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JURÍDICO Dr. Régis dos Santos traz soluções e informações da área jurídica
J U R Í D I C O OS CORPOS VIOLADOS E A ÉTICA VIGENTE
Régis dos Santos OAB/SP 265.787 (11) 9.7653-9909
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Recentemente tivemos dois casos de estupro que chocaram o país – o caso da criança de 11 anos e o caso da atriz Klara Castanho. Pensando nas violações que ambas passaram, a nossa coluna jurídica convidou a Dra. Alexandra Pericao, advogada, escritora, artista, atual presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/COTIA, para que trouxesse seus conhecimentos sobre o tema e assim deixar claro que nenhum direito deve ser violado. Boa leitura. Cá estou (Alexandra) para dar alguns pitacos nesta coluna, tão lindamente semeada e regada pelo meu amigo e parceiro de comissão (da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/Cotia), Dr. Régis Santos. O convite especial veio com o propósito de trazer alguma reflexão sobre a ética dos profissionais da área da saúde envolvidos nos dois casos de estupro divulgados pela mídia nos últimos dias: o da menina de 11 anos e o da jovem atriz Klara Castanho. Vale lembrar que a menina de 11 anos teve o seu direito ao aborto legal negado pelos médicos do hospital de Florianópolis, enquanto a jovem atriz, sem oportunidade de recorrer ao aborto, por circunstâncias específicas de sua gravidez, teve a sua privacidade violada, também por profissionais da área de saúde, no tocante à informação sobre a entrega da criança para a adoção. Mas antes de prosseguirmos, trago um pequeno conto de um mestre Sufi, chamado Nasrudin, para iniciar esta prosa, pois não sei fazer de outro jeito. Vamos lá:
TODOSNUMACIDADEQUERIAMOUVIRNASRUDIN FALAR.ASSIMQUEELECHEGOU,LOGOPERGUNTOU: —SABEMSOBREOQUEVOUFALARHOJE? TODOSRESPONDERAM:—NÃO! EELEDISSE:—SENÃOSABEM,EUMERETIRO!—E FOIEMBORA. MASELEVOLTOUÀCIDADEEQUANDO PERGUNTOU:—SABEMSOBREOQUEVOUFALAR HOJE? TODOS,JÁENSAIADOS,RESPONDERAM:—SIM! NASRUDINDISSEENTÃO:—SEJÁSABEM,NÃO PRECISOFALARNADA!—ESERETIROU. MASELEVOLTOUÀCIDADEEQUANDO PERGUNTOU:—SABEMSOBREOQUEVOUFALAR HOJE? METADEDOPOVO,ENSAIADO,RESPONDEU:—NÃO! OUTRAMETADE,TAMBÉMENSAIADA,RESPONDEU: —SIM! NASRUDINENTÃODISSE:—MUITOBEM.AGORA,A METADEQUESABECONTAPARAAMETADEQUE NÃOSABE—ESERETIROU. EOPOVOCONTINUOUNAESCURIDÃO.
Será que Nasrudin tinha mesmo algo a dizer? E, afinal, sobre o que queriam ouvir aquelas pessoas? Este conto sempre me faz pensar sobre o quanto vamos aceitando qualquer “fala” como verdadeira, simplesmente por virem daqueles que, em algum momento, nos foram apresentados como portadores de valores morais inquestionáveis. Por que não abrimos também nossas escutas para outras falas? Aliás, qual tipo de escuta queremos realmente ter? Precisamos estar atentos aos fatos e às suas circunstâncias. E, penso eu, não podemos iniciar nenhuma reflexão, sobre os dois casos mencionados acima, sem considerarmos esta triste realidade: a cada 10 minutos, uma mulher é estuprada no país, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Sendo assim, bora refletir! No caso da menina de 11 anos, os médicos teriam exigido uma autorização judicial para a realização do aborto legal, provocando, na sequência, uma série de etapas degradantes e cruéis para a menina, vítima de estupro. No Brasil, existem três possibilidades de realização de aborto, sem que seja tipificado como crime: se não houver outro meio de salvar a vida da gestante; se a gravidez decorrer de estupro e se for diagnosticada a anencefalia do feto. A última hipótese decorre de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (2012) e as duas primeiras estão previstas no artigo 128 do Código Penal, que não faz menção ao número máximo de semanas de gestação, nem tampouco expõe a vítima de estupro ao constrangimento de ainda ter de se submeter a qualquer tipo de investigação sobre o crime. Aliás, é interessante notar que o texto legal, tal como foi redigido, não busca apenas resguardar o direito da gestante, mas, principalmente, proteger o profissional médico de qualquer responsabilidade penal. Apesar da clareza da lei, os Conselhos Federal e Regionais de