VÍRUS #4 — AGOSTO/SETEMBRO 2008
MANUEL DENIZ SILVA E PEDRO RODRIGUES O TEMPO DAS CEREJAS – ALGUMAS ANOTAÇÕES SOBRE MÚSICA E REVOLUÇÃO
ER SSI DA O D UER L Q S E RA PLU
ELÍSIO ESTANQUE O BLOCO, O PS E A DIFICULDADE DOS CONSENSOSÀ ESQUERDA
ANDRÉ FREIRE COLIGAÇÕES E DEMOCRACIA: OS DILEMAS DA ESQUERDA GRANDE COLIGAÇÃO OU ESQUERDA PLURAL? JOÃO TEIXEIRA LOPES PARA A REFUNDAÇÃO DA ESQUERDA JOÃO SEMEDO CULTURA DE PODER OU CULTO DO PODER? MIGUEL SILVA GRAÇA A CIDADE, O ADMIRÁVEL MUNDO NOVO DO CONSUMO E AS SUAS CATEDRAIS CARLOS CARUJO SOREL 68. O ROMANTISMO REVOLUCIONÁRIO, O MITO E O PESSIMISMO DANIEL OLIVEIRA DEVE SER SOCIALISMO + MÚSICA LEITURAS POESIA
O PODER DO DEBATE
EDITORIAL | JOÃO TEIXEIRA LOPES
AO MESMO TEMPO QUE PSD E CDS CONSTItuem cada vez mais uma redundância face ao PS (e daí a constante invenção de “novos” paradigmas ideológicos, como pretendem Pires de Lima e Pedro Passos Coelho, sem ninguém verdadeiramente perceber o seu alcance, a não ser uma certa liberalização dos costumes a que a velha direita de Cavaco Silva e Manuela Ferreira Leite resiste, e a quase total destruição do Estado), PS e PCP vivem em verdadeiro coma ideológico. Este último, na verdade, nada de novo acrescentou ao debate das esquerdas desde a queda do Muro de Berlim (em que claramente “recebeu” a herança da defunta URSS), surpreendendo-nos, no entanto, com os posicionamentos internacionais: apoio à Coreia do Norte (no tempo de Carvalhas, Bernardino Soares ainda foi obrigado em plena sessão parlamentar a negar umas palavras benevolentes sobre esse regime monstruoso, mas agora a altura é de cerrar fileiras na cegueira e de considerar essa espécie de monarquia despótica como um corajoso exemplo de combate ao imperialismo
norte-americano...), à China, às FARC... O PS, por seu lado, verga-se, com raras excepções, ao problem solver (a expressão é de Paulo Pedroso, em recente entrevista à TSF) do pragmático todo-o-terreno José Sócrates, eliminando qualquer resquício de pensamento crítico, repetindo clichés (Sócrates afirmou numa sessão pública que a frase “strategy is about winning” – que contém em si todo um programa de darwinismo social – é “pura poesia”!) e exercitando o núcleo-duro do neoliberalismo pós social-democrata. Na verdade, o calor do debate tem apenas aquecido as franjas e movimentos que se situam à esquerda da actual orientação hegemónica do PS (tirando, como já referi, o extraordinário exemplo de imobilismo do PCP). E aí, muito se questiona: devem as esquerdas dialogar para ocupar o poder? O que é “ocupar o poder”? O que é o “poder”? O que é “governar à esquerda”? Quais as linhas que separam a actual linha neoliberal do PS de um programa alternativo? As esquerdas alternativas, nomeadamente o Bloco de Esquerda, têm medo do exer-
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cício do poder? Serão, por escolha e definição, eterno contra-poder? A Vírus ocupa, pois, o seu dossier central com um debate a quatro vozes: Elísio Estanque, João Semedo, André Freire e João Teixeira Lopes tocam no nervo da polémica. Entretanto, em Contratempos Daniel Oliveira, na sua vida de blogger, profetiza, já para a próxima geração e mesmo em Portugal, uma superação, em termos de influência e disseminação, dos usos da Internet, reflectindo sobre o seu potencial contracultural, bem como sobre as relações que estabelece com as dinâmicas sociais dominantes. Ainda nesta secção, Carlos Carujo revisita Georges Sorel, homem, político e revolucionário pleno de paradoxos, numa análise que nos conduz à reflexão sobre o papel da crença e do romantismo na construção de projectos radicais, uma vez que todos os combates são sempre autobiográficos – dizem dos contextos mas também das pessoas concretas que lutam. No Ensaio Geral, Manuel Deniz Silva e Pedro Rodrigues reflectem, com o distanciamento que a compara-
ção histórica permite, sobre os circuitos e contextos de produção e fruição/recepção da música revolucionária, tentando aferir o seu valor de sobrevivência e a sua capacidade de se reinventar em novos usos e cenários. A música revolucionária não o foi sempre, nem o é para sempre. Contradições e apropriações múltiplas, algumas até inesperadas e perversas, levam a que algumas melodias apolíticas se tornem de repente densas ideologicamente, enquanto que outras, subversivas na sua intencionalidade original, se perdem progressivamente numa memória oficial e conservadora. Neste número somos ainda transeuntes, em Cidades Invisíveis, dessas novas catedrais pós-modernas do urbanismo de ficção, aqui analisadas por Miguel Silva Graça. Não são hoje os shopping centers absolutamente centrais nas nossas vidas? Espécie de espaço público pastiche (ultravigiado – a microelectrónica, novo panóptico, permite com enorme eficácia um vasto controlo social), ilustram bem as relações do novo desenho das cidades (o tal que aprende com Las Vegas e Mickey Mouse) com as pulsões e necessidades do capitalismo tardio. Finalmente, em Rapsódia, para além de textos literários inéditos (desta feita da autoria de Carlos C. Pacheco), contribuições de Sandy Gageiro, André Beja e Joana Lucas sobre as palavras, sons e imagens que às vezes escolhemos, outras vezes nos escolhem – afinidades electivas…
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ENSAIO GERA
O TEMPO
DAS CEREJAS
ALGUMAS ANOTAÇÕES SOBRE MÚSICA E REVOLUÇÃO MANUEL DENIZ SILVA | PEDRO RODRIGUES
O TEMPO DAS CEREJAS -ALGUMAS ANOTAÇÕES SOBRE MÚSICA E REVOLUÇÃO MANUEL DENIZ SILVA E PEDRO RODRIGUES | MUSICÓLOGOS
MÚSICA E POLÍTICA (UM DESENCONTRO HABITUAL) “’Tás m’a dar música?...” Música é aquilo que nos dão para nos enganar, numa conhecida expressão da língua portuguesa. E não anda fácil pronunciar, com sentido, a palavra revolução. Talvez na publicidade: “Estamos a fazer uma REVOLUÇÃO na oferta musical. Aproveite-a.” Era um anúncio de uma orquestra portuguesa nos anos 90. Talvez se fale, sim, de revolução tecnológica – essa que parece estar sempre na ordem do dia... E fala-se ainda de histórias antigas, de grandes revoluções francesas, americanas ou russas. Mas são coisas tão distantes... Ou não? Curiosamente, as duas palavras, música e revolução, apareceram nos últimos anos juntas em alguns momentos comemorativos. Nas discretas homenagens dos 20 anos da morte de Zeca Afonso. Ou nos 65 anos do nascimento e 25 da morte de Adriano Correia de Oliveira. Novas versões das suas canções foram as formas de actualização preferida, e já experimentada com algum sucesso (lembram-se dos Filhos da Madrugada?). No 25 de Abril, desde que passaram trinta anos da revolução dos cravos, deram-nos muita música. Edições e reedições, discos com música a explicar o 25 de Abril às crianças, televisões e jornais a lançar os “sons da revo-
lução”. Mas as efemérides são o ponto de partida destas iniciativas, o que parece o oposto de qualquer revolução – oposto de um movimento que interrompe o curso regular da história. Nestas celebrações, sobretudo nas institucionais e de mercado, é a revisão da matéria que domina. “Na sociedade burguesa o passado domina o presente”. A frase é do Manifesto do Partido Comunista, mas podia aplicar-se bem à fúria comemorativa que arruma e fecha na gaveta mais do que abre à discussão e à acção do presente. Fora das comemorações, a relação mais frequente (ou pelo menos a mais mediatizada) entre um músico e a política é a sua presença em campanhas eleitorais, festas, comícios, ou simplesmente na declaração de apoio a este ou aquele partido ou candidato, assinando esta ou aquela petição. Na verdade, na maior parte dos casos, o músico faz a sua música, que não interfere na linha política do partido, tal como este não interfere nas suas composições. É uma relação de apoio e tolerância, sem compromisso exagerado. Tradicionalmente, os políticos consideram as artes (e a música entre elas) um assunto secundário, e é raro o músico meter-se a sério em política (pois se os sons nada dizem...). Este desencontro é a regra. As tentativas de o contrariar são suspeitas – ou conduzem à imposição política sobre o músico e
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ao empobrecimento da música, ou à perda de sentido da política. E a política não se pode perder em devaneios musicais... Quando tentamos meter a revolução ao barulho, ouve-se logo a chinfrineira que daí resulta: “Para que me serves com essas artes, se eu quero é fazer a revolução?” pergunta o revolucionário ao músico. Ao que o músico responde: “Que raio me dás tu para a minha música ser melhor?”. (...)
REVOLUÇÕES APOLÍTICAS No passado mês de Abril, a Casa da Música propôs um interessante ciclo, intitulado “Música e Revolução”. No programa fala-se de “conceito de revolução ao nível estilístico”. E aqui entra de tudo. Uma homenagem ao Zeca, pois claro. Mas também Monteverdi, Wagner, Schoenberg, Stravinsky, Berio, Ligeti, Stockhausen, Beatles, Rolling Stones, Thelonious Monk. “Revoluções musicais”, portanto. Sublinhamos no texto de apresentação frases como: “A ruptura com a tonalidade”, “levando ao limite o conceito de virtuosismo”, “nomes da revolução “bebop””, “subverteu a forma tradicional da sinfonia”, “introdução de dissonâncias harmónicas e novas técnicas contrapontísticas que viriam a revolucionar toda a música do período barroco”. Quanto à revolução rock e pop, ela é identificada com a integração de novas tecnologias na música. E mais esta, deliciosa, e ainda por cima verdadeira, que é sobre a Sagração da Primavera de Stravinsky: “A obra foi de tal forma inovadora que originou uma verdadeira rebelião entre os que a apoiavam e os que a consideravam um insulto, e só depois da polícia estabelecer a ordem no teatro é que o bailado pôde prosseguir dentro de alguma normalidade.” Felizmente há polícia, para defender a “revolução musical”... Neste tipo de programação, as obras são-nos apresentadas apenas como episódios da aceleração do progresso artístico, marcos duma história linear e canónica, com a qual o mercado e as instituições vivem bem. Para a instituição, a revolução na música identifica-se sobretudo com as vanguardas artísticas, representadas no século XX por Schoenberg ou Stockhausen. Mas o primeiro era politicamente conservador e o segundo um megalómano místico e individualista (oiçam, se tiverem paciência, esta sua inenarrável intervenção de 1972 so-
PARA A INSTITUIÇÃO, A REVOLUÇÃO NA MÚSICA IDENTIFICA-SE SOBRETUDO COM AS VANGUARDAS ARTÍSTICAS, REPRESENTADAS NO SÉCULO XX POR SCHOENBERG OU STOCKHAUSEN. MAS O PRIMEIRO ERA POLITICAMENTE CONSERVADOR E O SEGUNDO UM MEGALÓMANO MÍSTICO E INDIVIDUALISTA. bre a “evolução do género humano”). E no entanto foram vanguardistas, novos, “revolucionários” na música. Revolução tem, neste caso, um objectivo preciso – é a legitimação anti-conservadora da arte moderna, um tipo de discurso inaugurado (no que toca a música) no século XVII (com Monteverdi, precisamente) e que chega, com grandes diferenças, ao século XX, século de outras revoluções e outras “vanguardas” políticas e artísticas. Mas muitas vanguardas nunca quiseram nada com a revolução social. Antes pelo contrário. Pois como podia a vanguarda instituída querer afrontar as instituições? Pierre Boulez, outro grande nome da vanguarda musical da segunda metade do século XX, fugia à questão, quando confrontado com ela, desta forma: quem quer ser revolucionário que pegue no fuzil. Ele era apenas e só “revolucionário na música”, não tinha nem queria ter nada a ver com política. Como é sabido, Boulez venceu. Na vida (os mais altos cargos na música francesa), no cânone artístico, no reconhecimento institucional dentro e fora do mundo da música. Não se trata de negar o valor de qualquer destas correntes, nem da possibilidade de um desenvolvimento autónomo da linguagem musical. Apenas de apontar
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que nesta forma de ver (e ouvir) as coisas, a dialéctica entre música e revolução desaparece. Revolucionar a música é um objectivo em si mesmo. Pode confundir-se com “ruptura estética”, seja ela de que tipo for. A ideia de revolução está neste caso apenas ao serviço da arte. Ou seja, a relação da música com a revolução aparece apenas por analogia com a vanguarda política, guardando desta a sua aura modernizadora e criativa, mas mantendo-se a uma prudente distância da realidade social1. Fala de revolução, mas nada quer com o que está fora da música. E, no entanto, é na sociedade que estão os ouvidos... (...)
“PARA QUE ME SERVES COM ESSAS ARTES, SE EU QUERO É FAZER A REVOLUÇÃO?” PERGUNTA O REVOLUCIONÁRIO AO MÚSICO. AO QUE O MÚSICO RESPONDE: “QUE RAIO ME DÁS TU PARA A MINHA MÚSICA SER MELHOR?”
MÚSICA NA REVOLUÇÃO: O CASO SOVIÉTICO Nos primeiros anos da Revolução de Outubro, os músicos não ficaram de fora. Tomaram parte, também eles, na construção de uma nova sociedade. E nesse processo, confrontaram-se com vários dilemas. Antes de mais, a questão da cultura de classe. A música das classes emancipadas deveria ser a mesma das anteriores classes dominantes ou dever-se-ia criar uma nova música para uma sociedade nova? E nesse caso, o que fazer com a herança cultural anterior à Revolução? Fazer tábua rasa e começar tudo de novo? Ou aproveitar o que de melhor se tinha feito até aí?2 Anatoli Lunatcharski, que chefiou o Comissariado para a Instrução Pública (Narkompros) e tinha a seu cargo a organização da vida musical, procurou encontrar um compromisso, apelando à “inspiração revolucionária” dos artistas ao mesmo tempo que defendia que as formas anteriores constituíam uma herança legítima do proletariado. Para dirigir o Departamento de Música (Muzo) do Narkompros, Lunatcharski escolheu Arthur Lourié, compositor adepto da música moderna, admirador de Stravisnsky e Schoenberg. Lourié considerava a música como um “meio apolítico”, e a sua direcção fez com que nos primeiros anos da revolução os círculos da administração musical tenham sido globalmente favoráveis à música moderna, à liberdade criativa e à expressão individual. No entanto, acusado de elitismo, Lourié foi substituído em 1921 por Boris Krasin, membro dos Grupos Proletários de Educação e Cultura (Proletkult). A partir desse momento, o meio musical soviético dividiu-se em duas correntes opostas, a dos que defendiam o desenvolvimento de uma música moderna e experi-
mental, e a dos que promoviam uma “música proletária”, simples e comunicativa. Os defensores da música moderna organizaram-se em torno da Associação da Música Contemporânea (AMC), fundada em 1923, e que teve como principais animadores Leonid Sabaneev, Samuil Feinberg, e Nicolai Miaskovsky em Moscovo, e Boris Asafiev e Nicolai Roslavetz em Leninegrado. Foi no seio desta associação que emergiu uma nova geração de compositores soviéticos, nomeadamente Alexander Mossolov, Leonid Polovinkin, Vladimir Deshevov ou Dimitri Chostakovitch. A oposição dos compositores da AMC à “música proletária” não era uma questão de orientação política, mas de exigência formal. Era no campo da música, da sua forma e da sua linguagem, que a revolução se deveria traduzir. Nikolai Roslavets, por exemplo, desenvolveu uma teoria de “acordes sintéticos”, que permitiam a definição de todo o material melódico e harmónico da peça. Tratava-se, segundo ele, de emancipar os sons das regras hierárquicas do sistema tonal, da mesma forma que a revolução emancipava os explorados da sociedade (oiçam os seus cinco prelúdios para piano, escritos entre 1919 e 1922). A identificação entre música e revolução era antes de mais um processo metafórico, seguido por outros actores do meio musical soviético, como as orquestra sem maestro (a mais célebre das quais foi a orquestra “Persimfans”, fundada em 1922 por Zeitlin), baseadas na ideia de trabalho colectivo e na invocação do fim dos déspotas e tiranos, de que a figura do chefe de orquestra seria a encarnação. Outra forma de participação dos compositores da AMC na revolução da vida soviética foi a integração dos sons e ruídos da modernidade. Tomar como modelo
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das suas composições a máquina era para os músicos futuristas uma forma de traduzir, com os meios próprios da arte, os desafios da modernização industrial. Alguns exemplos: A fábrica, de Alexander Mossolov (conhecida no ocidente como A fundição do aço, Carris (1926), obra para piano de Vladimir Mikhaylovich Deshevov (1889-1955), ou Dnieprostroï, de Yuly Sergueievitch Meytus (1930?), ou o bailado O Parafuso (1931), de Chostakovitch (este último já bastante irónico quanto à estetização da máquina). Do outro lado, os compositores que desenvolveram a sua actividade no seio do Proletkult procuraram quebrar o quadro tradicional da escuta musical. Queriam abandonar as salas de concerto, levar a música aonde ela não existia antes, desenvolver a música popular e lançar campanhas pedagógicas para introduzir o repertório clássico nas fábricas e nos campos. Música para a agitação, para a propaganda, para a educação. Em 1922, foi criado dentro da Secção de Música da Editora Estatal Soviética um Departamento de Propaganda (Agitotdel), dirigido por Lev Shulgin, para coordenar a composição, publicação e distribuição de propaganda musical (agitmuzyca). No ano seguinte, a intensificação das acções de propaganda do Agitotdel levaram 3 dos seus membros (Lev Shulgin, David Chernomordikov e Aleksey Sergeev) a fundar a Associação Russa de Músicos Proletários (ARMP), que reuniu compositores, intérpretes, críticos musicais e professores. Este grupo, para além de animar acções de formação de músicos amadores, publicou opúsculos, panfletos e um jornal, significativamente intitulado “O Solo Virgem da Música” (Musycal’naia nov). A tentativa de esbater as diferenças entre música e ruído,
entre campo e cidade, entre intérpretes e público, foi particularmente visível nas gigantescas encenações de Arseni Avraamov (1886-1944), e em particular a sua “Sinfonia das Sirenes”, realizada 1922 em Baku, para comemorar o 5.º aniversário da Revolução. Todas as fábricas da cidade, os navios fundeados no porto e ainda vários destacamentos militares (artilharia e metralhadoras), foram convocados para um enorme espectáculo sonoro, em que a população foi convidada a participar, juntando-se na praça principal para cantar a Marselhesa e a Internacional. Por outro lado, Avraamov destacou-se igualmente no desenvolvimento de experiências microtonais, trabalhando nos estúdios do Proletkult na divisão da oitava em 48 partes, o que viria a dar origem à Sociedade para a Música em Quartos de Tom, fundada em 1923. Estas experiências microtonais tiveram o apoio de Lunatcharsky, num momento em que o próprio Lénine se entusiasmava com o teraminvox, intrumento electrónico inventado por Léon Theremin. Mas o movimento da música proletária foi bem mais contraditório e complexo que o dos compositores modernistas. Em 1924 começaram a surgir dissensões no interior da ARMP e em Dezembro, Lev Lebedinsky, do Komsomol do Conservatório de Moscovo, acusou a organização de produzir obras pouco apropriadas para o proletariado, ou porque demasiado difíceis ou porque demasiado simplistas. Lebedinsky atacou igualmente o Agitotdel, que segundo ele não estimulava a criação colectiva nem a discussão prévia das peças, nem fomentava a emergência de autores vindos das classes proletárias e ignorava as especificidades da propaganda musical no meio rural. Ainda em 1924, uma parte da ARMP, nomeadamente Shulgin e Sergeev, saiu para fundar a
Associação de Compositores Revolucionários e Activistas Musicais (ORKiMD). Quase todos os membros do Agitotdel aderiram ao novo movimento e o jornal da secção de música da Editora Estatal Soviética, Muzyka i revoliutsiia (Música e Revolução) tornou-se na prática o órgão de imprensa da ORKiMD. Em 1925, enfim, Aleksander Davidenko (1899-1934) fundou um outro grupo, o Colectivo de Produção dos Estudantes do Conservatório de Moscovo (Prokoll). Davidenko foi um dos principais expoentes da música proletária e um dos mais activos defensores da música coral de massas, de que foi exemplo a oratória O caminho para Outubro, composição colectiva de 1927 para a celebração do 10.º aniversário da Revolução (podem ouvir aqui um coral de Davidenko numa orquestração tardia e melancólica de Chostakovitch). Lenine afirmara que “os problemas culturais não podem ser resolvidos tão depressa como os problemas militares ou políticos”, o que permitiu que os anos 20 tenham sido uma época de debate fértil e intenso entre diferentes correntes estéticas. Em 1932, uma resolução do PCUS sobre a “Reconstrução das organizações literárias e artísticas” veio acabar com a liberdade de discussão. A AMC e a ARMP foram dissolvidas e em 1933 foi organizada a União dos Compositores Soviéticos. Não se tratava de um compromisso, nem da vitória de uma das correntes. A resposta de Estaline para os debates dos anos 20 seria a mais académica e conservadora possível. E brutalmente autoritária. Todos os compositores ficaram sob a ameaça constante de serem colocados no índex. Muitos acabaram no Goulag. Outros foram obrigados a partir para repúblicas periféricas e dedicar-se à música folclórica (Mossolov, Roslavetz).
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A MÚSICA AO SERVIÇO DA REVOLUÇÃO “A revolução comunista não teme a arte”, afirmavam André Breton e Léon Trotsky em 1938, insurgindo-se contra a repressão que então se abatia sobre os que continuavam a defender a liberdade de criação na União Soviética. Nesses anos, o ex-libris da propaganda musical estalinista foi o famoso coro do Exército Vermelho, fundado em 1928 por Alexander Alexandrov, professor do Conservatório de Moscovo, para acompanhar as tropas que construíram o caminho de ferro da fronteira oriental da URSS, continuando depois a participar nos diferentes grandes estaleiros dos anos 30 (barragens, pontes, estradas, fábricas, etc.). O coro tornou-se, nos anos seguintes, um elemento primordial da propaganda de guerra e o símbolo de uma revolução marcial e viril (vejam, por exemplo, esta encenação da canção “A Guerra Sagrada”, composta por Alexandrov no dia da invasão da União Soviética pelas tropas nazis em 1942 e um dos grandes sucessos do seu coro). Esta foi a música da contra-revolução, da retórica nacionalista e autoritária, umas vezes música stakanovista para o esforço de produção e de guerra, outras música folclórica para o “socialismo num só país”, para a “união dos povos”, feita em uniforme militar e acompanhada por muitas balalaikas e acordeões . Música feita ainda em nome da revolução, cada vez comemorada com mais pompa à medida que ia sendo estrangulada. E, não por acaso, foi a Alexandrov que Estaline encomendou o hino nacional da URSS, instituído em 1944 para substituir a Internacional, o mesmo que foi recuperado por Putin em 2000. Com outra letra, claro, mas do mesmo poeta, Sergei Mikhalkov. Música do poder, e para a manutenção do poder.
LENINE AFIRMARA QUE “OS PROBLEMAS CULTURAIS NÃO PODEM SER RESOLVIDOS TÃO DEPRESSA
COMO OS PROBLEMAS MILITARES OU POLÍTICOS”, O QUE PERMITIU QUE OS ANOS 20 TENHAM SIDO UMA ÉPOCA DE DEBATE FÉRTIL E INTENSO ENTRE DIFERENTES CORRENTES ESTÉTICAS.
