuldades de
justiça também fora destacada por Katsh e Rabinovich-Einy (2017), que evidenciaram o desenvolvimento de processos de prevenção e resolução de disputas flexíveis, convenientes, baratos e rápidos. Destacam os autores que “o uso de algoritmos, capacidade aprimorada, custos mais baixos e maior grau de consistência associados a sistemas automatizados estabelecem a base para uma nova realidade de maior acesso à justiça” (tradução nossa).
A extinção do encontro presencial como uma condição imprescindível para a resolução dos conflitos representou a quebra de uma barreira que impedia a apresentação de muitas demandas. Diversos obstáculos foram superados a partir da redução de custos, da facilidade de apresentação de demandas online e da conveniência da comunicação assíncrona utilizando computador ou telefone.
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Nunes e Paolinelli (2021) defendem o que intitulam “adequação procedimental por tecnologia”, obtida a partir da inserção da resolução de disputas online no sistema público de justiça, com potencial para promover transformação no dimensionamento dos conflitos, ao argumento de que “a tecnologia passa a executar tarefas e fornecer serviços que não seriam possíveis no formato físico, oferecer informações legais às partes, em linguagem acessível, estruturar negociações, sugerir soluções e até mesmo auxiliar no cumprimento das decisões”.
Nessa linha, o Judiciário brasileiro passou a implementar, paulatinamente, tecnologia para imprimir maior eficiência em seus processos, iniciando-se com a comunicação dos atos processuais a partir de telegrama (Lei 1.533/1951, art. 4º), até, finalmente, criar o Processo Judicial Eletrônico (PJe), cujas características principais são a imaterialidade (inexistência de autos físicos, em papel), a ubiquidade (possibilidade de serem os autos do processo eletrônico acessados de qualquer lugar) e a desterritorialização (permissão de prática de atos fora dos limites do território da jurisdição, a exemplo da penhora on-line), conforme destaca Moraes (2019).
Apesar de haver sido o papel cada vez menos utilizado nos processos judiciais, bem como a despeito da previsão legal para a reunião de juízes domiciliados em cidades diversas pela via eletrônica para julgamento em turmas recursais, a comunicação com as partes e advogados ainda exigia uma presença física. A realização de audiências ainda recomendava a presença de todos os atores processuais – juiz, partes, advogados, testemunhas e servidores - em fóruns. Nesse sentindo, reproduz-se importante crítica:
Se olharmos de perto, a maior parte da tecnologia até aqui incorporada pelos tribunais brasileiros permite apenas que se façam digitalmente as mesmas tarefas que eram feitas fisicamente. Há pouca automação, e quase nenhuma reinvenção. Tradicionalmente, a Justiça é vista pela ficção e pela mídia como antiquada, o que é reforçado e confirmado quando se visita um órgão do Poder Judiciário. Pilhas de folhas, trabalhos repetitivos e audiências presenciais mostram que o sistema pouco mudou desde o século XIX. Os atos processuais são rigorosamente os mesmos, ressalvado o fato de que, praticados eletronicamente, eles aumentam em quantidade considerável. Embora a Lei 11.419/2006 (Lei do Processo Eletrônico) já tenha completado mais de 10 anos, pouca coisa mudou em termos de celeridade processual. O processo judicial eletrônico nada mais é do que um processo físico digitalizado, e não um processo virtual. Onde está a inovação aqui? (WOLKART; BECKER, 2019, p.117118).
O Conselho da Justiça Federal inovou quando da aprovação do enunciado nº 254, que permitiu a realização das audiências de conciliação e mediação, por videoconferência, áudio, sistemas de troca de mensagens, conversa on-line, conversa escrita, eletrônica, telefônica e telemática ou outros mecanismos que estejam à disposição dos profissionais da autocomposição para
4 Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/ enunciado/1056. Acesso em 17 jan. 2022
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
estabelecer a comunicação entre as partes.
A desterritorialização e a desmaterialização dos processos, a partir da implementação do PJe, ao permitirem a implementação de projetos de tribunais multiportas virtuais, levaram a questionamentos acerca da desmaterialização da ideia de foro e de circunscrição judicial.
Em artigo intitulado “Advogados de amanhã: um judiciário virtual”, publicado no jornal The Guardian, Susskind (2013) perguntava se seria o tribunal um serviço ou um lugar, questionando a necessidade de reunião, em um mesmo espaço físico, de partes e advogados, para apresentar argumentos a um juiz.
No Brasil, ecoou o mesmo questionamento. No prefácio à cartilha editada pelo Conselho Nacional de Justiça (2021), intitulada “Inteligência artificial no poder judiciário brasileiro”, também fora questionado o papel do Judiciário neste mundo em constante mutação e o potencial de apropriação das inovações tecnológicas para a melhoria da qualidade da prestação jurisdicional. Destacou o CNJ exemplos de sucesso de diversos países na incorporação de tecnologia ao processo para facilitar o acesso à justiça, inclusive, tonando mais confortável a participação as partes com o uso de ferramentas como videoconferência.
Experiências de tribunais online, em diversas partes do mundo, são compartilhadas em um site desenvolvido por Richard Susskind, intitulado Remote Courts Worldswide5 As informações são disponibilizadas e categorizadas por país e permitem um compartilhamento de boas práticas, técnicas, protocolos etc. Muitas das notícias veiculadas naquele ambiente relacionam a prática com a ampliação do acesso à justiça, assim como o design centrado no ser humano, o verdadeiro destinatário do serviço.
5 Disponível em: https://remotecourts.org/ Acesso em: 14 jan. 2022.
A desmaterialização e a desterritorialização da justiça implicaram na utilização de recursos tecnológicos sequer imaginados antes de 1979, atualmente utilizados em larga escala. Inaugurou-se, assim, um novo cenário.
Este movimento nacional de inovação em busca de ampliação do acesso à justiça, acentuou-se no último biênio, motivado pela imposição da manutenção da prestação dos serviços jurisdicionais, a despeito das limitações trazidas pela pandemia de Covid-19, infortúnio que deixou como legado a modernização da prestação de serviços pelo Poder Judiciário, independentemente da presença física das partes, testemunhas e advogados em suas unidades.
A partir de então, tem-se como realidade um Poder Judiciário que não depende de uma base fixa para atuar. O prédio do fórum deixa de ser o epicentro das atividades jurisdicionais. Até mesmo a unidade jurisdicional de onde proveio a decisão deixa de ser tão relevante. O que importa é a solução do caso concreto.
A necessidade atual do cidadão brasileiro é apresentar sua demanda ao Poder Judiciário e dele receber uma resposta célere, com o mínimo de despesas possível, razão pela qual instalou-se permanente movimento de pesquisa e inovação, com a finalidade de proporcionar a entrega da prestação jurisdicional eficiente, célere, econômica e acessível aos cidadãos.
Nesse sentido, fora o acesso à justiça digital inserido nos cinco eixos prioritários do Conselho Nacional de Justiça para o biênio 2020/2022, conforme proposta apresentada pelo Ministro Luiz Fux na ocasião de sua posse (BRASIL, 2020a).
O eixo da Justiça nº 4, intitulado “Justiça 4.0 e a promoção do acesso à justiça digital”, buscou estabelecer um “diálogo entre o real e o digital para o incremento da governança, da transparência e da eficiência
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do Poder Judiciário, com efetiva aproximação com o cidadão e redução de despesas”.
Conforme explicitado na página eletrônica na internet do CNJ, o Programa Justiça 4.0 objetivava aproximar o sistema judiciário brasileiro da sociedade, através da disponibilização de novas tecnologias e inteligência artificial.
A transformação digital do Judiciário ganhou impulso, para garantir serviços mais rápidos, eficazes e acessíveis, por meio da promoção de soluções digitais colaborativas, com a finalidade de automatizar as atividades dos tribunais, otimizar o trabalho dos magistrados, servidores e advogados, e, assim, garantir maior produtividade, celeridade, governança e transparência dos processos.
Entre as ações do Programa Justiça 4.0 destaca-se o “Juízo 100% Digital”,
conhecidos, como o recesso de seu lar, diferentemente do que acontece quando estão em ambientes forenses, que para muitos são incômodos e ameaçadores”.
Merece ênfase a observação, inserida nos fundamentos da Resolução CNJ nº 372/2021, no sentido de que os custos decorrentes do ajuizamento da demanda, intitulados “custos de transação”, podem ser reduzidos por meio da diminuição do deslocamento físico das partes e dos advogados para as dependências do fórum (BRASIL, 2021a).
O tratamento da questão relativa à Justiça Digital evoluiu com a edição da Resolução CNJ nº 385, que dispõe sobre a criação dos “Núcleos de Justiça 4.0”, que se constituem em unidades especializadas em litígios específicos, com atuação em rede, sobre toda a área territorial alcançada pela competência do tribunal, ou apenas uma ou mais regiões administrativas do tribunal,
“A Justiça 4.0 é digital, voltada para a eficiência, acessibilidade, transparência e otimização na governança do Poder Judiciário, assim como para sua aproximação com o cidadão e para a redução de despesas, tanto processuais quanto estruturais”
instituído pela Resolução CNJ nº 345/2020, que traz como novidade a prática de todos os atos processuais exclusivamente por meio eletrônico e remoto, através da rede mundial de computadores, além da economia de despesas com tempo e transporte (BRASIL, 2020b).
Com a finalidade de afastar os preconceitos quanto aos serviços oferecidos de forma online, tem o CNJ tido o cuidado de criar estruturas e procedimentos de suporte aos usuários, tanto para Advogados, quanto para o público em geral.
Pontuam Faleiro, Resende, Veiga (2021) que “as partes ficam mais tranquilas e acolhidas quando estão em ambientes
com ênfase na eficiência (BRASIL, 2021b) .
Além da melhora do acesso à justiça, sua implantação acarreta expressiva redução das despesas assumidas pelo Poder Judiciário com itinerância, gerando resultados positivos, no sentido de conferir maior velocidade e economia na resposta às demandas da sociedade.
A Justiça 4.0 é digital, voltada para a eficiência, acessibilidade, transparência e otimização na governança do Poder Judiciário, assim como para sua aproximação com o cidadão e para a redução de despesas, tanto processuais quanto estruturais.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
A evolução da prestação de serviços pela chamada justiça digital não ignorou as necessidades dos cidadãos excluídos digitais, expressão atribuída pela Recomendação CNJ nº 101/2021 à “parte que não detém acesso à internet e a outros meios de comunicação digitais e/ou que não tenha possibilidade ou conhecimento para utilizá-los, inclusive com tecnologia assistiva” – art. 1º, I (BRASIL, 2021c).
Com o propósito de atender a esta parcela da população, a Resolução CNJ nº 345/2020, em seu art.5º, parágrafo único, traz a possibilidade de as partes requererem ao juízo sua participação na audiência por videoconferência em sala disponibilizada pelo Poder Judiciário, com o intuito de garantir a isonomia, evitando que somente litigantes com melhor poder aquisitivo possam ter acesso à opção pelo Juízo 100% digital (BRASIL, 2020a).
Esta atenção para a situação dos excluídos digitais levou o CNJ a editar, também, a Resolução nº 341/2020, com a determinação no sentido de que os tribunais brasileiros disponibilizem, em todos os fóruns, salas para a realização de atos processuais, especialmente depoimentos de partes, testemunhas e colaboradores da justiça, a partir da utilização de videoconferência (BRASIL, 2020b).
A maior dificuldade quanto à acessibilidade digital dos cidadãos que residem no interior dos estados brasileiros fora reconhecida pelo CNJ, na ocasião da edição da Resolução nº 372, que previu, em seu art. 2º, §1º, a possibilidade de uso de ferramenta de comunicação assíncrona para o atendimento público nas unidades judiciárias localizadas em regiões do interior onde a deficiência de infraestrutura tecnológica for notória e inviabilizar o atendimento por videoconferência (BRASIL, 2021a).
Ainda que se reconheça o mérito da transformação digital do Poder Judiciário na redução das desigualdades e riscos processuais que possam acarretar prejuízo econômico para os litigantes, persistia a necessidade de atenção para os obstáculos
geográficos e econômicos sofridos pelos usuários do sistema de justiça.
Em resposta a essa demanda dos brasileiros que sofrem em razão da limitação de recursos para deslocamento, assim como com dificuldade técnica ou financeira para que tenham acesso à internet, independentemente de estarem no pólo ativo ou passivo da demanda, o CNJ editou a Resolução nº 460/2022, que define os procedimentos a serem realizados, considerando a aproximação do Sistema de Justiça dos segmentos da sociedade em situação de vulnerabilidade ou que estejam em locais de difícil acesso, em benefício direto às populações que vivem distante das sedes de comarcas - projeto intitulado Justiça Itinerante (BRASIL, 2022).
A nova Resolução do CNJ determina que os Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, para garantir o pleno exercício do direito de acesso à Justiça por meio dos Serviços da Justiça Itinerante, para superação de barreiras geográficas, socioeconômicas ou de outra ordem impeditiva do referido acesso, promovam ações integradas e de cooperação entre Tribunais, estabelecendo
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convênios e parcerias com instituições integrantes e essenciais ao sistema de Justiça, bem como com outros órgãos e entidades públicas ou privadas que ajudem a viabilizar o cumprimento integral desta resolução.
A Justiça 4.0 e a Agenda 2030 da ONU
A Resolução CNJ nº 325/2020, em seu artigo 3º, caput e §2º, estabelece que os órgãos do Poder Judiciário deverão alinhar seus planos à mencionada Estratégia Nacional, para o que deverão observar as diretrizes estabelecidas em Resoluções, Recomendações e políticas judiciárias nacionais instituídas pelo CNJ e, no que couber, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU (BRASIL, 2020c).
A Agenda 2030 da ONU é um plano de ação global, adotado em 2015 por 193 Estados-Membros, inclusive pelo Brasil, que reúne 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS’s), os quais, por sua vez, trazem 169 metas, criadas para erradicar a pobreza e promover vida digna para todos, observando as condições que nosso planeta oferece, sem comprometer a qualidade de vida das próximas gerações.
Este compromisso volta-se para os direitos humanos, em consonância com suas dimensões sociais, ambientais, econômicas, culturais e éticas. Trata-se de um engajamento para proteger o planeta e garantir que as pessoas alcancem a paz e a prosperidade.
Passa-se, então, a analisar a Justiça 4.0 sob a ótica dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU.
A desmaterialização da justiça brasileira, de forma especial a partir da implementação do PJe, trouxe impactos positivos para o meio ambiente, haja vista a redução da utilização de papel, tintas, carimbos, grampos, cartuchos de impressão e materiais de escritório utilizados em larga escala pelas unidades judiciárias até sua
implantação. Some-se a isso a redução de despesas com espaços físicos, diminuindo-se a necessidade de mobiliários como estantes e até imóveis de grande porte destinados ao arquivamento de autos.
Merece destaque a acessibilidade que a tramitação processual em autos eletrônicos proporciona, por meio da possibilidade de utilização de ferramentas que auxiliem a atuação de pessoas com deficiência, sejam servidores, advogados, procuradores e juízes.
Assim, o Programa Justiça 4.0 está de acordo com o ODS 10 – redução das desigualdades – especialmente em relação às metas 10.2 - até 2030, empoderar e promover a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra – e 10.3, que cuida da garantia de igualdade de oportunidades, inclusive por meio da promoção de legislação, políticas e ações adequadas a este respeito.
Ao promover o acesso à justiça independentemente de deslocamento observa-se, também, o disposto nos artigos 79, caput, e 80 da Lei nº13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que obriga o poder público a assegurar seu acesso à justiça, “em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, garantindo, sempre que requeridos, adaptações e recursos de tecnologia assistiva”. Aludida garantia é imposta, independentemente de serem as pessoas com deficiência, partes na ação, testemunhas, partícipes, advogados, defensores públicos, magistrados ou membros do Ministério Público (BRASIL, 2015).
Além das vantagens sociais e econômicas - melhor utilização de recursos públicos -, a Justiça 4.0, de forma especial o Juízo 100% digital e os Núcleos de Justiça 4.0, também trazem vantagens ambientais, uma vez que, ao tornar desnecessário o deslocamento intermunicipal, contribuem para a redução da emissão de gases poluentes pelos veículos de transporte.
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A preservação do meio ambiente é imposta ao Poder Público e à coletividade, sendo sua defesa dever de todos, em benefício das gerações presentes e futuras, nos termos do artigo 225, caput, da CF/88 (BRASIL, 1988).
A Resolução CNJ nº 400/2021, ao dispor sobre a política de sustentabilidade no âmbito do Poder Judiciário, traz, em seus fundamentos, os princípios da defesa do meio ambiente e da redução das desigualdades regionais e sociais. Nesse sentido, a norma determina que o Judiciário adore modelo de gestão organizacional que promova a sustentabilidade, com base em “ações ambientalmente corretas, economicamente viáveis e socialmente justas e inclusivas, culturalmente diversas e pautadas na integridade, em busca de um desenvolvimento nacional sustentável” (art. 2º, caput) (BRASIL, 2021d).
O Plano de Logística Sustentável (PLS), instrumento de gestão do Judiciário previsto no art. 4º da norma, traz como indicador de desempenho mínimo, entre outros, o “deslocamento de pessoal a serviço, bens e materiais, considerando todos os meios de transporte, com foco na redução de gastos e de emissões de substâncias poluentes” – art. 7º, I, g.
A redução do impacto negativo das atividades do órgão no meio ambiente, a sensibilização e capacitação do corpo funcional e o controle de emissão de dióxido de carbono no âmbito do órgão do Poder Judiciário são requisitos a serem observados por suas unidades de sustentabilidade – art. 16, VII, alíneas c, f e j.
O artigo 24 da norma, por sua vez, obriga os órgãos do Poder Judiciário a implementar plano de compensação ambiental até o ano 2030, com a finalidade de reduzir, permanentemente, a emissão de gases de efeito estufa, resultante de seu funcionamento.
Deve o Judiciário, também em rotinas de sua atividade fim, contribuir para
a melhoria dos índices em seu Balanço de Sustentabilidade, na mesma linha ambiental que inspirou a implantação do PJe, conforme dispões, os artigos 12 e 16, §1º da resolução.
Assim, a Justiça 4.0, especialmente na forma do Juízo 100% digital, atende ao ODS 11 – cidades e comunidades sustentáveis – uma vez que, ao tornar desnecessário o deslocamento para a participação em ato ou acompanhamento processual, contribui para a redução da emissão de gases poluentes pelos veículos.
Estão entre as metas do ODS 11, a redução, até 2030, do impacto ambiental negativo per capita das cidades, inclusive prestando especial atenção à qualidade do ar, gestão de resíduos municipais e outros (meta 11.6), além de proporcionar, até 2030, o acesso universal a espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis e verdes (meta 11.7) e apoiar relações econômicas, sociais e ambientais positivas entre áreas urbanas, periurbanas e rurais (meta 11.a).
A utilização de veículos e combustível também é tratada no relatório anualmente divulgado sob o título “Balanço de sustentabilidade do Poder Judiciário”.
É o momento de aumentar esta análise para, além de considerar o impacto ambiental causado pelos veículos utilizados pelos tribunais, buscar minimizar tais efeitos para o planeta a partir da redução do uso de veículos pelas partes, testemunhas e demais atores sociais que integram o sistema de justiça.
Nesta linha, a governança do serviço público direciona sua atenção a essas novas possibilidades, inovando com soluções sustentáveis para os problemas existentes.
A Justiça 4.0 contempla também o ODS 16 - promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis-, por sua relação direta com o acesso
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à justiça, notadamente em relação às metas 16.3 - Promover o Estado de Direito, em nível nacional e internacional, e garantir a igualdade de acesso à justiça para todos-, 16.6 - desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis- e 16.7 - garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis – ao acolher as premissas da inclusão dos cidadãos, especialmente aqueles que se qualificam como excluídos digitais, aos quais foram destinadas diversas iniciativas para assegurar sua participação e adesão ao Programa, independentemente da limitação de seus recursos.
Os estudos para a ampliação e modernização do acesso à justiça ensejaram investimentos em inovação, no Brasil e no mundo, com o objetivo de implementar iniciativas promissoras para a promoção deste acesso, o que levou a repensar o processo judicial e mesmo a forma de entrega da prestação de serviços pelo Judiciário, inclusive com a adoção de tecnologia de plataformas.
O processo judicial eletrônico e as audiências por videoconferência foram implementados com a preocupação de reduzir riscos e despesas, assim como de melhorar a experiência dos cidadãos no momento em que precisam da atuação estatal.
Atento a essa preocupação, o CNJ implementou o Programa Justiça 4.0, inaugurando um cenário em que o Judiciário não depende de uma base fixa para atuar, sendo sua preocupação maior a solução do caso concreto, com a entrega da prestação jurisdicional eficiente, célere, econômica e acessível aos cidadãos.
A Justiça 4.0 é digital, voltada para a eficiência, acessibilidade, transparência e otimização na governança do Poder Judiciário, assim como para sua aproximação com o cidadão e para a redução de despesas,
tanto processuais quanto estruturais e sociais.
Seus fundamentos atendem aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU relativos à redução das desigualdades, à política de sustentabilidade para cidades e comunidades, ao acesso a espaços inclusivos e à promoção da construção de instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.
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Em uma sociedade aparentemente democrática, como é o caso da brasileira, isto porque ainda repleta de enormes desigualdades sociais, grupos de pessoas realizam os mais diversificados movimentos voltados para banir opressões e supressões de direitos os quais julgam ser legítimos detentores. O conflito, ao contrário de outras épocas, quando era contido ou mesmo reprimido politicamente, passa a ser externalizado com maior frequência pelos meios à disposição dos insurgentes, seja de forma individual ou coletiva.
Essa tendência própria da contemporânea modernidade interpretada como expressão da cidadania, qual seja, o direito de reivindicar, exigir, gritar, conclamar pela revolução, votar e ser votado, ou apenas o simples direito de litigar, produz resultados dignos de entusiasmados aplausos políticos. O agir destemido em defesa de conquistas éticas ou contra eventuais retrocessos sociais sinaliza, em alguma medida, a tentativa emancipatória por parte de mulheres e homens que não mais aceitam o destino de 1 Magistrado do Trabalho do TRT 10. Mestre e doutor pela Faculdade de Direito da UFMG-FDUFMG.
todos os atos de suas vidas como eventos naturais sobre os quais pouco podem fazer para alterá-los.
Um espaço privilegiado para as disputas têm sido o Poder Judiciário, embora cercado de conservadoras tradições capazes de muitas vezes impactar negativamente àqueles que buscam a solução dos seus litígios perante o Estado. Para além deste aspecto, a Justiça brasileira não tem conseguido abreviar o tempo de duração dos processos, tudo a contribuir para o desgaste do Judiciário como instituição pública indispensável para a concretização do Estado Democrático de Direito.
Por tantos diferentes motivos, pregase a desjudicialização de determinados tipos de conflito, cujos argumentos e motivações muitas vezes escondem o real objetivo voltado para a eliminação de direitos sociais. Existem segmentos preocupados com a eternização das demandas. Chegam a temer pelo decreto político de colapso do sistema judiciário. Outros setores, no entanto, buscam nas fragilidades existentes o apoio para mitigar o papel do Poder Judiciário em nome da salvaguarda de seus rentáveis negócios, a exemplo do que se verifica na tentativa
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do capital em implantar a arbitragem para resolver disputas trabalhistas.
Ao apontar modelo ideal de reforma judiciária para os países da América Latina e Caribe, o Banco Mundial, por intermédio de seu Documento nº 319, apresenta receituário cujo remédio da busca obrigatória dos meios alternativos de resolução dos conflitos, especialmente a arbitragem privada, ganha especial relevo (DAKOLIAS, 1992).
Mas aqui, registre-se, o artigo focalizará também uma nova forma, material e conceitualmente distinta das demais maneiras de solucionar os conflitos fora do Poder Judiciário. Trata-se da Justiça Restaurativa para as lides penais e, quem sabe, a partir do avanço da teoria e prática correspondentes, também para algumas demandas civis.
A doutrina da restauração da justiça ganha cada vez mais adeptos mundo afora, mesmo contando com uma resistência silenciosa a seus métodos pouco ortodoxos, ação refratária essa tão eficaz a ponto de sufocar o debate sobre os seus eventuais defeitos e virtudes.
Torna-se inevitável analisar a compatibilidade ou não da Justiça Restaurativa no âmbito das relações trabalhistas. Na hipótese negativa, cumpre observar a eventual existência, no cenário político, de quadro apto a gerar o encontro do capital e trabalho, em suas disputas jurídicas, sem passar necessariamente pelo crivo do Poder Judiciário.
Poder Judiciário. Crise de legitimidade. Crise de eficiência. Instituição indispensável para a concretização do Estado Democrático de Direito.
A atuação do Poder Judiciário tem sido objeto de intenso debate nas duas últimas décadas, gerando uma reforma constitucional que tramitou no Congresso Nacional durante mais de dez anos, até a promulgação da Emenda Constitucional nº 45. Guardada de variadas proposições, na
verdade, a mudança almejada foi conduzida sob dois eixos centrais. Reivindicava-se publicamente a probidade da magistratura e a transparência dos atos da Justiça, bem como a maior agilidade processual. Para tanto, foram instituídos o CNJ- Conselho Nacional de Justiça e a súmula vinculante.
O Judiciário deu substrato para algumas das críticas contra ele formuladas desde os anos 1980. A aversão à democracia por parte de segmentos da magistratura sedimentou equivocado e repugnável sentimento de poder político exacerbado, não sujeito a quaisquer limites ou controles. Sob tal perspectiva, quase tudo era possível a segmentos da magistratura, da escancarada patrimonialização do espaço público ao proferimento de decisões marcadamente injustas.
Em harmonia com a postura autoritária antes identificada, os juízes brasileiros, depois de 21(vinte e um) anos de regime militar ditatorial(1964-1985), com todas as nefastas consequências daí decorrentes, também tiveram dificuldades para compreender a crise do direito positivo identificada no pósguerra, com o surgimento de um direito internacional fincado na valorização dos direitos humanos e de princípios revestidos de idêntica natureza.
E olhar para a norma positivada como sendo o ponto de partida e também o ponto de chegada de qualquer debate jurídico significa, em última análise, retirar o conteúdo valorativo ou axiológico do direito, colocando-o em uma redoma como peça sacralizada da injustiça social porventura presente no ato do legislador, este último, sujeito naturalmente, em seu conjunto, ao poder das forças econômicas, especialmente no ato da produção da normativa estatal.
Por influência do positivismo jurídico passou-se a considerar que só é “direito” o que está contido na lei. E esta, no mundo atual, é feita segundo o jogo das forças políticas, sem
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qualquer consideração pela realidade social ou por aquilo que na linguagem de Montesquieu e dos teóricos do direito natural seria a “natureza das coisas”. De qualquer modo, o direito seria sempre político, mas a partir da concepção do Poder Legislativo como um órgão ou conjunto de órgãos em que são produzidas as leis, essa politicidade passou a caminhar muito próxima da natureza político-partidária. Desse modo foi estabelecida uma ambiguidade, pois a lei pode ser a expressão do direito autêntico, nascido das relações sociais básicas e expressando os valores de um grupo social, mas, geralmente, passou a expressar apenas a vontade do grupo que predomina em determinado momento da vida de um provo, sendo muitas vezes um instrumento de interesses individuais
Ademais, o Judiciário deixou de captar as transformações levadas a efeito na contemporânea modernidade, onde há demandas de massa geradas pela nova forma de organização do capital oligopolizado, além de relativizar o impacto, na movimentação processual, dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais previstos na Constituição de 1988, os quais nem sempre são cumpridos espontaneamente pelo Estado e por particulares detentores de mecanismos hábeis à sonegação de conquistas civilizatórias da humanidade.
A Justiça, como se nota, continuou privilegiando a solução individual em franca contrariedade à indispensável coletivização do processo em tempos de multiplicidade das ofensas a direitos individuais e difusos.
“Ademais, o Judiciário deixou de captar as transformações levadas a efeito na contemporânea modernidade, onde há demandas de massa geradas pela nova forma de organização do capital oligopolizado, além de relativizar o impacto, na movimentação processual, dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais previstos na Constituição de 1988”
ou grupais contrários aos de todo o povo (DALLARI, 1996, p.57) .
O saudoso Roberto Lyra Filho tinha que o positivismo,
Sempre capta o Direito, quando já vertido em normas; o seu limite é ordem estabelecida, que se garante diretamente com normas nãolegisladas(o costume da classe dominante, por exemplo) ou se articula, no Estado, como órgão centralizador do poder, através do qual aquela ordem e classe dominante passam a exprimir-se(neste caso, ao Estado é deferido o monopólio de produzir ou controlar a produção de normas jurídicas, mediante leis, que reconhecem os limites por elas mesmas estabelecidos) (LYRA FILHO, 1982,p. 40).
Exponencialmente acentuado, o poder dos donos dos meios de produção, na era que se incia no final dos anos 1970, interfere nas diversas esferas da vida humana, produz estragos coletivos por intermédio de um único ato, sentindo-se, por isso mesmo, bastante confortável toda vez que os seus possíveis desatinos forem tratados como problemas individuais de cada um dos afetados.
Inspirado em Mauro Cappelletti (CAPELLETTI; BRANTI, 1988), era e ainda é, consigne-se, necessário superar a tutela individual para se contrapor ao avassalador caráter destrutivo da conflituosidade gerada pela sociedade de massa globalizada em que vivemos.
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Graças a essa estratégia seletiva, expressa pelas categorias normativas forjadas pelo Estado liberal (como as noções tradicionais de contrato, legalidade, constitucionalidade, hierarquias das leis etc.) e operacionalizada pelo Judiciário nos casos de conflito concreto, esta concepção de direito atribui às regras jurídicas a responsabilidade de articular relações formalmente “igualitárias” entre os “sujeitos de direito”, garantindo o valor da segurança jurídica e, ao mesmo tempo, tornando tão previsíveis quão controláveis os atos de autoridade emanados dos diferentes órgãos decisórios do sistema legal. Em nome de uma concepção legal-racional de legitimidade, que despreza as determinações genético-políticas de suas categorias, preceitos e procedimentos, este sistema é autolimitado para resolver os conflitos
jurídicos a partir de decisões estritamente legais – o que faz com que a ordem institucional seja encarada como uma estrutura formalmente homogênea, exclusiva e disciplinadora do comportamento dos cidadãos e do funcionamento do Estado (FARIA,1995, p. 29)
Preso ao positivismo e à concepção filosófica individualista dispensada às ações judiciais, a magistratura enfrentou notória crise de legitimidade, ao ignorar o mundo e também o direito em ebulição (FARIA,1995). Não menos relevante para o contexto de crise, a longa demora na tramitação dos processos é também causa de desgaste da instituição Poder Judiciário. Uma demanda eternizada ou uma execução frustrada fundamenta a crise de eficiência constatada no mesmo estudo do professor paulista.
Sem o propósito de enumerar ou avaliar as causas da lentidão da Justiça, jamais deve ser relegada, no entanto, neste cenário de desgaste por ineficiência, a função da tutela individual prestigiada pelos operadores do direito, a existência de sistema processual, especialmente o recursal, absolutamente anacrônico, a timidez dos juízes quanto à adoção das medidas antecipatórias na fase cognitiva, a sedimentação de jurisprudência conservadora pelos tribunais, totalmente refratária à abreviação do tempo de vida do processo e, finalmente, a quantidade de processos ajuizados anualmente infinitamente superior à capacidade estrutural da máquina judiciária.
No ano de 2011, segundo registra o CNJ, em seu “Justiça em Números”, mais de 90 (noventa) milhões de processos tramitaram na Justiça brasileira, tendo sido resolvidos cerca de 26 (vinte e seis milhões), quase a mesma quantidade de feitos novos ajuizados naquele ano (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2013).
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Torna-se praticamente impossível superar a crise de eficiência do Judiciário enquanto o estoque de processos não resolvidos superar a marca dos 60 (sessenta) milhões por ano. Todos os esforços imbuídos dos melhores propósitos, até o presente momento, conseguem apenas minimizar os efeitos deletérios dessa relação bastante desequilibrada. Aliás, na pesquisa realizada no mês de junho de 2013 sobre a atuação dos Poderes, o Datafolha apurou que apenas 20% (vinte por cento) dos paulistanos vislumbram algum prestígio por parte do Poder Judiciário (RODRIGUES, 2013).
A alternativa da desjudicialização dos casos simpels e a conciliação no Processo do Trabalho
Na órbita da conciliação judicial é fundamental atentar para a razão de ser do Direito do Trabalho, de modo que nem o mais simples acordo implique em renúncia de direitos obreiros, dada a indisponibilidade natural de tais garantias, como nos alerta a eminente Professora Elaine Nassif (NASSIF, 2005).
Defendendo o respeito às conquistas dos trabalhadores, a Professora Adriana Goulart de Sena, acentua que:
Ganham maior densidade, a partir do quadro de congestionamento do Judiciário, propostas consistentes na desjudicialização dos denominados casos simples, para assim, pois, viabilizar a prestação jurisdicional de forma célere e com qualidade nas demandas dotadas de algum tipo de complexidade. Aparecem, em tal contexto do uso de padrão não convencional, a justiça comunitária, a mediação, a conciliação judicial e extrajudicial, a justiça itinerante, os juizados especiais, a justiça restaurativa e outros meios alternativos de resolução dos conflitos.
Não é demais ressaltar que, no campo das relações trabalhistas, todas as alternativas antes descritas, à exceção da conciliação judicial ou dos juizados itinerantes conduzidos exclusivamente por magistradas e magistrados, encontram total restrição na principiologia que inspira o Direito do Trabalho, considerando a desigualdade material entre os litigantes do conflito entre trabalho e capital, não perceptível por particulares os quais tratam igualmente as partes do litígio.
A conciliação não pode ser interpretada ou processada como uma forma de desconstrução do processo ou do direito material que lhe está subjacente. Tratar de conciliação é tratar de um instituto importantíssimo que, todavia, não pode se converter em medida de inefetividade dos direitos legalmente previstos. Essa é uma premissa indeclinável desse estudo: o processo não pode ser ferramenta de desconstrução do direito material do trabalho (SENA, 2007).
A conciliação trabalhista não é para todo e qualquer caso submetido à apreciação dos juízes. É necessário estar configurada efetiva controvérsia acerca do objeto pretendido, sob pena de o Judiciário transformar-se em verdadeiro departamento de pessoal das empresas resistentes ao cumprimento do ordenamento jurídicotrabalhista, além de fomentar o crescimento do quadro de irregularidades patronais.
O Professor Márcio Túlio Viana sugere redobrada cautela no ato da homologação dos acordos judiciais trabalhistas, diante das tentativas de fraudes levadas a efeito por este meio de resolução dos conflitos. Depois de avaliar as nuances da conciliação, as suas intenções escamoteadas, invoca o
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mestre juslaboralista mineiro a perspicácia do magistrado para evitar danos de maior intensidade ao trabalhador. Na sua leitura:
É importante que o juiz, em sua prática diária, use as próprias ambiguidades da conciliação para minimizar os seus males. A propósito, é curioso notar que ela tem de tudo um pouco: é uma confusa mistura. Para começar, tratada como ato processual, sem que o seja; e até como sentença, embora seja expresse através de um despacho (VIANA, 2007, p. 196).
Resta assinalar que a experiência fracassada da representação classista na Justiça do Trabalho, desde à sua criação até o ano de 1999, nos revela que os atos preparatórios, bem como os conciliatórios, sejam praticados exclusivamente por
laborais, guiadas que são por árbitros e outros leigos – ou não leigos, imbuídos da ideologia burguesa – cujo propósito único é oferecer aos patrões o conforto da contenda resolvida sem sobressaltos econômicofinanceiros, isto é, pelo menor custo possível, independentemente das garantias constitucionais e legais solapadas para evitar a chegada dos conflitos ao Poder Judiciário.
Trata-se, com efeito, de um negócio atrativo para o capitalista. Depois de extintas as relações de trabalho, a reparação de direitos sociais violados se dá sob margens infinitamente inferiores àquelas prometidas no ato da contratação obreira.
Cuida-se a arbitragem ou a mediação de simulacro de justiça democrática responsável por soterrar direitos sociais mediante o oferecimento aos trabalhadores
“Depois de extintas as relações de trabalho, a reparação de direitos sociais violados se dá sob margens infinitamente inferiores àquelas prometidas no ato da contratação obreira”.
magistradas e magistrados de carreira independentes, comprometidos, portanto, com a aplicação sem tréguas dos princípios do Direito do Trabalho.
Ainda assim, cordos celebrados sob a supervisão judiciária, com razoável frequência, dizimam conquistas trabalhistas, nada comparável, todavia, com o que se sucede perante os fraudulentos meios alternativos de solução de conflitos (arbitragem, mediação e similares).
As vias extrajudiciais se põem como máquinas de demolição dos direitos
desempregados de quantias monetárias muito aquém daqueles reduzidos valores pactuados no ato da contração obreira e assegurados pelo ordenamento jurídico. Também na esfera judicial algumas das conciliações celebradas reduzem direitos dos empregados, ainda que em grau muito inferior ao praticado no âmbito dos meios alternativos de conciliação (arbitragem, mediação e similares).
Expressivo número de acordos judiciais entre empregados e empregadores, homologados pela Justiça do Trabalho, contém cláusulas gerais de quitação integral do contrato de trabalho, repondo, por
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essa razão e outras vinculadas à lógica dominante do rebaixamento geral das parcelas pleiteadas em juízo, do ponto de vista monetário, fração insignificante das violações jurídico-laborais. Isso porque acabam por receber valores irrisórios e, não raro, parceladamente durante vários meses, em uma notável demonstração da reiterada ofensa ao princípio da indisponibilidade ou da irrenunciabilidade de direitos trabalhistas, tudo com o aval do Poder Judiciário (NASSIF, 2005).
Os meios alternativos de conciliação no âmbito das relações de trabalho, reiterese, são instrumentos de dizimação de direitos sociais da classe trabalhadora, em proporções incomparavelmente superiores àquelas verificadas sob a supervisão judicial.
Em outras palavras, a conciliação intermediada jamais foi o melhor caminho para a solução justa dos conflitos sociais entre o capital e o trabalho.
Justiça restaurativa. Uma nova mentalidade de solução dos conflitos. Premissas, resultados e críticas
Entre as vias de fomento ao uso dos meios extrajudiciais, com especial destaque, diante do seu conteúdo ético, encontra-se a Justiça Restaurativa para as lides penais, que se apresenta não apenas como mecanismo de natureza processual, senão verdadeiro método de realizar a justiça na mais dialógica e psicológica profundidade. Isso não pode significar, por outro lado, em hipótese alguma, eventual subtração ou mitigação do papel imprescindível desempenhado pelo Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito.
determinada comunidade com os meios tradicionais utilizados para a solução de conflitos envolvendo pequenos atos infracionais. Inspiraram-se nos seus antepassados tribais para construir alternativas dialógicas, democráticas e efetivas (BRUSSIUS; RODRIGUES, 2013).
Preliminarmente, é necessário esclarecer que a Justiça Restaurativa foi pensada para a solução das infrações penais de menor intensidade, constituindo-se em um sistema flexível de justiça penal, mas para “fazer algo melhor do que o direito penal”, na expressão do professor Renato Sócrates Gomes Pinto (PINTO, 2013).
Os relatos históricos indicam que a Justiça Restaurativa teve início na Nova Zelândia a partir da frustração de uma
No sistema de Justiça Restaurativa é indispensável o consenso das partes quanto à utilização deste procedimento. Qualquer ação do Estado ou de particulares voltado para a compulsoriedade viola a natureza de mecanismo essencialmente involuntário e informal, normalmente desenvolvido em espaços comunitários, com a utilização de técnicas de mediação, conciliação e transação. O que se busca, na essência,
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não é mera punição do infrator, mas o resultado restaurativo capaz de contemplar as necessidades individuais e coletivas de uma determinada comunidade, tudo com o propósito de alcançar a convivência pacífica (PINTO, 2013).
Deste modo, são princípios informadores da Justiça Restaurativa a voluntariedade e o diálogo comunitário responsável por encontrar a decisão mais adequada para o caso submetido às técnicas de conciliação ou mediação.
Sem diálogo não há Justiça Restaurativa. Para Afonso Armando Konzen, “o pressuposto de uma relação dialógica é a capacidade de ouvir, demonstração de respeito à condição daquele que fala. Esta posição de respeito é fonte de poder, de legitimação da fala”(KONZEN, 2007, p. 86).
Longe de representar o mero esquecimento, a Justiça Restaurativa utiliza técnicas de análise profunda das causas da infração, em um processo dialógico envolvendo a vítima, o ofensor e a própria comunidade. Expostas as causas na mesa de debate, inicia-se a discussão acerca de todos os fatores que conduziram o autor da infração a determinado comportamento, as suas consequências individuais e coletivas.
Um pressuposto inarredável da Justiça Restaurativa é a democracia na construção da decisão proferida, capaz de envolver o conjunto da comunidade afetada, como revela o texto ora transcrito:
Queremos também que a comunidade participe, sinta-se responsável não só por aquilo que ocorre, mas pelo que é possível fazer. Se um furto ocorreu em um estacionamento sem luz elétrica, como aconteceu na Nova Zelândia, e a comunidade decidir que é necessário
colocar naquele local luz elétrica, ela é responsável também por procurar meios, encontrar prevenção e olhar mais para o futuro e não para o passado.
Então, o objetivo é empoderar as partes, de que a vítima volte a ter sua auto-estima recuperada, de que o ofensor não seja estigmatizado. De alguma forma ele vai responder realmente por aquilo à comunidade. A comunidade se sente empoderada de estar resolvendo os seus conflitos. É um sistema complementar, não é alternativo para a Justiça, isso tudo com os nossos ganhos históricos do Estado Democrático de Direito que acompanha esse processo também (BRASIL,2013).
Em outras palavras, a Justiça Restaurativa quer responsabilizar e ressocializar, de fato, o autor do ato infracional, sem descuidar das necessidades de reparação da vítima e dos anseios da comunidade.
Ao contrário dos modos de Justiça Retributiva ou Distributiva, na Justiça Restaurativa ou justiça de reconhecimento, busca-se “correspondência entre a sentença judicial e o sentimento de justiça dos atores afetados pela infração”(SCURO NETO, 2013). O autor repara os males causados a terceiros, a vítima é reparada e a comunidade é parte integrante da avença celebrada com a sua anuência ao ajustado de maneira dialógica.
Para que todos sejam adequadamente contemplados, com o restabelecimento da convivência pacífica no âmbito da comunidade, ao contrário do sistema penal meramente punitivo, na informalidade do diálogo o conflito é examinado em toda a sua profundidade, o que requer, sem nenhuma
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dúvida, investigar, inclusive do ponto de vista psicológico, a conduta do infrator, ou seja, as suas reais causas e os seus efeitos, tudo em nome da restauração social e terapêutica da paz, como indica Renato Sócrates Gomes Pinto, ao também declarar ele que “A ideia, então, é se voltar para o futuro e para restauração dos relacionamentos, em vez de simplesmente concentrar-se no passado e na culpa”(PINTO, 2013).
Sobre os resultados da Justiça Restaurativa, a sua aplicação na Nova Zelândia é descrita como sendo de reconhecido êxito pela comunidade, talvez o de maior projeção no mundo para vir logo em seguida o Canadá, sem prejuízo de outras experiências exitosas, inclusive no Brasil e em outros países da América Latina.
de resolução dos conflitos estão concentrados na advocacia representada pela Ordem dos Advogados do Brasil-OAB. A entidade classista dos causídicos, normalmente, agita o princípio da inafastabilidade da jurisdição previsto na Carta Magna para se contrapor a medidas do mesmo gênero.
A voluntariedade do procedimento, o seu conteúdo ético e compromisso com as balizas do Estado Democrático de Direito, diferentemente da intenção corporativa, concretizam o sentido de justiça almejado pela sociedade.
Howard Zehr, entusiasmado com a ação transformadora da Justiça Restaurativa, dá o seu relato:
Depois de ouvir as vítimas e também observar os participantes das conferências de grupos familiares na Nova Zelândia- e especialmente os participantes maoris, percebi que “corrigir” significa que devemos tratar dos danos e necessidades das vítimas, mas também as causas da ofensa. Assim, o plano que emerge das conferências de justiça para a juventude da Nova Zelândia deve ter duas partes fundamentais: um plano para cuidar dos danos e necessidades da vítima, e um plano para tratar daquilo que está acontecendo na vida do jovem ofensor e que contribui para levá-lo à ofensa. Isto representa um esforço holístico para corrigir a situação (ZEHR, 2008).
Os críticos mais ferozes da Justiça Restaurativa e de outros meios alternativos
Os advogados são indispensáveis à administração da Justiça. Isso não significa, por outro lado, que o modelo empresarial dominante, quanto ao exercício de tão nobre atividade, possa suplantar a razão de ser da verdadeira Justiça. Na verdade, é preciso inverter a lógica para dissipar eventuais dúvidas a respeito do papel dos advogados ou de quaisquer outros profissionais do Direito. Eles são o meio para a concretização dos direitos fundamentais e não o fim em si mesmo, como alguns segmentos equivocadamente imaginam.
Abstraindo os repugnáveis preconceitos contra a atuação dos advogados, não e de hoje que se reivindica uma postura eminentemente pública dos referidos profissionais de Direito. A Utopia, de Thomas More, pelo grau de conhecimento dos seus habitantes, dispensava o agir dos intermediários durante o julgamento dos conflitos entre seus cidadãos.
Têm como suprema injustiça que se obrigue um homem a obedecer a leis que não consegue conhecer, pois são inúmeras e tão obscuras que ninguém as pode compreender
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com exatidão. Excluem-se ainda mais rigorosamente os advogados, procuradores e solicitadores, que manejam habilmente os processos e discutem astuciosamente as leis. Pensam ser mais acertado que cada um defenda a sua própria causa e confesse ao juiz o mesmo que contaria ao advogado. Desse modo, haverá menos ambiguidade, e a verdade descobrir-se à mais facilmente, pois o juiz pesará e examinará com bom senso as razões de cada um, a quem nenhum advogado instruiu com impostura, defendendo os espíritos ingênuos e simples contra as calúnias maliciosas dos malabaristas de palavras (...). Todos são advogados hábeis, pois é pequeno o número de leis que os regem e a sua interpretação mais simples e vulgar é considerada a mais justa (...). Ora, a interpretação cheia de sutilezas e habilidades é acessível a pouca gente e só esclarece um pequeno número, enquanto as leis formuladas com clareza e simplicidade são facilmente compreendida por todos (MORE, 2005, p. 90).
Em resposta à mercantilização vista nas carreiras jurídicas, Boaventura de Sousa Santos propõe o fortalecimento das defensorias públicas, a instituição das promotorias legais populares, o incremento das assessorias jurídicas populares, a capacitação jurídica de líderes comunitários, a criação da advocacia popular e a concretização de espaços comunitários para lidar com os conflitos penais de menor intensidade (SANTOS, 2007). A Justiça Restaurativa, portanto, tem espaço na concepção doutrinária do sociólogo português, no que concerne ao tema do acesso e democratização da justiça.
Justiça restaurativa nas relações de
trabalho. Viabilidade ou não. Organização dos trabalhadores nos locais de trabalho.
Como externado no tópico anterior do presente artigo, a Justiça Restaurativa foi concebida para lidar com lides penais de menor potencial ofensivo, solucionando-as mediante diálogo, com a efetiva participação da comunidade. As suas premissas não possuem relação ou ponto de contato com os pressupostos do Direito do Trabalho, especialmente porque este último cuida de conflitos entre partes absolutamente desiguais, do ponto de vista material. Ademais, a principiologia laboral é incompatível com a ideia de renúncia de direitos por parte do trabalhador ou de contemporização com o empregador que descumpre as suas obrigações sociais.
O que mais se aproxima da concepção de Justiça Restaurativa, no âmbito das relações de trabalho, é o instituto político da organização dos trabalhadores nos locais de trabalho, tanto pelo envolvimento dialógico da comunidade na área da fábrica, quanto pela profundidade do exame das causas e efeitos do conflito. No Brasil, essa instância é praticamente desconhecida.
As Comissões de Conciliação Prévia desempenham papel diametralmente oposto ao sentido de organização dos trabalhadores nos locais de trabalho, pois servem para chancelar a sonegação de direitos sociais.
Na qualidade de pesquisador do tema, o professor José Francisco Siqueira Neto defende o direito à representação dos trabalhadores nos locais de trabalho como verdadeiro contrapoder da classe trabalhadora frente à desigualdade de forças na relação com o capital, a ponto de fazer surgir um ambiente jurídico capaz de oferecer condições para o acontecimento do embate de modo mais transparente e democrático.
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Na sua compreensão, em sentido oposto ao temor apregoado com frequência nos mais diversos centros de discussão, determinado panorama jurídico propício ao conflito mais aberto entre o capital e o trabalho, de forma direta, no próprio local da prestação laboral, com liberdade sindical, é algo extremamente positivo. Por um lado, segundo ele, expõe a desigualdade quanto à atribuição de poder aos dois atores antes destacados e, por outro, possibilita a construção de consensos nascidos dos dissensos expostos de maneira intensa, até porque, nos seus dizeres, “ninguém convence sem antes ter divergido”, “convergência não é geral e eterna, mas sim pontual e temporária”(SIQUEIRA NETO, 1999).