Medicina vêm, há anos, orientando os médicos a exigirem que as vítimas apresentem Boletins de Ocorrência em casos de estupro. Aqui, já se abre uma enorme janela para reflexão, partindo-se da própria justificativa dada pelo CREMESP, que afirmou se tratar de uma preocupação “de que a dispensa do B.O., sem salvaguardas, abrisse uma porta para que mulheres que não tinham sido vítimas de violência sexual assim se declarassem, levando o médico a realizar um tipo de aborto proibido por lei. ” (Edição 211, 03/2005. Fonte: https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Jornal&id=475 – acessada em 30/06/2022) . Notamos que a justificativa está calcada numa presunção de haver, por regra, mulheres que mentem a respeito do estupro, apenas para se valerem do aborto legal, desconsiderando, por completo, o altíssimo número de crimes sexuais praticados no país. Curioso é que, o próprio Código de Ética da categoria proíbe o médico de descumprir legislação específica em caso de abortamento, obrigando-o a respeitar a dignidade do paciente, sem discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto, e garantindo-lhe, ainda, o direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar nos termos da lei.
Em setembro de 2020, o Ministério da Saúde publicou uma portaria dispondo sobre o procedimento de autorização de interrupção de gravidez, nos casos previstos pelo Código Penal, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Por esta portaria, atribuiu-se aos médicos a obrigação de comunicarem às autoridades policiais os casos de estupro, com o objetivo de darem publicidade ao crime. Ou seja, não se impôs à vítima nenhuma obrigação de apresentar boletim de ocorrência, muito menos de obter previamente uma decisão judicial autorizativa para o aborto legal. Voltando ao caso da menina de 11 anos, cabe ainda perguntar: em que hipótese é válida a presunção de que uma criança grávida não tenha sido vítima de estupro? Obviamente, nenhuma. Assim, se realmente ficar comprovada a conduta dos médicos de Santa Catarina, quer me parecer não haver dúvidas de que descumpriram a lei penal, a referida portaria ministerial e o próprio Código de Ética da categoria, sem nem mencionar a violação ao Estado da Criança e do Adolescente (ECA) e à Constituição Federal. E quanto à atriz Klara Castanho? Poderiam os profissionais da área da saúde, ou quaisquer outros envolvidos, divulgarem para terceiros os fatos sobre a adoção? Primeiramente, é preciso deixar claro: entregar uma criança para a adoção é permitida por lei, assegurada pelo ECA e por lei específica, devendo a gestante ser encaminhada à vara judicial da infância e da juventude, sem nenhum constrangimento, e incumbindo ao poder público proporcionar assistência psicológica à gestante e à mãe adotante, no período pré e pós-natal, inclusive como forma de prevenir ou minorar as consequências do estado puerperal, além de garantir total sigilo sobre a entrega da criança. Os Códigos de Ética dos profissionais envolvidos no ato, bem como daqueles que o divulgaram, prescrevem também o sigilo, além de estarem todos sujeitos às proibições da Lei Geral de Proteção de Dados. Portanto, o vazamento da informação é de extrema gravidade e os profissionais envolvidos devem ser punidos nos termos das legislações aplicáveis. E não há como encerrarmos esta reflexão sem considerarmos que, em ambos os casos, e ouso dizer na maioria deles lamentavelmente, um crime tão grave como o de estupro acaba sendo relegado à posição de mal menor, atribuindo-se às vítimas uma responsabilidade incabível e perversa, como se a elas coubesse qualquer tipo de obrigação de parir e ou criar crianças geradas por atos de violência sexual. Legitimar a paternidade em caso de estupro é tornar permissível que quaisquer meninas e mulheres sejam submetidas à força por quaisquer homens que desejem torná-las suas fêmeas reprodutoras. Ou seja, é instituir de vez a barbárie, sob o falso pretexto de se defender vidas em formação (fetos) e, pior, sob a perversa narrativa de se tratar de uma determinada vontade divina, orientada para punir os corpos violados, somente os corpos violados, ninguém mais.
Alexandra Pericao.