Zyl #1 - Releituras

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#01 Releitura



“EU NÃO SOU PATRIOTA, EU NÃO SOU NACIONALISTA, EU GOSTO DO BRASIL COMO O GLAUBER ESCREVIA, COM ‘ZY’, ‘BRAZYL’, UM BRAZYL EXATAMENTE PORQUE O BRASIL TEM UM POVO INTERNACIONAL, UMA MISTURA DE TODOS OS POVOS DO MUNDO”. José Celso Martinez


Still: “Reflexões de um liquidficador”

Quem fez

#01 DEZEMBRO2012

Isaac Araguim Editor-chefe Bruno Bucis Editor-chefe adjunto David Daurte Editor Rafael Rocha Editor

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Projeto gráfico e diagramação Isaac Araguim Rafael Rocha

Zylians desta edição Anelise Molina Bethânia Nunes Érica Santana Flavy Medeiros Gabriela Miranda Johnathan Cornelli Larissa Corumbá Liz Mendes Mayara Senise Nívea Braga

Agradecimentos Claudio Bull Daniella Goulart Imagem da capa: Bealluc

/revistazyl

@ revistazyl@gmail.com

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA


Editorial

PlanoZ Não paro de reler este texto. É que eu tenho tantas coisas pra te contar, que foi difícil escolher as que eu diria aqui. É uma boa história, com vários bons momentos, mas começo lembrando que erramos, e muito, tentando encontrar o certo, mas que, quando ele aparecia, havia um grande esforço para torná-lo o melhor possível. Também posso contar que as questões existenciais não foram poucas. Que nome uma revista como esta poderia ter? Quem a leria? O que devia ganhar destaque nela? Conseguimos resolvê-las e isso trouxe um aprendizado imenso. Chegamos à última letra do alfabeto só para entender que, mais do que elogios, uma boa ideia é aquela que sabe receber críticas para seguir em frente. A Zyl teve o privilégio de encontrar pessoas dispostas a contribuir, a desconstruir e a reinventá-la, como quem topa um desafio instigante. Aqui abro um espaço para agradecer a cada um dos amigos e zylians. Que todos, sem exceção, se sintam abraçados. Saber que seus olhos e/ou dedos estão sobre nossas páginas, faz valer cada uma das discussões, das horas e mais horas de olhos vidrados em monitores, das bucas por formas, palavras, cores e boas ideias. Tudo isto foi feito pra levar, até você, assuntos interessantes da cultura brasileira. Falar de um grupo, de um bairro, de uma cidade, talvez seja mais fácil, mas quando o desafio se estende a um país com quase 200 milhões de pessoas, sinto ainda mais orgulho por ser parte da Zyl. Obrigado por estar aqui. Todos nós, os zylians, vamos fazer o máximo para que você queira voltar sempre. ISAAC ARAGUIM, Editor-chefe


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ABRE ALAS

OUVIR PARA SER OVIDO

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3 EM 1

DESCULPEM-ME OS PURISTAS

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MISTURE BEM

28 O DOCE SABOR DO BRASIL

34

A BRASILIDADE NA DANÇA DA DESCONSTRUÇÃO

BARULHO DE LIQUIDIFICADOR ATRÁS DO PALCO

40

46

EU, ONLINE

54 ELA, A CHITA

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RECONTANDO CIDADES

SEJA UM ZYLIAN

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Texto:

Bruno bucis

Abra o dicionário. Vá até a definição de releitura, no caso de haver este verbete, ignorado em muitos pais dos burros. Na melhor das hipóteses você encontrará uma nota minúscula de apenas 22 letras. Re-leitura: (s.f.) o ato de reler. É pouco, muito pouco para todos os significados que habitam esse conjunto de letras. Todas as palavras são infinitas, saber um significado de uma delas não é motivo para se prender a ele. Afinal a releitura dos gramáticos é diferente da dos artistas. Re+leitura, diriam os linguistas, é a união de um prefixo a um substantivo feminino, dando origem a outro, também feminino. Releitura, diriam os artistas, é a união da ideia de uma pessoa a de outra, dando origem a algo novo, além do anterior. Não há que se determinar quem está correto, é apenas uma questão de que na arte governa mais a química do que a gramática. Relendo Lavoisier, “Na arte nada se cria, nada se perde, tudo se relê”. “Poesia de verdade não é a leitura do mesmo, é a releitura do novo”, diz o escritor gaúcho Marcelo Soriano. Pois aqui já se poderia fazer uma inclusão àquele verbete do dicionário. Releitura: (s.f.) 1. O ato de reler; 2. Adaptar ao novo. O novo está intimamente ligado ao conceito de releitura. Reler não se trata de copiar, nem de alterar umas poucas vírgulas, cores, ou intérpretes.

RELER É BEBER DA OBRA, DEGLUTI-LA, SUGÁ-LA. DEIXAR-SE INSPIRAR PELO QUE SE ESTÁ VENDO E PENSAR EM NOVOS CONCEITOS PARA AQUILO. DISSO, ENTÃO, SURGE O NOVO. Justamente por ser nova, uma criação por releitura tem direito autoral próprio. Por mais semelhantes em traço e composição que sejam, são obras diferentes dos originais. Mas muitos críticos divergem neste ponto. Para eles, ao reler uma obra, o artista deve explicitar sua fonte de inspiração, adicionando, além de seu próprio crédito, o nome do autor relido. Mesmo com a controvérsia, uma releitura, por mais que desagrade, não pode ser processada. No Brasil a Lei de Direitos Autorais vigente prevê que “as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova são protegidas por direitos autorais”. Claro que a mera reprodução, uma cópia não autorizada pelo autor, está fora deste contexto, e é crime. Meramente reproduzir não deve ser considerado como uma forma de reler, seria, na melhor perspectiva, apenas uma leitura do original.


Já que amparada pela lei, a prática da releitura se consagra nas mãos, vozes, corpos e mentes de grandes artistas brasileiros. Vik Muniz, Chico Buarque, Breno Silveira, Ivaldo Bertazzo e Nelson Rodrigues já se inspiraram em outros artistas para compor suas obras. Cada um procede na técnica à sua maneira, transformando o que foi música em peça, o que foi teatro em livro, o que foi literatura em filme, o que foi filme em dança e o que foi coreografia em fotografia. Aqui temos, então, outro significado. Releitura: (s.f.) 1. O ato de reler; 2. Adaptar ao novo; 3. Inpirar-se na obra de outrém. 10 >11

Este processo criativo de imaginar o novo inspirado em uma obra anterior não é exclusividade dos artistas. O público relê a todo o momento o mundo ao redor dele. Dar sua interpretação ao significado de uma obra, em si, já é repensá-la. “Todas as obras são “reescritas” pelas sociedades que as leem. Na verdade não há releitura de uma obra que não seja também uma reescritura. Nenhuma obra, e nenhuma avaliação atual dela, pode ser simplesmente estendida a novos grupos sem que, nesse processo, sofra modificação”, afirma o teórico literário britânico Terry Eagleton. Em nossas releituras modernas, por exemplo, passamos a considerar alguns textos de Monteiro Lobato, um

gênio da literatura nacional, como uma manifestação de preconceito racial ou burrice. Isso se deve ao mundo e ao público estarem reescrevendo Lobato de uma nova forma. Uma oportunidade de aderir aqui um novo significado à definição. Releitura: (s.f.) 1. O ato de reler; 2. Adaptar ao novo; 3. Inspirar-se na obra de outrem; 4. Interpretação individual que se faz de uma obra; Mais fácil do que determinar é definir o que não é. Sendo assim, releitura não é mudança, por exemplo. Para entender, pegue o dicionário que já está aberto e vá do R ao M. Em “mudança” encontrará cinco opções de significado, sendo que todos eles, ao seu modo, terão a noção de posse embutida. Isso quer dizer que só se muda com sua mobília, só se muda o seu cabelo. Só você, com sua visão, pode mudar sua obra. Quem muda, carrega consigo toda a bagagem. Quem relê, leva apenas o essencial. É como ir para uma casa nova sem praticamente nada e ali preencher os vazios com algo que lhe inspira. O releitor escolhe os detalhes da sua nova decoração pensando naqueles outros milhares de casas que já visitou. Essa metáfora explica a necessidade da inclusão de mais um significado aquele verbete. Releitura: (s.f.) 1. O ato de reler; 2. Adaptar ao novo; 3. Inspirar-se na obra de outrem; 4. Interpretação individual que se faz de uma obra; 5. Criar com base no repertório pessoal.