O argumento do “serviço”, que se tornou vulgata em muitos movimentos revolucionários do século XX, foi uma forma de legitimar a subordinação da música e das outras artes aos imperativos do partido e do Estado. Foi a base do “realismo socialista” imposto por Jdanov a todos os domínios artísticos a partir dos anos 30. E neste “serviço” que lhe foi exigido, a música ficou com pouco ou nenhum espaço para se constituir como uma produção autónoma, para ser política à sua maneira. Um dos exemplos mais evidentes da arbitrariedade do poder soviético em questões musicais foi o infortúnio da ópera Lady Macbeth de Mtsensk, de Dimitri Chostakovitch, considerada primeiro pela crítica como o melhor exemplo de “realismo socialista” na música, aquando da sua estreia em 1934, para dois anos mais tarde ser condenada por “formalismo” e “caos esquerdista”, depois de Estaline ter assistido a uma representação... e não ter gostado do que ouviu. Na altura, o Pravda condenou a “indigência melódica” duma música “impossível de memorizar”, “decadente”, “pornofónica”. Na revolução portuguesa, também houve hinos heróicos e música “ao serviço da revolução”. Por exemplo, os do Coro Popular “O Horizonte é Vermelho”, modelo Alexandrov de loja chinesa. E muito kitsch revolucionário, como a canção Somos Livres (sim, a da gaivota) de Ermelinda Duarte, muito cantado depois, por crianças e não só. Ou ainda esta versão da Grândola, gravada por Amália em 1975, bem carregada de contradições. Uma versão emocionante ou horripilante, conforme os pontos de vista e conforme os ouvidos. O problema deste repertório não é apenas uma questão de mau gosto. O problema é que nesta lógica estreita, em que muita música de intervenção se instalou no pós 25 de Abril, a
NA LÓGICA ESTREITA EM QUE MUITA MÚSICA DE INTERVENÇÃO SE INSTALOU NO PÓS 25 DE ABRIL, A MÚSICA TEM POUCAS ALTERNATIVAS: É HINO COM MENSAGEM, É PALAVRA DE ORDEM. NO FUNDO, SERVE DE PANO DE FUNDO, DE CENÁRIO. E É A PARTIR DESTA DIMENSÃO DECORATIVA QUE O MERCADO DE HOJE SE INTERESSA POR MUITO DO REPERTÓRIO MUSICAL DO PREC.
música tem poucas alternativas: é hino com mensagem, é palavra de ordem. No fundo, serve de pano de fundo, de cenário. E é a partir desta dimensão decorativa que o mercado de hoje se interessa por muito do repertório musical do PREC. Mostram-se imagens com uma cantiguinha da época (ou associada ao período histórico por alguma razão), e está tudo dito. A comemoração não é apenas a arma da burguesia para arrumar a história à sua maneira. É também, neste caso, uma forma de submeter a música, de a normalizar. O que não quer dizer que não tenham surgido, aqui e ali, experiências interessantes neste tipo de repertório, como por exemplo algumas canções do GAC. Por exemplo A luta do Jornal do Comércio (podem ouvi-la aqui, canção n.º 10), em que a música começa como panfleto, tornando-se depois canção colectiva (um pouco popularucha, verdade seja dita), para acabar como palavra de ordem de manifestação (“o fascismo não passará!”). Mas aqui, o que rompe com o aspecto decorativo é esta vontade de sair do disco, de vir para a rua. Em todo o caso, os principais cantores de intervenção que marcaram o antes, o durante e o depois da revolução portuguesa (Zeca, Adriano, Fausto, Sérgio Godinho, José Mário
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Branco) têm muito poucas canções a exaltar Abril. E se a Grândola, enquanto tal, “serviu” a revolução, não foi tanto por ter sido usada como senha para o 25 de Abril (E depois do adeus , o êxito de Paulo de Carvalho no festival da canção de 1974, também serviu, apesar de pouco ter de subversivo). Foi pela forma como aquele texto, aquela música, aquela forma de cantar, circularam para lá da censura salazarista como expressão (utópica) da possibilidade (real e prática) de uma nova revolução. (...)
O SOM CONTAGIOSO DA REVOLTA (“A REVOLUÇÃO É PR’A JÁ”?) A música pode vir antes da revolução. Porque pode ser ferramenta da revolta futura. Violeta Parra, cantora, compositora, pintora, ligou a sua música à revolução de uma forma particular – com a sua voz e a sua guitarra mergulhou a canção-testemunho e a canção popular da América do Sul num caldo de revolta. Em 1973, ela já se tinha suicidado, mas as suas canções participaram (pela voz de outros) na denúncia do terror do golpe de estado e da ditadura de Pinochet no Chile. Inspirou muitos músicos e combatentes da América Latina, deu ânimo a outras vozes para se exprimirem em liberdade e se revoltarem também, gritarem a urgência de outra sociedade. A canção-revolta é contagiante. E Violeta Parra contagiou directa ou indirectamente a música de Milton Nascimento, Chico Buarque, José Mário Branco, José Afonso. E até a de um Tino Flores, quando este canta “um rio de revolta”, que nunca secou ao longo da história, na sua canção Coração Vermelho. Estes contagiaram bandas como os Peste e Sida, os Censurados ou o hip hop político de Chullage. E por aí fora... Todos partilharam, nalgum momento, a urgência presente numa das últimas canções de Zeca Afonso: “a revolução é p’ra já!” Música como aspiração de uma outra sociedade foi também o que Woody Guthrie e Pete Seeger quiseram nos anos 30 e 40, quando recolheram centenas de canções populares norte-americanas. E não foi por acaso que foi à música religiosa, cantada pelos grupos mais desfavorecidos da sociedade, que foram buscar a força messiânica que anuncia a emancipação, seja em We shall overcome, popularizada por Pete Seeger ou em This Land
is my Land (resposta de Guthrie ao hino patriótico God Bless America, de Irving Berlin). São músicas que reforçam o sentimento de comunidade e de união, que trazem a esperança da esfera espiritual para o aqui e agora da luta política. Estas canções, recuperadas nos anos 60 pelo movimento dos direitos cívicos, tornaram-se uma espécie de repertório político subterrâneo da esquerda americana. Uma ideia de uma outra América, a da luta de classes, que pôde até chegar por vezes aos “tops”. Veja-se o Bruce Springsteen na sua fase “Born in the USA”. Outras músicas são para aqui e agora. Em 1978 foi organizado o primeiro concerto do Rock Against Racism, criado em 1976 como resposta ao crescimento da extrema-direita e às declarações racistas de alguns músicos famosos (Eric Clapton, entre outros). Os Clash são uma das bandas convidadas. Na segunda metade dos anos 70, os Clash afastavam-se do punk nihilista, e mostravam ser abertamente contra o punk de retórica fascista, para evitar confusões ideológicas cultivadas por muitas outras bandas que se afirmavam “neutras” ou apolíticas. Se há um lado agressivo, violento e até “militar” no punk, os Clash dão-lhe a volta nos seus primeiros anos de existência, clarificando os adversários e descobrindo noutras músicas (o funk ou o dub, por exemplo) referências e influências que permitiam não apenas tomar a palavra e fazer mais do que superficial “crítica social”, mas exprimir a revolta, e usando formas musicais que o punk fascista não podia utilizar ou recuperar. Foram importante exemplo para dezenas de bandas e milhares de jovens revoltados com a sociedade que lhes propunha Margaret Thatcher. Quando foi explícito na acção política e dinâmico na reinvenção das formas
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da canção de protesto, o punk foi revolucionário. Não como género mercantil regulado, mas como proposta de insurreição nas formas de criação e partilha da música (os Clash no mercado e no caminho da fama, é certo, mas centenas de outras bandas inventando processos de produção e distribuição não submetidos pelo capital). O punk-rock como movimento partilhável, quando respondeu à recuperação mercantil e tomou posição política foi revolucionário inspirador para músicos de outros campos (o hip hop, por exemplo). Quando não ficou caricatura recuperada de uma atitude iconoclasta, foi uma fonte ainda não esgotada de revolta e reinventou a canção de protesto. Os Clash foram capazes de canções como Spanish bombs, em que a referência da guerra civil espanhola (“Or can I hear the echo from the days of 39?”) ecoa na prática política concreta do anti-fascismo do presente e cresce a partir das sementes deixadas pelos sons do passado: “Spanish bombs rock the province/ I’m hearing music from another time”. A participação dos Clash no Rock Against Racism teve consequências práticas na luta anti-fascista e afrontou a ideologia dominante. Estava nos antípodas das declarações vagas de boas intenções dos músicos humanitários dos anos 80 (Live Aid, ou USA for Africa, lembram-se do “We are the world”?). Daqueles que, como Bono, “pedem” aos “líderes mundiais” (G8) para se portarem bem e apelam ao “consenso”, separam a sua música da intervenção “cidadã” e não expressam nenhum antagonismo. E que almoçam com George Bush. A juventude não perdeu, ainda hoje, a possibilidade de responder à demagogia e à infantilização com insubmissão e ironia, criando música que pode sair dos nichos de mercado em que querem fechar e domar os (eternos)
A PARTICIPAÇÃO DOS CLASH NO ROCK AGAINST RACISM TEVE CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS NA LUTA ANTI-FASCISTA E AFRONTOU A IDEOLOGIA DOMINANTE. ESTAVA NOS ANTÍPODAS DAS DECLARAÇÕES VAGAS DE BOAS INTENÇÕES DOS
MÚSICOS HUMANITÁRIOS DOS ANOS 80 (LIVE AID, OU USA FOR AFRICA, LEMBRAM-SE DO “WE ARE THE
WORLD”?)
teenagers. Até Marc Bolan, da banda de “glam-rock” T-Rex, cantava em 1972 “No, you won’t fool the children of the revolution” – prova de que a revolução social (e sexual) pode passar também por refrões banais. E Patti Smith, mesmo longe da força subversiva de outros tempos, podia ainda cantar nos anos 90 “People have the power”. Mas para a música se cumprir é preciso arrancar o poder a quem o tem. “SIM, MAS...” (OU A MÚSICA COMO TESTEMUNHO DO FUTURO) A música pode vir depois da revolução. Nos anos que se seguiram à Comuna de Paris, várias canções contavam o que se tinha passado, contra as mentiras fabricadas pelo regime de Thiers. A sua função era a do testemunho – dizer simplesmente o que tinha acontecido. Podia ser só isso uma canção revolucionária – uma forma de contar a verdade dos factos, contra a calúnia e a falsificação. A canção La semaine sanglante, de Jean-Baptiste Clément, músico e communard, descreve alguns dos acontecimentos revolucionários de Paris e denuncia o massacre de milhares de pessoas ordenado por Thiers e os seus generais. A música relata, conta, toma posição sobre o que se passou. Testemunho/verdade de um passado fechado, no sentido em que se completou, e não se pode voltar atrás. Mas a música não encerra apenas uma história passada. Fala de um futuro. No refrão de La semaine sanglante grita-se “Oui, mais... Ça branle dans le manche/Les mauvais jours finiront” (“Sim, mas... Há um grão na engrenagem/ Os maus dias acabarão”) Mais do que uma esperança, há um aviso, uma ameaça de profunda mudança que não desaparece apesar dos “dias sangrentos”. O refrão é neste
A MÚSICA PODE VIR DEPOIS DA REVOLUÇÃO. NOS ANOS QUE SE SEGUIRAM À COMUNA DE PARIS, VÁRIAS CANÇÕES CONTAVAM O QUE SE TINHA PASSADO, CONTRA AS MENTIRAS FABRICADAS PELO REGIME DE THIERS. A SUA FUNÇÃO ERA A DO TESTEMUNHO – DIZER SIMPLESMENTE O QUE TINHA ACONTECIDO.
caso uma interrupção da descrição da violência (e não um retorno). Este “mas” é revolucionário. Outro exemplo de canção-testemunho é Elle n’est pas morte (Ela não está morta). A letra é de Eugène Pottier, o mesmo da Internacional. A comuna de Paris, esse “novo ponto de partida” (Marx) para as lutas revolucionárias do século XIX e do início do século XX, é outra vez a referência. Ali se canta: “Eles fizeram os crimes/ Contando com o silêncio”, para depois proclamar provocatoriamente: “A Comuna não está morta!” A música, também ela, pode ser o som que denuncia e quebra aquele silêncio de morte. Uma outra ideia coexiste portanto com a responsabilidade da música-testemunho (do passado). Ao relatar e tomar posição sobre o que se passou, ela mantém viva a aspiração de outra possibilidade revolucionária. A Comuna de 1871 foi estrangulada, mas alguma coisa sobrevive. Promessa de outros tempos que virão, como na mais conhecida canção associada à Comuna, Le temps des cerises). Aqui os desgostos de amor e as derrotas políticas têm qualquer coisa em comum – a certeza de que, ainda assim, outro tempo de grandes transformações virá. Porque todos os anos nascem novas cerejas.
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Louise Michel escrevia em poema (que também foi musicado) essa promessa messiânica: “Nous reviendrons par tous les chemins” (“Por todos os caminhos voltaremos”). Cabe-nos perguntar e responder a isto: “Nós, quem? Nós, como?” E assim actualizar a necessidade de revolução social (e a responsabilidade política correspondente) contra a irresponsabilidade das políticas de gestão do capitalismo que nos mantêm em guerra e nos conduzem à barbárie. Mas o que pode a música, não antes nem depois, nem nos séculos XIX e XX, mas hoje, agora, neste andamento do presente? (...)
“SEMPRE FOI ASSIM MAS ESTÁ A SER DIFERENTE” (DE COMO A MÚSICA SE FAZ SUCATA) A música revolucionária não o foi sempre, nem o é para sempre. Se algumas melodias apolíticas se tornam de repente carregadas ideologicamente, outras que eram subversivas perderam-se progressivamente numa memória oficializada e reaccionária. Valerá a pena lembrar a evidência – de tal modo ela nos parece hoje improvável –, de que “A Portuguesa” de Alfredo Keil, antes de ser o hino do nosso nacionalismo, foi música revolucionária? Esta questão do devir da música revolucionária é importante. Tomemos por exemplo Ludwig van Beethoven, o amante da liberdade e da ideia de emancipação da humanidade. Marx tinha 9 anos quando Beethoven morreu. Mas Beethoven conheceu a Revolução Francesa e a sua música afrontava a tirania, no seu modo romântico e revolucionário, tão próximo de Schiller. Era expressão ideal de uma outra humanidade. Mas a música de Beethoven não foi revolucionária para todo o sempre. Teve um tempo e uma história. Marcuse dizia em 1969: “Roll over Beethoven” (aludindo a uma canção de Chuck Berry popularizada pelos Beatles). Explicava Marcuse, à boa maneira da teoria crítica: “Já não se pode tolerar a Ode à Alegria; deixaram de se resolver e superar as contradições, os conflitos e os males que existem com uma ode à alegria. Não se pode fazê-lo, nem em termos de composição musical, nem em termos da sua audição. Porque os conflitos e as contradições reais desfazem a realidade em pedaços e revelam a falsidade destes êxitos sublimes da cultura. Como humanização e harmonização ilusória, como falsa e ilusória alegria.” Ele tinha ido falar com estudantes canadianos a Vancouver. O Maio de 68 e as revoltas estudantis e
operárias de finais de 60 em todo o mundo estavam no ar. Mas é bem possível que Marcuse tivesse uma certa razão. A verdade é que a famosa Ode à Alegria, a passagem mais conhecida da Nona Sinfonia, obra em que Beethoven deu uma forma exemplar ao seu sonho de humanismo musical, teve no século XX as conotações políticas mais diversas. Reivindicada por movimentos socialistas e comunistas, mas também pelo regime nazi, pôde ser o hino nacional da Rodésia, um dos estados onde o regime de segregação racial foi mais duro, antes de ser o hino da Europa liberal, em orquestração do muito reaccionário von Karajan3. O que importa aqui é isto – nenhuma obra de arte, mesmo o monumento da cultura mais “indiscutível”, está isento de leituras contraditórias, de recuperações, de apropriações abusivas. Basta lembrar que grande parte do cancioneiro nazi foi buscar canções do movimento operário alemão, mudando-lhes a letra. Muita da música revolucionária (na ideia e na forma) dos séculos XIX e XX não serve para as revoluções de hoje. Ou talvez sirvam, dirá um DJ que põe Beethoven no prato. Mas servirá apenas se for desmontada, escaqueirada, atacada ou subvertida. É apenas material (arruinado), sucata útil para a produção musical do presente. A MÚSICA NÃO É SÓ PARA OUVIR, É PARA FAZER É dessas ruínas que podem surgir hoje novos rompimentos de linguagens musicais e novas formas de ouvir a música (e novas atitudes e vontades também), necessariamente em confronto e em diálogo com outras artes e outros mundos. É do uso crítico dos meios técnicos ao mesmo tempo mais arcaicos e mais avançados que
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podem surgir hoje os sons e as memórias indispensáveis para as revoluções que aí vêm. Porque não chegou ao fim a necessidade radical de encontrar outras formas de produzir e de os seres humanos se relacionarem de outros modos, livres do jugo da exploração. Que músicas serão? Música com novas formas, para romper com a formatação, alargar a sensibilidade, abrir os ouvidos, transformar a escuta. Música nova, que usa contra a dominação as possibilidades técnicas e políticas que aí estão. Música-promessa, para semear e inaugurar outras formas de sociedade. Música-testemunho, para não esquecer, para agir agora e ecoar no futuro. Música resistente, para levantar a cabeça. Música-revolta, para participar nas lutas e mudar as relações sociais. Música livre das rédeas do mercado, contra a restauração e o revivalismo. Música antagonista, não submetida ao capital, na forma como é produzida e por quem pode ser produzida (não apenas os artistas). Por entre as ruínas do século que passou, também nos ficou essa memória de que a música que revoluciona é uma música que se faz. Como as Heróicas de Lopes-Graça, que foram escritas para serem cantadas e não consumidas, que valiam como participação colectiva no aqui e agora de uma partilha estética e politica. Ou como em algumas peças de Jorge Peixinho, que soube aliar uma linguagem musical exigente com a experimentação festiva e prática de um trabalho comum. Um outro exemplo, para terminar: a força de uma festa onde abundam os cantores não profissionais. Na pequena povoação de Pontirolo, em Itália, uma centena de kms a sul de Milão, realiza-se anualmente uma festa organizada pela Lega di Cultura di Piadena, fundada em
SE ALGUMAS MELODIAS APOLÍTICAS SE TORNAM DE REPENTE CARREGADAS IDEOLOGICAMENTE, OUTRAS QUE ERAM SUBVERSIVAS PERDERAM-SE PROGRESSIVAMENTE NUMA MEMÓRIA OFICIALIZADA E REACCIONÁRIA. VALERÁ A PENA LEMBRAR A EVIDÊNCIA – DE TAL MODO ELA NOS PARECE HOJE IMPROVÁVEL –, DE QUE “A PORTUGUESA” DE ALFREDO KEIL, ANTES DE SER O HINO DO NOSSO NACIONALISMO, FOI MÚSICA REVOLUCIONÁRIA?
1967. Música e revolução estão ali juntas, num momento excepcional. Durante três dias come-se comida da região ou trazida por todos, bebe-se, canta-se a música resistente de todo o mundo, fala-se de política, de cultura, de (outra) sociedade. Ao contrário do que aprendemos na família, (“não se canta à mesa!”), ali canta-se à mesa. É apenas uma excepção, local e rara, mas aponta uma possibilidade revolucionária que se encontra por todo o mundo: a música (a contratempo) ser parte essencial da vida e da sua transformação, desse conjunto de condições necessárias para inaugurar outras formas de vida em comum. Essa é uma possibilidade que continua viva.
NOTAS Sobre a identificação das vanguardas estéticas com a revolução política, ver RANCIÈRE, Jacques, Le partage du sensible, Paris: Éditions la Fabrique, 2000. 1
Sobre a música nos primeiros anos da URSS, ver EDMUNDS, Neil, Soviet Music and Society Under Lenin and Stalin: The Baton and Sickle, Londres: Routledge, 2004. 2
Ver BUCH, Esteban, A nona sinfonia de Beethoven – uma história política, Lisboa: Terramar, 2005. 3
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DOSSIER ESQUERDA PLURAL
ELÍSIO ESTANQUE O BLOCO, O PS E A DIFICULDADE DOS CONSENSOS À ESQUERDA ANDRÉ FREIRE COLIGAÇÕES E DEMOCRACIA: OS DILEMAS DA ESQUERDA GRANDE COLIGAÇÃO OU ESQUERDA PLURAL? JOÃO TEIXEIRA LOPES PARA A REFUNDAÇÃO DA ESQUERDA JOÃO SEMEDO CULTURA DE PODER OU CULTO DO PODER?
O BLOCO, O PS E A DIFICULDADE DOS CONSENSOS À ESQUERDA
ELÍSIO ESTANQUE | SOCIÓLOGO, PROFESSOR NA FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
HÁ, NOS TEMPOS QUE CORREM, UMA NECESsidade cada vez mais premente de pensar a esquerda em torno de propostas alternativas à actual política, capazes de estimular possíveis alianças entre diferentes sensibilidades da(s) esquerda(s). São precisos mais contributos heterodoxos e inconformistas perante o actual “estado da arte”, marcado por demasiados silêncios e cumplicidades com os interesses e o poder. Tenho tido oportunidade de participar e intervir em alguns destes fóruns (ou fora, mais correctamente), em geral integrados por gente do BE, do PS, renovadores do PC e alguns independentes. Partilho muitas das opiniões de André Freire nessa matéria. É fundamental promover iniciativas, sejam elas de âmbito mais geral ou de âmbito local, em que as diversas linguagens e “culturas ideológicas” possam confrontar-se abertamente sem estarem condicionadas por estratégias partidárias. Não é que estas sejam menos importantes. Pelo contrário, sendo os partidos estruturas essenciais à democracia, eles são por excelência o espaço de eleição da intervenção política, ao mesmo tempo que são – ou melhor, deveriam sê-lo – os exemplos máximos de democracia interna. O que, como todos sabemos, infelizmente, não é verdade. E é justamente por isso que a intervenção de cidadãos inconformados com o estado do país e com a política do governo Sócrates deve alargar-se para fora da estrutura dos partidos, (embora não numa lógica anti-partidos). Ora, a questão é que nesses fóruns o partido que em geral tem maior presença – e também uma atitude
mais interveniente e activa – é o Bloco. Isto, uma vez que nem o PCP nem o PS enquanto tais estão para aí virados. Já se sabe que os caminhos que têm sido perseguidos pelo Bloco se baseiam numa estratégia e num discurso de contra-poder – quer na crítica radical ao capitalismo global quer na actividade parlamentar e no confronto permanente com o governo – fundados em diagnósticos e argumentos fortes, beneficiando da inegável capacidade e competência política dos seus deputados, quadros e dirigentes. O seu discurso irreverente e o estilo inovador, na luta por causas particularmente sensíveis a certos segmentos sociais (contra o poder militar unipolar dos EUA, a invasão do Iraque, mas também na defesa das minorias excluídas, dos direitos feministas, dos imigrantes, dos homossexuais, dos trabalhadores precários, etc.), permitem capitalizar em seu benefício, pelo menos em parte, o crescente descontentamento popular em relação ao governo. Mas, apesar do estilo cosmopolita, do maior sentido pragmático resultante de uma estratégia de crescimento que lhe trouxe também maiores responsabilidades políticas, o certo é que o Bloco continua prisioneiro do seu passado (ou do passado das formações políticas que lhe deram origem). Muito embora tenha até agora sabido gerir de modo mais ou menos equilibrado as tensões e sensibilidades distintas que o compõem, subsiste ainda no BE uma mentalidade e uma “cultura” de radicalismo doutrinário. Subjaz à linguagem de muitos dos seus activistas uma clara dificuldade em
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descolar do habitual “cânone” bloquista, isto é, uma atitude algo arrogante e de superioridade moral em relação a outras correntes e concepções de esquerda. O Bloco herdou muitos dos princípios leninistas e trotsquistas do passado, o que significa grosso modo uma linha de actuação baseada no pressuposto de que o Partido conduzirá (tarde ou cedo) o povo à revolução e ao “paraíso socialista” (ou comunista). É uma doutrina que tende a desprezar o voto e a importância das escolhas do eleitorado. O eleitorado deixa-se sempre manipular e portanto, a democracia “burguesa”, com toda a máquina de propaganda que tem ao seu dispor, consegue iludir as massas. É este o raciocínio implícito. Não digo que esta seja a estratégia do partido. Inclusive faz sentido esperar que o BE dê um novo passo que o possa conduzir a alcançar ou influenciar mais eficazmente o poder e as políticas. O que digo é que existem ainda sensibilidades internas em que a referida postura radical resiste fortemente. É preciso estar junto das massas, penetrar os movimentos e iniciativas cujo impacto seja mais amplo e de cujos resultados o partido possa beneficiar (ou seja, a “vanguarda” deve penetrar a frente de massas para as conduzir à revolução, logo que as condições estejam reunidas...). Tal concepção está enraizada no subconsciente dos militantes (em maior ou menor grau) e funciona como dogma. Escudados nas suas “certezas”, tendem a julgar as outras esquerdas (ou parte delas, designadamente as que têm alguma ligação ao PS) como se estivessem
“contaminadas” por referências e “desvios” inaceitáveis. Nesta forma de conceber a actividade partidária, não me parece existir muita diferença em relação ao PCP. Há correntes dentro do Bloco que são abertamente anti-reformistas, embora não se chegue a perceber se, afinal, a estratégia do próprio partido privilegia as reformas progressistas e emancipatórias (mas dentro do sistema) ou antes a ideia de uma “revolução” contra o sistema... E enquanto esta ambiguidade não for resolvida teremos de avaliar a partir da conjugação entre os discursos e os comportamentos dos activistas e responsáveis. O relativo conhecimento que me é possível obter a este respeito permite-me registar que, apesar da boa-vontade e espírito de abertura de muitos dos quadros do BE, as propostas na base das quais se pretende obter a adesão de outras sensibilidades de esquerda deixam, recorrentemente, escapar linguagens e posturas em que tais premissas vêm ao de cima, denunciando os preconceitos arreigados que atrás assinalei. E contra o PS, por razões óbvias, a desconfiança é grande. Mas, ao lado das legítimas e justificadas críticas ao PS, dadas as suas responsabilidades políticas, o certo é que existem inúmeras sensibilidades entre os socialistas – muita gente diz, com alguma razão, que é aí que se encontra a verdadeira oposição a Sócrates e afins – e há por todo o lado filiados no PS, com maior ou menor responsabilidade, que pensam à esquerda, muito críticos da actual liderança, e que querem genuinamente contribuir para criar alternativas. Porém, muitos quadros do BE – embora pretendendo ou dizendo pretender amplas alianças de esquerda – tendem a recusar aliar-se a quem, em algum momento do seu passado político, ocupou cargos de responsabilidade... E
isto, na prática, mina o clima de debate aberto e plural que se exige, e reduz as pretensas alianças ao próprio Bloco e a mais alguns que só não são filiados por acaso. Assim, será muito difícil conceber e pôr em prática novas propostas, novas visões da esquerda e caminhos políticos alternativos que sejam, ao mesmo tempo, abrangentes e viáveis no actual quadro democrático. O PS tem, sem dúvida, muitos vícios de aparelhismo, diversos problemas de funcionamento interno e uma preocupante falta de autonomia e dinamismo quando é governo. Além disso, como partido de poder (agora e no passado) suscita inúmeras críticas (de esquerda e de direita). Mas tem pelo menos duas vantagens em relação ao BE: é um partido plural e de outra dimensão, onde tudo pode ser criticável; e é um partido cujos filiados possuem uma composição com amplas raízes no povo. Enquanto o BE, sendo sempre contra-poder, pode advogar ser impoluto. Mas precisa de encontrar um discurso pela positiva e desenvolver uma estratégia para o país (isto se ambiciona crescer sem se tornar uma espécie de PC pós-moderno); e sobretudo precisa de olhar para si mesmo e para os seus quadros e bases (amplamente elitistas) e procurar abrir-se para chegar aos segmentos que são de facto as vítimas da globalização neoliberal que o seu discurso tanto denuncia (e bem).