Presente efetiva liberdade sindical asseguradora da garantia de representação dos trabalhadores por local de trabalho, haveria, no entendimento de Siqueira Neto, respaldo institucional para a formação de ambiente propício a reduzir as discrepâncias de poder entre os donos da força laboral e os proprietários dos meios de produção na sociedade capitalista, ao mesmo tempo em que o diálogo social seria construído sob outras bases, influenciando, por isso mesmo, negociações coletivas condutoras de eliminação das mais diversas distorções. O referido consultor trabalhista apresenta a tese de que pouco adianta a existência de modelo de direito do trabalho estatal protetivo se não houver liberdade sindical e direito de organização dos trabalhadores no local de trabalho, sendo necessário, portanto, oferecer instrumentos “legais e legítimos” para aniquilar o despotismo do capital, que transcende o seu exacerbado poder para as mais diferentes relações econômicas e políticas existentes na sociedade. Diferentemente do Brasil, as nações industrializadas da Europa Continental consagraram modelos de organização sindical com liberdade e representação dos trabalhadores por local de trabalho, caminho que foi trilhado com maior consistência a partir do pós-guerra de 1945,
sem relegar a influência que a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, teve sobre o assunto, ao constar em seu elenco o direito à liberdade sindical (SIQUEIRA NETO, 1999).
Não obstante a relevância do reconhecimento jurídico do direito obreiro à organização no local de trabalho, para funcionar como mecanismo de embate direto, de solução negociada dos conflitos em moldes absolutamente distintos daqueles aplicados às Comissões de Conciliação Prévia, o vigor do Direito do Trabalho não depende de uma única medida. Frágeis os sindicatos, ressurgem naturalmente as velhas teorias flexibilizadoras de direitos por intermédio de negociações coletivas ou de comissões existentes no local de trabalho, tudo em contrariedade aos fundamentos daquele instituto social.
A adoção do modelo de organização dos trabalhadores nos locais de trabalho somente será eficaz, do ponto de vista de sua concepção doutrinária, com uma estrutura que lhe empreste efetivo suporte, tais como, a ampla liberdade sindical, a garantia de emprego, o fim da terceirização, a ampliação dos direitos previstos em normas estatais e a rejeição a todas e quaisquer medidas precarizantes ou flexibilizantes vistas nos mais diversos atos.
Em tal cenário, a organização operária no próprio local de trabalho pode cumprir papel semelhante àquele desempenhado pela Justiça Restaurativa nas lides penais, seja para viabilizar uma prestação jurisdicional célere e qualificada nas outras demandas, seja para investigar os reais motivos do conflito(as razões do descumprimento do ordenamento jurídico-trabalhista).
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É possível afirmar que a Justiça Restaurativa pode se constituir em uma via ética para diminuir o congestionamento do Poder Judiciário. E o mais importante: pode realizar esta atividade de compor conflitos mediante diálogo amparado em pressupostos humanitários, formatando decisões construídas coletivamente, o que envolve a participação da comunidade na mediação de crimes de menor potencial ofensivo. O modelo, nem de longe, assemelha-se a qualquer tipo de privatização da Justiça. É a potencialização do empoderamento da sociedade, ao colocar em xeque o paradigma da mera punição em detrimento da paz social.
No âmbito das relações de trabalho, o sistema de Justiça Restaurativa se mostra absolutamente incompatível. Os seus pressupostos e fundamentos encontram-se direcionados às partes as quais não guardam desigualdades tão gigantescas, como o capital e o trabalho, nem possuem o conflito como algo imanente à própria razão de ser enquanto classe social - exploradores e explorados-.
Respeitado o clássico Direito do Trabalho fundado em princípios, por intermédio de um conjunto de ações políticas e jurídicas, a organização dos trabalhadores nos locais de trabalho insere-me como mecanismo a ser considerado para melhorar o desempenho do Poder Judiciário, enfrentando alguns conflitos na própria fábrica, durante a vigência do contrato de trabalho, jamais depois do seu término, anote-se, porque não é instancia trabalhista como pretende o sindicalismo pelego ou de fachada. Jornadas excessivas, ausência de condições dignas de labor, falta de prevenção contra acidentes de trabalho, práticas de assédio moral e outras tantas irregularidades trabalhistas, devem ser combatidas imediatamente no próprio local de trabalho, cuja luta será empreendida pela coletividade de trabalhadores na fábrica, sempre com a participação sindical.
Nesse sentido, os dissídios trabalhistas judicializados diminuem, não porque são resolvidos após o fim do contrato, mas porque passam a ser combatidos de maneira vigorosa no ato do acontecimento das irregularidades patronais, ou seja, na raiz do problema.
Em síntese, Justiça Restaurativa e organização dos trabalhadores nos locais de trabalho, cada a um seu modo, tendem a ganhar espaço em nome da resolução ou enfrentamento do conflito da forma mais satisfatória para as partes e para a sociedade.
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Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
O trabalho da mulher é um importante tema estudo, que merece especial atenção do Estado, visando criar e efetivar políticas públicas que garantam o direito à igualdade material. As diversas normas existentes, que buscam garantir às mulheres o acesso amplo e seguro ao mercado de trabalho, não têm sido suficientes para se fazer cumprir os objetivos estabelecidos, o que demonstra que o tema se mantém atual e relevante. Diante desse cenário, o presente artigo faz uma breve análise acerca das alterações legislativas promovidas pela recente Lei n. 14.457, de 21 de setembro de 2022, responsável por instituir o Programa Emprega + Mulheres.
Palavras-chave: Direito do Trabalho. Trabalho da mulher. Igualdade de gênero. Programa Emprega + Mulheres.
Igualdade de gênero: uma luta em andamento
As discussões sobre a participação feminina no mercado de trabalho não são recentes, embora estejam inegavelmente na pauta do dia, pois continuam exigindo especial atenção em busca de uma ainda não alcançada igualdade de gênero, nas mais variadas searas.
Em 24 de fevereiro deste ano comemoramos os noventa anos da conquista do voto feminino no país, ocorrida durante a Era Vargas, que também ficou conhecida pelo surgimento da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, através da promulgação do Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Essas conquistas possuem relação direta, pois apenas com o reconhecimento da condição de cidadã a mulher ganhou maior liberdade, podendo alçar voos com destino ao mercado de trabalho, deixando de se dedicar exclusivamente aos afazeres domésticos.
1 Juíza do Trabalho Substituta vinculada ao E. Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Especialista em Direito Ambiental pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR)
Um exemplo interessante, especialmente por se tratar de um ano com disputa eleitoral, é o fato de, apesar de as mulheres representaram 53% do eleitorado nacional, ocupam hoje apenas 15% das cadeiras da Câmara dos Deputados, e 12% das cadeiras do Senado Federal, escancarando a desigualdade de gênero latente nos diversos
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espaços de poder (BRASIL, 2022a).
Muito embora as notícias apontem um pequeno aumento desses percentuais, pois com o resultado do primeiro turno das eleições de 2022, constatou-se um discreto aumento da participação feminina no Congresso Nacional (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2019), essas mudanças sociais ainda são tímidas e revelam que a luta das mulheres para ingressarem e se manterem no mercado de trabalho de forma paritária, inclusive nos espaços públicos de decisões, ainda é árdua e necessária. Esses fatos também demonstram, de forma clara, que o direito feminino ao voto livre não foi suficiente para garantir a igualdade de participação política.
Esse panorama tem feito com que diferentes instituições nacionais e internacionais se mobilizem em prol do real alcance da igualdade material entre homens e mulheres, tentando modificar a cultura social sexista que insiste em manter seres humanos em polos antagônicos pelo simples fato de terem vindo ao mundo em corpos biologicamente distintos.
Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas - ONU, organização internacional dotada de personalidade jurídica, da qual o Brasil é membro fundador, criou em 2015 a chamada Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, que representa um pacto global, firmado entre os 193 países participantes, que se comprometem a adotar ações para o enfrentamento dos maiores desafios do mundo contemporâneo (ONU, 2015).
A Agenda prevê a adoção de dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que estão relacionados com a efetivação dos direitos humanos e a promoção do desenvolvimento sustentável em suas dimensões social, econômica, ambiental e institucional, o que deverá ser feito através do atingimento de cento e sessenta e nove metas, a serem cumpridas no período de 2016 a 2030.
Dentre esses objetivos, dois nos demandam maior atenção, por possuírem relação direta com a temática deste trabalho, o quinto, que prevê a busca pela igualdade de gênero, e o oitavo, que destaca a importância do trabalho decente e do crescimento econômico.
O documento prevê seis principais metas diretamente relacionadas com o objetivo cinco (igualdade de gênero), sendo importante que conheçamos todas as metas traçadas, para que possamos atuar em prol do alcance das mesmas pelo Brasil. Destacam-se como relevantes para os fins do presente trabalho, especialmente, as metas 5.4 e 5.5, que preveem o reconhecimento e a valorização do trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais, e a garantia de participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública, respectivamente.
Já em relação ao objetivo oito (trabalho decente e crescimento econômico), foram listadas dez metas, destacando-se neste trabalho a meta 8.5, que prevê o alcance, até o ano de 2030, de emprego pleno e produtivo, bem como o trabalho decente para todas as mulheres e homens, inclusive para os jovens e as pessoas com deficiência, além da garantia de remuneração igual para trabalho de igual valor.
De igual modo, o Conselho da Europa, uma organização internacional europeia, fundada em 1949, que atua em prol da defesa dos direitos humanos, adotou, em 27 de março de 2019, a Recomendação CM/Rec (2019) sobre prevenção e combate ao sexismo, indicando a adoção de diversas medidas preventivas de combates, e prevendo, dentre as ações específicas, a atuação nos diversos locais de trabalho da mulher, no setor público, no Poder Judiciário, dentre outros. A campanha intitulada: “Sexismo: Veja. Diga.
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Pare!”, visa incentivar os países a aprovarem legislações que condenem o sexismo, além da implementação de políticas igualitárias em nível nacional nos países europeus signatários (COUNCIL OF EUROPE, c2020)2 .
Em âmbito nacional, a previsão normativa de igualdade foi erigida à norma constitucional desde 1988 e é apresentada de forma ampla, trazendo a igualdade como um dos pilares na construção de uma sociedade livre, justa e solidária. O art. 5º, da Constituição Federal, prevê como o primeiro ponto de partida dentre os inúmeros direitos e garantias fundamentais a igualdade material entre homens e mulheres, trazendo expressamente a previsão de que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, vedando distinções de qualquer natureza (BRASIL, 1988).
das metas do Poder Judiciário com as metas e os indicadores dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – Agenda 20303, publicou a Recomendação n. 128, de 15 de fevereiro de 2022, aconselhando a adoção do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, reservando um capítulo próprio para a Justiça do Trabalho. Referido documento é resultado de pesquisas promovidas por um grupo de trabalho formado por juristas dos diversos ramos do Poder Judiciário e da academia, constituído com o intuito de fomentar a reflexão crítica sobre o tema, tendo como principal objetivo “alcançar a superação dos percalços que impossibilita a percepção de uma igual dignidade entre mulheres e homens, em todos os cenários”(BRASIL, 2022b). E, portanto, servir como instrumento de auxílio no alcance do objetivo cinco estabelecido pela Agenda 2030 da ONU.
“Apesar da previsão constitucional já ter completado três décadas, a sociedade brasileira ainda não conseguiu se desvencilhar das amarras culturais discriminatórias e sexistas, que insistem em manter as mulheres em um lugar de inferioridade quando comparadas aos homens, especialmente se nos referirmos às mulheres negras (...)”
Apesar da previsão constitucional já ter completado três décadas, a sociedade brasileira ainda não conseguiu se desvencilhar das amarras culturais discriminatórias e sexistas, que insistem em manter as mulheres em um lugar de inferioridade quando comparadas aos homens, especialmente se nos referirmos às mulheres negras, fazendo com que seja necessária e urgente a adoção de políticas públicas destinadas à garantia da igualdade, ou, pelo menos, da redução das dificuldades enfrentadas pela população feminina, seja através da criação de mais normas protetivas ou de outras medidas reflexas e verdadeiramente eficazes, tais como políticas públicas de discriminação positiva.
Por essas razões, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, responsável pela integração 2 https://human-rights-channel.coe.int/stop-sexism-pt.html
Como se vê, embora a discussão não seja nova, pois há décadas se discute sobre a inclusão das mulheres no mercado de trabalho, ai compreendidos os diversos espaços de Poder, o tema ainda se apresenta pungente, atual e palpitante. Essa constatação nos demonstra que é necessária atenção prioritária, como tentativa de se apagar as cicatrizes geradas por anos de uma exploração cultural que até hoje se faz presente, ainda que através de microagressões sociais diárias. Isso porque, em uma sociedade que naturaliza comportamentos discriminatórios, infelizmente não se pode festejar essa perspectiva igualitária como um valor ético-social inarredável, fazendo com que a atuação do Poder Público seja medida que se impõe, por ser ele o único capaz de, ainda
3 Agenda 2030 no Poder Judiciário. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/04/Segundo-Relatorio-Comite-Interinstitucional-14022020.pdf
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que em doses homeopáticas, iniciar efetivas mudanças sociais.
A história nos revela que os direitos femininos foram conquistados através de lutas e resistências recentes, tendo ganhado maior relevo apenas na segunda metade deste século, após a mudança operada com as guerras mundiais, quando se passou a constatar a capacidade feminina para o trabalho fora do espaço doméstico (ALMEIDA, 2011).
As mudanças sociais operadas com a Revolução Industrial foram responsáveis em grande medida pela inserção das mulheres no mercado de trabalho (NASCIMENTO, 2014).
As necessidades oriundas das modificações ocorridas com o fim da manufatura e o início do mundo industrializado, tais como a produção em larga em escala e o trabalho mecânico, além da miserabilidade que assolou os lares, fizeram com que o trabalho das mulheres fosse visto como alternativa viável e rentável, levando às mulheres e os menores a serem submetidos a uma dura realidade de exploração.
Isso sem falar no trabalho não remunerado executado pelas mulheres negras, que há muito mais tempo foram obrigadas a trabalhar sem nenhuma visibilidade social ou amparo, o que ocorreu muito antes dessas mudanças sociais originadas no mundo pós-guerra, acentuado as diversas facetas discriminatórias da nossa sociedade.
Nesse período, caracterizado pelas mudanças do mundo industrial, as mulheres passaram a observar que ao se desejarem iguais aos homens em todos os sentidos, especialmente, do ponto de vista do mundo do trabalho, eram exploradas em razão do sexo, pois lhes eram reservados os serviços menos remunerados e, muitas vezes, recebiam salários menores do que os dos homens pelo desempenho das mesmas funções, o que nos dias atuais, apesar de algumas conquistas, ainda é uma realidade. Especialmente levando-se em consideração a dupla jornada feminina, já que os maridos e companheiros continuaram a separar as esferas sociais, sendo que as tarefas domésticas permaneciam sob a responsabilidade das mulheres, como ainda vemos na atual sociedade (ALMEIDA, 2011).
Apenas nas primeiras décadas do século XIX surgem os movimentos operários e as greves, reivindicando, principalmente a diminuição das extensas jornadas de trabalho e melhores salários. Esses movimentos eram marcados pela liderança e participação dos trabalhadores homens. As primeiras greves de mulheres trabalhadoras ocorrem a partir de metade do século XIX, quando os movimentas feministas com maior força a redução da jornada de trabalho e salariais iguais para mesmas tarefas que os homens (MONTENEGRO, 2015).
No Brasil, os direitos trabalhistas, inclusive com normas de proteção ao trabalho da mulher, foram inicialmente normatizadas através de Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, em 1° de maio de 1943, sendo a previsão de normas trabalhistas um grande marco da Era Vargas.
Embora desde a origem a CLT contenha normas visando à proteção da mulher,
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constatou-se que algumas disposições de proteção não cumpriam o papel para qual foram pensadas, pois, na verdade, geravam restrições que em vez de proteger as vulnerabilizavam ainda mais, acarretando discriminações quanto ao trabalho da mulher. Por essa razão, as normas protecionistas atualmente são elaboradas com a observância da proibição de discriminação de gênero, procurando estabelecer uma real igualdade nas relações de trabalho. (GARCIA, 2022)
Passadas décadas de conquistas de alguns direitos básicos, como o sufrágio feminino, licença-maternidade e limite de jornada diária, por exemplo, muitas dificuldades ainda são enfrentadas todos os dias por milhares de mulheres brasileiras que sonham em viver em uma sociedade mais igualitária.
Isso porque, de modo geral, a legislação trabalhista tem assegurado às mulheres proteção especial, tendo em vista a sua constituição física e biológica, mas as mulheres ainda sofrem discriminações variadas, seja pela exploração de classe, da dupla jornada de trabalho, dos baixos salários, a opressão do sexo, que impõe uma rígida divisão de trabalhadores e de papéis sociais (GARCIA, 2022).
Por essa razão, o Poder Legislativo ainda representa uma fonte de esperança e deve atuar efetivamente em prol da redução das desigualdades, pois:
A intervenção legislativa moderada com normas de proteção ao trabalho da mulher se mostra necessária diante da realidade que se apresenta o discrímen negativo afastando-a do mercado de trabalho ou então confinando-a nos guetos do mercado laboral, relegando as atividades mais importantes ao sexo masculino que, inclusive, recebe média salarial superior àquela paga ao sexo feminino no exercício de atividades idênticas (GODOY, 2015).
Embora o nosso ordenamento jurídico venha paulatinamente se ajustando às novas realidades sociais e aos novos arranjos familiares, é preciso buscar meios de se abranger a complexidade do assunto ao reconhecer a igualdade entre o homem e a mulher em todos os campos sociais (CARDOSO; MAIA, 2014).
A proteção do trabalho da mulher e o reconhecimento das dificuldades que ainda são enfrentadas pelas mulheres do mundo atual, foram responsáveis pelo surgimento do “Programa Emprega + Mulheres”, que se deu por meio da promulgação da Lei n. 14.457, de 21 de setembro de 2022, como resultado da conversão da Medida Provisória n. 1.116/2022.
Contendo trinta e cinco artigos, a Lei em comento é responsável pela alteração de vários artigos da CLT, e teve como justificativa a necessidade de adoção de medidas que visem garantir às mulheres a inserção e a permanência no mercado de trabalho, por meio de medidas de apoio à parentalidade, qualificação e retorno ao trabalho após a maternidade.
Dividida em dez capítulos, a norma possui quatro grandes eixos que preveem medidas de asseguramento e proteção destinados diretamente à mulher trabalhadora, são eles: a) o apoio à parentalidade, dividido entre parentalidade na primeira infância e por meio da flexibilização do regime de trabalho; b) qualificação das mulheres e c) apoio para retorno ao trabalho após a maternidade. Além dessas medidas, a norma prevê outras destinadas ao estímulo da empregabilidade e empreendedorismo, além da proteção à saúde física e psíquica da mulher, estabelecendo formas de prevenção e combate ao assédio sexual e a outras formas
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de violência no âmbito do trabalho.
Embora seja inegável que o ordenamento jurídico brasileiro já possua normas protetivas que visam garantir estabilidade e segurança à gestante, tais como, a estabilidade gestante (art. 391-A, CLT), a licença-maternidade (art. 392, CLT), as folgas justificadas para realização de exames (art. 392), a proibição de trabalho insalubre (art. 394-A, CLT) etc. Essas normas por si só, não eram suficientes, havendo, de fato, a necessidade de ampliação do arcabouço normativo como forma de garantir também à criança, após o nascimento, a proteção integral de seus interesses, inclusive com a participação paterna nos cuidados. E, ainda, outros meios de incentivo ao retorno e à permanência das mulheres mães no mercado de trabalho (BRASIL, 1943).
para garantir uma condição de vida minimamente digna para si e seus familiares, do outro elas se veem desamparadas, sem rede de apoio, se tornando uma verdadeira via crucis manter-se no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, cuidar dos filhos.
De nada adianta haver vagas disponíveis se não forem garantidas condições de trabalho que permitam às mulheres se manterem neles quando têm filhos, pois, via de regra, são elas quem arcam com os cuidados dos mesmos e com os demais afazeres domésticos. Por óbvio, a manutenção do emprego ou a sua realocação pós-maternidade são dificultadas pela ausência de uma rede de apoio, demonstrando a importância da atuação do Estado na adoção de medidas acolhedoras e que substituam, ainda que em parte, essa rede de apoio. Somente deste modo haverá uma suavidade no excesso de
“Paradoxalmente, se de um lado as mulheres precisam se manter trabalhando, para garantir uma condição de vida minimamente digna para si e seus familiares, do outro elas se veem desamparadas, sem rede de apoio, se tornando uma verdadeira via crucis manter-se no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, cuidar dos filhos”.
Essas normas possuem um caráter dúplice e ambivalente, pois se de um lado garantem maior equilíbrio e estabilidade emocional, além da redução das incertezas decorrentes dos riscos sociais possivelmente vivenciados pela mulher durante o gestar e após ele, também protegem, de maneira inexorável, o nascituro. Contudo, não estabelecem formas diretas de auxiliar as mulheres ao retorno ao trabalho, sendo indiscutível que uma grande quantidade de mulheres brasileiras detém a responsabilidade de, sozinhas, sustentar o lar e criar os filhos.
Paradoxalmente, se de um lado as mulheres precisam se manter trabalhando,
responsabilidades culturalmente imposto às mulheres, que ainda o carregará até que haja uma efetiva mudança dos valores sociais.
No mesmo sentido, Luana Passos e Dyeggo Rocha Guedes (2021, p. 78) fazem um levantamento do percentual de mulheres economicamente ativas, conforme dados do Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio - PNAD do ano de 2015, que realizavam atividades domésticas e eram responsáveis pelo cuidado simultâneo com filhos e/ou idosos:
Acompanhando a entrada acentuada das mulheres no mercado de
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trabalho, isso tende a configurar-se um modelo de conciliação no qual cabe às mulheres encontrarem, quase que por conta própria, modos de equilibrar o trabalho pago com o cuidado da família. Como forma de mediar o trabalho pago com o não pago, as mulheres também buscam alternativas como flexibilização no trabalho, trabalhos temporários e/ ou em tempo parcial, quase todas elas danosas profissionalmente porque dificultam uma melhor inserção e a permanência da mulher em empregos melhores e bem remunerados. Socialmente recai sobre a mulher, de modo quase exclusivo, a responsabilidade que deveria ser social de conciliar trabalho e vida doméstica. Isso fica mais evidente no percentual de 91% de mulheres que eram economicamente ativas e realizavam atividades domésticas, bem como no percentual de mulheres, de 16 a 59 anos, que participavam do mercado de trabalho e tinham crianças pequenas (0-6 anos), 20%, e idosos, 18%, no domicílio, conforme a Pnad do ano de 2015. Conhecendo a realidade brasileira de baixa provisão pública de cuidados para crianças e idosos, tem um percentual de mulheres que certamente vivem na “corda bamba” para equilibrar o trabalho pago com o não pago. Além disso, por volta de 19% das mulheres economicamente ativas, de 16 a 59 anos, tinham, simultaneamente, ao menos um idoso e uma criança de 0-6 anos no domicílio no ano de 2015, um dado que revela uma parcela importante de mulheres que assumem uma carga expressiva de trabalho ao sobrepor-se o trabalho no mercado com o trabalho de cuidado de crianças, idosos e do lar (PASSOS; GUEDES, 2021, p. 78).
Com esse olhar, podemos afirmar que ao propor as mudanças legislativas operadas com a criação do Programa, ampliando as medidas de proteção ao trabalho da mulher que possui filhos, estejam na primeira infância ou não, o Poder Legislativo atuou de forma eficaz.
O Programa prevê dentre as medidas de apoio à parentalidade na primeira infância o pagamento de reembolso-creche, que não terá natureza salarial, e a manutenção ou subvenção de instituições de educação infantil pelos serviços sociais autônomos (SESI, SESC e SEST – art. 6º), prevendo, assim, formas de garantir o retorno da mulher ao mercado de trabalho após o término da licença-maternidade (BRASIL, 2022c).
O art. 5º da norma dispõe que os estabelecimentos que trabalharem, pelo menos, 30 (trinta) mulheres com mais de 16 (dezesseis) anos de idade terão local apropriado onde seja permitido às empregadas guardar sob vigilância e assistência os seus filhos no período da amamentação, entretanto, desobriga de tal
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previsão os empregadores que adotarem o pagamento do reembolso-creche para todos os empregados e empregadas que possuam filhos com até 5 (cinco) anos e 11 (onze) meses de idade.
Já como medidas de apoio à parentalidade após a primeira infância, assim consideradas as crianças até seis anos de idade incompletos (art. 2º, II), a norma prevê a possibilidade de flexibilização do regime de trabalho, que poderá se dar por diferentes meios: teletrabalho, regime de tempo parcial, regime especial de compensação de jornada de trabalho por meio de banco de horas, jornadas de 12x36 quando a atividade permitir, antecipação de férias individuais e, ainda, horários de entrada e saída flexíveis.
A adoção do regime de teletrabalho deverá ser prioritariamente garantido aos empregados e empregadas com filhos, enteados ou criança sob guarda judicial com até seis anos de idade, e, sem limite de idade quando esses forem portadores de deficiência.
qualificação das mulheres, destacando-se a suspensão contratual para participação em curso ou programa de qualificação profissional oferecido pelo empregador (art.15), exigindo a requisição formal da interessada, além de prever que a qualificação deverá priorizar áreas que promovam a ascensão profissional ou áreas com baixa participação feminina, tais como ciência, tecnologia, desenvolvimento e inovação. Prevê, ainda, o recebimento de bolsa qualificação (art. 2º-A, da Lei n. 7.998/1990), podendo o empregador conceder ajuda compensatória mensal, sem natureza salarial.
As medidas que visam apoiar o retorno ao trabalho após a maternidade estão previstas no capítulo V.
Já para a adoção das medidas de flexibilização do regime de trabalho e férias, a norma exige a formalização por meio de acordo individual ou coletivo, devendo ser observados os poderes diretivo e gerencial dos empregadores e a vontade expressa dos empregados e empregadas, havendo priorização da concessão de uma ou mais medidas autorizadas, conforme art. 8º, àqueles e àquelas que possuam filhos e congêneres até seis anos de idade ou com deficiência. Contudo, tratando-se da adoção de regime de tempo parcial e/ou antecipação de férias individuais, limita o usufruto da medida apenas até o segundo ano do nascimento/adoção ou guarda, ainda que se trate de criança com deficiência.
O capítulo IV prevê medidas de
A primeira delas é a suspensão contratual após o término da licençamaternidade, que deverá observar o art. 476-A da CLT, e será operada após requisição formal do(a) interessado(a), tendo a finalidade de permitir à empregada mãe a continuidade com os cuidados dos filhos e acompanhamento do desenvolvimento deles, ou, ainda, apoiar o retorno ao trabalho da esposa ou companheira.
A segunda alteração, que reputo uma das mais interessantes promovidas pelo Programa Emprega + Mulheres, é a alteração das normas do Programa Empresa Cidadã.
O art. 20 da Lei em análise alterou o Programa Empresa Cidadã, prevendo a autorização para que a prorrogação da licença-maternidade possa ser compartilhada entre empregada e empregado, quando forem empregados pela mesma pessoa jurídica integrante do Programa, e desde que a decisão seja conjunta. Outra possibilidade é a substituição da prorrogação da licençamaternidade pela redução da jornada de trabalho em 50%, pelo período de 120 dias,
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garantido o pagamento integral do salário à empregada por todo o período.
O art. 24 criou o chamado “Selo Emprega + Mulher”, tendo por objetivo reconhecer as empresas que se destaquem pela organização, pela manutenção e pelo provimento de creches e pré-escolas para atender às necessidades de suas empregadas e de seus empregados e reconhecer as boas práticas de empregadores que visem, em resumo, estimular à participação feminina no mercado de trabalho, especialmente em posto de liderança e em áreas com baixa participação feminina. Destaca-se a previsão de incentivo às boas práticas que estimulem à divisão igualitária das responsabilidades parentais e a promoção da cultura de igualdade entre homens e mulheres.
O capítulo IX, traz em seu art. 29 a previsão de aplicação de condições diferenciadas às mulheres para a realização de operações de crédito do Programa de Simplificação de Microcrédito Digital para Empreendedores.
Por fim, e não menos importante, apesar da clara previsão constitucional de igualdade, o art. 30 da Lei prevê a proibição de salários distintos para homens e mulheres que exerçam idêntica função.
Podemos concluir, portanto, que a busca pela igualdade de gênero se apresenta como importante ferramenta de alcance do trabalho decente da mulher e também do crescimento econômico do país, sendo salutar às políticas públicas que buscam alcançar os referidos objetivos, já reconhecidos, inclusive pela ONU, como de importância global.
Reconhece-se, assim, as vitórias e os avanços conquistados a duras penas pelos movimentos feministas, tendo as mulheres conseguido, ainda que a passos lentos,
alcançar e ressignificar papéis importantes, mas ainda há muito caminho a se percorrer para que a igualdade material não seja apenas um objetivo ideológico a ser alcançado.
Em outras palavras, o assunto ainda está longe de ser acabado, pois ainda temos muito a alcançar, o que somente será possível através de um consciente coletivo que possibilite olhar a realidade das mulheres no mundo do trabalho e de suas incompletudes, especialmente se vista através das lentes coloridas dos olhos esperançosos das várias mulheres que formam esse belo mosaico, com diferentes cores e personalidades, da sociedade feminina no Brasil. Afinal, como já dizia Simone de Beauvoir (1980): “É pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que a separava do homem, somente o trabalho poderá garantir-lhe uma independência concreta.”. Sigamos, firmes, mulheres.
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Este artigo discorre sobre os “novos” mecanismos de ingerência exercidos pelas plataformas digitais que intermedeiam a prestação de serviços para demonstrar que, por trás do discurso retóricos de trabalho com liberdade e independência, há, sim, amplo gerenciamento e modulação do trabalho humano, por meio de sofisticadas formas de controle que se valem das redes e dos números para escapar à regulamentação do Direito do Trabalho, em franco prejuízo ao trabalhador, cada dia mais vulnerável e desamparado, impelido a aceitar trabalho precários, de curtíssima duração e com provisões incertas para assegurar a sua subsistência.
Palavras-chave: Direito do Trabalho. Trabalho intermediado por plataformas digitais. Subordinação jurídica.
1 Juíza do Trabalho Substituta no Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. Doutoranda e mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza- UNIFOR. E-mail: wanessa. araujo@trt10.jus,br
Na atualidade, o avanço das tecnologias de comunicação e informação (TIC) possibilitaram o advento do trabalho em massa, conectado por meio de redes de internet, capaz de manter à disponibilização quase permanente de um grande grupo de trabalhadores, ao longo de 24 horas, 7 dias na semana, em qualquer lugar do mundo, sem que a empresa seja compelida a ministrar instruções diretas, pessoais e específicas sobre horários e a forma como a prestação de serviços deve ser exercida ou outros aspectos inatos à prestação laboral.
Exsurge, nos últimos anos, um novo padrão de ingerência e modulação do comportamento dos trabalhadores, que introduz sutis e sofisticadas técnicas de gerenciamento da força de trabalho, por
2 Este artigo remonta uma breve reflexão com base na dissertação de mestrado apresentada pela autora perante o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, em que se estudou a intermediação de trabalho por meio de três plataformas digitais (Amazon Mechanical Turk, Uber Tecnologies e GetNinjas) e seus mecanismos de ingerência sobre o trabalho humano, cuja íntegra encontra-se disponível em: http://hdl.handle.net/1843/30511.
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meio de programação algorítmica e avaliação reputacional por meio das redes, os quais passam a ser responsáveis pela conformação da prestação de serviço praticada no âmbito das plataformas digitais, formatando o suposto livre-arbítrio do trabalho, ainda que este não perceba que é indiretamente impelido pelos resultados e pelas avaliações reputacionais a conformar-se a parâmetros que não foram por si declinados.
A precificação, a distribuição das tarefas, o disciplinamento da força de trabalho características inatas à gestão patronal, até então baseada em um padrão em que há marcada “heterodireção patronal, constante e efetiva” (PORTO, 2009) no local de trabalho dá lugar a outras formas de controle, agora entabuladas sob a forma de comando automatizado e despersonalizados, que são recebidos por meio das plataformas digitais sob a forma de sugestão, dicas, mensagem, todas formas de comunicação que disfarçam a voz impositiva do empregador, para introduzir um novo patamar de sujeição.
Na era cibernética, a ciência assume um papel relevante para reorganizar o paradigma antigo e atualizá-lo para a esse novo patamar de organização e disciplinamento da prestação de serviços, incumbida de adotar meios para se afastar do arquétipo de sujeição jurídica que caracterizava a relação empregatícia de feição celetista, em favor de um novo padrão, em que as relações jurídicas advindas não guardem nenhuma subsunção com elementos fáticos-jurídicos inerentes à classificação da relação de emprego, por isso, enrenda-se mais uma às tantas fugas que assolam a tutela jurídica do trabalhador no e no Direito do Trabalho, dito ultrapassado em suas normas para alcançar essas relações novas e modernas.
De fato, múltiplas são as possibilidades de trabalhar experimentadas no âmbito da prestação de serviço em plataformas digitais, decorrente da variedade factual quase ilimitada que embasa o seu surgimento, é o que se vê quando se analisa algumas delas, como a plataforma de transporte particular de passageiro; de entrega de refeições; de fornecimento de serviços de faxina; de
contratação de freelancer e tantas outras, daí não ser possível defini-las como um fenômeno único, o que dificulta, portanto, a formulação de uma resposta regulatória, uma vez que a análise demanda avaliação casuística, ainda que, muitos dos elementos de ingerência e modulação de comportamento serem comuns.
Nesse particular, se, no passado, ao tempo do modelo de produção fordista/ taylorista, a organização empresarial fora estudada cientificamente para estimular a produção, por meio da ordenação de comportamentos previamente divididos e cronometrados, de modo que todos os gestos e atos dos trabalhadores claramente refletissem o feixe de subordinação jurídica inerente ao contrato de trabalho a que era vinculado, agora a ciência comportamental ingressa no âmbito empresarial, com um propósito mais sofisticado, não mais com o intuito de traçar ordens meticulosas de como deveria o empregado atuar em favor do propósito da melhoria da produção da empresa, mas, sim, se pretende disfarçar o caráter de ordem, de disciplina e subordinação, por meio da assunção de um papel de indução e de manipulação do comportamento, valendo-se, inclusive, de uma outra linguagem, em que a ordem dá lugar para as “dicas” e “sugestões”, o que faz com que sob um olhar menos atento, o intérprete não capte a subordinação jurídica sob a qual o enredo do trabalho em plataformas digitais também é embasado.
Essa inovadora forma de gestão empresarial amolda-se ao padrão de apropriação da força de trabalho introduzido pelas plataformas digitais, cujos trabalhadores se dizem profissionais independentes e por isso, seriam insuscetíveis de receber ordens, sob pena de configuração de vínculo empregatício.
A bem da verdade, esse novo padrão, contudo, não significa que as plataformas não controlem os trabalhadores, apenas simboliza que, a sujeição é feita por outros meios, mais sutis, que tornam desnecessária a institucionalização de vastas estruturas organizacionais de controle, pois é possível
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manter o mesmo padrão de qualidade, adotando-se como mecanismo de controle a programação algorítmica, a avaliação pela massa crítica de consumidores, bem como pela introdução de incentivos psicológicos, que influenciam aspectos essenciais da prestação de serviços, no que se refere a “onde”, “quando” e “por quanto tempo” os prestadores de serviços trabalharão.
Das estratégias das plataformas digitais para controlar e modular a prestação de serviços: do controle por programação; do controle por avaliação e reputação e dos incentivos psicológicos
Valendo-se de estratégias do campo da ciência comportamental, as empresas tecnológicas investem na utilização do que é denominado de “truques psicológicos” para induzir e constranger a atuação dos
Essa técnica, como destaca Noam Scheiber (SCHEIBER, 2017), tem se revelado muito mais eficaz, pois o estabelecimento de meta e o sentimento de que é necessário cumpri-la, induz o prestador de serviços a se lançar mais horas ao trabalho, em detrimento dos trabalhadores que não se valem desse recurso. Em relação àqueles trabalhadores que não informam os objetivos pretendidos, a empresa se vale de outro mecanismo, o chamado “laço lúdico”, em que é demonstrado o progresso da prestação de serviços e quanto o trabalhador está próximo de alcançar certa quantia financeira, ou seja, ainda que o próprio trabalhador não tenha traçado um padrão a ser atingido, a plataforma lhe aponta a partir dos históricos laborais que detém daquele profissional em seus registros, que serve de mote para motivar-se.
“As plataformas ainda se valem de técnicas voltadas a comparar a própria performance do prestador de serviços, por meio do qual exibem o seu histórico de ativação na plataforma, a fim de instigar comportamentos autodesafiadores, capazes de impelir o trabalhador a alcançar e até mesmo, ultrapassar os próprios parâmetros.”
trabalhadores, sem que se precise exarar uma ordem sequer. Dentre os artifícios utilizados, destaca-se o chamado “direcionamento de renda”. De acordo com os estudos desse campo da ciência, quando é definido um objetivo concreto, maior é o incentivo para alcançá-lo.
Por meio do uso desse recurso, o trabalhador é instado a informar as suas metas financeiras diárias, semanais e mensais, as quais acabam por servir de base para a plataforma instigar a atuação do trabalhador no sentido de atingi-las. Por meio de mensagens, e-mails e notificações, os prestadores de serviços são constantemente alertados sobre a meta traçada e o quanto falta para atingi-las, o que atua como incentivo para o trabalhador produzir mais, em busca do pleno atendimento do objetivo a que ele próprio (e não a plataforma digital) se propôs.
As plataformas ainda se valem de técnicas voltadas a comparar a própria performance do prestador de serviços, por meio do qual exibem o seu histórico de ativação na plataforma, a fim de instigar comportamentos autodesafiadores, capazes de impelir o trabalhador a alcançar e até mesmo, ultrapassar os próprios parâmetros.
No artigo How Uber Uses Psychological Tricks to Push Its Drivers’ Buttons, Noam Scheiber afirma que a Uber Technologies e outras plataformas digitais têm utilizado técnicas de videogame, gráficos e recompensas com o objetivo de incentivar os prestadores de serviços a trabalharem mais horas e com mais afinco, ainda que em locais e tarefas que não lhes sejam tão lucrativos (SCHEIBER, 2017).
O que se vê é que toda a programação visual e linguística da plataforma digital é
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cuidadosamente pensada e arquitetada para que o ambiente virtual seja convidativo e amigável, de modo que o trabalhador não sinta que está trabalhando, nesse sentido, as comunicações formais dão lugar aos emoticons, aos gráficos e até a emblemas, os quais são utilizados para elogiar, monitorar e até mesmo disciplinar os trabalhadores.
Esses recursos de “gamificação”, portanto, são corriqueiramente utilizados como vetores à indução do comportamento dos prestadores de serviços no âmbito das empresas tecnológicas, assim, a cada nova conquista, a plataforma colaciona no perfil do prestador de serviços um emblema, uma estrela ou título, a fim de destacar a atuação do prestador de serviços, aos usuários e até mesmo aos demais trabalhadores, servindo nesse último caso, como técnica para fomentar a competitividade no ambiente laboral.
Baseado no algoritmo criado pela Netflix de reprodução automática de conteúdo, as plataformas têm disponibilizado o recurso do “despacho antecipado” ou “enfileiramento automático”, segundo o qual antes do término de uma tarefa, já é disponibilizado outro serviço. Trata-se de mecanismo voltado a incentivar a prestação
de trabalho de forma contínua, mantendose o trabalhador sempre ativo, em razão do encurtamento do tempo de espera.
Além disso, caso a oferta de trabalhadores seja insuficiente para atender a demanda, a própria plataforma dispara mecanismos de incentivo para instar o trabalhador a prestar serviços, por meio de preços e áreas dinâmicas, como ocorre com as empresas de transporte particular de passageiros, Uber Technologies e 99 Pop, ainda que esse chamado ao trabalho e apontamento de existência em que determinadas áreas de atuação contam com preços acima do normal revelem claramente a interferência da plataforma digital na base da principal lógica de mercado, desvirtuando assim a métrica da oferta e da demanda.
A existência de uma massa crítica de usuários também impacta diretamente no modelo, pois as informações e solicitações coletadas, por meio dos aplicativos e do sistema de geolocalização, bem como por meio do sistema de avaliação (tal como a famosa avaliação cinco estrelas), subsidiam diretamente a gestão do próprio negócio, bem como a sorte do trabalhador na plataforma, isso porque conforme o nível de engajamento maior são as chances de lhe serem dirigidas tarefas mais proveitosas e lucrativas, além de que norteiam até a permanência do seu cadastro.
Ao retirar de si a prerrogativa de avalia diretamente a prestação de serviços em favor da sua delegação a uma massa crítica de usuários, as plataformas digitais, segundo Gustavo Gauthier criam uma tremenda ferramenta de controle que suplanta as formas de ingerência até então existentes, pois, a partir desse sistema de avaliação e de reputação criado, os prestadores passam a ser observáveis ao longo de toda a execução da tarefa, a cada prestação de serviços realizada (GAUTHIER, 2016), e ousamos, acrescentar, inclusive fora dela, pois os dados decorrentes das atividades do trabalhador logados ou não são recrutados pelas plataformas digitais e auxiliam na formulação de políticas em tempo real, que para lançar campanhas tendentes a mobilizar o ingresso de novos
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profissionais e usuários, ou ainda, motivar a sua permanência, é o que ocorre quando são lançadas premiações ao trabalhador que indicar um determinados número de outros colegas, ou quando são concedidas benesses que favorecem a aquisição do serviço em valores abaixo do custo.
No mesmo sentido Valerio de Stefano destaca que essa nova forma de controle do trabalho por avaliação de desempenho e resultados, em muitos casos, pode se assemelhar ou até mesmo suplantar o mesmo nível de onipresença de controle que outros empregadores exercem no âmbito da relação de emprego, pois a competição resultante da massa de trabalhadores arregimentada pela plataforma garante um status quase de onipresença da plataforma durante a execução do serviço, o que garante que a qualidade permaneça alta, em contraste às retribuições que continuam baixas (DE STEFANO, 2017).
A formação de uma massa crítica de trabalhadores, arregimentada por plataformas, é igualmente fundamental para a fluidez do sistema de trabalho, pois a formação de um exército de reserva garante duas possibilidades: de um lado, assegura que a qualidade dos serviços seja constantemente monitorada, tudo digase a bem da plataforma, por outro lado, importa tarifas cada vez mais reduzidas, cuja margem de lucro se mantém inalterada ante a intensa concorrência entre os próprios trabalhadores, que, como mencionado, iludidos sob a possibilidade de premiações pela indicação de novos profissionais ao trabalho, não percebem que, em verdade, estão fomentando sua autoconcorrência.
Adotando-se a lição de Alex Rosenblat e Luke Stark, entende-se que toda essa sistemática de controle baseada em algoritmos e nas redes cria formas de controle e vigilância opacos, cuja ingerência sobre a prestação de serviços passa muitas vezes despercebida, pois as ordens são ocultadas sob a forma de comandos expressados por meio das aplicações informáticas, que ditam o procedimento a ser seguido, de forma automatizada, sem qualquer atuação humana
direta (ROSENBLAT; STARK, 2016).
Nesses casos, sintetizam os referidos autores que o controle é feito à distância por um programa informático gerido pela plataforma que substitui o controle direto próprio do poder empregatício para monitorar o trabalhador de uma forma muito mais intensa, porém que haja intervenção humana. Citando como exemplo as plataformas de transporte particular de passageiros, os autores constataram que a existência de controle está presente em uma série de fatores da própria viagem, desde o momento da sua aceitação por parte do condutor até o controle sobre o próprio tipo de veículo que os condutores utilizam, tudo arregimentado por meio de códigos de programação.
A despeito da constatação de que a programação algorítmica cria uma infraestrutura invisível (ALOISI, 2016) de gestão, em que as aplicações informáticas exercem a função de promover a organização e supervisão da força do trabalho em modulação similar às prerrogativas reservadas à figura do empregador, não raro, esses comandos têm sido assimilados pelos juristas como meras orientações, incapazes de gerar qualquer sujeição jurídica do trabalhador à empresa titular da plataforma digital. Esse disfarce da ordem e da determinação sob o viés de “dicas”, “orientações” e “sugestões” tem concorrido para turvar a assimilação das novas formas de gestão, notadamente de índole algorítmica, enquanto modalidade de subordinação jurídica.
Tal raciocínio se mostra equivocado, pois, em verdade, a programação por comandos, introduzida pela gestão por algoritmos e outros mecanismos de controle aqui citados, não retirou a possibilidade de interferência sobre a prestação de serviços; muito pelo contrário: apesar de despersonalizada, a interferência existe e de forma intensa. O que se observa é que o controle por programação apenas excluiu a figura humana que exercia essa atividade, de modo que, agora, os trabalhadores não precisam cumprir mais ordens, mas sim “regras do programa” e, uma vez programados, na prática, os trabalhadores
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não agem livremente, apenas exprimem reações esperadas (CARELLI, 2017).
Nesses termos, como assevera Rodrigo Carelli, o algoritmo, cujos elementos podem ser modificados a cada momento pela sua reprogramação, garante que os resultados finais esperados sejam alcançados, sem necessidade de dar ordens diretas àqueles que realizam o trabalho. Desse modo, a subordinação dos dirigidos cede à ideia do controle por stick (porrete) e por carrots (premiação), introduzindo a nova forma de subordinação da era cibernética: aqueles que seguem a programação recebem premiações, sob a forma de bonificações e recompensas, enquanto aqueles que não se adaptam aos comandos e objetivos, são cortados ou punidos (CARELLI, 2017).
Restando padronizados todos os comandos e objetivos esperados, o gerenciamento algorítmico e os demais mecanismos de controle já citados estruturam
toyotismo, mas que se mostram adequadas aos presentes tempos, é possível asserir que essas novas tendências de gestão da força de trabalho revelam, mais uma vez, o novo poder do capital e sua franca aptidão para desregulamentar e flexibilizar os contratos de trabalho, a ponto de comprometer todo o padrão de proteção jurídica já consolidado em favor da classe que vive-do-trabalho para transformar novamente o trabalho - até então encarado como finalidade do ser social - em mero meio de subsistência (ANTUNES; BRAGA 2009).
A coleta de informações a partir dos aplicativos disponibilizados aos trabalhadores se trata de um instrumento sofisticado de pesquisa que possibilita o monitoramento da adesão às estratégias lançadas, de modo a captar quais táticas são aptas a potencializar a prestação de serviços.
“Em razão da ausência de marcos regulatórios em relação a essas formas de trabalho, não há normas de proteção voltadas a inibir o uso dessas estratégias psicológicas em face do trabalhador, diferentemente do que já ocorre na legislação consumerista”.
o sistema para fornecer todas as respostas às ações e aos questionamentos dos trabalhadores sobre a prestação de serviços, buscando com isso inibir a necessidade de contato dos prestadores de serviços com os funcionários da plataforma, por essa razão, a comunicação dos trabalhadores com a plataforma é restrita, em geral mediada pela tecnologia, por meio de e-mail ou mediante remissão à seção de perguntas e respostas disponível nas plataformas, tudo voltado a evitar a aparência de subordinação jurídica dos trabalhadores às plataformas e escapar à normatividade estatal, inclusive a do Direito do Trabalho.
Adotando-se as reflexões traçadas por Giovanni Alves (ALVES, 2011) a respeito do
Em razão da ausência de marcos regulatórios em relação a essas formas de trabalho, não há normas de proteção voltadas a inibir o uso dessas estratégias psicológicas em face do trabalhador, diferentemente do que já ocorre na legislação consumerista.
O que se vê é que, contrastando com a retórica de neutralidade de atuação sustentada pelas empresas tecnológicas, demonstrou-se que as plataformas digitais dirigem e controlam, em graus variados, a prestação de serviços exercida pelo trabalhador, para tanto, se valem de mecanismos sofisticados, que dispensam a intervenção humana, como o controle por algoritmo, a fiscalização por desempenho assim como adotam incentivos psicológicos. Todas essas ferramentas têm como finalidade
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manter o trabalhador mais horas conectado e moldar o seu comportamento e a sua forma de prestar serviços, com vistas a garantir o padrão de qualidade por ela estabelecido.
Esses instrumentos de ingerência utilizados pelas plataformas digitais demonstram portanto, que houve significativa alteração dos mecanismos de gestão e supervisão incidentes sobre a prestação de serviços, passando da gestão pessoal, presencial, incisiva feita pelo empregador no local de trabalho até chegar aos tempos atuais, em que esse controle é feito pelos algoritmos e pelas redes, sem a necessidade de qualquer supervisão humana, o que, a despeito da forma automatizada da gestão, não desvincula o trabalhador da condição de sujeito às normas empresariais que lhe são obrigatórias para o fiel atendimento dos interesses patronais, cuja não observância motiva penalidades que vão desde a advertência até a exclusão total do cadastro, o que demonstra que a liberdade de atuação tão propalada em discurso, não resiste ao exame mais detido sob a perspectiva tutelar do Direito do Trabalho.
ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.
ALOISI, Antonio. Commoditized Workers: Case Study Research on Labour Law Issues Arising from a Set of ‘On-Demand/Gig Economy’ Platforms. Comparative Labor Law & Policy Journal, v. 37, n. 3, 2016. Disponível em:https://ssrn.com/abstract=2637485. Acesso em: 10 out. 2022.
ANTUNES, Ricardo; BRAGA, Ruy. Infoproletários: degradação real do trabalho virtual. São Paulo: Boitempo, 2009.
CARELLI, Rodrigo de Lacerda. O caso Uber e o controle por programação: de carona para o século XIX. In: LEME, Ana Carolina Reis Paes; RODRIGUES, Bruno Alves; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende (Coord.).
Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo: LTr, 2017. p. 139.
DE STEFANO, Valerio. Introduction: Crowdsourcing, the gig-economy and the Law. Comparative Labor Law & Policy Journal v. 37, n. 3, 2016, p. 461-471. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers. cfm?abstract_id=2767383 Acesso em: 10 out. 2022.
GAUTHIER, Gustavo. El derecho laboral ante el reto de la economía comparida: apps, smartphones y trabajo humano. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 117-127, jul. 2016. . Disponível em: http://periodicos.pucminas. br/index.php/Direito/article/view/P.23187999.2016v19n37p117. Acesso em: 10 out. 2022.
PORTO, Lorena Vasconcelos. A subordinação no contrato de trabalho: uma releitura necessária. São Paulo: LTr, 2009.
ROSENBLAT, Alex. STARK, Luke. Algorithmic Labor and Information Asymmetries: A Case Study of Uber’s Drivers. International Journal of Comunication. v. 10, 2016. Disponível em: https://ijoc.org/index. php/ijoc/article/view/4892/1739. Acesso em: 20 mar. 2018.
SCHEIBER, Noam. How Uber Uses Psychological Tricks to Push Its Drivers’ Buttons. The New York Times, New York, 16 abr. 2017. Disponível em: https://www. nytimes.com/interactive/2017/04/02/ technology/uber-drivers-psychological-tricks. html. Acesso em 28 out. 2018.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
O estudo investiga a lei aplicável à regência dos contratos (ou pré-contratos) de trabalho de tripulantes de navios de cruzeiros marítimos de bandeira estrangeira que navegam em águas nacionais ou internacionais. A investigação conclui que, além de ser a Justiça do Trabalho brasileira a competente para o exame da questão, a norma a ser aplicada no caso concreto é a mais favorável ao trabalhador, ainda que o Brasil seja parte de tratado internacional que regule a questão de modo diverso. As normas de proteção ao trabalhador são lois de police e, como tal, guardam aplicabilidade imediata perante a ordem jurídica brasileira. A sentença judicial que afastar a aplicação
1 Professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Pós-Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa. Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Unesp, campus de Franca. Membrotitular da Sociedade Brasileira de Direito Internacional – SBDI e da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas – ABCD. Membro-consultor da Comissão Especial de Direito Internacional do Conselho Federal da OAB.
das normas brasileiras mais favoráveis ao trabalhador viola o princípio internacional pro homine e carece de validade no plano jurídico.
Palavras-chave: Trabalho em navio. Lei aplicável. Princípio pro homine. Normas de aplicação imediata. Diálogo das fontes.
O tema da lei aplicável à regência dos contratos (ou pré-contratos) de trabalho de tripulantes de navios de cruzeiros marítimos de bandeira estrangeira é premente e necessita de necessário esclarecimento no Brasil. No Tribunal Superior do Trabalho há controvérsia sobre o tema, especialmente perante a Subseção I de Dissídios Individuais (SDI-1), estabelecida a partir de um único precedente originário da 4ª Turma, que divergiu da jurisprudência das demais Turmas do Tribunal.
As empresas de cruzeiros marítimos defendem a inaplicabilidade da lei brasileira aos contratos de trabalho firmados com
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tripulantes contratados (ou pré-contratados) no Brasil para prestarem serviços nos navios, com pretenso amparo nos arts. 182 e 198 do Código Bustamante e na Convenção da ONU sobre o Direito do Mar, pelo que – segundo tais empresas – deveria ser aplicada a lei do país da bandeira da embarcação.
Para o fim de esclarecer a situação jurídica de tais trabalhadores e a legislação aplicável aos seus contratos de trabalho, merecem ser respondidas várias questões jurídicas que passarei a destacar como itens específicos deste estudo.
De início, frise-se, desde já, que as relações contemporâneas entre o Direito Internacional Público – e do Direito Internacional do Trabalho – e o direito interno brasileiro devem pautar-se pela teoria do “diálogo das fontes”, tal como definida por Erik Jayme (Heidelberg) no seu memorável Curso da Academia de Direito Internacional Haia de 1995 (JAYME, 1995, p. 259). De fato, se todo diálogo pressupõe uma reflexão conjunta, uma vontade de compartilhar conjuntamente teses nascidas dessa própria simbiose, no que tange às relações do direito internacional (notadamente na seara dos direitos humanos) com o direito interno a mesma situação se apresenta.
Como se verificará, as normas de direito internacional relativas à proteção dos direitos humanos “conversam” – ou “dialogam” – com as normas de direito interno, sempre no intuito de melhor proteger ou melhor amparar um direito garantido ou protegido pelos tratados ou pelo direito doméstico.
de 20022, para verificar a constitucionalidade da aplicação do CDC às relações bancárias3 e, ainda, para estudar as interfaces existentes entre os tratados da OMC e outras normas internacionais4, com melhor razão há de ser acionado para solucionar os conflitos entre tratados de direitos humanos e normas de direito interno5.
Feito esse registro, cabe passar ao estudo de todas as questões jurídicas que permeiam o tema em análise, à luz das normas internas e internacionais de que a República Federativa do Brasil é parte.
Jurisdição competente para a análise das demandas relativas às relações de trabalho entre empresas de cruzeiros marítimos e tripulantes contratados no Brasil
A questão do estabelecimento do foro competente para a análise e julgamento de demandas que envolvem empresas de cruzeiros marítimos e tripulantes contratados no Brasil para a prestação de serviços em navios de bandeira estrangeira não é nova e já foi enfrentada pelo c. Tribunal Superior do Trabalho em várias ocasiões.
Em recente Acórdão da 2ª Turma
Se o método fascinante de Erik Jayme já foi aplicado com sucesso entre nós para analisar as relações entre o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) e o Código Civil
2 Ver. MARQUES, Claudia Lima. Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, Revista de Direito do Consumidor, n. 51, São Paulo: RT, jul./set./2004, p. 34-67. Ver também, MARQUES, Claudia Lima, Manual de direito do consumidor, 2. tir. (com Antônio Herman V. Benjamin e Leonardo Roscoe Bessa), São Paulo: RT, 2008, p. 87-99. 3 STF, ADIn n. 2.591, Tribunal Pleno, julg. 04.05.2006, voto do Min. Joaquim Barbosa, p. 351-352.
4 Cf. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. A solução de controvérsias na OMC. São Paulo: Atlas, 2008, p. 238-242. 5 A propósito, ver MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São Paulo: Saraiva, 2010.
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do TST, a corte trabalhista assentou, acertadamente, que “no caso dos autos, é inafastável a jurisdição nacional, nos termos do art. 651, § 2º, da CLT, pois a reclamante, brasileira, foi contratada no Brasil para prestar serviços a bordo de embarcação estrangeira, percorrendo tanto águas brasileiras quanto estrangeiras”, reconhecendo que “não remanesce nenhum impedimento à aplicação da legislação do Brasil, naquilo que for mais favorável à reclamante”, além do que a “aplicação de distintos diplomas jurídicos a empregados brasileiros e outros trabalhadores estrangeiros não encerra discriminação entre nacionalidades, eis que fundada em aspectos objetivos da relação laboral – no caso, empregada contratada no Brasil para trabalhar também em águas nacionais – e não em critério subjetivo do trabalhador”6
Art. 651. A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro. (...)
§ 2º. A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento, estabelecida neste artigo, estendese aos dissídios ocorridos em agência ou filial no estrangeiro, desde que o empregado seja brasileiro e não haja convenção internacional dispondo em contrário.
§ 3º. Em se tratando de empregador
“Também no Código de Processo Civil de 2015 se encontra regra que atrai a competência da Justiça brasileira para o deslinde do caso concreto, prevista no seu art. 21, III, que diz ser competente a autoridade judiciária brasileira para o processo e julgamento das ações em que o fundamento seja fato ocorrido ou ato praticado no Brasil.”
O argumento que avoca para a Justiça do Trabalho brasileira a competência para julgar causas envolvendo trabalhadores contratados no Brasil para exercer atividades em outra localidade encontra amparo no art. 651, § 3º, da CLT, que excepciona a regra do local da prestação dos serviços quando o empregador promova realização de atividades fora do lugar do contrato de trabalho, circunstância que assegura ao empregado apresentar reclamação no foro da celebração do contrato ou no da prestação dos respectivos serviços. Permitase a transcrição do art. 651, §§ 2º e 3º da CLT, para o correto entendimento do fenômeno, verbis:
6 TST, RR-10165-37.2016.5.09.0013, 2ª Turma, Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, julg. 11.12.2019, DEJT 07.02.2020
que promova realização de atividades fora do lugar do contrato de trabalho, é assegurado ao empregado apresentar reclamação no foro da celebração do contrato ou no da prestação dos respectivos serviços (BRASIL, 1943).
Também no Código de Processo Civil de 2015 se encontra regra que atrai a competência da Justiça brasileira para o deslinde do caso concreto, prevista no seu art. 21, III, que diz ser competente a autoridade judiciária brasileira para o processo e julgamento das ações em que o fundamento seja fato ocorrido ou ato praticado no Brasil.
No caso em tela, tem-se que a contratação no Brasil, mesmo que para exercer atividades fora do local do contrato,
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há de ser interpretada como “fato ocorrido no Brasil” ou como “ato aqui praticado”, fazendo incidir a regra do art. 21, III, do Código de Processo Civil, que fixa, vez por todas, a competência da Justiça do Trabalho para o deslinde da questão.
Independe por onde trafegue o cruzeiro para atrair a competência da Justiça do Trabalho brasileira para o deslinde das questões jurídicas decorrentes de tais contratações. Até mesmo se o contrato foi celebrado no exterior, poderia o empregado acionar a Justiça do Trabalho no Brasil para reparar os prejuízos sofridos no emprego, à luz do § 2º do art. 651 da CLT.
A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1986), quando estabelece, no art. 94, item 2, alínea b, que todo Estado deve “exercer a sua jurisdição de conformidade com o seu direito interno sobre todo o navio que arvore a sua bandeira e sobre o capitão, os oficiais e a tripulação, em questões administrativas, técnicas e sociais que se relacionem com o navio” (BRASIL, 1990a), está se referindo à embarcação
propriamente dita e não ao trabalho exercido por estrangeiros em suas dependências; a norma em causa não retira, em absoluto, a competência da Justiça nacional de julgar as questões relativas às contratações realizadas no Brasil para prestação de serviços nas embarcações.
É falacioso o argumento de que a jurisdição brasileira somente se aplicaria aos trabalhadores de cruzeiros marítimos nos casos dos cruzeiros realizados na costa brasileira, dado que não importa a rota ou o tráfego da embarcação para atrair a competência da Justiça do Trabalho no Brasil, como se acabou de verificar.
Nesse sentido está a jurisprudência consolidada do TST, segundo a qual “em se tratando de empregador que promova realização de atividades fora do lugar do contrato de trabalho, é assegurado ao empregado apresentar reclamação no foro da celebração do contrato ou no da prestação dos respectivos serviços”, complementando que “contratado o autor no Brasil, a relação de trabalho mantida entre as partes deve ser regida pela legislação brasileira, em homenagem ao princípio da norma mais favorável ao empregado”7
Portanto, não há dúvidas de que as demandas judiciais relativas às relações de trabalho estabelecidas entre as empresas de cruzeiros marítimos e os tripulantes contratados no Brasil para prestarem serviços em navios de bandeira estrangeira estão submetidas à jurisdição brasileira, especificamente à Justiça do Trabalho.
Reconhecimento da contratação do trabalhados na jurisdição brasileira
7 TST, AIRR nº 130333-56.2013.5.13.0015, Rel. Min. Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, 3ª Turma, DEJT 22/05/2015.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Levando-se em conta que o recrutamento, a entrevista, a aprovação do(a) candidato(a), a definição das condições de trabalho e de remuneração, bem como o treinamento dos tripulantes ocorrem em território brasileiro, indaga-se se o contrato de trabalho respectivo há de ser reconhecido como celebrado no Brasil ou se tais fatores não influenciam nesse reconhecimento.
“centro de gravidade” da relação jurídica, em especial para a aplicação da legislação pátria (mais benéfica) ao caso concreto.
Não há dúvidas de que, se o contrato de trabalho (ou pré-contrato) foi proposto no Brasil, à luz do recrutamento dos interessados, da entrevista, da aprovação do(s) selecionado(s), do treinamento e da negociação das condições de trabalho e de remuneração, o que se tem é um contrato (ou pré-contrato) celebrado na jurisdição brasileira, pois, aqui, há indicadores efetivos e relevantes de que no Brasil foi celebrado um contrato (ou pré-contrato) de trabalho.
Em vários casos concretos o que se verifica nitidamente é que o contrato (ou pré-contrato) de trabalho, bem assim a entrevista e o treinamento dos selecionados no Brasil é condição imposta para que o(s) contratado(s) possa(m) embarcar e seguir no labor contratado no navio, em águas nacionais ou internacionais; e ainda, verificase que as chamadas letters of employment, emitidas pelas empresas de cruzeiro e normalmente disponibilizadas nas agências de recrutamento, são documentos necessários para o embarque dos contratados ao final do processo de seleção no Brasil.
Há, assim, inúmeros indicadores relevantes sobre a efetiva contratação no Brasil dos selecionados para trabalhar em empresas estrangeiras de cruzeiros marítimos, atraindo a relação de trabalho para a jurisdição e legislação (mais benéfica) brasileira; esses indicadores – seleção, treinamento, negociações sobre remuneração etc. – devem ser levados em consideração pela Justiça do Trabalho brasileira para fixar o
Esse entendimento é esposado pela Recomendação nº 198 da OIT relativa à relação de trabalho8, instrumento este que estabelece, no art. 11, alínea b, que “com a finalidade de facilitar a determinação da existência de uma relação de trabalho, os Membros devem, dentro da estrutura de políticas nacionais consultar esta Recomendação, considerando as possibilidades seguintes: (...) (b) prover para uma presunção legal de que uma relação de trabalho existe onde um ou mais indicadores relevantes se fazem presente”(OIT, 2006a).
Nos termos do art. 13 da Recomendação nº 198 da OIT esses indicadores podem incluir: (a) o fato de que o trabalho: é realizado de acordo com as instruções e sobre o controle de outro grupo; envolvendo a integração do trabalhador na organização da empresa; é executado unicamente ou principalmente para o benefício de outra pessoa; deve ser realizado pessoalmente pelo trabalhador; é realizado dentro de horas de trabalho específicas ou dentro do local de trabalho especificado ou acordado pelo grupo que requisitou o trabalho; é de uma duração particular e tem uma certa continuidade; requer a disponibilidade do trabalhador; ou envolve a provisão de ferramentas, materiais e maquinário pelo grupo requisitado para o trabalho; (b) pagamento periódico da remuneração para o trabalhador; o fato de que tal remuneração constitui a única ou principal fonte de renda do trabalhador; provisão de pagamento em espécie, como alimentação, aluguel ou transporte; reconhecimento de autorizações tais como descanso semanal e feriados anuais; pagamento pelo grupo que requisitou o trabalho para curso empreendido 8 Sobre o valor jurídico das recomendações da OIT, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 13. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 973-976.
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pelo trabalhador a fim de realizar o trabalho; ou ausência do risco financeiro para o trabalhador (OIT, 2006a).
Tal demonstra que os contratos de trabalhos são – para falar como De La Cueva – verdadeiros “contratosrealidade”(FELICIANO, 2010, p. 161), até porque os elementos de sua celebração podem ser expressos ou tácitos, levando em consideração vários indicadores, como os acima citados, no mesmo sentido do que estabelecem os arts. 442 e 443 da CLT.
Perceba-se que tais hipóteses são diametralmente oposta às dos contratos celebrados entre ausentes, regida pelo art. 9º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, que reputa concluído o contrato “no lugar em que residir o proponente”; no caso das obrigações entre
Nos contratos assim celebrados, não importando o local da prestação do serviço, é também cediço que será a lei brasileira a aplicada ao caso concreto; e não há dúvidas de que será competente a Justiça do Trabalho brasileira para julgar tais ações envolvendo esses empregados de empresas estrangeiras.
Se houver dúvida sobre onde foi celebrado o contrato de trabalho, recorra-se ao art. 435 do Código Civil brasileiro, segundo o qual “reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto” (BRASIL, 2002a). E, se há provas, de que a proposta foi realizada no Brasil, não ficam dúvidas de que o contrato (ou pré-contrato) de trabalho foi no Brasil efetivamente celebrado.
Não bastasse tal regra, a Lei – que é especial sobre o tema – nº 7.064, de 6 de dezembro de 1982, que regula a situação de
“A compreensão dessa questão jurídica faz toda a diferença no entendimento do tema, em razão de os contratos celebrados na hipótese concreta terem sido firmados entre presentes, pelo que reputar-se-ão concluídos no Brasil.”
presentes, a regra de regência será a do “país em que se constituírem” (LINDB, art. 9º, caput) (MAZZUOLI, 2019).Se o recrutamento, a entrevista, a aprovação do(s) selecionado(s), o treinamento e a negociação das condições de trabalho e de remuneração deram-se no Brasil, aqui se constituiu a obrigação jurídica entre as partes, aplicando-se à espécie o art. 3º, II, da Lei nº 7.064/82 (v. infra).
A compreensão dessa questão jurídica faz toda a diferença no entendimento do tema, em razão de os contratos celebrados na hipótese concreta terem sido firmados entre presentes, pelo que reputar-se-ão concluídos no Brasil.
trabalhadores contratados ou transferidos para prestar serviços no exterior, considera transferido “o empregado contratado por empresa sediada no Brasil para trabalhar a seu serviço no exterior” (art. 2º, III) (BRASIL, 1982).
Assim, há duas possibilidades: ou a contratação deu-se no Brasil pelo local da constituição da obrigação (entre presentes) ou a própria empresa tem sede no Brasil no momento da contratação, firmando o contrato para futura transferência do contratado para prestar serviços no exterior, nos termos da regra expressa no art. 2º, III, da Lei nº 7.064/82.
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Normas de aplicação imediata e primazia da legislação brasileira mais benéfica (art. 3º, II, da Lei nº 7.064/82)
Tratando-se de normas trabalhistas, estas têm aplicação imediata no Brasil por serem lois de police, é dizer, normas de que atingem o plano do Direito Internacional Privado com primazia a eventual legislação estrangeira aplicável, como também se verá mais adiante.
Esse caráter fica nítido da leitura do art. 3º, II, da Lei nº 7.064, de 6 de dezembro de 1982, que regula a situação de trabalhadores contratados ou transferidos para o exterior, ao estabelecer que “a empresa responsável pelo contrato de trabalho do empregado transferido assegurar-lhe-á, independentemente da observância da legislação do local da execução dos serviços a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria”(BRASIL, 1982).
Se for a lei brasileira mais benéfica aos trabalhadores, não há dúvidas – voltarei neste tema à frente – que deve prevalecer sobre normas estrangeiras e, até mesmo, sobre tratados internacionais de que o Brasil é parte, pois o princípio da primazia da norma mais favorável é axiologicamente superior a quaisquer outros que indicam outras leis ou normas internas ou internacionais (menos benéficas) ao caso concreto, certo de que as próprias normas internacionais – voltarei, também, à frente neste tema –contêm “cláusulas de diálogo” ou “vasos comunicantes” que autorizam a aplicação das normas mais favoráveis ao cidadão sujeito de direitos.
firmado no Brasil, é de rigor a aplicação da lei brasileira mais benéfica ao caso concreto, certo de que uma embarcação, por exemplo, italiana não pode se utilizar do Código Bustamante para atrair outra competência internacional da causa, pelo fato de a Itália não estar no rol dos Estados-partes da Convenção de Havana.
Abra-se, aqui, um parêntese, para referir que o Código Bustamante de Direito Internacional Privado somente pode ser trazido à baila quando as duas partes são Estados que o ratificaram (apenas 16 países latino-americanos o ratificaram até os dias de hoje); não podem, v.g., países europeus fundamentarem pretensões nessa normativa internacional, que expressamente se aplica apenas aos seus Estados-partes: Bahamas, Bolívia, Chile, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru, El Salvador e Venezuela.
Por isso, se o contrato de trabalho foi
A regra expressa no art. 2º da Introdução do Código Bustamante deixa claro que as disposições do Código “não
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serão aplicáveis senão entre as Repúblicas contratantes e entre os demais Estados que a ele aderirem” (BRASIL, 1929)9 Os tribunais superiores não podem se confundir sobre este tema, e devem bem compreendê-lo, à luz do que dispõe a regra expressa do Código.
Os tribunais superiores brasileiros têm constantemente aplicado erroneamente o Código Bustamante para países que não são partes desse tratado internacional, em violação frontal ao estabelecido no citado art. 2º da Introdução do Código Bustamante; se o trabalhador brasileiro é contratado por empresa de cruzeiro italiana, não há que se falar na aplicação do Código Bustamante, pois a Itália não integra os seus 16 Estados-partes.
Depara-se, constantemente, com julgados e, inclusive, com doutrina, que pretendem aplicar o Código Bustamante, indistintamente, a quaisquer tipos de relações jurídicas entre partes estrangeiras que não ratificaram o respectivo instrumento internacional, o que reputo absolutamente ilegal/inconvencional.
O próprio STF já aplicou o Código Bustamante para relação jurídica envolvendo Portugal, o que, juridicamente, não é permitido. Em um desses casos, a Suprema Corte decidiu que “embora Portugal não haja ratificado esse Código, ele foi aprovado por lei no Brasil e assim o critério por ele fixado, quanto ao conceito de lei de ordem pública e nacional…”(BRASIL, 2013). A decisão é absolutamente equivocada e não levou em conta (como deveria) a regra expressa no próprio Código Bustamante, pois, para que o Código tenha aplicação, ambos os Estados devem tê-lo ratificado. Ademais, já se viu que o art. 9º da LINDB determina que “para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”(BRASIL,
9 Para detalhes, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional privado. 4. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 68-69.
1942).
Não é de hoje que me insurjo com decisões judiciárias que aplicam o Código Bustamante para relações jurídicas a envolver Estado não-parte no tratado, por entendêlas sem qualquer fundamento. Permito-me transcrever o que digo sobre o assunto em meu Curso de Direito Internacional Privado, publicado pela Editora Forense, verbis:
Uma fonte convencional importante para o DIPr brasileiro, embora de alcance limitado, é a Convenção de Direito Internacional Privado (Código Bustamante) de 20 de fevereiro de 1928,36 elaborada pelo jurista cubano Antonio Sánchez de Bustamante y Sirvén. (...) Sua aplicação prática, porém, tem encontrado certa dificuldade entre nós, ainda mais quando se constata que muitas de suas disposições caíram em verdadeiro desuso, não obstante a qualidade de tratado de que se revestem. (...) Outro problema a ela atinente é que a sua aplicação se restringe tão somente às relações que envolvem nacionais ou domiciliados em seus pouquíssimos dezesseis Estadospartes, não às ligadas a nacionais ou domiciliados em terceiros Estados (v.g., na América do Norte ou em toda a Europa). Para as questões de DIPr, v.g., entre Brasil e Chile, Brasil e Equador ou entre Brasil e Honduras, as disposições da Convenção se aplicam; não, porém, às relativas a Brasil e Estados Unidos ou a Brasil e qualquer país europeu, como claramente determina o art. 2º da introdução ao Código de Havana, para o qual as disposições do Código “não serão aplicáveis senão entre as Repúblicas contratantes e entre os demais Estados que a ele aderirem”. (...) No Brasil, igualmente, o STF, de forma
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errônea, já aplicou o mesmo Código em diversos casos envolvendo países europeus (especialmente em matéria de extradição e de homologação de sentenças estrangeiras). (...) O próprio Código, repita-se, é claro ao afirmar que apenas entre os seus Estadospartes terá valor jurídico vinculante (MAZUOLLI, 2019, p. 67).
Portanto, tout court, não há que se falar (ou fundamentar decisão judicial) na Convenção de Direito Internacional Privado se ambos os Estados não forem partes desse instrumento internacional codificador, é dizer, se não se tratar das relações do Brasil com algum dos outros 15 (quinze) países latinoamericanos que o ratificaram.
Frise-se, ademais, que com a alteração trazida pela Lei nº 11.962/2009 houve o cancelamento da conhecida Súmula 207 do Tribunal Superior do Trabalho, que determinava a aplicação da lei do local da prestação de serviços para o empregado brasileiro que laborasse no exterior.
Nos termos da Súmula 207 do TST, “a relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação”(BRASIL, 2012); a partir de sua revogação, entendeu-se que as relações contemporâneas de trabalho, bem assim a internacionalização das relações sociais, não mais justificaria a regra da “lei do país da prestação de serviço” no âmbito do direito internacional privado do trabalho, pois o princípio constitucional do acesso à justiça ficaria absolutamente prejudicado nesses casos.
a todos os trabalhadores contratados no Brasil ou transferidos por seus empregadores, para prestar serviços no Brasil.
O que se busca na aplicação das normas sobre lei aplicável às relações de trabalho no exterior é, como já se disse, o “centro de gravidade” da situação jurídica em causa; e, quando encontrado esse “centro de gravidade”, afasta-se a lei potencialmente aplicável para privilegiar a norma mais próxima à relação jurídica concreta, que poderá ser a lei brasileira se o contrato (ou pré-contrato) de trabalho for celebrado no Brasil e for mais favorável ao trabalhador a lei pátria.
A Lei nº 7.064/82 abrange tanto os casos de contratação no Brasil como o de transferência para prestar serviços no exterior. Como destaca Maurício Godinho Delgado, o que a normativa fez foi atingir “não somente os dispositivos regentes da transferência e retorno para o Brasil, mas também o próprio universo normativo regulador do contrato durante o período de permanência do obreiro no exterior”(DELGADO, 2012, p. 241). Assim, atualmente, além da Justiça do Trabalho brasileira ser competente para julgar os conflitos trabalhistas quando o contrato de trabalho for constituído no Brasil, independentemente do local da prestação de serviços, também o conteúdo da avença somente há de ser regido pela legislação trabalhista brasileira, que é, no âmbito do direito internacional privado do trabalho, loi de police, isto é, norma de aplicação imediata, que afasta a procura de quaisquer outras legislações potencialmente aplicáveis.
Referida Súmula restou sem qualquer aplicabilidade a partir do advento da Lei nº 11.962/2009, que alterou o art. 1º da Lei nº 7.064/82 para determinar a aplicação da lei trabalhista brasileira, quando mais favorável,
Como já expliquei em obra jurídica específica (MAZZUOLLI, 2019), as lois de police – de que são exemplos claríssimos as normas trabalhistas – são “normas que comportam questões de grande relevância nacional, tidas como extremamente importantes à garantia dos direitos dos cidadãos e do
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próprio Estado, não obrigatoriamente com assento constitucional”, motivo pelo qual “são automaticamente (imediatamente) aplicáveis; obrigam – para falar como o art. 3º, § 1º, do Código Civil francês – ‘todos os que habitam o território’”. Como se percebe, as normas imperativas são, por natureza, sempre unilaterais, vez que impõem a aplicação de uma única norma em detrimento de eventual lei estrangeira aplicável. A opção pelo unilateralismo, nesse caso, vem demonstrar nitidamente a superioridade do interesse estatal ligado a um determinado assunto, tido como essencial à sua população em geral, capaz de afastar a aplicação de quaisquer ordens potencialmente aplicáveis.
Frise-se que essa concepção foi aceita pela Corte Internacional de Justiça desde 1958, quando do julgamento envolvendo os Países Baixos contra a Suécia, com fundamento nas violações impostas pela Convenção da Haia de 1902 relativamente à tutela de menores.
o TST tem reiteradamente acertado na tese da competência da Justiça do Trabalho e da incidência da legislação brasileira mais favorável à regência de tais casos concretos, quando empregadores são corporações de cruzeiros marítimos e o trabalho se dá nas embarcações, independentemente da rota do navio e do local (águas brasileiras ou internacionais) por onde trafega. Assim também a decisão da 7ª Turma do mesmo Tribunal, mantendo sólida e firme a jurisprudência da corte trabalhista na matéria, verbis:
A 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho adotou o entendimento de que, além da Justiça brasileira ser competente para julgar os conflitos trabalhistas nos casos em que as obrigações relacionadas ao contrato de trabalho são constituídas no Brasil, ainda que a prestação de serviços ocorra em navios cuja navegação abarque águas brasileiras e estrangeiras, o conteúdo obrigacional do pacto jurídico celebrado apenas poderia ser fixado a partir da legislação nacional, mais benéfica em relação à Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar, por expressa imposição dos arts. 5º, § 2º, da Constituição Federal, 9º da LINDB e 3º, II, da Lei 7064/82 e 19, item 8, da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (BRASIL, 2019a). Nesse exato sentido, a 6ª Turma do TST entendeu, corretamente, que além de ser a Justiça brasileira competente para o deslinde da questão, a lei brasileira mais benéfica deve ser a aplicada ao caso (BRASIL, 2019b). Por este cenário já se verifica que
Esta Corte, a partir da interpretação das Leis nos 7.064/1982 e 11.962/2009, evoluiu o entendimento e cancelou a Súmula nº 207 do TST. 2. O art. 3º, caput e II, da referida Lei nº 7.064/1982 determina a aplicação da legislação brasileira aos empregados contratados no Brasil para prestar serviços no exterior. 3. Na presente situação, o Tribunal Regional, com base no conjunto fático-probatório existente nos autos, deixou claro que a autora foi contratada no Brasil, tendo celebrado pré-contrato com uma das agências locais de recrutamento (Rosa dos Ventos) e contrato efetivo com a primeira reclamada (MSC Crociere S.A.) dentro do Brasil. 4. Considerando esse cenário fático (contratação da reclamante dentro do território nacional), a relação de trabalho mantida entre as partes deve ser regida pela legislação brasileira, mais favorável ao empregado. Agravo desprovido (BRASIL, 2020a). O contemporâneo direito internacional dos direitos humanos, não há dúvidas, pauta-se pelo princípio da primazia da norma mais favorável ao ser humano, que é o princípio-gestor das relações entre o direito internacional e o direito interno (MAZZUOLLI, 2000). Portanto, a sentença judicial que afastar a aplicação das normas brasileiras mais
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favoráveis ao trabalhador viola o princípio internacional pro homine e carece de validade no plano jurídico.
O reconhecimento dessa realidade pelos tribunais superiores é alentador, notadamente neste momento histórico em que atravessa uma nova onda do Estado, do Direito e da Justiça, que é a onda internacionalista do direito.
De fato, se se verificam todos os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, se perceberá que, em todos eles, haverá uma cláusula como aquela inscrita no art. 19, item 8, da Constituição da Organização Internacional do Trabalho, segundo a qual “em caso algum, a adoção, pela Conferência, de uma convenção ou recomendação, ou a ratificação, por um Estado-Membro, de uma convenção, deverão ser consideradas como afetando qualquer lei, sentença, costumes ou acordos que assegurem aos trabalhadores interessados condições mais favoráveis que as previstas pela convenção ou recomendação”(OIT, 1919).
No plano global, vários tratados de direitos humanos têm proibido expressamente aos Estados-partes qualquer restrição ou derrogação aos direitos reconhecidos ou vigentes nesses Estados, em virtude de outras convenções, leis, regulamentos ou costumes menos propícios à obtenção de qualquer direito assegurado pelo Estado. Assim é que o Pacto de Direitos Civis e Políticos não admite qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado-parte, em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, “sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau” (art. 5.º, 2) (BRASIL, 1992). De outra banda, tanto a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (art. 5.º) quanto a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas
(art. 5.º), preveem, da mesma forma, que nenhuma de suas disposições prejudicará os outros direitos e vantagens concedidos respectivamente aos refugiados e apátridas, independentemente delas.
Por sua vez, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher adverte que nada do disposto nela prejudicará “qualquer disposição que seja mais propícia à obtenção da igualdade entre homens e mulheres e que esteja contida: a) na legislação de um Estado Parte; ou b) em qualquer outra convenção, tratado ou acordo internacional vigente nesse Estado” (art. 23) (BRASIL, 2002b).
Por fim, seguindo o mesmo raciocínio, a Convenção sobre os Direitos da Criança também estabelece que nada do que nela foi estipulado afetará as “disposições que sejam mais convenientes para a realização dos direitos da criança e que podem constar: a) das leis de um Estado Parte; b) das normas de direito internacional vigentes para esse Estado” (art. 41) (BRASIL, 1990b).
No plano regional, cita-se a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que proíbe a interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de “limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados” (art. 29, “b”); proíbe, ainda, a interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de “excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza” (art. 29, “d”) (BRASIL, 1992b).
O Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), da
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mesma maneira, determina que “não se poderá restringir ou limitar qualquer dos direitos reconhecidos ou vigentes em um Estado em virtude de sua legislação interna ou de convenções internacionais, sob pretexto de que este Protocolo não os reconhece ou os reconhece em menor grau” (art. 4.º) (BRASIL, 1999).
Por sua vez, a Convenção Europeia de Direitos Humanos estipula que nenhuma de suas disposições será interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos humanos reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Estado-parte ou com qualquer outra convenção em que este for Parte (art. 60) (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 1970). A Convenção Europeia para Prevenção da Tortura e Tratamento ou Punição Desumano ou Degradante, por sua vez, deixa claro que não prejudicará ela “os dispositivos do direito interno ou de qualquer acordo internacional que forneçam maior proteção às pessoas privadas de sua liberdade” (art. 17, 1) (CONSELHO DA EUROPA, 1987). A Carta Social Europeia, por fim, seguindo a mesma linha das anteriores, deixa estatuído que as suas disposições não prejudicarão as de direito interno nem as de tratados que “sejam mais favoráveis às pessoas protegidas” (art. 32), tudo pela consagração do princípio da primazia (CONSELHO DA EUROPA, 1999).
Esse tipo de cláusula, que nomino “cláusula de diálogo” ou “cláusula de retroalimentação”, ou ainda “vasos comunicantes”, permite que o Poder Judiciário aplique sempre a norma mais benéfica ao ser humano sujeito de direitos, pois ela se liga à cláusula constitucional segundo a qual a República Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, pelo princípio da “prevalência dos direitos humanos” (art. 4º, II) (BRASIL, 1988).
Ora, se a Constituição Federal brasileira determina que nas relações internacionais do
Brasil o princípio aplicável é o da prevalência dos direitos humanos, certo é que, à medida que os tratados de direitos humanos, por meio de suas cláusulas de diálogo, “abrem mão” de sua exclusividade regulatória em matéria de direitos humanos, a primazia será da norma que melhor proteja a(s) pessoa(s) em questão, quer seja tal norma interna ou internacional, indistintamente.
Em verdade, a regra hermenêutica fundamental que deve nortear o intérprete na conjugação dos valores constantes dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos em conflito com as disposições constantes do texto constitucional, é a de que a primazia de que se trata deve ser sempre (sem exceção) em favor da dignidade da pessoa humana (in dubio pro dignitate).
É possível avançar no pensamento exposto para entender que os vasos jurídicos de comunicação, presentes nos tratados internacionais de direitos humanos, permitem que o órgão julgador resolva a antinomia normativa entre o direito internacional e o direito interno pela aplicação da solução oferecida pelos próprios tratados de direitos humanos, segundo a qual sempre a norma mais benéfica – ou, em outros termos, a norma que mais proteja o sujeito de direitos – é que deve prevalecer no caso concreto.
A eleição sobre qual norma confere mais amplitude ao direito concreto caberia menos ao aplicador e mais às próprias fontes, as quais dialogaram e chegaram a uma conclusão sobre a aplicação de tal ou qual direito. O juiz “ouve” esse diálogo e “coordena” a vontade das fontes daí proveniente. Como destaca Cançado Trindade, o critério da norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado expressamente em tantos tratados de direitos humanos, “contribui, em primeiro lugar para reduzir ou minimizar as pretensas possibilidades de ‘conflitos’
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entre instrumentos legais em seus aspectos normativos”, e em segundo lugar “para obter maior coordenação entre tais instrumentos, tanto em dimensão vertical (tratados e instrumentos de direito interno), quanto horizontal (dois ou mais tratados)”, bem assim, em terceiro lugar, “para demonstrar que a tendência e o propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos direitos – são no sentido de ampliar e fortalecer a proteção”(TRINDADE, 1997).Portanto, a partir do momento em que a Constituição se alarga para receber aqueles direitos internacionais provenientes de tratados, não pode ela mesma infringir estes preceitos, se mais benéficos, por meio do reconhecimento de outros direitos em seu texto expressos, cuja força protetiva é menor, isso porque o próprio legislador constituinte, em virtude da positivação dos direitos invioláveis e inalienáveis do homem, buscou alargar o rol dos direitos e garantias consagrados, declarando os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos como parte integrante da “ordem constitucional”.
impedindo que se busque eventual norma indicada pelas regras de Direito Internacional Privado da lex fori.
Não importa a essa quadra histórica a fonte de produção da norma aplicável, se interna ou internacional, importando apenas qual seja a mais benéfica ao sujeito de direito protegido. Esse é um princípio irrevogável ao contemporâneo direito internacional dos direitos humanos, e que deve ser levado em consideração em todos os julgamentos do Poder Judiciário pátrio.
Como se não bastasse, e também já se falou, as normas trabalhistas brasileiras são “normas de aplicação imediata” no plano do Direito Internacional Privado, devendo ser aplicadas independentemente de localização de outra legislação potencialmente aplicável (estrangeira ou internacional). Trata-se de normas conhecidas na expressão francesa lois de police, que são normas que impõem uma razão de Estado para sua aplicação,
As lois de police são exemplificadas na doutrina jusprivatistas internacional exatamente com as leis trabalhistas, especialmente em razão de não se compreender como uma norma estrangeira possa melhor proteger um empregado contratado no Brasil, bem assim levando em conta que a nossa consolidação laboral é (em muitos casos, e especialmente neste) mais benéfica a tais empregados aqui contratados (MAZZUOLLI, 2019).Se compararmos as normas internacionais com as normas constitucionais e infraconstitucionais brasileiras relativas à proteção dos trabalhadores que exercem atividades em empresas estrangeiras de cruzeiro, nota-se nitidamente que as normas brasileiras – Constituição Federal e CLT –são mais favoráveis às regras internacionais potencialmente aplicáveis. Por exemplo, enquanto a Convenção nº 186 prevê a consagração do pacto laboral por simples contrato de trabalho, em que deve constar os direitos e deveres dos contratados (art. II, 1, g; Norma A1.4, item 5, c, ii), a lei brasileira de regência determina a anotação em Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS e o recolhimento de contribuições previdenciárias para a Previdência Social; também, a norma brasileira determina o recolhimento de FGTS, no início de cada mês, no percentual de 8% do salário dos funcionários, depositados na Caixa Econômica Federal, benefício não encontrado na Convenção da OIT; cite-se, ainda, a questão da jornada de trabalho, que no direito brasileiro não pode ser superior a 8 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) horas semanais, até o limite de duas horas extras diárias, ao passo que no regime da Convenção nº 186 da OIT o número máximo de horas trabalhadas não deve ultrapassar 14 (quatorze) horas por cada período de 24 (vinte e quatro) horas, e 72 (setenta e duas) horas por cada período de
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sete dias (Norma 2.3, item 5, a, i e ii). Outros exemplos são (a) o percentual de horas extras, que deverá ser pago com o adicional de 50% segundo a legislação brasileira e apenas com 25% segundo a Convenção, e (b) o adicional noturno e o aviso prévio não inferior a 30 dias consagrados pela norma brasileira e não assegurados pela Convenção (ARANTES, 2020).Portanto, não é difícil verificar que, comparando-se as garantias trabalhistas previstas no ordenamento jurídico brasileiro com as regras expostas na Convenção nº 186 da OIT, há maiores benefícios para os trabalhadores aplicando-se as garantias da lei nacional; é exatamente por essa razão que a própria Convenção nº 186 destaca, em seu preâmbulo, “que, de modo algum a adoção de qualquer Convenção ou Recomendação pela Conferência ou a ratificação de qualquer Convenção por qualquer Membro poderá afetar lei, decisão, costume ou acordo que assegure condições mais favoráveis aos trabalhadores do que as condições previstas pela Convenção ou Recomendação” (OIT, 2006b).
Por tudo isso, vê-se que a aplicação da norma mais favorável ao trabalhador se impõe em casos tais, nos próprios termos do que determinado pela Convenção nº 186 em seu preâmbulo e pela Constituição da OIT (art. 19, item 8).
Resolução de antinomias entre o Código Bustamante e a Lei nº 7.064/82
As empresas de cruzeiros marítimos têm defendido, perante a nossa Justiça do Trabalho, a inaplicabilidade da lei brasileira aos contratos de trabalho firmados com tripulantes contratados (ou pré-contratados) no Brasil para prestarem serviços nos navios, com pretenso amparo nos arts. 182 e 198 do Código Bustamante e na Convenção da ONU sobre o Direito do Mar, pelo que – segundo tais empresas – deveria ser aplicada a lei do país da bandeira da embarcação.
Contudo, o estabelecimento, pelo Código Bustamante, da aplicação da lei do país correspondente à bandeira do navio diz respeito às questões relativas às embarcações no âmbito do Direito Internacional Privado, não à condição dos trabalhadores desses navios. O citado art. 198 do Código Bustamante está incluído no Capítulo V, intitulado Arrendamento, e inicia (art. 196) tratando do “arrendamento de coisas”, que evidentemente não é o caso dos autos.
Não é crível que muitos juízes e tribunais apliquem o Código Bustamante para países como, v.g., a Itália, que é o país de bandeira de inúmeros navios estrangeiros de cruzeiro, dado que o Código somente pode ser aplicado para Estados-partes, que são apenas 16 países latino americanos, quais sejam: Bahamas, Bolívia, Chile, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru, El Salvador e Venezuela.
A rota que faz um navio de cruzeiro ou o seu tráfego por águas brasileiras ou internacionais, à luz do Direito Internacional Privado do trabalho, em nada interfere na legislação aplicável às relações de trabalho dos tripulantes da embarcação, dado que o contrato foi concluído no Brasil e a legislação brasileira mais favorável tem aplicação imediata.
Nesse exato sentido já decidiram várias turmas do TST, como a 3ª, a 5ª e a 8ª Turmas. Tome-se, como exemplo, acórdão da 3ª Turma do TST, assim ementado:
(...) 3. EMPREGADA CONTRATADA NO BRASIL. LABOR EM NAVIO DE CRUZEIRO INTERNACIONAL. COMPETÊNCIA TERRITORIAL BRASILEIRA. APLICAÇÃO DAS LEIS NO ESPAÇO. 4. VÍNCULO DE EMPREGO. CONFIGURAÇÃO. MATÉRIA FÁTICA.
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SÚMULA 126/TST. Em relação à “competência territorial brasileira” e à “aplicação das leis no espaço”, a jurisprudência desta Corte ajustouse às previsões da Lei n. 7064/82, cujo art. 3º determina a aplicação, aos trabalhadores nacionais contratados ou ransferidos para trabalhar no exterior, da lei brasileira de proteção ao trabalho naquilo que não for incompatível com o diploma normativo especial, quando mais favorável do que a legislação territorial estrangeira. No caso vertente, tendo a Reclamante, brasileira, sido contratada no Brasil para trabalhar embarcada em navios, participando de cruzeiros, que percorriam tanto águas brasileiras quanto estrangeiras, é inafastável a jurisdição nacional, nos termos do art. 651, § 2º, da CLT. Aplicase, outrossim, o Direito do Trabalho brasileiro, em face do princípio da norma mais favorável, que foi claramente incorporado pela Lei nº 7.064/1982. Agravo de instrumento desprovido (BRASIL, 2017). Como se nota da ementa transcrita, o Tribunal, depois de entender por competente a Justiça brasileira para o deslinde da causa, entendeu ainda ser aplicado “o Direito do Trabalho brasileiro, em face do princípio da norma mais favorável...”, pouco importando a rota do navio e sua navegação por águas nacionais ou internacionais.
Não há, nesse momento histórico por que passa o Direito Internacional Público em geral, e o direito internacional dos direitos humanos, em especial, qualquer critério rígido de escolha de normas aplicáveis quando em jogo um ser humano na relação jurídica concreta posta sub judice, senão a aplicação de fontes simultâneas (em “diálogo”) que protejam os direitos dos trabalhadores em forma de mosaico normativo.
Assim, a norma a ser efetivamente aplicada no caso concreto é a que melhor proteja o empregado, independentemente de ser de índole nacional ou internacional.
Hierarquia do Código Bustamante no Brasil e relação com a legislação brasileira posterior
O chamado “Código Bustamante” é a Convenção de Direito Internacional Privado, adotada pela 6ª Conferência Internacional Americana, reunida em Havana, e assinada em 20 de fevereiro de 1928. O Brasil depositou seu instrumento de ratificação ao Código Bustamante em Washington, em 3 de agosto de 1929, promulgando-o internamente pelo Decreto nº 18.871, de 13 de agosto de 1929.
Segundo a jurisprudência atual do STF, quaisquer tratados que não forem de “direitos humanos” incorporam-se ao direito brasileiro com status de lei ordinária (cf. Recurso Extraordinário nº 466.343-SP). Assim, os tratados internacionais comuns ratificados e em vigor no Brasil – segundo a jurisprudência atual do STF – cedem perante a lei posterior conflitante, pois guardam “paridade normativa” com o direito ordinário nacional (cf. Recurso Extraordinário 70.004SE), não obstante essa posição jurisprudencial encontrar reservas de toda índole por parte da melhor doutrina (MAZZUOLLI, 2002).
Para a doutrina internacionalista, no entanto, todo e qualquer tratado deve prevalecer às normas de direito interno, mas com solução de antinomias pós-modernas, é dizer, pautadas pelo diálogo das fontes e na primazia da norma mais favorável à pessoa. Mas, repita-se, para a jurisprudência do STF –que não tem seguido a melhor doutrina neste tema – os tratados internacionais comuns guardam nível de “lei ordinária” no Brasil, revogando as normas anteriores contrárias, mas cedendo à legislação posterior, ainda
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que, repita-se, essa solução simplória não ser aceita pela melhor doutrina e ser capaz de responsabilizar o Estado brasileiro no plano internacional.
No que tange à pretensa utilização do Código Bustamante pelas empresas estrangeiras de cruzeiros, ilustre-se com a incongruência do argumento das corporações controladoras das embarcações – muitas delas europeias –, que pretendem ver tal normativa aplicada sub judice sem pertencerem, muitas vezes, a país estrangeiro que o ratificou, é dizer, a país estranho ao contexto latinoamericano.
Quando, porém, argumentam nos termos de outras convenções internacionais, como, v.g., a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, fazem questão de referir ter sido ratificada a norma internacional por ambos os Estados (o da bandeira do navio e o da nacionalidade dos reclamantes).
O Código Bustamante de 1928, repita-se, é norma recepcionada no Brasil com status de lei ordinária, segundo a jurisprudência firme do STF, especialmente após o julgamento do Recurso Extraordinário 466.343-SP, de dezembro de 2008, em que assentada a tese de que apenas os tratados internacionais de direitos humanos detêm status supralegal no país, e não os tratados internacionais comuns, como é o caso do Código Bustamante.
Assim, segundo o STF, as normas do Código Bustamante pretensamente aplicáveis cedem, no plano do Direito Internacional Privado, às normas internas posteriores atrativas do campo de aplicação normativa, como é o caso da Consolidação das Leis do Trabalho e do próprio Código Civil.
À luz do “diálogo das fontes” chegar-
se-ia à mesma conclusão, mas por fundamento diverso, pois a validade do Código Bustamante seria mantida (por não poder uma lei interna “revogar” um tratado internacional), mas abrindo mão de sua aplicação para as normas internas (CLT, Código Civil etc.) que guardam ponto de contato mais próximo e coerente com a questão sub judice.
Segundo Erik Jayme (1995, p.259), a missão dos juízes, num quadro de conflito de leis, é “coordenar essas fontes escutando o que elas dizem”, para poder então, aplicando o que as própria fontes decidiram, superar as antinomias entre as normas internacionais e as de direito interno.Perceba-se que a proposta defendida por Jayme é a de que o julgador “escute” o diálogo das fontes e resolva o caso concreto aplicando o que elas próprias decidiram, pois, sabe-se já, as fontes internacionais e internas contêm “cláusulas de diálogo” que intercomunicam os direitos do plano internacional com os do plano interno, sempre com a finalidade de encontrar o melhor direito aplicável ao caso concreto.
Tal permite que a validade da decisão judicial seja aferida por meio de critérios racionais e mais objetivos, exatamente como defendem os constitucionalistas que adotam – relativamente ao conflito entre princípios constitucionais – a técnica da ponderação de bens.