Para uma verdadeira sinonímia de releitura, há uma lista de palavras: Estilizar, adaptar, refazer, samplear, reinterpretar, parafrasear, recriar, reciclar, abrasileirar... Não é possível determinar onde a releitura começa ou termina. É uma dessas palavras infinitas, que nem os dicionaristas se arriscam a definir. Melhor parar em cinco, em empate com o último verbete pesquisado. Uma hora há de se colocar o ponto e abrir-alas para todos os outros textos que virão. Agora, por si só, você pode completar a lista.


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REINVENTANDO CLÁSSICOS Seja em forma de homenagem ou adaptando canções a um novo estilo musical, no mundo da música é muito comum artistas produzirem releituras. Essa prática foi destaque, por exemplo, no Tropicalismo, que surgiu sob a influência de correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop nacional e internacional, agrupando manifestações tradicionais da cultura brasileira e inovações estéticas radicais. E não só a Tropicália viveu de releitura musical no Brasil, há também tributos e covers, feitos até por artistas muito conhecidos, como Cássia Eller, Chico Buarque, Maria Bethânia, Roberto Carlos, Ivete Sangalo, Maria Gadu, entre tantos outros.


Texto:

JOhnathan cornelli

Fotos: Divulgação


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Mesmo os integrantes do Tropicalismo ainda participam, constantemente, de projetos de adaptações de seus trabalhos. Tom Zé lançou em 2012 um CD com versões de suas músicas do final da década de 1960. Também nesse ano, o álbum A Tribute to Caetano Veloso foi lançado em comemoração ao aniversário de 70 anos de idade do cantor. O diferencial é não ter nenhuma música cantada pelo baiano. Trata-se de uma coleção de releituras das canções do compositor feitas por nomes nacionais e internacionais. O álbum serve não somente para homenagear Caetano, como também para trazer à tona artistas marginalizados, mas de grande talento, como o carioca MoMo, responsável pela versão de Alguém Cantando.

Covers, versões e adaptações: são todos, basicamente, releituras. Seguindo essa linha, alguns projetos no cenário da música nacional vêm ganhando relevância. E mesmo que lançados com muita festa pelas grandes gravadores, como A Tribute to Caetano Veloso, é o meio online o mais próspero para estes artistas. Graças à internet, produzir e divulgar este tipo de trabalho ficou mais fácil, tornando-os cada vez mais numerosos. O projeto Adoro Couve da banda brasiliense Móveis Coloniais de Acaju, por exemplo, começou na internet. A ideia foi lançar mensalmente um cover ao longo de 2010. O primeiro era uma regravação em ritmo de marchinha de carnaval de Adeus, uma música da própria banda. Passando por Backstreet Boys, Metallica, Ultraje a Rigor e Cartola, foram produzidas dez faixas que resultaram no álbum lançado no ano seguinte. Cada releitura era ensaiada apenas por quatro vezes, na quinta a música já era gravada e o vídeo divulgado, em um processo que durava menos de uma semana. De acordo com o baterista da banda, Gabriel Coaracy, o objetivo era exercitar a criatividade, agilidade e o processo produtivo do grupo, tanto de composição quanto de gravação interna.


O brega ‘cult’

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Disponível para download em www.moveiscoloniaisdeacaju.com.br)

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O CD Adoro Couve não foi o primeiro trabalho do Móveis Coloniais de Acaju com releituras. A participação no álbum Eu Não Sou Cachorro, Mesmo, de 2006, também foi um marco. O disco trazia adaptações de clássicos das rádios populares na década de 1970. O Móveis ficou responsável pelo rearranjo do sucesso de Evaldo Braga, Sorria, Sorria. Fernanda Takai, Ramirez e Reginaldo Rossi também participaram deste projeto, criado pelo selo Allegro Discos, responsável também pelo lançamento de outros tributos a reis do brega, como Odair José.

“NÃO TEMOS A PRETENSÃO DE FAZER OS COVERS MAIS INOVADORES DA HISTÓRIA DA MÚSICA NEM VIRAR REFERÊNCIA NESSA ÁREA. O QUE É CERTO É QUE A MÚSICA TEM QUE AGRADAR, PELO MENOS, A NÓS [MEMBROS DA BANDA]. ALÉM DISSO, VEMOS UMA ÓTIMA OPORTUNIDADE DE HOMENAGEARMOS ALGUNS ARTISTAS QUE NOS SÃO REFERÊNCIA” Gabriel Coaracy

Foto: Divulgação


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Ao falar em brega e releitura musical, logo surge o nome da Banda Uó. Sucesso na internet, o trio goiano toca tecnobrega, um ritmo tradicionalmente nortista. Eles ficaram conhecidos por suas versões em português de músicas pop internacionais publicadas no Youtube. Um exemplo do reconhecimento do trabalho desenvolvido por eles, foi o convite de participar projeto This Is Indie, idealizado pelo site brasileiro Rock’n’Beats. O álbum reuniu artistas de sete estados para fazer releituras do The Strokes, trazendo a diversidade da música brasileira, sem necessariamente mostrar as mesmas características do grupo nova-iorquino. Entre os convidados estavam os baianos da Vivendo do Ócio; Sabonetes, do Paraná; Pública, do Rio Grande do Sul; Suéteres e Vespas Mandarinas, de São Paulo e o carioca Cícero.

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This is Indie está disponível para download em www.rocknbeats.com.br/is-this-indie

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Convergindo estilos Há muita qualidade pela música brasileira, mas se o estilo musical original às vezes não agrada, é do interesse da nova geração da música brasileira convergir os ritmos para atrair outros públicos. É o que tem acontecido, por exemplo, com artistas da década de 80 e 90, que vêm despertando o interesse dos jovens. O que já foi considerado “brega”, agora ganha status de cult.

DIDIDIDIÊ...

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Jeito Felindie está disponível para download em www.fitabruta.com.br)

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Que bem diga grupo de pagode Raça Negra. Homenageados com um disco de releituras indies de seus clássicos, chamado Jeito Felindie em referência à canção Jeito Felino - uma das músicas de sucesso do grupo -, o grupo vive um surto de popularidade justamente entre jovens que nunca foram fãs de pagode. A coletânea do grupo foi idealizada pelo jornalista Jorge Wagner, com a participação de vários artistas da nova geração da música brasileira independente. Lulina, Hidrocor, Vivian Benford, Letuce e Nevilton estão entre os artistas convidados. De acordo com Wagner, se engana quem pensa que Jeito Felindie tem um caráter irônico. “A escolha de bandas e músicas foi levando em consideração a qualidade do material delas para mostrar que esses sons que fizeram parte de nossa infância têm essa mesma qualidade”, diz. Em relação ao possível desprezo em relação ao pagode, Jorge é categórico:

“Essa ‘cultizacão’ é uma grande bobagem, pois esbarra no risco de se aceitar uma suposta genialidade a um artista ou de uma obra sem uma análise crítica” Foto: Divulgação


3 em 1

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A história desta imagem é relativamente simples: Thomaz Farkas (19242011), um dos pioneiras da moderna fotografia brasileira, registrou a sombra do amigo e também fotógrafo José Medeiros. Mas, se dizem que uma imagem vale mais do que mil palavras, quais delas seriam usadas para descrever uma possível história desta sombra? Confira a seguir, três leituras diferentes sobre esta mesma imagem.


