Jornal Saúde & Sociedade

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Os Conselhos Municipais de Saúde são peças fundamentais da estrutura do SUS para a promoção da saúde. Visitamos o Conselho Municipal de Saúde de Matias Barbosa para acompanhar a realidade de um conselho de uma cidade pequena, para perceber suas dificuldades e experiências e ver, na prática, como a população se insere no processo de produção de sua própria saúde. P2.

Entrevista com o conselheiro Entrevistamos o presidente do Conselho Municipal de Saúde de Matias Barbosa, Sr. José Alberto Siqueira, obtendo sua percepção de participação popular e as reais necessidades de saúde do município. P3.

Adaptado de "The New Yorker", 8/12/2014

15ª Conferência de Saúde Acompanhamos o processo de preparação do Conselho para a realização da conferência municipal de saúde em entrevista com sua secretária, Sra. Renata da Rocha Lopes. P5.

Cidades Saudáveis

A construção da cidade saudável, fundamentada na teoria da produção social, pode ser olhada como expressão de um processo que vem buscando uma nova direcionalidade que rompe com a setorização fragmentada. No Brasil, o movimento Cidades Saudáveis é normalmente conduzida por um grupo de pesquisadores ligados a uma universidade. P12.

Henfil

Entrevista

A historiadora Maria de Fátima Franco Gonçalves, professora da rede estadual de ensino de Minas Gerais, discorre sobre sua profissão e o tema Revolução Francesa, mostrando como os reflexos desta ainda são visíveis na sociedade, podendo ser muito bem associada aos tempos atuais. P9

Contextualizando Paulo Freire

O diálogo de Paulo Freire nos faz refletir sobre a legitimação das manifestações recentes no Brasil. Mobilizar­se não somente significa ideologizar ou propor palavras de ordem, é uma forma de expressar a liberdade social e política que tem como pressuposto a educação para a decisão. P21.

Tempo Confira a previsão dos tempos para os últimos séculos e futuro. P23.

Vanguardismo e desejo de reconhecimento: foi o que Flora Tristan demonstrou em seus 41 breves anos de vida, militância e obra. De fato, esta menina nascida em Paris no dia 7 de Abril de 1803, era filha ilegítima do casamento não reconhecido de um militar da aristocracia espanhola, oriundo do Peru e uma mãe burguesa refugiada na Espanha após a Revolução Francesa. Conheça a trajetória de vida desta jornalista pioneira e seu combate literário e militante na luta por formas mais justas de organização social em prol dos direitos das mulheres e de uma união nacional de trabalhadores na sociedade pós revolução francesa. P7.


Além disso, é necessário que o conselheiro conheça seu papel e a finalidade do conselho, onde o silenciamento advindo da falta de preparo não pode ser superior à prática legal de participação e controle social (SOARES; TRINCAUS, 2006). O Guia do Conselheiro (BRASIL/MS, 2002, p. 31) orienta que: "é papel do Conselheiro de Saúde participar na formulação das políticas de saúde, acompanhar a implantação das ações escolhidas, fiscalizar e controlar gastos, prazos, resultados parciais e a implantação definitiva dessas políticas". Para a concretização do controle social, torna­se indispensável a organização e o acesso às decisões, como forma de garantir a participação nas decisões do Estado, sobretudo no que tange ao financiamento da saúde já que é a aplicação desses recursos que desenha o rumo da política de saúde nas três esferas do governo (Correia, 2005). Abers (2000) citado por Saliba et al (2009) observa que o controle social dos representantes dos usuários sobre as contas do gestor tem sido a meta mais difícil de ser alcançada em quase todos os conselhos de saúde do país. Em relação ao Relatório de Gestão, segundo a Resolução nª 333/2003, compete ao conselho analisá­lo, discutí­lo e aprová­lo, com a prestação de contas e informações financeiras, repassadas em tempo hábil aos conselheiros, acompanhado do devido assessoramento. De acordo com o relatório da 13º Conferência Nacional de Saúde (BRASIL, 2008) deve­se exigir dos gestores a prestação de contas e do relatório de gestão em audiências públicas, remetendo­ os aos Conselhos de Saúde e divulgando­os em meio expresso e eletrônico. Carvalho (1997) afirma que os conselhos de saúde não precisam de mais normas, leis, mas sim de uma política mais transparente, com mais voz e que envolva de forma direta e orgânica as questões de informação e de comunicação em massa para que dessa forma as políticas de saúde se tornem mais responsivas aos interesses dos usuários.