Postas essas premissas, não resta dúvidas que a utilização do “diálogo das fontes” ao caso concreto permite ao julgador encontrar a(s) norma(s) – internacionais ou internas – que melhor protejam os trabalhadores em sua respectiva relação jurídica10. Daí porque a(s) norma(s) mais
10 V. FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa & MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito internacional do trabalho: o estado da arte sobre a aplicação das convenções internacionais da OIT no Brasil. São Paulo: LTr, 2016, p. 15-23.
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favoráveis brasileiras não podem ser afastadas pela aplicação de normas internacionais, quaisquer que forem, à luz, inclusive, da regra expressa no art. 19, item 8, da Constituição da OIT, que dispõe que “em caso algum, a adoção, pela Conferência, de uma convenção ou recomendação, ou a ratificação, por um Estado-Membro, de uma convenção, deverão ser consideradas como afetando qualquer lei, sentença, costumes ou acordos que assegurem aos trabalhadores interessados condições mais favoráveis que as previstas pela convenção ou recomendação”(OIT 1919).
Como já expliquei em estudo anterior, o art. 19, § 8º, da Constituição da OIT, é mais amplo que o conhecido art. 29, alínea b, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, que prevê que nenhuma de suas disposições pode ser interpretada no sentido de “limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados”; e isso porque, se a Convenção Americana não exclui a possibilidade de leis internas ou outras convenções internacionais ampliarem o seu âmbito material de incidência, a fim de garantir para mais os direitos e liberdades nela reconhecidos, a Constituição da OIT, como se nota, vai mais além e autoriza que também uma sentença, um costume ou um eventual acordo que amplie as garantias trabalhistas consagradas em qualquer convenção ou recomendação internacional do trabalho tenha sua aplicação garantida em detrimento da própria convenção ou recomendação em causa (MAZZUOLLI, 2003, p. 247).
Por isso, a disposição referida da Constituição da OIT é especial dentre as normas internacionais de proteção dos direitos humanos, reforçando a ideia de que cabe aos juristas em geral (e aos aplicadores
do Direito, em especial) compreender o diálogo que todas as fontes jurídicas mantêm entre si, a fim de aplicar sempre a que mais proteja o ser humano em um dado caso concreto.
Portanto, na aplicação de uma convenção internacional do trabalho em um dado caso sub judice deve o julgador trabalhista primar por verificar qual a norma mais benéfica ao ser humano (trabalhador) sujeito de direitos, se a normativa internacional ou a interna, indistintamente, dado que ambas têm aplicação – uma sem excluir a outra – ao caso concreto, a depender da que seja mais protetiva.
Ao “escutar” o que as fontes dizem – para falar como Erik Jayme –, deve o juiz optar pela aplicação da norma que, no caso concreto, mais proteja os interesses da pessoa, pois tal é exatamente o sentido e o conteúdo do princípio pro homine, que abre as possibilidades de o julgador decidir com mais justiça um caso concreto, sem restar “preso” a critérios previamente definidos de solução de antinomias.
“Bandeiras de conveniência” e lei aplicável aos contratos de trabalho dos tripulante
Tem sido comum a utilização, por embarcações estrangeiras de cruzeiro, das chamadas “bandeiras de conveniência”, que se verifica quando o Estado em que matriculado o navio (proprietário) não guarda relação com o Estado que a sua atividade econômica é explorada (armador).
O expediente da “bandeira de conveniência” gera dificuldades de aplicação da lei “competente” para eventual demanda relativa à embarcação, dado que o Estado em que matriculado um navio (v.g., Malta) não guarda qualquer relação com o Estado em
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que a sua atividade econômica é explorada (v.g., Bahamas).
Eventual aplicação da lei do pavilhão a casos tais, se estaria diante de legislação que não guarda relação com a nacionalidade do empregador, local de sua sede, local de prestação dos servidos ou em que fica subordinado o empregado.
Seja como for, certo é que se aplica a lei do país de registro ou matrícula do navio para as questões de Direito Internacional Privado relativas às embarcações, ressalvados tratados específicos a estabelecer critério diverso sobre a lei aplicável, como, v.g., o critério do “vínculo substancial” previsto no art. 91, § 1º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982, ali assim estabelecido justamente para impedir as tais “bandeiras de conveniência” (MAZZUOLLI, 2019, p. 296).
Nada similar ocorre, por outro lado, quando em jogo conflito de normas relativas às pessoas trabalhadoras de tais embarcações, dado ligar-se o caso à seara trabalhista e sua força normativa de loi de police (norma de aplicação imediata) aplicável ao caso concreto.
trabalhador-reclamante.
Porém, no caso que ora nos ocupa, sabe-se já que as normas mais favoráveis são as brasileiras, e não as normas estrangeiras trabalhistas, razão pela qual é de rigor absoluto que se apliquem as garantias previstas na Constituição Federal de 1988 e na Consolidação das Leis do Trabalho, rechaçando a aplicação de legislação estrangeira menos benéfica, por mais especial que seja.
Possibilidade de aplicação de normas distintas a tripulantes de outras nacionalidades
Quando se está a tratar da lei aplicável aos contratos de trabalho de tripulantes de navios de cruzeiros marítimos, outra questão sempre suscitada é a relativa à aplicação de normas distintas a tripulantes de diversas nacionalidades.
Argumenta-se que a aplicação de diferentes normatizações aos tripulantes de navios de cruzeiros marítimos de diversas nacionalidades estaria a afrontar o princípio constitucional da isonomia de tratamento e o princípio da igualdade.
Por outro lado, se há numa embarcação com empregados de várias nacionalidades, cada qual poderá buscar junto ao Poder Judiciário de seu Estado (se contratados nestes Estados) os remédios de reparação e/ ou compensação pelos prejuízos sofridos a bordo da embarcação, se a legislação patrial lhe for também mais favorável
Nenhum problema há na aplicação da lei do pavilhão da embarcação, ou de eventual tratado internacional em vigor aos Estados em que ambos os fatos (local do contrato e local registro da embarcação) se deram, desde que seja mais favorável ao
O argumento, contudo, não prospera se se conhece o mínimo do espírito da disciplina nominada Direito Internacional Privado, que lida justamente com “conflitos de leis no espaço” com conexão internacional e, como não poderia deixar de ser, com a aplicação de normas (leis, costumes etc.) distintas para também distintas categorias de pessoas.
No entanto, no caso em apreço, se está diante de normas brasileiras de aplicação imediata, que são as normas trabalhistas mais benéficas aplicáveis aos trabalhadores
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de embarcações internacionais contratados no Brasil. Tal faz com quem caia por terra o argumento da não isonomia, pois as lois de police existem justamente para proteger mais determinadas pessoas em razão da “questão de Estado” que por detrás delas se verifica, especialmente à luz do princípio da igualdade material, que distingue as categorias de pessoas protegidas em razão das legislações mais benéficas aplicáveis.
Quando presente no processo uma norma de aplicação imediata, como é o caso das normas trabalhistas mais benéficas nacionais, não se cogita, em nenhuma hipótese, de buscar a lei indicada pela regra de Direito Internacional Privado da lex fori ou determinada por tratado internacional em vigor no Brasil, pois as lois de police cortam efeitos (para falar como Pontes de Miranda) às normas eventualmente aplicáveis ao caso concreto.
foi atribuir primazia às normas nacionais mais protetivas em detrimento de normas estrangeiras, ou, até mesmo, internacionais (provenientes de tratados) menos benéficas, e andando assim agiu bem e corretamente, pois essa é a solução desejada pelo Direito Internacional Privado pós-moderno, que tem na pessoa humana o seu núcleo duro de proteção jurídica.
Nesse mesmo sentido, também a 6ª Turma do TST entendeu, corretamente, que a situação apresentada não viola o princípio da isonomia, nestes precisos termos:
Por esse exato motivo é que a 2ª Turma do TST, corretamente, já entendeu que “no caso dos autos, é inafastável a jurisdição nacional, nos termos do art. 651, § 2º, da CLT, pois a reclamante, brasileira, foi contratada no Brasil para prestar serviços a bordo de embarcação estrangeira, percorrendo tanto águas brasileiras quanto estrangeiras”, reconhecendo que “não remanesce nenhum impedimento à aplicação da legislação do Brasil, naquilo que for mais favorável à reclamante”, além do que a “aplicação de distintos diplomas jurídicos a empregados brasileiros e outros trabalhadores estrangeiros não encerra discriminação entre nacionalidades, eis que fundada em aspectos objetivos da relação laboral – no caso, empregada contratada no Brasil para trabalhar também em águas nacionais – e não em critério subjetivo do trabalhador”(BRASIL, 2020b).
Ainda que sem a utilização da nomenclatura lois de police, o que fez o TST
(...) 7 - Não afronta o princípio da isonomia a aplicação da legislação brasileira mais favorável aos trabalhadores brasileiros e a aplicação de outra legislação aos trabalhadores estrangeiros no mesmo navio. Nesse caso há diferenciação entre trabalhadores baseada em critérios objetivos (regência legislativa distinta), e não discriminação fundada em critérios subjetivos oriundos de condições e/ou características pessoais dos trabalhadores (BRASIL, 2019b).
Ademais, sabe-se que o Direito Internacional Privado é o braço do direito público que lida com desigualdade de normas, e é típico da disciplina a aplicação de legislações diferentes a pessoas distintas; o que se visa não é igualar pelo nível menor de proteção tais trabalhadores, senão pelo reconhecimento de direitos mais benéficos expressos nas normas internas brasileiras, nos respectivos casos concretos.
Ademais, é sabido que uma mesma situação jurídica, em Direito Internacional Privado, pode atrair a competência de duas, três ou várias legislações aplicáveis, a depender do domicílio e/ou nacionalidade
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
das partes envolvidas na relação jurídica, e tal jamais foi interpretado como violador do princípio da isonomia, pois é do espírito da disciplina a indicação de leis específicas para a regência de situações também específicas, a depender dos elementos de conexão (domicílio, nacionalidade, lugar da conclusão do contrato etc.) presentes no caso concreto.
Portanto, não há que se falar em quebra da isonomia – com outros trabalhadores estrangeiros, contratados em outros países – na aplicação da legislação brasileira para os empregados contratados ou pré-contratados no Brasil para prestarem serviços a bordo de navios de cruzeiros internacionais.
cotejo ou “diálogo” com as normas do direito interno, como prevê a solução contemporânea de conflitos entre tratados e normas de direito interno quando em pauta uma questão de direitos humanos lato sensu.
Seja como for, certo é que nenhuma analogia há que se fazer entre a decisão do STF relativa ao extravio de bagagens no transporte aéreo, que está ligada ao quantum indenizatório, com a questão do trabalho em empresas de cruzeiro, que diz respeito à situação de trabalhadores com contratos firmados no Brasil para exercerem atividades em águas territoriais, em alto-mar ou águas estrangeiras, indistintamente.
Inexistência de analogia entre o art. 178 da Constituição e as relações de trabalho com empresas de cruzeiros marítimos
Uma questão que tem aparecido para justificar a tese ilegal que as empresas de cruzeiros marítimos pretendem defender diz respeito à aplicação analógica do art. 178 da Constituição de 1988 às relações de trabalho entre tripulantes contratados no Brasil e empresas de cruzeiros marítimos de bandeira estrangeira.
A questão surge pelo fato de o STF ter fixado a tese de que “nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor” (v. Recurso Extraordinário nº 636.331; Agravo em Recurso Extraordinário nº 766.681).
A decisão do STF foi extremamente criticada por ter feito tábula rasa do princípio da norma mais favorável e por ter aplicado friamente uma norma internacional sem
A impossibilidade de analogia provém do fato de, no caso dos trabalhadores, se estar diante de normas de aplicação imediata (lois de police) impeditivas da procura de outra legislação potencialmente aplicável, ainda que prevista em tratados internacionais ou determinadas pelas regras do Direito Internacional Privado da lex fori.
De fato, não há que se comparar um caso relativo a extravio de bagagens e de indenizações por evento dessa natureza com aquele atinente à proteção jurídica de um ser humano trabalhador, mesmo porque, no caso do extravio de bagagens, há norma expressa na Constituição sobre o tema, o que não é o caso dos contratos de trabalho para serviços em embarcações de cruzeiro.
Segundo o art. 178 da Constituição de 1988, com a redação que lhe deu a Emenda Constitucional 7/1995, “a lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade”(BRASIL, 1988).
É absolutamente nítido que não existe
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regra semelhante à questão que ora nos ocupa, razão pela qual toda analogia sobre o tema será interpretada in malam partem, o que não é juridicamente possível tratando-se de proteção ao direitos reconhecidos por lei a ser humano trabalhador.
Judiciário local.
No caso dos trabalhadores brasileiros contratados para laborar em navios estrangeiros em tráfego por águas nacionais ou internacionais, aplica-se o art. 3º, II, da Lei nº 7.064/82, segundo o qual “a empresa responsável pelo contrato de trabalho do empregado transferido assegurar-lhe-á, independentemente da observância da legislação do local da execução dos serviços: (…) II – a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria”(BRASIL, 1982).
Portanto, é completamente impertinente a pretensão de aplicação analógica do art. 178 da Constituição Federal de 1988 – independente do mérito dessa decisão no seio do STF, que poderá ser objeto de críticas em outro lugar – às relações de trabalho entre tripulantes contratados no Brasil e empresas de cruzeiros marítimos de bandeira estrangeira.
Relação da Convenção nº 186 da OIT com as normas brasileiras de proteção ao trabalhador
O Brasil depositou, junto ao DiretorGeral da Repartição Internacional do Trabalho, em 7 de maio de 2020, o instrumento de ratificação da Convenção sobre Trabalho Marítimo, tendo o seu texto sido promulgado internamente pelo Decreto nº 10.671, de 9 de abril de 2021. A Convenção entrou em vigou para a República Federativa do Brasil, no plano jurídico externo, em 7 de maio de 2021, nos termos de seu art. VIII, parágrafo 3º, segundo o qual “esta Convenção entrará em vigor 12 meses a contar da data em que houver sido registrada a ratificação por pelo menos 30 Membros, que em conjunto possuam no mínimo 33% da arqueação bruta da frota mundial”(BRASIL, 2021).
A Convenção em tela pretende ser a grande carta laboral internacional do trabalho marítimo, pelo estabelecimento de um conjunto normativo sólido de direitos e princípios, visando especialmente à aplicação de norma única às relações de trabalho assim concebidas.
A questão que se põe é saber quais impactos a Convenção sobre Trabalho Marítimo traz para o cenário jus-trabalhista brasileiro, bem assim quais conflitos normativos podem surgir entre as disposições da Convenção e as leis brasileiras aplicáveis à contratação de brasileiros para exercerem atividades em embarcações estrangeiras.
No plano internacional, é a Convenção nº 186 da OIT (2006) – chamada de Maritime Labor Convention ou Convenção sobre Trabalho Marítimo – a responsável por regular o trabalho marítimo e estabelecer os princípios a ele aplicáveis. A Convenção nº 186 é norma de hard law e, uma vez em vigor no Estado, tem aplicabilidade direta no plano interno, devendo ser observada pelo Poder
De início, destaque-se que, já no preâmbulo da Convenção fica nítido o desejo Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho em criar um documento único e coerente que incorpore tanto quanto possível todas as normas atualizadas das Convenções e Recomendações internacionais existentes sobre Trabalho Marítimo, bem como princípios fundamentais de outras Convenções internacionais sobre
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trabalho, particularmente nas seguintes: a) a Convenção sobre o Trabalho Forçado, 1930 (nº 29); b) a Convenção sobre a Liberdade Sindical e a Proteção do Direito Sindical, 1948 (nº 87); c) Convenção sobre o Direito de Sindicalização e de Negociação Coletiva, 1949 (nº 98); d) a Convenção sobre Igualdade de Remuneração, 1951 (nº 100); e) a Convenção sobre a Abolição do Trabalho Forçado, 1957 (nº 105); f) a Convenção sobre a Discriminação (Emprego e Profissão), 1958 (nº 111); g) a Convenção sobre a Idade Mínima, 1973 (nº 138); e h) a Convenção sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil, 1999 (nº 182).
Tendo sido ratificada e estando em vigor no Brasil, Convenção referida obriga o Estado brasileiro em todos os seus termos, não obstante sua aplicabilidade encontrarse limitada pela possibilidade de o Poder Judiciário aplicar tanto outras convenções internacionais do trabalho pertinentes (como a própria Constituição da OIT) quanto normas do direito interno brasileiro, tais a Constituição e a CLT, à luz do “diálogo das fontes” já referido e do princípio internacional pro homine
Esse entendimento vem expresso, como já se disse, no próprio preâmbulo da Convenção, ao relembrar “o parágrafo 8º do Artigo 19 da Constituição da Organização Internacional do Trabalho, que determina que, de modo algum a adoção de qualquer Convenção ou Recomendação pela Conferência ou a ratificação de qualquer Convenção por qualquer Membro poderá afetar lei, decisão, costume ou acordo que assegure condições mais favoráveis aos trabalhadores do que as condições previstas pela Convenção ou Recomendação”(BRASIL, 2021).
A mesma ideia – aplicação da norma mais favorável aos trabalhadores – se repete em vários outros dispositivos da Convenção, que não excluem a aplicação de normas mais
favoráveis para todo o texto do tratado (v.g., art. V, parágrafo 7º; Regra 4.5, parágrafo 1º; Diretriz B4.5, parágrafo 3º).
Frise-se, no entanto, que todo tratado internacional em vigor em determinado Estado terá efeitos apenas ex nunc, é dizer, sempre a partir de sua ratificação, pois é uma característica da ratificação de tratados o de ser “ato irretroativo”, como explico em detalhes no livro Direito dos Tratados, ao dizer que “um tratado só passa a ser considerado efetivo para os Estados a partir da ratificação, entendendo-se como tal a troca ou depósito dos seus instrumentos constitutivos em Estado ou organismo para esse fim designado” (MAZZUOLLI, 2014, p. 153).
A ideia de que a aplicação da Convenção aos casos em que aplicada será lei da bandeira da embarcação (pois, em tais casos, tem-se que Estado da bandeira ratificou a Convenção) é correta desde que ambos sejam partes desse tratado internacional.
Que fique clara esta ideia: todo e qualquer tratado internacional de direitos humanos ratificado e em vigor no Estado é aplicável apenas do que for mais benéfico ao cidadão sujeito de direitos, como demonstram vários instrumentos internacionais de proteção tanto do plano global (ONU) quanto dos sistemas regionais de direitos humanos (OEA e Conselho da Europa) e, inclusive, nesse particular, a própria Convenção sobre Trabalho Marítimo, que – diga-se mais uma vez – prevê em seu preâmbulo que, de modo algum, a adoção de qualquer convenção ou recomendação pela Conferência Internacional do Trabalho ou a ratificação de qualquer convenção por qualquer Estado-membro “poderá afetar lei, decisão, costume ou acordo que assegure condições mais favoráveis aos trabalhadores do que as condições previstas pela Convenção ou Recomendação”(BRASIL, 2021).
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Perceba-se a redação do preâmbulo da Convenção a determinar que a sua aplicabilidade no Estado-parte não pode, de modo algum, afetar lei, decisão, costume ou acordo que assegure condições mais favoráveis aos trabalhadores.
pela convenção ou recomendação”(BRASIL, 2021).
Esse leque aberto pelo preâmbulo do tratado não deixa dúvidas de que as normas internas brasileiras (leis) e as sentenças judiciárias (decisões) mais favoráveis aos trabalhadores têm prevalência sobre o texto da Convenção, com é, aliás, a tendência atual do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que estabelece primazia sempre à norma mais favorável ao sujeito de direitos.
A Convenção não revogou, por esse motivo, e segundo a sua própria autorização preambular, as normas da Lei nº 7.064, de 6 de dezembro de 1982, em especial o seu art. 3º, II, que dispõe que “a empresa responsável pelo contrato de trabalho do empregado transferido assegurar-lhe-á, independentemente da observância da legislação do local da execução dos serviços: (…) II – a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria”(BRASIL, 1982).
Portanto, mesmo tendo a Convenção entrado em vigor no Brasil, certo é que seus preceitos não podem contrariar as normas mais favoráveis brasileiras, nos termos do que prevê a Constituição da OIT, que é o tratado-regente da matéria em nível global, quando assegura que “em caso algum, a adoção, pela Conferência, de uma convenção ou recomendação, ou a ratificação, por um Estado-Membro, de uma convenção, deverão ser consideradas como afetando qualquer lei, sentença, costumes ou acordos que assegurem aos trabalhadores interessados condições mais favoráveis que as previstas
A Convenção da OIT em causa estabelece não mais do que um patamar mínimo de proteção ao trabalhador para os casos que estabelece, dado que as normas do Direito Internacional Público são sempre secundárias e subsidiárias das do direito interno em matéria de proteção dos direitos humanos.
De fato, quando se diz que um direito ou garantia é resguardado pelo direito internacional, se está a referir que o mínimo relativo àquele direito ou àquela garantia está a ser protegido, e não o máximo; tal significa que, se no plano interno, a proteção for maior, deve obrigatoriamente prevalecer, pois o princípio pro homine é o regente e gestor do sistema internacional de proteção dos direitos humanos contemporâneo.
É absolutamente equivocado dizer que, em tais casos, não se estaria a respeitar os tratados internacionais, senão o contrário; um tratado de direitos humanos é mais respeitado quanto mais se aplicam as normas (notadamente internas) mais benéficas de proteção, à luz do que os próprios instrumentos internacionais deixam entrever, a exemplo do que dispõe o já citado art. 19, item 8, da Constituição da OIT.
Perceba-se: em caso algum... pode um tratado adotado pela Conferência Internacional do Trabalho afetar qualquer lei – como, v.g. a CLT brasileira – que assegure aos trabalhadores interessados condições mais favoráveis que as previstas pela Convenção, especialmente quando se sabe (e é nítido pela leitura da Convenção) que suas normas são mais genéricas do que concretas, podendo prejudicar horas extras e vários outros direitos trabalhistas nesses casos de labor extraordinário.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
No que tange aos contratos de trabalho findos e às ações já ajuizadas a novel Convenção sobre Trabalho Marítimo não se aplica, pois os tratados internacionais têm efeitos ex nunc, valendo sempre a partir de sua ratificação e entrada em vigor no Estado, sem retroagir (v. supra).
Tal significa que, nos processos em curso, as normas aplicáveis serão as do tempo do ajuizamento da ação, em vigor no momento da propositura da demanda; a aplicação da Convenção sobre Trabalho Marítimo terá lugar, assim, para as ações ajuizadas a partir de 7 de maio de 2021, data em que a Convenção entrou em vigor para o Brasil na órbita externa, vinculando o Estado brasileiro em suas relações com os demais Estados-partes desse instrumento internacional.
Invalidade dos Termos de Ajustamento de Conduta firmados com empresas de cruzeiro em desconformidade com o art. 3º, II, da Lei nº 7.064/82
O Ministério Público do Trabalho –MPT tem firmado Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) com empresas de cruzeiros marítimos associadas à Associação Brasileira de Cruzeiros Marítimos – CLIA Brasil.
Brasil ou na ausência desta, pelo agente marítimo responsável pela operação da embarcação, cujo contrato de trabalho será escrito, no idioma português e vinculado à legislação trabalhista brasileira aplicável à espécie”, conforme se infere da cláusula 1, item b de TAC firmado em 2010, que foi reiterada em TAC firmado em 2016, no art. 2º, § 2º do referido ajuste.
As empresas de cruzeiro têm alegado, em diversos processos na Justiça do Trabalho brasileira, que o TAC nº 308/2016 firmado com o MPT estaria a afastar a aplicação da lei brasileira, ao dispor que “a legislação trabalhista brasileira não se aplicará aos tripulantes brasileiros contratados por intermédio de contratos internacionais de trabalho, firmados para laborarem em embarcações que realizem exclusivamente as temporadas internacionais de cruzeiros e não atraquem/fundeiem portos nacionais” (art. 2º), bem assim que “a legislação trabalhista brasileira também não se aplicará aos tripulantes brasileiros, cujo contrato internacional de trabalho seja firmado por prazo superior daquele definido no parágrafo 3º, do art. 1º, como temporada nacional”.
Nesses instrumentos têm sido determinada a exclusão da legislação brasileira “para reger a relação internacional de trabalho marítimo dos tripulantes, exceto quando os tripulantes brasileiros prestarem serviço apenas na costa brasileira”11
Em tais TACs pretende-se proteger “os brasileiros recrutados no Brasil e embarcados para laborar apenas durante a temporada de cruzeiros marítimos pela costa brasileira”, caso em que “deverão ser formalmente contratados pela empresa estabelecida no 11 TAC nº 308/2016.
Como poderia, o Ministério Público do Trabalho, determinar que a legislação brasileira “não se aplicará” aos tripulantes brasileiros em tais casos? À evidência que, nessa hipótese, o Termo de Ajustamento de Conduta extrapolou critério legal brasileiro, não podendo, nessa parte, ser considerado.
Sempre que um TAC invadir competência legal sobre a matéria, o que ali foi ajustado não poderá jamais prosperar, pois instrumentos dessa natureza não têm força normativa quer para contrariar as normas em vigor no país ou para determinar o cumprimento de tratados internacionais não ratificados.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Tout court, nenhum Termo de Ajustamento de Conduta tem valor normativo (e jurídico) para superar norma expressa na legislação pátria, razão pela qual um argumento nele baseado há de ser rechaçado pelo Poder Judiciário quando da análise da norma aplicável ao caso concreto.
Entender de outra maneira seria subversivo de princípios constitucionais e internacionais que garantem primazia hierárquica das normas aprovadas pelo Parlamento (normas internas) e pela sociedade internacional (normas internacionais) sobre ajustes que não guardam qualquer paralelo com a atividade legislativa do Estado.
Em segundo lugar, desses Termos de Ajustamento de Conduta não participaram as legítimas entidades representativas dos trabalhadores, razão pela qual não devem prosperar ad argumentum perante o Poder Judiciário pátrio.
Os Termos de Ajustamento de Conduta são instrumentos relevantes no universo jurídico para a solução extrajudicial de conflitos de interesses, fazendo com que aqueles que agridem interesses jurídicos adequem suas condutas às exigências legais.
Tais instrumentos, no entanto, não são superiores às leis nacionais em vigor e/ou a instrumentos internacionais ratificados e em vigor no Estado, não obstante a importância de que se revestem internamente para fins de ajuste de condutas de empresas que têm contrariado a ordem jurídica posta no Brasil.
Ao cabo desta exposição teórica, penso ter esclarecido ponto a ponto as dúvidas que o tema em apreço suscita no
Brasil. Restou claro, ao longo deste estudo, que nada – nem leis ou normas internacionais menos protetoras – pode afastar a aplicação de normas mais benéficas ao caso dos contratos (ou pré-contratos) de trabalho de tripulantes de navios de cruzeiros marítimos de bandeira estrangeira, quer naveguem em águas nacionais ou internacionais.
A Justiça do Trabalho brasileira é competente para julgar causas envolvendo trabalhadores contratados no Brasil para exercer atividades em outra localidade por força dos §§ 2º e 3º do art. 651 da CLT, que excepcionam a regra do local da prestação dos serviços quando o empregador promova realização de atividades fora do lugar do contrato de trabalho, circunstância que assegura ao empregado apresentar reclamação no foro da celebração do contrato ou no da prestação dos respectivos serviços. A jurisprudência do c. Tribunal Superior do Trabalho é consolidada nesse sentido.
No que diz respeito ao reconhecimento da contratação do trabalhador em solo brasileiro, se o recrutamento, a entrevista, a aprovação do(s) selecionado(a) e a negociação das condições de trabalho e de remuneração deram-se no Brasil, aqui se constituiu a obrigação jurídica entre as partes, conforme entendimento ratificado pela Recomendação nº 198 da OIT relativa à relação de trabalho, especialmente em seus arts. 11, alínea b, e 13. Ademais, se há provas de que a proposta foi realizada no Brasil, não ficam dúvidas de que o contrato (ou pré-contrato) de trabalho foi no Brasil efetivamente celebrado, por força do que dispõe o art. 435 do Código Civil brasileiro, segundo o qual “reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto”(BRASIL, 2002a).
As normas trabalhistas, ademais, têm aplicação imediata no Brasil por serem lois de police, ou seja, normas que atingem o plano do Direito Internacional Privado com
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
primazia em relação a eventual legislação estrangeira aplicável. Esse caráter fica nítido da leitura do art. 3º, II, da Lei nº 7.064, de 6 de dezembro de 1982, que regula a situação de trabalhadores contratados ou transferidos para o exterior e determina “a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria” (BRASIL, 1982).
A fortiori, sendo a lei brasileira mais benéfica aos trabalhadores, não há dúvidas que deve prevalecer sobre normas estrangeiras e, até mesmo, sobre tratados internacionais de que o Brasil é parte, pois o princípio da primazia da norma mais favorável é axiologicamente superior a quaisquer outros que indicam outras leis ou normas internas ou internacionais (menos benéficas) ao caso concreto, certo de que as próprias normas internacionais contêm “cláusulas de diálogo” ou “vasos comunicantes” que autorizam a aplicação das normas mais favoráveis ao cidadão sujeito de direitos.
Por este cenário, verifica-se que o TST tem reiteradamente acertado na tese da competência da Justiça do Trabalho e da incidência da legislação brasileira mais favorável à regência de tais casos concretos, quando empregadores são corporações de cruzeiros marítimos e o trabalho se dá nas embarcações, independentemente da rota do navio e do local (águas brasileiras ou internacionais) por onde trafega.
Referências
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Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Recurso Ordinário Trabalhista 0000603-71.2021.5.10.0022
RECORRENTE: MODULAR SERVICOS DE ACABAMENTO DE MOVES PLANEJADOS EIRELI
ADVOGADO: NILSON JOSE FRANCO JUNIOR RECORRIDO: VALDEMIR CRISTINO BARROS JUNIOR ADVOGADO: SORAYA CARDOSO SANTOS PIRES
ADVOGADO: LEONARDO THADEU PIRES
ORIGEM: 22ª VARA DO TRABALHO DE BRASÍLIA/DF CLASSE ORIGINÁRIA: Ação Trabalhista - Rito Ordinário (JUÍZA NATÁLIA QUEIROZ CABRAL RODRIGUES)
EMENTA HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO EXTRAJUDICIAL. QUITAÇÃO GERAL.
NÃO CABIMENTO. A inclusão, no acordo extrajudicial, de cláusula prevendo a quitação ampla e irrestrita de todos os aspectos relacionados à relação empregatícia não se harmoniza com a interpretação sistemática a ser dada ao procedimento de jurisdição voluntária regulamentado pelos artigos 855-B a 855-E na CLT. No caso dos autos, mostra-se escorreita a r. sentença ao homologar apenas sobre as verbas expressamente consignadas no acordo. Recurso ordinário conhecido e desprovido.
A Excelentíssima Juíza NATÁLIA QUEIROZ CABRAL RODRIGUES, em exercício na MM. 22ª Vara do Trabalho de Brasília/DF, homologou acordo, conforme ata de audiência de fls. 33/34, nos autos da reclamação trabalhista ajuizada por VALDEMIR CRISTINO BARROS JÚNIOR em face de MODULAR SERVIÇOS DE ACABAMENTO DE MÓVEIS
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
O reclamado interpôs recurso ordinário às fls. 37/43, pugnando pela reforma da decisão, para homologar o acordo celebrado entre as partes com quitação geral e extinto o contrato de trabalho.
O reclamante apresentou contrarrazões ao recurso ordinário do reclamado às fls. 49/52.
Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho, na forma prevista no art. 102 do Regimento Interno deste Regional.
É, em síntese, o relatório.
O recurso ordinário da reclamada é tempestivo e apresenta regular representação. As custas processuais foram pagas (fls. 44/45). O acordo foi pago, conforme guia de fls.46, estando o juízo garantido.
Presentes os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade, conheço do recurso ordinário interposto, bem como das contrarrazões apresentadas.
As partes entraram com petição para homologação de acordo extrajudicial, nos termos do artigo 855-B da CLT.
O acordo foi homologado, conforme ata de audiência de fls. 33/34, nos seguintes termos: “ [...]
As partes acordaram nos termos da petição de Id 997cf54, tendo o trabalhador conferido quitação à empresa pelas parcelas e valores discriminados na petição inicial.
A empresa, por intermédio de sua advogada, requer que conste os protestos no que diz respeito ao objeto da quitação.
As partes declaram que a transação é composta de 100% de parcelas indenizatórias, sobre as quais não há incidência de contribuição previdenciária.
A reclamada recorre. Requer que o acordo celebrado entre as partes seja com quitação geral e extinto o contrato de trabalho.
Em contrarrazões, o reclamante concorda com os termos do recurso ordinário e requer que o mesmo seja conhecido e provido.
Analiso.
O procedimento de jurisdição voluntária, nesta Especializada, destinado à homologação de acordos extrajudiciais, é regulamentado pelos artigos 855-B a 855-E da CLT, assim dispõem:
“Art. 855-B. O processo de homologação de acordo extrajudicial terá início por petição conjunta, sendo obrigatória a representação das partes por advogado.
§ 1º As partes não poderão ser representadas por advogado comum.
§ 2º Faculta-se ao trabalhador ser assistido pelo advogado do sindicato de sua categoria.
Art. 855-C. O disposto neste Capítulo não prejudica o prazo estabelecido no
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§6º do art. 477 desta Consolidação e não afasta a aplicação da multa prevista no § 8º do art. 477 desta Consolidação.
Art. 855-D. No prazo de quinze dias a contar da distribuição da petição, o juiz analisará o acordo, designará audiência se entender necessário e proferirá sentença.
Art. 855-E. A petição de homologação de acordo extrajudicial suspende o prazo prescricional da ação quanto aos direitos nela especificados.
Parágrafo único. O prazo prescricional voltará a fluir no dia útil seguinte ao do trânsito em julgado da decisão que negar a homologação do acordo.”
Extrai-se do art. 855-B acima transcrito que é imprescindível à homologação do acordo que seja ela postulada em petição conjunta e que as partes estejam representadas por advogados distintos, podendo o trabalhador optar pela assistência sindical.
Tais requisitos estão preenchidos in casu.
Por outro lado, extrai-se da regra contida no art. 855-E, a ser interpretada de maneira sistemática com outras normas trabalhistas, a exemplo do §2º do art. 477 da CLT c/c Súmula/TST nº 330 e do art. 507B da CLT, que é necessário especificar quais os direitos, parcelas e valores abarcados pela transação extrajudicial que se pretende homologar.
Com efeito, e à míngua de norma legal expressa prevendo tal possibilidade, a inclusão no acordo extrajudicial de cláusula prevendo a quitação ampla e irrestrita de todos os aspectos relacionados à relação empregatícia não se harmoniza com a interpretação sistemática a ser dada ao procedimento de jurisdição voluntária regulamentado pelos artigos 855-B a 855-E na CLT.
No mesmo sentido, trago os seguintes precedentes desta Egr. Segunda Turma:
“ACORDO HOMOLOGADO APENAS EM PARTE: RECURSO EM RELAÇÃO À FRAÇÃO NÃO-HOMOLOGADA: INEXISTÊNCIA DOS ÓBICES DAS SÚMULAS 100-V E 259 DO TST, PERTINENTES APENAS ÀS FRAÇÕES HOMOLOGADAS: ADMISSIBILIDADE DO APELO. A sentença que homologa apenas em parte o acordo extrajudicial é recorrível em relação à fração quanto à qual se nega homologação, devolvendo-se ao Tribunal apenas a parte ainda não transitada em julgado, no caso pertinente à declaração de quitação geral decorrente do acordo colacionado pelas partes interessadas.” (Des. Alexandre Nery). PROCESSO DO TRABALHO. JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. ACORDO EXTRAJUDICIAL. HOMOLOGAÇÃO. LIMITES. EFEITOS. Ainda que outorgando às partes a potestade de celebrar transação extrajudicial, para posterior homologação em juízo, o sistema inserido pela Lei nº 13.467/2017 (arts. 855-B e seguintes, da CLT) não confere ao empregador o direito de obter a quitação geral de as parcelas decorrentes do vínculo de emprego, ficando limitados os efeitos do ato àquelas verbas discriminadas no correspondente termo. Recurso conhecido e desprovido.” (RO 0000614-63.2018.5.10.0812, Relator Desembargador João Amílcar Silva e Souza Pavan, DEJT 14/07/2020)
“AÇÃO DE HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO ECTRAJUDICIAL. LIMITES. QUITAÇÃO AMPLA. IMPOSSIBILIDADE. PROCESSO EXTINTO SEM O JULGAMENTO DO MÉRITO. Considerando o arcabouço legislativo quanto ao acordo extrajudicial (arts. 855-B a 855-E da CLT) e a interpretação sistemática do instituto, a inserção de cláusula
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que confere quitação ampla e irrestrita dos direitos oriundos do contrato de trabalho não se coaduna com a necessidade de delimitação específica dos limites dos ajustes a serem homologados em juízo, a qual também deve ser compatibilizada com o acesso à Justiça e a devida apreciação das pretensões derivadas das relações de emprego.” (RO 0000778- 84.2019.5.10.0006, Relatora Desembargadora Elke Doris Just, DEJT 27/06/2020)
“
1. ACORDO EXTRAJUDICIAL. O acordo extrajudicial firmado entre as partes, mesmo formalmente válido, não extingue direitos decorrentes do ajuste laboral. Fosse o contrário, vale dizer, tivesse o condão de produzir o efeito de quitação total e irrestrita das parcelas trabalhistas, independente de constarem em recibo, estaríamos diante de efetiva renúncia de direitos, o que é veementemente vedado pela legislação consolidada (art. 9º). 2. Recurso ordinário conhecido e desprovido.” (RO 000009406.2018.5.10.0812, Relator Juiz Convocado Gilberto Augusto Leitão Martins, DEJT 21/07/2018)
A título de reforço, trago ainda precedentes da egr. Primeira Turma deste Regional:
“
As relações de natureza trabalhista são norteadas pela desigualdade jurídica entre empregados e empregadores, sendo necessária a equalização das posições pelo direito do trabalho e processual do trabalho. Na verdade, visa-se à aplicação do princípio constitucional da isonomia material, à luz da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Para tanto, a ordem jurídica trabalhista está baseada em
normas jurídicas próprias (princípios e regras), cujo pressuposto maior funda-se na proteção. Por certo, o direito do trabalho, com gênese nos direitos humanos, impõe a indisponibilidade de interesses e a observância do princípio tuitivo nas relações laborais. Com isso, não pode o trabalhador dispor dos seus direitos, seja antes, durante ou após a relação de trabalho. Assim, considerando o modelo de intervencionismo estatal norteador das relações de emprego no Brasil, eventual submissão de acordo extrajudicial à homologação pelo magistrado trabalhista deve ser realizada com reservas, com base na interpretação restritiva e à luz da indisponibilidade dos direitos do trabalhador. Nesse contexto, e considerando a ausência de previsão legal, os acordos extrajudiciais submetidos ao procedimento de jurisdição voluntária possuem eficácia limitada às parcelas e valores consignados. Aplica-se à espécie a regra do art. 477, §2º, e do art. 507-B da CLT, não podendo o juiz ultrapassar essa margem hermenêutica. O art. 484-A, da CLT, cuida de hipótese bem distinta daquela relativa à homologação de acordo extrajudicial pela Justiça do Trabalho. Trata o art. 481-A, da CLT, de contrato de trabalho extinto por comum acordo entre empregado e empregador, com a redução dos valores de diversas verbas, na esfera administrativa, sem jamais existir ali a cláusula da intocabilidade de debate judicial futuro a respeito da quitação de qualquer parcela. Não é possível, seja qual for o método de interpretação, aplicar dispositivo legal que regula situação fático jurídica notoriamente distinta para alcançar a quitação geral de acordo extrajudicial. Nunca é demais que a norma de regência da homologação de acordos extrajudiciais pela Justiça do Trabalho não contém a cláusula da quitação
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geral do contrato de trabalho(CLT,art. 855-B), nem assim dispõe qualquer outro dispositivo legal regulador de temas correlatos. Ao contrário, o art. 855-E, de forma expressa, faz menção à existência de petição contendo os direitos nela especificados. Se fosse como pretende a empregadora, bastaria uma petição conjunta das partes declarando que o contrato de trabalho estava extinto com cláusula de quitação geral, sem necessidade de quaisquer discriminação das verbas pactuadas, o que bem denota a injuridicidade e o exagero da pretensão patronal relacionada à quitação geral. Recurso do reclamado conhecido e desprovido. Recurso conhecido e desprovido.” (RO 0000095-88.2018.5.10.0812, 1ª Turma, Redator Desembargador Grijalbo Fernandes Coutinho, DEJT 10/11/2018)
"HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO EXTRAJUDICIAL. LEI N.º 13.467/2017. REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS. INEXISTÊNCIA. A homologação de acordo extrajudicial está disciplinada pelo art. 855-B da CLT (incluído pela Lei n.º 13.467/2017). Esse acordo pode ou não ser homologado pelo juiz do trabalho, tratando-se de uma faculdade, nos termos do art. 855D e do art. 484-A, ambos da CLT. Não obstante, além dos requisitos descritos no art. 855-B, é necessário que as partes descrevam na petição inicial as verbas e os valores objetos da transação, conforme dispõem o caput do art. 444 e o § 1º do art. 840, ambos da CLT, e os arts. 322, 324 e 720 da CLT. Não cabem, portanto, pedidos genéricos. Por fim, registre-se que o pedido de quitação total e irrestrita é inviável, visto que o entendimento da Súmula 330 do TST permanece sólido no sentido de que "a quitação não abrange parcelas não consignadas no recibo de quitação". No caso em
exame, como os acordantes não cumpriram satisfatoriamente os pressupostos para homologar o acordo extrajudicial, não há de falar em deferir a transação nem sequer determinar a realização de audiência conciliatória. Por essas razões, nego provimento." (RO 000008018.2018.5.10.0005, 1ª Turma, Relator Desembargador Dorival Borges de Souza Neto, 02/10/2018).
Dessarte, acertou o Juízo de origem homologando a quitação somente das verbas expressamente consignadas no acordo.
Não se olvide, ainda, que nem mesmo existe direito líquido e certo à homologação de acordo pelo magistrado, a teor da exegese contida na Súmula/TST nº 418.
Feitas tais considerações, penso que merece ser mantida a r. sentença.
Nego provimento.
Pelo exposto, conheço do recurso ordinário da reclamada e, no mérito, nego-lhe provimento, nos termos da fundamentação.
É o meu voto.
Por tais fundamentos, ACORDAM os Desembargadores da Egrégia Segunda Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª região, conforme certidão de julgamento, aprovar o relatório, conhecer do recurso ordinário da reclamada e, no mérito, negarlhe provimento, nos termos do voto do Desembargador Relator. Ementa aprovada.
Brasília(DF), 01 de junho de 2022 (data do julgamento).
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
0805900-12.2005.5.10.0014 - AGRAVO DE PETIÇÃO (1004)
RELATOR(A): Desembargador Mário Macedo Fernandes Caron
AGRAVANTE: UNIÃO FEDERAL (PGFN) - DF AGRAVADO: CITIES COMERCIO E PARTICIPACOES S/A
ADVOGADO: NELSON GAREY - SP0044456
AGRAVADO: TARCISIO DAROLT
Advogados: JORGE LUIZ CAETANO DA SILVASP0160465
ORIGEM: Coordenadoria de Apoio ao Juízo de Execuções e ao Juízo da Infância e da Juventude
CLASSE ORIGINÁRIA: AÇÃO TRABALHISTA JUIZ(A): RAUL GUALBERTO F. KASPER DE AMORIM
EMENTA
EMENTA: EXECUÇÃO FISCAL DE MULTA ADMINISTRATIVA. FALÊNCIA DO EXECUTADO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Segundo dispõe o § 11 do artigo 6º da Lei n. 11.101/005, incluído pela alteração dada pela Lei n. 14.112/2020, "ainda que haja a decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial, as execuções fiscais decorrentes de penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho e as execuções de ofício das contribuições à seguridade social decorrentes das condenações trabalhistas devem ser processadas nesta Justiça Especializada, "(...) vedados a expedição de certidão de crédito e o arquivamento das execuções para efeito de habilitação na recuperação judicial ou na falência""(RR n. 10366-92.2015.5.15.0014, 2ª Turma, Relator Desembargador Convocado Marcelo Lamego Pertence, DEJT 17/9/2021). Recurso conhecido e provido.
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O Exmo. Juiz do Trabalho Raul Gualberto F. Kasper De Amorim, por meio da sentença às fls. 461/469 do PDF, julgou extinta, sem resolução do mérito, a execução fiscal em relação à massa falida, nos termos dos arts. 485, IV, c/c com o art. 924, III e art. 925, todos do CPC, por ausência de exigibilidade do título extrajudicial.
Opostos embargos de declaração os quais foram acolhidos para prestar esclarecimentos às fls. 484/494 do PDF.
A União interpôs agravo de petição às fls. 498/504 do PDF. Argui preliminar de incompetência do Juízo falimentar. No mérito, pugna pelo prosseguimento da execução fiscal da multa administrativa.
Apesar de intimadas, as executadas não apresentaram contraminuta (fl. 507 do PDF).
Desnecessária a prévia manifestação do Ministério Público do Trabalho, nos termos do art. 102 do Regimento Interno deste Tribunal.
É o relatório.
II - VOTO
Preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade, conheço do recurso.
EXECUÇÃO FISCAL DE MULTA ADMINISTRATIVA. FALÊNCIA DO EXECUTADO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO.
O Juízo de origem, por entender que a CDA perdeu sua exigibilidade com relação à massa Falida e, por consequência, ao sócio/ administrador, extinguiu a execução fiscal em relação à massa falida, em face do disposto
no art. 23, parágrafo único, III, do DL n. 7.661/1945 e nos enunciados das Súmulas n. 192 e 565 do STF.
Opostos embargos de declaração pela União alegando que "a Lei n. 11.101/2005 é a que rege a falência da empresa executada, conforme data da quebra em 27/01/2006" (fl. 481 do PDF), o Magistrado os acolheu para esclarecer que:
A ciência jurídica não pode ser entendida em partes, mas sim como um todo indivisível e entrelaçado. Os princípios adotados por nosso sistema jurídico permeiam as disposições legais e devem temperar a análise fria da letra da lei. Importa, para o caso concreto, o princípio do Juízo universal da falência.
Com efeito, a literalidade dos dispositivos invocados pela Embargante exclui do juízo universal da falência as causas trabalhistas, em fase de conhecimento, e as execuções fiscais. A leitura dos mencionados dispositivos, no entanto, deve ser contejada com o que reza o art. 6º, caput, e § 2º, do mesmo diploma legal. Confira-se:
Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas particulares do sócio solidário.
( ... )
§ 2º É permitido pleitear, perante o administrador judicial, habilitação, exclusão ou modificação de crédito derivados da relação de trabalho, mas as ações de natureza trabalhista, inclusive as impugnações a que se refere o art. 8º desta Lei, serão processadas perante a justiça
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especializada até a apuração do respectivo crédito, que será inscrito no quadro-geral de credores pelo valor determinado em sentença.
Daí se extrai a inteligência que a competência material desta Justiça Especializada limita-se à quantificação do crédito do credor. Em sede de execução fiscal essa jurisdição já nas nasce superada, tendo em vista que a CDA é título executivo que goza de liquidez. Nesse diapasão, o entendimento que prestigia a melhor técnica processual e de gestão judiciária coroa o princípio do juízo universal da falência mesmo para as execuções fiscais, orientando que o crédito seja apresentado desde logo à Vara de Falências, a qual fará o pagamento das dívidas da massa falida.
Respeita-se, dessa forma, a justa distribuição dos recursos arrecadados pela massa falida segundo os critérios estabelecidos pelo legislador ordinário ao editar a Lei nº 11.101/05. Concentram-se todas as execuções, inclusive as de natureza fiscal, em um único juízo, o qual será o responsável por todos os haveres e deveres da massa falida, entendimento este que, além de ser juridicamente escorreito, permite a excelência em sede de organização judiciária, que hoje padece com o elevado número de processos (fls. 484/486 do PDF).
Nas razões recursais, a União argui que as execuções fiscais e as causas trabalhistas não têm a competência alterada pela superveniente decretação de falência, devendo haver continuidade dos atos processuais no respectivo juízo.
Aponta violação ao art. 76 da Lei n. 11.101/2005, ao art. 5º da LEF e ao art. 114, VIII, da CF/88.
Alega ser desnecessária a expedição de certidão de habilitação de crédito, porquanto o "crédito resultante da multa administrativa já está inscrito na dívida ativa da União a qual, nos termos do art. 3º da LEF, tem força executória ope legis e goza da presunção de certeza e liquidez, independente de qualquer certidão ou pronunciamento judicial" (fl. 502 do PDF).
Aduz, ainda, que a habilitação no juízo falimentar seria uma opção da Fazenda Pública, no qual o Magistrado, ao extinguir o feito, tornou obrigatório em ofensa aos art. 187 do CTN e 29 da LEF.