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HÁ CORRENTES DENTRO DO BLOCO QUE SÃO ABERTAMENTE ANTI-REFORMISTAS, EMBORA NÃO SE CHEGUE A PERCEBER SE, AFINAL, A ESTRATÉGIA DO PRÓPRIO PARTIDO PRIVILEGIA AS REFORMAS PROGRESSISTAS E EMANCIPATÓRIAS (MAS DENTRO DO SISTEMA) OU ANTES A IDEIA DE UMA “REVOLUÇÃO” CONTRA O SISTEMA...
COLIGAÇÕES E DEMOCRACIA: OS DILEMAS DA ESQUERDA ANDRÉ FREIRE | POLITÓLOGO, PROFESSOR NO ISCTE
TALVEZ POR TER APANHADO MUITA GENTE de férias, a coligação PS-BE para a Câmara de Lisboa foi tratada de forma superficial e/ou panfletária. O facto poderá, porém, vir a ter implicações relevantes para a maturação da democracia portuguesa. Vejamos porquê. Pelo PS, António Costa venceu as eleições com 29,5 por cento. Por isso, pretendeu uma coligação com todas as forças de esquerda. Porém, apenas o vereador Sá Fernandes, pelo BE, respondeu positivamente. O primeiro dado singular é que se trata de uma coligação minoritária. Ou seja, a soma dos vereadores (6+1) é inferior à maioria absoluta (9). É curiosa também porque sabemos que, devido ao entendimento PS-PSD para a revisão das leis eleitorais autárquicas, não serão necessárias quaisquer coligações nas autárquicas de 2009. Para fazer luz da decisão de Costa temos não só o reconhecimento que fez do carácter plural da esquerda (em Lisboa), mas também a situação difícil que vive a Câmara e a existência de uma maioria de direita na Assembleia Municipal. Mas podemos também olhar para esta coligação como um ensaio que, se correr bem, poderá eventualmente ser replicado ao nível do país. Se o PS conseguir apenas uma maioria relativa nas próximas legislativas, uma das soluções possíveis é uma coligação de esquerda. Além disso, Costa posiciona-se como putativo líder de uma “esquerda plural”, para o caso de Sócrates não querer governar uma tal coligação e
os resultados eleitorais, bem como o próprio partido, levarem a que se afaste o cenário de uma coligação com a direita. Para o BE, a coligação apresenta pelo menos duas vantagens: compromete o partido apenas ao nível autárquico, deixando-lhe o caminho livre para continuar a fazer oposição ao nível nacional e, assim, apresentar com credibilidade o seu programa alternativo em 2009; como a lista é encabeçada por um independente, deixa margem acrescida ao partido para se demarcar se, por hipótese, as coisas correrem mal. Nas democracias representativas, a luta pelo controle do governo está no cerne da luta política. Por isso, o politólogo Peter Mair propôs uma tipologia que classifica os sistemas de partidos de acordo com o grau de inclusão de partidos no governo e o grau de inovação nas fórmulas governativas. Na Europa, Portugal apresenta um dos sistemas mais fechados/menos inclusivos e menos inovadores. E porquê? Porque, de 1987 à actualidade, só houve uma coligação e, ao longo de toda a história democrática, os partidos à esquerda do PS nunca entraram no governo. Por isso, Portugal tem um sistema partidário enviesado para a direita: quando não governou sozinho, o PS governou com o CDS ou com o PSD. Na Europa, as coligações são a regra dominante numa maioria esmagadora de países. E tais coligações, sobretudo quando alinhadas à esquerda, têm incluído vários partidos da família do BE. Os politólogos
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dividem-se na classificação desta família, “Esquerda Libertária” ou “Socialistas de Esquerda”, que inclui partidos tais como o Sosialislitik Venstreparti (Noruega), o Socialislitik Folkeparti e o Enheedlisten – De Roed Gronne (Dinamarca), o Politieke Partij Radikalen e o Groen Links (Holanda), o Partei des Demokratischen Sozialismus (Alemanha) e o Vänsterpartiet (Suécia), etc. Trata-se de partidos que, tal como o BE, fizeram o seu aggiornamento a partir de formações de extrema-esquerda de tipo trotskista, marxista-leninista ou maoísta. Todos abraçam as causas da “nova esquerda”: mais democracia participativa, direitos das minorias (étnicas, sexuais, etc.), ambientalismo, etc. Além disso, muitos fazem parte do mesmo grupo parlamentar do BE no Parlamento Europeu. Aquilo que separa a maioria destes partidos do BE é o facto de terem participado em inúmeras coligações (ou acordos de incidência parlamentar) nacionais com os Sociais Democratas. Mas não é preciso irmos à Escandinávia ou à Holanda para encontrarmos este tipo de fórmulas governativas. Em Espanha, temos um governo minoritário do PSOE apoiado pela Izquierda Unida (PCE e forças da “nova esquerda”) e pela Esquerda Republicana da Catalunha. Em Itália, temos uma coligação de esquerda que inclui diversas formações de extrema-esquerda, nomeadamente comunistas. A “Esquerda plural”, em França, ia do PSF à extrema-esquerda. Estas coligações são a norma na Europa, não aquilo a que chamei o enviesamento para a direita do sistema partidário português.
É por isso que reacções à coligação PS-BE como a que foi protagonizada por Pulido Valente (Público, 12/8/07) revelam desconhecimento do funcionamento efectivo das democracias europeias e do perfil dos “Socialistas de Esquerda”. Há também o profundo desejo da direita de que o PS nunca se consiga entender com os partidos à sua esquerda e, em caso de necessidade, governe apenas com ela. Menos compreensíveis são as declarações de certos dirigentes do BE parecendo rejeitar liminarmente uma coligação em 2009. O grande dilema do BE será o de saber se, em caso de maioria relativa do PS, vai querer atirá-lo para os braços da direita ou se, convergindo com as práticas dos seus congéneres europeus, quererá “invadir, penetrar e contaminar o PS com o que de melhor o BE trouxe à política portuguesa” (Miguel Vale de Almeida). A essência da democracia é o compromisso e uma coligação de esquerda não implica necessariamente uma diluição da identidade dos pequenos, como mostram as inúmeras experiências europeias. E a incorporação dos vários segmentos do eleitorado no governo fará muito mais pela aproximação entre eleitores e eleitos do que quaisquer reformas institucionais. O BE deve é ter presente que, se rejeitar a priori tal fórmula, estará a dar força aos apelos à maioria absoluta e a limitar a sua capacidade de captar eleitores do PS descontentes (mas apegados à ideia de estabilidade política). Mais, estimula e legitima as tentações maioritárias em sede de reforma eleitoral.
FONTE: Originalmente publicado no jornal Público de 10/9/2007, no contexto das eleições intercalares para o Executivo Municipal da Câmara Municipal de Lisboa.
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O GRANDE DILEMA DO BE SERÁ O DE SABER SE, EM CASO DE MAIORIA RELATIVA DO PS, VAI QUERER ATIRÁ-LO PARA OS BRAÇOS DA DIREITA OU SE, CONVERGINDO COM AS PRÁTICAS DOS SEUS CONGÉNERES EUROPEUS, QUERERÁ “INVADIR,
PENETRAR E CONTAMINAR O PS COM O QUE DE MELHOR O BE TROUXE À POLÍTICA PORTUGUESA” (MIGUEL VALE DE ALMEIDA)
GRANDE COLIGAÇÃO OU ESQUERDA PLURAL? ANDRÉ FREIRE | POLITÓLOGO, PROFESSOR NO ISCTE
EM 2005, O PS TEVE A SUA PRIMEIRA MAIORIA absoluta. A situação do país era difícil, mas as condições políticas eram favoráveis. Até certa altura, as sondagens animaram uma certa auto-suficiência: apesar das medidas impopulares, havia forte probabilidade de reeditar a maioria. Entusiasmados, muitos dirigentes socialistas terão pensado que podiam descurar os seus constituintes: jamais desertariam para a extrema-esquerda em número suficiente para lhes retirar a maioria e anular os ganhos à direita. Ou seja, bastar-lhes-ia governar “no centro do centro”, com bastante músculo e pouco diálogo, captando eleitores ao PSD. Porém, perante tantas exigências e tão pouca negociação (para mais desigualmente distribuídas, como as cedências a pescadores e camionistas vieram de novo revelar), além de uma distribuição desigual dos sacrifícios e de um significativo incumprimento de promessas, começaram os problemas. Nomeadamente, gigantescas manifestações contestando as políticas e a falta de diálogo e, sobretudo, a erosão nas sondagens desde final de 2007, fazendo perigar a reedição da maioria absoluta. Está relançada a discussão sobre o que fazer se o PS não tiver maioria absoluta em 2009. Vital Moreira pronunciou-se sobre a impossibilidade de alianças à esquerda, antevendo um governo minoritário (Público, 10/06/08), algo improvável tendo em conta a má experiência guterrista. Com o beneplácito da direcção do PS, que o tem presenteado com cargos e outros mimos, José M. Júdice desautorizou Mário Soares por ter criti-
cado o rumo do governo e garantiu que, para o PS ser o “partido natural do governo”, só tem que explicar que nada mais pode ser feito em matéria de desigualdades por causa da globalização (Público, 7/06/08). Numa linha conexa, tem sido ventilada, nas notícias, a possibilidade de uma aliança PS-PSD: agradaria ao Presidente e aos interesses patronais. A campanha de Ferreira Leite, com propostas escassamente diferenciadas do PS, e o seu apagamento político desde então dão credibilidade a esta solução. Os cerrados ataques que muitos dirigentes socialistas moveram a Alegre por tentar estabelecer pontes entre as esquerdas, a contrastar com o que se passa quando há aproximações às direitas (Ana Gomes dixit), reforçam a hipótese de um “bloco central”. Uma grande coligação (PS-PSD) só tem justificação em condições excepcionais (uma guerra, uma grande catástrofe nacional, etc.), que não se verificam. Na Europa, só em condições extraordinárias tal acontece. A grande coligação alemã deriva mais da dificuldade do SPD em se coligar (logo) com um partido (Die Linke) liderado por um seu antigo secretário-geral do que das divergências políticas, que são sem dúvida significativas. No futuro, estas tenderão a ser limadas pela propensão ao compromisso: o Die Linke tem já acordos com o SPD (e os Verdes) no Estado de Hessen e na cidade de Berlim. Além de contra-natura, um bloco central cristalizaria o movimento do PS para o centro-direita e agravaria a indiferenciação ideológica do sistema partidário (ao centro), já de si muito elevada em termos comparativos.
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Não concorreria para a clarificação de que os eleitores carecem para puderem fazer escolhas significantes, isto é, entre alternativas. Outra hipótese é uma maioria de esquerdas: coligação ou acordo de incidência parlamentar. Esta solução nunca foi tentada em Portugal, ao contrário de muitos outros países (Espanha, Itália, França, Alemanha, etc.). Alguns advogam que as distâncias ideológicas entre as esquerdas são demasiado cavadas, nomeadamente em termos de política europeia. Porém, este argumento não resiste a uma pequena análise comparativa. Por exemplo, no seio do próprio PS francês, houve uma grande divisão em matéria de posicionamento face à Constituição Europeia. Mais, não há grandes diferenças entre o “europeísmo crítico” de, por exemplo, o BE e vários dos seus congéneres europeus (Izquierda Unida, Rifondazione Comunista, PCF, “Verdes” alemães e franceses, etc.), os quais se coligaram com os equivalentes socialistas nos seus respectivos países. Uma notícia recente do Público (11/6/08) relatava que foi aprovado pela UE um projecto de directiva que prevê que o horário de trabalho semanal se possa estender até às 65 horas. Tal opção foi descrita como “a Europa dos patrões” (Manuel António Pina, JN, 11/6/08), “o regresso ao século XIX” (PSOE) e a criação de “uma sociedade de escravos” (Dom Januário T. Ferreira, Expresso, 21/6/08). Segundo a notícia, apenas Espanha, Grécia, Hungria, Chipre e Bélgica declararam firme oposição à directiva, no sentido de que não venha a ser aprovada pelo PE. Perante o silêncio do governo,
fica a ideia de que uma boa dose de europeísmo crítico só faria bem ao PS. O entendimento entre as esquerdas, nomeadamente entre o PS e o BE (por ora, o PCP não parece interessado…), é difícil, mas deve ser tentado se os eleitores para aí apontarem. Na Visão (12/6/08), José C. de Vasconcelos definiu como condições mínimas para um entendimento a “humildade democrática” e a vontade política: os partidos pequenos deviam compreender que, dada a sua dimensão, não poderiam ser eles a determinar as grandes linhas de força do programa de governo; o PS teria de perceber que teria fazer significativas cedências aos pequenos. No blogue “O Canhoto”, 10/6/08, Paulo Pedroso sugeriu também caminhos nesta direcção. Alegre começou a criar a confiança necessária a um entendimento que, tal como todos os que o apoiaram nas primárias de 2004 (!), tinha antes defendido. Capitalizar com o descontentamento popular é fácil, mais difícil é converter os anseios populares em mudanças políticas. Em 2009, estará em jogo saber se o chamado “bloco central de interesses” pesa mais do que o voto popular. Uma coisa é certa: se as esquerdas à esquerda do PS se reforçarem significativamente, o bloco central ficará muito mais difícil.
FONTE: Originalmente publicado no jornal Público de 23/6/2008.
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PARA A REFUNDAÇÃO DA ESQUERDA
JOÃO TEIXEIRA LOPES | SOCIÓLOGO, PROFESSOR NA FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO
UMA QUESTÃO MERECE REFLEXÃO INICIAL, não só porque subjaz a estes textos em diálogo mas também porque está vivamente presente no actual debate político à esquerda. Trata-se, precisamente do nome e do seu significado. Ora, não sendo adepto da redução dos significados a meros jogos de linguagem, creio que existe um suficiente magma histórico, político e social para traçar as fronteiras entre esquerda e direita. Apesar de margens e fronteiras flutuantes e evolutivas, há um núcleo-duro ideológico fundador que serve como instigador a propostas, projectos e acções. Naturalmente que não há pontos de vista soberanos e que o acto de classificar/desclassificar certo adversário como de «esquerda», de «direita» ou de descoincidências articuladas e sistemáticas entre sistemas de representação e práticas faz parte das regras do jogo político. Todos o fazem. A diferença, na conjuntura actual, é que o Bloco fá-lo ao ataque e o PS reage à defesa pela vitimização. O Bloco ataca pela coerência e contra as derivas do utilitarismo, do relativismo conservador pós-moderno, do pragmatismo interesseiro ou da «falsa neutralidade» ou suposta «equidistância» entre extremos. Marca a sua posição de uma forma visível e frontal. Não se trata, por isso, de utilizar um qualquer arbitrário ou impor um poder discricionário. Reaja o PS como poder; prove o contrário se disso for capaz. É combate e o combate é linguagem e combate pela linguagem. Não creio, por isso, que o Bloco revele qualquer tipo de pretensa superioridade moral. Ataca
o adversário onde ele se desviou clamorosamente dos seus princípios e onde se revela frágil. A outra questão que me surge como relevante – e esta talvez seja a fundamental – é que o Bloco emergiu na vida política portuguesa para tentar humilde mas convictamente rebentar com o status quo à esquerda. Precisamos como de água no deserto de um PS minimamente social-democrata e de um PC sem laivos de estalinismo. No imobilismo em que a esquerda estagnava parecia não haver saída. O Bloco surge como factor de mobilização, recomposição e esperança. Por um lado, não transige na defesa do Estado Providência, do contrato social, dos direitos sociais e de práticas avançadas de cidadania, rompendo com velhas centralidades de sentido único e insistindo na lógica de conexão das várias formas de dominação (capitalismo – sexismo – homofobia – racismo), colocando os Direitos Humanos como agenda fundamental (criticando a sua violação onde quer que ocorra – sem olhar a latitudes ou interesses, assim o fizemos em relação à China, à Coreia do Norte, a Israel, ao Irão, a Guantanamo, a Cuba, à Arábia Saudita…). Por outro lado, se o Bloco nasceu para forçar a refundação da esquerda portuguesa, tal não significa que vivamos para destruir o PS e o PCP. O que pretendemos – e é bem diferente – é ir forjando uma prática política que, por si só, possa produzir os seus efeitos. Como já produziu, ainda que insuficientes. Diz Elísio Estanque que os militantes do Bloco transportam ainda sectarismos e vícios de vanguarda.
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Mas lembro que o nascimento do Bloco foi, ele próprio, por si só, uma enorme machadada no sectarismo, juntando seres humanos que se conheceram em conflito permanente! Aliás, o Bloco tem hoje mais militantes que nunca participaram nos partidos iniciais (o meu caso) do que «históricos». Claro que persistem vícios, dogmas e visões de curto alcance. Mas por isso mesmo tem o Bloco privilegiado o contacto com os frágeis movimentos sociais existentes e o «trabalho de terreno», na esfera pública, a par de uma política de produção de informação própria (caso do portal) para fugir ao internismo, à vida de sede, às questiúnculas estéreis e à cristalização em preconceitos e ideias finalizadas. O Bloco de Esquerda, aliás, deu um exemplo de cidadania e de renovação da vida política ao entrosar-se nos movimentos pelo sim no referendo ao aborto sem os tentar manipular ou controlar, com agendas explícitas ou ocultas, ao contrário das piores tradições de um velho pensamento instrumental e cínico sobre as grandes convergências. Dando o melhor de si nesses movimentos, gerindo, com grandes dificuldades de tempo e de recursos, a sua participação multifacetada (já que o Bloco tinha uma campanha autónoma, que se revelou aguerrida e eficaz no rápido contra-ataque à confusão que certos sectores do não, em desespero, lançaram na última semana de campanha), os activistas do nosso partido-movimento (ou partido em movimento) privilegiaram mesmo, em caso de conflito, a sua dedicação unitária. O PCP, pelo contrário, criou
um movimento fantoche, mera duplicata das lógicas centralistas do comité central. Ora, se é verdade que, sempre que as causas o exigem, não abdicamos de compromissos e de convergências, da mesma maneira impõe-se que sejamos de exemplar clareza e exigência quando discutimos as lógicas de relacionamento com o poder. Porque o Bloco já possui poder: influencia, mobiliza, faz aprovar leis, provoca reacções e até antecipações. Isso é poder: dentro e fora do parlamento. Não tenhamos a redutora noção de que aquele apenas se exerce no quadro de funções governativas. Quanto a estas, aliás, o Bloco não tem qualquer tipo de anticorpo. Mas também não se baba com a pressa. Teremos de possuir um amplo apoio social para que tal participação não seja meramente artificial, ou acto de táctica hipocrisia. Mas vamos desbravando caminhos: a festa das esquerdas, em Lisboa, e a ampla participação de socialistas, bloquistas, independentes, renovadores comunistas e activistas em geral provou que há espaços e tempos para novas convergências. Que poderão, ainda, estender-se, sob a forma de listas de cidadãos, às próximas eleições autárquicas. Em suma: sem arrogância; sem assumir a «vanguarda» da esquerda; sem qualquer atavismo de superioridade moral, mas com princípios e, simultaneamente, paciência e impaciência: paciência porque não sonhamos com a tomada dos palácios de Inverno; paciência, porque recusamos visões deterministas da história e optimismos ingénuos; paciência para sabermos, enfim, o tempo de exercer outras formas de poder. Mas impaciência, sempre, face à produção de desigualdades e injustiças.
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SE O BLOCO NASCEU PARA FORÇAR A REFUNDAÇÃO DA ESQUERDA PORTUGUESA, TAL NÃO SIGNIFICA QUE VIVAMOS PARA DESTRUIR O PS E O PCP. O QUE PRETENDEMOS – E É BEM DIFERENTE – É IR FORJANDO UMA PRÁTICA POLÍTICA QUE, POR SI SÓ, POSSA PRODUZIR OS SEUS EFEITOS. COMO JÁ PRODUZIU, AINDA QUE INSUFICIENTES.
CULTURA DE PODER OU CULTO DO PODER?
