JURÍDICO
OS CORPOS VIOLADOS E A ÉTICA VIGENTE
Recentemente tivemos dois casos de estupro que chocaram o país – o caso da criança de 11 anos e o caso da atriz Klara Castanho. Pensando nas violações que ambas passaram, a nossa coluna jurídica convidou a Dra. Alexandra Pericao, advogada, escritora, artista, atual presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/COTIA, para que trouxesse seus conhecimentos sobre o tema e assim deixar claro que nenhum direito deve ser violado. Boa leitura. Cá estou (Alexandra) para dar alguns pitacos nesta coluna, tão lindamente semeada e regada pelo meu amigo e parceiro de comissão (da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/Cotia), Dr. Régis Santos. O convite especial veio com o propósito de trazer alguma reflexão sobre a ética dos profissionais da área da saúde envolvidos nos dois casos de estupro divulgados pela mídia nos últimos dias: o da menina de 11 anos e o da jovem atriz Klara Castanho. Vale lembrar que a menina de 11 anos teve o seu direito ao aborto legal negado pelos médicos do hospital de Florianópolis, enquanto a jovem atriz, sem oportunidade de recorrer ao aborto, por circunstâncias específicas de sua gravidez, teve a sua privacidade violada, também por profissionais da área de saúde, no tocante à informação sobre a entrega da criança para a adoção. Mas antes de prosseguirmos, trago um pequeno conto de um mestre Sufi, chamado Nasrudin, para iniciar esta prosa, pois não sei fazer de outro jeito. Vamos lá:
TODOS NUMA CIDADE QUERIAM OUVIR NASRUDIN FALAR. ASSIM QUE ELE CHEGOU, LOGO PERGUNTOU: —SABEM SOBRE O QUE VOU FALAR HOJE? TODOS RESPONDERAM: — NÃO! E ELE DISSE: — SE NÃO SABEM, EU ME RETIRO! — E FOI EMBORA. MAS ELE VOLTOU À CIDADE E QUANDO PERGUNTOU:— SABEM SOBRE O QUE VOU FALAR HOJE? TODOS, JÁ ENSAIADOS, RESPONDERAM:— SIM! NASRUDIN DISSE ENTÃO: — SE JÁ SABEM, NÃO PRECISO FALAR NADA! — E SE RETIROU. MAS ELE VOLTOU À CIDADE E QUANDO PERGUNTOU: — SABEM SOBRE O QUE VOU FALAR HOJE? METADE DO POVO, ENSAIADO, RESPONDEU:— NÃO! OUTRA METADE, TAMBÉM ENSAIADA, RESPONDEU: — SIM! NASRUDIN ENTÃO DISSE: — MUITO BEM. AGORA, A METADE QUE SABE CONTA PARA A METADE QUE NÃO SABE — E SE RETIROU. E O POVO CONTINUOU NA ESCURIDÃO.
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Régis dos Santos OAB/SP 265.787 (11) 9.7653-9909
Será que Nasrudin tinha mesmo algo a dizer? E, afinal, sobre o que queriam ouvir aquelas pessoas? Este conto sempre me faz pensar sobre o quanto vamos aceitando qualquer “fala” como verdadeira, simplesmente por virem daqueles que, em algum momento, nos foram apresentados como portadores de valores morais inquestionáveis. Por que não abrimos também nossas escutas para outras falas? Aliás, qual tipo de escuta queremos realmente ter? Precisamos estar atentos aos fatos e às suas circunstâncias. E, penso eu, não podemos iniciar nenhuma reflexão, sobre os dois casos mencionados acima, sem considerarmos esta triste realidade: a cada 10 minutos, uma mulher é estuprada no país, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Sendo assim, bora refletir! No caso da menina de 11 anos, os médicos teriam exigido uma autorização judicial para a realização do aborto legal, provocando, na sequência, uma série de etapas degradantes e cruéis para a menina, vítima de estupro. No Brasil, existem três possibilidades de realização de aborto, sem que seja tipificado como crime: se não houver outro meio de salvar a vida da gestante; se a gravidez decorrer de estupro e se for diagnosticada a anencefalia do feto. A última hipótese decorre de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (2012) e as duas primeiras estão previstas no artigo 128 do Código Penal, que não faz menção ao número máximo de semanas de gestação, nem tampouco expõe a vítima de estupro ao constrangimento de ainda ter de se submeter a qualquer tipo de investigação sobre o crime. Aliás, é interessante notar que o texto legal, tal como foi redigido, não busca apenas resguardar o direito da gestante, mas, principalmente, proteger o profissional médico de qualquer responsabilidade penal. Apesar da clareza da lei, os Conselhos Federal e Regionais de Medicina vêm, há anos, orientando os médicos a exigirem que as vítimas apresentem Boletins de Ocorrência em casos de estupro. Aqui, já se abre uma enorme janela para reflexão, partindo-se da própria justificativa dada pelo CREMESP, que afirmou se tratar de uma preocupação “de que a dispensa do B.O., sem salvaguardas, abrisse uma porta para que mulheres que não tinham sido vítimas de violência sexual assim se declarassem, levando o médico a realizar um tipo de aborto proibido por lei.” (Edição 211, 03/2005. Fonte: https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Jornal&id=475 – acessada em 30/06/2022) . Notamos que a justificativa está calcada numa presunção de haver, por regra, mulheres que mentem a respeito do estupro, apenas para se valerem do aborto legal, desconsiderando, por completo, o altíssimo número de crimes sexuais praticados no país. Curioso é que, o próprio Código de Ética da categoria proíbe o médico de descumprir legislação específica em caso de abortamento, obrigando-o a respeitar a dignidade do paciente, sem discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto, e garantindo-lhe, ainda, o direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar nos termos da lei.