POR MAYARA SENISE

O

homem da rua 8. Assim era chamado. Ninguém sabia seu nome, onde morava, o que fazia. A única certeza é que ele estava ali. Todo meio-dia aquela figura misteriosa aparecia, como se do chão surgisse e para lá mesmo voltasse. Ele, de roupas limpas e engomadas, andava de um lado ao outro durante uma ou duas horas, depois desaparecia em seus próprios passos. Não aparentava estar bêbado, não parecia perigoso, nem mesmo botava medo. Ao contrário, era triste e seus olhos tinham sempre um encontro marcado com o horizonte. O cigarro queimando nos dedos era, quem sabe, a única coisa ainda quente em seu corpo frio. Os territorialistas não gostavam dele ali. Sua inércia era irritante. Fizeram de tudo para vê-lo reagir: xingaram, gritaram e, por pena, até umas moedas no bolso do paletó ele ganhou sem pedir. Nenhuma reação. O silêncio incomodava, mas como tudo que passa por nós diariamente, se acostumaram. Tem uma hora que não observamos mais a paisagem, não vemos os pássaros, nem percebemos que a árvore da pracinha já deixou de existir. E foi assim, com a naturalidade das coisas, que o homem desapareceu. Seu sumiço foi instantâneo. Passaram-se semanas sem que notassem a ausência dele. Ninguém tinha motivos, afinal de contas, era só um homem andando na Rua 8 sem intenção de incomodar. Um homem que sabia seu nome, onde morava, o que queria, mas que pelo descaso, nunca teve motivos para falar.


POR BRUNO BUCIS

E

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scondo-me na sombra do dia. Não suporto os olhares, vivo à margem. Ando nas ruas abandonadas, vejo vitrines com as portas fechadas. Não tenho tempo para andar nas avenidas, já que meu tempo, em si, já foi há tempo. O fogo consumiu meu direito de me expor aos olhares alheios. A pele queimada, onde não há nada de pele, atrai todos os olhares. Não me vêem com curiosidade, as pessoas têm medo de mim, justo de mim, que tenho medo de tudo. Sou pura cicatriz, uma deformidade ambulante, disforme sem diretriz. Escondo-me na sombra do dia, pois à luz sou um monstro. Não suporto me ver pelos olhares dos desconhecidos que me acusam com sua pena. Tenho mais medo dos que tem pena do que dos que tem nojo. Um incêndio quase me matou. Perdi-me entre labaredas, fui internado, cortado, medicado e esquecido. Mas só me senti tão perto da morte quando vi minha própria imagem, quando me tiraram, pela primeira vez, a bandagem. Só me deixem em paz, deixa-me andar diante das avenidas gigantes sem esconder meus olhos sem pálpebra, minha mão literalmente de vaca, colada pelas chamas, e meu coração, vivo de mágoa.


POR NÍVEA BRAGA

O

relógio não marcava quatro da manhã quando ele saiu de casa com o sapato lustroso e o terno marrom. Tentativa de mais um emprego, mais uma que, provavelmente, se tornaria menos uma, se a realidade se repetisse mais uma vez. Até ali, 58. Mas daquela vez foi diferente. Depois de uma longa espera, cadastro e entrevista, a moça perguntou. “Então, o senhor pode começar amanhã?” É claro que ele podia. Ele podia fazer o exame médico imediatamente e entregar a carteira embrulhadinha em saco plástico. Ele podia passar ali o resto da tarde esperando e depois andar pela cidade, perplexo, sem acreditar no que estava acontecendo com ele até a alta madrugada. Agora ele podia. Com um emprego, ele podia tudo. E foi o que ele fez. Perdeu a noção do tempo, de si mesmo. Quando chegou no bar para comemorar, já estava fechado. Olhou no relógio. Já eram, novamente, quatro da manhã. O bar fechado não permitia a comemoração com os amigos. Abriu então o celular e escolheu um número aleatório para ligar. “Consegui um emprego, mãe! Eu consegui! Quando eu começo? Daqui a meia hora.”


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Texto:

ISAAC ARAGUIM E LIZ MENDES

Filmes baseados em reportagens, história em quadrinhos, contos e lendas populares, personagens reais, crimes reais, músicas e programas de televisão e rádio. Essas e muitas outras histórias inspiram releituras no cinema nacional. A evidência está no livro Fusões: cinema, televisão, livros e jornal, organizado por Antônio de Andrade e Sandra Reimão. Mesmo caracterizada por alguns estudiosos de História do Cinema como uma arte “impura” por dialogar e incorporar outras tantas – teatro, fotografia, música, literatura, circo-, o fato é que não há como pensar em cinema brasileiro sem as releituras, adaptações e todas essas complementações.


Os exemplos são vários. “Moleque Tião”, dirigido por José Carlos Burle, foi baseado em reportagens, assim como “Matou a família e foi ao cinema”, escrito e dirigido por Júlio Bressane em 1969, baseado em uma manchete de jornal. Já “Angelitos”, dirigido por Humberto Santana, teve seu argumento baseado nas HQs do chargista Arnaldo Angeli. “Mandacaru vermelho”, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, nasceu de uma lenda popular. “Carlota Joaquina, princesa do Brazil”, de Carla Camurati, retrata uma per24 >25

sonagem histórica de forma satírica e foi a película responsável pela retomada do cinema nacional. Por sua vez, “Fuscão preto”, de Jeremias Moreira Filho, foi elaborado a partir de uma música homônima. Até programas de televisão, no caso “Marcado para o perigo”, dirigido por Ary Fernandes, e de rádio, como o “As taradas atacam”, dirigido por Carlo Mossy, podem servir como inspiração para releituras produzidas para a telona. O cinema brasileiro bebe constantemente de outras fontes para realizar as produções, mas também se inspira no próprio cinema, como em filmes internacionais, para fazer suas paródias e releituras. Em

1974, por exemplo, bastou a censura militar barrar o lançamento nos cinemas do país de “Laranja Mecânica”, filme de 1971, com roteiro e direção de Stanley Kubrick, para que os cineastas Sindoval Aguiar e Braz Chediak lançassem “Banana mecânica”, uma releitura do original britânico com uma pitada da cultura nacional, passando inclusive pela pornochanchada característica do cinema brasileiro na época.

O Brasil vem de uma tradição de releituras. Desde as primeiras adaptações o país sempre buscou inspiração em outros meios”


Mas a forma maior inspiração do cinema no país é a literatura. O cinema brasileiro, definitivamente, não seria o mesmo sem seu embasamento nos clássicos da literatura nacional. Os dois filmes mais assistidos da história da produção tupiniquim tiveram seus enredos inspirados em livros. “Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro”, de José Padilha, levou 11 milhões de espectadores aos cinemas, superando “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, de Bruno Barreto, releitura do livro de Jorge Amado, que alcançou o público de 10 milhões de pessoas. “O Brasil vem de uma tradição de releituras. Desde as primeiras adaptações (do livro e da ópera ‘O Guarani’), o país sempre buscou inspiração em outros meios”, explica Ciro Marcondes, professor de Cinema e Mídias Digitais no Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb).

Capitão Nascimento, personagem icônico do filme Tropa de Elite, filme que teve seu enredo inpirado em “Elite da Tropa”, um livro brasileiro publicado em 2006 e escrito pelos policiais do BOPE André Batista e Rodrigo Pimentel, em parceria com o antropólogo Luiz Eduardo Soares.

Foi adaptado por Bráulio Mantovani a partir do livro de mesmo nome escrito por Paulo Lins.


26 >27 Filme tido como uma grande parábola da história do Brasil no período 1960-66 por metaforizar em seus personagens diferentes tendências políticas presentes no Brasil no contexto. Realiza uma exaustiva crítica de todos aqueles que participaram desse processo.