Pois bem. Quanto ao tema, até então o entendimento pacífico é de que "decretada a falência ou deferido o processamento do pedido de recuperação judicial, a competência da Justiça do Trabalho remanesce somente até a individualização e quantificação do crédito, inclusive na execução fiscal de multa administrativa, cabendo ao credor habilitá-lo no Juízo Universal da Falência. Precedentes. Agravo de instrumento conhecido e não provido" (AIRR n. 10918-91.2015.5.03.0143, 8ª Turma, Relator Desembargador Convocado Joao Pedro Silvestrin, DEJT 23/8/2021).
Isso porque o art. 6º, II, da Lei nº 11.101/2005, com a alteração dada pela Lei nº 14.112/2020, dispõe que a decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende as "execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência".
E o parágrafo 2º do referido dispositivo preconiza que "as ações de natureza trabalhista (...) serão processadas perante a justiça especializada até a apuração do respectivo crédito, que será inscrito no quadro-geral de credores pelo valor determinado em sentença", assim como
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determinado pelo Juízo de origem.
Observa-se, contudo, que os parágrafos 7-B e 11 do art. 6º, incluídos pela mencionada alteração da lei de falências, disciplinam que:
§ 7º-B. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica às execuções fiscais, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código. (...)
§ 11. O disposto no § 7º-B deste artigo aplica-se, no que couber, às execuções fiscais e às execuções de ofício que se enquadrem respectivamente nos incisos VII e VIII do caput do art. 114 da Constituição Federal, vedados a expedição de certidão de crédito e o arquivamento das execuções para efeito de habilitação na recuperação judicial ou na falência.
Assim, como recentemente decidido pelo Col. TST, adequando-se à nova disciplina legal, entende-se que, "em se tratando de execuções fiscais decorrentes de penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho, bem assim de execuções de ofício das contribuições à seguridade social decorrentes das condenações trabalhistas, a Justiça do Trabalho é competente para processar a execução, sem prejuízo da competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à
manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial" (RR n. 10366-92.2015.5.15.0014, 2ª Turma, Relator Desembargador Convocado Marcelo Lamego Pertence, DEJT 17/09/2021).
Na oportunidade o Ministro relator ainda destacou que:
Não se pode olvidar que a própria Lei nº 14.112/2020 incluiu na multicitada lei falimentar o artigo 7º-A, que criou um "incidente de classificação do crédito público", facultando à Fazenda Pública a inclusão do crédito no quadro geral de credores. Veja-se: "Art. 7º-A. Na falência, após realizadas as intimações e publicado o edital, conforme previsto, respectivamente, no inciso XIII do caput e no § 1º do art. 99 desta Lei, o juiz instaurará, de ofício, para cada Fazenda Pública credora, incidente de classificação de crédito público e determinará a sua intimação eletrônica para que, no prazo de 30 (trinta) dias, apresente diretamente ao administrador judicial ou em juízo, a depender do momento processual, a relação completa de seus créditos inscritos em dívida ativa, acompanhada dos cálculos, da classificação e das informações sobre a situação atual. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)
(...)
§ 3º Encerrado o prazo de que trata o caput deste artigo: (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)
(...)
IV - os créditos incontroversos, desde que exigíveis, serão imediatamente incluídos no quadro-geral de credores, observada a sua classificação; (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)
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(...)
§ 4º Com relação à aplicação do disposto neste artigo, serão observadas as seguintes disposições: (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)
(...)
V - as execuções fiscais permanecerão suspensas até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento contra os corresponsáveis; (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)
(...)
§ 6º As disposições deste artigo aplicam-se, no que couber, às execuções fiscais e às execuções de ofício que se enquadrem no disposto nos incisos VII e VIII do caput do art. 114 da Constituição Federal. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)" (destaque ora inserido).
Essa aparente antinomia legal - que, num primeiro momento, afasta a suspensão da execução fiscal e mantém a competência da Justiça do Trabalho e, em outra passagem, determina a suspensão do feito e inclusão do crédito no quadro geral de credores - parece traduzir, em realidade, uma prerrogativa da Fazenda Pública em receber o pagamento de seu crédito pelo rito da execução fiscal ou optar pela habilitação nos autos da falência.
Aliás, essa faculdade da Fazenda Pública já era reconhecida pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça mesmo antes do início da vigência da Lei nº 14.112/2020, conforme entendimento das duas Turmas de Direito Público daquela Corte.
Por fim, quanto à aplicação da superveniente alteração da Lei n. 11.101/2005, vale mencionar o art. 43 do CPC, segundo o qual a competência determina-se "no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta", exceção demonstrada nos autos, no qual nítida a alteração de competência absoluta.
Ainda que assim não fosse, ao que consta, o Magistrado declarou a perda da exigibilidade também com relação aos sócios/administrador (fl. 468 do PDF). Sabese que a concessão da recuperação judicial e a decretação da quebra não afeta a competência material da Justiça do Trabalho, constitucionalmente instituída, para dirimir as controvérsias de natureza trabalhista entre os empregados e a sociedade recuperanda/ falida, sendo "possível o redirecionamento da execução ao patrimônio dos sócios ou integrantes do mesmo grupo econômico da empresa falida ou em recuperação judicial, persistindo competente para tanto a Justiça do Trabalho. Isso porque, nessa hipótese, eventual constrição não recairá sobre bens da massa falida, razão porque não resultará atingida a competência universal do juízo falimentar" (RR n. 108300-52.2008.5.02.0048, Relator: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, 7ª Turma, DEJT 14/12/2018).
O que, no âmbito da execução fiscal para cobrança de multa administrativa por infração aos preceitos protecionistas de Direito do Trabalho, o procedimento encontra fundamento no § 2° do art. 4° da Lei n° 6.830/80 e no art. 135, III, do CTN. Neste sentido, o entendimento desta Eg. 2ª Turma:
EMENTA: DÍVIDA ATIVA. EMPRESA EXCUTADA. RESPONSABILIDADE DO SÓCIO. O § 2° do art. 4° da Lei n° 6.830/80 estabelece que à Dívida Ativa da Fazenda Pública, de qualquer natureza, aplicam-se as
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
normas relativas à responsabilidade prevista na legislação tributária, civil e comercial. Assim, a responsabilidade prevista no art. 135 do CTN, é aplicável também à execução de dívida cuja natureza seja não tributária. (AP 8148-2005-002-10-00-3, Relatora Desembargadora ELKE DORIS JUST, DEJT de 11/10/2012).
Assim, diante todo o exposto, dou provimento ao recurso para, reconhecendo a competência desta Especializada, determinar o retorno dos autos à Vara de origem para que se prossiga na execução do crédito.
Ante o exposto, conheço do agravo de petição e, no mérito, dou provimento para, reconhecendo a competência desta Especializada, determinar o retorno dos autos à Vara de origem para que se prossiga na execução do crédito.
É o meu voto.
Por tais fundamentos, ACORDAM os Desembargadores desta Eg. Segunda Turma do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Região, à vista do contido na respectiva certidão de julgamento, aprovar o relatório, conhecer do agravo de petição e, no mérito, dar-lhes provimento, nos termos do voto do Desembargador Relator. Ementa aprovada.
Brasília (DF), 20 de abril de 2022. (data do julgamento)
Desembargador Mário Macedo Fernandes Caron Relator(a)
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
0000968-80.2020.5.10.0016 - ACÓRDÃO 2.ª TURMA/2022 (RECURSOORDINÁRIO TRABALHISTA)
RELATOR: JUIZ LUIZ HENRIQUE MARQUES DA ROCHA
RECORRENTE: G&E SERVIÇOS TERCEIRIZADOS LTDA. ADVOGADO: RAPHAEL FELÍCIO DE OLIVEIRA RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NO DISTRITO FEDERAL RECORRIDAS: AS MESMAS PARTES ORIGEM: 16.ª VARA DO TRABALHO DE BRASÍLIA/DF
EMENTA
DA PRELIMINAR DE INTERESSE DE AGIR. O ajuizamento daação civil pública, mercê do não atendimento das recomendaçõesimpostas no inquérito civil previamente ajuizado, evidencia o interesse de agir do Ministério Público do Trabalho. Preliminar rejeitada.
DO VALOR DA MULTA PELO DESCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE FAZER. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE.
A multa pelo descumprimento da obrigação de fazer imposta na sentença não pode ser tão irrisória que desestimule o não cumprimento, nem tão elevada em ordem a comprometer a estabilidade financeira da atividade empresarial,devendo guardar estreita relação com os postulados da proporcionalidade e razoabilidade. No caso, a fixação da multa na ordem de R$500,00 por aprendiz não contratado (182 ao todo) implicaria astreinte no importe de R$91.000,00, por dia, caso integralmente descumprida a obrigação de fazer, cabendo, por isso, sua redução a patamar de razoabilidade e proporcionalidade, no montante diário de R$250,00 por aprendiz não contratado.Recurso provido.
DA CONTRATAÇÃO DE MENOR APRENDIZ.DA AUSÊNCIA DE CUMPRIMENTO
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
DA COTA MÍNIMA POR AUSÊNCIA DE CANDIDATOS SUFICIENTES. Existindo norma jurídica prevendo a contratação de menor aprendiz, art. 428 e seguintes da CLT, compete ao empregador diligenciar para cumprir aludida determinação legal. Ademais, se a recorrente possui em seus quadros empregados com idades entre 18 e 24 anos, trabalhando em condições mais vantajosas que se poderia oferecer ao menor aprendiz, como alegado nas razões recursais,não se mostra impeditivo à ruptura de tais contratos de trabalho, com a redução do seu quadro organizacional, e a contratação de menores aprendizes para a atingir a cota determinada na sentença (cinco por cento,no mínimo, e quinze por cento, no máximo), considerando que acontratação de empregados naquela faixa etária não acata à legislação pertinente. Recurso desprovido.
DO VALOR DA INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO. O valor da indenização por dano moral coletivo não guarda relação com onúmero de empregados da empresa, como pretendido pela recorrente,porque a condenação possui dupla função: pedagógica e inibitória. Assim, o valor fixado em R$50.000,00 por dano moral coletivo não se mostra excessivo, razão pela qual o apelo não logra prosperar. Recurso desprovido.
DO TRABALHO. PRAZO DE 90 DIAS APÓS O TRÂNSITO EM JULGADO PARA CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE FAZER. TUTELA IMEDIATA. Não se mostra irrazoável o prazo de 90 dias após o trânsito em julgado, fixado na sentença recorrida, para o cumprimento de obrigação de fazer para promoção da contratação de menor aprendiz,sobretudo levando-se em consideração que a alegação de que a empresa já possui contratados com tal idade ainda que não atendam à obrigação legal, razão pela qual, o prazo deferido na r. sentença de primeiro grau mostra-se compatível com os ajustes necessários à observância legal. Recurso adesivo desprovido.
A nobre Juíza Jaeline Boso Portela de Santana Strobel, da MM. 16.ª Varado Trabalho de Brasília/DF, proferiu sentença às fls. 217/235, complementada pela de fls. 259/262, pormeio da qual julgou procedentes os pedidos formulados na inicial.
Inconformados, as partes recorrem da sentença.A ré apresentou recurso ordinário (fls. 266/284), buscando a reforma dasentença quanto ao deferimento dos pedidos vertidos na ação civil pública.
O Ministério Público do Trabalho, em recurso adesivo, requer exequibilidade imediata do comando sentencial que acolhera a ação civil pública, a qual determinara acontratação de menores aprendizes.
Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho,considerando que a virtual defesa do interesse público encontra-se manifestada nas razões e contrarrazões recursais.
É o relatório.
Os recursos interpostos pelas partes são tempestivos e regulares, inclusive quanto à representação processual da ré (fl. 115).
Houve adequado preparo, observado o recolhimento das custas e do depósito recursal (fls. 288 e 289).
De igual forma, são tempestivas e regulares as contrarrazões apresentadaspelas partes.
Assim, preenchidos os demais pressupostos processuais de admissibilidade recursal, conheço do recurso ordinário da ré, bem como daquele adesivamente ofertado pelo Ministério Público do Trabalho. Conheço, ainda, das contrarrazões apresentadas pelas partes.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Ressalta a recorrente que o Ministério Público do Trabalho não possui interesse de agir, uma vez que as providências e exigências requeridas na presente ação estavam sendo tomadas na órbita do inquérito civil 000189.2019.10.000/5, sobretudo levando-se em consideração omomento pandêmico em decorrência da Covid-19.
Ao exame.
Ora, se o MPT manejou a presente ação civil pública buscando efetividade do objeto do referido inquérito civil, por certo que o interesse de agir está presente,não havendo como se acolher a preliminar requerida pela ré.
Rejeito.
Alegando desproporcionalidade, pretende a ré que a multa imposta na sentença seja reduzida a valor razoável.
Examino.
A sentença recorrida condenou a ré ao pagamento de multa diária no valor de R$500,00 (quinhentos reais) por aprendiz não contratado. De acordo com a recorrente, o número de aprendizes necessários é de 182 menores.
Multiplicando-se o valor da multa aplicada pelo número dos menores aprendizes que a empresa terá que efetuar a contratação, alcança-se a cifra de R$91.000,00 (noventa e ummil reais), montante esse que, realmente, poderá acarretar comprometimento na estabilidade econômica da atividade empresarial, sobretudo porque terá que, em tese, promover a rescisão contratual de outros
empregados para atender a cota pretendida pelo MPT.
Com efeito, a multa pelo descumprimento da obrigação de fazer impostana r. sentença não pode ser tão irrisória que desestimule o não cumprimento, nem tão elevada em ordem a comprometer as finanças da atividade empresarial notadamente considerando o delicado momento econômico vivenciado atualmente em todo mundo. A par disso, tal coima reclama guardar estreita relação com os postulados da proporcionalidade e razoabilidade.
No caso, a fixação da multa na ordem de R$500,00 por aprendiz não contratado (182 ao todo) implicaria no valor de R$91.000,00, caso integralmente descumprida a astreinte obrigação de fazer, cabendo, por isso, sua redução a patamar de razoabilidade e proporcionalidade.
Logo, por entender desproporcional, considerando o número de menores aprendizes a serem contratados, dou parcial provimento ao recurso ordinário da reclamada, determinando que a multa diária seja limitada a R$250,00 (duzentos e cinquenta reais) por menor aprendiz não contratado.
Assinala a recorrente que possui convênio, há anos, com o instituto Fecomércio no DF e, buscando a contratação de menores aprendizes, somente logrou contratar apenas 2,porque não aparecem mais candidatos. Por outro lado, entende que houve má aplicação dos arts. 429 da CLT, 51 e 52 do Decreto nº 9.579/18, uma vez que é empresa prestadora de serviços que assiste órgãos públicos por meio de licitação, não sendo possível atender a cota de 182 empregados na qualidade de menores aprendizes. Ademais, ressalta que já possui empregados trabalhando para si na faixa etária de 18 a 24 anos, em condições mais benéficas que os contratos de aprendizagem. Também
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
destaca a impossibilidade de contratação de menor aprendiz para o cargo de vigilante, considerando as exigências legais que o cargo impõe.
Examino.
Por comungar integralmente com a fundamentação exposta na sentença recorrida, transcrevo-a, na íntegra, como motivação para negar provimento ao recurso ordinário da ré:
Garantias Fundamentais",aí inseridos os direitos individuais e coletivos e os direitos sociais, dentre eles o direitofundamental dos trabalhadores ao trabalho (art. 6º).
Por outro lado, a Lei Maior garantiu o direito de propriedade, mas o condicionou ao atendimento de sua função social, função esta inclui a promoção do bem-estar social, o fornecimento da profissionalização, bem como da busca do pleno emprego, conforme art. 170, da CF.
O Autor postula, em síntese, condenações decorrentes do fato da empresa ré não observar o limite mínimo legal quanto à cota de aprendizes, conforme os arts. 428 e seguintes da CLT. Junta aos autos cópia do Inquérito Civil instaurado no âmbito da Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região (000189.2019.10.000/5).
Em sua peça de defesa a parte ré afirma inicialmente que não cumpre a cota mínima demenores aprendizes pela ausência de candidatos para as vagas ofertadas e que algumas funções estariam excluídas do cômputo daquela. Com o fito de corroborar o por elaalegado colacionou contrato de convênio com o Instituto Fecomércio DF.
Analiso.
A Constituição Cidadã de 1988 estabeleceu dentre os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana e o valor social dotrabalho e da livre iniciativa (art. 1º, III e IV). Ainda, estabeleceu como objetivos fundantes a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem detodos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas dediscriminação (art. 3º, I e IV).
O Título II da Constituição da República trata "Dos Direitos e
Nessa toada, o direito à profissionalização dos aprendizes, encontra respaldo constitucional na doutrina da proteção integral e da prioridade absoluta da criança e do adolescente albergadas no art. 227 da CF/88 que dispõe, in verbis:
"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e, o direito ao jovem, com absoluta prioridade à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los asalvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."
A respeito do princípio da proteção integral leciona o Exmo. Juiz do Trabalho José Roberto Dantas Oliva em sua obra "O principio da proteção integral e o trabalho da criança e do adolescente no Brasil":
"Note-se que não é uma proteção qualquer que é assegurada à criança e ao adolescente pela Constituição Federal, pelo Estatuto já referido e por outras normas(inclusive convenções internacionais ratificadas) que conferem substância ao referido principio: é uma proteção rotulada INTEGRAL. A adjetivação, nahipótese, não é aleatória e nem despropositada.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Teve a finalidade de realçar que esse especial proteção, que tem caráter de absoluta prioridade, deve ser total, completa, cabal, envolvendo, como agentes de sua efetivação, família, sociedade e Estado.
Veja-se que referida proteção se espraia por todos os ramos do Direito.Restringindo-nos aos aspectos trabalhistas dela derivados, convém lembrar que o Direito do Trabalho, no seu todo, já e informado - e formado - a partir de pilares que se sustentam no Princípio da Proteção, uma vez que, "ao invés de inspirar-se num propósito de igualdade, responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a uma das partes: o trabalhador" (PLÁ RODRIGUEZ, 1997, p. 28) (O principio da proteção integral e o trabalho da criança e do adolescente no Brasil:com as alterações promovidas pela Lei 11.180, de 23 de setembro de 2005, queampliou o limite de idade nos contratos de aprendizagem para 24 anos/ São Paulo:Ltr, 2006 páginas 103/104).
Necessário se faz ressaltar que o parágrafo 1º do artigo 5º da CF impõe a aplicação imediata das normas definidoras dos direitos e das garantias fundamentais sendo que, a partir da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, compete não apenas ao Poder Público, mas também aos empregadores na seara trabalhista o dever de lhes darefetividade.
No âmbito da Consolidação das Leis do Trabalho o art. 429, com a redação que lhe foidada pela Lei nº 11.180/2005, dispõe:
"Art. 429. Os estabelecimentos de qualquer natureza são obrigados a empregar e matricular nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem número de aprendizes equivalente a 5% (cinco por cento), no mínimo, e 15% (quinze por cento), no máximo,
dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional. a) revogada; b) revogada;
§ 1º. A - O limite fixado neste artigo não se aplica quando o empregador forentidade sem fins lucrativos, que tenha por objetivo a educação profissional.
§ 1º. - As frações de unidade, no cálculo da percentagem de que trata o caput, darão lugar à admissão de um aprendiz."
Da leitura atenta do artigo 429 acima transcrito resta indene de dúvidas que "os estabelecimentos de qualquer natureza são obrigados a empregar e matricular nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem número de aprendizes equivalente a cinco por cento, no mínimo, e quinze por cento, no máximo, dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional".
Logo, todas as empresas, independentemente do ramo em que atuem, estão obrigadas a contratar aprendizes, em número proporcional à quantidade de trabalhadores ocupantes de funções que demandem formação profissional existente em cada estabelecimento.
Nos termos do art. 52 do Decreto nº 9.579/2018 (com o mesmo teor do artigo 10 dorevogado Decreto 5.598/05) devem ser incluídas na base de cálculo do número deaprendizes todas as funções que demandem formação profissional, independentemente de proibidas para menores de dezoito anos, devendo ser considerada para este fim a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), elaborada pelo
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
MTE.
Por oportuno e relevante, transcrevo os arts. 51 e 52 do atual decreto:
"Art. 51. Estabelecimentos de qualquer natureza são obrigados a empregar e matricular nos cursos oferecidos pelos serviços nacionais de aprendizagem o número de aprendizes equivalente a cinco por cento, no mínimo, e quinze porcento, no máximo, dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento cujas funções demandem formação profissional.
Art. 52. Para a definição das funções que demandem formação profissional,deverá ser considerada a Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho.
§ 1º Ficam excluídas da definição a que se refere o caput as funções que demandem, para o seu exercício, habilitação profissional de nível técnico ou superior, ou, ainda, as funções que estejam caracterizadas como cargos de direção,de gerência ou de confiança, nos termos do disposto no inciso II do caput e no parágrafo único do art. 62 e no § 2º do art. 224 da CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943.
§ 2º Deverão ser incluídas na base de cálculo todas as funções que demandem formação profissional, independentemente de serem proibidas para menores de dezoito anos." (grifei)
Excluem-se, assim, ao contrário do que sustenta a Ré, apenas as funções que exijam habilitação de nível técnico ou superior, bem como os cargos de direção, gerência ou de confiança.
Feitas tais considerações, no que concerne à alegação patronal de que não cumpre a cota legal porque
inexistem candidatos à vaga, é mister registrar que a ré se limitou a colacionar contrato de convênio com um único Instituto (id. ba70b80). Ocorre que, como é sabido, e foi muito bem lançado pelo Autor na réplica apresentada, há órgãos como a Coordenação de Semiliberdade e Meio Aberto da Secretaria de Estado de Justiça do Distrito Federal e a Subsecretaria De Assistência Social do Distrito Federal, as quais facilitam a contratação de jovens egressos do sistema socioeducativo ou em cumprimento de medidas socioeducativas, jovens em cumprimento de pena no sistemaprisional e jovens em situação de acolhimento institucional.
Embora a Ré tenha suscitado dificuldades na busca de candidatos interessados empreencher as vagas de aprendizes por ela oferecidas, não trouxe prova do esforço efetivo neste sentido, obrigação que lhe competia, por traduzir fato impeditivo ao direito do Autor (CPC/2015, art. 373, II, e CLT, art. 818).
Quanto aos motoristas, anoto que as atribuições de motorista inseremse entre as ocupações previstas na Classificação Brasileira de Ocupações, sob o código 7823-05.Desse modo, tal função inclui-se na base de cálculo da cota de aprendizes.
No que diz respeito aos vigilantes, registro que a exigência contida na Lei nº 7.102 quanto à necessidade de aprovação em curso de formação específica, não constitui óbice para a contratação de aprendizes para a atividade de vigilância, porquanto esta não se confunde com a habilitação profissional por meio de curso técnico de nível médio de que dispõe o mencionado Decreto nº 9.579/2018.
Com efeito, tem-se que a única restrição que se impõe aos aprendizes contratados para a função de vigilante
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diz respeito à observância da idade mínima de 21 anos, conforme prevê o inc. II do art. 16 da Lei nº 7.102/83, o que vai ao encontro da nova redação do art. 428 da CLT que ampliou a possibilidade de formalização do contrato de aprendizagem para jovens de até 24 anos.
Nesse sentido é o entendimento no âmbito do c. TST, conforme precedentes a seguir transcritos:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOBA ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI 13.467/2017 . CONTRATO DE APRENDIZAGEM. CRITÉRIO DE CÁLCULO PARA O NÚMERO DE APRENDIZES A SEREM CONTRATADOS. EMPRESA DE VIGILÂNCIA.POSSIBILIDADE DE INTEGRAÇÃO NA BASE DE CÁLCULO DA COTA DE APRENDIZAGEM. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, acolheui nteiramente os fundamentos da aclamada doutrina internacional da proteção integral e prioritária da criança, do adolescente e do jovem, inaugurando, no ordenamento jurídico brasileiro, um novo paradigma de tratamento a ser destinado ao ser humano que se encontra na peculiar condição de pessoa em desenvolvimento. Dentro desta nova cultura jurídica, o art. 7º, XXXIII, da CF/88 conferiu aos menores de 16 anos o direito fundamental ao não trabalho (com o fim de preservar o seu desenvolvimento biopsicossocial), salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 (quatorze) anos - em perfeita harmonização com o também direito fundamental à profissionalização (art. 227, caput ). Constata-se, assim, queo contrato de aprendizagem foi ressalvado pela própria Constituição (art. 7º,XXXIII; art. 227, § 3º, I), sendo tradicionalmente regulado pela CLT (arts. 428 a433). É, na verdade, contrato empregatício, com típicos direitos trabalhistas,embora regido com certas especificidades.
Segundo a lei, é pacto ajustado por escrito , pelo qual o empregador se compromete a assegurar ao maior de 14 anos emenor de 24 anos, inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, comprometendo-se o aprendiz a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação (art. 428, caput, CLT, segundo redação da Lein. 11.180/2005). Embora se trate de um pacto empregatício, no contrato de aprendizagem , a atividade laboral deve estar subordinada à dinâmica e aos fins pedagógicos, integrandose a um processo educativo mais abrangente e, sem dúvida, predominante. No caso dos autos, a dúvida paira precisamente sobre a necessidade ou não da formação técnico-profissional metódica para o exercício das profissões de vigilante, ao ponto de legitimar a contratação de aprendizes. Pela descrição contida na CBO, pode-se constatar que as atividades de vigilantes se mostram sujeitas a ensino metódico, devendo integrar a base de cálculo da cota da aprendizagem. Julgados desta Corte Superior. Está claro, desse modo, que os vigilantes devem compor a base de cálculo da cota de aprendizagem fixada pelo art. 429 da CLT, porém observado o parâmetro etário legal de profissionais (item IIdo com idade mínima de 21 anos artigo 16 da Lei nº 7.102/83). Agravo deinstrumento desprovido" (AIRR-1177-75.2016.5.06.0412, 3ª Turma, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, DEJT 30/08/2019). (grifei)
"AGRAVO DE INSTRUMENTO DA EMPRESA RÉ. LEI 13.467/2017. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. VIGILANTES. INCLUSÃO NA BASE DE CÁLCULO DA COTA DE APRENDIZAGEM. MULTA COMINATÓRIA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. TRANSCENDÊNCIA. O processamento do recurso de revista
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na vigênciada Lei 13.467/2017 exige que a causa ofereça transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica, a qual deve ser analisada de ofício e previamente pelo Relator (artigos 896-A, da CLT, 246 e 247do RITST). Quanto à determinação de inclusão dos vigilantes na base de cálculo de apuração da cota de aprendizes, o eg. TRT decidiu que, embora o art. 16, IV, da Lei nº 7.102/1983 estabeleça como requisito para o exercício da atividade de vigilância e segurança privada, a aprovação em curso de formação específica, realizado em estabelecimento autorizado, essa condição não se confunde com a habilitação profissional obtida por meio de curso técnico de nível médio, de que trata o Decreto n° 5.598/2005, não havendo, assim, empecilho à contratação de aprendizes para a atividade de vigilância, devendo apenas ser observada a idade de 21 anos. Quanto à multa fixada para o caso de descumprimento da obrigação de fazer , o eg. TRT decidiu pela necessidade de sua imposição, no valor de R$ 100,00 por dia, para cada aprendiz não contratado, até o limite de R$ 20.000,00. A causa não apresenta transcendência econômica, política, social ou econômica. Agravo de instrumento de que se conhece e a que se nega provimento, porque não reconhecida a transcendência. RECURSO DE REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. LEI 13.467/2017. DANO MORAL COLETIVO. AUSÊNCIA DE CONTRATAÇÃO DE APRENDIZES NA COTA ESTABELECIDA POR MEIODO ARTIGO 429 DA CLT. TRANSCENDÊNCIA. O art. 896-A, § 1º, II, da CLT prevê como indicação de transcendência política, entre outros, "o desrespeito dainstância recorrida à jurisprudência sumulada do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal". Como o dispositivo não é taxativo, deve
ser reconhecida a transcendência política quando há desrespeito à jurisprudência reiterada do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal, ainda que o entendimento não tenha sido objeto de súmula. A matéria diz respeito à exigibilidade da indenização por dano moral coletivo em face do não cumprimento da cota prevista no art. 429 da CLT para a contratação de aprendizes. O eg. Tribunal Regional decidiu ser indevida a indenização pleiteada, por entender que aconduta da reclamada apenas atingiu determinado número de trabalhadores, sem repercussão na coletividade. A causa apresenta transcendência política, uma vez que a decisão regional contraria a jurisprudência pacífica desta Corte Superior, que reconhece a conduta antijurídica da empresa em não cumprir a cota deaprendizagem prevista no art. 429 da CLT e, por conseguinte, o dano extrapatrimonial causado à coletividade, para justificar o deferimento da indenização por dano moral coletivo. De fato, a configuração do dano moral coletivo pressupõe que o ilícito (descumprimento pelo agente de determinadas normas trabalhista) e seus efeitos excedam a esfera individual e atinja o patrimônio da coletividade. Portanto, deve ser apurado se a conduta do empregador atingiu coletividade de empregados e a existência de prejuízo para um grupo ou classe de pessoas bem como a reprovação social de tal procedimento. No presente caso, o eg.TRT evidencia que a empresa ré não observava a cota de aprendizes prevista no art.429 da CLT. Trata-se de conduta antijurídica, que atinge a coletividade, com graude reprovabilidade diante da ordem jurídica e cujo dano não exige "prova" para autorizar o deferimento da indenização por dano moral coletivo. Transcendência política reconhecida, recurso de revista de que se conhece e
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a que se dá provimento" (ARR1900-11.2015.5.11.0018, 6ª Turma, Relatora Desembargadora Convocada Cilene Ferreira Amaro Santos, DEJT 06/09/2019). (grifei)
"RECURSO DE REVISTA. MENOR APRENDIZ. COTA MÍNIMA. SERVIÇO DE VIGILÂNCIA. Na linha da jurisprudência iterativa deste Tribunal Superior, é possível a contratação de jovens aprendizes na função de segurança privada, desde que observada a idade mínima de 21 anos (art. 16, II, da Lei nº 7.102/83), como assinalado no acórdão recorrido. Embora o art. 10, § 1º, do Decreto nº 5.598/2005 impeça a aprendizagem em funções que demandam habilitação em curso técnico ouem nível médio, esta Corte tem se posicionado no sentido de que o curso de formação específico à profissão de vigilante não se confunde com a habilitação profissional a que alude a lei e, portanto, não configura óbice à aprendizagem nessaárea. Precedentes. Recurso de revista de que não se conhece" (RR-41913.2010.5.11.0010, 1ª Turma, Relator Ministro Walmir Oliveira da Costa, DEJT 10/03/2017). (grifei)
Por comungar do mesmo entendimento, peço vênia para também transcrever e adotar asrazões expendidas pela Exma. Juiza Vanessa Reis Brisolla quando do julgamento dofeito 0000373-61.2018.5.10.0013:
"No que pertine à alegação de que o Estatuto do Desarmamento impossibilita aatividade pelo jovem menor de 25 anos, como bem ressaltado pelo Ministério Público, o art. 28 da Lei 10.826/2009 proíbe apenas a aquisição de arma de fogo por menor de 25 anos, mas não veda o porte na atividade de vigilante.
Lado outro, importante observar que o curso de formação mencionado na defesanão se confunde com
a habilitação profissional de nível técnico ou superior indicada no o § 1º do art. 52 do Decreto 9.579/2018 (antigo art. 10, § 1º, do Decreto 5.598/2008), pois essa habilitação é obtida por meio de curso técnico de nível médio. Ressalto que, para o exercício do cargo de vigilante exigese apenas o ensino médio completo, nos termos da Classificação Brasileira de Ocupações,inexistindo, portanto, o impedimento aventado pela defesa.
Destarte, é indene de dúvidas de que a ré não está desobrigada do cumprimento da cota de aprendizagem profissional, restando, assim, superadas as alegações constantes na defesa.
Ressalto, por derradeiro, também a possibilidade de se adotar, no âmbito da ré, a chamada "Aprendizagem Social", prevista atualmente pelo Decreto 9.579/2018,nos seguintes termos:
"Art. 66. O estabelecimento contratante cujas peculiaridades da atividade oudos locais de trabalho constituam embaraço à realização das aulas práticas,além de poder ministrá-las exclusivamente nas entidades qualificadas em formação técnico profissional, poderá requerer junto à unidade descentralizada do Ministério do Trabalho a assinatura de termo de compromisso para o cumprimento da cota em entidade concedente da experiência prática do aprendiz.
§ 1º Compete ao Ministério do Trabalho definir:
I - os setores da economia em que a aula prática poderá ser ministrada nas entidades concedentes; e
II - o processamento do pedido de assinatura de termo de compromisso.
§ 2º Para fins do disposto neste Capítulo, consideram-se entidades
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concedentes da experiência prática do aprendiz:
I - órgãos públicos;
II - organizações da sociedade civil, nos termos do disposto no art. 2º da Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014 ; e
III - unidades do sistema nacional de atendimento socioeducativo.
§ 3º Firmado o termo de compromisso com o Ministério do Trabalho, o estabelecimento contratante e a entidade qualificada por ele já contratada deverão firmar, conjuntamente, parceria com uma das entidades concedentes para a realização das aulas práticas.
§ 4º Compete à entidade qualificada o acompanhamento pedagógico das aulaspráticas.
§ 5º A seleção dos aprendizes será realizada a partir do cadastro público deemprego, disponível no sítio eletrônico Emprega Brasil, do Ministério do Trabalho, e deverá priorizar a inclusão de jovens e adolescentes em situação de vulnerabilidade ou risco social, tais como:
I - adolescentes egressos do sistema socioeducativo ou em cumprimento demedidas socioeducativas;
II - jovens em cumprimento de pena no sistema prisional;
III - jovens e adolescentes cujas famílias sejam beneficiárias de programas detransferência de renda;
IV - jovens e adolescentes em situação de acolhimento institucional;
V - jovens e adolescentes egressos do trabalho infantil;
VI - jovens e adolescentes com
deficiência;
VII - jovens e adolescentes matriculados em instituição de ensino da rede pública, em nível fundamental, médio regular ou médio técnico, incluída a modalidade de Educação de Jovens e Adultos; e
VIII - jovens desempregados e com ensino fundamental ou médio concluído em instituição de ensino da rede pública.
§ 6º Os percentuais a serem cumpridos na forma alternativa e no sistema regular deverão constar do termo de compromisso firmado com o Ministério do Trabalho, com vistas ao adimplemento integral da cota de aprendizagem,observados, em todos as hipóteses, os limites previstos na Seção IV do Capítulo IV do Título III da CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943, e a contratação do percentual mínimo no sistema regular."
Note-se que a alternativa concedida pelo Decreto visa, exatamente, possibilitar que os estabelecimentos, cujas peculiaridades da atividade ou dos locais de trabalho constituam embaraço à realização das aulas práticas, possam ministrá-las exclusivamente nas entidades qualificadas em formação técnico profissional. Trata-se de uma solução encontrada para superar os óbices ao cumprimento da cota para as empresas que possuam dificuldades em alocar aprendizes em seu próprio estabelecimento, seja por falta de ambiente propício para acolhê-los (atividades insalubres ou perigosas), seja porfalta de espaço físico.
Registro que a chamada "aprendizagem social" foi originalmente prevista no Decreto 8.740, de 04/05/2016".
Assim, as atividades de vigilantes se mostram sujeitas a ensino metódico,
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devendo integrar a base de cálculo da cota de aprendizagem.
Por fim, consigno que inexiste respaldo jurídico para a pretensão da ré de exclusão da função de servente base de cálculo do número de aprendizes, consoante notória jurisprudência do colendo Tribunal Superior do Trabalho abaixo transcrita:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELO SINDICATO RECLAMANTE. 1. NULIDADE DO JULGADO POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. DENEGADO SEGUIMENTO AO RECURSO DE REVISTA COM FUNDAMENTO NO ART. 896, § 1º-A, IV,DA CLT. INDICAÇÃO DO TRECHO DA DECISÃO RECORRIDA QUE CONSUBSTANCIA O PREQUESTIONAMENTO DA CONTROVÉRSIA OBJETO DO RECURSO DE REVISTA. Especificamente quanto à preliminar denulidade do julgado por negativa de prestação jurisdicional, o inciso IV do § 1º-Ado art. 896 da CLT, incluído pela Lei nº 13.467/2017, passou a prever ser ônus daparte, sob pena de não conhecimento, "transcrever na peça recursal, no caso desuscitar preliminar de nulidade de julgado por negativa de prestação jurisdicional, o trecho dos embargos declaratórios em que foi pedido o pronunciamento do tribunal sobre questão veiculada no recurso ordinário e o trecho da decisão regional que rejeitou os embargos quanto ao pedido, para cotejo e verificação, de plano, da ocorrência da omissão". No caso, nas razões de revista, o sindicato reclamante não cuidou de transcrever o trecho da petição dos embargos declaratórios no qual indicou os vícios do acórdão regional, tornando inviável o cotejo e a verificação daalegada omissão.
2. BASE DE CÁLCULO DA COTA DE APRENDIZES. O art.429 da CLT dispõe que os estabelecimentos de qualquer natureza são obrigados a
empregar e matricular nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem númerode aprendizes equivalente a 5% (cinco por cento), no mínimo, e 15% (quinze porcento), no máximo, dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento cujas funções demandem formação profissional. Nesse contexto, e ante as orientações que se extraem do Decreto nº 5.598/2005, é certo afirmar que apenas as funções que exigem habilitação de nível técnico ou superior, e cargos de direção, confiança ou gerência, além dos empregados que executem serviços sob o regime de trabalho temporário, são excluídos do cálculo do número de aprendizes a serem contratados.Desse modo, as funções de ajudante de obras e servente não estão inseridas nas exceções previstas no art. 10, § 1º, do Decreto nº 5.598/2005. Por conseguinte, não há razão para excluir da base de cálculo do número de aprendizes a serem contratados os empregados que exercem as referidas funções. Agravo de instrumento conhecido e não provido" (AIRR1309-66.2015.5.05.0034, 8ª Turma,Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 14/06/2019)
Sendo assim, por todo exposto, condeno a ré a manter em seu quadro de empregados em todos os seus estabelecimentos no Distrito Federal observado o contido nos dispositivos legais atinentes à aprendizagem (artigo 428 e seguintes da CLT) e legislação pertinente, número de aprendizes equivalente a cinco por cento, no mínimo e quinze por cento, no máximo, de seus empregados cujas funções, na forma da fundamentação, demandem formação profissional, dando prioridade à contratação de aprendizes entre 14 e 18 anos que estejam em situação de vulnerabilidade ou risco social,podendo a cota ser cumprida por meio da Aprendizagem Social, instituída pelo Decreto Presidencial
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nº 8.740, de 04 de maio de 2016, regulada atualmente pelo Decreto presidencial nº 9.579, de 22 de novembro de 2018, sob pena de multa diária no valor, individualmente de R$ 500,00 (quinhentos reais) por aprendiz não contratado, individualmente considerado, incidindo até o efetivo cumprimento da obrigação, e reversível ao Fundo Distrital dos Direitos da Criança e do Adolescente, ou, ainda, a projeto social de natureza similar, a ser indicada posteriormente pelo MPT.
Com o trânsito em julgado da sentença, a ré deverá ser intimada para, no prazo de 90 dias, cumprir a presente decisão. (fls. 219/231, destaques no original).
Acrescento à fundamentação supra, que a recorrente poderá valer-se deoutros institutos, que não só o Fecomércio/DF por ela já utilizado, a alcançar a cota imposta na sentença,cabendo citar, por exemplo, o Centro Salesiano do Adolescente Trabalhador (Cesam), tal como procedeuo Col. TST, conforme matéria disponibilizada em seu site:
Notícias do TST
TST amplia programa AdolescenteJovem Aprendiz
25/04/22 - O Tribunal Superior do Trabalho (TST) relançou e ampliou o programa Adolescente-Jovem Aprendiz, em cerimônia realizada, nesta segunda-feira (25). A iniciativa, em parceria com o Centro Salesiano do Adolescente Trabalhador (Cesam),prevê a contratação, com carteira assinada, mediante contrato de aprendizagem, de adolescentes a partir de 14 anos e jovens de até 24 anos que tenham matrícula regular narede pública de ensino do Distrito Federal."
Os dados atuais mostram um desemprego entre jovens de 18 a
24 anos acima de 20% no Brasil", destacou o presidente do TST, ministro Emmanoel Pereira. "Ao ampliar o programa, estamos cumprindo a função social do TST de oferecer a esse grupo a oportunidade de crescimento intelectual e pessoal, além de permitir que busquem novas oportunidades, agora sim com preparação para disputar uma vaga de emprego melhor".
O programa prevê jornada de trabalho de quatro horas diárias, e o turno contrário será dedicado à frequência regular das salas de aula. Uma vez por semana, haverá palestras,no próprio Cesam, sobre temas variados, como educação financeira e liderança juvenil.O objetivo da iniciativa é justamente a capacitação, por meio da atuação em unidades do TST e em gabinetes de ministros.
Segundo o ato, pelo menos 70% das vagas devem ser destinadas a estudantes com renda familiar per capita de até dois salários mínimos. Também prevê a destinação de 10% das vagas para pessoas negras, 10% para jovens que cumpriram ou estejam cumprindo medidas socioeducativas e 5% a adolescentes com deficiência.
Brenda de Souza Rodrigues chegou ao TST em 2013, com apenas 15 anos. Tímida, ela conta que não conseguiu falar uma palavra nos primeiros 15 dias de trabalho no gabinete do ministro Lelio Bentes Corrêa. Com o passar do tempo, conseguiu se soltar e aprendeu muito nos dois anos que passou no tribunal. "Eu e minha família morávamos de aluguel na Estrutural. Não tínhamos expectativa de mudar de vida, mas, a partir do momento em que entrei no programa, passei a sonhar, e hoje eu vejo que
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muitos dos meus sonhos se tornaram realidade, como fazer a faculdade de arquitetura", relatou.
Com 15 anos, Cláudio Santos começou a trabalhar na Coordenadoria de Rádio e TV (CRTV). Curioso, foi aprendendo as particularidades do trabalho da comunicação e resolveu, ao concluir seu período de aprendizagem, fazer um curso técnico na área de audiovisual. Tempos depois, voltou a atuar no tribunal, dessa vez como prestador de serviços, acompanhando os julgamentos das Turmas.
"Até entrar aqui no TST, eu não imaginava ter um futuro, uma profissão e minha casa própria. Tudo isso eu consegui por conta dessa oportunidade de estudar e me qualificar", destacou, ao contar que conseguiu uma bolsa de estudos e já concluiu o curso de Direito.
"É um momento em que a juventude está precisando de oportunidade, e o TST vem, mais uma vez, dar chance a ela de ter a experiência do primeiro emprego formal, aliada ao ensino regular na escola. O Tribunal é um exemplo para os demais órgãos", enfatizou Tatiana Furtado, gerente socioeducativa e pastoral do Cesam.
De acordo com o ministro Lelio Bentes Corrêa, o programa Adolescente-Jovem Aprendiz coloca o TST na vanguarda das instituições públicas brasileiras. "O que se faz dentro desse programa é política pública que permite que esses jovens reconquistem o direito de sonhar", finalizou. (https://www. tst.jus.br/web/guest/-/tst-ampliaprogramaadolescente-jovemaprendiz).
Desse modo, a singela alegação da recorrente de que não logra contratação de menor aprendiz não merece acolhida.
A recorrente também poderá socorrerse da sugestão levada a efeito na exordial, firmando convênio com a COORDENAÇÃO DE SEMILIBERDADE E MEIO ABERTO da Secretaria de Estado de Justiça do Distrito Federal em ordem a reintroduzir no serviço terceirizado de órgãos públicos os menores infratores que estão em fase de reabilitação, bem como com a SUBSECRETARIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DO DISTRITO FEDERAL em ordem a alcançar a cota de menores aprendizes.
Por fim, para que não se alegue omissão, importante ressaltar que a declaração de que a recorrente possui em seus quadros empregados com idades entre 18 e 24 anos, trabalhando em condições mais vantajosas que se poderia ofertar ao menor aprendiz, não se mostra impeditivo à ruptura de tais contratos de trabalho, com a redução do seu quadro organizacional, e a contratação de menores aprendizes para a atingir a cota determinada na sentença (cinco por cento, no mínimo, e quinze por cento, no máximo), considerando que a contratação de empregados naquela faixa etária não atende à legislação de regência.
Logo, nego provimento ao recurso ordinário.
Amparando-se em precedente do Col. TST, a sentença acolhera o pedido de indenização por dano moral coletivo, ressaltando na fração de interesse o seguinte:
Assim, considerando a gravidade da conduta praticada pela ré, a extensão do dano no âmbito da coletividade e a função preventivo-pedagógica da medida, com fulcro nos artigos 5º, incisos V e X e 129, incisos III, da Constituição da República; 6º, VI e VII, 90, 110 e 117 do CDC e 1º da Lei nº 7.347/85, bem com fundamento nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, julgo procedente
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
o pedido de indenização por dano moral coletivo que ora arbitro no importe de R$50.000,00 (cinquenta mil reais), valor que será revertido ao Fundo Distrital dos Direitos da Criança e do Adolescente ou a outro fundo compatível com a finalidade deste, em conformidade com o disposto no art. 5º, § 6º e art. 13 da Lei nº 7.347/85, ou, ainda, destinada a instituição pública ou privada de interesse público ou social, a projeto social ou convertida em doação de bens materiais a uma instituição de caridade, a ser indicada oportunamente pelo Ministério Publico do Trabalho. (fl. 234).
Em suas razões recursais, a recorrente apresenta julgados em que empresa com mais de 570 mil empregados é condenada a indenização por dano moral coletivo no valor de R$50.000,00, bem como do Eg. Regional mantendo a condenação em dano moral coletivo no patamar de R$50.000,00 para empresa que possuía 6 mil empregados, montante esse muito superior ao número de empregados da ré. Relata ser empresa do ramo de terceirização e que vem passando por severas dificuldades em meio à crise que vem assolando o país. Diante disso, requer a redução do valor da condenação em patamar razoável e proporcional ao quanto lhe for possível pagar.
Examino.
A argumentação da demandada não prospera, porquanto não é o número de empregados que determina o valor da condenação, mas sim o efeito que ela produz. Ainda e, sobretudo, os efeitos pedagógico e inibitório em ordem a evitar-se nova lesão à ordem jurídica preexistente.
Com efeito, o valor da indenização por dano moral coletivo não guarda relação com o número de empregados da empresa, como pretendido pela recorrente, porque a condenação possui dupla função: pedagógica e inibitória. Assim, o valor fixado em R$50.000,00 por dano moral coletivo não se mostra excessivo, razão pela qual, o apelo não logra prosperar.
Logo, nego provimento ao recurso ordinário.
DO
DA
Sobre o tema objeto do inconformismo adesivo, assim se pronunciara a sentença recorrida:
Com o trânsito em julgado da sentença, a ré deverá ser intimada para, no prazo de 90 dias, cumprir a presente decisão.
Conforme se observa na sentença, constou expressamente na respectiva fundamentação o seguinte: "Com o trânsito em julgado da sentença, a ré deverá ser intimada para, no prazo de 90 dias, cumprir a presente decisão". Como se observa não houve deferimento de tutela de urgência na sentença.
Assim, presto esclarecimentos para fazer constar que, considerando a controvérsia da questão debatida nos autos e o perigo de irreversibilidade do provimento antecipado, indefiro o pedido de antecipação dos efeitos da tutela. A decisão deverá ser cumprida nos moldes do quanto constou no comando sentencial transcrito acima. (fls. 258-259).
Em suas razões recursais, insiste o MPT na exequibilidade imediata da obrigação de fazer imposta na sentença, pois entende que o prazo de 90 dias após o trânsito em julgado desvela-se por demais prolongado.
Examino.
No recurso da ré, assentei o seguinte: ... a recorrente possui em seus
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
quadros empregados com idades entre 18 e 24 anos, trabalhando em condições mais vantajosas que se poderia dar ao menor aprendiz, não se mostra impeditivo à ruptura de tais contratos de trabalho, com a redução do seu quadro organizacional, e a contratação de menores aprendizes para a atingir a cota determinada na sentença (cinco por cento, no mínimo, e quinze por cento, no máximo), considerando que a contratação de empregados naquela faixa etária não atende à legislação pertinente.
Assim, mostra-se razoável o prazo de 90 dias fixado na r. sentença de primeiro grau para a empresa adequar-se à legislação frente à decisão judicial.
Nego provimento ao recurso adesivo
Pelo exposto, conheço dos recursos ordinário e adesivo e, no mérito, dou parcial provimento ao recurso da reclamada e nego provimento ao recurso adesivo do MPT, nos termos da fundamentação.
Por tais fundamentos, ACORDAM os integrantes da Segunda Turma do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Região, conforme certidão de julgamento, decidir, por unanimidade, aprovar o relatório, conhecer dos recursos ordinário e adesivo, e, no mérito, dar parcial provimento ao recurso da reclamada e negar provimento ao recurso adesivo do MPT, nos termos do voto do Juiz Relator, com ressalvas do Juiz Convocado Gilberto Augusto Leitão Martins e da Desembargadora Maria Regina Machado Guimarães. Ementa aprovada.