JOÃO SEMEDO | MEMBRO DA RENOVAÇÃO COMUNISTA, DEPUTADO E MEMBRO DA COMISSÃO POLÍTICA DO BLOCO DE ESQUERDA
ULTIMAMENTE MUITO SE TEM ESCRITO E FAlado sobre o processo de construção de uma alternativa política ao governo do PS e, por arrastamento, sobre o programa e as alianças à esquerda para sustentar e desenvolver essa alternativa. Inevitavelmente, o Bloco de Esquerda – quer o seu posicionamento político no presente, quer o seu papel nessas alianças, não escapa nesta controvérsia às mais variadas opiniões e, até mesmo, sentenças. Esta “efervescência” é saudável, justificada e oportuna. Sobretudo, porque na maior parte dos casos, ela traduz uma vontade genuína de alcançar uma alternativa que não se fique por uma mera alternância à esquerda seja de protagonistas seja de políticas. Aliás, só assim, tendo por objectivo mudanças efectivas nas políticas e não simples arranjos de poder, valem a pena esta procura e o debate em curso. Diversas razões podem explicar o reacender deste interesse nos dias que passam. Parece-me útil identificar as que considero como principais, embora de dimensão e consequências distintas: - a visibilidade com que emergiu a matriz neoliberal do núcleo duro das políticas do governo e o encantamento e capitulação da direcção do PS pelos cânones do neoliberalismo; - a incomodidade, discordância e oposição de um largo sector socialista (dentro e fora do PS) face ao governo, esgotado que está o benefício da dúvida que muitos deram a José Sócrates. Quanto maior foi a ilusão – e é
indesmentível que foram muitas as expectativas criadas pela vitória do PS em 2005 – maior é hoje a desilusão e a frustração. - a aproximação de um novo ciclo eleitoral, onde muita coisa pode mudar, gera novas expectativas e projectos e, inevitavelmente, muita especulação em torno dos mais variados cenários políticos: - a afirmação e consolidação do Bloco de Esquerda (e o seu crescente peso eleitoral), contra os desejos de alguns e as previsões de muitos de inevitável implosão de um projecto integrador de correntes e famílias políticas de paternidade (e maternidade) muito heterogéneas. Mas, verdadeiramente, o que está na origem destas preocupações e desta discussão é a consciência partilhada por largos sectores da esquerda – incluindo muitos socialistas – sobre a dificuldade de mudar a inflexão neoliberal da direcção do PS e corrigir a deslocação para a direita no eixo das políticas do seu governo. A esquerda não pode contar com este PS para uma alternativa de esquerda. Todos os dias há mais socialistas a reconhecê-lo, fazendo crescer o campo dos que se interrogam sobre os caminhos que a esquerda pode e deve percorrer para ultrapassar o “obstáculo PS” e dar corpo a uma mudança para a esquerda. Não é a primeira vez – e certamente que não será a última, que se discutem as relações do PS com a esquerda e o que deve fazer a esquerda com o PS, nas suas várias versões e com a heterogeneidade social e política que lhe é reconhecida. É, por natureza, uma questão
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recorrente e em que não há lugar a juízos definitivos. A evolução é própria da política e o PS – e a esquerda – não foge à regra. As opiniões de hoje valem por hoje. Comungo da ideia de que a direcção do PS é hoje o principal bloqueio para que a esquerda possa fazer a política que milhões de portugueses e portuguesas esperam que faça no país. Ter uma estratégia política e eleitoral capaz de vencer aquele bloqueio é o principal desafio que se coloca a quem se posiciona na margem esquerda da política portuguesa – dentro ou fora dos partidos. Do meu ponto de vista, é aqui que reside o centro desta controvérsia e é sobre ele que vale a pena reflectir. Antes de continuar, uma breve referência ao PCP que, não sendo tema destas linhas, também é parte – e não pouco importante – desta questão. Infelizmente, é mais parte do problema do que da solução, em virtude da opção isolacionista da sua direcção, para quem o PCP é a alternativa – e uma alternativa que dispensa parceiros, não perdendo uma oportunidade para zurzir nas esquerdas (o Bloco e Manuel Alegre são os alvos preferidos) e desperdiçando todas as oportunidades para delas se aproximar e com elas convergir. Este posicionamento da direcção comunista – ele mesmo um bloqueio – só atrasa a alternativa política. Mas voltemos ao PS. Há ainda quem julgue – não sei ao certo se muitos se poucos, nem com que grau de convicção – ser possível influenciar a direcção do PS e, com isso, mudar a sua política e a do governo. Chamam-lhe “contaminação” da direcção socialista.
Creio que ignoram o resultado de anteriores tentativas de contaminação do PS, admitamos mesmo que todas elas bem intencionadas. Recordo apenas duas e o seu insucesso: o fim do MES (de Jorge Sampaio, Ferro Rodrigues e tantos outros) e a sua adesão ao PS. Jorge Sampaio foi secretário-geral do PS, foi durante dois mandatos Presidente da República. Não lhe faltaram oportunidades para “contaminar” o partido. E o mesmo se pode dizer, agora no terreno da dissidência comunista, dos muitos que passaram da Plataforma de Esquerda para o PS, vindo a ocupar lugares de grande influência tanto no partido como no governo. Olhando para aquilo que faz e pensa hoje a direcção do PS, a conclusão parece-me óbvia: contaminação de grau zero. A direcção do PS não é contaminável. Alguém disse que a principal oposição ao governo de José Sócrates estava no PS – principal, porque a mais eficaz quanto ao condicionamento da sua política futura. Eficaz ao ponto de poder retirar ao PS a actual maioria absoluta, pelo desgaste que vai provocando na sua base de apoio. Duvido. É certo que a oposição interna tem crescido e é grande. Não se discute o importante papel que tem desempenhado na denúncia e combate às piores medidas do governo. Podemos até admitir que, pontualmente, tenha conseguido evitar que a pulsão neoliberal fosse mais longe do que foi. Mas não partilho da ideia de que tenha sido, seja ou venha a ser a grande oposição ao governo. O que penso, isso sim, é que ela é tão necessária hoje na contestação à política de José Sócrates como indispensável amanhã na construção de uma alternativa de esquerda à esquerda do PS. É muito redutor para a esquerda definir como estratégia política e objectivo eleitoral a perda pelo PS da
sua actual maioria absoluta. Mesmo percebendo o que pretendem os seus defensores: perdendo o PS a maioria absoluta, não resta outra alternativa à direcção do PS que não seja entender-se com a esquerda para formar governo. Passamos da contaminação via partido para a contaminação via governo. Apesar das diferenças, julgo que os resultados não seriam diferentes: o governo do PS também não é contaminável. Para alguns analistas, é neste cenário de maioria relativa do PS nas legislativas do próximo ano que entra em cena o BE, coligando-se com o PS, governando com o PS e empurrando a política para a esquerda. Em suma, contaminando o PS. Ao aceitar este papel, o BE revelaria a sua “maturidade” e o seu “sentido das responsabilidades”, afirmar-se-ia como uma “força construtiva e não apenas um grupo de contestatários”, um partido prisioneiro das chamadas causas fracturantes. Teria, enfim, a possibilidade de “recusar uma cultura de anti-poder” e de mostrar do que é capaz o Bloco de Esquerda para mudar o país e a sociedade. A perda pelo PS da maioria absoluta seria, sem dúvida, um resultado importante, com significado e consequências políticas. Mas só por si não garante qualquer mudança no sentido de uma política de esquerda. Desde logo porque o PS não teria qualquer dificuldade em encontrar nos partidos da direita (no PSD, no CDS ou nos dois) os apoios parlamentares de que necessitasse para fazer passar a sua política. Basta ver as leis aprovadas em conjunto pelo PS e PSD – e pelo CDS, ao longo da actual legislatura. Nesta legislatura, a direita votou a favor de todas as leis politicamente substantivas que o PS ou o seu governo levaram ao parlamento. As
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excepções contam-se pelos dedos e respeitam àquilo que vulgarmente conhecemos por “costumes” ou questões de sociedade. Com os partidos da esquerda foi exactamente o contrário. Quem defende, num cenário de maioria relativa do PS, a possibilidade de um acordo de incidência parlamentar entre o PS e o Bloco, que garantisse um apoio maioritário no parlamento a um governo minoritário, não deve ter acompanhado com um mínimo de atenção o que tem sido a vida parlamentar e quem tem votado o quê nos últimos três anos e meio. É uma ilusão pensar-se que a actual direcção do PS poderia abraçar uma solução desse tipo. Como se costuma dizer, seria mais fácil Deus descer à Terra… E muito menos este PS aceitará partilhar um governo com a esquerda. Nem o Bloco de Esquerda poderia aceitar uma coligação de governo com o PS de José Sócrates. Não falemos de um outro PS, de um PS mais à esquerda, mas que não existe, mesmo que gostássemos que ele existisse. Falemos deste PS e deste governo. Como poderia aceitar-se que o BE incluísse um governo que promete realizar um referendo ao Tratado de Lisboa e depois não o realiza? Como poderia aceitar-se que o BE integrasse um governo que aprova este Código do Trabalho? Como poderia aceitar-se que o BE participasse num governo cuja política económica é desenhada em função dos interesses dos grandes grupos económicos e financeiros? Creio não serem necessários mais exemplos. Que faria o BE, em cada uma destas circunstâncias, se estivesse num governo que replicasse este comportamento do governo de José Sócrates?
NESTA LEGISLATURA, A DIREITA VOTOU A FAVOR DE TODAS AS LEIS POLITICAMENTE SUBSTANTIVAS QUE O PS OU O SEU GOVERNO LEVARAM AO PARLAMENTO. AS EXCEPÇÕES CONTAM-SE PELOS DEDOS E RESPEITAM ÀQUILO QUE VULGARMENTE CONHECEMOS POR “COSTUMES” OU QUESTÕES DE SOCIEDADE. COM OS PARTIDOS DA ESQUERDA FOI EXACTAMENTE O CONTRÁRIO.
Aceitar partilhar um governo com o actual PS é uma impossibilidade cujo único responsável é a própria direcção do PS, pela orientação que imprime à sua política e à política do governo. Ver nesta recusa do BE uma manifestação de radicalismo doutrinário e dogmático, ou uma posição normativa e moralista de quem se considera impoluto e não aceita corromper-se com o poder, é confundir cultura de poder com culto do poder. E é, sobretudo, não querer reconhecer que com este PS, a esquerda não vai a lado nenhum. A realidade portuguesa é tão ilustrativa e expressiva que me parece dispensável argumentar com a experiência verificada noutros países, nomeadamente europeus, em cujos governos a esquerda se comprometeu. Infelizmente, todos sabemos os resultados desastrosos dessas alianças. O que ainda não sabemos é o tempo que vai demorar a sarar as feridas. Alguns dirão que esta posição é megalómana ou maximalista e que não leva em conta as diferenças de dimensão, influência e apoio entre o PS e o BE. Dirão que o BE exagera e reclama um programa máximo, inviabilizando logo à partida qualquer acordo. E lembram que, em qualquer coligação, é o mais forte que dita as regras e o mais fraco contenta-se com um programa mínimo. É exactamente essa uma das razões que tornam impossível imaginar qualquer coabitação com o PS. Na realidade, ao BE e à esquerda falta a força política necessária para poder influenciar a política de uma coligação com o PS, mesmo que não se tenha por meta um programa máximo. É precisamente esse problema que a esquerda tem de resolver. A solução é ganhar força, conquistar apoios,
PARECE-ME DISPENSÁVEL ARGUMENTAR COM A EXPERIÊNCIA VERIFICADA NOUTROS PAÍSES, NOMEADAMENTE EUROPEUS, COM CUJOS GOVERNOS A ESQUERDA SE COMPROMETEU. INFELIZMENTE, TODOS SABEMOS OS RESULTADOS DESASTROSOS DESSAS ALIANÇAS. O QUE AINDA NÃO SABEMOS, É O TEMPO QUE VAI DEMORAR A SARAR AS FERIDAS.
alargar a sua base social, política e eleitoral, para poder determinar as mudanças políticas que a esquerda reclama. O poder de transformar conquista-se, não se recebe como uma prenda. Para a esquerda, para o BE, a solução não pode ser contentar-se com um programa mínimo, vazio de qualquer mudança de relevo. Não se trata de querer o socialismo na hora e muito menos de conservar a todo o custo a “virgindade política”. Trata-se de compreender que o poder, mesmo quando partilhado, é um instrumento que só ganha sentido se o seu exercício proporcionar as transformações que reclamamos ou delas nos aproximar. Claro que nos dirão que, recusando o cenário de coligação com o partido socialista, estamos a atirar o PS para os braços da direita. Como se fosse preciso… Ou, ainda, que um governo minoritário é sinónimo de instabilidade política. E que esta será aproveitada pela direita para regressar ao poder, invocando mesmo o que aconteceu no tempo dos governos de Guterres. Em todo o mundo, o que há mais são governos minoritários que governam com estabilidade. Alguns até são bons governos. Não é à oposição que compete
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“ajudar” a minoria a governar. A minoria é que tem de saber governar nas condições escolhidas pelos eleitores, governando bem para justificar e recolher os apoios de que venha a necessitar. Nesse cenário, o BE deve fazer o que já faz hoje no parlamento: votar favoravelmente todas as propostas que avalia como boas e rejeitar as que considera negativas. Não há nenhuma razão para que venha a ser de outra maneira se o PS não repetir a maioria absoluta. Não acredito na teoria da contaminação como estratégia de deslocar o PS para a esquerda. Com coligação de governo ou sem ela. Com acordo parlamentar ou sem ele. Para problemas difíceis não há soluções fáceis. Deslocar para a esquerda a base social, política e eleitoral do PS, retirá-la da influência e dependência da política socratista, não é uma estratégia fácil nem tão pouco de resultados imediatos. Mas é a única que pode levar a esquerda a algum lado que valha a pena. Não vejo outro caminho que não seja o de construir à esquerda do PS um amplo, forte e plural pólo de esquerda, com dimensão, capacidade e influência suficientes para se afirmar como alternativa política quer aos par-
tidos da direita quer ao PS nesta sua deriva neoliberal. Uma alternativa de esquerda, à esquerda do PS. Este espaço existe, dispõe de uma ampla base social. Como força política orgânica não existe, é ainda virtual, está por juntar, agregar e organizar. Não tem formato nem figurino desenhado, nem tão pouco isso me parece importante neste momento. Digo apenas que implicará sempre alguma nova arrumação do que é hoje o campo da esquerda à esquerda do PS, seja uma simples plataforma política – com ou a partir do BE – seja um modelo mais estruturado. No tempo certo, a esquerda encontrará a forma certa. A criação do BE é um primeiro passo nessa direcção, o começo de um processo de reagrupamento de forças. As fronteiras do Bloco não estão fechadas nem são definitivas. À esquerda, muita coisa mudou desde a fundação do Bloco em 1999. Muita coisa mas não tudo, nem todos. A estratégia do Bloco é a de continuar esse percurso, do qual não pretendemos ser vanguarda nem protagonistas únicos. Seremos uns entre muitos outros. Acrescentar esquerda à esquerda é o rumo do Bloco, sem parasitar nem instrumentalizar qualquer outra esquerda, força ou movimento. Uma alternativa de esquerda não se constrói sobre as ruínas do que são hoje as esquerdas mas a partir, precisamente, do que elas são hoje, respeitando as diferenças e crescendo com elas. Partilhamos com muita esquerda o desejo de uma mudança na política do país. Uns são comunistas, muitos são socialistas, outros não têm partido. A esquerda é o espaço de muitos independentes. Reconhecemos convicção em muitos socialistas que protestam e contestam o governo do PS e a vertigem neoliberal das suas políticas. Querem, como o Bloco, uma política de esquer-
da e uma alternativa política. Querem uma esquerda à esquerda do PS. A estratégia do Bloco, tanto para a luta política como para o ciclo eleitoral que se aproxima, não pode ser outra que não a de ajudar e contribuir para a formação e afirmação dessa esquerda, uma esquerda com ambição e capacidade de mudar a política portuguesa. Não vejo outro caminho para desbloquear o que o PS de José Sócrates bloqueou. É claro que não basta a vontade do Bloco. Mas ela é indispensável para que outras vontades se lhe associem. Em política, a vontade – enquanto opção por uma estratégia – determina o resto. Nada pode substituir a vontade política, sem ela nada feito. Se houver vontade e decisão de partilhar esta estratégia, não será difícil encontrar as propostas alternativas e o programa político que unifiquem e mobilizem este espaço à esquerda do PS. A crítica do neoliberalismo e das suas políticas, tal como o PS as pratica e desenvolve no governo, é um bom ponto de partida. Uma estratégia partilhada e um programa político comum para afirmar e construir à esquerda do PS uma alternativa política – é por aqui que devem seguir o Bloco e os socialistas que não se reconhecem nesta caricatura da esquerda em que se tornou a direcção do PS. Tanto para o combate político de todos os dias como para o tempo eleitoral que aí vem.
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CIDADES INVISÍVEI
A CIDADE, O ADMIRÁVEL MUNDO NOVO DO CONSUMO E AS SUAS CATEDRAIS
MIGUEL SILVA GRAÇA
A CIDADE, O ADMIRÁVEL MUNDO NOVO DO CONSUMO E AS SUAS CATEDRAIS MIGUEL SILVA GRAÇA | ARQUITECTO
«Perhaps the beginning of the twenty-first century will be remembered as the point where the urban could no longer be understood without shopping.» 1
A HISTÓRIA DO CONSUMO E A DA CIDADE A busca de ofertas crescentes e diferenciadas de consumo com vista a construir novas formas de vida tornou-se, indubitavelmente, uma das características definidoras da vida urbana no início deste século. A partir da segunda metade do século XX, o consumo adquiriu uma condição omnipresente – evoluindo de uma categoria claramente ligada a uma noção de posse física para uma noção de acesso a bens e serviços (RIFKIN, 2001) – , assumindo-se como um dos interesses centrais da vida contemporânea. Paralalemente, a afirmação do lazer, do ócio a da cultura como produtos – fruto da consolidação do capitalismo avançado nas sociedades ocidentais e enquanto substitutos paliativos do tempo livre significativamente crescente a partir da 2ª Guerra Mundial – lado a lado com a intensificação das relações comerciais irão ser algumas das novas categorias em que o consumo se irá manifestar. Aliás, a trilogia do comércio, da cultura e do ócio (LOURO, 2001) assume-se, actualmente, como um dos elementos fulcrais na organização do espaço urbano contemporâneo, pois não só estas problemáticas ganharam importância na reorganização territorial, como se assumiram como estruturantes nas estratégias de planeamento, a qualquer escala, na generalidade dos países europeus.
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A verdade é que, apesar de só agora sentirmos violentamente que este paradigma vai penetrando de modo global em todos os domínios, historicamente, estas categorias de espaços sempre detiveram o seu papel na organização da cidade, pois as primeiras acepções de propriedade privada, fruto do aparecimento de excedentes produtivos (MANDEL, 1976), assim como a própria condição do consumo ou captura de stocks de bens e serviços (DELEUZE e GUATARI, 2007), estão ligadas desde a antiguidade à própria origem da urbanidade. Num mundo actualmente dominado pela influência do pós-fordismo e da globalização, a sociedade de consumo remistura ainda mais habilmente todos estes conceitos, sobrepondo e diluindo o acto de comprar, a experiência do lazer e a manifestação e produção culturais na mesma dimensão da vida quotidiana. Deste modo, a vivência urbana é deslocada da existência colectiva e recentrada no primado individual do sujeito e das suas escolhas, que – cercado pelos mecanismos da publicidade e do marketing – vê enquadradas e devidamente conduzidas as suas experiências para as mesmas categorias do comércio, da cultura e do ócio, que orientam a organização do espaço urbano. Esta conjuntura específica – na qual a privatização dos processos de produção de cidade (BORJA e MUXÍ, 2003) desempenha um papel central – será favorável, não só à penetração e afirmação territorial da condição omnipresente do consumo, mas também para a decres-
cente importância do espaço público enquanto elemento estruturante da cidade. Nesta nova cidade desurbanizada, os tecidos urbanos expandiram-se para além dos seus limites tradicionais e as infra-estruturas de comunicação, em vez de criarem novos lugares ou centralidades, segmentaram e fracturaram o território, provocando a atomização das relações sociais. O planeamento é substituído, em muitos casos, pela iniciativa privada dos promotores imobiliários, cujas múltiplas propostas, distintas e desconexas entre si, constroem, invariavelmente, um espaço decomposto e ineficaz. A NEGAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA E A AFIRMAÇÃO DO PRIVADO Frente à pressão do seu crescimento, a cidade contemporânea – construída sobre as ruínas da cidade moderna e das suas periferias – transforma-se tendencialmente numa massa indefinida, em tensão entre a desestruturação e a policentralidade. Este fenómeno, contudo, não é apenas físico. Assistimos, paralelamente à mutação da fisionomia da cidade, a uma crise de participação cívica e política (SENNETT, 1992), caracterizada por um progressivo afastamento entre o cidadão e o domínio público, influenciado por um consumismo passivo e alienante e um crescente individualismo nos modos de vida. A condução da vida pessoal torna-se na principal e restrita preocupação do cidadão, entendida como um fim em si mesmo e um modo de satisfação pleno. Os indivíduos valorizam o anonimato que a cidade proporciona (REMY e VOYÉ, 1994), por oposição a um sistema aberto de interacções e contactos proporcionado por um espaço público tradicional.
Cercada pela abundância e variedade, a escolha pessoal confunde-se com o desejo de consumir. E à medida que o consumo massificado se consolida na cultura urbana, será ele próprio que começa a desempenhar um papel de diferenciação social. A diversidade na capacidade de acesso a determinados bens e serviços torna-se uma forma de manter e criar distinções entre grupos sociais e indivíduos (BOURDIEU, 2007) e o consumo torna-se assim numa categoria privilegiada de significação social (FORTUNA, FERREIRA E ABREU, 1999), tornando-se os direitos do consumidor mais representativos que os próprios direitos sociais. Espelho desta mesma condição, produzir-se-á naturalmente uma revisão dos critérios que balizam o que consideramos como esfera e espaço públicos. Será assim entre a proliferação e banalização do automóvel de uso individual, o êxito dos condomínios privados e dos complexos habitacionais desagregados do restante tecido urbano, que encontraremos uma cidade contemporânea com uma tendência para a progressiva privatização dos seus domínios públicos. Encontramos os sinais desta privatização, gradual e colectivamente aceite, manifestados em fenómenos tão diversos como: concessões privadas de praças para demonstrações comerciais; parcerias público-privadas para a recuperação de jardins; eventos culturais financiados integralmente por empresas privadas; imagens debitados pelas televisões e ecrãs cada vez mais presentes nos interfaces de transportes e espaços públicos urbanos; ou mesmo em fenómenos de maior dimensão, como os parques temáticos, os festivais de rock ou as cidades empresariais.
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Deparamo-nos assim com um panorama em que a esfera privada penetrou em todas as dimensões da imagem e da cultura urbanas. Para além dos cada vez mais vulgares exemplos em que são introduzidos mecanismos privados na produção ou exploração de espaços públicos, encontramos inúmeros equipamentos colectivos e lúdico-comerciais que, devido aos seus altíssimos níveis de intensidade de uso, ganham representatividade na rede de espaços públicos urbanos, e nos quais dificilmente se distinguem os limites entre os seus domínios. Dos agitados interfaces de transportes às vigiadas praças de gestão privada, dos concorridos estádios e complexos desportivos, ou mesmo nas ruas e praças apinhadas dos centros e galerias comerciais, deparamo-nos com alguns casos exemplares de equipamentos colectivos com intensos níveis de utilização. Esbatem-se as fronteiras entre o domínio público e o privado na cidade contemporânea, e, a par de uma progressiva privatização dos espaços públicos da cidade, vemos emergir usos colectivos nos seus espaços privados. Se os usos públicos ultrapassaram as fronteiras do seu domínio e elegem, hoje, os espaços de consumo como novos territórios, este é essencialmente o resultado da imposição e consolidação de um modelo económico e social, que se reflecte numa forma estéril de entender e construir a cidade. A SEGURANÇA E OS SEUS DISPOSITIVOS Contudo será apenas o consumo o centro de atracção das grandes superfícies comerciais? Numa época em que o consumo se encontra infiltrado em todos os fenómenos, e em que tudo aspira a ser trans-
PARA ALÉM DA CAPACIDADE DE OFERECER UM LEQUE VARIADO DE EXPERIÊNCIAS POSSÍVEIS, COM CONDIÇÕES AMBIENTAIS AGRADÁVEIS E DE FÁCIL ACESSO, AS GRANDES SUPERFÍCIES COMERCIAIS OSTENTAM OS SEUS SISTEMAS DE VIGILÂNCIA E CONTROLO PARA, DESSA FORMA, TRANSMITIREM, A UMA CIVILIZAÇÃO TEMERÁRIA, UM SENTIMENTO DE SEGURANÇA E BEM-ESTAR.
formado em consumo (CHUNG; INABA; KOOLHAAS; LEONG et al, 2001) por ventura até terá sido este o elemento gerador de toda a dinâmica que se corporiza nos elevados níveis de uso das grandes superfícies comerciais. Contudo as famílias que se dirigem para as grandes superfícies, procuram um lazer inter-geracional em segurança. Para além da capacidade de oferecer um leque variado de experiências possíveis, com condições ambientais agradáveis e de fácil acesso, as grandes superfícies comerciais ostentam os seus sistemas de vigilância e controlo para, dessa forma, transmitirem, a uma civilização temerária, um sentimento de segurança e bem-estar. A crescente omnipresença de mecanismos de vídeo-vigilância ou CCTV2 – e sua consequente visibilidade provocam, invariavelmente, nos utilizadores do espaço um efeito panóptico3 – isto é, maior parte dos indivíduos que utilizam áreas vigiadas modificam as suas acções assim que se apercebem do facto, e assumem um comportamento socialmente normalizado. É sobre este conceito de vigilância integral que se enraíza o sentimento de bem-estar dos cidadãos, que conscientes do seu efeito normalizador constroem a imagem de um ambiente seguro e controlado. Aliás daí advém o efeito mais importante do efeito panóptico: induzir um estado consciente e permanente de visibilidade que assegure o funcionamento automático do poder, isto é, fazer com que a vigilância seja permanente em seu efeitos, mesmo se é descontínua na sua acção (FOUCAULT, 1975). O que importa não é a eficácia do mecanismo, mas o seu simbolismo e visibilidade; isto é, a câmara é mais relevante que o registo de vídeo, o uniforme do que o operacional
CONSTRUÍDA PARA CAPTURAR TANTO A IMAGINAÇÃO COMO A CAPACIDADE DE CONSUMO, ESTA TIPOLOGIA COMERCIAL APELA, NÃO SÓ, A UMA ASTUTA DISPOSIÇÃO DOS ESPAÇOS E EXPOSIÇÃO DE MERCADORIAS, MAS IGUALMENTE À CONSTRUÇÃO DO SONHO COLECTIVO.
de segurança e o uso do walkie-talkie mais importante do que a comunicação. Como observamos, o universo do controlo e da vigilância ininterrupta não são cenários que prefiguram o pesadelo do futuro urbano, mas encontram-se já materializadas em muitos dos espaços urbanos actuais. Aliás, se nos últimos anos assistimos à emergência de um tipo de urbanidade completamente nova, observamos que uma das suas características é a sua obsessão pela “segurança”, acompanhada de um crescente grau de manipulação e vigilância sobre os seus cidadãos. Este novo reino da cidade-televisão é um lugar que incorpora tudo: a vigilância, o controlo e as simulações sem fim (SORKIN, 2004). Acompanhando esta tendência, a vídeovigilância ou a hiper-visibilidade de dispositivos de segurança num espaço de uso colectivo é entendida como uma necessidade de uma sociedade em crise, tendo-se passado da rejeição à aceitação colectiva. O regulamento, as normas de conduta, a lei, o padrão ou a regra são – mais do que uma imposição – uma exigência pela parte de quem tem que as cumprir, os seus utilizadores. Se esta forma de produzir urbanidade tem sido ex-
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tremada a pontos jamais vistos, a novidade do virar do século é a gradual aceitação colectiva destas restrições, que curiosamente há poucos anos seriam consideradas como um ataque aos direitos civis. Avisos com normas de conduta afixados nas paredes abundam em centros comerciais, estádios, parques temáticos ou outros equipamentos de uso colectivo. A sua verdadeira função não é estipular, verdadeiramente, um conjunto de regras. A sua utilidade enquadra-se sim na mesma mecânica de qualquer artifício de vigilância, que tem como objectivo estabelecer as regras do jogo subjectivo que garantirá a mais racional e eficiente forma de poder, isto é, assegurar o seu funcionamento automático e a produção de corpos dóceis, passivos e disciplinados (FOUCAULT, 1975). O que presenciamos nestes espaços que oscilam entre a propriedade privada e o uso colectivo não são mais do que mundos construídos à medida dos seus utilizadores. Pequenas simulações de mundos perfeitos onde não tem lugar o imprevisto, onde tudo está sinalizado e organizado, onde o ambiente e a temperatura estão controlados, onde os passos estão vigiados e no qual as pessoas se sentem seguras.