As obras mais adaptadas são: “O Guarani” e “Iracema” as duas com 5 versões cada. Ambas são de autoria de José de Alencar, sendo esse o autor mais adaptado, com 22 filmes a partir de suas obras. A viuvinha, uma de suas obras, foi inclusive a primeira adaptação cinematográfica de um romance de um autor brasileiro. Já em termos de variedade o mais adaptado é o dramaturgo Nelson Rodrigues com 15 filmes baseados em suas histórias, dessas 12 são releituras de enredos diferentes. Logo em seguida está o escritor Jorge Amado com 11 adaptações, sem nenhuma repetição.

O fato é que, atualmente, qualquer ideia é baseada em alguma outra coisa que já existe então tudo acaba sendo uma releitura

Lara Koerich, estudante de Cinema na Universidade Federal de Santa Catarina


Remake x Adaptação O remake é um tipo de adaptação, porque é você processar novamente aquele conhecimento dentro de um código mais moderno ou de um código autoral. a diferença está no objetivo final do trabalho. o remake, geralmente, tem propósitos mais comerciais e pode querer reiniciar uma franquia no cinema, então você vai modificar vários aspectos para modernizar e revitalizar o filme Ciro Marcondes

Embora não seja possível mensurar, é fácil entender e perceber que, com a grande quantidade de produções artísticas de todos os gêneros ao longo dos anos, o número de ideias que podem ser consideradas “originais” vem ficando cada vez menor. Às vezes, até mesmo sem intenção, a obra de um autor pode remeter a outra, pré-existente, pelos mesmos, em momentos e lugares diferentes, terem tido pensamentos semelhantes. Já no caso das adaptações, que tanto geram polêmica, há quem queira acalmar os ânimos, assim como faz Pablo Gonçalo, mestre em Comunicação, que

O argumento de Deus e o Diabo na Terra do Sol é uma síntese de fatos e personagens históricos concretos. O cangaço e o mandonismo local dos coronéis no Nordeste, o beatismo ou misticismo de base milenarista, a literatura de Cordel, Lampião e Corisco, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, Antônio Conselheiro e Antônio Pernambucano (jagunço ou assassino de encomenda de Vitória da Conquista).

diz “Você sempre tem que encarar como uma outra obra, pensar que é uma outra obra que está dialogando com a anterior, um ponto de partida mas não de chegada.” “Basear-se em”, “inspirar-se em” e o vago “a partir de”, não importa. Num país como o Brasil, feito de misturas e de uma cultura tão rica, com histórias tão maravilhosas, não havia como não se inspirar e exercer a criatividade. Que me desculpem os puristas, mas a mistura já está feita. O que resta agora é ir ao cinema ou sentar no seu sofá, pegar a pipoca e apreciar.


Chef Pedro de ArtagĂŁo, famoso por suas releituras da culinĂĄria brasileira

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Misture bem


Texto:

Larissa corumbá

Talvez você imagine que o simples fato de substituir ingredientes da receita original por outros similares é a definição exata de releitura. Errado. O conceito de releitura na cozinha é algo bem mais complexo. De acordo com o coordenador dos cursos de Gastronomia e Artes Culinárias do Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB) e Chef, Sebastian Parasole, adaptação e releitura têm conceitos diferentes. Substituir ingredientes da receita original seria o conceito de adaptação. Diferentemente da releitura, a adaptação é o fato de se ajustar o sabor de uma receita, geralmente estrangeira, ao gosto das pessoas:

“Caso o dono de um restaurante mexicano no Brasil seguisse à risca as receitas originais, que são extremamente apimentadas, os pratos seriam impossíveis de serem degustados por pessoas que não são acostumadas a comer refeições picantes. Desse modo, tanto a cozinha mexicana, quanto a japonesa, italiana ou a do Sudeste Asiático, terão de ser sempre adaptadas ao gosto das pessoas, para que sejam apreciadas pelo público local”.

Foto: Divulgação


Releitura é algo mais radical. É uma recriação artística.

ADAPTAÇÃO

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RELEITURA

A adaptação gastronômica acontece pela acomodação do paladar de nativos a pratos que não são originais daquele local. São acrescentados ingredientes populares dos cardápios regionais, ou retiram-se itens da receita original, que não seriam adequados ao gosto dos habitantes. Adaptar é algo simples e não requer tanta criatividade e revolução. Enquanto a releitura é algo mais radical. É uma recriação artística. Pontos de vista diferentes são trabalhados em uma mesma receita clássica, que ganhará novas apresentações, formatos e definições, sem deixar que o sabor característico se perca.

“A releitura gastronômica acontece no preparo de receitas clássicas e básicas, mudando a estrutura da montagem e alterando a ordem de preparo. Porém, é importante manter alguns ingredientes específicos, que serão essenciais para preservarem o sabor da receita original. Releitura é a montagem do prato com tendências contemporâneas e vanguardistas, ao mesmo tempo em que é a desconstrução da receita original”, declara Parasole, que também cita a receita de Tortillas de Patatas do Chef Espanhol, Ferran Adrià, como o exemplo clássico de releitura na cozinha. Enquanto a receita de Tortillas de Patatas tradicionais tem como base descascar e fritar as batatas para só depois misturálas a alguns ovos batidos e poder cozinhar a massa, a releitura de Ferran Adrià é bem mais prática: em vez de fritar as batatas cruas, o Chef espanhol usa batatas já fritas para a produção da receita. Isso mesmo! Aquelas batatas fritas, que vêm no pacotinho, prontinhas para serem degustadas principalmente por crianças e adolescentes famintos por lanchinhos gordurosos. A releitura de Adrià permite que um simples salgadinho, torne-se ingrediente principal de um prato que é considerado gourmet, em seu restaurante El Bulli, na Catalunha, considerado um dos melhores restaurantes do mundo pelo Guia Michelin.


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Restaurantes brasileiros não ficam para trás quando o assunto é releitura na gastronomia.

Foto: Divulgação

O Chef Pedro de Artagão, do carioca Irajá Gastrô, dá nova roupagem a pratos típicos do norte e nordeste brasileiros. As versões gourmet da comida tupiniquim são consideradas refeições mais leves do que os pratos originais, por serem servidas em pequenas porções e se utilizarem de fontes de gordura, como o azeite de dendê, apenas como decoração, ao invés de ingrediente principal: “O Pirarucu a Yemanjá é uma moqueca desconstruída. A farofa amarela virou crosta para o peixe. O pirão ficou mais leve e o azeite de urucum, feito aqui no restaurante, entra como decoração do prato”, explica o Chef.

A brasileiríssima combinação de arroz com feijão, acompanhado de salada e carne é o prato servido no almoço executivo em um dos restaurantes do Chef paulista, Alex Atala. Porém, a refeição simples e comum é interpretada de maneira diferente para ser considerada algo refinado, por padrões contemporâneos: “A receita é a mesma de nossas mães e avós, mas são processadas de forma diferente. A carne não precisa ser batida para ficar tenra, serve-se uma de qualidade superior. A alta cozinha não precisa ser feita de coisas complicadas, mas a partir do ingrediente colocado no seu melhor momento”, esclarece Atala, que faz questão de priorizar o uso de ingredientes nacionais na preparação dos pratos dos seus restaurantes.

Na cozinha de Artagão, tudo tem um toque diferente e inesperado. A salada caprese, por exemplo, ganhou uma versão totalmente inusitada por aqui: feita com mussarela de búfala liquida e servida com farofa de pão salteada por cima dos 5 tipos diferentes de tomates frescos.


Cartola da Evelyn Ingredientes: 3 bananas nanicas bem maduras 100g de castanha-do-pará 240g de queijo mussarela em brunoise 50g de queijo parmesão ralado 120g de manteiga 100g de farinha de trigo 4 ovos (gemas e claras separadas) 500ml de leite Sal e noz moscada q/b (quanto baste) 150g de água Canela em pau q/b (quanto baste) Modo de Preparo: Coloque as bananas, com cascas, para assar até que fiquem pretas por fora. Reserve. Para o suflê de queijo, em uma panela, faça um roux claro: derreta a manteiga e acrescente a farinha de trigo. Mexa para não queimar. Adicione o leite, a noz-moscada e o sal. Deixe esfriar e junte as gemas. O leite deve estar frio ou morno para que as gemas não coagulem. Volte à panela no fogo e quando ferver coloque os queijos até que derretam. Resfrie completamente a mistura para poder incorporar com as claras usando movimentos rápidos, para que não perca o ar. Coloque em ramequins e asse a 180° C por 30 minutos ou até que esteja dourado por cima. Amasse as bananas ainda quentes até formar um purê e, em seguida, misture com as castanhas. Faça uma calda com o açúcar, a água e a canela em pau e use para a decoração do prato.