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s Conselhos de Saúde foram criados tendo como princípio a participação efetiva de todos os setores sociais no controle e avaliação das políticas de saúde, mas há dificuldade de que isso possa ocorrer diante da diferença de preparo dos conselheiros (WENDHAUSEN & CAPONI, 2002). Segundo Tatagiba 2002 o acesso às informações e o próprio conhecimento quanto ao funcionamento da máquina administrativa colocam os conselheiros governamentais em vantagem em relação aos representantes da sociedade civil. Ribeiro e Andrade (2003) ressaltam ainda que o caminho para o estabelecimento da participação não passa apenas pela criação de mecanismos institucionais. Para esses autores, somos levados a acreditar que, mesmo havendo uma paridade formal e jurídica na configuração dos conselhos, só se desenvolverão práticas democráticas eficazes se também a cultura política de seus conselheiros for favorável ao fortalecimento da participação democrática. A exigência de qualificação ­ técnica e política – parece ser o ponto mais importante para uma participação mais igualitária nos espaços públicos (DAGNINO, 2002). O despreparo dos conselheiros para exercerem sua função pode aparecer como um interesse do poder público, conforme encontrado nos estudos de Cotta et al. (1998), Fleury et al. (1997), Fleury (2006) e Soares e Trincaus (2006). A insuficiência do exercício democrático no âmbito da sociedade civil também se mostra na baixa rotatividade dos membros do conselho permitindo que se cristalizem determinados sujeitos sociais como representantes dos distintos interesses econômicos e de demandas a partir de carências aí presentes (COHN, 2003). Os conselhos devem delimitar o período de representação dos conselheiros para garantir a renovação do seu pleno e limitar a participação da mesma pessoa em várias comissões temáticas, para ampliar o número de participantes nos diferentes espaços de controle social (BRASIL, 2008). Vale ressaltar que, segundo a Lei nº 8.142/90, os Conselhos de Saúde "atuam na formulação e proposição de estratégias e no controle da execução das políticas de saúde, inclusive em seus aspectos econômicos e financeiros", sendo o controle social o atributo essencial dos conselhos municipais, estaduais e federais (COTTA et al., 1998). É importante enfatizar que a simples existência de um conselho, funcionando conforme preconiza a legislação, não significa sua legitimação.

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A falta de autonomia no “participar” pode afetar o objetivo e finalidade do controle social. Neste sentido, o acesso a informação e a capacidade de interpretar e entender as informações disponíveis vão além da educação formal, embora esta seja imprescindível. Sendo assim, capacitar os cidadãos para o exercício do controle social, deve englobar não só a qualificação em relação à função específica de conselheiro, mas também visar à ampliação da consciência política em geral e sanitária em específico.

Prof. Dr. Marcelo da Silva Alves Angélica Atala Lombelo Campos, Déborah Franco Gonçalves, Ludmara Zimmermann Silva, Maria do Socorro Lina van Keulen, Maria Priscila Wermelinger Ávila, Priscila Mendes Fernandes de Mello, Raphael de Freitas Saldanha. Universidade Federal de Juiz de Fora – Programa de Pós­Graduação em Saúde Coletiva. Rua José Lourenço kelmer, s/n – Campus Universitário. Bairro São Pedro – CEP 36036­900 – Juiz de Fora ­ MG