O LUGAR DO SIMULACRO De entre os vários exemplos, é talvez o centro comercial o que melhor ilustra este modelo emergente. Construída para capturar tanto a imaginação como a capacidade de consumo, esta tipologia comercial apela, não só, a uma astuta disposição dos espaços e exposição de mercadorias, mas igualmente à construção do sonho colectivo. O enorme sucesso dos gigantescos centros comerciais – que se multiplicam nos centros urbanos e nas suas periferias – está precisamente ligado à sua condição de construtores de simulacros (BAUDRILLARD, 1991). Actualmente, as pessoas aderem massivamente aos usos intensivos destes espaços, onde verificamos que as caricaturas de ruas, pátios, jardins e praças, que os pontuam, não são mais do que simulações afinadas e optimizadas do edificado e espaço público urbano tradicional. Estes são espaços onde as vivências urbanas são substituídas por experiências, que apesar de ageográficas, procuram satisfazer através de uma simulação controlada (SORKIN, 2004), as necessidades de sociabilidade e de obsessão pela segurança (BORJA e MUXÍ, 2003) que os seus utilizadores não conseguem satisfazer plenamente noutros espaços públicos tradicionais. Estas recriações ou fantasmagorias4, embora respondam, indubitavelmente, a um desejo de contacto com o sentido tradicional do espaço público, são, no entanto, meras cópias de lugares de ficção, impostas por um mercado que produz pedaços de realidade em forma de cenários fabricados. Apelando a todos os sentidos, estas simulações, embora apostem particularmente no mundo da imagem – como garante cénico –, não descuram a estimulação dos outros sentidos. Para além das preocupações sobre a
forma, cor ou iluminação, sentimos como existe um extremo cuidado nestes espaços colectivos com a textura dos materiais, o controlo dos odores, a qualidade do ar condicionado ou as propriedades do som ambiente. O objectivo é, sem dúvida, garantir ambientes confortáveis e situações agradáveis – onde as preocupações estejam ausentes – inspirando um alto nível de aprovação dos produtos e logo uma maior propensão para o consumo. Com a atmosfera Point-of-Sale, o comércio lança-se no domínio do consumo vivo e real, num combate para estabelecer uma ligação afectiva dos utentes com o local e os produtos (SLOTERDIJK, 2005). O estranho desta qualidade particular de simulacro espacial é o perfeito conhecimento da sua condição. Não restarão dúvidas que os seus utilizadores sabem que todos os elementos que a constroem – as fachadas unidimensionais, os objectos e motivos decorativos cenograficamente enquadrados, as rochas, as plantas ou mesmo os animais – são falsos e alheios ao contexto em que estão inseridos. Todavia, a quebra de distinção entre o real e a simulação, aceite pelos seus utilizadores e materializada na hiper-realidade (BAUDRILLARD, 1991) do espaço colectivo dos centros comerciais, atesta a importância crescente do simbólico, da imagem e da sua representação na cultura urbana. Já não importa onde estamos, o que vemos ou o que tocamos. Habituados a percepcionar a realidade que nos chega pela imagem – ela própria uma representação da realidade, e portanto da ordem da construção – moldamos a nossa visão do mundo a partir dos fragmentos de realidade que nos são fornecidos. Somatórios de imagens e de signos vários, estes simulacros têm sempre subjacente às suas construções
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imaginárias a estruturação de uma temática. No entanto, estas são tão variadas quanto a sua diversidade de exemplos, e aparentemente a fórmula do êxito reside mais na eficácia do significante do que na mensagem codificada do seu significado. Dos temas pretensamente naturalistas aos profusamente tecnológicos, da contextualização da cultura local à consagração do mundo global, da ficção histórica aos temas intemporais, defrontamo-nos – no panorama europeu e português – com toda uma variedade de exemplos diversificados. Como se de uma cenografia de uma peça teatral se tratasse, as galerias de circulação e as cúpulas em ferro e vidro e as iluminações estudadas fabricam realidades, simbolicamente unidimensionais, onde apesar de não se distinguirem claramente as fronteiras entre o que é ficção e realidade, não surgem dúvidas ou conflitualidades de maior entre autenticidade e identidade. Os centros comerciais – os grandes contentores do tempo presente (SLOTERDIJK, 2005) –, sucedem-se desta forma às passages francesas, às gallerias italianas ou às arcades anglo-saxónicas do século XIX – onde as primeiras gerações de clientes respiraram o ar interior de um mundo aparente –, e onde, tal como agora, encontramos um tipo arquitectural onde se efectua a síntese paradoxal entre o universo público e a intimidade afectiva das mercadorias (BENJAMIN, 2002). Este é o local do flanêur contemporâneo, que se dirige ao centro comercial não necessariamente para comprar, mas para sentir o ambiente, para ver o movimento, para interagir com a realidade (SAVAGE e WARDE, 1993). Aqui materializa-se uma nova condição, a de um mundo climatizado e domesticado que tem a forma da
COMO SE DE UMA CENOGRAFIA DE UMA PEÇA TEATRAL SE TRATASSE, AS GALERIAS DE CIRCULAÇÃO E AS CÚPULAS EM FERRO E VIDRO E AS ILUMINAÇÕES ESTUDADAS FABRICAM REALIDADES, SIMBOLICAMENTE UNIDIMENSIONAIS, ONDE APESAR DE NÃO SE DISTINGUIREM CLARAMENTE AS FRONTEIRAS ENTRE O QUE É FICÇÃO E REALIDADE, NÃO SURGEM DÚVIDAS OU CONFLITUALIDADES DE MAIOR ENTRE AUTENTICIDADE E IDENTIDADE.
espuma do aglomerado das células egoesféricas dos seus utilizadores (SLOTERDIJK, 2005). Pontuando o território dos centros das cidades às suas franjas suburbanas ou mesmo em lugares mais remotos, estes materializam, assim, estes admiráveis mundos novos capazes de, simultaneamente, satisfazer os desejos e os impulsos consumidores e substituir as vivências urbanas tradicionais por uma domesticada simulação das necessidades de sociabilização humana protegidas por uma (in)visível redoma de segurança. AS NOVAS CATEDRAIS DO CONSUMO Apresentando as mais diversas tipologias, áreas e ofertas de serviços, os centros comerciais representam actualmente um lugar central no quotidiano urbano do cidadão. Para além de ícones evidentes da sociedade de consumo contemporânea, estes desempenham novos papéis enquanto locais de representação, razão pela qual são frequentemente apelidadas de novas catedrais contemporâneas. Todavia, se as suas temáticas e espacialidades são bastante diversas, os centros comerciais tendem a partilhar atributos característicos, não só a nível local ou regional, mas mesmo internacional. Estejamos, em que ponto do globo estivermos, existem elementos de desenho, conteúdos ou formas de apresentação que serão sempre familiares. O que caracteriza então um centro comercial? Claramente, a compra de produtos ou a prestação serviços são as suas actividades chave; contudo essa não é a sua característica diferenciadora do restante tecido comercial urbano. De uma forma geral, ligado à rede de lojas
SE COMPARARMOS A DENSIDADE DE EQUIPAMENTOS E SERVIÇOS EXISTENTES NESTES ESPAÇOS COMERCIAIS COM AQUELES OFERECIDOS PELA REDE DE ESPAÇOS PÚBLICOS TRADICIONAL, COMPREENDEMOS, TALVEZ, UMA DAS RAZÕES PELAS QUAIS ESTES ESPAÇOS OBTÊM UM TÃO GRANDE NÍVEL DE ACEITAÇÃO POR PARTE DO PÚBLICO.
comerciais, existe sempre um primeiro nível de serviços e equipamentos infra-estruturais – que pode ir dos sanitários adaptados a pessoas de mobilidade reduzida, fraldários, multibancos, telefones, primeiros-socorros e estacionamento, até cacifos, farmácias, correios, lavagem de carros, Internet sem fios, empréstimo de cadeiras de rodas, carrinhos de bebé ou mesmo de pulseiras de segurança para crianças. Normalmente, associado aos seus espaços comuns e de circulação, encontramos um segundo nível de ofertas acessórias de ócio e lazer – áreas de restauração, zonas de convívio e de descanso, arranjos paisagísticos naturais ou artificiais, parques de diversão para crianças, solários, health-clubs ou mesmo instalações desportivas. Num terceiro nível, encontramos, geralmente, um conjunto de ofertas ligadas à esfera cultural – onde para além dos cinemas surgem hoje novas funcionalidades e fenómenos, outrora alheios aos locais de consumo, como: filiais de museus, livrarias, galerias de arte, ou mesmo exposições de carácter diverso, feiras de alfarrabismo e antiguidades, workshops de expressão plástica, aulas de cozinha e provas de vinho, desfiles de moda ou espectáculos de música e dança.
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Mais recentemente, sentimos inclusivamente a afirmação de um quarto e último nível de oferta na área dos serviços ao cidadão, pois começamos mesmo a encontrar pontos de informação e divulgação municipais e governamentais – onde é já possível para além de obter esclarecimentos, efectuar pedidos de documentos ou celebração e alteração de contratos –; reparamos como nas suas praças e ruas se desenvolvem campanhas de divulgação e sensibilização – das questões ambientais às de saúde pública, dos hábitos de leitura à protecção civil – e assistimos, inclusivamente, à abertura de postos de atendimento temporários para preenchimento e entrega de declarações de contribuições e impostos. Estas novas introduções são, incontestavelmente, a prova de uma clara mudança de perspectiva. Será, no futuro, possível a colocação de mesas de voto, em toda a Europa, para as eleições dos seus representantes locais, regionais e centrais? Se compararmos a densidade de equipamentos e serviços existentes nestes espaços comerciais com aqueles oferecidos pela rede de espaços públicos tradicional, compreendemos, talvez, uma das razões pelas quais estes espaços obtêm um tão grande nível de aceitação
por parte do público. A razão principal não se prende ao facto de que a oferta de produtos ou serviços seja superior nestas tipologias comerciais. A questão é a intensidade. Como se de uma cidade depurada e destilada se tratasse, o centro comercial concentra num espaço delimitado apenas e nada mais do que o necessário e suficiente à realização da arte ilusória da escolha (SPEARITT, 1994). Intensidade e variedade comercial, acompanhada de uma ampla gama de comodidades, será no fundo o denominador comum destes espaços onde a busca da evasão e da diversão se faz através da via redentora do consumo. DO PANORAMA EUROPEU AO CONTEXTO PORTUGUÊS Liberta dos seus centros e limites por novos modelos de cidadania consumidora, vemos que alternativamente à rede de espaços tradicionais da cidade surgem novos equipamentos lúdico-comerciais, que, contrastando com uma envolvente urbana fragmentada e descontinuada – que acaba abruptamente em vazios, becos sem saída ou nós viários –, oferecem outras formas híbridas de consumo e lazer. De Lisboa a Istambul, de Nápoles a Roterdão, ou de Lille a Varsóvia, encontramos, hoje, uma nova relação entre os habitantes e os seus espaços comerciais. Em média, um cidadão europeu visita-os 17 vezes por ano, ou seja, aproximadamente, de 3 em 3 semanas5. Em média, gasta em cada visita 1h 30 m, afirma que os centros comerciais são um bom local para passar o seu tempo livre e quando os utiliza, apenas em 25 % dos casos é com a intenção de comprar um produto específico.6
O crescimento da indústria dos centros comerciais na Europa tem tido um forte crescimento desde 1990. De facto, nos últimos 17 anos foram construídos mais centros comerciais, em termos de Área Bruta Locável (ABL), do que no período compreendido entre 1960 e 1990. Por exemplo, entre 1990 e 2004 assistiu-se a um crescimento 2,5 vezes superior quando comparado com os 30 anos anteriores.7 Se se restringir o âmbito da análise aos últimos 5 anos deste período, verifica-se que esse crescimento tem sido ainda mais acentuado – principalmente para os países da Europa do Leste e do Mediterrâneo, sendo também de salientar as situações da Itália, Espanha e Portugal, onde se registou um crescimento significativo da ABL de centros comerciais, superior a 25%.8 Actualmente, a soma dos valores totais de ABL dos centros comerciais europeus excede já os 100 milhões de m2, e confirmando o peso crescente que estas novas tipologias têm alcançado na estrutura comercial urbana europeia, observamos como, na última década, a Área Bruta Locável (ABL) tem aumentado de forma significativa, atingindo, actualmente, a marca de mais 166 m2 por cada 1.000 habitantes. Metade dos países que se encontram acima desta média localizam-se geograficamente no Norte da Europa, com a excepção de dois – Portugal e Espanha, com respectivamente 182 e 211 m² de ABL por cada 1.000 habitantes9. Na generalidade do Norte da Europa, estes valores atingem marcas bastante mais elevadas do que nos países do Sul, como os surpreendentes 525 m² de ABL por cada 1.000 habitantes que encontramos na Noruega10. Acompanhando o crescimento da sua área locável global, reconhecemos igualmente a ampliação da sua
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influência. Na generalidade dos países europeus, verificamos que a tendência geral não é só o crescimento do número de visitas e do tempo gasto por visita, mas igualmente da importância deste tipo de lazer na estrutura das rotinas urbanas. Quando, por exemplo, restringimos o universo às escolhas da população portuguesa, apuramos que 63,9% dos portugueses costuma visitar centros comerciais nos seus tempos livres, subindo este valor para uns extremados 87,9% quando restringimos os inquiridos às idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos.11 Como vemos, Portugal não foi indiferente a este processo global. Se nele centrarmos o nosso olhar, defrontamo-nos com um país onde, nos últimos 30 anos, um aumento exponencial do poder de compra e um crescente endividamento das famílias criaram um terreno fértil para a expansão de pólos e áreas comerciais de grande escala. Os principais promotores imobiliários desta área em Portugal – como as nacionais Sonae Sierra, a Multi Development, a Amorim Imobiliária, a Mundicenter ou as internacionais Chamartín Imobiliária, ING Real Estate ou Metro AG – continuam a apontar baterias para este rentável sector. Actualmente as estratégias de expansão não privilegiam apenas as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, e a oferta de complexos comerciais expande-se um pouco por todo o país: Guarda, Guimarães, Ovar, Braga, Portimão, Évora, Setúbal, Leiria, entre outras cidades, detêm já ou esperam pela conclusão da construção de projectos de novos centros comerciais. Hoje, estas tipologias comerciais têm uma posição sólida no panorama português. Existem – segundo o
A IMPREVISÍVEL DINÂMICA DA PRAÇA URBANA PODE SER SUBSTITUÍDA PELO METÓDICO ARRANJO DA PRAÇA COBERTA; A IDENTIDADE DO CAFÉ DO BAIRRO, PELO SEMPRE FAMILIAR IL CAFFÈ DI ROMA; A TORTUOSA RUA SUJEITA À INTEMPÉRIE, PELO ASSÉPTICO E BEM ILUMINADO CORREDOR; O RUÍDO URBANO, PELA SUAVE E COMPASSADA MELODIA; E O RITMO FRENÉTICO DA CIDADE POR UM ESPAÇO ONDE OS RELÓGIOS NÃO EXISTEM.
Inquérito aos Estabelecimentos dos Centros Comerciais de 1999, do Instituto Nacional de Estatística (INE) – 453 centros comerciais em Portugal, dos quais a grande maioria é de pequena dimensão. Deste total nacional, 43 estão qualificados como centros comerciais regionais e 70 como sendo centros comerciais de bairro12. Portugal tem nestas tipologias comerciais um dos seus mais bem sucedidos exemplos de dinâmicas polarizadoras e potenciadoras de intensos usos colectivos. Basta observar como se encontram repletas as suas ruas e praças cobertas. Um dos maiores centros comerciais da Península Ibérica, e actualmente o maior de Portugal, é o Centro Comercial Colombo – um complexo de 120,000 m2, com mais de 420 lojas, mais de 60 restaurantes, 10 salas de cinema e um parque de diversões coberto, inaugurado em 1997. Contudo a menção de que, no primeiro semestre de 2009, irá inaugurar o Dolce Vita Tejo, não poderia ser mais elucidativa. Esta tipologia comercial, que se irá erguer, brevemente, na Amadora, com cerca de 122.000 m2, 9.000 lugares de estacionamento, o maior hipermercado do país, um parque temático de diversão para crianças e uma cobertura transparente – semelhante à utilizada no estádio do Bayern de Munique –, será, à altura da sua inauguração, o maior centro comercial português. Infra-estruturas abertas diariamente e quase ininterruptamente, os centros comerciais com os seus horários alargados marcam o novo tempo da cidade. Modelos arquitectónicos exemplares e cuidadosamente harmonizados, controlados e iluminados (RIFKIN, 2001), são eles que com os seus mundos delicadamente construídos desenham a sua nova paisagem e são, sem dúvida, eles que
PORTUGAL TEM NESTAS TIPOLOGIAS COMERCIAIS UM DOS SEUS MAIS BEM SUCEDIDOS EXEMPLOS DE DINÂMICAS POLARIZADORAS E POTENCIADORAS DE INTENSOS USOS COLECTIVOS. BASTA OBSERVAR COMO SE ENCONTRAM REPLETAS AS SUAS RUAS E PRAÇAS COBERTAS. possibilitam que o ritmo predador do consumo marque todas as suas acções. Numa altura em que estes espaços privados ganham intensos usos colectivos, abre-se um novo panorama perante a afirmação crescente destas tipologias híbridas, interessando reflectir não apenas sobre a sua evolução futura, mas também sobre a sua validade enquanto espaços de socialização da cidade. Pontuando a cidade genérica, que se constrói liberta da escravatura do centro, da camisa de forças da identidade (KOOLHAAS, 1997), vemos como estes espaços traçam novas centralidades e lugares-chave, numa vivência da cidade que já não precisa de se construir forçosamente através de vínculos com os espaços urbanos centrais ou representativos. As vivências citadinas podem agora ser reinventadas em, muito mais confortáveis, simulações controladas e protegidas de urbanidade. A imprevisível dinâmica da praça urbana pode ser substituída pelo metódico arranjo da praça coberta; a identidade do café do bairro, pelo sempre familiar Il Caffè di Roma; a tortuosa rua sujeita à intempérie, pelo asséptico e bem iluminado corredor; o ruído urbano, pela suave e compassada melodia; e o
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ritmo frenético da cidade por um espaço onde os relógios não existem. Se não restam dúvidas que os grandes centros comerciais constroem quotidianos paralelos que esboçam novas vivências e novos hábitos culturais e urbanos; Se não restam dúvidas que as práticas do consumo são definidoras de formas de diferenciação ou de distinção social e construtoras de identidades; Se não restam dúvidas, que, historicamente – em Portugal, como em toda a Europa –, a actividade comercial está e sempre esteve intimamente ligada ao espaço público; Podemos afirmar, pelo contrário, com toda a certeza, que a vida urbana precisa indispensavelmente do espaço público para existir?