Foto: Evelyn Cordeiro

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Evelyn Cordeiro é aluna do 2º semestre de Gastronomia no IESB e descobriu-se apaixonada pela culinária brasileira no momento em que ingressou no curso. Por isso, aceitou prontamente ao desafio de criar a sua própria versão da sua sobremesa favorita: o doce nordestino, Cartola. Em abril de 2009 a cartola foi reconhecida como Patrimônio Imaterial de Pernambuco e sua receita tradicional é bem simples: fatias de banana grelhadas e cobertas com pedaços quentes de queijo de manteiga e polvilhados com açúcar e canela. A releitura de Evelyn apresentou o doce de outra forma. Incrementou novos ingredientes como a castanhado-pará e o desmembrou em um suflê de queijo, acompanhado de purê de banana, coberto por uma calda de açúcar com canela. Aqui ao lado, a receita desta deliciosa sobremesa.


Revista ZYL TODO MUNDO JOIA


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PERFIL

Texto:

flavy medeiros

Entre notas musicais, sons, ritmos e cores, vamos encontrando semelhanças que tornam as nossas diferenças uma grande unidade. Não são apenas estilos que são unidos, mais vidas e histórias que de grão em grão, vão “cantando’’ um Brasil. O rapper brasiliense RAPadura se propôs a unir estes grãos em uma única história cantada.


Nas cinco regiões do pais, que separamos pelos pontos cardiais, é possível ver pessoas de culturas e realidades diferentes, se encontrando e vivendo em uma mesma terra. RAPadura é filho desse encontro de identidades, meio cearense, meio brasiliense, meio cidadão do mundo. Ele vê na música, uma forma limpa de apresentar suas soluções para os problemas sociais que o cercam. Esse brasileiro é Francisco Igor Almeida do Santos, mais conhecido como RAPadura Xique Chico.

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O artista nordestino descobriu o mundo do rap em Planaltina, no Distrito Federal. Na bagagem, trouxe toda a experiência e voz de um povo forte. Misturando a seca do sertão e o concreto do planalto, ele construiu um ritmo musical só seu, reconhecida nacionalmente por importantes nomes da área, a exemplo de Lenine, como uma das manifestações mais originais da cultura hip-hop no Brasil. Ele não gosta, no entanto, da alcunha de rapper. “O rapper é aquele que faz apenas rap. Não me defino como rapper por que não faço rap, faço rapente”, brinca ao se definir. RAPadura afirma que a ideia da mistura de ritmos veio de uma paixão pelo rap, mas principalmente da vontade de não deixar morrer sua cultura. “Vejo o meu trabalho como uma verdadeira preservação das nossas raízes culturais do Brasil”, afirma.



No rapente de RAPadura encontramos as suas referências. No rap relido do jovem estão as batidas da zabumba, um tambor confeccionado de pranchas de madeira coladas com veios alternados ou metal, que marca o ritmo do canto de RAPadura. Também do Nordeste ele não poderia ter esquecido de trazer o agito da sanfona, que em seus movimentos acelerados apresentam o espírito do baião de Luiz Gonzaga, ícone da região mais arretada do país. 38 >39

Xique Chico tem o dom da adaptação, e deixa claro isso em seus discursos e releituras. Com uma identidade construída ‘’duplamente’’ por povos fortes, ele não pretende transportar seus ouvintes do Nordeste ao Centro-oeste usando as canções. A função dos versos de RAPadura é mostrar o que há de Nordeste no coração do país, evidenciando as belezas e curiosidades dessa mistura cultural, mas também os dramas e conflitos gerados.

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Site oficial: www.rapaduraxc.com.br

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No seu principal sucesso, Norte Nordeste Me Veste, RAPadura rima sua realidade para mostrar o preconceito enfrentado pelos conterrâneos nas grandes cidades do Centro-Sul do Brasil. RAPadura acredita na cultura e talento do seu povo e convoca todos eles para terem orgulho de suas origens. “Êha! Ei! Nortista agarra essa causa que trouxeste / Nordestino agarra a cultura que te veste / Eu digo norte vocês dizem nordeste / Norte nordeste norte nordeste’’, diz um trecho da música. O clip da música Norte Nordeste me veste já possui mais de 500 mil acessos no site Youtube.

RAPadura começou a compor suas letras muito cedo, aos 14 anos, inspirado nas memórias e saudade que sentia do nordeste. O artista já foi indicado ao VMB, prêmio concedido pela MTV e um dos mais importantes do cenário musical brasileiro. O cearense-brasiliense já recebeu elogios de nomes de peso da nossa cultura, principalmente dos ligados ao rap, como Marcelo D2, GOG, MV Bill, Happin Hood. Ainda assim o jovem não perde a simplicidade e ainda gosta de comer rapadura depois de jogar futebol com os amigos em um campo de barro qualquer em Planaltina. Curtindo a seca, mas desta vez no centro do país.

“O rapper é aquele que faz apenas rap. Não me defino como rapper por que não faço rap, faço rapente”. RAPadura


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BETHÂNIA NUNES Texto:

Foto: Acervo Núcleo de Dança Alaya


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Quando se fala em dança contemporânea, pouco se sabe sobre sua origem e a explicação de movimentos marcantes e ao mesmo tempo tão fluidos no palco. São várias as influências, facilmente perceptíveis na bagagem cultural de cada dançarino em cima do palco. Aqui no Brasil, ganha amplo destaque o Núcleo Alaya de Dança Contemporânea, um grupo de artistas marcado não só por usar sua individualidade no palco, mas também a cultura nacional para desenvolver uma técnica brasileira de dança contemporânea. Com mais de 20 anos que marcam sua trajetória, o Alaya apresenta em seus espetáculos ritmos tidos como populares, coreografados com base em passos tipicamente brasileiros. Os temas abordados envolvem a natureza e a fluidez do corpo em movimentos marcados. O trabalho

é comandado pela bailarina e coreógrafa Lenora Lobo, autora de dois livros sobre a arte do movimento e sua experiência na Alaya. Os primeiros passos dela na dança começaram muito antes de pensar em criar um grupo. As apresentações em solo já compunham sua marca: a inquietude com os movimentos representados nos palcos com vários traços da rica cultura nacional. “Vejo que no Brasil se valoriza muito mais a dança de outras culturas do que a nossa, que é tão viva”, ressalta Lenora. Apoiando-se nos trabalhos de Rudolf Laban e Klauss Vianna, dois mestres da dança contemporânea, Leonora desenvolveu o Teatro do Movimento, método onde é possível obter uma preparação corporal que rompe os limites entre a atuação e a dança. O objetivo é trazer à tona as memórias corporais dos intérpretes. “Quando trabalhamos com o corpo, ele se transforma”, ela diz. “O corpo do brasi-


leiro é diferente do do europeu e há de compreender o funcionamento de cada um para aproveitá-los. As memórias corporais sempre estiveram no horizonte das pesquisas e composições da Alaya”, esclarece. Nascida no Piauí e criada em Pernambuco, Lenora não esconde suas origens. Pelo contrário, é amplamente influenciada e reconhecida por trazer aos seus espetáculos a cultura do nordeste do país. É transportado e transbordado em suas coreografias um pouco do frevo, da ciranda de roda e das demais danças tipicamente nordestinas. Tudo permeado pelo ballet clássico, jazz, entre outros ritmos. Entre os espetáculos mais conhecidos na história de releituras feitas pelo Alaya, está Frevendo, de 1993, que ganhou destaque pelas referências ao frevo. Durante o processo de criação, os bailarinos foram conhecer de perto o carnaval do Recife Antigo e das ladeiras de Olinda, bebendo de toda a riqueza de blocos de carna-

val da região, como o Galo da Madrugada, que reúne milhares de pessoas para dançar o ritmo pernambucano. Mas a influência nordestina nos espetáculos não para por aí. Em 2004, o Bumba Meu Boi do cacuriá, das danças de roda e o Tambor de Crioula, ambos ritmos tradicionais da cultura maranhense, ganharam espaço nos palcos da Alaya com Matracar, apresentação que saiu em turnê pelo país e foi tida pelo O Estado de São Paulo como uma das melhores mostras daquele ano. “O Alaya já deu o seu futuro, transformando-se em núcleo. A nós, cabe darmos os nossos, aqueles passos necessários para que um dia os que desejam viver de dança no nosso país possam fazê-lo, e com a dignidade que merecem”, declarou o jornal naquela época.