Brasília (DF), sala de sessões, 25 de maio de 2022.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
0000370-06.2022.5.10.0001 - AGRAVO DE PETIÇÃO (1004)
RELATOR(A): JUIZ CONVOCADO ALEXANDRE DE AZEVEDO SILVA AGRAVANTE: CREUSA DE OLIVEIRA ADVOGADO: FELIPE LOURENCO MELLO SILVA AGRAVADO: COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO CONAB ADVOGADO: DANIEL IVO ODON ADVOGADO: ALESSANDRA ALMEIDA BRITO ADVOGADO: JORGE MARTINS DOS SANTOS ORIGEM:3ª VARA DO TRABALHO DE BRASÍLIA/DF(JUIZ FRANCISCO LUCIANO DE AZEVEDO FROTA)
EMENTA AGRAVO DE PETIÇÃO DA EXEQUENTE. TÍTULO JUDICIAL FIRMADO EM SENTENÇA DE NATUREZA COLETIVA.PROCESSAMENTO CONCOMITANTE DE EXECUÇÕES COLETIVA E
INDIVIDUAL REFERENTES AO MESMO TÍTULO EXECUTIVO. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE OPÇÃO DA CREDORA POR QUAL MODALIDADE EXECUTIVA MELHOR ATENDE AOS SEUS INTERESSES. PROVIDÊNCIA QUE COMPETE À PARTE E NÃO DEVE SER PRESUMIDA PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO. INEQUÍVOCO RISCO DE PAGAMENTO EM DUPLICIDADE DO MESMO CRÉDITO. POSSIBILIDADE DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA QUE DEVE SER OBSTADA NA ORIGEM. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO INDIVIDUAL MANTIDA. Em conformidade com os arts. 97 e 98, ambos do Código de Defesa do Consumidor - CDC, o credor de sentença coletiva dispõe,em tese, de duas modalidades executivas para a satisfação de seu direito: a execução individual, interposta diretamente pelo interessado, seja vítima ou sucessor, incumbindo-lhe a prova do interesse (titularidade do direitolesado conforme reconhecido na sentença de mérito) e os prejuízos que efetivamente sofreu; e a execução coletiva, promovida
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
pelos legitimados elencados no art. 82 do CDC, que tem lugar quando já houver fixação emsentença de liquidação do valor cabível a cada substituído 2. Tal legitimidade, de acordo com a jurisprudência, é concorrente e não subsidiária, de modo que cabe ao credor optar por qual das modalidades executivas o seu direito será melhor e mais eficazmente defendido. Todavia, em que pese os substituídos na execução coletiva detenham o direito de optar pelo prosseguimento da execução individual, em razão do princípio da integral liberdade de adesão, mister se faz que ele exteriorize,de forma clara e transparente, tal opção nos autos, desistindo da execução coletiva ou renunciando ao crédito objeto de cobrança em seu nome pelo ente sindical, na condição de substituto processual, como lhe impõe, por força da aplicação analógica, o art. 104 do CDC. 3. Essa opção éobrigação imposta em lei à parte credora, não cabendo ao juízo, diante da ausência clara e expressa de tal opção, presumir desistência de modalidade executiva em curso ou mesmo renúncia ao crédito coletivo,para priorizar a persistência da execução individual ajuizada em duplicidade de propósitos. 4. Verificado que a exequente é beneficiária de coisa julgada produzida tanto na ação coletiva, quanto na ação individual,ambas em fase de cumprimento de sentença e execução do julgado, deve tão somente ser-lhe garantida a pretensão executória em relação a uma delas, evitando-se o cumprimento da obrigação de pagar quantia certa por duas oportunidades. Precedentes da jurisprudência. 5. Não havendo, no caso dos autos, pedido de renúncia na execução coletiva, que se encontra em curso e com estágio mais avançado, há que se extinguir a presente pretensão executória individualizada, evitando-se a possibilidade de enriquecimento sem causa da exequente e todos os demais transtornos em detrimento da parte executada, como a necessidade de garantir duplamente a mesma execução para poder impugnar as duas modalidades executivas em andamento simultâneo, com desperdício de energia e duplicidade de medidas processuais na defesa de seus interesses. Agravo de petição conhecido e desprovido.
O Excelentíssimo Juiz FRANCISCO LUCIANO DE AZEVEDO FROTA, titular da 3ª Vara do Trabalho de Brasília/DF, nos autos da execução individual movida por CREUSA DE OLIVEIRA em desfavor de COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO, proferiu sentença às fls. 374/376, por meio da qual acolheu parcialmente a impugnação(CONAB) apresentada pela executada, julgando extinta a ação de execução, sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, IV do CPC e 876 da CLT.
Inconformada, a exequente interpôs agravo de petição às fls. 380/388.
A executada apresentou contraminuta ao agravo de petição da exequente às fls. 391/396.
Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho, nos termos do artigo 102 do Regimento Interno deste Regional.
É, em síntese, o relatório.
O agravo de petição interposto pela exequente é regular e tempestivo.
Presentes os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade,conheço do agravo de petição interposto, bem como da contraminuta apresentada.
2.1.
O magistrado sentenciante acolheu parcialmente a impugnação apresentada pela executada, julgando extinta a presente ação de execução, assim fundamentando:
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
"[...]
Trata de ação individual de execução de sentença proferida nos autos da ação coletiva RTO rd-0029800-57.2009.5.10.0001, na qual já houve liquidação da sentença, inclusive com a apuração devida à ora exequente, conforme se verifica dos documentos juntados aos autos.
Intimada para se manifestar quanto aos cálculos, nos termos do art. 879, §2º, da CLT, a executada alega que a exequente consta do rol de substituídos constante da ação principal, na qual já foi iniciada a liquidação e instaurada a execução.
Alega prevenção da 1ª Vara do Trabalho de Brasília, que julgou a ação principal e prossegue com a execução coletiva, litispendência, prescrição e inépcia da inicial.
No mérito, insurge-se quanto aos cálculos, ao fundamento de que a exequente apenas trasladou o valor apurado nos autos da ação coletiva, sem especificar os parâmetros contábeis que serviram de base para a liquidação.
Pois bem.
É incontroverso que a execução do título executivo encontra-se tramitando nos autos da Ação Civil Pública 29800-57.2009.5.10.00001.
Não há prova de que a exequente tenha requerido sua exclusão da execução processada nos autos da ação coletiva a possibilitar o desmembramento da execução, na forma pretendida. Ao contrário, o nome da exequente consta do rol de substituídos contemplados nos cálculos homologados no processo principal.
Primeiramente, esclarece-se que é inaplicável à espécie o disposto no art. 104 do CDC, tendo em vista que se trata de ação de execução e não de conhecimento.
Dispõe o art. 104 do CDC, verbis:
"As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva."
De fato, tratando-se de execução de título judicial, não há que se falar em litispendência ou efeitos da coisa julgada, institutos processuais específicos do processo de conhecimento.
As execuções das decisões proferidas em ações coletivas são regidas pelo art. 98 do CDC, que assim dispõe:
"Art. 98. A execução poderá ser coletiva, sendo promovida pelos legitimados de que trata o art. 82, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções.
§ 1° A execução coletiva far-se-á com base em certidão das sentenças de liquidação, da qual deverá constar a ocorrência ou não do trânsito em julgado.
§ 2° É competente para a execução o juízo:
I - da liquidação da sentença ou da ação condenatória, no caso de execução individual;
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
II - da ação condenatória, quando coletiva a execução."
Na hipótese dos autos, o ajuizamento da presente ação de execução individual se deu posteriormente à liquidação nos autos da ação coletiva, inclusive com a homologação dos cálculos, a individualização do valor do crédito da exequente e a respectiva instauração da execução.
Assim, uma vez demonstrada a inaplicabilidade do art. 104 do CDC à hipótese dos autos, a fim de evitar o processamento concomitante de duas execução do mesmo crédito, uma nos autos da ação coletiva e outra individual, impõe-se a extinção da presente execução, sob pena de risco de pagamento em duplicidade.
Registre-se que é inaplicável o disposto no art. 139 do CPC à hipótese dos autos, tendo em vista que a desistência é ato pessoal que deve ser formulado pelo próprio exequente nos autos da ação coletiva.
Esclarece-se, ainda, que não se está analisando nesta oportunidade a competência para o processamento da execução individual, questão já dirimida por meio da decisão id -ecaca43, mas a impossibilidade de prosseguimento concomitante de duas execuções referentes ao mesmo título executivo.
Acolho, pois, parcialmente a impugnação apresentada pela executada e julgo extinta a presente ação de execução, sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, IV do CPC e 876 da CLT."
Inconformada, a exequente recorre. Em suas razões recursais, a agravante pugna seja reformada a decisão agravada para determinar o seguimento do cumprimento de sentença individual, com a homologação dos cálculos apresentados pela exequente, aduzindo não haver óbice "[...] à propositura de ação individual de execução sentença
coletiva, mesmo que após homologação, como neste caso, uma vez que, pela aplicação do princípio da integral liberdade de adesão e da máxima efetividade da tutela coletiva, o beneficiário pode optar pela forma de prosseguimento da ação." (fl. 286)
Analiso. Como bem decidido na origem, o tratamento jurídico da matéria há de ser realizado à luz dos arts. 97 e 98 do CDC, que dispõem:
"Art. 97. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82".
"Art. 98. A execução poderá ser coletiva, sendo promovida pelos legitimados de que trata o art. 82, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções. (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)".
Depreende-se dos respectivos dispositivos do CDC a possibilidade de duas espécies de execução das sentenças decorrentes das ações coletivas que mencionam: a execução individual, interposta diretamente pelo interessado, seja vítima ou sucessor, incumbindo-lhe a prova do interesse (titularidade do direito lesado conforme reconhecido na sentença de mérito) e os prejuízos que efetivamente sofreu; e a execução coletiva, promovida pelos legitimados elencados no art. 82 do CDC, que tem lugar quando já houver fixação em sentença de liquidação do valor cabível a cada substituído.
A referida legitimidade, conforme jurisprudência dominante, é concorrente, e não subsidiária, de modo que cabe ao credor individual optar por qual das modalidades executivas o seu direito será melhor e mais eficazmente defendido:
"RECURSO DE REVISTA REGIDORev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
PELO CPC/2015 E PELA INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 40/2016 DO TST. EXECUÇÃO. AÇÃO COLETIVA AJUIZADA POR SINDICATO NA CONDIÇÃO DE SUBSTITUTO PROCESSUAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO INDIVIDUAL PROPOSTA PELO EMPREGADO. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL. EXISTÊNCIA DE DECISÃO INTERLOCUTÓRIA NA AÇÃO COLETIVA COM DETERMINAÇÃO EXPRESSA DE QUE A LIQUIDAÇÃO E A EXECUÇÃO SERÃO FEITAS EXCLUSIVAMENTE DE FORMA COLETIVA PELO SINDICATO. DECISÃO NÃO OPONÍVEL A TERCEIROS. No caso, o Regional manteve a decisão pela qual se indeferiu a petição inicial, ao fundamento de que, "havendo determinação expressa no sentido de que 'a liquidação e a execução serão feitas exclusivamente de forma coletiva, pelo sindicato assistente, e não individualmente', resta afastada a faculdade conferida ao credor pelo CDC (arts. 97, 98, 100 e 104) de fazê-lo de forma individualizada". De início, é importante destacar que, conforme a jurisprudência prevalecente nesta Corte superior, o empregado, individualmente, tem legitimidade para a propositura de ação executiva para liquidação dos valores deferidos em ação coletiva, desde que comprove que fazia parte do rol de substituídos apresentado pelo sindicato. Com efeito, entendese que a decisão proferida em ação coletiva é genérica e que os créditos serão individualizados e apurados por meio de liquidação de sentença em ação de execução individual, proposta pelo empregado substituído ou nos próprios autos da ação coletiva mediante iniciativa do sindicato autor. Precedentes do TST e do próprio STF. Com efeito, não há óbice para o ajuizamento de ação executiva, de forma individual, pelo trabalhador substituído em ação coletiva pelo sindicato profissional, relativa aos créditos deferidos na referida ação, porquanto a legitimidade do substituído é concorrente, e não subsidiária
Nesse ponto, destaca-se que , na ação coletiva, o sindicato postula direito alheio em nome próprio, sendo assim, os trabalhadores substituídos, ainda que interessados e diretamente beneficiados pelo eventual julgamento de procedência da demanda, não compõem nenhum dos polos da demanda. Resulta, portanto, que a mera existência de decisão interlocutória, determinando que a execução será feita exclusivamente pela via coletiva, não vincula o reclamante ou qualquer um dos substituídos, sob pena de violação do disposto no artigo 506 do CPC de 2015. O entendimento regional, no sentido da impossibilidade de propositura de ação individual de cumprimento de decisão proferida em ação coletiva, ante a existência de mera decisão interlocutória limitando a execução somente à via coletiva, está em desacordo não apenas com os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor (artigos 97 e 98 da referida Lei nº 8.078/90) que disciplinam, no direito processual brasileiro, as ações coletivas ou metaindividuais (subsidiariamente aplicáveis à esfera trabalhista por força dos artigos 110 e 117 do mesmo Código e 1º e 21 da Lei 7.347/85 - Lei da Ação Civil Pública, que instituíram, no Direito brasileiro, um verdadeiro microssistema de tutela dos direitos ou interesses coletivos ) mas, principalmente, com o princípio da inafastabilidade da jurisdição, insculpido no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Por fim, essa mesma questão já foi enfrentada e dirimida definitivamente pelo próprio Plenário do Supremo Tribunal Federal em repercussão geral (RE 193.503/ SP, Relator para o Acórdão Ministro Joaquim Barbosa e RE 883.642/ALTema 823 -, Relator Ministro Ricardo Lewandowski), quando se firmou o entendimento de que "os sindicatos possuem ampla legitimidade extraordinária para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da
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categoria que representam, inclusive nas liquidações e execuções de "mas sentença, independentemente de autorização dos substituídos sem, em qualquer momento, se proclamar ser essa uma legitimidade exclusiva das entidades sindicais, reconhecendose, ao contrário, a legitimidade concorrente dos titulares dos direitos vindicados em Juízo nestes processos tanto para ajuizarem ações individuais com o mesmo objeto quanto para a promoção da respectiva execução de seus direitos no próprio âmbito dessas ações coletivas. Foi exatamente isso que também proclamou , de forma específica , o STF ao julgar o ARE 925.740 AgR, sob a relatoria do Ministro Celso de Mello, DJ 1/2/2016, quando ali se ementou que "o fato de tratar-se de ação coletiva não representa obstáculo para que o interessado, favorecido pela sentença coletiva, promova, ele próprio, desde que integrante do grupo ou categoria processualmente substituídos pela parte autora, a execução individual desse mesmo julgado". Recurso de revista conhecido e provido" (TST, 2ª Turma, RR nº 1031062.2019.5.03.0108, Relator Ministro José Roberto Freire Pimenta, in DEJT 02/08/2021).(Destacou-se).
Não obstante tal possibilidade de legitimidade concorrente, o certo é que a lei não autoriza a que a parte credora se utilize, simultaneamente, das duas modalidades executivas para buscar a satisfação do mesmo e idêntico bem da vida assegurado na sentença coletiva, sob pena de receber em duplicidade o valor que lhe é devido, em prestígio descabido à írrita figura do enriquecimento sem causa.
É disso que tratam os presentes autos, pois a despeito da impugnação ofertada na presente execução individual, a credora, mesmo ciente da objeção e do risco de tentar receber em duplicidade os valores constantes do título judicial firmado na seara coletiva, comodamente se limitou a defender a possibilidade de sua legitimidade concorrente, omitindo-se de fazer a necessária
e indispensável opção pela via executiva que melhor atende aos seus interesses.
Portanto, em que pese os substituídos na execução coletiva tenham o direito de optar pelo prosseguimento da execução individual, com a consequente desistência da execução no processo coletivo, em razão do princípio da integral liberdade de adesão, mister se faz que tal opção, repita-se, seja claramente realizada nos autos, de forma transparente e inequívoca, até mesmo em respeito aos princípios da boa-fé objetiva e da cooperação.
E com a devida vênia dos entendimentos em contrário, corroboro com a compreensão externada na origem de que não cabe ao julgador presumir desistência de modalidade executiva, muito menos de renúncia a crédito em execução coletiva que está em curso.
Ao que penso, tal opção, à luz do art. 104 do CDC, de aplicação analógica, há de ser feita pelo credor, de forma expressa, e não pelo Juízo, que não é senhor das conveniências alheias:
"Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva."(Destacou-se).
Voltados os olhos ao caso concreto em análise, constata-se que a Agravante tem plena ciência da execução coletiva que está em curso, promovida pelo sindicato na condição de seu substituto processual, com liquidação já concluída e com atos executórios em andamento. Tal ciência é inequívoca, pois a própria petição inicial da presente execução individual se apropria daqueles cálculos de liquidação da execução coletiva para quantificar o valor do crédito líquido, certo e exigível.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Mesmo ciente de sua condição de beneficiária da execução coletiva em curso, movida pelo sindicato, a agravante não requereu a desistência da referida execução coletiva movida em seu nome nem, muito menos, renunciou ao crédito ali objeto de execução. Optou por ajuizar uma outra execução de natureza individual, para cobrar o mesmo valor oriundo do título genérico da sentença coletiva, sem explicitar qualquer opção por esta segunda via e sem requerer ao juízo da execução coletiva a sua exclusão do rol dos beneficiários substituídos.
Veja-se que mesmo diante da impugnação apresentada pela executada, a Agravante nada providenciou em relação a tal opção por uma das duas modalidades executivas, insistindo na manutenção de ambas, a pretexto de argumentação de legitimidade concorrente, aspecto que não está no âmago da discussão travada.
A questão dos autos, repita-se, não é sobre a possibilidade de a Agravante intentar execução individual para obter o seu crédito oriundo de sentença genérica de natureza coletiva, mas, sim, de manter o prosseguimento concomitante de duas execuções referentes ao mesmo título executivo, mormente porque não comprovada a exclusão da exequente da execução processada nos autos da ação coletiva nº 29800-57.2009.5.10.00001, de modo a possibilitar o desmembramento da execução.
Essa cômoda estratégia da credora de querer receber o crédito que sair primeiro, compensando, se for o caso, eventuais valores depois, não tem albergue na lei e cria, para o devedor, enorme prejuízo econômico e jurídico, na medida em que este terá que garantir duplamente a mesma execução para poder impugnar as duas modalidades executivas em andamento simultâneo, com desperdício de energia e duplicidade de medidas processuais na defesa de seus interesses, mostrando-se inegáveis os riscos de pagamentos em duplicidade ou mesmo de decisões conflitantes e contraditórias em relação a temas típicos de embargos à execução, como são exemplo a prescrição intercorrente ou mesmo a ausência da condição da exequente de ser beneficiária da
Em suma , essa tentativa de receber em duplicidade o mesmo valor, sem que a credora adote a providência que lhe cabe para evitar o seu próprio enriquecimento sem causa, definindo de forma clara e expressa qual a modalidade executiva (individual ou coletiva) que melhor atende aos seus interesses, é que conduziu à extinção da presente execução individual, e não merece corrigenda, conforme se extrai da melhor orientação jurisprudencial:
"ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO INDIVIDUAL DE AÇÃO COLETIVA. RENÚNCIA AO DIREITO NA EXECUÇÃO COLETIVA. LITISPENDÊNCIA. NÃO VERIFICAÇÃO NO CASO CONCRETO. COMPENSAÇÃO. SÚMULAS 7/STJ E 282/STF.
Trata-se, na origem, de Embargos à Execução propostos pela parte recorrente, que pugnava pelo acolhimento de litispendência entre a ação coletiva e a ação individual, a qual, em fase de cumprimento de sentença, realizava a execução das diferenças remuneratórias relacionadas ao percentual de 3,17%, bem como o reconhecimento da possibilidade da compensação dos valores devidos com aqueles pagos administrativamente.
Pela leitura dos autos, os Embargos à Execução foram propostos em razão de os servidores substituídos terem requerido individualmente em litisconsórcio a execução de coisa julgada produzida na Ação Coletiva 99.0063635-0 da 30ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, alegando existir execução coletiva proposta pelo sindicato.
Ocorre que consta nos autos que as partes recorridas teriam requerido sua exclusão de qualquer pretensão executória na Ação Coletiva que tramitava perante a 30ª VF/RJ. Preliminarmente, não se pode conhecer da irresignação contra a
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ofensa aos arts. 219 e 301, §§ 1º, 2º e 3º, do CPC/1973 e do artigo 104 do CDC, pois os referidos dispositivos legais não foram analisados pela instância de origem. Ausente, portanto, o indispensável requisito do prequestionamento, o que atrai, por analogia, o óbice da Súmula 282/STF: "É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada".
Existe no sistema jurídico brasileiro um microssistema de solução coletiva das controvérsias (processos coletivos) como forma de dar resposta mais célere e uniforme em relação às demandas repetitivas e aquelas que interferem na esfera de interesses de grande número de jurisdicionados.
O direito processual brasileiro admite a coexistência de ação coletiva e ação individual que postulem o reconhecimento de um mesmo direito, inexistindo litispendência entre elas. Nos termos do art. 104 do Código de Defesa do Consumidor, aquele que ajuizou ação individual pode aproveitar eventuais benefícios resultantes da coisa julgada a ser formada na demanda coletiva, desde que postule a suspensão daquela, no prazo de 30 (trinta) dias contados da ciência da ação coletiva, até o julgamento do litígio de massa. Pode ser retomada a tal tramitação no caso de a sentença coletiva ser pela improcedência do pedido, ou ser (o feito individual) julgada extinta, sem resolução de mérito, por perda de interesse (utilidade), se o decisum coletivo for pela procedência do pleito.
Para que o pedido de suspensão surta os aludidos efeitos, é necessário que ele seja apresentado antes de proferida a sentença meritória no processo individual e, sobretudo, antes de transitada em julgado a sentença proferida na ação coletiva (AgInt na PET nos EREsp 1.405.424/
SC, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, julgado em 26/10 /2016, DJe 29/11/2016).
Há relação de conexão entre a ação coletiva e a ação individual que trate do mesmo objeto e causa de pedir, como bem afirmado pelo §1º, art. 103 do CDC (Lei 8.078/1990) "os efeitos da coisa julgada não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe". Porém, não pode ser retirada do jurisdicionado afetado pela relação jurídica a faculdade de postular individualmente em juízo o direito subjetivo.
A legislação dá a opção para o jurisdicionado ingressar na ação coletiva como litisconsorte (art. 94 do CDC) ou se utilizar do título executivo judicial para requerer a execução individual da sentença proferida no processo coletivo, mas não lhe retira o direito de promover ação individual para a discussão do direito subjetivo.
As ações coletivas previstas nos incisos I e II e no parágrafo único do art. 81 do CDC não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem não beneficiarão os autores das a ações individuais se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva (AgRg no AREsp 595.453/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 26/5/2015, DJe 18/11/2015). Precedente: REsp 1.620.717/ RS, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 17/10/2017, DJe 23/10/2017.
Ocorre que a ausência de litispendência entre as ações coletiva e individual deve ser reconhecida somente na fase de conhecimento da lide, não se transferindo para a fase de execução dos julgados, sob pena de permitir a satisfação
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
em duplicidade do mesmo direito subjetivo, no caso concreto, o pagamento de valores relacionados às diferenças remuneratórias do índice de 3,17% (artigos 97 e 98 do CDC).
Assim, verificado que o servidor é beneficiário de coisa julgada produzida tanto na ação coletiva, quanto na ação individual, ambas em fase de cumprimento de sentença e execução do julgado, deve tão somente ser-lhe garantida a pretensão executória em relação a uma delas, evitandose o cumprimento da obrigação de pagar quantia certa por duas oportunidades.
Havendo, no caso dos autos, pedido de renúncia na execução coletiva, não há que se extinguir a presente pretensão executória individualizada.
Em relação à possibilidade de a parte recorrente compensar os valores pagos administrativamente daqueles executados judicialmente na presente execução individual, sobre a matéria, embora a jurisprudência do STJ reconheça tal possibilidade, bem como em relação à própria limitação temporal dos efeitos financeiros pelo advento da reestruturação na carreira, é inviável analisar no caso concreto a tese defendida no Recurso Especial quanto a este ponto.
Aplica-se, portanto, o óbice da Súmula 7/STJ.
Recurso Especial conhecido em parte para, nesta parte, negar-lhe provimento." (STJ, 2ª Turma, REsp n. 1.729.239/RJ, Relator Ministro Herman Benjamin, in DJe de 23/11/2018.) (Destacou-se).
"DIREITO TRIBUTÁRIO. EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO SOBRE A AQUISIÇÃO DE COMBUSTÍVEIS. EXECUÇÃO DE SENTENÇA PROFERIDA EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA (APADECO). COISA
JULGADA. 1. A ocorrência da coisa julgada veda a execução de título judicial oriundo de ação coletiva com o mesmo propósito porque não houve desistência dos autores na ação ordinária, e implica extinção do processo sem julgamento de mérito, ainda que se trate de execução de sentença proferida em ação civil pública, quando houver identidade de partes, pedido e causa de pedir. 2. De acordo com o art. 104 da Lei 8.078/90, as ações coletivas não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada, erga omnes ou ultra partes, não beneficiarão os autores das ações individuais, se não houver desistência da pretensão individual. 3. Apelação improvida." (TRF 4ª Região, 1ª Turma, APC nº2002.70.00.053402-9, Relator Desembargador ÁLVARO EDUARDO JUNQUEIRA, in DJE 01/03/2006, p. 287.). (Destacou-se).
"PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. EXECUÇÃO INDIVIDUAL DE SENTENÇA COLETIVA. AÇÃO INDIVIDUAL EM TRAMITE. LITISPENDÊNCIA. 1. Apelação em face de sentença que, face à litispendência, extinguiu o processo sem julgamento de mérito, nos termos do art. 267, V, do Código de Processo Civil. 2. Da análise do art. 104 do CDC, constata-se que não há que se falar em litispendência quando o autor executa decisão proferida em ação principal encabeçada por ente sindical, mesmo havendo demanda individual em curso, desde que requeira a suspensão desta última. 3. In casu, a demanda individual, processo nº. 0504836-80.2012.4.05.8400, ainda tramita perante a 7ª Vara Federal/ RN. A suspensão da mesma não foi requerida pelos autores no prazo de trinta dias estabelecido pelo art. 104 do CDC. 4. Deve ser mantida a decisão que extinguiu a execução, por outros fundamentos especialmente com base no art. 267, V, do CPC. 5.Apelação improvida." (TRF 5ª Região, 1ª Turma, APC nº
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0801156-77.2013.4.05.8400, Relator Desembargador Federal Francisco Cavalcanti, DJE 20/03/2014). (Destacou-se).
"APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO. PARCELA AUTÔNOMA. EXECUÇÃO INDIVIDUAL DE SENTENÇA COLETIVA. AUSÊNCIA DE PEDIDO DE SUSPENSÃO DA AÇÃO INDIVIDUAL, EM CUJA EXECUÇÃO JÁ HOUVE PAGAMENTO. HAVENDO A PARTE AUTORA FORMULADO PEDIDO DE EXECUÇÃO EM AÇÃO INDIVIDUAL POR ELA AJUIZADA, NÃO PODE BENEFICIARSE DA AÇÃO COLETIVA, EM QUE PESE ALEGAR QUE SEJAM PERÍODOS DE CONDENAÇÃO DISTINTOS. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO AJUIZADA COM BASE NA AÇÃO COLETIVA, POR FORÇA DO DISPOSTO NO ART. 104 DO CDC. HIPÓTESE DE FRACIONAMENTO DO CRÉDITO CARACTERIZADA. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL. Havendo a parte autora formulado pedido de execução da sentença obtida na ação individual por ela ajuizada, não pode beneficiarse do resultado da ação coletiva de mesmo teor, ainda que os períodos sejam distintos, quer por força do disposto no art. 104 do CDC, quer diante da vedação ao fracionamento do crédito. Extinção da execução ajuizada com base na sentença proferida na ação coletiva que se confirma. Recurso desprovido" (TJRS, 25ª Câmara Cível, ApCiv 70079286035, Relator Desembargador Ricardo Pippi Schmidt, julg. em 30/10/2018). (Destacou-se).
Se a agravante pretende insistir na defesa de seus interesses pela via da execução individual, que ela, então, primeiro, realize tal opção nos autos da execução coletiva movida por seu sindicato, desistindo daquela ação ou mesmo renunciando ao crédito ali apurado, e só depois venha a Juízo intentar uma execução individual para a defesa de seus interesses.
Ausente a prova da opção, a concomitância das duas execuções não se mostra possível, devendo ser extinta a execução individual ajuizada, considerando
que a execução coletiva ingressou primeiro e se encontra em estágio processual bem mais avançado.
Nego provimento ao agravo da exequente.
Pelo exposto, conheço do agravo de petição da exequente e, no mérito, nego-lhe provimento, nos termos da fundamentação.
É o meu voto.
Por tais fundamentos, ACORDAM os Integrantes da Egrégia Segunda Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, conforme certidão de julgamento, por unanimidade, aprovar o relatório, conhecer do agravo de petição da exequente e, no mérito, negar-lhe provimento. Tudo nos termos do voto do Juiz Convocado relator e com ressalvas parciais de fundamentação do Desembargador João Amílcar. Ementa aprovada.
Brasília (DF), 14 de setembro de 2022 (data do julgamento).
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
PROCESSO n.º 0000421-51.2021.5.10.0001 - RECURSO ORDINÁRIO TRABALHISTA (1009)
RELATOR: DESEMBARGADOR JOÃO AMÍLCAR RECORRENTE: FAACO - FEDERACAO DOS APOSENTADOS, APOSENTAVEIS E PENSIONISTAS DOS CORREIOS E TELEGRAFOS ADVOGADO: FABIO SOARES JANOT ADVOGADO: DANIELLE RODRIGUES VILARINS RECORRIDO: EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELEGRAFOS RECORRIDO: POSTAL SAUDE - CAIXA DE ASSISTENCIA E SAUDE DOS EMPREGADOS DOS CORREIOS
ADVOGADO: JOSÉ RODOLFO ALVES DA SILVA JUNIOR ADVOGADO: TALITA DUARTE COSTA ADVOGADO: IURI VASCONCELOS BARROS DE BRITO
CUSTOS LEGIS: MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO
ORIGEM: 01ª VARA DO TRABALHO DE BRASÍLIA/DF CLASSE ORIGINÁRIA: AÇÃO CIVIL PÚBLICARECURSO ORDINÁRIO (JUÍZA MARTHA FRANCO DE AZEVEDO)
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA E FUNCIONALVERTICAL. FIXAÇÃO. CRITÉRIOS. 1. A competência em razão da matéria é estabelecida, de ordinário, pela causa de pedir e correspondente pedido. Estando ambos situados como decorrência de relação de emprego, à Justiça do Trabalho compete processar e julgar a lide. 2. Inexistindo pretensão direcionada à interpretação, revisão ou extensão de cláusulas constantes de normas coletivas, não há elemento a situar o litígio na esfera da competência funcional vertical do TST. LITISPENDÊNCIA. REQUISITOS. AUSÊNCIA
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
A diversidade de causas de pedir e pedidos, encerrados na ação civil pública e dissídios coletivos suscitados pela empresa, afasta o pressuposto processual negativo da litispendência. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONDIÇÕES. ASSOCIAÇÃO. LEGITIMIDADE. INTERESSE. ADEQUAÇÃO. 1. A regular autorização dos associados, para a propositura de ação civil pública com fim específico, acompanhada de rol dos representados, satisfaz a exigência do art. 5º, inciso XXI, da CF. 2. Havendo pretensão qualificada e resistida, de par com a ação civil pública ser a via própria para a defesa de interesses individuais homogêneos, não há espaço para a incidência do art. 485, incisos IV e VI, do CPC. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ECT.SENTENÇA NORMATIVA. PLANO DE SAÚDE. FONTE DE CUSTEIO. ALTERAÇÃO. LICITUDE. 1. Hipótese em que, por força de sentença normativa (TSTDCG-1000295-05.2017.5.00.0000, DCG1000662-58.2019.5.00.0000) foi alterada, em caráter excepcional, a forma de custeio do plano de saúde, passando a exigir de todos os beneficiários, indistintamente, a correspondente contribuição mensal - antes inexistente. 2. Dada a particularidade do caso, e a extensão do potencial gravame imposto à categoria profissional, com a perda do direito à assistência médica e odontológica em rede privada, afigura-se lícita a alteração promovida, inclusive sob o prisma da preponderância do interesse coletivo sobre o meramente individual, axioma basilar do convívio social (CLT, art. 619). Precedentes. NOVA ALTERAÇÃO DO PLANO DE SAÚDE PELA EMPRESA. ABANDONO DA PARIDADE. PRINCÍPIOS DO MUTUALISMO, IGUALDADE E RAZOABILIDADE. ATITUDE DESPROPORCIONAL. TEMA 1.034 DO STJ. 1. O contexto anterior permaneceu intacto após o julgamento do DC-100120357.2020.5.00.0000, até a nova alteração do plano de saúde em 2021, sem motivos aparentes. 2. Mera transferência da responsabilidade original da empregadora apenas para o grupo dos aposentados, majorando a mensalidade por eles paga para 100% (cem por cento), ato dissociado de
aspectos atuariais do plano de saúde ou a higidez econômico-financeira do empregador, inexistindo qualquer consequência em relação aos demais beneficiários, em nítida ofensa aos princípios da igualdade, razoabilidade e proporcionalidade, sendo ilegal tal modificação. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SENTENÇA COLETIVA. COISA JULGADA. LIMITES SUBJETIVOS. EXTENSÃO. 1. "Beneficiários do título executivo, no caso de ação proposta por associação, são aqueles que, residentes na área compreendida na jurisdição do órgão julgador, detinham, antes do ajuizamento, a condição de filiados e constaram da lista apresentada com a peça inicial." (STF-RE-612.043/PR, Ac. Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJE de 06/07/2017). 2. Em se tratando de associação nacional, os efeitos da sentença apanham todos aqueles a ela filiados, constante do rol de representados, independentemente do local de sua residência. Aplicação do Tema 1.075 da repercussão geral do STF. TUTELA DE URGÊNCIA. Presentes os pressupostos exigidos para a concessão da tutela de urgência, como de resto para a de evidência, ambas previstas no art. 300 e 311 do CPC, o cenário impõe a concessão da medida. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. PRERROGATIVAS. Na dicção do STF a ECT está inserida no conceito de Fazenda Pública, devendo gozar das prerrogativas a ela inerentes. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. FIXAÇÃO. VALOR. 1. Proposta a ação na vigência do art. 791-A da CLT, inserido pela Lei nº 13.467/2017, são devidos os honorários advocatícios, como efeito direto da sucumbência. 2.Havendo a procedência, ainda, que parcial, do único pedido formulado no processo, não há falar em sucumbência recíproca, figura que diz aos pleitos em si, e não à sua expressão econômica. 3. A fixação do valor dos honorários advocatícios é determinada, entre outros aspectos, pelo trabalho realizado pelo advogado e o tempo nele dispendido. 4. Observados tais parâmetros, fixa-se o percentual da verba em prol dos procuradores do reclamante. 5. Recurso conhecido e parcialmente provido.
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Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima descritas.
A MM. 01ª Vara do Trabalho de Brasília/DF, rejeitando as preliminares suscitadas, julgou improcedentes os pedidos formulados na ação civil pública. De resto, concedeu à autora os benefícios da justiça gratuita (fls. 1.687/1.692).
Inconformada, a parte interpõe recurso ordinário. Defende o direito ao restabelecimento do plano de saúde de forma gratuita, em relação aos seus associados, acenando com ofensa a diversos dispositivos e princípios constitucionais e trabalhistas. Em ordem sucessiva, pugna pelo pagamento das mensalidades de forma reduzida, impondo a coparticipação da empregadora no custeio à razão de 50% (cinquenta por cento). Requer, ao final, o provimento do apelo (fls. 1.695/1.708).
As reclamadas produziram contrarrazões (fls. 1.721/1.738 e 1.755/1.816).
O d. Ministério Público do Trabalho opinou pelo conhecimento e o desprovimento do recurso (fls. 1.822/1.823).
É o relatório. VOTO
ADMISSIBILIDADE. O recurso é próprio, tempestivo e conta com dispensa de preparo, detendo a parte sucumbente boa representação processual. Presentes os demais pressupostos legais, dele conheço.
Esclareço que a r. sentença rejeitou todas as preliminares suscitadas pelas rés, e a ECT renova as arguições por meio da contrariedade produzida. Além dos temas comportarem exame (art. 485, § 3º, do CPC), a amplitude do efeito devolutivo do recurso ex officio ordinário impõe a correspondente análise, ainda que não houvesse contrarrazões
(eadem, art. 1.013, §§ 1º e 2º).
QUESTÃO DE ORDEM. Quanto ao pedido formulado de intimação exclusiva (fl. 1.199), incumbe à parte interessada proceder ao cadastramento dos seus procuradores.
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA E FUNCIONAL VERTICAL. FIXAÇÃO. CRITÉRIOS. A ECT suscitou a incompetência absoluta do juízo, quer em razão da matéria, ou ainda sob o prisma da funcional. No primeiro aspecto, aduz inexistir cláusula contratual, ou fixada em sede coletiva, a disciplinar as condições de concessão do plano de saúde aos representados neste processo, devendo incidir a compreensão do Tema nº 5 dos IAC's do SJT (REsp-1.799.343/SP, 2ª Seção, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 11/3/2020), in verbis:
"Compete à Justiça comum julgar as demandas relativas a plano de saúde de autogestão empresarial, exceto quando o benefício for regulado em contrato de trabalho, convenção ou acordo coletivo, hipótese em que a competência será da Justiça do Trabalho, ainda que figure como parte trabalhador aposentado ou dependente do trabalhador."
Nos termos do art. 114 da CF, à Justiça do Trabalho compete conciliar e julgar os dissídios entre empregados e empregadores, aí abarcados aqueles que versem sobre a existência ou não de relação empregatícia. Como orienta a iterativa jurisprudência do STJ e STF, na causa de pedir e pedido residem os elementos fixadores da competência em razão da matéria. E cogitar de empregados e empregadores, o texto constitucional mais nada fez que referência ao contrato de emprego, no sentido estrito do termo. Havendo, pois, liame jurídico regido pelas disposições consolidadas, resta indene de dúvidas que a competência, ex ratione materiae, é da Justiça do Trabalho.
Pelo exame dos autos, constato
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repousar o objeto da lide em parcelas cujo ato gerador residiria no contrato de emprego. Ora, se o âmago da controvérsia reside, em tese, nesta modalidade de elo jurídico, estando ele , afigura-se-me inquestionável sub examine a competência material - absoluta e improrrogável - da Justiça do Trabalho. Agora, caso extraída a conclusão de que o feixe de normas aplicáveis estão desgarradas de tal vínculo, a questão guarda elo com o mérito da controvérsia, resultando, caso confirmada, na improcedência dos pedidos. Em suma, na seara abstrata a presente lide está inserida na exceção do ilustrado precedente, inexistindo a afronta aos arts. 109, 114, inciso I e 202, da CF, 64, § 3º, do CPC ou 31 da Lei nº9.656/1998.
Quanto ao segundo deles, os critérios dirigentes da fixação da competência funcional são os mesmos. A associação autora busca alcançar provimento jurisdicional que afaste do mundo jurídico, em relação aos ora representados, a alteração no critério das mensalidades procedida pelas demandadas. A causa de pedir remota tem assento no próprio ato, enquanto a próxima na violação de diversos preceitos de ordem legal e constitucional, além de confronto com o direito sumular. Mas ao contrário do pontuado pela parte, inexiste pretensão versando sobre a delimitação, erga omnes, dos efeitos das sentenças normativas proferidas pelo TST, a extensão ou a revisão de cláusula integrante do direito coletivo aplicável aos envolvidos.
Ademais, a atividade interpretativa está sempre presente em qualquer atividade humana, inclusive - ou especialmente - na judicial, e tal exercício não produz, por si só, o efeito de usurpar ou turbar a competência funcional do TST. Obviamente o feixe de normas, lato sensu, suscitadas no curso do processo serão analisadas e aplicadas, sem que de tal procedimento aflore o exercício do poder normativo, mas sim da composição de conflito de interesses individuais homogêneos e os das demandadas. Logo, não há falar na violação dos arts. 678, inciso I, alínea "b", item 2, da CLT, 2º, inciso I e alínea "a", da Lei nº 7.701/1988 ou 220, inciso II, do RI-TST.
Rejeito a prefacial, no seu duplo aspecto.
LITISPENDÊNCIA. REQUISITOS. AUSÊNCIA. A ECT suscita a litispendência entre o presente processo e os de nº DCG- 1000295-05.2017.5.00.0000, DCG1000662-58.2019.5.00.0000 e DCG-100120357.2020.5.00.000, todos instaurados perante o TST.
Apesar da coincidência parcial de partes, pois materialmente assim figura aquele que efetivamente suporta os efeitos da sentença, inexiste identidade entre os demais elementos da ação, quais sejam, causa de pedir e pedido.
Como dispõe o art. 337 e §§, do CPC, a litispendência resta caracterizada quando há a repetição de ação anterior, ainda pendente de julgamento. E o primeiro tema a ser abordado reside no conceito de identidade de ações. Aparentemente de fácil compreensão, a identidade em tela reclama a presença repetida das partes, causa de pedir e respectivo pedido.
A causa petendi, como esclarece a melhor doutrina, consiste no fato material a que o autor elege como o produtor do efeito jurídico alegado (BARBOSA MOREIRA). O elemento necessariamente deverá refletir fato concreto da vida, palpável e apto à gênese da consequência almejada pelo autor da ação. Comporta, ainda, duas subdivisões, denominadas remota e próxima. A primeira é revelada pelo fato jurígeno, ou seja, aquele donde emergiu a violação do direito que se diz integrante do patrimônio jurídico do autor. E a segunda está atada aos fundamentos de direito ensejadores da medida jurisdicional que se busca alcançar.
O pedido, como objeto da ação, também comporta dupla divisão. O denominado imediato, traduzido pela providência jurisdicional solicitada pelo autor e o mediato, refletido pelo bem jurídico que ele busca alcançar, por meio do
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pronunciamento judicial. Oportuno gizar, ainda, que o instituto da litispendência, como pressuposto processual negativo, tem como desiderato o afastamento de decisões colidentes, bem como o bis in eadem. Trata-se de meio destinado a assegurar, na realidade concreta, a segurança jurídica que deve espargir dos pronunciamentos judiciais.
Ora, fixadas tais premissas, anoto que os processos suscitados pela empresa pública ostentam, como propósito, a superação de impasse entre ela e seus empregados, com o estabelecimento de condições gerais de trabalho no período de sua vigência. E no presente a questão é diversa, ainda que com o viés de consequência daquele, onde a autora almeja obter a anulação de duas alterações sucessivas, havidas no plano de saúde que alcançava seus associados. E o móvel do pleito é o ato positivo das reclamadas, enquanto naqueles processos ele decorreu da ausência de negociação exitosa entre os envolvidos.
Afasto a prefacial, pontuando a higidez do art. 337, §§ 1º, 2º e 3º do CPC.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONDIÇÕES. ASSOCIAÇÃO. LEGITIMIDADE. INTERESSE. ADEQUAÇÃO. A arguição de ilegitimidade da autora vem, de início, fundada na inexistência de autorização expressa dos associados, pois a ata por ela apresentada seria referente a assembleia realizada antes do ato acoimado de ilegal. Por outro lado, e na condição de associação, a parte não poderia participar de negociação coletiva, desvirtuando a sequência preferencial traçada pelo ordenamento jurídico - sindicatos, federações e confederações, tudo na forma do art. 617 da CLT. Em seguida foi ventilada a ausência de interesse jurídico, já que inexistia norma coletiva em vigor dispondo sobre o direito em lide, além dele experimentar esgotamento, por completo, quando julgados dos dissídios coletivos instaurados perante o TST. Finalmente, é defendida a inadequação da via eleita pela ora recorrente.
Quanto ao primeiro tema, é certo
que os elementos do processo sinalizam que há muito a discussão sobre a alteração da participação dos empregados e aposentados, no sistema coletivo de saúde, vem sendo travada - inclusive ela foi alcançada, de forma emblemática, quando do julgamento do processo DCG-1000295-05.2017.5.00.0000. E as sucessivas tentativas de superação do impasse, ao longo dos anos, revela que a imposição da cobrança integral das mensalidades, junto aos aposentados, já fora deliberada - apenas a sua formalização ocorreu em momento posterior. De toda sorte, a ata de fls. 31/32 demonstra a discussão da matéria, entre os dias 12, 13 e 14/03/2020, enquanto em 29/04/2021 houve assembleia específica autorizando o ajuizamento da presente ação, enquanto as comunicações formais realizadas pelas reclamadas, sobre a mudança em tela, datam de 24/03/2021 e 07/04/2021 (fls. 84/86 e 87). Não há, pois, a fratura da linha do tempo pontuada pela empresa pública.
Reconhecida a higidez da autorização expressa, o tema da definição dos limites da coisa julgada será apreciado oportunamente, havendo a eventual reforma da r. sentença. E quando proposta a ação, a autora apresentou o necessário rol qualificando os seus representados (fls. 65/83). De resto, a vinculação do presente litígio aos decididos pelo TST, em sede coletiva, já foi ultrapassada, autorizando a rejeição do incidente de forma remissiva - com o ligeiro acréscimo de que a matéria posta em julgamento não guarda ponto de contato com a legitimidade constitucional e legal para a representação ou substituição da categoria profissional, em sede de negociação coletiva, ou a pertinência exclusiva de judicialização em sede exclusiva de dissídio coletivo.
Acerca da arguição versando sobre a inexistência de norma coletiva a amparar a pretensão, gizo que as condições da ação devem ser analisadas no plano abstrato, e no caso concreto há pretensão qualificada e resistida, tipificando o interesse jurídico para a autora residir em juízo. E ela o faz nessa
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condição, sendo-lhe estranho o instituto da assistência simples.
Rejeito a preliminar, consignando a aparente higidez dos arts. 5º, inciso XXI, e 8º, inciso VI, ambos da da CF; 617 da CLT; 17 e 485, inciso VI e § 3º, do CPC, 5º, inciso V, da Lei nº 7.347/1985 ou 82, inciso IV, da Lei nº 8.078/1990.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ECT. SENTENÇA NORMATIVA. PLANO DE SAÚDE. FONTE DE CUSTEIO. ALTERAÇÃO. LICITUDE.A r. sentença julgou improcedente o pedido, versando sobre a dispensa da cobrança de mensalidades do plano de saúde dos empregados da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT. Deu o mesmo desfecho ao pleito sucessivo do pagamento de apenas 50% do valor do custeio, o qual era aplicado no âmbito da empregadora antes do mês de maio de 2021. Para tanto, entendeu que a sentença normativa proferida pelo Tribunal Superior do Trabalho (DC-1001203-57.2020.5.00.0000) possibilita a adequação do plano de saúde ao preconizado nos artigos 30 e 31 da Lei nº 9.656/1998, motivo pelo qual seria lícita a alteração da forma de custeio do benefício, antes inteiramente gratuito, passando por ajustes, e atualmente impondo o pagamento integral por parte dos aposentados (fls. 1.687/1.692).
Nas razões recursais a postulante renova a pretensão, acenando com a má apreciação dos elementos dos autos e a inadequada aplicação do direito à espécie. Renova a tese de que a modificação das regras do plano de saúde a contar de abril de 2018 não poderia alcançar os seus associados, por ferir ato jurídico perfeito e o direito adquirido ao plano de saúde sem qualquer custo, além de violar o art. 468 da CLT, colidindo ainda com as súmulas 51, item I, e 359 do TST. Reforça que a mudança ocorrida em 2021 apanharia somente os jubilados, sendo devida a paridade a anterior, ou em ordem sucessiva, quando menos persistiria o quanto decidido no DCG-1000295-05.2017.5.00.0000. Pede, nesses termos, a revisão da r. sentença (fls.
1.695/1.708).
No primeiro aspecto, é gravado de incontrovérsia que os substituídos, ao longo de todo o período contratual, eram beneficiários de plano de saúde gratuito, sem o custo contribuição mensal. Esse plano é mantido pela Postal Saúde - Caixa de Assistência e Saúde dos Empregados dos Correios, fundação destinada a gerir e administrar o plano denominado Correios Saúde.
No processo em questão (TSTDCG-1000295-05.2017.5.00.0000), o Tribunal Superior do Trabalho autorizou a instituição de um novo modelo de coparticipação, diante da excepcionalíssima particularidade de que, sem a instituição de mensalidades pelos beneficiários, o plano deixaria de existir, por absoluta inviabilidade financeira. A propósito, no processo TSTDCG-1000662-58.2019.5.00.0000 foi mantida a contribuição dos aposentados para o plano de saúde, nos termos do que foi definido no julgamento DC-1000295-05.2017.5.00.0000 (fl. 154).A propósito, ali foi questionada a criação de plano específico para pais e mães, prevalecendo o entendimento de que ela não pode ser determinada por meio de sentença normativa, mas apenas pela via da negociação entre as partes interessadas, como decidido no dissídio coletivo anterior.