NOTAS: Frase de abertura, inscrita na contra-capa, do livro “Project on the City 2 – Harvard Design School Guide to Shopping” [Coord. Chuihua Judy Chung, Jeffrey Inaba, Rem Koolhaas, Sze Tsung Leong], Köln-London-Madrid-New York-Paris-Tokyo, Taschen, 2001. 1
2
Closed Circuit Television
“Panopticon” era um sistema prisional revolucionário, baseado no “Panopticle Principle” de Jeremy Bentham (1787), e consistia num “edifício circular (...) com um torre central de observação e celas dispostas no seu perímetro. Os prisioneiros encontravam-se em celas individuais que eram totalmente visíveis pelos guardas, ou “inspectores”, a partir da torre central, mas o mesmo não acontecia com os prisioneiros que não conseguiam determinar se eram de facto observados. O controlo dos prisioneiros era mantido pela sensação constante de serem observados por olhos invisíveis (...) Não sabendo e estavam ou não a ser observados, mas obrigados a assumir que estavam, a obediência apresentava-se como a única opção racional”. 3
A noção de fantasmagoria, enquanto transfiguração falseadora e enganadora, que ocupa um lugar central na obra de Walter Benjamin, é já um termo usado por este nas suas descrições das exposições internacionais e arcadas comerciais parisienses ou “passages”, dos finais do século XIX, antecedentes históricos dos centros comerciais (Walter Benjamin, Das Passagenwerk, 1927-39; editado postumamente por Rolf Tiedemann; Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1983). Aparece, mais recentemente, utilizado no artigo “Il centro commerciale: Fantasmagoria II” de Richard 4
Ingersoll (Milão: Casabella, 586/587, 1992), onde este classifica esta tipologia comercial como a fantasmagoria do século XX. Esta frequência média inclui, igualmente, aqueles que nunca visitam centros comerciais, in Where People Shop – Research Report (Cushman & Wakefield, Healey & Baker: 2004). 5
44% dos inquiridos concordaram que os centros comerciais são um bom local para passar o seu tempo livre, in Where People Shop – Research Report (Cushman & Wakefield, Healey & Baker: 2004). 6
in Europe Research Report (Cushman & Wakefield, Healey & Baker: 2004). 7
in Shopping Centre Development – European Overview (Cushman & Wakefield, Healey & Baker: 2005) 8
in Shopping Centre Development – European Overview (Cushman & Wakefield, Healey & Baker: 2005) 9
É de salientar que neste caso estamos perante uma tão alta Área Bruta Locável (ABL) por habitante que seria possível toda a população actual da Noruega caber dentro dos seus centros comerciais (pois uma área de 525m² poderá ter no limite capacidade para albergar cerca de 1000 pessoas). 10
in Estudo telefónico – PhoneBus. (Marktest: Setembro 2004). 11
in Inquérito aos Estabelecimentos dos Centros Comerciais 1999 – Número de Centros Comerciais e Estabelecimentos, por Tipologia do Observatório do Comércio. segundo a Situação e Actividade Económica (Instituto Nacional de Estatística: 1999). 12
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CONTRATEMPO
S REL 68 O ROMANTISMO REVOLUCIONÁRIO, O MITO E O PESSIMISMO
CARLOS CARUJO
SOREL 68. O ROMANTISMO REVOLUCIONÁRIO, O MITO E O PESSIMISMO CARLOS CARUJO | PROFESSOR
PARADOXOS ROMÂNTICOS: BREVE APRESENTAÇÃO DE SOREL A selecção natural que a história das ideias sofre não perdoa e talvez o nome de Georges Sorel seja, hoje em dia, praticamente desconhecido. Para quem conheça a história do pensamento político evocará uma qualquer defesa da violência e do sindicalismo revolucionário do início do século XX. A este esquecimento não será alheio o facto de não ter feito escola: poucos se reivindicarão da sua herança e, entre esses, menos ainda se conseguirão rever na totalidade do que defendeu. Desconcertante, brilhante e contraditório, figura de proa da introdução do marxismo em França e em Itália, Sorel viveu o paradoxo das diferentes paixões políticas como quem não está sempre do lado certo. Criou um perigoso cocktail explosivo com Marx, Nietzsche e Bergson como ingredientes. Passou do conservadorismo para o marxismo, com um bilhete de ida e volta, sem nunca ter deixado de ser o que sempre terá sido: um “conservador revolucionário” que encontrou no sindicalismo a sua resposta, pelo menos em parte significativa da sua vida. É o nosso primeiro pretexto. DO ROMANTISMO À ANÁLISE DA VONTADE REVOLUCIONÁRIA (A REVOLUÇÃO COMO CRENÇA PROFUNDA E O MITO COMO MOBILIZADOR) Se quiséssemos percorrer o rol de influências de Sorel, teríamos também de fazer uma paragem pelo historia-
dor romântico/idealista Carlyle1. Influência que passa pela sua crítica da sociedade industrial e da democracia e pelo acentuar do papel dos heróis na história. Os dois são alvo de críticas sobre a ambiguidade do seu pensamento e aproveitados quer pelos socialismos quer pelos fascismos. Os dois apresentam uma visão romântica e parecem estar irmanados pelo mesmo esteticismo heróico. Só que em Sorel este esteticismo é, ao mesmo tempo, heróico e socialista, encarnando-se na figura do “proletário” (e na ideia de que o “sublime morreu na burguesia”), e moralista, apresentando-se como forte crítica à decadência moral da sociedade. A crítica à burguesia é primeiro moral e só depois económica2. E, para além de heróico, socialista e moralista, este esteticismo é revolucionário: aos proletários cabe terminar violentamente3 com a decadência social, enquanto portadores da nova ordem. A força deste herói colectivo reside sobretudo na sua vontade interior despoletada pelo mito. É em Bergson e no conceito de intuição que Sorel vai filiar o seu conceito de mito. A compreensão profunda e orgânica da realidade que a intuição é inspira a sua tradução política no conceito de mito. Este é uma tentativa de compreender as razões profundas que movem, para além da própria razão e do interesse, a acção política decisiva. A “Filosofia intelectualista”, ao deixar escapar o mito, mostra que é “de uma incompetência radical para a explicação dos grandes movimentos históricos.”4 Enraizado na crença profunda, o mito dá segurança face a todas as refutações; com ele estamos ao abrigo
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do desencorajamento. Por isso, ao invés de continuar os projectos racionalistas, que passavam em parte por colocar o mito do lado do poder como dissimulação da sua verdade e opor-lhe uma ordem mais racional, Sorel coloca o mito no coração do projecto revolucionário, não como mistificação mas como intuição, como força vital dos processos de transformação social. Uma intuição conscientemente datada5 mas com um incrível poder transformador actual. Por sua vez, o racionalismo tem horror ao mito e só consegue criar a utopia que é um modelo teórico artificial que se deixa “decompor e reconstituir nas suas diversas partes, demonstrando assim a sua natureza de construção mecânica e artificial” e que só pode levar a futuras reformas porque “é uma construção desmontável da qual certos pedaços foram talhados de forma a poder passar (…) numa legislação próxima”. Para além do mais, na sua placidez perfeita, falta-lhe também o carácter mobilizador: este puzzle em que certas peças se encaixam no poder não engendra o heroísmo necessário. Pelo contrário, o mito diz respeito às forças irracionais e profundas que animam o ser humano e deve ser aceite ou recusado na sua totalidade. Por ser um bloco compacto, o mito é por natureza revolucionário: não alimenta esperanças de transformação gradual, nem traça os caracteres da sociedade futura.6 O mito é a revolução vinda das nossas entranhas e não uma brisa de imaginação. Estando para além do racional, o que o constitui não são ideias mas “imagens motrizes” pré-racionais que mo-
bilizam, antes de mais, os sentimentos. Estas imagens situam-se nas profundezas da crença, do sentimento, da vontade, sendo assim individuais e, sendo motor de acção, são igual e inevitavelmente colectivas. O mito é o íntimo colectivo mas não colectivizado. Daí que permita pensar as transformações sociais não como sucessão de homens excepcionais mas através das disposições que impulsionam para acção os seres humanos: da “reputação gloriosa” na Grécia Antiga, ao “juízo final” no cristianismo primitivo, à fé na “virtude” e liberdade durante a Revolução Francesa ou ao entusiasmo nacionalista. Aliás, apesar de reconhecer o poder mítico do nacionalismo, Sorel pensa que a burguesia sua contemporânea é incapaz de engendrar um mito mobilizador. É preciso uma profundidade, que não se encontra nessa classe, que possa conduzir até às últimas consequências e que se encontra na figura do guerreiro ou do religioso, sem que com a analogia se possa comparar a crença revolucionária às formas religiosas, apesar de serem provenientes dos mesmos lugares da consciência profunda. Serão os proletários quem ainda pode criar esta crença profunda.7 E os proletários por si só. Sorel fustiga duramente o racionalismo, opondo o socialismo das massas ao dos filósofos. O mito é também revolta da acção necessária contra o socialismo das palavras. O socialismo das palavras é infértil: “pode-se falar indefinidamente de revoltas sem provocar nunca nenhum movimento revolucionário”. E, pior ainda, está a caminho do reformismo. O marxismo é revolucionário, pretendendo-se racionalista, porque tem o mito impregnado, constituindo-se numa paradoxal potência mítica: porque a revolução, tal como Marx e Sorel a desejaram, é ela própria um
O PROBLEMA É QUE O MITO POSITIVISTA NÃO VEM DAS ENTRANHAS DO PROLETARIADO, SENDO ASSIMILADO, A PARTIR DA SUA ORIGEM EXTERNA, POR UM FETICHISMO DA CIÊNCIA, UMA CRENDICE. O MITO TERÁ DE SER COMPLETAMENTE IMANENTE AO PROLETARIADO: REVOLUÇÃO E GREVE GERAL
mito; porque a ciência, em que o marxismo se ancora, é dos mais fortes mitos da sua época, tornando a crença na inevitabilidade da revolução uma alavanca da acção transformadora. O problema é que o mito positivista não vem das entranhas do proletariado, sendo assimilado, a partir da sua origem externa, por um fetichismo da ciência, uma crendice. O mito terá de ser completamente imanente ao proletariado: revolução e greve geral. O poder de evocação e mobilização deste mito junto do proletariado leva Sorel a afirmar: “O que a greve geral significa realmente e objectivamente na situação política não tem nenhuma importância: o que conta é a fé que o proletariado tem nela, e os efeitos provocados por uma tal fé na dinâmica da luta política.” Exagerando assim a potência da força dos mitos, o subjectivismo artificialista parece estar mesmo aqui ao lado. Contudo, a força principal do conceito reside nas vias que abre para pensar a política a partir dos processos de subjectivação, ou seja, pensar o que é a vontade de revolução, qual o seu sentido verdadeiro e qual a sua potência. Num tabuleiro em que se cruzam vários mitos, joga-se o nível de hegemonia profunda de vários projectos políticos.
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PESSIMISMO E OPTIMISMO EM SOREL O mito não basta para pensar os processos de subjectivação revolucionária. Ele está sempre envolvido num certo clima subjectivo, pelo que se torna, para Sorel, necessário pensar o pessimismo como o clima psicológico imprescindível para que o mito floresça. É numa carta a Daniel Halevy8 que Sorel apresenta a defesa do pessimismo como a posição revolucionária por excelência: “essa doutrina sem a qual nada de muito elevado se faz no mundo”. Sorel redefine optimismo e pessimismo. Em primeiro lugar, o autor separa este seu pessimismo do “pessimismo odioso”9, o da auto-flagelação, o pessimismo dos coitadinhos. É necessário um pessimismo mobilizador para a luta. O pessimismo não é natural nas nossas circunstâncias de vida: “estamos (…) tão mal preparados para compreender o pessimismo, que empregamos, as mais das vezes, a palavra ao contrário: nomeamos, muito pelo contrário, como pessimistas os optimistas desiludidos.” E é o optimista desiludido, aquele que é crente na bondade do mundo mas que sofreu os reveses da vida, que introduz o retrato do optimista político: “O optimista é, em política, um homem
O OPTIMISTA É, POR NATUREZA, UM REFORMISTA PORQUE ACREDITA NO SEU PODER DE TRANSFORMAÇÃO SOBRE A SOCIEDADE. PELO CONTRÁRIO O PESSIMISTA É REVOLUCIONÁRIO E ESTA SUA POSIÇÃO IMPELE A PENSAR A DIFÍCIL E URGENTE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL SOB A CATEGORIA DA CATÁSTROFE.
inconstante ou mesmo perigoso, porque não tem em conta as grandes dificuldades que apresentam os seus projectos; estes parecem-lhe possuir uma força própria, conduzindo à sua realização tão facilmente quanto estão destinados, no seu espírito, a produzir mais felicidade.” Assim, o optimista é, por natureza, um reformista porque acredita no seu poder de transformação sobre a sociedade. Pelo contrário o pessimista é revolucionário, e esta sua posição impele a pensar a difícil e urgente transformação social sob a categoria da catástrofe. E sendo sempre o optimista um falhado em potência, sofre no poder uma metamorfose perigosa: as consequências políticas do anti-catastrofismo são catastróficas num outro sentido. “Se é de um temperamento exaltado e se, por infelicidade, se encontra armado de um grande poder, permitindo-lhe realizar um ideal que forjou, o optimista pode conduzir o seu país às piores catástrofes. Não tarda a reconhecer, com efeito, que as transformações sociais não se realizam de todo com a facilidade com que tinha contado; ele é tomado de desilusão face aos seus contemporâneos, em vez de explicar a marcha das coisas pelas necessidades históricas; é tentado a fazer desaparecer as pessoas cuja má vontade lhe parece perigosa para a felicidade de todos.”10 Imaginação utópica e optimismo falham como projecto político íntimo e social. Só o pessimismo prepara para as dificuldades. Nele, a acção torna-se inexorável, apesar do que aconteça. O pessimismo implica analisar a situação geral do mundo como negativa, implica uma dimensão crítica da situação e dos seres humanos realmente existentes11, mas implica sobretudo que o mundo não se regenerará e que qualquer transformação política tem de ser revolucionária. O mito arma o pessimismo para realizar a transformação do mundo.
Salvação e desespero sem desesperança são elementos deste jogo interior. O pessimista não é niilista porque luta pela salvação (délivrance) como horizonte de possibilidade não utópico. Cristianismo primitivo e calvinismo são os exemplos históricos que permitem compreender melhor o papel do pessimismo e a força de uma crença na salvação pelo heroísmo que geraram. Construir um horizonte de salvação não religioso e um mito imanente que possam resistir, florescer e mobilizar a consciência mais profunda é o desafio. As referências religiosas não podem ser interpretadas de acordo com a conclusão vulgar de que o socialismo revolucionário é uma forma religiosa: acreditar pode ser diferente. Mas estas são o exemplo histórico mais evidente da força histórica das crenças profundas e mobilizadoras. INTERLÚDIO HISTÓRICO: O ROMANTISMO REVOLUCIONÁRIO VERSÃO 68 Segundo pretexto: o aniversário do Maio de 68, celebração da greve geral e crítica à decadência burguesa. Um acontecimento romântico, de acordo com Michael Löwy12, mas não soreliano. A nova geração de romantismo revolucionário define-se agora, longe dos equívocos de Sorel, como “um protesto cultural contra os fundamentos da civilização industrial/capitalista moderna, o seu produtivismo e o seu consumismo, e uma associação singular única e sem género, entre subjectividade, desejo e utopia.” Este romantismo continua a colocar, na positividade, a necessidade da transformação política radical: “Está (…) carregado de esperanças utópicas, sonhos libertários e surrealistas, “explosões de subjectividade” (…), em resumo, do que Ernst Bloch chamava (…) “imagens-de-desejo”, que
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são não somente projectadas num futuro possível, uma sociedade emancipada, sem alienação, reificação ou opressão (…), mas também, imediatamente, experimentadas em diferentes formas de prática social: o movimento revolucionário como festa colectiva e como comunidades humanas livres e igualitárias, a afirmação partilhada da sua subjectividade (…); a descoberta de novos métodos de criação artística.” O romantismo de Maio continua a remeter para uma política dos afectos. Só que então estes não eram a profundidade que preparava para a dureza revolucionária até às últimas consequências mas uma esperança intangível e vivida, sonhos criativos, utopias rebeldes e excêntricas. Aliás, as utopias de 68 não são as dos socialismos utópicos, não parecem ser fragmentáveis, para utilizar uma linguagem próxima da de Sorel, e muitas fogem necessariamente ao enquadramento que o poder possa delas fazer. Armada assim, poderia uma revolução ser triunfante? Talvez afinal menos romântico que estes românticos, Sorel responderia amargamente que não porque o modelo da festa falhou no confronto. Alguns dos seus mais notórios protagonistas defendem que, paradoxal e romanticamente, o foi. Para além do mais, a subjectivação neo-romântica quer-se revolução em si sem deixar de ser transformação colectiva e radical. Uma nova forma de ser e de estar, exigida e vivida.13 Revolução afectiva mais do política afectiva para a revolução. E, contudo, ao ser assim colocado, Maio pôde tornar-se um pequeno mito para os novos românticos revolucionários: os dias em que se viveu de forma diferente, em que se abriram novas possibilidades de vida. Mas o Maio celebrado traz um certo sabor de nostalgia, dos bons velhos tempos. O próprio romantismo
sente que não pode ficar em Maio sob pena de chegar atrasado ao calendário das revoluções por vir. Maio não se fez mito na nossa sociedade, apesar de enquanto acontecimento ter escapado aos processos de recuperação do capitalismo. Se escapou o acontecimento não escaparam os símbolos, as imagens, a vertente comemorativa está aí para o provar, comemorar para exorcizar, e até a parte das gentes de 68 que se passaram a sentar nas cadeiras do poder. Ironia, Maio faz bom comércio e dá audiências para vender sabonetes que lavam mais branco o nosso consumismo. É curiosa a referência às “imagens de desejo” que seriam o material íntimo de 68. Remete para toda uma outra forma de pensar, para além das imagens motrizes da crença profunda. Maio e o mito do desejo... ou o desejo como conceito que permite um novo olhar para os processos de subjectivação, como o fizeram Guattari e Deleuze: a política revolucionária voltou às entranhas com novos saberes e novos conceitos, toda uma nova produtividade para retirar mais lições criativas. Seja pensado como desejo ou como mito, o romantismo revolucionário, desacreditada a greve geral revolucionária como instrumento de mudança, aberto o sujeito revolucionário a outras militâncias que não as do operariado industrial, procura sempre reactualizar-se nas novas formas de mobilização. 14 É o eterno retorno do acontecimento revolucionário que o espírito romântico revive. Um mito? Conseguirá a alter-globalização penetrar profundamente no desejo e na crença? O CUIDADO DE SI DO REVOLUCIONÁRIO (AFECTOS, VONTADE, PESSIMISMO E
OPTIMISMO). COMPREENDER-SE E REVOLTAR-SE Estes pretextos inspiram a consideração sobre o “cuidado de si revolucionário”, os processos de subjectivação que o revolucionário sofre passivamente e aqueles em que é agente ou pelo menos de que está consciente. Compreender o mais profundo da sua revolta, compreender o que do seu desejo é revolucionário-revolucionário, o que é revolucionário-passivo/dependente/negativo e mobilizar as suas forças para responder à realidade parecem ser tarefas revolucionárias não convencionais mas que se impõem. É que, se uma disposição inconsciente leva o revolucionário a desterritorializar-se face à norma, ele não está condenado a uma reterritorialização normal/normativa. Compreender-se é importante para não se afundar na negatividade e para produzir novas possibilidades: aproveite-se esta brecha criativamente. Contudo, teremos de ter cuidado para não exagerar na dose de romantismo (sobre a capacidade do eu se reinventar), para não cair numa resposta ela própria normativa (não criar uma teoria normativa do eu revolucionário, artificial e perigosa) e para não cair na tentação de auto-justificação (que consistiria em descrever a figura do revolucionário a partir da imagem ideal de si). Um programa mínimo para o eu revolucionário. Conhecer-se, revoltar-se. Do ponto de vista revolucionário, o conhecer-se sem se revoltar é vazio e o revoltar-se sem se conhecer é cego. Aliás, o conhecer-se sem se revoltar remete para a posição do que desistiu de lutar e se desculpa dizendo que a revolução tem de ser interior primeiro, o que é desculpa para o individualismo e para deixar de se fazer revolucionário: há um depois que nunca chega, uma
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suposta revolução de si que nunca é cumprida, novas figuras que se descobrem apenas para se manter na mesmidade. Reencontramos assim uma das figuras actuais do optimista desiludido: de 68, de 74, de sempre. E, já que encontrámos uma personagem conceptual familiar, não deixemos escapar a oportunidade de zurzir noutras. Em primeiro lugar, o pessimista anti-revolucionário. Aquele que ostenta o seu cinismo face a todas as revoluções, que trata como mitos ou utopias, acreditando piamente num racionalismo de fundo pessimista que nem tematiza os seus próprios mitos e as suas disposições internas. Creio que já se terão cruzado com esta personagem ultimamente, certo? É um pessimismo historicista, que tira conclusões sobre o curso da história, mas é sobretudo um pessimismo essencialista que atribui em última instância a uma natureza humana egoísta o falhanço inevitável de qualquer perspectiva revolucionária. Ao pessimismo da revolução corresponde um realismo dos interesses. Porque o que resta como atitude política é o niilismo ou o reformismo, para o qual não se parece precisar sequer de mitos, só de interesses. Pode ser o regresso do optimista falhado ou a chegada do que nunca sonhou. Em segundo lugar, o revolucionário optimista ingénuo, com todo o seu voluntarismo. Creio que se esforçarem ainda o podem encontrar. Espécie em vias de extinção, doença fatal da juventude ou até caso de síndrome de Peter Pan, dirá o cínico. Ele lá saberá no seu coração se só se é optimista primeiro para se desiludir depois. Aliás, Sorel diria que se é desiludido depois porque se foi optimista primeiro. Por mim, não consigo ir tão longe porque esta personagem me é bastante simpática. Somos companheiros. Espero, a bem das lutas
sociais, que nunca se desiluda ou lhe dê para se procurar revolucionar a si próprio entropicamente até à exaustão abandonando as suas lutas… Companheiro, sem dúvida não só pela sua posição actual mas também porque, coisa incompreensível para o cínico, há optimistas revolucionários que o são a vida toda, que reinventam o optimismo a cada golpe da fortuna. E, se tudo correr pelo melhor, o optimista ingénuo perde a ingenuidade mas não o optimismo. Não esgotámos a galeria das personagens mas concluímos com o lema de uma outra possibilidade, esboçada por Gramsci nos “Cadernos da Prisão”, sob a influência, tantas vezes esquecida, da análise precedente de Sorel: “pessimismo da razão, optimismo da vontade.” A voz do combatente antifascista remete para uma política afectiva de preparação para todas as dificuldades.15 E, para além disso, o pessimismo da razão actua como scanner da realidade, preparando e conhecendo as hipóteses de falhanço. Porém, apenas com o optimismo da vontade se descobrem certas possibilidades de transformação que a razão pessimista deixa escapar na sua malha apertada. Assim, uma certa dose de optimismo é fundamental como condição da própria capacidade de fazer política racionalmente (sem esta vontade a razão é menos racional) e mesmo para que o sujeito não se perca no pragmatismo ou se afunde na inacção pessimista. Um certo desequilíbrio equilibrado das faculdades do eu revolucionário mantém a tensão que prepara a acção duradoura e que não deixa o revolucionário render-se ao conformismo. Mesmo que o pessimismo não prepare para todos os golpes da fortuna, sendo uma fórmula mágica de fugir à possibilidade de desencantamento, tem o
OS ACTUAIS MITOS REVOLUCIONÁRIOS JÁ NÃO SÃO OS DA ÉPOCA DE SOREL OU DE 68. SÃO, COMO VIMOS, OS DAS VELHAS E NOVAS LUTAS, SOBRETUDO OS DA ALTER-GLOBALIZAÇÃO, O MOVIMENTO QUE REINVENTOU A POSSIBILIDADE DE UMA INTERVENÇÃO POLÍTICA RADICAL.