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O corpo livre A história da dança contemporânea tem os primeiros registros no início da década de 1950. Em inglês a forma de coreografia é conhecida como Backup Dancing, o que é, literalmente, a dança de suporte. Marcada pela desconstrução dos movimentos clássicos do balé e danças tradicionais, essa modalidade de dança surgiu como uma forma de protesto e rompimento com a cultura clássica. A ideia era que o corpo se expressasse de forma independente, sem nenhuma técnica, apenas com seus impulsos. Ao contrário do que se via nas danças cênicas, onde os bailarinos se apresentavam de forma muito virtuosa, aérea e leve, a dança contemporânea trouxe um aspecto pesado, contraído, com interpretação corporal e facial. Isso ajudou a criar estratégias de improvisação que gerassem múltiplos movimentos. O simples fato de subir uma escada foi transformado em dança. Bastava ao bailarino observar a forma de movimentação para que esta ganhasse uma releitura nos palcos. “Não existe uma maneira de fazer dança contemporânea, as influências variam muito, mas alguns marcos históricos explicam porque a dança se desenvolveu dessa forma”, afirma a professora do Centro de Dança de Brasília, Luciana Lara. Hoje, esta constante mudança, com novos passos, representações de nosso cotidiano, da natureza, do que se observa ao seu redor. E se a dança contemporânea representa nosso dia-a-dia, portanto, é uma releitura não só do cotidiano, não só da dança. mas das culturas brasileiras.


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Texto:

GABRIELA Miranda

Foi no subsolo do CONIC, em meio a sujeira, vinho e baratas passando, que o público pôde conferir Ultra-romântico, o segundo espetáculo da trilogia de peças teatrais do Grupo Liquidificador. O projeto teve início em 2010 e conta com adaptações de obras de grandes autores da literatura brasileira. Para descobrir um pouco mais deste processo, conver-

sei com as atrizes Fernanda Alpino e Iza Carvanellas, integrantes do Liquidificador. Entre frases em que uma completava pela outra, e pausas para o café ou água, as duas trouxeram à tona toda a paixão pela arte de interpretar. E essa paixão, enfatizam, é importante na busca por uma nova linguagem teatral, com a cara do grupo.


Foto: Rafael Godoy


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COMO É O PROCESSO DE ESCOLHA DOS AUTORES QUE TIVERAM SUAS OBRAS ADAPTADAS PELO GRUPO NOS PALCOS?

O que vem primeiro é a motivação pela obra, depois a gente a desenrola até onde ela está inserida, onde o autor está inserido e onde ela se encaixa em nossas vidas. É um caminho que a gente trilhou. O ponto de partida foi gostar do Cartomante, gostar do Noite na Taverna e do Cortiço. A Cartomante é nosso filho primogênito, foi a peça que fez o grupo nascer. As pessoas que estão no Liquidificador hoje foram chamadas para os papéis da Cartomante. Depois disso, saímos e fomos pro Ultra-romântico. O resultado foi termos pessoas tão diferentes. Depois do Cartomante, a gente se rearranjou, mas, mesmo tendo mudado muito, não deixamos de ser a gente.

Kael Studart e Fernanda Alpino, espetáculo A Cartomante no Teatro Galpão, Brasília.


EM RELAÇÃO À DISTRIBUIÇÃO DE PAPÉIS E OS ENSAIOS,COMO É ESSA ETAPA DE PREPARAÇÃO DA PEÇA?

O processo é um coletivo. Quando você monta uma cena e apresenta para o grupo, ela não é mais sua é do grupo. E ela vai se recriar, resignificar, porque já não te pertence. É um exercício de generosidade. Mas tem coisa que é [específica] de uma pessoa, não dá para escapar. Daí criamos os “pontos fixos”. A Fê [aponta para a amiga] tem uma cena que não quer abrir mão, eu danço de forma exótica, isso são pontos fixos. Na peça [Ultra-romântico] tem um dançarino. Então não adianta ser outro, ele tem que ser eu. Se não for, não vai ter a mesma força cênica que teve durante o processo.

Foto: Raquel Pellicano

E A ADAPTAÇÃO DAS OBRAS? COMO FUNCIONA ESTE PROCESSO DE EXTRAIR UM TEXTO TEATRAL DE UM LIVRO? HÁ O CUIDADO EM MANTER ELEMENTOS QUE CARACTERIZAM AS OBRAS, MESMO COM A INOVAÇÃO QUE VOCÊS PROPÕEM?

A primeira coisa é a gente acreditar que a obra não é estática. Porque a obra não é aquilo que está escrito, ela é o que você lê. E se hoje você lê uma obra, ela será de um jeito, se você a lê amanhã, já é de outro. A gente não vai pegar uma dessas obras e teatralizar tal qual, por mais que elas já sejam teatrais. Partimos do pressuposto de que a gente quer montar uma obra e traduzir isso da nossa forma. Não basta para a gente tirar aquilo ali do papel e colocar na cena: a gente rearranja. Esse é o tipo de trabalho que a gente gosta de fazer, porque a obra já está pronta, já está acessível a qualquer pessoa e ela é irrevogável, ela se basta. A gente é quem precisa dela para criar, elocubrar, fazer uma coisa nova. Mais do mesmo a gente não quer fazer, viraria uma segunda obra. Nós fazemos um processo de improviso, então é no momento da montagem que a gente vê o que vai ficar. E nesse improviso, em cima da obra, acaba ficando o que é forte para a gente e o que achamos que é forte na obra. Aí, a gente mistura facilmente o que é da obra com o que é referência pessoal e ainda com o que a gente quer falar socialmente. Você pode assistir Ultra-Romântico sem nunca ter lido Noite na Taverna e vai ter uma experiência tão boa quanto se fosse assistir sendo fã da obra.


E QUANTO À FIDELIDADE DA OBRA E A RELEITURA PROPOSTA PELO GRUPO?

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Quando a gente pegou Machado de Assis, a gente trabalhou uma coisa mais próxima do que de fato é, mas com o Ultra-Romântico demos uma revirada, fizemos uma coisa mais distante, uma releitura mesmo. E é disso que vem também o interesse em trabalhar com adaptação de literatura, trazer literatura para o teatro. Pegamos o que é externo ao teatro, transformamos isso a partir das nossas referências e nos apropriamos do resultado e o usamos em cena. A gente coloca, por exemplo, a ironia do Machado de Assis, que brinca sem maltratar o leitor quando diz: “Caro leitor, se você quiser, você pode pular essas páginas, isso aqui não tem nada a ver com a história original”. A gente sabe que ele está ironizando porque ali na frente está o que ele quer dizer de fato, sabe? Só que a gente monta com a nossa visão. Você não vai ver só ele, você vai ver o Liquidificador junto com o Machado de Assis. A FORMA COMO VOCÊS EXPLORAM AS MENSAGENS, AS IDEIAS E O CONTEÚDO DOS LIVROS É COM O INTUITO DE TORNAR A PEÇA MAIS AGRADÁVEL PARA A PLATEIA?