Em extenso e minucioso voto, o eminente relator do processo, Ministro Aloysio Correa da Veiga, apoiado, dentre outros fundamentos, em estudos elaborados pela Agência Nacional de Saúde - ANS e de equipe técnica dos planos de saúde do próprio TST, concluiu que a implementação de mensalidade, além da adequação dos dependentes evitaria mal maior, à categoria, qual seja, a extinção do plano por falta de recursos. Para melhor ilustrar a particularidade que permeia a matéria, trago a colação alguns excertos do voto condutor do v. acórdão que ensejou a referida sentença normativa, in verbis:
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
"O caso em exame comporta maior preocupação, na medida em que a celeuma vem sendo registrada com forte reação dos trabalhadores que sequer aventam qualquer recepção à medida, conforme a reiterada rejeição da matéria nas diversas assembleias que ocorreram pelo país.
Embora o caso em exame tenha contorno similar, porque a cláusula 28 vem sendo repetidas ao longo dos anos nos Acordos Coletivos de Trabalho da ECT, e embora o melhor caminho seja a negociação coletiva, é certo que isso já ocorreu e a premência do fim do Acordo Coletivo 2017/2018 e a possibilidade de os empregados se verem sem a proteção para o próximo ACT 2018/2019, torna essencial uma análise mais ampla sob a situação econômica da empresa, já que a realidade atual tem sido de adequação de diversos órgãos e empresas em que a instituição de mensalidade como meio de formação de receita vem sendo reiterada.
É certo que ao princípio da imperatividade do que foi ajustado 'pacta sunt servanda' se excetua a cláusula rebus sic stantibus, a que se referiu Santo Agostinho quando identificou: 'Quando ocorre alguma coisa de maior importância que impeça a execução fiel de minha promessa, eu não quis mentir, mas apenas não pude cumprir o que prometi'.
Assim é que procedi ao exame do tema, atento à realidade jurídica que emerge dos autos!
É preciso meio, eficiente e capaz, de remediar situações nascidas de alteração profunda na relação contratual. Isto é, retirar o desequilíbrio gerado pela situação nova.
Não se pode é, sob o pálio da inalterabilidade, resistir em manter cláusula contratual que aprofunde o desequilíbrio, representando a ruína de outra parte.
É certo que a tese contida na decisão da c. SDC traz uma reflexão sobre a aplicabilidade da teoria da imprevisão no contrato de trabalho que, por certo e, em regra, demandará o procedimento de alterabilidade do que fora originariamente ajustado, quando se tornar excessivamente onerosa a cláusula contratual, pela via da negociação coletiva, sempre a melhor via para preservação dos empregos, como regra geral e não exaustivamente.
Ocorre que não há como deixar de analisar com a situação concreta dos autos, em que o valor social do bem da vida posto a conflito - plano de saúde, em confronto com a onerosidade excessiva, impõe interesse negocial que sobrepuja a via do diálogo sindicato, já que o modelo atual se mostra insustentável.
A relativização do poder vinculante do contrato, no direito do trabalho, deve ser examinado em contraponto com a proteção do trabalho, atenuada a vinculação desse poder vinculante pela moderna adequação do direito contratual a cláusula rebus sic stantibus.
(...)
Nesse sentido, embora a situação apresentada de risco de insolvência para a empresa (patrimônio líquido negativo na ordem de R$ 1,7 bilhão) não possa ser atribuída ao plano de saúde dos empregados, a consequência alcança a sobrevivência do referido plano.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
No tocante ao atual modelo de custeio do Plano de Saúde, é fato que a distribuição atual do custeio do 'Correios Saúde' impõe à Empresa o dever de formação de toda a receita do plano de saúde. Inexiste na metodologia implantada do Correios Saúde a formação de receita por meio de instituição de mensalidade, o que, ao longo dos anos, onera e inviabiliza a manutenção do benefício.
Resta demonstrado, portanto, a necessidade de revisão da fonte de custeio do Plano 'Correios Saúde' com vista a evitar a extinção do benefício da assistência médica, hospitalar e odontológica concedida pela ECT aos seus empregados, aposentados e respectivos dependentes, ou em maior risco, evitar a alienação da carteira ou a liquidação extrajudicial pela ANS.
Desta forma, além do aporte financeiro aplicado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - EBCT na condição de mantenedor do plano, é necessária a formação de receita, que pode se dar por meio de mensalidade aplicada aos beneficiários titulares, mantendo a diferenciação proposta em maio/2017 dos saldos cobrados com o percentual menor para a faixa remuneratória mais baixa, entretanto adotando uma sistemática per capita, conforme preconiza as práticas adotadas por empresas similares como a Caixa Econômica Federal ou a Banco do Brasil S.A.
Fundamentado no Relatório Técnico sobre sugestão de nova metodologia para o Plano de Saúde dos Funcionários da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - EBCT, após resposta da Agência Nacional de Saúde - ANS, enviado ao Ministro
Vice-Presidente do TST, no qual se promoveu uma análise da documentação apresentada e dos comentários técnicos ofertados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, incumbe à determinação de um novo modelo de custeio do plano e um novo cálculo de mensalidade per capita, respeitados alguns pontos considerados sensíveis, como a modulação para o fim de não exclusão de pai e/ou mãe que estejam em tratamento médico, enquanto não houver alta médica, mantida a isenção de coparticipação para internação.
Frisa-se que o Relatório da equipe técnica do TST que emitiu parecer sobre a alteração se pautou em critérios técnicos com base nas normas legais que regem a matéria tais como: a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre planos e seguros privados de assistência à saúde, a Resolução Normativa da ANS nº 137/2006, que dispõe sobre as entidades de autogestão do sistema de saúde suplementar, a RN da ANS nº 195/2009, que dispõe sobre a classificação e características dos planos privados de assistência à saúde, a Resolução do Conselho Federal de Contabilidade - CFC nº 1.374/2011, que rege as características qualitativas da informação contábil-financeira, bem como a elaboração e divulgação de Relatório Contábil-Financeiro, o Pronunciamento Conceitual Básico (R1) do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC 00-R1), a Interpretação Técnica Geral (ITG) 2002 (R1) do CFC, que estabelece critérios e procedimentos específicos das entidades sem finalidade de lucros, a Lei nº 6.404/76 e suas alterações, que rege a forma das escriturações contábeis em âmbito nacional, a Deliberação CVM nº 695/2012, que aprova o Pronunciamento Técnico CPC
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33(R1) do comitê de Pronunciamentos Contábeis, que trata de benefícios a empregados, bem como os preceitos e as boas práticas contábeis adotadas" (TST-DC-1000295-05.2017.5.00.0000, ac. SDC, Rel. Min. Aloysio Silva Correa da Veiga, DEJT de 03/04/2018).
O pedido formulado no referido dissídio coletivo foi, portanto, julgado parcialmente procedente, alterandose a redação da cláusula 28, passando a constar que "...a empresa oferecerá plano de saúde, com custeio da assistência médica/hospitalar e odontológica, COM a cobrança de mensalidades e coparticipação, aos empregados(as) ativos(as), aos(às) aposentados(as) nos Correios que permanecem na ativa, aos(às) aposentados (as) desligados (as) sem justa causa ou a pedido e aos(às) aposentados(as) nos Correios por invalidez, bem como a seus dependentes cônjuges/companheiros e filhos beneficiários/ menor sob guarda do Plano Correios Saúde ou no plano que o suceder". Como visto, a obrigatoriedade de coparticipação alcançou todos os alcançados suceder pelo plano, indistintamente - inclusive os aposentados.
O benefício foi concedido de forma gratuita ao longo de anos, pela empregadora, conforme previsão em norma coletiva. Mas a partir de 2018, por força de sentença normativa, passou a ser exigida do beneficiário a contribuição mensal destinada ao seu custeio, para evitar a sua extinção.
Sobre a legalidade da nova redação da cláusula 28, venho reiteradamente proclamando que a feição normativa das regras coletivas de trabalho é indiscutível, quer se cuide de acordos, convenções ou sentenças. Têm força de lei entre os por elas alcançados - preceitos cogentes os quais obrigam as partes. É a preponderância do interesse coletivo sobre o meramente individual, axioma basilar do convívio social e, obviamente, trabalhista (CLT, art. 619).
O direito em tela tem nítido caráter patrimonial, podendo ser adequado, em nome da estabilidade e melhoria das condições gerais de trabalho dos seus representados. E, considerando tratar-se na hipótese de criação de benefício extravagante, ou seja, decorrente de ato de liberalidade, não vislumbro a extinção de direitos, mas sim a sua natural alteração no curso do tempo, de acordo com o devir social. Estabelecidos tais parâmetros, entendo pela perfeição jurídica da sentença normativa, cuja decisão indiscutivelmente evitou a falência do plano de saúde, o que seria um dano ainda maior à categoria, comparado à atual obrigatoriedade de participar do seu custeio.
A propósito da Súmula 51 do TST, entendo que a orientação do referido verbete é restrita à hipótese de revogação ou alteração de direitos trabalhistas, ocorrida quando da instituição de nova norma regulamentar pela empresa. Nada impede, todavia, que a modificação proveniente de norma coletiva modifique a forma de custeio do benefício em lide. Também não diviso afronta às garantias constitucionais do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. A esse respeito, reitero que o PDIA encontra-se preservado, no particular, na medida em que mantido o direito principal, qual seja, o de usufruir do plano de saúde. Houve mudança apenas em relação ao formato de custeio e, nesse ponto, o item 5.1 foi expresso no sentido de que o direito ao plano observará o contido nos normativos internos, acordo coletivo ou sentença normativa vigentes - exatamente a hipótese dos autos.
Os atos e negócios jurídicos, sob a óptica de sua eficácia, podem ser classificados como estáticos ou dinâmicos. Enquanto os primeiros produzem todos os seus efeitos instantaneamente, os segundos revelam caráter de continuidade, ou seja, a relação entre as partes prolonga-se inclusive sem previsão para experimentar fim. A relação ora analisada está situada na segunda hipótese, inclusive porque a concessão gratuita do benefício deve ser avaliada em sua extensão
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maior, apanhando também - e especialmente - os seus motivos determinantes. Ora, dúvidas não pairam que ao longo de anos a higidez financeira da fonte de custeio foi esmaecendo, até chegar ao ponto de superar a sua existência, cristalizando o quadro de expressiva liquidez negativa. E dada a natureza de tal vínculo, não diviso espaço para reconhecer a necessária incidência da teoria da imprevisão, de sorte a preservar o núcleo fundamental da concessão, que reside na proteção à saúde dos empregados e seus dependentes.
Na essência, em discussão está presente, mais uma vez, o atrito ou tensão entre direitos fundamentais - o adquirido e o à saúde, como desdobramento da dignidade da pessoa. Em ligeiríssimas considerações, compreendo que a Constituição Federal congrega princípios e normas abertas, e assim moldáveis à realidade social presente. Ora, se por um lado aos trabalhadores é garantida a fruição dos direitos a ele assegurados, por outro também aflora a rigidez do controle da coisa pública, sendo ambos os valores residentes no cenário constitucional. Assim, o caso concreto encerra uma das hipóteses dos chamados "hard cases", onde há mais de uma norma jurídica de possível hard cases incidência, ostentando ambas envergadura máxima - formal e material - em nosso ordenamento jurídico.
Não se trata, aqui, da defesa da prevalência de um princípio sobre determinada garantia ou a situação inversa, como possível fosse a flexibilização de qualquer desses dois elementos, estabelecendo a supremacia de um sobre o outro. Tal cenário produziria frutos defluentes do discutível método da ponderação (ALEXY), fragilizando o próprio conceito de direito fundamental, que pela sua natureza não constitui mero mandado de otimização. Na realidade, entendo necessário construir a integridade do Direito (DWORKIN), analisando as circunstâncias inerentes ao caso concreto, para então realizar o discurso de fundamentação, que reside na validação da norma, e finalmente procedendo ao da
aplicação (GÜNTHER). Longe de empreender visitas teóricas enfadonhas, aflora a legítima pretensão judicante de estabelecer contexto discursivo, tudo com o fito de demonstrar a justiça do resultado dado à causa.
As circunstâncias geradas pela dinâmica social findaram por fraturar, integralmente, as condições havidas quando da implantação do do benefício de forma gratuita. E dúvida razoável não aparenta haver, no sentido de que a garantia essencial a ser preservada tem assento na preservação do direito ao pleno de assistência médica, ainda que sob a inovadora contribuição dos empregados - é a natural supremacia do continente sobre aspectos marginais do conteúdo.
Ademais, e como já frisado, a questão transita na seara coletiva, que em sua concepção adequada espelha algo mais que a mera soma das situações individuais. É, inclusive, o tratamento dado em osso ordenamento jurídico, quando distingue os direitos individuais homogêneos e os coletivos, emprestando supremacia aos últimos (art. 81 do CDC e 8º da CLT). Aliás, sobre o tema vem decidindo este Tribunal na forma proposta (v. g., ROPS-0001134-37.2019.5.10.0020, ac. 3ª Turma, Rel. Des. RICARDO ALENCAR MACHADO, DEJT de 08/08/2020 e TRTRO-0000537-44.2018.5.10.0007, ac. 3ª Turma, Rel. Des. PEDRO LUÍS VICENTIN FOLTRAN, DEJT de 19/02/2020), assim como o TST, in verbis:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. LEI 13.467/17. PRETENSÃO DE RESTABELECIMENTO DA REGRA DE AUSÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO DO EMPREGADO NO CUSTEIO DO PLANO DE SAÚDE. NECESSIDADE DE ALTERAÇÃO DO MODELO DE CUSTEIO DEFINIDA POR ESTA C. CORTE SUPERIOR NO JULGAMENTO DO DC-100029505.2017.5.00.0000. COPARTICIPAÇÃO DO EMPREGADO. CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS. TEORIA DA IMPREVISÃO E DA ONEROSIDADE
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EXCESSIVA. TRANSCENDÊNCIA. Não há transcendência da causa quando a decisão do Tribunal Regional julga improcedente o pedido de restabelecimento da cláusula que previa a ausência de ônus para o empregado no fornecimento de plano de saúde/odontológico pelos Correios, uma vez que o julgado observa a modulação da alteração das regras de custeio do plano de saúde/odontológico decidida por esta c. Corte Superior no DC-100029505.2017.5.00.0000 para garantir a continuidade da oferta do benefício e a existência da própria empresa, constatada a impossibilidade de manutenção do pacta sunt servanda e a necessidade de alteração e modulação das regras de custeio, atribuindo ônus ao empregado, pautada a decisão do Dissídio Coletivo no princípio da dignidade, na teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva para conferir nova redação à Cláusula 28ª do ACT, em atenção à possibilidade de exceção ao princípio da imperatividade das condições ajustadas pela cláusula rebus sic stantibus. Transcendência do recurso de revista não reconhecida e agravo de instrumento desprovido." (TSTAIRR-555-80.2018.5.10.0002, ac. 6ª Turma, Rel. Min. Aloysio Correa da Veiga, DEJT de 14/02/2020).
Ressalto, ainda, que nesse sentido vários outros há (v. g., Ag-AIRR-63128.2019.5.10.0016,1ª Turma, Relator Ministro Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 14/05/2021; RR-1031-40.2019.5.12.0031, 2ª Turma, Relator Ministro José Roberto Freire Pimenta, DEJT 25/06/2021, RR-101753.2019.5.12.0032, 5ª Turma, Relator Ministro Breno Medeiros, DEJT 14/05/2021, Ag-RR-1079-96.2019.5.12.0031, 6ª Turma, Relatora Ministra Kátia Magalhães |Arruda, DEJT de 16/06/2021, AgRR-367-84.2018.5.09.0012, Ac. 7ª Turma, Rel. Min. Renato de Lacerda Paiva, DEJT de
06/08/2021 e AIRR-578-98.2018.5.09.0084, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 05/02/2021).
Nego provimento ao recurso.
NOVA ALTERAÇÃO DO PLANO DE SAÚDE PELA EMPRESA. ABANDONO DA PARIDADE. PRINCÍPIOS DO MUTUALISMO, IGUALDADE E RAZOABILIDADE. ATITUDE DESPROPORCIONAL. TEMA 1.034 DO STJ. No que diz ao segundo aspecto da pretensão, trazido de modo sucessivo, a petição inicial afirmou que a contar de abril de 2021 o plano de saúde sofreu nova alteração, sendo imposta aos aposentados a cobrança de 100% (cem por cento) do valor das mensalidades (fls. 04 e 12), enquanto os elementos dos autos comprovam que o pessoal da ativa recebe o subsídio equivalente 50% (cinquenta por cento). Além de ser incontroverso (fls. 443/462 e 1.019/1.107), o fato foi corroborado pelo acervo probatório. A título de ilustração, o documento de fls. 84/86 revela que os jubilados até dia 31/07/2020 (fls. 84/86) foram comunicados que passariam a assumir o custeio integral do plano de saúde, como condição de permanência. Seu teor dispõe, que na vigência do "Plano Correios Saúde II", "o custeio integral consistirá no pagamento de 100% do valor da mensalidade, que corresponde aos 50% do empregado e aos 50% do empregador" (fl. 84). Do mesmo modo, o item 23.1.2 do regulamento da segunda reclamada também ratifica que as mensalidades eram rateadas em tal proporção, tanto em relação a elas em si, quanto ao custeio das demais despesas do plano de saúde (fl.747). Além disso, o gráfico do parecer atuarial ratifica tal contexto fático (fl. 985).
Por outro lado, oportuno frisar que a prova documental também elucida que a coparticipação da empregadora, no custeio de procedimentos médicos e similares, permanece inalterada em relação a todos os beneficiários (fl. 85), mas não nas mensalidades do sistema. Aliás, a efetivação do desconto fora postergada para
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o dia 01/08/2021, em razão da pandemia do COVID-19 (fl.87), enquanto a réplica noticia que ela já foi implementada pelo decurso do tempo, motivo pelo qual vários aposentados se desligaram do sistema, em virtude dos impactos das despesas - na prática, após a exclusão do subsídio da empregadora, que era de 50%, o valor das mensalidades dobrou.
Quanto à legalidade da alteração, analisando a cláusula 28ª do dissídio coletivo posterior (DC-100662-58-20155-00-000), resta clara a manutenção do conteúdo da sentença normativa revisanda (DC-1000295-05.2017.5.00.0000). Ela diz respeito à coparticipação dos empregados e empregadora no custeio do plano de saúde, além do pagamento de mensalidades (fls. 154 e 227/230 e 344/346). E sobre os seus efeitos no contrato de emprego, remeto à fundamentação do alcance e extensão do DC-1000295-05.2017.5.00.0000, pois a questão já foi superada. Em outras palavras, os motivos que autorizaram a alteração das regras do plano de saúde em 2018 também são aplicáveis até o ato das demandadas praticado em de abril 2021. Sendo assim, no tocante à sentença normativa posterior (DCG1001203-57-2020-5-00-0000), noto que ela estabeleceu a seguinte cláusula, ad litteram:
"A empresa disponibilizará Benefício de Assistência à Saúde por meio de operadora contratada, de adesão facultativa e mediante cobrança de mensalidade e coparticipação dos beneficiários". (fl. 815).
Diante desse cenário, o primeiro grau de jurisdição entendeu que, além de ser vedado o empréstimo da ultratividade às normas coletivas anteriores, a cláusula do dissídio coletivo autorizou a imputação do valor integral das prestações do plano de saúde aos aposentados, para o alinhamento à previsão dos artigos 30 e 31 da Lei nº 9.656/1998. Mas com o devido respeito,
compreendo de modo diverso.
Inicialmente há de ser destacado o conteúdo da sentença normativa suscitada pelas reclamadas, que é a adequada para reger a situação jurídica em exame. Ela é de clareza evidente, ao impor à ECT a disponibilização de sistema de assistência à saúde, "...mediante cobrança de mensalidade e coparticipação dos beneficiários.". Em outros termos, foi consagrada a responsabilidade linear dos beneficiários, quanto ao pagamento de mensalidades e da coparticipação. E tal elo foi rompido, ou melhor, distorcido quando a empresa transferiu ônus residente em sua esfera para a dos aposentados. Importante reiterar que o alcance e a extensão da participação dos empregados no custeio do plano de saúde já foram amplamente superados, nos termos da sentença proferida no processo DC-1000295-05.2017.5.00.0000. Do mesmo modo, ali foram mensurados os impactos administrativos e econômicofinanceiros no sistema, à época dos fatos. E em face de tal decisão, a segunda demandada implantou o denominado Plano Correios Saúde II, o qual, como já visto, é considerado válido, enquanto na sua alteração em 2021 reside o cerne da lide. Contudo, a remissão aos ao normativos internos, para fins de ajustes, como foi decidido por ocasião do DC1000295-05.2017.5.00.0000, data venia, não traduz a ordem em branco, a ser preenchida ao alvedrio de uma das partes.
É certo que as sentenças coletivas perdem ou perderam vigência, pois foi definido que elas vigoram pelo prazo máximo de 01 (ano), conforme concluiu o TST - a propósito, o STF findou por pronunciar a desconformidade entre a Súmula 277 do TST e a Constituição Federal (ADPF323, Ac. Tribunal Pleno, em sessão virtual de 20/05/2022 a 27/05/2022, Rel. Min. Gilmar Mendes), estando assim lavrada a correspondente decisão, in verbis:
"O Tribunal, por maioria, julgou procedente a presente arguição
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de descumprimento de preceito fundamental, de modo a declarar a inconstitucionalidade da Súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho, na versão atribuída pela Resolução 185, de 27 de setembro de 2012, assim como a inconstitucionalidade de interpretações e de decisões judiciais que entendem que o art. 114, parágrafo segundo, da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, autoriza a aplicação do princípio da ultratividade de normas de acordos e de convenções coletivas, tudo nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski."
para os aposentados o Repasse Mensal dos Correios para esse Grupo ficará anulado" (fl. 1.003).
Mas há situações que são inseridas naturalmente no elo jurídico entre as partes, como ocorre no caso de reajuste salarial, quando ninguém cogita de redução ao término da vigência estipulada. Logo, o de interesse reside em verificar a natureza jurídica de cada um dos direitos conferidos aos trabalhadores. E quanto ao objeto explícito da discussão, prevaleceu o entendimento de que a parcela em lide é gravada pela teoria da imprevisão e da cláusula rebus sic stantibus, de modo que a cada eventual alteração da realidade concreta as partes ou o juízo competente, em não havendo consenso, deverão definir os novos critérios.
Nessa seara, foram apresentados estudos técnicos pelas empresas, destacandose o parecer atuarial (fls. 984/990). Por seu intermédio foi consagrado que a manutenção dos aposentados, no sistema, poderia ocorrer caso eles arcassem integralmente com o pagamento das mensalidades. Mas, na verdade, a iniciativa tem assento em mera transferência de responsabilidades. De forma explícita, o documento informa que a única mudança nas regras está limitada a tal aspecto (fl. 985, informação reproduzida à fl. 1.001). É mais claro, ainda, ao reafirmar que "Em um cenário de implementação do Custeio Integral
Ora, simplesmente os aposentados passaram a arcar com a cota de responsabilidade original da empresa, sem motivos aparentes. Ratificando as informações integrantes do relatório, as tabelas do plano de saúde permaneceram as mesmas (fl. 985) para os envolvidos, em seu conjunto, salvo a dita majoração da cota dos aposentados, dobrando o valor das mensalidades por eles pagas. E mais, aflora que o montante do aporte de numerário para a segunda reclamada permaneceu inalterado - é mera questão aritmética, com a simples mudança do responsável pelo pagamento. Inclusive, assim estampa a literalidade dos gráficos apresentados - tabelas 06 e 07 (fl. 987) -, os quais evidenciam a mera alteração de rubricas. No demonstrativo a parcela, que era da empresa em relação aos aposentados, foi a eles imposta, o que não ocorreu em relação aos empregados da ativa (fl. 985). Como dito, para o grupo dos substituídos o valor da mensalidade dobrou (fl. 986), em virtude da realocação do que anteriormente era custeado pela empregadora, mas o sistema de saúde não experimentou a redução ou o aumento de receitas, e nem de despesas - logo, o novo regime de contribuição beneficiou apenas e tãosomente o empregador. E no caso em exame sequer há indícios a desvelar a presença dos motivos de fato relevantes, adotados pelo STF na SL nº 1.264, como destacado pela empresa pública, ad litteram:
"Suspensão de liminar. Decisões em que se suspenderam os efeitos de deliberações tomadas pelo Tribunal Superior do Trabalho em Dissídio Coletivo de Greve. Interposição de agravos regimentais. Lesão à ordem e à economia públicas demonstrada. Suspensão deferida. Agravos regimentais prejudicados.
1. As decisões proferidas nesta
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contracautela lastrearam-se na pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que o poder normativo da Justiça do Trabalho não é ilimitado, devendo respeitar a regra do art. 114, § 2º, da Constituição Federal.
2. Reflexo econômico das decisões objeto da suspensão no custeio do plano de saúde da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, que se mostra expressivo, dada a magnitude dos valores envolvidos.
3. Dispêndio que tem potencial para inviabilizar a subsistência da própria empresa pública federal, responsável pelo serviço postal, constitucionalmente reconhecido como monopólio da União.
4. Grave risco de comprometimento da ordem público administrativa, bem como à própria continuidade da prestação do serviço público à cargo da requerente.
5. Suspensão deferida. Agravos regimentais prejudicados."
Assim, ao contrário da modificação dos critérios por meio da sentença normativa proferida no processo nº DCG-100029505.2017.5.00.0000, lastreada que foi em profundas avaliações e sólido arcabouço técnico, a aqui examinada estampa feição aleatória, sem um único elemento sequer a evidenciar a turbação no equilíbrio econômico-financeiro da empresa pública e, principalmente, no sistema de saúde em grupo.
Para espancar definitivamente dúvida relevante sobre ao assunto, a título ilustrativo destaco a estimativa do gráfico 06 (fl. 987), quando a participação da empresa era R$ 15,97 milhões, igual valor apanhando o grupo dos aposentados. Já na projeção atuarial o dela foi reduzido para zero, enquanto o deles
elevado ao dobro - R$ 31,93 milhões, e as demais variáveis permaneceram inalteradas. Transparece, à exaustão, que houve a mera reordenação de rubricas. E como dito, por tratar de projeção, com margem de erro na ordem de R$ 2,59 milhões (fl. 987), o parecer sugere o acompanhamento e revisão geral do custeio do plano, o que incontroversamente ainda não fora implementado. Até então, e da forma como estava o custeio do plano, com arrecadação de R$ 118,57 milhõesantes e depois da alteração em debate -, a moldura fática indica o equilíbrio do sistema, sem qualquer agravamento da higidez da mantenedora (fl. 988).
Na essência, não se cuida propriamente de desiquilíbrio financeiro inerente ao plano de saúde, ou da empresa pública, mas de medida criada para clientela específica - e de forma distorcida -, o que viola o princípio da igualdade. Gizo, a propósito, que ele é de natureza jurídica, transpirando comando no sentido do tratamento igual aos iguais e, a contrario sensu distinto aos que se encontram em situações diversas. Em suma, somos merecedores da igualdade quando nossas diferenças nos discriminam, mas também devemos receber tratamento diferenciado quando a igualdade nos descaracteriza (BOAVENTURA SOUSA SANTOS). E ante à elevação súbita dos valores praticados apenas para um grupo, em tal ordem, também há ofensa aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, pois caso assim não fosse os empregados ativos também seriam afetados pela medida. Aliás, a segunda reclamada é explícita no sentido de que tal alteração decorreu da sua interpretação do resultado do DCG 100120357.2020.5.00.0000, das normas legais e de decisões proferidas pelo STF, mas não propriamente de aspectos atuariais ou de economia interna (fl. 424). Em conclusão, resta evidenciado o evidente divórcio entre o ato em discussão e o real equilíbrio econômico financeiro do plano, ou da capacidade de patrocínio da empresa pública, ao menos de modo a autorizar a conduta adotada no ano de 2021.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Diante de tais premissas, tenho que prevalece a orientação ordinária da plasticidade das condições do sistema coletivo de saúde, dirigida que é pela cláusula rebus sic stantibus, mas as condições ensejadoras do custeio das mensalidades, como até então praticadas, não sofreram alteração. Por conseguinte, aflora serena a produção de efeito deletério sem qualquer motivo aparente, quando menos justo e proporcional.
A propósito, descabe falar em confronto entre o decidido o resultado do julgamento, pelo STJ, que culminou na aprovação da tese no Tema nº da 1.034, tampouco na violação dos artigos 30 e 31 da Lei 9.656/1998. Ora, segundo a compreensão de tal órgão, quanto à dimensão da regra legal, "O art. 31 da lei n. 9.656/1998 impõe que ativos e inativos sejam inseridos em plano de saúde coletivo único, contendo as mesmas condições de cobertura assistencial e de prestação de serviço, o que inclui, para todo o universo de beneficiários, a igualdade de modelo de pagamento e de valor de contribuição, admitindo-se a diferenciação por faixa etária se for contratada para todos, cabendo ao inativo o custeio integral, cujo valor pode ser obtido com a soma de sua cota-parte com a parcela que, quanto aos ativos, é proporcionalmente suportada pelo empregador". O precedente quanto aos ativos, é proporcionalmente suportada pelo empregador consagra de forma expressa a paridade legal de custeio entre ativos e inativos, observando as peculiaridades de cada um dos grupos. Como esclareceu o Exmº Relator do v. acórdão, para impor ao aposentado o pagamento integral da mensalidade, gozando da cobertura assistencial anterior, "Essa semente é efetiva quando a forma, o modelo e o valor do custeio forem o mesmo naquele universo de beneficiários - ativos e inativos -; observando as definições próprias do plano, em especial as faixas etárias". Na oportunidade, restou sugerida uma espécie de tabela por faixa etária para todos os beneficiários (mutualismo). Nesse modelo, com comprometimento de
todos eles, foi definida a possibilidade - e não imperatividade - do aposentado custear a importância suportada pelo ex-empregador, concluindo "Enfim, a correta aplicação do art. 31 da Lei n. 9.656/1998 pressupõe que ativos e inativos sejam inseridos em um modelo único de plano de saúde, com as mesmas condições assistenciais, no que se inclui paridade na forma e nos valores de custeio, ressaltando-se apenas que ao inativo caberá recolher a parcela própria, acrescida daquela que for devida pelo ex-empregador em favor dos ativos".
Contudo, no caso concreto, tal orientação foi distorcida. Inexistem evidências da implementação completa e da revisão geral do plano de saúde; ao contrário, foi comprovada a adoção da fração que interessava à empregadora, em nítida lógica de redução de custos próprios. Isso demonstra a manobra das empresas em desfavor dos aposentados, pois em nenhum momento houve a reformulação geral do sistema, em ordem a aplicar o precedente, senão a eleição de grupo específico e de modo desvirtuado. De resto, entendo preservada a ordem na Suspensão Liminar nº 1.264 do STF, pois o caso é diverso da situação nela retratada (fls. 752/767). Anoto, ainda, que segundo o teor do r. acórdão de fls. 1.825/1.841, o ponto nuclear da causa de pedir propulsora da lide era o direito adquirido aos parâmetros vigentes quando da aposentação, tese aqui também repelida. Mas naquele processo não foi possível divisar a ausência de motivo a emprestar suporte à alteração promovida, ou ainda o seu confronto com a cláusula da r. sentença normativa vigente à época do ato (DCG-1001203-57-2020-5-00-0000).
Dou parcial provimento ao recurso, condenando as reclamadas a restabelecer o planou de saúde dos substituídos nas condições anteriores a abril de 2021 - reitero, observada a cláusula . Para fins de direito, tenho pela higidez rebus sic stantibus dos dispositivos constitucionais e ordinários invocados pelas reclamadas, especialmente o artigo 30 e 31 da Lei nº 9.656/1998.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SENTENÇA COLETIVA. COISA JULGADA. LIMITES SUBJETIVOS. EXTENSÃO.Ainda que sob o tom da ilegitimidade ativa, a empresa pública postulou a aplicação do entendimento fixado pelo STF, em sede de repercussão geral, dos temas nº 499 e 1.075. E com efeito, nos termos do art. 927 do TST tais decisões ostentam caráter vinculativo no âmbito do Poder Judiciário.
Quanto ao primeiro tópico, o STF firmou tese resumida na seguinte ementa, ad litteram:
"Beneficiários do título executivo, no caso de ação proposta por associação, são aqueles que, residentes na área compreendida na jurisdição do órgão julgador, detinham, antes do ajuizamento, a condição de filiados e constaram da lista apresentada com a peça inicial."(STF-RE-612.043/PR, Ac. Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJE de 06/07/2017).
Como já visto, a autora apresentou juntamente com a petição inicial o rol dos representados (fls. 65/84), que é composta de empregados aposentados da primeira litisconsorte passiva em diversas unidades da federação. Mas, como consta de seu estatuto, trata-se de entidade atuante em todo o território nacional (art. 1º, à fl. 44), circunstância a impor a modulação dos efeitos do quanto decidido, no Tema nº 499, à luz do Tema 1.075, ambos da repercussão geral do STF. A tese do último vem assim vazada, in verbis:
"I - É inconstitucional o art. 16 da Lei 7.347/1985, alterada pela Lei 9.494 /1997.
II - Em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o art. 93, II, da Lei 8.078/1990.
III - Ajuizadas múltiplas ações civis
públicas de âmbito nacional ou regional, firma-se a prevenção do juízo que primeiro conheceu de uma delas, para o julgamento de todas as demandas conexas"
Em suma, foi excluída a limitação dos efeitos da sentença à jurisdição territorial do órgão que a prolatou (at. 16 da Lei nº 7.345/1985, com a redação dada pela Lei nº 9.494/1997), além de consagrado, como regra geral, o parâmetro fixado no art. 93, inciso II, da Lei nº 8.078/1990, quando se tratar de ação civil pública de efeitos regionais ou nacionais, como sucede no caso concreto. E apesar da decisão transitar na esfera da competência, obviamente ela há de guardar harmoniacom os efeitos do adequado exercício da jurisdição, findando no desfecho da decisão ora prolatada apanhar todos aqueles representados, independentemente da barreira de seu local de residência.
TUTELA DE URGÊNCIA. PRESSUPOSTOS. PRESENÇA. Os fatos nos quais amparado o dissídio estão suficientemente demonstrados, e, por conseguinte, aflora a verossimilhança das alegações exigidas pelo caput do art. 300 do CPC.
A lesão irreparável, ou de difícil reparação, vem assentada nos evidentes efeitos deletérios caso a empresa permaneça sem ofertar o plano de saúde com a redução ordenada. Entendendo pela presença dos requisitos do preceito em comento, defiro a tutela jurisdicional de urgência postulada, para determinar o cumprimento da obrigação de fazer já mencionada. Entendendo pela presença dos elementos do dispositivo legal, bem como fundado no art. 497 do CPC, concedo a tutela de urgência, determinando o cumprimento do presente acórdão, no prazo de 30 (trinta) dias contados de sua publicação.
Fixo, ainda, multa diária equivalente à dobra da contribuição devida pela empresa, para cada dia de mora, sem prejuízo das demais cominações autorizadas em lei.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Consigno, de resto, que não se trata de discussão sobre reajuste de vencimentos, reclassificação ou equiparação; aumento ou extensão de vantagens ao reclamante, de modo que restam potencialmente incólumes os arts. 5º, caput, da CF, 273 do CPC, 12 do Decreto-Lei nº 509/1969, 1º da Lei 9.494/1997 e 1º da Lei 8.437/1992.
Dou provimento ao recurso.
EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. PRERROGATIVAS. Conforme já pacificado pelo Supremo Tribunal Federal - posição com a qual guardo extensa reserva -, a ora recorrida é equiparada à Fazenda Pública, seja para a extensão das prerrogativas inscritas no Decreto-lei nº 779/1969, ou ainda para o procedimento de execução, o qual deve observar as balizas do art. 100 da CF.
Assim, a ela concedo as referidas benesses (fl. 1.107).
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
Proposta a ação na vigência do art. 791-A da CLT, inserido pela Lei nº 13.467/2017, são devidos os honorários advocatícios, como efeito direto da sucumbência, inexistindo suporte fático e jurídico para a imposição de honorários sucumbenciais ao autor, o qual, na verdade, é credor da parcela. Quanto ao percentual devido pelas empresas, analisando o grau de dificuldade, zelo técnico e tempo despendido, a verba pode experimentar, como compatível à atuação do procurador da reclamante o percentual de 10% (dez por cento) sobre o valor do proveito econômico obtido pelos representados, tudo conforme apurado em regular fase de liquidação.
Considerando a natureza do devedor, a parcela será apurada de acordo com os critérios do art. 85, § 3º e incisos, do CPC, limitada no tempo na forma de seu § 9º.
Dou parcial provimento ao recurso.
CONTRIBUIÇÕES FISCAIS E PREVIDENCIÁRIAS. A parcela deferida, por
meio do presente acórdão, encerra natureza indenizatória, e assim não compõe a base de cálculo das contribuições previdenciárias e fiscais.
CONDENAÇÃO. VALOR. Inverto os ônus da sucumbência, fixando as custas processuais, a cargo das empresas, em R$ 200,00 (duzentos reais), calculadas sobre R$ 10.000,00 (dez mil reais), valor arbitrado à condenação, sendo a primeira delas isenta do recolhimento.
Conheço do recurso, rejeito as preliminares devolvidas e no mérito doulhe parcial provimento, para condenar as reclamadas ao restabelecimento do custeio parcial do plano de saúde oferecido aos representados, inclusive em sede de tutela de urgência, bem como ao pagamento os honorários advocatícios, tudo nos estritos termos da fundamentação.
Por tais fundamentos, ACORDAM os Desembargadores da Segunda Turma do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da Décima Região, em Sessão Ordinária, à vista do contido na certidão de julgamento, aprovar o relatório, conhecer do recurso ordinário, rejeitar as preliminares devolvidas e no mérito dar-lhe parcial provimento, nos termos do voto do Relator.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
PROCESSO n.º 0000635-13.2019.5.10.0001 - RECURSO ORDINÁRIO TRABALHISTA
RELATORA: DESEMBARGADORA ELKE DORIS JUST
RECORRENTE: EMPRESA BRASIL DE COMUNICAÇÃO S/A - EBC
ADVOGADA: PATRÍCIA MENDANHA LINO
RECORRIDA: MONISE DE SOUZA NUNES ADVOGADO: ANDRÉ SEIBERT
ORIGEM: 1.ª VARA DO TRABALHO DE BRASÍLIA/DF
EMENTA
GRATUIDADE DA JUSTIÇA. DECLARAÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA. VALIDADE. O benefício da justiça gratuita continua sendo concedido à pessoa natural mediante simples declaração de que não possui condições de arcar com as custas processuais sem prejuízo do seu próprio sustento ou de sua família (art. 790, § 3.º, da CLT c/c art. 14, § 1.º, da Lei 5.584/1970 e art.
99, § 3.º, do CPC). Apresentada a declaração de hipossuficiência, o requisito exigido pela lei para a concessão da gratuidade da justiça está satisfeito. PESSOAS COM DEFICIÊNCIAPDC. ENQUADRAMENTO LEGAL. BENEFÍCIO NORMATIVO. INCIDÊNCIA DA LEI DISTRITAL. O benefício postulado tem fonte jurígena em norma interna da reclamada assim como em acordo coletivo do qual participou sindicato com base representativa no Distrito Federal. O acordo coletivo previu benefício com causa na qualidade de deficiente físico na forma da legislação vigente. No tema da deficiência auditiva a legislação distrital é mais elástica do que a federal. Para esta base territorial a reclamante se enquadra como deficiente. Dada a preocupação com a proteção das pessoas com deficiência, que assumiu status constitucional, foram adotadas políticas e diretrizes de inclusão nas diversas áreas sociais e econômicas da sociedade. No campo dos direitos sociais (art. 7.º, inciso XXXI) esse encaminhamento possui como norte inicial a Lei 7.853/1989. Como a menção feita no
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acordo coletivo para instituir o benefício auxílio à pessoa com deficiência reportase apenas à legislação vigente, seu exame comporta enquadramento em conformidade com os preceitos constitucionais e legais que asseguram a sua inclusão na sociedade como um todo. No caso, a Lei Distrital 4.317/2009 não confronta o teor do Decreto 3.298/1999, pois neste temos a medida mínima a ser observada pelos entes federados, enquanto que a legislação distrital abarcou as diretrizes então traçadas e foi além ao ampliar os contornos então definidos em respeito ao estímulo dado pela Lei 7.853/1989. Se no Decreto 3.298/1999 a deficiência auditiva está definida pela perda bilateral da audição, na Lei Distrital 4.317/2009, foi considerada não só a perda auditiva bilateral, mas também a unilateral total. Trata-se de acréscimo no contexto normativo federal que encontra amparo na proteção constitucional assegurada à pessoa com deficiência. Comprovada pelo laudo pericial a deficiência física do esposo e a auditiva da autora em razão dos ditames da Lei Distrital 4.317/2009, está correta a condenação da reclamada na obrigação de fazer (restabelecer os dois auxílios) e de pagar os referidos benefícios desde a suspensão, assim como de restituir o valor descontado indevidamente no contracheque da autora. Recurso da reclamada conhecido e não provido.
A juíza Martha Franco de Azevedo, da 1.ª Vara do Trabalho de Brasília/DF, proferiu sentença às fls. 648/656, complementada pela decisão às fls. 673/675, por meio das quais rejeitou a preliminar de ausência de liquidação de pedidos e a prejudicial de prescrição e, no mérito, julgou procedentes os pedidos formulados pela reclamante. No mais, deferiu à autora os benefícios da justiça gratuita e condenou a reclamada ao pagamento de honorários advocatícios no importe de 10% sobre a condenação e honorários periciais de R$ 9.000,00.
A reclamada interpõe recurso ordinário. Requer a reforma do julgado quanto aos seguintes itens: a) justiça gratuita
deferida à autora e b) pagamento dos auxílios previstos aos portadores de deficiência e restituição dos valores descontados em folha de pagamento (fls. 680/708).
A reclamante ofertou contrarrazões às fls. 713/724.
Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho, nos termos do art. 102 do Regimento Interno deste Regional.
É o relatório.
O recurso da reclamada e as contrarrazões da autora são tempestivos e regulares, inclusive quanto à representação processual (fls. 640 e 678, pela recorrente, e fls. 19, pela recorrida).
As custas processuais e o depósito recursal foram recolhidos tempestivamente e em valores adequados, conforme comprovantes às fls. 709 e 710, respectivamente.
Porque preenchidos os demais pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso da Empresa Brasil de Comunicação - EBC, assim como das contrarrazões da reclamante.
Questiona a reclamada o deferimento da gratuidade de justiça à reclamante ao argumento de que o padrão remuneratório da empregada é superior ao mencionado no § 3.º do art. 790 da CLT. Alega que a simples declaração de hipossuficiência econômica não mais autoriza a concessão da assistência judiciária gratuita e que a autora não comprovou a sua miserabilidade jurídica. Requer, assim, seja reformada decisão recorrida mediante o indeferimento
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do benefício da justiça gratuita (fls. 688).
Sem razão a recorrente.
É certo que a nova redação dada ao art. 790 da CLT assim estabeleceu em seus §§ 3º e 4º:
[...]
§ 3º É facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto a traslados e instrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)
§ 4º O benefício da justiça gratuita será concedido à parte que comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo.
Na essência nada mudou, exceto a referência salarial para fins de concessão do benefício de ofício ou sem outra comprovação. O parâmetro até então vigente era de dois salários-mínimos e agora passou a ser de 40% do limite máximo do benefício previdenciário.
Para aqueles que recebem salário superior a 40% limite máximo do benefício previdenciário, a lei exige comprovação da pobreza. Essa comprovação se faz mediante simples declaração firmada pelo interessado.
Logo, o benefício da justiça gratuita é concedido à pessoa natural mediante simples declaração de que não possui condições de arcar com as custas processuais sem prejuízo do seu próprio sustento ou de sua família (art. 790, §3º da CLT c/c art. 14, §1º da Lei 5.584/1970 e art. 99, §3º, do CPC) e assim
procedeu a reclamante.
A matéria está consolidada na recente Súmula/TST nº 463, que em seu item I, assim dispõe:
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. COMPROVAÇÃO I - A partir de 26.06.2017, para a concessão da assistência judiciária gratuita à pessoa natural, basta a declaração de hipossuficiência econômica firmada pela parte ou por seu advogado, desde que munido de procuração com poderes específicos para esse fim (art. 105 do CPC de 2015).
No mesmo sentido é o Enunciado nº 3 do Seminário de Formação Continuada de Magistrados promovido pela Escola Judicial deste Regional (Reforma Trabalhista), que assim dispõe:
JUSTIÇA GRATUITA. COMPROVAÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA ECONÔMICA. O benefício da Justiça Gratuita a que se refere o art. 790, §§ 3.º e 4.º, da CLT pode ser concedido a qualquer parte e, na hipótese de pessoa natural, a prova da hipossuficiência econômica pode ser feita por simples declaração do interessado ou afirmação de seu advogado (art. 1.º da Lei n.º 7.115/1983 e art. 99, § 3.º, do CPC).
No caso, a reclamante juntou declaração de hipossuficiência (fls. 20), de forma que está satisfeito o requisito exigido pela lei para a concessão da gratuidade da justiça.
Nego, portanto, provimento ao recurso da reclamada.
PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS. ENQUADRAMENTO LEGAL. BENEFÍCIO NORMATIVO
A magistrada sentenciante, embasada
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no laudo pericial, na Lei Distrital 4.317/2009 e na competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislarem sobre proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência julgou procedentes os pedidos formulados pela reclamante e condenou a reclamada: a) ao restabelecimento do auxílio às pessoas com deficiência tanto para a autora quanto ao seu dependente; b) ao pagamento retroativo dos dois auxílios até seu efetivo restabelecimento, observada a suspensão indevida do benefício; e c) a devolução dos valores descontados indevidamente no contracheque da autora (fls. 649/654).
Insurge-se a reclamada contra tal decisão. Renova os argumentos da defesa. Sustenta que a Junta Médica da empresa concluiu que a autora e o seu esposo não se enquadram no conceito de pessoa portadora de deficiência previsto nos artigos 3.º e 4.º do Decreto 3.298/1999. Alega que, apesar da negativa da Junta Médica, por equívoco, houve o pagamento dos dois benefícios postulados com base no ACT 2017/2018 e na Norma de Concessão de Benefícios NOR-321 no período de fevereiro de 2018 a maio de 2019, o que ensejou a sua suspensão no mês de junho de 2019 e o desconto dos valores pagos incorretamente no mês de julho de 2018, no valor de R$ 817,71, conforme memorandos às fls. 347 e 379, observada a possibilidade da Administração Pública rever seus próprios atos decorrente de falha operacional. Reitera o não enquadramento da autora e do seu esposo nas diretrizes da Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Lei 7.853/1989), regulamentada pelo Decreto 3.298/1999, e a inaplicabilidade da Lei Distrital 4.317/2009, que ampliou o conceito de deficiente auditivo. Reporta-se, ainda, à competência legislativa exclusiva da União sobre o tema da proteção e integração de pessoas com deficiência e a limitação da competência concorrente. Faz, ao final, menção a julgamento do STJ sobre a matéria e a precedente do TRT/3.ª Região. Requer, portanto, a improcedência dos pedidos da inicial e a consequente exclusão
da condenação fixada em sentença (fls. 689/708).
Considero correta a decisão recorrida.
A controvérsia situa-se, no caso, na aplicação do Decreto 3.298/1999 que regulamentou a Lei 7.853/1989, tal como encaminhado pela Junta Médica da reclamada, ou da Lei Distrital 4.317/2009, utilizada pela perita do juízo para enquadrar a autora e seu esposo como Pessoa com Deficiência e que foi acolhida pela magistrada sentenciante para fundamentar a decisão recorrida, ante a competência concorrente prevista no art. 24, inciso XIV, da CF que atrairia a incidência da lei local.
É certo que a preocupação com a proteção das pessoas com deficiência assumiu constitucional, razão pela qual foram adotadas políticas e diretrizes status de inclusão nas diversas áreas sociais e econômicas da sociedade. No campo dos direitos sociais (art. 7.º, inciso XXXI) esse encaminhamento possui como norte inicial a Lei 7.853/1989, na qual foram "estabelecidas normas gerais que asseguram o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiências, e sua efetiva integração social".