papel de chocar contra o optimismo. Poderemos acrescentar para continuar a martelar na metáfora kantiana que optimismo sem pessimismo é politicamente cego, pessimismo sem optimismo é politicamente vazio. Não é uma receita, é apenas outra figura possível. MITOS E PROJECTOS REVOLUCIONÁRIOS. PERSPECTIVAS E ESCOLHAS DE MOBILIZAÇÃO Outro contributo que os pretextos românticos nos deixaram foi a possibilidade de pensar a política a partir da potência dos mitos ou dos níveis mais profundos de crença. Por muito que se diga que os tempos de racionalismo técnico, relativismo ou cinismo já não são os do mito ou que a realidade fluida já não possibilita esse tipo de enraizamento, permanece possível analisar sob este prisma. Os actuais mitos revolucionários já não são os da época de Sorel ou de 68. São, como vimos, os das velhas e novas lutas, sobretudo os da alter-globalização, o movimento que reinventou a possibilidade de uma intervenção política radical. Neste movimento global, várias possibilidades se confrontam e escolhemos dois
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exemplos: a “multidão” de Negri e Hardt e o “nós” de Holloway. Ao pensar a sua força de mobilização, dirijo-me ao que da teoria passa como imagem-força, daí a crítica ser “impressionista”. O conceito de multidão chega da filosofia spinozista preparado para desfilar nas mobilizações da alter-globalização. Por isso, é estranho a muitos activistas. Mas também por isso traz um certo charme para outros. Será o suficiente para se entranhar? Daí que a primeira crítica que se lhe poderia apresentar, de um ponto de vista soreliano, é a desta origem externa. Ironia soreliana face a um conceito que se reivindica de combate contra as transcendências do Partido, do Proletariado, etc. e capitaliza também com esta crítica, pela negativa portanto, algumas simpatias. Mas falta à multidão uma imagem precisa. Os autores apresentam-na como “um conceito de classe”, sendo a sua diferença relativamente ao conceito de classe trabalhadora, essencialmente, o alargamento à “exploração das singularidades”.16 Alargamento que parece essencial para um mito ser fecundo nas mobilizações anti-globalização animadas por uma miríade de activismos, e nesse sentido o conceito dá uma certa resposta, pretendendo trazer
consigo mais possibilidades de rebelião e de ligação entre as já existentes. O problema é que estas perspectivas não se identificam como movimentos de libertação das singularidades. Mesmo que a singularidade seja o fundo do que sou, esta proposta não lhe toca. “Singularidades de todo o mundo, uni-vos!”? A pergunta torna-se inevitável: o que cose uma multidão? A forma anti-disciplinar de agregação de vontades e movimentos, que a multidão pretende ser, levanta o problema: como constituir um “corpo sem órgãos” político actuante e sem cair nas hierarquias, na disciplina? A crítica imediata é que o conceito é inorgânico, o corpo da multitude não funciona num palco em que se defronta com corpos poderosos. A esta crítica responde Negri que a multidão não tem corpo: construída contra o conceito de povo, não poderia ser orgânica, é a isso mesmo que ela foge por definição.17 Um simpático monstro mal cosido pode sobreviver na imaginação. A nossa primeira questão regressa: será que o monstro sobrevive na crença profunda e se faz mobilização? Será que assusta? Será que se consegue transformar na assombração da nossa época, como o espectro comunista? Como decide e luta este monstro? O conceito de multidão parece não responder a questões fundamentais e ficar aquém de um programa. No campo da estratégia exterior a multidão parece artificial, tal como no campo interior parece não ser suficientemente mobilizadora. O núcleo mais forte, mais galvanizador, deste mito reside na atribuição da potência criativa à resistência, sendo esta positiva e primeira e correspondendo a negatividade ao poder: inversão de todos os valores.. É um postulado teórico que parece, diriam alguns, forçar a história, ou, diriam outros, permite
reescrever a história do ponto de vista dos subalternos. A ideia, que se reivindica teoricamente de Deleuze, é, de certa forma e ao mesmo tempo, soreliana: tal como o proletariado condensava toda a criatividade social para Sorel e a burguesia a incapacidade de criar mitos, também a multidão… O mito volta a passar por uma vontade de empowerment.18 Contudo para realizar esta operação, os autores não têm a necessidade de recorrer ao conceito de multidão: Negri já o fazia com o operaismo. A multidão alarga as resistências, cria uma plataforma de encontros, até potenciará mas não altera o carácter criativo das resistências que o proletariado já detinha. Enquanto mito soreliano, não parece ser forte, gerará algum heroísmo, entranhar-se-á? Quem se vive como multidão? Posso muito me enganar ou esta paixão limitada a alguns activistas e intelectuais não fará da multidão a paixão que é necessária nem trará à multidão consciência de si enquanto multidão. Não gritaremos por ela. E é o grito contra o sistema que se coloca logo no início do outro projecto escolhido como exemplo.19 Se o projecto de Negri é um projecto que coloca em primeiro lugar a positividade da luta, o de Holloway coloca nesse lugar a negatividade do grito como recusa das injustiças, reactualizando formas românticas como as críticas à sociedade industrial e pós-industrial e a uma outra modalidade da grande recusa. O mito de Holloway parece ter menos espessura do que o de Negri, procurando dar resposta aos mesmos anseios dos mesmos grupos activistas. É possível ter menos espessura que a multidão? A universalidade do grito pretende agarrar-nos a todos a este projecto. O grito-mito, a recusa universal do capitalismo, o “não” ético ao curso do mundo. Esta
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negatividade básica implica, para não cair no cinismo, a esperança. Regressamos, obviamente, à dialéctica do pessimismo/optimismo gramsciano unidos num “grito de horror-e-esperança”, numa versão bem mais romântica do que a do pensador sardo.20 Uma esperança que, diz este autor, não vem da certeza do final feliz.21 Que nem se percebe bem de onde venha mas que se sente que é urgente por trazer a possibilidade de um projecto alternativo. É claramente romantismo alicerçar assim um projecto revolucionário no sentimento, no grito, na necessidade de um certo optimismo para não desesperar, no grito desesperado de que o optimismo é preciso para não cair no desespero. E isto não é uma crítica, pode-se muito bem construir tal projecto. Uma crítica soreliana poder-se-ia dirigir mais ao facto deste romantismo não estar alicerçado no concreto ficando-se assim por uma etérea análise quase-existencialista.. O grito vem das entranhas, tudo bem. Mas o que se entranha deste grito? E o que se deverá fazer com ele? Sobretudo, há que não tomar o poder, adverte Holloway. Tudo menos isso. O mito prossegue o seu caminho na negatividade. Que ideia fica em primeiro lugar dele? Onde o mito negrista pretendia construir um espaço de mobilização possível para todos os encontros, este programa começa por separar águas entre os que estão destinados a corromper-se na tentativa de mudar o mundo (a crítica principal é dirigida aos revolucionários tradicionais: vivem o mesmo ponto de vista que querem combater ao pretender tomar o poder estatal) e os que vão mudar o mundo sem tomar o poder. Esta fórmula parece não conseguir competir com a certeza de que, sem alterar as formas dominantes de poder, só se muda
O ASSALTO AO PODER PARA A DESTRUIÇÃO DA SUA LÓGICA E NÃO A MANUTENÇÃO DO ESTADO OU A CONSTRUÇÃO DO ESTADO OPERÁRIO, COMO PARECE QUERER ESQUECER HOLLOWAY, É O QUE CONSTITUI OS PROJECTOS REVOLUCIONÁRIOS TRADICIONAIS. PODE-SE RETIRAR ESTA IDEIA E PERMANECER REVOLUCIONÁRIO?
o que os principais poderes constituídos deixem mudar: as subjectividades certamente terão os seus limites... Baseia-se num equívoco facilmente desmontável: o assalto ao poder para a destruição da sua lógica e não a manutenção do estado ou a construção do estado operário, como parece querer esquecer Holloway, é o que constitui os projectos revolucionários tradicionais. Pode-se retirar esta ideia e permanecer revolucionário? Em primeiro lugar, não parece existir nada a não ser a pressuposição ou o preconceito do autor que conduza à necessidade de se ficar incrustado nessa lógica “demoníaca” do poder22 ao tentar a revolução. Em segundo lugar, ao tentar reformular o conceito de poder e de revolucionário, de revolucionário mais revolucionário do que os próprios revolucionários, o que procurava ser oposição aos reformismos e teorias revolucionárias tradicionais deita tudo para o mesmo saco do lixo. Dificilmente conseguirá o seu difuso programa sobreviver na competição com os reformismos e as teorias revolucionárias, mas vai no sentido de inflectir a revolução de transformar em conjunto a sociedade para mudar o “estar” ou o “ser”, figura já nossa conhecida. Esta reformulação do conceito de revolucionário pretende talvez chegar ao coração dos activistas que carregam uma desconfiança natural face às perspectivas revolucionárias tradicionais e, mais amplamente, a todos os que sentem um asco natural ao poder (diria mesmo que o asco é o isco). Estabelecendo que o revolucionário muda a vida sem tomar o poder, atrairá provavelmente os que querem lutar sem ir ao fundo, sem sujar as mãos, sem fazer inimigos, talvez também os mais individualistas. Lembram-se da personagem que só queria mudar o interior? Talvez também se possa apaixonar por esta
perspectiva e voltar/chegar a uma luta a que fazem todos falta. Agradeceríamos a Holloway. Mas quem grita afinal? Pela positiva, temos pouco para analisar deste anti-poder que se quer activo mas que não produz imagens mobilizadoras. O grito fala pela voz de um “nós”. Um sujeito universal-negativo e difuso. Afinal nós é pouco para nos sentirmos juntos com alguém. E também, sendo crítica ao partido e aos revolucionários tradicionais, este nós simultaneamente abraça todos e exclui muitos dos anticapitalistas. Apresenta-se como uma imanência, mas aplana diferenças à força, não tem forma organizativa. O que se ouve desta voz? É um grito que ainda não deve ter chegado aos ouvidos dos poderosos. O monstro da multidão assusta muito mais do que este grito. Resta ainda a referência ao zapatismo, mais uma atitude (estetizada) do que um caminho de mobilização. A crítica realista poderia contrapor a Holloway, eficazmente e sem sair dos tais conceitos tradicionais, que a guerrilha zapatista implica formas de poder e até tomada armada do poder, implica ainda muito de disciplinar, apesar de construir o seu mito (e a realidade da sua prática) através do comunitarismo, da democracia de base e do despojamento dos seus protagonistas. Que mito, no sentido mais forte do termo, podem constituir os discursos poéticos e as atitudes corajosas do sub-Comandante Marcos para o conjunto da sociedade ocidental? Será esta uma versão bonsai do zapatismo para construir no nosso quintal? Entre um nós demasiado genérico, e que nem tenta esboçar linhas estratégicas de resistência, e um zapatismo demasiado localizado e ao mesmo tempo demasiado descontextualizado, perde-se a possibilidade da imagem-força afectiva.23 É um grito não entranhado.
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Um dos pontos mais importantes desta teoria assenta na ideia de que a nossa subjectivação não está dominada totalmente pelo capital e é um processo. Com isto pretende-se impedir que sejam exterioridades transcendentes as únicas entidades que escapem ao fetichismo, tornando-se os únicos lugares possíveis de resistência. Assim, não se refunda o cuidado de si revolucionário apesar de se encerrar no reduto da reconstrução da sua subjectividade e das vivências particulares. O nós é afinal eu. Um eu que quase instintivamente grita porque o capitalismo conduz à revolta. Se o mito revolucionário se construiu sempre a partir da ideia de que a revolta era um bem precioso que se deveria cultivar, induz-se aqui a ideia de que as revoltas aí estão sempre quase sem esforço e que o revolucionário escusa de se esforçar por se compreender porque o seu desejo é revolucionário, está explicado à partida. É um axioma do sistema ter o grito sempre na garganta. Pode dedicar-se à transformação da sua vivência como a um trabalho de Sísifo ignorando este ponto fulcral da vontade de poder. Falta pensar o desejo. Esta perspectiva universalista e vaga de pensar os efeitos de subjectivação do capitalismo não parece convidar às profundezas nem criar mobilização. Trata-se de partir do pressuposto de que “todos são revolucionários mesmo que alguns não saibam disso”. Mas o capitalismo não produz efeitos uniformes e universais, nem todos lhe respondem da mesma maneira. Ao aplanar tudo num “nós”, o grito-bulldozer quase rouba a riqueza e criatividade dos sujeitos porque todos têm de gritar. O meu pressuposto é diferente: “alguns são revolucionários e é necessário pensar a diferença que se produziu”. O devir-revolucionário é historicizado, dependendo da vida, das condições sociais, das experi-
ências subjectivas. Por alguma razão, que terá necessariamente de ser pensada na sua complexidade, alguns sujeitos dirigem o seu desejo a algo como “a revolução” e vivem de inúmeras formas a sua vida como “revolucionários”, e outros não. O primeiro problema é impedir que a percepção desta diferença se transforme no delírio da construção de um “corpo glorioso revolucionário”, as crenças de suposta superioridade moral ou cognitiva do revolucionário. E tratar-se-á também de tomar consciência do porquê desta disposição, de torná-la positiva, de possibilitar a circulação desta energia, de mobilizar outros, de contagiar para que não se fique sozinho. Porque a diferença não pode implicar nem negatividade, o revolucionário é revolucionário apenas porque é um revoltado/zangado com a vida, nem superioridade, o revolucionário é revolucionário porque vê mais longe as causas-efeitos sociais ou sente mais profundamente as injustiças. As subjectivações revolucionárias, porque de inúmeras atitudes básicas face à vida se pode tratar, são possibilidades. Possibilidades que abrem possibilidades. Possibilidades criativas ou destrutivas. Terminemos com a parte estratégica destas duas perspectivas: a fuga e o êxodo, encontro romântico das possibilidades de resistência a que chega por diferentes vias e que tem significados diferentes. Criadas como se o conceito de linha de fuga de Deleuze fosse lido de forma um pouco literal de mais, fogem à mitologia tradicional guerreira ou de aparência religiosa e fogem à própria mitologia operária do orgulho produtor. Deixar o trabalho morrer com fome de trabalhadores? E antes não morrerão os trabalhadores de fome? Apesar do desertor poder ser um herói, este tipo de fuga dificilmente é imaginável como mobilização. No fim de
DEIXAR O TRABALHO MORRER COM FOME DE TRABALHADORES? E ANTES NÃO MORRERÃO OS TRABALHADORES DE FOME? APESAR DO DESERTOR PODER SER UM HERÓI, ESTE TIPO DE FUGA DIFICILMENTE É IMAGINÁVEL COMO MOBILIZAÇÃO. FUGIR DO TRABALHO, CIRCULAR LIVREMENTE, NÃO EVOCA HEROÍSMO.
contas, fugir do trabalho, circular livremente, não evoca heroísmo, ou melhor, não constrói um programa de transição. Esta nota reforça a ideia de que nos mitos revolucionários se cosem imagens diferentes que se deveriam analisar não à peça, mas em bloco. A unidade e consistência das imagens é uma das condições para que o mito funcione. Outras condições estiveram subjacentes a esta análise: a autenticidade, os mitos artificiais caem facilmente; a sua capacidade de inscrição no sujeito, o mito tem de se entranhar; a sua capacidade de contágio, de mobilização interior e exterior; a sua capacidade de resistência aos impactos do seu tempo. O mito concreto será mais forte mas idealmente deverá conter elementos auto-críticos, de empowerment, criadores de novas possibilidades de subjectivação. E corre o eterno perigo de se transformar em fé religiosa. VOO DE ÁGUIA: MOVIMENTOS CULTURAIS E GRANDES NARRATIVAS REVOLUCIONÁRIAS. OUTRA VEZ ESCOLHER-SE Os pretextos românticos conduziram-nos, de modo
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a-histórico e demasiado abstracto, ao problema da crença. Deveremos compreender este problema de forma mais aberta do que aqui. É sempre ao mesmo tempo que a batalha pela crença, mesmo a mais profunda, se faz na história e que as escolhas que se fazem nestas batalhas partem das nossas disposições interiores. Entra-se na discussão sobre o balanço do poder subversivo ou do teor conformista dos grandes movimentos culturais dos séculos passados e no modo como as teorias revolucionárias neles se inserem.24 Enquanto até agora escavávamos no nosso interior, agora referimos a necessidade de um voo sobre esses movimentos culturais que nos permita ver como a perspectiva revolucionária não apenas a partir do interior e como o interior é influenciada pelo ar dos tempos. A perspectiva revolucionária tradicional é filha das Luzes ou é uma figura do Romantismo? Quem a filia nas Luzes não deixa de fazer o balanço crítico, por exemplo dos seus mitos de Progresso. Quem a filia na recusa romântica do capitalismo não deixa de tomar precauções e de se distanciar do romantismo reaccionário, saudosista. Quem critica as Luzes vê-as como projecto da burguesia que não falha por não ir ao fundo de si mas que se
É NECESSÁRIO ANALISAR O PAPEL DO DESEJO COMO ELEMENTO FUNDAMENTAL DO CAPITALISMO. OS PROJECTOS QUE TÊM SIDO FEITOS NESTE SENTIDO VÃO DANDO A IMPRESSÃO DE PERMANECEREM ESBOÇOS INSATISFATÓRIOS, MUITAS VEZES OBCECADOS COM A ULTRAPASSAGEM DE MARX. O QUE NÃO ANULA O ESFORÇO DE EXPERIMENTAÇÃO E A POSSIBILIDADE DA CRÍTICA.
concretiza plenamente nas formas de poder disciplinar. Que fazer? Defender o legado das Luzes para defender a razão contra a arrogância do neo-liberalismo ancorado no pós-moderno? Defender o potencial revolucionário do romantismo como recusa profunda do capitalismo e como potente força de mobilização de afectos? Ainda é possível ser revolucionário romântico? Ainda é possível ser racionalista? Ou: é mais profícuo ser romântico revolucionário ou racionalista revolucionário? Não haverá resposta única para as questões. Até porque romantismo revolucionário e racionalismo revolucionário são, para além de movimentos culturais complexos, com tendências contraditórias das quais não se podem tirar lições límpidas, também acentuações diferentes: razão e afecto. Nesse sentido sobrevivem ao seu tempo, reactualizam-se para além da actualidade de algumas das suas referências. Dependem de como se vive a revolução: necessidade racional de reorganização social, vontade/desejo de construção de novas formas de ser e de estar, sentimento profundo. O debate diz sempre mais de nós próprios do que daquilo que supostamente estamos a debater. As narrativas revolucionárias têm como tarefa perceber-se na história das sociedades, das resistências e das ideias. É na capacidade deste olhar crítico que podem crescer. O debate não é anacrónico mas a ele se devem somar novas possibilidades de reconstruir a perspectiva revolucionária aproveitando os movimentos culturais mais fecundos da nossa época: não fixar os conceitos de Hegel e de um certo determinismo como canónicos, experimentar Deleuze, Foucault, as novas imagens científicas, etc. Por exemplo, é necessário pensar uma nova política do devir para não ficarmos presos à dialéctica hegeliana
como se fosse o último grito em matéria de revoluções; é necessário pensar as novas formas de poder: será que o poder disciplinar desapareceu por completo, o que são as novas formas de biopoder? É necessário analisar o papel do desejo como elemento fundamental do capitalismo. Os projectos que têm sido feitos neste sentido vão dando a impressão de permanecerem esboços insatisfatórios, muitas vezes obcecados com a ultrapassagem de Marx. O que não anula o esforço de experimentação e a possibilidade da crítica. E, para além de compreender as razões da sua escolha afectiva/racional, o revolucionário deverá ter como tarefa básica compreender os pressupostos que guiam os movimentos culturais em que a sua vida se insere. É convidado a fazer o trabalho da toupeira que escava o interior mais profundo, mas também o trabalho da águia para sobrevoar a história longa, as ideias que permanecem mas não são eternas, e fazer a crítica dos pressupostos que estão na base dos próprios processos que lhe deram lugar. E ainda a serpentear na terra pela luta concreta. A luta pela hegemonia que o revolucionário tem como sua é tripla: a hegemonia directa dos projectos políticos, uma hegemonia das alturas e uma hegemonia das profundezas. Estes três são os animais a que um Zaratustra revolucionário pode chamar os seus companheiros. Sem desistir nunca dos seus companheiros verdadeiros, as pessoas que lutam, que se pensam, que criam, que arriscam a positividade da transformação.
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NOTAS Ver “On Heroes, Hero-Worship, and the Heroic in History” disponível em linha junto com o romance filosófico-satírico “Sartor Resartus”. 1
Ver, por exemplo: “O socialismo é uma questão moral, no sentido em que traz ao mundo uma nova forma de julgar as acções humanas e, para usar a expressão consagrada de Nietzsche, uma nova avaliação de todos os valores.” Citação de Sorel na introdução de Jeremy Jennings a “Reflexion’s on violence”,Cambridge University Press. Aliás, parte importante da crítica de Sorel ao marxismo será por via da acusação de economicismo: sendo uma teoria da catástrofe económica que não percebe que a verdadeira catástrofe do sistema é moral e está aí. 2
Sorel utiliza o conceito de violência não o identificando com o terrorismo mas remetendo-o para a transformação revolucionária, enquanto acção desinteressada, sendo assim também um instrumento moral. A sua defesa é o tema central das “Reflexões sobre a violência.” 3
Georges Sorel, Réflexions sur la violence, Les Classiques de las Sciences Sociales, Québec. As referências que se seguem são da mesma fonte. 4
“Sabemos muito bem que os historiadores do futuro não deixarão de achar o nosso pensamento cheio de ilusões uma vez que observarão atrás de si um mundo já alterado. Pelo contrário, devemos criar e ninguém nos conseguiria dar o meio de modificar as nossas imagens motrizes a fim de evitar as suas críticas.” Georges Sorel, op. cit. 5
“Das profundezas do instinto vital autêntico de um grupo animado pela fé no mito, pode surgir uma impulsão.” Op. Cit. 6
“O mesmo espírito [destes mitos históricos] se reencontra nos grupos operários que são apaixonados pela greve geral; estes grupos representam-se, com efeito, a revolução como um imenso levantamento que se pode ainda qualificar de individualista: cada um marcha com o maior ardor possível, operando por sua conta, não se preocupando nada com subordinar a sua conduta a um plano de conjunto sabiamente combinado.” Op. Cit. É curioso que, mesmo no plano do herói colectivo, o mito permaneça individualista. 7
Também incluída na edição das “Reflexões sobre a Violência” que temos vindo a seguir. 8
Sorel dá como exemplo o pessimismo “que abriu o século XIX”: um “concerto de gemidos” de poetas que se vitimizavam a propósito da maldade da humanidade, da fatalidade ou da estupidez de um mundo que não conseguia distrai-los”. Op. Cit. 9
Mais adiante Sorel escreverá: “o pessimismo não tem as folias sanguinárias do optimista enlouquecido por resistência imprevistas que encontram os seus projectos; não sonha a fazer a felicidade das gerações futuras degolando os egoístas actuais” mostrando o que a violência que defende não é. 10
“O pessimismo (…) é a concepção de uma marcha a caminho da salvação estreitamente ligada: por um lado a um conhecimento experimental que adquirimos dos obstáculos que se opõem às nossas imaginações (…), por outro lado à convicção profunda da nossa fraqueza natural”. Op. Cit. 11
O original foi publicado na Revista Contretemps, número 22, Maio de 2008, (tradução portuguesa). 12
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“A reivindicação do direito à subjectividade estava, inseparavelmente, ligada ao impulso anti-capitalista radical que atravessava, de um lado ao outro, o espírito de Maio de 68.” Op. Cit. 13
“A mobilização internacional contra a globalização neoliberal, inspirada pelo princípio que “o mundo não é uma mercadoria”, (…) é (…) muito diferente dos movimentos dos anos 60. (…) Nos seus protestos pode-se encontrar, como em 68, uma fusão única entre as críticas romântica e marxista da ordem capitalista, das suas injustiças sociais e da sua avidez mercantil. (…) Este movimento (…) é realista, o que quer dizer que ele pede o impossível…” Op. Cit. 14
“É necessário criar homens sóbrios, pacientes, que não se desesperem diante dos piores horrores e não se exaltem em face de qualquer tolice.” É a expressão da crítica à revêrie e devaneio político como sinal de impotência, dialogando assim com os optimismos ingénuos. Gramsci sente-se ladeado por duas perspectivas, o mito do cienticismo materialista e o romantismo idealista, com as quais dialoga tentando construir outra possibilidade. 15
Ver Negri, ”Em direcção a uma definição ontológica de Multidão”, originalmente publicado na revista Multitudes, número nove, consultar em inglês. “A multidão é um conceito de classe [que] (…) deve ser considerado como diferente do de classe trabalhadora. O conceito de classe trabalhadora é limitado do ponto de vista da produção (uma vez que essencialmente inclui trabalhadores industriais) e do de cooperação social (…). Se colocarmos a multidão como um conceito de classe, a noção de exploração será definida como exploração da 16
cooperação: cooperação não de indivíduos mas de singularidades, exploração da totalidade das singularidades, da rede que compõe esta totalidade e da totalidade que abrange as redes etc.” Ver na revista Eurozine o artigo de Hardt e Negri: Marx’ Mole is Dead, globalization and communication: “O monstro revolucionário que se chama multidão e aparece no final da modernidade continuamente quer transformar a nossa carne em novas formas de vida… O povo constituía um corpo social; a multidão não, porque a multidão é a carne da vida.” 17
“Hoje, quando encaramos as forças da globalização capitalista (…), é muito fácil e comum sentirmo-nos e aos nossos movimentos sociais impotentes. Este método pode funcionar como uma espécie de antídoto a esse cinismo e sentimento de impotência. Não se trata de fingir que somo poderosos quando não somos, mas de reconhecer que o poder que realmente temos; o poder que criou o mundo contemporâneo e que pode criar outro.” Op. Cit. 18
Conferir o início do mais famoso livro de John Holloway, “Mudar o mundo sem tomar o poder”, disponível em 19
“O nosso grito é um grito de horror-e-esperança. Se os dois lados do grito são separados, tornam-se banais. O horror emerge da “amargura da história” mas se não se transcender essa amargura, o horror unidimensional conduz apenas à depressão política e ao fechamento teórico. Semelhantemente, se a esperança não estiver enraizada firmemente nessa mesma amargura da história, torna-se apenas uma unidimensional e estúpida expressão de optimismo (…). É o próprio horror do mundo que 20
nos obriga à esperança. O grito implica um entusiasmo angustiado por transformar o mundo.” Op. Cit. “Não há certamente nenhum final feliz inevitável, mas, mesmo quando nos afundamos, mesmo nos momentos de escuro desespero, recusamos aceitar que tal final feliz é impossível. O grito liga-se à possibilidade de um início, recusa aceitar o fechamento da possibilidade de uma alteridade radical.” 21
“A indução à conquista do poder torna-se inevitavelmente indução ao próprio poder. Os iniciados aprendem a linguagem, lógica e cálculos do poder; aprendem a lidar com as categorias da ciência social que foram totalmente moldadas pela sua obsessão com o poder. (…) A manipulação e o manobrar pelo poder tornam-se uma forma de vida.” Op. Cit. 22
Muito do que se disse anteriormente para Negri é válido a dobrar para os conceitos de Holloway: parecem falhar como máquina de mobilizar, apesar de serem directamente retirados da vida, explicam mas não se vivem, são artificiais e estranhos ao movimento das lutas reais. Apesar de estabelecer uma crítica ao intelectualismo são ainda intelectualistas. 23
Sobre a relação do marxismo, com o racionalismo das Luzes e o Romantismo ver o debate entre Hendrik Patroons e Michel Löwy nas páginas da revista Inprecor (números 521-522 e 526) 24
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DEVE SER SOCIALISMO
DANIEL OLIVEIRA
DEVE SER SOCIALISMO DANIEL OLIVEIRA | BLOGGER
A web 2.01, com as suas comunidades interactivas e sem as barreiras da censura e da propriedade, deveria ser o espaço de informação e debate em que a esquerda se moveria melhor. É quase tudo aquilo que ela defende. Mas nele, o que ela defende tem menos espaço do que seria de esperar. Porquê?