Ela se torna mais agradável porque a leitura é dura e o teatro é mole. A peça é uma linguagem mais palatável por causa da visualidade. A leitura acaba sendo um processo mais intelectual. Também usamos muitas referências do cinema e da TV junto com a linguagem teatral. Afinal, nós temos a intenção de disseminar as obras. Se não fizermos um negócio gostoso de ver, a gente não atinge o objetivo.

EM A CARTOMANTE VOCÊS OPTARAM POR USAR O NOME DA OBRA ORIGINAL. O QUE ACONTECEU PARA ESCOLHEREM O NOME ULTRA-ROMÂNTICO AO INVÉS DE NOITE NA TAVERNA?

Ultra-Romântico leva esse nome porque a 2ª fase do romantismo é a que pertence Noite na Taverna. Esse período têm vários nomes: Mal do Século, 2ª Fase Romântica e Ultra-Romântica. A obra é uma das melhores representantes do Ultrarromantismo, por isso a gente pegou o nome. É Ultra-Romântico, não Noite na Taverna. Por isso que a gente não colocou o nome da peça Noite na Taverna. QUAL O SIGNFICADO EM FAZER UMA CARACTERIZAÇÃO MAIS ANDRÔGENA EM ULTRA-ROMÂNTICO?

O que houve foi que nós éramos três mulheres e dois homens, mas os cinco protagonistas são todos homens. E a gente, desde o início, não queria trabalhar com uma mímica do gênero. Eu não queria che-


Foto: Raquel Pellicano Foto: Raquel Pellicano

Karine Ribeiro, espetáculo A Cartomante no Teatro Galpão, Brasília.


Kael Studart, espetáculo Ultra-romântico, no subsolo do Conic, Brasília.

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Foto: Rafael Godoy

gar lá e bancar o homem, engrossar a voz, mudar a postura. E eu acho que veio muito também da provocação da encenação. Ia cair para um lugar de um teatral que a gente não queria. A gente queria uma proximidade maior. E eu acho que também é muito por causa das nossas referências, os filmes que assistimos, as coisas que nós lemos. Pensamos Noite na Taverna e logo pensamos em punk e outras coisas que surgiram dessa junção. Têm gêneros do punk que caem pro movimento queer e que trabalham com esse bidismo de gênero. Foi uma influência muito forte. E também a cultura clubber, que trabalha com essa indistinção do ultra-masculino, mas com o batom vermelho e os cílios postiços. Um peito malhado, mas que tem uma peruca rosa.

perto delas. Tentamos fazer uma peça com nuances. Você vai lá para se sentir feliz e triste. A gente não sabe classificar ela entre comédia e drama. Até por que a quebra desses gêneros é uma tendência contemporânea, que trabalhamais com o limite do que é real do que com essas divisões.

QUAL A SENSAÇÃO E INTERAÇÃO QUE VOCÊS ESPERAM COMPARTILHAR COM O PÚBLICO?

PRIMEIRO A CARTOMANTE, DE MACHADO DE ASSIS E DEPOIS NOITE NA TAVERNA, DE ÁLVARES DE AZEVEDO. E QUANTO À TERCEIRA PEÇA DA TRILOGIA?

Várias. Essa peça do Noite na Taverna é uma peça de sensações. As pessoas veem uma barata passando perto e vão ter uma sensação. Vai pingar cerveja nelas e elas vão ter uma sensação. O lugar em si já traz uma sensação. A gente interage com as pessoas, a gente encena

Vai ter o Cortiço, de Aloísio Azevedo, mas não ano que vem. A gente ainda não está preparado. A gente ainda não tem a envergadura para fazer a peça do tamanho que a gente imagina. Mas vai ter uma obra de transição aí no meio dessa trilogia.


HOmenagem

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eu, online


Releitura*

ÉRICA SANTANA

Em minha mente entram várias informações Que nem sempre sou eu quem escolho Um turbilhão incontrolável....sons, textos, imagens Meu telefone traz inúmeros lembretes Sobre coisas, lugares e pessoas que jamais vi, nessa vida Em minha casa, a tv está sempre ligada Para ver programas que não dizem nada Minhas mensagens falam de coisas Que nunca experimentei Mas são publicadas para todos os que me seguem Meu computador é branco Da marca da maçã Revolucionária e na moda Meu iPhone, meu iPod, meu iPad Meu Smart, meu Express, meu Wireless Meu Facebook,

meu Twitter, meu e-mail Meu isso, meu aquilo Da cabeça ao resto do corpo Durante todo o tempo São letras, Teclas e toques incessantes Imagens em quadrantes Hábito, necessidade, vício Internet, E nos transforma em homens e mulheres conectados Escravos do tempo presente Estou, estou online É duro comentar, responder, curtir ou tuitar, ainda que Eu tenha que abrir mão do meu espaço de tempo Trocar a realidade pelos acontecimentos virtuais Todo tempo real Todas as redes sociais Afasto-me de mim e Não estou perto de

ninguém Não sabem o que penso de fato. Se de fato, penso A virtualidade me aprisiona No seu espaço acelerado de yottabytes Estamos todos juntos, separadamente, isolados Agora sou usuário Sempre em busca de comentários Na linguagem online, Em códigos reduzidos Palavras tecladas, sem vírgulas, sem pontos, sem nexos Cheias de letras, Ansiosas por conteúdo, Sem emoção Ícones demonstram o que não é dito A comunicação é paralinguíistica Para quem? Se estou online Sou publicável Logo,existo. *Original: “Eu, etiqueta”, de Carlos Drummond de Andrade


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Texto:

ANELISE MOLINA


Foto de Cristiano Mascaro. Chapéu Mexicano em Votorantim

O fotógrafo que se coloca no papel de inventor, de escritor e, principalmente, de reescritor daquilo que nos é cotidiano cumpre um papel importante no imaginário. No momento em que o fotógrafo passa a recontar o “todo dia” ele reinterpreta aquilo que nos é comum dando uma “trato de feitiçaria” à realidade, que acaba por encantar e prender os olhos.

Raros profissionais, seja qual for a área, conseguem aliar qualidades técnicas com sensibilidade, prazer no que faz e, ainda, a vocação necessária para ser um grande professor. Tive o prazer de me encontrar, no ano passado, com o fotógrafo Cristiano Mascaro em uma palestra proferida por ele aqui em Brasília. Seja pelo fato do homem ser muito simpático, seja pelo fato de nossas histórias terem pontualidades muito parecidas - Arquiteto (a) – Fotógrafo (a) – Professor (a) – foi uma experiência enriquecedora. Se me encanta mais o fotógrafo, o arquiteto ou o professor? Não saberia dizer. A empatia foi instantânea e a admiração é crescente.

Nesse dia ele falou sobre sua história de vida e também sobre seu processo de criação. Falar sobre criação pode parecer estranho, em um primeiro momento, para alguém que faz fotografia urbana. Ele, em um primeiro entendimento, apenas registra o que está lá. Ele capta, de maneira a selecionar, momentos que são da cidade. A grande mágica se dá quando nos deparamos com as imagens de Mascaro. Existe a cidade e existe a cidade de Mascaro. São Paulo, com toda sua fumaça e concreto, é transformada pela lente de um fotógrafo primoroso na técnica e sensível na seleção do quadro.


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Foto de Cristiano Mascaro. Detalhe da Avenida São João vista do Banespa

Ele se disse influenciado pelos grandes fotodocumentaristas do nosso tempo. Cita Bresson e Robert Frank. Talvez por isso tenho deixado o fotojornalismo. Documental é a fotografia que contempla o cotidiano. Ela documenta, não informa. Contemplar e “assistir” o cotidiano pode ser uma boa maneira de entender a fotografia de Mascaro. Ele assiste a cidade como quem assiste a grandeza de um épico.