A Lei 7.853/1989 foi regulamentada pelo Decreto 3.298/1999 que em seu art. 4.º, com redação dada pelo Decreto 5.296/2004, assim dispõe quanto ao enquadramento da pessoa portadora de deficiência:
I - deficiência física - alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita
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ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;
II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000 Hz; [...] (destaquei)
Já a Lei Distrital 4.317/2009, que instituiu a Política Distrital para Integração da Pessoa com Deficiência, assim dispõe sobre as categorias de deficiência:
Art. 5º Para fins de aplicação desta Lei, devem-se considerar as seguintes categorias de deficiência:
I - deficiência física:
a) alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, com comprometimento da função física, a qual se apresenta sob a forma de paraplegia,paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros ou face com deformidade congênita ou adquirida;
b) lesão cerebral traumática: compreendida como uma lesão adquirida, causada por força física externa, a qual resulta em deficiência funcional total ou parcial, deficiência psicomotora ou ambas e compromete o desenvolvimento ou desempenho social da pessoa, podendo ocorrer em qualquer faixa etária, com prejuízos para as capacidades do indivíduo e seu meio ambiente;
II - deficiência auditiva:
a) perda unilateral total;
b) perda bilateral, parcial ou total, de 41db (quarenta e um decibéis) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz (quinhentos hertz), 1.000Hz (mil hertz), 2.000Hz (dois mil hertz) e 3.000Hz (três mil hertz); (destaquei)
Os benefícios postulados na inicial estão previstos na cláusula 23.ª do ACT 2017/2018 e no item 16 da Norma de Concessão de Benefícios NOR-321, ora transcritos:
ACORDO COLETIVO DE TRABALHO 2017/2018
CLÁUSULA VIGÉSIMA TERCEIRA - AUXÍLIO ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
A EBC garantirá o auxílio no valor de R$ 817,71 (oitocentos e dezessete reais e setenta e um centavos) ao empregado, ou respectivo filho ou dependente, que esteja enquadrado como pessoa com deficiência.
Parágrafo Primeiro - Compreendese como pessoa com deficiência aquela que não atenda aos padrões de normalidade física, mental e/ ou sensorial, na forma da legislação vigente.
[...] (fls. 116)
NORMA DE CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS - NOR 321
16. AUXÍLIO À DEPENDENTE COM DEFICIÊNCIA
16.1 Auxílio à Dependente com Deficiência é o benefício pago em pecúnia ao empregado da EBC, com o objetivo de oferecer a seu dependente com deficiência, assistência adequada
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com vistas ao desenvolvimento de sua personalidade e a sua integração ao âmbito social.
16.2 O benefício será concedido por dependente com deficiência cadastrado nos termos do item 5.3.
16.3 O Auxílio à Dependente com Deficiência será concedido mediante manifestação do empregado por intermédio no formulário SOLICITAÇÃO DE AUXÍLIO À DEPENDENTE COM DEFICIÊNCIA, encaminhado à Área de Gestão de Pessoas, devidamente acompanhado de laudo médico pericial.
16.4 O valor do Auxílio à Dependente com Deficiência será estabelecido em Acordo Coletivo de Trabalho e implantado por Resolução da Diretoria Executiva e pago mensalmente em folha de pagamento, cujo lançamento constará do comprovante mensal de rendimentos.
16.5 Não haverá participação do empregado na manutenção do Auxílio à Dependente com Deficiência.
16.6 É permitida a acumulação do Auxílio-Creche com o Auxílio à Dependente com Deficiência quanto ao mesmo dependente (fls. 417/418)
Observo que as duas normas específicas à EBC possuem contornos gerais e o próprio ACT remete o conceito de pessoa com deficiência "na forma da legislação vigente"(parágrafo primeiro da cl. 18.ª).
Constato, ainda, que o referido ACT possui como um dos signatários do instrumento coletivo de trabalho o sindicato das categorias profissionais respectivas (trabalhadores em empresas de radiodifusão e televisão e jornalistas) no Distrito Federal, conforme fls. 111. Houve, portanto, a intermediação do sindicato representativo
da clientela específica ao Distrito Federal no acordo firmado, o que insere os empregados da reclamada que prestam serviços no Distrito Federal como beneficiários da respectiva norma coletiva.
Logo, o benefício postulado tem fonte jurígena em norma interna da reclamada assim como em acordo coletivo do qual participou sindicato com base representativa no Distrito Federal. O acordo coletivo previu benefício com causa na qualidade de deficiente físico na forma da legislação vigente.
Situado o aspecto jurídico da matéria controvertida, concluo que a menção feita no acordo coletivo quanto à legislação vigente é inespecífica e, portanto, comporta enquadramento em conformidade com os preceitos constitucionais e legais que asseguram a inclusão da pessoa com deficiência na sociedade como um todo.
No tema da deficiência auditiva a legislação distrital é mais elástica do que a federal. Para esta base territorial a reclamante se enquadra como deficiente.
No caso, a Lei Distrital 4.317/2009 não confronta o teor do Decreto 3.298//1999, pois neste temos a medida mínima a ser observada pelos entes federados, enquanto que a legislação distrital abarcou as diretrizes então traçadas e foi além ao ampliar os contornos então definidos em respeito ao estímulo dado pela Lei 7.853/1989 para a consecução conjunta dos diversos entes federados para a prática de ações destinadas à integração social das pessoas portadoras de deficiência.
Se no Decreto 3.298/1999 a deficiência auditiva está definida pela perda bilateral da audição, seja ela parcial ou total, na Lei Distrital 4.317/2009, foi considerada não só a perda auditiva bilateral, mas também a unilateral total. Trata--se, portanto, de um acréscimo no contexto normativo federal que, repito, encontra amparo na proteção constitucional assegurada à pessoa com deficiência, sem
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qualquer violação à competência da União para legislar.
Isso porque, a repartição da competência legislativa concorrente está sujeita a regime jurídico próprio, conforme descrito nos parágrafos do art. 24 da CF, sendo que "a competência da União limitarse-á a estabelecer normas gerais" (§ 1.º, do art. 24, da CF). Sob este aspecto, tenho que a conceituação das espécies de deficiência, nos moldes em que definida nos incisos do art. 4.º do Decreto 3.298//1999, assume o papel de norma a ser observada no tratamento a ser dado nas legislações locais quanto à proteção e integração social das pessoas com deficiência, mas não limitadora.
Neste feito, constata-se que para a deficiência física, caso do esposo da reclamante, não há diferenciação nos conceitos, razão pela qual a perita concluiu pelo enquadramento do cônjuge da autora como Pessoa com Deficiência, nos termos dos dois regramentos legais (fls. 576 e 579):
Pela documentação médica apresentada tem-se relatório médico descrevendo ser o periciado portador de discrepância de comprimento das extremidades (membro inferior direito menor que membro inferior esquerdo): 2.4 cm pela escanometria, 3.0 cm pelo exame clinico, provocando alteração funcional na marcha e quadro de lombalgia crônica com escoliose compensatória. Tal quadro é ratificado pela radiografia digital de coluna toracolombar de 23/08/2013 que evidenciou infradesnivelamento da crista ilíaca direita.
O exame médico pericial atual constatou a presença de 3 cm de diferença do comprimento entre os membros inferiores, sendo o direito com 90cm e esquerdo com 93cm, com quadril direito desalinhado em
relação ao esquerdo, bem como dor à palpação de região lombar, dor em joelho direito, limitação em grau leve ao movimento de eversão e inversão de tornozelo direito.
Da análise do quadro clínico apresentado pelo periciado, tem-se que ele tem quadro de deformidade adquirida do comprimento do membro inferior direito, causado por sequela de fratura de perna direita, com encurtamento de 3 cm de membro inferior direito em relação ao esquerdo, gerando limitação em grau leve dos movimentos de tornozelo direito e lombalgia mecânica.
Portanto, considerando o Decreto nº 3.298/1999, conclui-se que o periciado preenche os critérios para enquadramento como Pessoa com Deficiência (PCD), em razão de comprometimento da função física, nos termos da do inciso I do artigo 4º, caracterizando DEFICIÊNCIA FÍSICA.
No mesmo sentido, considerando a Lei Distrital nº 4.317/2009, conclui-se que o periciado preenche os critérios para enquadramento como Pessoa com Deficiência (PCD), em razão de comprometimento da função física, nos termos da alínea "a" do inciso I do artigo 5º, caracterizando DEFICIÊNCIA FÍSICA.
Para a situação da autora, em virtude da distinção no enquadramento da deficiência auditiva, a perita do juízo, à vista da documentação médica apresentada, atestou que o enquadramento da autora como Pessoa com Deficiência ocorre tão somente quanto à Lei Distrital 4.317/2009 (fls. 607):
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Da análise das audiometrias acostadas aos autos, tem-se que a periciada apresenta quadro de perda auditiva neurossensorial unilateral em grau profundo, em ouvido esquerdo, com curva horizontalizada, acometendo todas as frequências, de caráter permanente; sendo que os limiares audiométricos de ouvido direito estão preservados, dentro da normalidade.
Portanto, considerando o Decreto nº 3.298/1999, conclui-se que a periciada NÃO preenche os critérios para enquadramento como Pessoa com Deficiência (PCD), uma vez que não apresenta perda auditiva bilateral, possuindo exclusivamente perda auditiva unilateral à esquerda, tendo a audição contralateral (ouvido direito) com limiares audiométricos dentro da normalidade.
Em sentido oposto, considerando a Lei Distrital nº 4.317/2009, conclui-se que a periciada preenche os critérios para enquadramento como Pessoa com Deficiência (PCD), em razão de comprometimento da função auditiva unilateral, nos termos da alínea "a" do inciso II do artigo 5º, caracterizando DEFICIÊNCIA AUDITIVA.
Como a conclusão do laudo técnico foi favorável à pretensão da reclamante tanto para a deficiência física do esposo quanto para a auditiva da autora em razão dos ditames da Lei Distrital 4.317/2009, nada há a reparar na decisão recorrida.
Logo, permanece a condenação da reclamada na obrigação de fazer (restabelecer os dois auxílios) e de pagar os referidos benefícios desde a suspensão, assim como de restituir o valor descontado indevidamente no contracheque da autora.
Mantenho a sentença quanto à restituição dos valores pagos porque recebidos de boa-fé pela autora. Ainda que
a Administração Pública possa rever os seus atos, a incúria do agente público não pode ser repassada ao empregado.
Nego provimento ao recurso da reclamada.
Pelo exposto, conheço do recurso ordinário da reclamada e, no mérito, nego-lhe provimento, nos termos da fundamentação.
Por tais fundamentos, ACORDAM os Desembargadores da Segunda Turma do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Região, conforme certidão de julgamento, decidir, por unanimidade, aprovar o relatório, conhecer do recurso ordinário da reclamada para, no mérito, negar-lhe provimento, nos termos do voto da Desembargadora Relatora. Ementa aprovada.
Brasília (DF), sala de sessões, 25 de maio de 2022.
Assinado digitalmente.
ELKE DORIS JUST Desembargadora Relatora
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
PROCESSO n.º 0000198-70.2013.5.10.000 - AGRAVO DE PETIÇÃO
RELATOR(A): JUIZ CONVOCADO ALEXANDRE DE AZEVEDO SILVA AGRAVANTE: RAIMUNDO NONATO DE OLIVEIRA RODRIGUES
ADVOGADO: CIRENE ESTRELA AGRAVADO: AUTO POSTO 208 SUL LTDA AGRAVADO: CARLOS ARLINDO GONÇALVES DO AMARAL
ADVOGADO: VALDIR LAVORATO AGRAVADO: ANA CLÁUDIA FERREIRA DO AMARAL
ADVOGADO: VALDIR LAVORATO ORIGEM: 4ª VARA DO TRABALHO DE BRASÍLIA - DF (JUÍZA NAIANA CARAPEBA NERY DE OLIVEIRA)
EMENTA: AGRAVO DE PETIÇÃO. IMÓVEL RESIDENCIAL
INTITULADOCOMO BEM DE FAMÍLIA. VENDA EM HASTA PÚBLICA POR JUÍZO CÍVEL PARA PAGAMENTO DE DÍVIDA DE FIANÇA.IMPENHORABILIDADE DO SALDO REMANESCENTE DO VALOR DA ARREMATAÇÃO.
Nos termos do art. 1º, da Lei nº 1.8.099/90, "o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar,é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil,comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele. A jurisprudência atual residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei"2.desta egrégia 2ª Turma, em consonância com a jurisprudência do colendo TST, tem sufragado que o valor elevado do imóvel ou o seu caráter suntuoso não lhe retiram a condição de bem de família, nem afastam a sua impenhorabilidade, sendo impossível a mitigação da proteção legal da Lei nº 8.009/90, porquanto esta possui fundamento
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constitucional, em especial o direito à moradia e à proteção da unidade familiar (CF, artigos 6º e 226). A jurisprudência tem consagrado, inclusive, para possibilitar ao devedor e à sua família a aquisição de uma nova moradia digna, que a "[...] a impenhorabilidade prevista na Lei 8.009/1990 subsiste quanto ao preço recebido na alienação do bem de família, sendo incabível sua utilização para quitação de dívidas". (TST, SBDI-2, ROT-100475-82.2018.5.01.0000, Relatora Ministra Maria Helena Mallmann, in DEJT 30/04/2021). Agravo de petição conhecido e desprovido.
A Excelentíssima Juíza NAIANA CARAPEBA NERY DE OLIVEIRA, titular da MM. 4ª Vara do Trabalho de Brasília/DF, proferiu sentença às fls. 307/313, nos autos da execução trabalhista movida por RAIMUNDO NONATO DE OLIVEIRA RODRIGUES em face de AUTO POSTO 208 SUL LTDA, CARLOS ARLINDO GONÇALVES DO AMARAL e ANA CLÁUDIA FERREIRA DO AMARAL, pela qual admitiu dos embargos à penhora para, no mérito, julgá-los procedentes e desconstituir a penhora realizada no rosto dos autos do processo 0022029-55.2012.8.07.0001, em tramitação perante a 19ª Vara Cível de Brasília.
O exequente interpôs agravo de petição às fls. 321/330, pretendendo a reforma da sentença para que seja mantida a penhora realizada no rosto dos autos do Processo nº0022029-55.2012.8.07.0001, em tramitação perante a 19ª Vara Cível de Brasília.
Os agravados apresentaram contraminuta ao agravo de petição às fls. 342/349.Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho, nos termos do art. 102 do Regimento Interno deste Regional.
É, em síntese, o relatório.
FUNDAMENTAÇÃO
Presentes os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade,conheço do agravo de petição interposto.
2.1. BEM DE FAMÍLIA. SALDO DE VENDA EM HASTAPÚBLICA. IMPENHORABILIDADE.
A r. sentença desconstituiu a penhora realizada no rosto dos autos do Processo 0022029-55.2012.8.07.0001, em tramitação perante a 19ª Vara Cível de Brasília, sob a seguinte fundamentação:
"
Trata-se de embargos à penhora opostos por Ana Cláudia do Amaral e Carlos Arlindo Gonçalves do Amaral (fls. 246/252 - id. 332d9b3), com o intuito de obter a desconstituição da penhora realizada no rosto dos autos do processo 002202955.2012.8.07.0001 da 19ª Vara Cível de Brasília, em razão de se tratar de bem de família.
O embargado/reclamante se manifestou às fls. 302/304.
Em síntese, é o relatório.
Bem de família. Saldo remanescente. Impenhorabilidade
Alega a parte embargante que este Juízo penhorou indevidamente verbas no rosto dos autos do processo 0022029-55.2012.8.07.0001, em tramitação perante a 19ª Vara Cível de Brasília, da importância de R$ 14.677,45. Alega que a penhora em comento recai sobre bem de família, vez que emergiu do saldo remanescente de um leilão da expropriação de uma casa, em razão de fiança concedida em contrato de locação.Entende a parte embargante que os embargantes que a
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
impenhorabilidade subsiste quando o preço recebido na alienação do bem de família. Alega que o saldo do produto da arrematação havida naquele processo deve seguir resguardado pelas garantias oferecidas ao bem de família, não podendo ser utilizado para satisfazer dívida exequenda que não possui a força para transpor a impenhorabilidade prevista no artigo 3º da Lei 8.009/90.
Consta às fls. 197/198 ofício para reserva de crédito junto à MM. 19ª Vara Cível de Brasília - DF, no valor atualizado da presente execução.
Consta às fls. 213 a confirmação da reserva de crédito pelo Juízo Cível.
Com razão os embargantes.
Restou incontroverso que o imóvel penhorado no Juízo Cível trata-se de bem de família.
A Lei 8.009/90 dispõe o seguinte (grifos):
"Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável enão responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos,inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.
Art. 2º Excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos.
Parágrafo único. No caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplicase aos bens móveis quitados que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário,observado o disposto neste artigo.
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal,previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; (Revogado pela Lei Complementar nº 150, de 2015)
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função dorespectivo contrato;
III - pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida; (Redação dada pela Lei nº 13.144 de2015)
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas emfunção do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (Incluídopela Lei nº 8.245, de 1991)
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
(...)
Art. 4º Não se beneficiará do disposto nesta lei aquele que, sabendose insolvente,adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga.
§ 1º Neste caso, poderá o juiz, na respectiva ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, liberando amais valiosa para execução ou concurso, conforme a hipótese.
§ 2º Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º,inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural.
Art. 5º Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente.
Parágrafo único. Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor,salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do art. 70 do Código Civil.
Como se vê acima, a Lei de Impenhorabilidade do Bem de Família visa a proteger o único imóvel da entidade familiar em razão de qualquer tipo de dívida civil, comercial,fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo as exceções contidas nessa leiem lume.
Em relação ao saldo remanescente decorrente, entendo que persiste o status de bem de família, pois a penhora ocorreu em razão de cumprimento de fiança para garantir contrato de locação, conforme artigo 3º, VII. Assevero que a lei não estipula um valor limite para o que pode ser um bem de família. Ainda que assim não fosse, tenho que o saldo remanescente da penhora sofrida no Juízo Cível (R$ 1.077.672,89) está dentro da razoabilidade, considerando o alto valor dos imóveis nesta Capital Federal.
Nesse sentido, há a seguinte decisão do C. TST:
"AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DAS LEIS 13.015/2014 E 13.467/2017. ATENDIMENTO AO PRESSUPOSTO DO ART. 896, § 1º - A, INC. I, DA CLT. TRANSCRIÇÃO DA EMENTA DO ACÓRDÃO RECORRIDO. O art. 896, § 1º-A, inc.I, da CLT determina ser ônus da parte recorrente "indicar o trecho da decisão recorrida que consubstancia o prequestionamento da controvérsia objeto do recurso de revista" . O referido artigo não exige que a transcrição contemple todos os fundamentos de fato e de direito adotados pelo Tribunal Regional, exigindo, apenas, que a transcrição demonstre o prequestionamento da controvérsia objeto do recurso de revista. Via de regra, a transcrição da ementa do julgado recorrido não atende o requisito em exame, uma vez que raramente o seu teor abrange todas as questões relevantes e necessárias para o enfrentamento dos argumentos postos nas razões do recurso de revista. Precedentes. Entretanto, nas hipóteses em que a ementa contemple todos os fundamentos do entendimento adotado pelo Tribunal Regional como razões de decidir, permitindo o exame da controvérsia objeto do recurso, a transcrição dessa parte
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do acórdão recorrido preenche o requisito formal exigido pelo artigo de lei em comento. Precedentes. Na hipótese dos autos, em que a única matéria objeto do recurso de revista consiste em questão de direito relativa à impenhorabilidade do bem de família (sem haver discussão quanto à natureza conferida a esse bem) e, estando registrado na ementa transcrita o fundamento adotado pelo Tribunal Regional para permitir a penhora, qual seja o alto valor do imóvel, verifica-se que a ementa transcrita demonstra, de forma abrangente, o prequestionamento da controvérsia objeto do recurso de revista. Assim, a transcrição da ementa do acórdão recorrido, no caso dos autos, atendeu ao requisito exigido pelo art 896, § 1º-A, inc. I, da CLT. Agravo provido. II - AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DAS LEIS 13.015/2014 E 13.467/2017. ATENDIMENTO AO PRESSUPOSTO DO ART. 896, § 1º-A, I, DA CLT. TRANSCRIÇÃO DA EMENTA DO ACÓRDÃO RECORRIDO. VALIDADE. EXECUÇÃO. PENHORA. BEM DE FAMÍLIA. ALTO VALOR. CRÉDITO REMANESCENTE SUFICIENTE PARA GARANTIR A AQUISIÇÃO DE OUTRO IMÓVEL PARA MORADIA DA FAMÍLIA. A ementa do acórdão do Tribunal Regional do Trabalho, no caso dos autos, demonstra, de forma abrangente, o prequestionamento da controvérsia objeto do recurso de revista. Assim, foi preenchido o requisito exigido pelo art. 896, § 1º-A, inc. I, da CLT. Demonstrada a plausibilidade da indigitada afrontaaos arts. 5º, inc. XXII, e 6º da Constituição da República, dá-se provimento ao agravo de instrumento para determinar o processamento do recurso de revista. Agravo deinstrumento a que se dá provimento. III - RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DAS LEIS 13.015/2014 E 13.467/2017. EXECUÇÃO. PENHORA. BEM DE FAMÍLIA. ALTO VALOR.
IMPOSSIBILIDADE. CRÉDITO REMANESCENTE SUFICIENTE PARA GARANTIR A AQUISIÇÃO DE OUTRO IMÓVEL PARA MORADIA DA FAMÍLIA. A proteção especial da impenhorabilidade conferida ao imóvel classificado como bem de família (Lei 8.009/1990), não pode ser relativizada em razão do seu alto valor. A conclusão de que remanesceria saldo suficiente para garantir a aquisição de outro imóvel para moradia da família não retira a proteção atribuída ao bem de família. Precedentes. Dessa forma, ao determinar o restabelecimento da penhora do imóvel do executado, não obstante o reconhecimento da sua natureza de bem de família, o Tribunal Regional decidiu em afronta aos arts. 5º, inc.XXII, e 6º da Constituição da República. Recurso de revista de que se conhece e a que sedá provimento" (RR-231-16.2010.5.01.0069, 2ª Turma, Relator Desembargador Convocado Marcelo Lamego Pertence, DEJT 03/11/2021).
No caso sub judice, a parte embargada, reclamante, não logrou comprovar que esse não era o único bem de família ou que ocorreu má-fé na aquisição do imóvel para tentar se esvair de execuções, nos termos do artigo 4º da norma em comento.
Lembro que a boa-fé se pressupõe, devendo do contrário ser cabalmente comprovado,ônus esse não satisfeito pela parte reclamante/embargado. A questão da multa por ato atentatório aplicada pelo Juízo Cível em desfavor dos embargantes, por si só, não desnatura a condição da impenhorabilidade do imóvel. Como acima frisado, deve ser demonstrado que a parte executada tenha se utilizado de má-fé na aquisição do bem parase esquivar de credores, e a multa foi para em razão de ter se utilizado de atos paraimpedir o leilão do imóvel.Dessa forma, desconstituo o penhora realizada no rosto dos autos do processo 0022029-
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55.2012.8.07.0001, em tramitação perante a 19ª Vara Cível de Brasília. Oficie-se.
Prossiga-se com a execução nos termos antecedentes.
Pelo exposto, ADMITO os Embargos à Penhora, para, no mérito, julgálos PROCEDENTES, nos termos da fundamentação retro que fica integrando este dispositivo. [...]" (fls. 307/313)
salvo nas hipóteses previstas nesta lei. Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam aconstrução, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos,inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados."
Nesse mesmo sentido, o artigo 5º da Lei nº 8.009/1990 é expresso ao determinar que, para o efeito da impenhorabilidade versada em seu artigo 1º, é considerado um único imóvel, destinado à residência da parte e sua família.
Insurge-se o Exequente, sustentando que a legislação permite a penhorade imóvel de alto valor, dito como bem de família. No caso, o imóvel estaria avaliado em R$3.380.000,00 (três milhões, trezentos e oitenta mil reais) - fls. 324. Alega que os executados nãocomprovaram de forma inequívoca que o imóvel se trata de único bem de família, não bastando a merainvocação genérica.
Em contraminuta, os executados alegam que, neste passo processual, o saldo remanescente no processo 002202955.2012.8.07.0001, em que se processa a expropriação de bem de família, em razão de fiança concedida em contrato de locação (fls. 253/259), permanece com sua natureza original, qual seja: impenhorável.
Analiso.
A documentação juntada às fls. 253/299 comprova que o imóvel dos executados é considerado como bem de família. Nesse sentido, tem aplicação o comando descrito no art. 1º, da Lei nº 8.009/90, que assim determina:
" Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam,
Tal proteção possui fundamento constitucional, em especial o direito à moradia e à proteção da unidade familiar (CF, artigos 6º e 226).
Ressalta-se, que o caso dos autos, não versa sobre qualquer das hipótesesexcludentes de impenhorabilidade previstas no art. 3º da citada lei, que assim dispõe:
"Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; (Revogado pela Lei Complementar nº 150, de 2015)
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III - pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida; (Redação dada pela Lei nº
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
13.144 de2015)
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas emfunção do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal oupela entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (Incluídopela Lei nº 8.245, de 1991)"
O fato de o valor do imóvel ser elevado ou suntuoso não autoriza aproteção legal de impenhorabilidade, conforme jurisprudência desta Eg. 2ª Turma e do Col. TST, in verbis:
"EXECUÇÃO. PENHORA DE IMÓVEL DE ALTO VALOR. BEM DE FAMÍLIA. CONDIÇÃO LEGAL INALTERADA
Demonstrado que o imóvel penhorado é a residência familiar do executado e de sua família, é indevida a constrição judicial sobre o referido bem, haja vista a proteção conferida ao direito de moradia prevista na Lei n.º 8.009/90, que resguarda a impenhorabilidade do bem de família. O alto valor econômico atribuído ao imóvel não é causa de exceção da penhora, pois essa hipótese não se encontra prevista no art. 3.º da referida lei. Manter a penhora sobre o bem, ainda que de alto valor, fere o direito assegurado constitucionalmente."
(TRT 10ªRegião, 2ª Turma, AP 0002634-0.2012.5.10.0103, Relatora Desembargadora Elke Doris Just; in DEJT 14.04.2021).
"EXECUÇÃO. BEM DE FAMÍLIA. VALOR ELEVADO DO IMÓVEL OBJETO DA CONSTRIÇÃO. PENHORA.
IMPOSSIBILIDADE. PROTEÇÃO AO DIREITO DE MORADIA. Inicialmente, cumpre salientar que, embora a matéria trazida ao debate tenha contornos nitidamente infraconstitucionais, porquanto a impenhorabilidade do bem de família está prevista na Lei nº 8.009/90, esta Corte tem admitido, em casos como este,o exame da questão, quando evidente a violação dos artigos 5º, inciso XXII, e 6º da Constituição Federal. Na hipótese, o Regional entendeu que, a despeito de ser incontroversa a natureza de bem de família do imóvel residencial objeto de penhora, a constrição era cabível em razão do seu caráter suntuoso e do seu elevado valor monetário, estimado em mais de dois milhões de reais. Asseverou que a venda do imóvel resultaria em valor suficiente para o pagamento dos créditos trabalhistas devidos,estimados em R$ 270 mil, e para a aquisição de outro imóvel, garantindo-se, assim, o direito de moradia digna à família do executado. Para chegar a essa conclusão, o Regional considerou as informações prestadas pelo Juízo de primeiro grau no sentido de que o caso envolve a execução conjunta de diversas dívidas, algumas com mais de 20 anos, e de que foram frustradas todas as incontáveis tentativas de satisfação dos créditos devidos aos trabalhadores, havendo indícios de conduta que beira à máfé processual dos executados para frustrar as execuções em trâmite. No entanto, a decisão regional merece reparo. O valor elevado do imóvel ou o seu caráter suntuoso não lhe retiram a condição de bem de família, nem afastam a sua impenhorabilidade. Desse modo, reconhecido pelo Regional que o imóvel objeto de constrição é bem de família protegido pela Lei n 8.009/90, e sendo irrelevante o valor estimado da propriedade, impossível a mitigação da proteção legal, tornando-se, assim, imperioso o afastamento da penhora. Deve-
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se preservar, sempre, em casos como este, o direito à moradia do executado e de sua família, previsto no artigo 6º da Constituição Federal, já que não constatadas as exceções à impenhorabilidade de que tratam a lei. Nesse contexto, a decisão regional pela qual se manteve a penhora do bem de família da terceira embargante, cônjuge do executado,viola o disposto no artigo 6º da Constituição Federal. Recurso de revista conhecido eprovido" (TST, 2ª Turma, RR-1033528.2013.5.15.0019, Relator Ministro José Roberto Freire Pimenta, in DEJT 17/06/2022).
Por fim, poder-se-ia alegar que, na hipótese dos autos, não se está apenhorar propriamente um imóvel considerado como bem de família, mas o saldo em dinheiro de sua venda em hasta pública, haja vista que o dito bem foi alienado pelo Juízo da 19ª Vara Cível de Brasília,para pagar dívida decorrente de fiança.
E dinheiro é sempre dinheiro, podendo o devedor se utilizar desse saldoda venda em hasta pública para qualquer finalidade, e não apenas para adquirir imóvel de uso residencial.
Assim, uma vez vendido o imóvel, não há mais que se falar em existência de bem de família, para uso de moradia digna do devedor e de sua família.
Não obstante a tese jurídica acima se mostre tentadora, forçoso é convir que, mesmo nesses casos, a jurisprudência pátria tem conferido a proteção de impenhorabilidade ao saldo da venda em hasta pública do bem intitutado de família, para o fim de assegurar ao devedor e a sua família a possibilidade de aquisição de uma outra moradia digna. Nesse sentido:
"RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ATO COATORQUE INDEFERE PENHORA NO ROSTO DOS AUTOS SOBRE O SALDO REMANESCENTE DO BEM DE FAMÍLIA LEILOADO. DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA. DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA. EXTENSÃO DA PROTEÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA AO CRÉDITO REMANESCENTE.Trata-sede mandado de segurança impetrado contra decisão em que a autoridade coatora senegou a cumprir ordem de penhora no rosto dos autos sobre o valor remanescente de alienação judicial de imóvel reconhecido como bem de família. Do exame dos autos,verifica-se que, no julgamento do Mandado de Segurança n. 0100642-36.2017.5.01.0000, o TRT da 1ª Região entendeu ser possível a penhora do bem de família pertencente à litisconsorte passiva uma vez que se tratava de "imóvel suntuoso",de alto valor, "podendo a executada adquirir outra moradia com o saldo restante após aquitação dos débitos judiciais". Muito embora a decisão que, relativizando o instituto do bem de família, autorizou a alienação judicial do imóvel, esteja divorciada da jurisprudência dessa Corte Superior, o certo é que já houve a arrematação. Dessa forma, uma vez que sequer era cabível a penhora, não há abusividade no ato indicado como coator, por meio do qual se negou a penhora sobre o crédito remanescente. Neste caso, a impenhorabilidade prevista na Lei 8.009/1990 subsistequanto ao preço recebido na alienação do bem de família, sendo incabível sua utilização para quitação de dívidas. Recurso ordinário não provido" (TST, SBDI2,ROT-100475-82.2018.5.01.0000, Relatora Ministra Maria Helena Mallmann, in DEJT 30/04/2021).
Assim, o saldo do produto decorrente da arrematação havida no processo 002202955.2012.8.07.0001, em que se processa a expropriação de bem de família, em razão de fiança concedida em contrato de locação, em tramitação perante a 19ª Vara Cível de Brasília, deve seguirr esguardado pelas garantias legais do bem de família. Ante o acima exposto, nego provimento ao agravo de petição do exequente.
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
Ante o exposto, conheço do agravo de petição do exequente e, no mérito,nego-lhe provimento, nos termos da fundamentação. É o meu voto.
Por tais fundamentos,ACORDAM os integrantes da Egrégia Segunda Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, conforme certidão de julgamento, por unanimidade, aprovar o relatório, conhecer do agravo de petição do exequente e, no mérito, negar-lhe provimento, nos termos do voto do Juiz Convocado Relator.
Ementa aprovada.
Brasília(DF), 09 de novembro de 2022 (data do julgamento).
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
PROCESSO n.º 0000025-43.2014.5.10.080 - AGRAVO DE PETIÇÃO
RELATOR(A): Desembargador Mário Macedo Fernandes Caron
AGRAVANTE: THIAGO RIBAS DE CASTRO Advogado: NEWTON CESAR DA SILVA LOPESTO0004516-B
AGRAVADOS: SARAIVA HOTEIS E TURISMO LTDA - ME, MARCELO PRAZERES SARAIVA, DIEGO RANUFE PRAZERES SARAIVA, RANUFF CORRETORA DE SEGUROS DE VIDA LTDA ORIGEM: 2ª Vara do Trabalho de Palmas - TO CLASSE ORIGINÁRIA: AÇÃO TRABALHISTA JUIZ(A): EDISIO BIANCHI LOUREIRO
EMENTA: AGRAVO DE PETIÇÃO. DILIGÊNCIA PARAINVESTIGAÇÃO DO PATRIMÔNIO DO DEVEDOR.EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO PARA AVERIGUAÇÃO SOBRE A EXISTÊNCIA DE MILHAS/PONTOS DE PROGRAMAS DE
FIDELIDADE EM NOME DOS EXECUTADOS PARA EFEITO DEPENHORA. EFETIVAÇÃO. DEVIDA. A satisfação da execução é, ao fim e ao cabo, o objetivo do processo, pois nada adianta ao jurisdicionado ter seu direito reconhecido se não pode ver cumprido o que foi determinado pela Justiça na sentença de conhecimento. Nesse contexto, a investigação patrimonial não está adstrita às ferramentas eletrônicas disponibilizadas ao Judiciário, uma vez que todas as formas permitidas em direito são válidas para a realização do objeto do processo. Embora ainda não haja legislação específica relativa à venda de milhas em nosso ordenamento jurídico, a emissão de passagens aéreas com milhas pertencentes ao cliente fidelizado em favor de terceiros é possível e encontra inclusive previsão nos próprios programas de fidelização, que também prevê a possibilidade de troca milhagens/pontos por vários outros produtos e serviços. É fato também ser cada vez mais frequente o surgimento de agências especializadas
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em intermediar a compra de milhas para fruição por terceiros, bem como é cada vez mais comum que casais em processo de divórcio passam a ter o direito de dividir, além daqueles mais tradicionais, outros tipos de bens acumulados durante a vida em comum, como é o caso de milhas aéreas, circunstâncias que evidenciam o valor econômico de tal produto. Assim, os "pontos previstos nos saldos de programas de fidelidade de cartões de crédito ou de empresas de aviação (milhagens) dos executados, integram os seus patrimônios pessoais e, portanto, podem responder pelas suas dívidas, conforme preceituam os artigos 855 e seguintes do CPC, que tratam sobre a possibilidade da "penhora recair sobre eventuais créditos pertencentes aos devedores". (TRT-2 01119001020045020020 SP, Relator: VALDIR FLORINDO, 6ªTurmaCadeira 3, Data de Publicação: 01/10/2020), cenário em que, diante da dificuldade enfrentada pela parte para ver satisfeito o seu crédito, bem como a possibilidade, ainda que exígua, de êxito, revela-se viável a diligência requerida pelo exequente. Agravo de petição conhecido e provido.
O juízo da MMª 2ª Vara do Trabalho de Palmas - TO, por meio da decisão de fls. 784/785 do PDF, reiterada à fl. 793 do PDF, da lavra do Exmo. Juiz EDISIO BIANCHI LOUREIRO, indeferiu o requerimento do exequente para realização de diligências no sentido de pesquisar a participação dos executados em programas de fidelidade de milhas aéreas para efeito de penhora.
O exequente interpõe agravo de petição à decisão, insistindo serem devidas as diligências postuladas (fls. 795/803 do PDF).
Embora regularmente intimados, os agravados deixaram transcorrer in albis o prazo ofertado para apresentação de contra minuta ao apelo (fls. 818 e 822 do PDF).
Desnecessária a oitiva prévia do Ministério Público, conforme art. 102 do Regimento Interno deste Tribunal.
É o relatório.
II- V O T O
Preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade,conheço do agravo de petição. Por oportuno, registro que, a despeito da índole interlocutória, a decisão recorrida tem o efeito de paralisar ou mesmo inviabilizar a execução, conforme entendimento adotado por esta Turma por ocasião do exame de admissibilidade do AP 0001848-93.2015.5.10.0001 (Redator Designado: Desembargador Mário Macedo Fernandes Caron, julgado em 30/9/2020).
2. Mérito DILIGÊNCIAS PARA INVESTIGAÇÃO DO PATRIMÔNIO DODEVEDOR. DO INDEFERIMENTO
Eis o teor da decisão impugnada (fl. 784 do PDF):
"1. Intimado, o Exequente requer a penhora de pontos em programas de milhas aéreas dos executados, bem como a aplicação de multa às companhias aéreas, caso não prestem as informações requeridas.
2. Quanto aos requerimentos formulados, conquanto se trate de custosa e demorada a execução, não se deve perder de vista a finalidade do processo. Logo, indefiro a pesquisa de milhas junto às companhias aérea sem nome dos executados, eis que, conquanto possuam expressão econômica, tais milhas não podem ser objeto de penhora, ante a ausência de mecanismos seguros e idôneos que permitam sua conversão em dinheiro e possuem caráter pessoal e intransferível. Ademais, não existe qualquer legislação a compelir os executados a converterem em produtos os pontos que eventualmente acumularam, situação em que os pontos expiram.
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3. Sendo assim, intime-se novamente o Exequente para indicar meios para o prosseguimento dos atos expropriatórios, no prazo de 30 dias,importando o silêncio em remessa do processo ao arquivo provisório, cominício da contagem do prazo da prescrição intercorrente de que trata o art.11-A da CLT."
A parte exequente se insurge contra essa decisão. Argumenta que, na forma do art. 835, XIII, do CPC, a penhora observará também outros direitos do devedor e "que as milhas e pontos de fidelidade oferecidos aos usuários pelas companhias áreas se traduzem em verdadeiros direitos destes últimos, que, por possuírem considerável expressão econômica, podem ser passiveis de penhora, como autoriza a legislação processual de regência", aduzindo não haver "legislação que impeça a venda de referidas milhas aéreas", sendo "plenamente possível que as milhas aéreas e os pontos em programas de fidelidade possam ser vendidos pelo seu titular". Assim, requer a expedição de ofício aos programas de fidelização que indicou, a fim de que estes informem, no prazo de 10 dias, sob pena de multa, quanto à participação e existência de milhas em nome dos executados MARCELO PRAZERES SARAIVA e DIEGO RANUFE PRAZERES SARAIVA nos referidos programas, com o deferimento da respectiva penhora.
Observo que, ao longo da execução, iniciada em abril de 2014 (fl. 480 do PDF), foram realizadas e reiteradas várias diligências no sentido de buscar a satisfação da execução,tendo todas, no entanto, restado infrutíferas (BACENJUD, INFOJUD, RENAJUD, penhora de bens, etc -fls. 501/668).
A satistação da execução é, ao fim e ao cabo, o objetivo do processo, pois nada adianta ao jurisdicionado ter seu direito reconhecido se não pode ver cumprido o que foi determinado pela Justiça na sentença de conhecimento.
Um dos principais entraves nesse sentido é a dificuldade em se encontrarbens suficientes para garantir a execução, cotidianamente atravancada ante o alto
grau de sofisticação do devedor no ofício da ocultação de seus bens, óbice que seria, cada vez mais, de difícil transposição, não fossem as diversas medidas e ferramentas de que dispõe o judiciário para superá-lo, tendo várias delas,como dito, sido utilizadas pelo juízo da execução.
Tal investigação patrimonial, no entanto, não está adstrita às ferramentas eletrônicas disponibilizadas ao Judiciário, uma vez que todas as formas permitidas em direito são válidas para a realização do objeto do processo.
Em nosso ordenamento jurídico, ainda não há legislação específica relativa à venda de milhas. No entanto, a emissão de passagens aéreas com milhas pertencentes ao cliente fidelizado em favor de terceiros é possível e encontra inclusive previsão nos próprios contratos dos programas de fidelização, que também prevê a possibilidade de troca milhagens/pontos por vários outros produtos e serviços. É fato também ser cada vez mais frequente o surgimento de agências de negociação de milhas, que tem como escopo intermediar a compra de tais milhas para emissão de passagens para terceiros, bem como é cada vez mais comum que, além de "imóveis, carros e investimentos mais tradicionais, (...) os casais em processo de divórcio passaram a ter direito de dividir também outros", como é "tipos de bens que (...) também são acumulados durante a vida em comum" como é "o caso de milhas aéreas" (Cláudia Stein, Muito além dos imóveis e investimentos: os novos bens na partilha moderna. Disponível em <https://cnbmg. org.br/artigo-muito-alem-dos-imoveis-einvestimentos-os-novos-bens-na->. Acesso em: 4 jan. 2022), sendo evidente, portanto, o valorpartilha-moderna-por-claudia-stein/ econômico de tal produto.
Assim, como bem pontuado no aresto transcrito pelo agravante para amparar sua teste, os "pontos previstos nos saldos de programas de fidelidade de cartões de crédito ou de empresas de aviação (milhagens) dos executados, integram os seus patrimônios pessoais e, portanto,podem responder pelas suas dívidas, conforme preceituam os
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
artigos 855 e seguintes do CPC, que tratam sobre a possibilidade da penhora recair sobre eventuais créditos pertencentes aos devedores"(TRT-2 01119001020045020020
SP, Relator: VALDIR FLORINDO, 6ª TurmaCadeira 3, Data de Publicação: 01/10/2020).
Nesse cenário, diante da dificuldade enfrentada pela parte para ver satisfeito o seu crédito, bem como a possibilidade, ainda que exígua, de êxito, entendo pela viabilidade da diligência requerida pelo exequente, motivo pelo qual ao agravo de petição, a fim de determinar que se proceda a expedição de ofício aos programas de fidelização indicados pelo exequente em seu recurso (fls. 801/802 do PDF), a fim de que, no prazo de 10 dias úteis, sob pena de multa diáriade R$1.000,00 - limitada ao total de R$10.000,00 -, informem sobre a participação e existência de milhas/pontos em nome dos executados MARCELO PRAZERES SARAIVA e DIEGO RANUFE PRAZERES SARAIVA nos referidos programas e, em caso positivo, determinar que seja feita a respectiva penhora.
Agravo de petição provido
III - CONCLUSÃO
Ante o exposto, conheço do agravo de petição e, no mérito, dou-lhe provimento, a fim de determinar que se proceda a expedição de ofício aos programas de fidelização indicados pelo exequente em seu recurso (fls. 801/802 do PDF), a fim de que, no prazo de 10 dias úteis,sob pena de multa diária de R$1.000,00 - limitada ao total de R$10.000,00 -, informem sobre a participação e existência de milhas/pontos em nome dos executados MARCELO PRAZERES SARAIVA e DIEGO RANUFE PRAZERES SARAIVA nos referidos programas e, em caso positivo, determinar que seja feita a respectiva penhora. Tudo nos termos da fundamentação.
É o meu voto.
Por tais fundamentos, ACORDAM os Desembargadores desta Eg. Segunda Turma do Tribunal Regional
do Trabalho da Décima Região, à vista do contido na respectiva certidão de julgamento aprovar o relatório, conhecer do agravo de petição e, no mérito, dar-lhe provimento, nos termos do voto do Desembargador Relator.
Brasília (DF), 18 de maio de 2022. (data do julgamento) Desembargador Mário Macedo Fernandes Caron
Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 26, n. 2, 2022
PROCESSO n.º 0000137-49.2022.5.10.0020 - RECURSO ORDINÁRIO TRABALHISTA
RELATOR(A): JUIZ CONVOCADO GILBERTO AUGUSTO LEITÃO MARTINS
RECORRENTE: CAIXA ECONÔMICA FEDERAL ADVOGADO: DIEGO SEIXAS RIOS RECORRIDO: MARCELO CALISTO VIEIRA NASCIMENTO
ADVOGADO: LUCAS QUEIROZ DOS SANTOS ADVOGADO: EDER FERNANDO DA SILVA ADVOGADO: HALRISSON BRUCE SANTOS FERREIRA
ORIGEM: 20ª VARA DO TRABALHO DE BRASÍLIA/DF CLASSE ORIGINÁRIA: Ação Trabalhista - Rito Ordinário (JUÍZA REJANE MARIA WAGNITZ)
EMENTA: EMENTA: 1. FGTS. SAQUE PARA TRATAMENTO
DE DOENÇA DE DEPENDENTE. POSSIBILIDADE. A jurisprudência firmou entendimento de que as hipóteses de levantamento do FGTS, previstas no art. 20 da Lei 8.036/1990 não são exaustivas, comportando ampliação dado o alcance social da norma. Evidenciado que filho do empregado teve diagnóstico de Transtorno Espectro Autista (TEA) e necessita de intervenções multidisciplinares por tempo indeterminado, viável a liberação do FGTS por se tratar de hipótese que visa resguardar a saúde de membro da família, assegurandolhe adequado tratamento de saúde. 5. Recurso conhecido e desprovido.
A MM. 20ª Vara do Trabalho de Brasília/DF, por meio da sentença proferida pela Exma. Juíza Rejane Maria Wagnitz, julgou procedente o pedido, condenando a Caixa Econômica Federal a proceder a liberação do saldo da conta vinculada do FGTS ao empregado (fls. 111 /125).
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Opõe a reclamada o recurso ordinário de fls. 129/134, sustentando a ausência de amparo legal para a liberação do FGTS. Alega que as limitações impostas pela Lei 8.036/1996 quanto ao saque da parcela têm por finalidade proteger os interesses do trabalhador, bem como evitar o desfalque do fundo garantidor. E defendendo que a liberação fora das hipóteses legais compromete a finalidade precípua do fundo, pede o provimento do apelo.
O reclamante não produziu contrarrazões.
Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho, na forma regimental.
É o relatório.
Preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade, conheço do recurso.
2.1- FGTS. SAQUE PARA TRATAMENTO DE DOENÇA DE DEPENDENTE. POSSIBILIDADE.
Insurge-se a reclamada contra a r. sentença que deferiu a liberação do saldo da conta vinculada do FGTS ao reclamante, que possui contrato de trabalho ativo. Sustenta a ausência de amparo legal para tal liberação e aduz que quando realizado o saque fora dos limites do art. 20 da Lei 8.036/1990 a finalidade precípua do fundo resta comprometida. Argumenta que tais limitações visam proteger os interesses do trabalhador e assevera que a alegada necessidade financeira do autor não se enquadra nas hipóteses legais de levantamento do FGTS (fls. 129/134).
O art. 20 da Lei 8.036/1990 elenca hipóteses em que a conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada. Entretanto, a jurisprudência firmou entendimento de que estas não são exaustivas, comportando
ampliação dado o alcance social da norma. Nesse sentido, transcrevo algumas ementas do STJ, in verbis:
FGTS. MOVIMENTAÇÃO. ROL CONSTANTE DO ARTIGO 20 DA LEI 8.036/90. NÃO-TAXATIVO. AUSÊNCIA DE RESTRIÇÕES À MOVIMENTAÇÃO NA LEI DE REGÊNCIA. 1. Este Superior Tribunal de Justiça já asseverou não ser taxativa a enumeração constante do artigo 20 da Lei nº 8.036/90, devendo ser realizada a interpretação teleológica dessa norma. (...) (REsp n. 701.069/SC, relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 22/2/2005, DJ de 4/4/2005, p. 290.)
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. OMISSÃO NÃO CONFIGURADA. FGTS. UTILIZAÇÃO DO SALDO PARA SITUAÇÃO NÃO PREVISTA NO ART. 20 DA LEI Nº 20.039/90. POSSIBILIDADE. 1. Não há violação do art. 535 do CPC quando o Tribunal de origem resolve a controvérsia de maneira sólida e fundamentada, apenas não adotando a tese do recorrente. 2. É possível o saque do FGTS mesmo nos casos não previstos no art. 20 da Lei 8.036/90, tendo em vista que o rol de hipóteses ali apresentadas não é taxativo, devendo prevalecer o fim social da norma. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp n. 10.486/ RS, relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 9/8/2011, DJe de 30/8/2011.)
No caso dos autos, não há controvérsia quanto ao diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) do filho do empregado(fls. 29). E o pleito de saque do FGTS veio fundado na inadiável necessidade da criança de intervenções multidisciplinares por tempo indeterminado, visando estabelecer sua funcionalidade e desenvolver habilidades de autonomia de vida (fl. 30). Há de se considerar o dever da família, da sociedade e do Estado de proteger a saúde da criança, em especial daquelas com deficiência, conforme copiosa fundamentação declinada na r. sentença, que
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não foi objeto de impugnação no recurso da empresa (fls. 112/115).
Como pontuado, a jurisprudência admite, em interpretação teleológica da Lei 8.036/1990, o saque do valor depositado na conta vinculada do FGTS quando comprometido algum direito fundamental do empregado, suspensão ou interrupção do pacto laboral (direito v. g. ao trabalho), acometimento de doença grave (direito à saúde) e mesmo a garantia do pagamento de prestações de financiamento habitacional (direito à moradia).
Assim, apesar de o TEA não se encontrar elencado na Lei 8.036/1990, ele equivale às moléstias graves descritas no art. 20 e protegidas pelo Estado de Direito, ante a exigência de constante acompanhamento multiprofissional. Logo, viável a liberação do FGTS por se tratar de hipótese que visa resguardar membro da família, lhe assegurando adequado tratamento de saúde.
Nego provimento ao recurso.
Pelo exposto, conheço do recurso e, no mérito, nego-lhe provimento, nos termos da fundamentação.
É o voto.
Por tais fundamentos,
ACORDAM os integrantes da Segunda Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, em Sessão Ordinária, conforme certidão de julgamento, aprovar o relatório, conhecer do recurso ordinário e, no mérito, negar-lhe provimento. Tudo nos termos do voto do Juiz
Relator Convocado.
Brasília (DF), (data do julgamento).
GILBERTO AUGUSTO LEITÃO MARTINS Juiz Relator Convocado
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