DE CADA UM CONFORME AS SUAS POSSIBILIdades, a cada um conforme as suas necessidades. É esta a regra. Milhões de pessoas em todo o mundo escrevem como nunca puderam escrever. Basta um computador e uma ligação à Net. Milhões de pessoas lêem o que essas pessoas escrevem. As pessoas que escrevem lêem, as pessoas que lêem escrevem. Conforme as suas necessidades, conforme as suas possibilidades. Não há um poder centralizado e não se trata de uma profissão. As pessoas escrevem sem pagar e lêem sem pagar. E opinam sobre o que entendam, mesmo que não entendam nada sobre aquilo que opinam. Produz-se e consome-se ao ritmo do que se precisa e do que se pode. E isto tudo numa rede global que junta pessoas de todo o Mundo. É isto o socialismo. A TRADIÇÃO JÁ NÃO É O QUE ERA Não há censura, não há corporações de media, não há legitimação feita por qualquer organização económica ou de Estado. É fácil encontrarmos bloggers que atingem uma enorme notoriedade sem que ninguém saiba realmente quem eles são. No entanto, o funcionamento em rede, que deveria ser aquele em que a esquerda se sentiria mais à vontade, parece não ser aquele em que a esquerda se tem movido melhor. Haverá talvez três razões para que a esquerda se sinta pouco à vontade nesta formato.
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Uma é a tradição. Apesar dos seus propósitos de sempre na luta de emancipação do indivíduo, a esquerda tem uma tradição fortemente colectivista. Vive mal com a ideia de um indivíduo, por si só, mobilizar opiniões e forças. Olha para esse esforço como um exercício de vaidade, inconsequente e estéril. A ideia que dominou as organizações de esquerda na Europa em matéria de informação e propaganda desenvolvia-se em torno de um jornal colectivo, que acompanhava a linha definida pela organização. Um projecto colectivo que tinha como função organizar. E isto leva-me à segunda razão. A esquerda ainda vive centrada na ideia de “organizar”. Organizar lutas, organizar partidos, organizar trabalhadores, organizar associações. E faz bem em não desistir de o querer. Não esquecer que a opinião que não age morre. Mas esta obsessão é filha da própria organização do trabalho dos séculos XVIII, XIX e XX. Uma organização da economia com centros claros. Uma enorme relevância do colectivo na forma de trabalhar. E uma proximidade física dos próprios trabalhadores. Hoje não sabemos quem é o nosso patrão. Os trabalhadores de uma mesma empresa ou grupo de empresas estão cada vez mais dispersos e isolados. O mesmo se passa com os instrumentos de hegemonia cultural e política. Têm origens difusas e milhões de canais e de sujeitos.
E o mesmo se passa com as novas formas de socialização. Hoje a proximidade física entre os jovens é menos relevante do que no passado. As conversas no messenger são mais longas e talvez mais relevantes do que as conversas no café do bairro ou até no escritório ou na escola. Se a organização do trabalho mudou; se os instrumentos de hegemonia mudaram; se as formas de socialização também mudaram; como não poderiam mudar as formas de contracultura? Até podiam não mudar. Se a resistência a esta realidade e a estes instrumentos fizesse parte do próprio programa político da esquerda. Mas fazem? Porquê? Porque podem ser usados como novas formas de alienação e exploração? Claro que podem. Todos os instrumentos podem. Mas na realidade estes, dispersando o centro de poder, são muito mais favoráveis ao programa político da esquerda do que os velhos instrumentos que conhecemos. Na realidade, e desculpem-me talvez a brutalidade e até algum exagero, ter um jornal como forma de combate político será brevemente mais inútil e inconsequente do que ter um blogue. A terceira razão tem a ver com a percepção e até com a estética. A imaterialidade dos movimentos sociais, que não se traduzam em multidões. A cultura da esquerda, sendo avessa ao individualismo, olha com desconfiança para a solidão do computador, da escrita e até da agitação internauta. Mede a sua força na rua quando a rua é hoje muito menos relevante na vida das pessoas. Todas estas resistências têm razão de ser. O isolamento das novas formas de trabalho enfraqueceu a luta. O desenquadramento político do combate pode torna-lo inconsequente e limitado no seu alcance. Os mesmos
instrumentos servem uma exploração de trabalho precário e isolado ainda mais perverso do que os que conhecíamos até hoje. Mas olhemos para a nova situação como olhámos para industrialização. Por o que ela tem de positivo se não perderemos o barco. Olhemos para a importância que o YouTube, o My Space, o Flickr, os blogues, as redes alternativas de informação e que tudo o que ainda vai aparecer conseguem em momentos fundamentais. Era possível a mobilização tremenda – a maior de que há memória na história mundial, num mesmo dia e em todo o mundo – que se conseguiu nas manifestações contra a guerra do Iraque? Olhemos para o movimento alterglobal: não repete ele a lógica da rede, aplicada a organizações que se cruzam e se encontram? Em ditaduras o espaço dos blogues e da Internet não são muitas vezes um dos poucos contactos com o exterior e de liberdade? Isto apesar de grandes empresas como a Google terem recentemente, para poder entrar no mercado chinês, dado provas de cumplicidade com o regime, ajudando à censura e até à perseguição de opositores. As grandes empresas continuarão a comportar-se como sempre se comportaram. Fora da Net ou nela. Mas as alternativas de fuga são muito maiores. BLOGOSFERA EM PORTUGAL Em Portugal, a blogosfera transformou-se numa poderosa arma de combate político. Já não é apenas uma forma de controlar a imprensa, verificando informações, desmentindo e apontando ontras fontes. A blogosfera abriu, à esquerda e à direita, um leque de escolhas e de pontos de vista muito mais variado. Manteve na agenda política temas que os jornais e as televisões, ao ritmo do
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espectáculo, deixam morrer. Fez mesmo investigações próprias. Influencia jornalistas e fazedores de opinião. Claro que é apenas uma nesga de oportunidades. Quem influencia é quem se aproxima de quem é influenciado. Mas é uma nesga que tem de ser aproveitada e que é, apesar de tudo, melhor do que o que tínhamos antes. Os blogues deram rosto às contestações da rua. Um bom exemplo foi o movimento de luta de professores. Dezenas de blogues de professores mantiveram a luta viva, trocaram informações práticas, denunciaram a propaganda governativa. Alguns desses blogues atingiram vinte mil visitas diárias no pico da luta. Blogues individuais e colectivos escritos por professores anónimos2. Claro que no meio desta fluidez surgiram movimentos de opinião entre os professores saudusistas da velha escola e da autoridade do professor3. Mas esse é o preço mais do que justo a pagar por dar voz às pessoas. Um caso de sentido diverso. Um jovem sozinho criou um blogue contra uma nova lei que reduz o apoio ao arrendamento jovem4. Inicialmente ninguém lhe deu muita importância e a lei avançou sem grande alarido. Ele insistiu. Fez passar palavra por outros bloggers que fizeram publicidade ao seu blogue. Pouco depois o seu blogue, feito apenas por ele, era já um pequeno movimento. E lentamente o assunto conquistou espaço mediático e acabou por conseguir alguns recuos. Mais um exemplo. Em Portugal a imprensa regional é fortemente dependente de caciques e empresários locais e dos presidentes de câmara. Está muito exposta à pressão e até à dependendência publicitária. Por todo o país nasceram milhares de blogues locais. Uns assinados outros anónimos5. Blogues que, bons, maus e péssimos, são muitas vezes os únicos espaços
A INTERNET NÃO VIVE NUMA SOCIEDADE À PARTE. REPETE, ATÉ DE FORMA MAIS RÁPIDA, TODAS AS PERVERSIDADES DA SOCIEDADE DO ESPECTÁCULO EM QUE HOJE VIVEMOS. O QUE A DISTINGUE NÃO É A CULTURA DOMINANTE QUE NELA É TÃO VEICULADA COMO EM QUALQUER OUTRO ESPAÇO. É QUE ELA É MUITO MAIS PERMEÁVEL À CONTAMINAÇÃO DE CORRENTES DE CONTRACULTURA.
de denúncia, fiscalização, oposição ou informação não institucional. Há fenómenos de sentido oposto. Se os vídeos do YouTube permitem denunciar abusos de poder policial, também permitiram que viessem a público dezenas de vídeos de cenas de indisciplina escolar6 que levaram, durante algumas semanas, ao debate mais reaccionário sobre a escola pública que o Portugal democrático já assistiu. E temos fenómenos de voyerismo colectivo de proporções perigosas. AS MESMAS CONTRADIÇÕES A Internet não vive numa sociedade à parte. Repete, até de forma mais rápida, todas as perversidades da sociedade do espectáculo em que hoje vivemos. O que a distingue não é a cultura dominante que nela é tão veiculada como em qualquer outro espaço. É que ela é muito mais permeável à contaminação de correntes de contracultura. Dirão: mas a Internet e a blogosfera são um espaço para elites. Isso já não é verdade em Portugal e ainda menos no resto da Europa. Na próxima geração a Internet será um media mais poderoso do que a televisão e muitíssimo mais poderoso do que a imprensa. Em todo o Mundo, os canais de televisão perdem todos os anos centenas de milhares de telespectadores para a Internet, sobretudo entre os mais jovens. Com uma vantagem: o consumidor de Internet é menos passivo e mais selectivo (para o melhor e para o pior) que o consumidor de televisão. Pelas características do próprio meio é exigido muito mais do seu sentido crítico. Aliás, televisão e imprensa já fizeram o processo de migração para a Internet e já procuram cumplicidade
DIRÃO: MAS A INTERNET E A BLOGOSFERA SÃO UM ESPAÇO PARA ELITES. ISSO JÁ NÃO É VERDADE EM PORTUGAL E AINDA MENOS NO RESTO DA EUROPA. NA PRÓXIMA GERAÇÃO A INTERNET SERÁ UM MEDIA MAIS PODEROSO DO QUE A TELEVISÃO E MUITÍSSIMO MAIS PODEROSO DO QUE A IMPRENSA.
com blogues, através de links trocados e partilha de informação. O jornal Público adoptou recentemente um sistema de exibição dos links de blogues para as suas notícias (o twingly), incentivando à hiperligação das suas notícias em troca da visibilidade a quem a linka. Recentemente, o Expresso propôs a vários blogues exclusivos das suas notícias, alguns dias antes de elas saírem, para elas entrarem no debate entre blogues e assim ganharem notoriedade. O mercado da blogosfera é apetecível e temos que aproveitá-lo enquanto o mercado não toma conta dele e expulsa o que é estranho à sua lógica. Vou mais longe. Usemos os instrumentos do mercado sem temer a profissionalização destes espaços que são hoje ainda amadores. Tenho publicidade no meu blogue, apesar de ele ser muito marcado politicamente. Enquanto o mercado não domina o meio tem dificuldade em fazer selecção política. Hoje, não há partidos políticos e candidatos, empresas e marcas, jornais e televisões, que não alimentem blogues. Não faltará muito para que se tente ordenar este espaço para que ele ganha uma suposta credibilidade e seja mais facilmente controlado pelo mercado. Mas este espaço tem características técnicas que tornam
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isso muito mais dificil do que aconteceu nas televisões, rádios e jornais. É por isso um terreno muito mais favorável à resistência à mercantilização da cultura, da política e da informação. TAMBÉM NA CULTURA E se isto é verdade em relação à política, é igualmente aplicável em todos os domínios da vida social. Os blogues e toda a web 2.0 são um espaço de disseminação de correntes culturais alternativas muito mais eficaz, menos censurado e menos seleccionado pela legitimação da cultura dominante. A criação de nichos culturais que vão ganhando dimensões incontroláveis são experiências interessantes e cada vez mais frequentes. Assistimos aliás a um processo interessante. Recentemente, como saberão, um grupo britânico mainstream, os Radiohead, decidiu dispensar a sua editora e fez a venda das suas músicas directamente através da Internet. Cada comprador dava o que quisesse. Foi um sucesso. As repercussões desta possibilidade, de dispensar editoras, são de um alcance muito maior do que possa parecer à primeira vista. Significa que o mercado cultural pode dispensar a peneira comercial da cultura “pret-a-porter”
e ter uma relação directa com o público. E que todos os instrumentos que vão sendo criados para dificultar esta mutação são muitíssimo frágeis. Espaços como o Flickr ou a Wikipedia, feitos e visitados por enormes comunidades que compartilham conhecimentos, significam uma enorme alteração na forma como olhamos para a democratização do acesso à cultura. O caso da Wikipedia7, uma enciclopédia global em dezenas de línguas, em que os leitores contribuem para as entradas, e que já ganhou uma razoável credibilidade8, é dos mais interessantes. Mais uma vez, é claro que o que maioritariamente se encontra na Internet continua a ser muito parecido com a cultura dominante. Mas há uma nesga que é uma possibilidade. E é a essa nesga que podemos chamar de socialismo.
NOTAS “Web 2.0 é a mudança para uma Internet como plataforma, e um entendimento das regras para obter sucesso nesta nova plataforma. Entre outras, a regra mais importante é desenvolver aplicativos que aproveitem os efeitos de rede para se tornarem melhores quanto mais são usados pelas pessoas, aproveitando a inteligência coletiva.” Tim O’Reilly, Wikipedia 1
Educação Cor-de-rosa, Educação do Meu Umbigo, A Professorinha, A Sinistra Ministra, Movimento Escola Pública. 2
3
Movimento dos Professores Revoltados
4
Porta 65 Fechada
A Ilusão da Visão, Arre Macho, Avenida Central, Café do Toural, Denúncia Coimbrã, Faro Este, Farpas da Madeira, Ilhas, Querido Líder, Praça da República. 5
O primeiro a ser divulgado, e que foi repetido nas televisões até à exaustão, foi o do incidente entre uma professora e uma aluna que queria o seu telemóvel de volta. 6
A Wikipedia é uma enciclopédia livre, fundada em 2001, tem mais de dois milhões de artigos em 200 línguas, escritos por 13 mil voluntários. 7
Segundo um estudo de 2005, publicado na revista científica “Nature”, a Wikipedia será tão precisa como a Enciclopédia Britânica. Nas entradas analizadas, foram encontrados 162 erros na Wikipedia e 123 na Britânica. 8
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RAPS Ó DIA
FUZZY-FELT FOLK, V/A | ANA HINA, DE NATACHA ATLAS | GOMORRA, DE ROBERTO SAVIANO | OITO, DE CARLOS CÉSAR PACHECO
CURIOSIDADES SONORAS PARA PAIS E FILHOS
NO FOLHETO (MUITO COMPLETO) QUE APREsenta este disco, Jonny Trunk, à frente da editora responsável pela sua comercialização, congratula o ouvinte pela sua escolha, ou descoberta, porque se trata de um guia para o que de mais invulgar encontrará no universo da música folk, e acrescenta: “você é um sortudo”! Fuzzy-Felt Folk resultou de vários anos de pesquisa e de localização de velhos vinis e bobines de um paciente coleccionador britânico chamado Martin Green. Depois de finalmente estar pronto e embalado, o dinheiro que resulta da sua venda, desabafa Trunk, apenas paga, quanto muito, “umas tostas mistas”. E que possui, afinal, este disco de tão precioso e singular? Temas folk ingénuos e ao mesmo tempo bizarros que fazem a delícia de crianças sonhadoras e inquietas ou de adultos inconformados. Imaturos. Ou, afinal, com um sentido mais divertido da vida. Por exemplo, Merry Ocarina, do compositor Pierre Arvay, foi genérico de uma série de animação da BBC dos anos 60. I start counting foi escrito por Basil Kirchin, um profícuo músico experimental, que compôs inicialmente o tema para um filme com a intenção de usar a voz de Cilla Black, de que gostava muito, mas na impossibilidade de a usar recorreu à voz da filha do baterista (de cujo nome se esqueceu e por isso não consta no folheto da colectânea!). Muitas outras raridades se encontram ao longo das quinze
SANDY GAGEIRO
faixas de Fuzzy-Felt Folk e recomenda-se vivamente, a quem se interessa por objectos sonoros estranhos e perdidos no pó do tempo, uma visita à discografia da editora Trunk, sempre surpreendente e muito pouco convencional.
FUZZY-FELT FOLK V/A, TRUNK RECORDS 2006
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[70] RAPSÓDIA
ANA HINA, DE NATACHA ATLAS
JOANA LUCAS
NÃO SABEMOS SE TERÁ SIDO EM CRIANÇA, AO deambular pelo seu bairro marroquino em Bruxelas, que Natacha Atlas ouviu pela primeira vez Nina Simone a dar voz ao tema Black is The Colour (of my true love’s hair), mas terá sido certamente por aí que ganhou o gosto pelo hibridismo musical e pela fusão de latitudes que marcam a sua discografia, e que ganham agora novo e revigorado sentido em Ana Hina. Nascida na Bélgica em 1964, filha de pai egípcio e de mãe britânica, Natacha Atlas poderia perfeitamente ser uma espécie de paradigma do mundo “globalizado” e da expressão máxima de uma ideia de diáspora cultural, tão em voga nos dias que correm. No entanto, Atlas tem sabido colocar-se habilmente no mercado musical, e se no fim da primeira metade dos anos 90 assina o álbum Diáspora, fusão oriente / ocidente numa perspectiva “multicultural” onde a soma das duas partes se traduz numa mestiçagem parda e inócua, em 2008 com Ana Hina vai de encontro a uma ideia de “música de pesquisa” e retorno às raízes que atinge o seu epicentro na faixa Beny Ou Benak Eih deste novo disco. Mas eis que, depois de um longo período de deambulação pelo universo de uma world dançavél, para ouvido pop (através da sua colaboração com os Transglobal Underground, entre outros), Natacha Atlas conseguiu em Ana Hina o tal disco de aproximação às raízes que reclama como suas, e fá-lo da forma mais límpida e cristalina de que temos memória em toda a sua discografia. Em Ana Hina o que em árabe significa “estou aqui”, a anunciação de Natacha não se fica pelas palavras e consegue
de facto recriar uma atmosfera que ora nos transporta para as ruelas do Cairo nos anos 40 e para o Líbano dos anos 60, ora para o cabaret mais fumarento de New Orleans, ou mesmo para a opereta mexicana de faca e alguidar. Natacha vai buscar às divas não só a pose mas também a voz, e com ela saudamos Oum Kalsoum (Egipto, 1904-1975) e Fairuz (Líbano, 1935), em jeito de homenagem e de inspiração – estrelas que pontuaram nos tops e nos corações do mundo árabe, imagens de um universalismo oriental que agora o ocidente descobre num gesto de cosmopolitanismo deslumbrado. Mas, apesar das preferências de Natacha Atlas poderem ser interpretadas no sentido de um orientalismo saudosista, até pela escolha da orquestra que a acompanha neste disco – os Marzeeka Ensemble, banda egípcia de renome internacional – elas dão antes lugar a um novo olhar sobre o passado e sobre os símbolos “tradicionais” da música oriental, dotando-os de uma contemporaneidade exemplar. Mas nem só de exotismo vive Ana Hina. Lá temos também a evocação de Nina Simone que em 1959 havia gravado Black is The Colour, canção que em 2008 Natacha Atlas & The Marzeeka Ensemble voltam a polir exemplarmente, e sobra ainda espaço, nesta constelação de divindades femininas, para Frida Kahlo em La Vida Callada, poema musicado em conjunto com Clara Sanabras, voz e alaúde, certamente num dos mais belos momentos musicais que o ano de 2008 nos trará. Destaque também para Hayati Inta e El Asil, momentos preciosos neste disco que ficará gravado a ouro no panteão das obras-primas universais.
VÍRUS AGOSTO/SETEMBRO 2008
[71] RAPSÓDIA
ANA HINA NATACHA ATLAS WORLD VILLAGE, 2008
GOMORRA, DE ROBERTO SAVIANO
ANDRÉ BEJA
A 19 DE JUNHO DE 2008, FOI LIDA EM NÁPOLES A sentença do processo “Spartacus”, confirmando-se a prisão perpétua da cúpula do clã Casalesi. Na assistência estava Roberto Saviano, jornalista que se encontra ameaçado de morte pelas personagens reais que atravessam as páginas de Gomorra, a família de Franceso “Sandokan” Schiavone, Saviano conhece a Camorra como poucos. Cresceu bem perto desse “sistema” que, quando não a ultrapassa ou subverte, tem uma relação muito particular com a lei. Aprendeu as suas regras através de uma proximidade que, como nos vamos apercebendo ao longo da leitura, não se consegue evitar. Enquanto repórter, acompanhou e investigou muito do que nestas páginas relata. Gomorra é como que um roteiro. Em cada um dos seus onze capítulos, é-nos explicada uma área de negócio controlada pela Camorra, mostrando muito do alcance e da sofisticação da máfia napolitana. A viagem começa no porto de Nápoles, o maior interface comercial entre a Europa e o Extremo-Oriente, parcialmente controlado pela organização. Prossegue, sempre intensa e pormenorizada, pela alta-costura, indústria alimentar, comércio de armas e pessoas, os negócios do cimento ou dos resíduos. Gomorra fala-nos também do povo de Nápoles, da gente comum ansiando por uma vida melhor, da violência, da resistência, dos excluídos, das famílias e dos soldados, dos poderes implícitos e de voláteis lealdades, e da forma como o polvo se instalou e mantém, estendendo seus longos braços (e múltiplos tentáculos) muito para lá da sociedade italiana.
O funcionamento da máquina e as relações menos claras da máfia com a finança e com alguns governantes locais vão sendo postas a nu ao longo dos capítulos. Ficam por mostrar, e este talvez o ponto fraco de Gomorra, as ligações com as altas esferas da política. Mesmo vivendo sob protecção policial e identidade secreta, Roberto Saviano fez questão de ir ao tribunal de Nápoles mostrar que não tem medo da Camorra. A leitura de Gomorra alarga em nós a compreensão da dimensão desta coragem.
GOMORRA- VIAGEM AO IMPÉRIO ECONÓMICO E DE DOMÍNIO DA MÁFIA NAPOLITANA ROBERTO SAVIANO CADERNO, 2008 351 PÁGINAS, 16,20€
VÍRUS AGOSTO/SETEMBRO 2008
[72] RAPSÓDIA
OITO
CARLOS CÉSAR PACHECO
UM8
QUATRO8
poder escrever qualquer coisa rir-me até os meus olhos desaparecerem na água adormecer quando estivesse cansado — mas não me fecho quando estou quase morto acordo DOIS
8
acabar eu lembrava-me um muro à volta esquecer-me TRÊS8 não ter corria agito os braços sentado
SETE8
amar-te-ia depois de estás deitada olhava
tinha as mãos frutos secos apodreciam sou
CINCO8
OITO8
depois era monótono sempre à volta o dia claro gatinhava até não-sei-o-quê , arranco da boca um e outro
franzi ligeiramente a testa doem-me os olhos um dedo coça o pé os cães ladram enquanto eu corria lembro-me estou sem mais
SEIS8
NOVE8
era também a doçura dos teus olhos, e havia também (e)s(t)ão podres na minha língua
VÍRUS AGOSTO/SETEMBRO 2008
posso dormir (uma árvore no meio da praça uma árvore aberta em chumbo)
[73] RAPSÓDIA
DEZ8 sou energia pleno vivo zero ONZE8 corrias até vinham não se sabe como põe-se ao lado de onde tu ela és DOZE8 aqui deitado és queria os teus ossos ao lado da poeira
TREZE8
QUINZE8
rasgar a pele abro a carne no além da carne vi os ossos com os gestos todos febril
estás aqui lembrei-me o teu peito grande e os braços à volta nuvens firmes em mim
NARRAÇÃO8 houve a água houve a areia houve o cimento houve o tijolo estou aqui
PUBLICADO NO BLOGUE “SILÊNCIO MACIÇO”: HTTP://FORTEONDASERENA.BLOGSPOT.COM
VÍRUS AGOSTO/SETEMBRO 2008
[74] RAPSÓDIA
IMAGENS CAPA BREAK IT DOWN FOR ME
REVISTA VÍRUS #4 AGOSTO/SETEMBRO 2008
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“PRIVATE RHYTHMS”
STILL RETIRADO DA CURTA-METRAGEM “PRIVATE RHYTHMS”, DA AUTORIA DE MARIA MIRE E MIGUEL SILVA GRAÇA
BOM SUCESSO (“ALICE IN WONDERLAND”) DESÂNIMO...
EDUARDO MARQUES
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FOTORITA [ALLSTAR MANIAC]
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