Mascaro é um feiticeiro que encanta a cidade aos nossos olhos. O fotógrafo, também Doutor pela USP, gosta de retratar paisagens de todo o canto do país, mas a vida cotidiana de São Paulo, a cidade e suas pessoas, é seu tema mais recorrente. Sobre a cidade, ele diz, “Há uma diversidade, uma mobilidade, cenários variados, você fica parado em uma esquina e as coisas acontecem à sua revelia”.


Foto de Cristiano Mascaro. Coleção pessoal da curadora e pesquisadora Rosely Nakagawa.

“A cidade não é mais aquele objeto de todos os dias, a cidade passa a encantar quem passa”.

Na fotografia de Mascaro vemos uma cidade-cena que, de tão extraordinária, nos surpreende a cada minuto. A cidade não é mais aquele objeto de todos os dias, a cidade passa a encantar quem passa. Algo de mágico e simples acontece nas novas leituras do espaço urbano feitas por Mascaro. Andar pelas ruas da cidade torna-se um ato a ser apreciado, a ser pontuado como especial. “Ir à cidade é como ir ao cinema” nos diz Mascaro.


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Foto de Cristiano Mascaro. Coleção pessoal da curadora e pesquisadora Rosely Nakagawa.

“Mascaro nos mostra que, para ver a cidade, é preciso colocar-se diante dela, nunca fora dela”. Como a maioria dos fotógrafos da sua geração, Mascaro iniciou no fotojornalismo, sendo fotógrafo da Veja por quatro anos. Ele entrou na revista no ano de 1968, fotografando o período mais conturbado da ditadura, bem como a cena mais efervescente da cultura e da música nacional, inclusive a Tropicália. Seus retratos dos artistas da época se tornaram célebres, imortalizando personalidades e momentos tocantes para a história nacional.

Já por sua reinvenção da realidade urbana, através de composições de luz e contrastes gritantes, Mascaro é hoje reconhecido na cena da fotografia como grande “pintor de paisagens”, sendo ainda, referência para todos os fotógrafos brasileiros que se dedicam à fotografia de arquitetura e fotografia urbana. A grande maioria de suas imagens são em preto e branco, o que rouba nossa atenção para a textura, as formas, as silhuetas e o grafismo


de um cenário de surpresas. Dentro dessa perspectiva, o fotógrafo mimetiza em seu trabalho tanto o fotojornalista como o arquiteto, tornando-se assim um grande contador de histórias. Essa formação que une a capacidade da narrativa com o estruturalismo, ao qual todo arquiteto se dedica fortemente durante o tempo da graduação, faz da linguagem de Marcaro algo facilmente identificável. É sua assinatura. E mesmo seus retratos, suas imagens estritamente documentais trazem a marca do arquiteto (estrutura, forma, coerência) fazendo da linguagem de Mascaro seu maior mérito.

A ideia de dar uma visão poética a espaços urbanos, conhecidos pelo caos, poderia até parecer impossível. Mas, dos muitos poderem mágicos que só a fotografia tem, transformar espaços urbanos em poesia é o que Mascaro faz de melhor. Você se sente descobrindo, descortinando a cidade de todos os dias. São olhos novos, lentes diferentes? Talvez. Basta seguir o conselho dado por ele e andar pela cidade sabendo apreciá-la, colocando-se como quem assiste, para encontrar a resposta. Mascaro nos mostra que, para ver a cidade, é preciso colocar-se diante dela, nunca fora dela. Dê à cidade o status de espetáculo a ser apreciado e poderá sentir um pouco disto. Em seu trabalho, Mascaro não é, em nada, distante, ele não se coloca como observador onipresente, onisciente e asséptico, ele se coloca dentro. Ele é o humano dentro do urbano. Mascaro é daqueles fotógrafos que sabem observar e registrar seus pares e onde eles vivem, com a simplicidade e a sensibilidade de quem se vê e se sabe dentro disso. Tem algo que nunca canso de repetir aos meus alunos. Fotografia é envolvimento. Manter-se em contato. Se existe algo primordial para uma boa fotografia é que o fotógrafo mantenha-se nela. Dentro dela. Recontar, seja o que for, depende de envolver-se e deixar-se envolver. Mascaro nos mostra, em sua fotografia, que habitamos uma cidade que nos habita. Em relação a qual, querendo ou não, cultivamos o sentimento de pertença. Ele resgata nosso senso de comunidade e nossa relação afetiva e poética com o espaço. Ele nos mostra que somos a cidade.


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Ela, a chita

Singelamente discreta, absurdamente chamativa


Texto:

NÍVEA BRAGA

Visitei seu território, pela primeira vez, na casa da minha avó. Ela estava por toda a parte, cobrindo mesas e máquinas de costura, compondo fuxicos e vestidos de quadrilha. Ela, a chita. Tão famosa quanto a macaca do Tarzan e tão popular quanto as balas amarelas de abacaxi, suas conhecidas homônimas. Mas essa outra chita me intriga mais do que qualquer outra. Intriga-me por conseguir ser um tecido tão singelamente discreto apesar de ser tão absurdamente chamativo: tons fortes, chapados, flores gigantes, muita, muita cor. Impossível não deixar os olhos passearem sob a sua trama simples, aberta, o tecido duro, quase grosseiro. Combina mesmo com festas juninas e folclóricas, em que a simplicidade passa a ditar moda e as pessoas costumam se apresentar como realmente são: segurando milho com a mão, gritando de susto com buscapés e bombinhas, aquecendo-se na fogueira em noite fria. Com o tempo, aprendi mais sobre esse tecido floral. Descobri que as cores intensas serviam, na verdade, para disfarçar as imperfeições muitas. “Chita é pano barato”, dizia a tia em minha infância. Mas nem sempre foi assim. A chita tem ascendentes ilustres, originários da Índia. Chintz, grafado em sânscrito, era um tecido muito usado para roupas de cama aze patchwork, raro e caríssimo. Foi levado para a Europa em 1600 e seu uso se popularizou no século XVII. Temendo esse forte concorrente, em 1720, o parlamento inglês proibiu sua importação e até mesmo o seu uso, para proteger as tecelagens francesas e inglesas. Com o tempo, a perseguição se afrouxou. Como proibir o simples, acessível, universal?


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Da minha parte, nunca vou me esquecer das meninas de Araçuaí em um Festival Internacional de Coros. Lá estavam elas com vestidos de gorgorão e chita, confeccionados por elas mesmas. Eram meninas cantoras, que aprenderam ambos os ofícios (cantar e costurar... ou costurar cantando) de suas mães, avós e bisavós. Lá estavam elas sorrindo, em traje de gala, apresentando o melhor que elas tinham. E o melhor que temos nem precisa mesmo ser muito. Só precisa ser sincero. Em contextos assim, ouso até afirmar: a chita é chique.


QUEM VAI FAZER?

#02 FEV2013

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TEMA:

CORAGEM Não são poucos os que se arriscam para colocar em prática AQUILO EM que acreditam. NO MUNDO DA CULTURA E DA ARTE ESSa CENA É AINDA MAIS COMUM, muitas delas com histórias incríveis. SE VOCÊ quer partilhar UMA DESSAS HISTÓRIAS COM A GENTE, ESCREVA PRA ZYL. NÓS TEREMOS O IMENSO PRAZER EM TE TORNAR UM DOS NOSSOS COLABORADORES, OU -COMO CARINHOSAMENTE lhe CHAMAremos-, UM ZYLIAN. ENVIE, ATÉ 20 DE JANEIRO, A SUA PAUTA E UM PEQUENO RESUMO DA SUA IDEIA - QUE DEVE FALAR SOBRE ARTE/CULTURA BRASILEIRA- PARA REVISTAZYL@GMAIL.COM SE VOCÊ É DESIGNER GRÁFICO, ILUSTRADOR, FOTÓGRAFO E/OU ARTISTA PLÁSTICO E TAMBÉM DESEJA PARTICIPAR, FAÇA COMO O PESSOAL DE TEXTO, ENVIANDO O SEU PORTFÓLIO PARA O E-MAIL.

INTÉ



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