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Movimento da Reforma Sanitária (MRS) pautado na inclusão da população na discussão e decisão política levou à ampliação da organização popular e a emergência de novos atores sociais, produzindo e incrementando as demandas sociais sobre o Estado. A ideia era a de ampliar os direitos de cidadania, priorizando a inclusão das camadas sociais marginalizadas no processo histórico de acumulação de capital, que tiveram suas liberdades de participação e organização suprimidas durante os anos de autoritarismo vividos no país. Destarte, o ano de 1986, é considerado um marco para o MRS e para a história da saúde no Brasil, pelas importantes discussões ocorridas no âmbito da VIII Conferência Nacional de Saúde (VIII CNS). Ali reuniu­se pela primeira vez uma gama diversificada de representantes sociais de todo o país, resultando na ampla legitimação dos pressupostos político­ideológicos do MRS. Neste contexto, foram definidos os princípios básicos sobre os quais o Sistema Único de Saúde (SUS) deveria ser institucionalizado, servindo de subsídios para a aprovação do Capítulo da Saúde na Constituição Federal de 1988. Com o SUS, a saúde emerge como questão de cidadania e a participação social como condição essencial para o seu exercício. O arcabouço jurídico­institucional da constituição de 1988 é complementado pelas leis orgânicas da saúde (8.080 e 8.142 de 1990). A Lei 8.080 regula as ações e serviços públicos e privados de saúde no que concerne à sua direção, gestão, competências e atribuições em cada nível do governo. A Lei 8.142, vem para complementá­la e dispõe, entre outras questões, sobre o controle social através da criação de Conferências de Saúde e dos conselhos de Saúde abertos à participação de diferentes membros da sociedade civil, nas três esferas do governo. Neste contexto, “o Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, é um órgão colegiado composto por representantes do governo, dos prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários e atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de governo” (art. 1º, §2º, da Lei nº 8.142/90).

WENDHAUSEN, A.; CAPONI, S. O diálogo e a participação em um conselho de saúde em Santa Catarina, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, n. 6, p. 1621­1628, 2002. TATAGIBA, Luciana. Os conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no Brasil. In: DAGNINO, E. (org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 47­103. RIBEIRO, E.A.; ANDRADE, C.M. Cultura política e participação diferenciada: o caso do Conselho Municipal de Saúde do município de Dois Vizinhos, Estado do Paraná. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences, Maringá, v. 25, n. 2, p. 349­358, 2003. DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, espaços públicos e a construção democrática no Brasil: limites e possibilidades. In: _______. Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 279­301. COTTA, R.M.M.; MENDES, F.F.; MUNIZ, J.N. Descentralização das Políticas Públicas de Saúde ­ do imaginário ao real. Viçosa: UFV; 1998. 148p. FLEURY, S. et al. Municipalização da Saúde e o Poder Local no Brasil. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, p. 196­206, 1997. FLEURY, Sônia. Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: FGV, 2006. 508p. SOARES, L.G.; TRINCAUS, M.R. Participação e controle social: uma revisão bibliográfica dos avanços e desafios vivenciados pelos conselhos de saúde. Revista Eletrônica Lato Sensu, n. 1, p. 245­264, 2006. COHN, A. Estado e sociedade e as reconfigurações do direito à saúde. Ciência e Saúde Coletiva. São Paulo, v. 8, n. 1, p. 8­12, 2003. BRASIL. Ministério da Saúde. Relatório Final da 13ª Conferência Nacional de Saúde. Saúde e qualidade de vida: políticas de estado e desenvolvimento. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão de Investimentos em Saúde. Departamento de Gerenciamento de Investimentos. Guia do conselheiro: curso de capacitação de conselheiros estaduais e municipais de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. CORREIA, Maria Valéria C. Desafios para o controle social. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. 278p. SALIBA, N. A. et al. Conselhos de saúde: conhecimento sobre as ações de saúde. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 43, n. 6, p. 1369­1378, dez. 2009. CARVALHO, A. I. Conselhos de saúde, responsabilidade pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do Estado. In: FLEURY, S. (Org.). Saúde e democracia: a luta dos Cebes. São Paulo: Lemos, 1997. p. 100­108. BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v. 128, n. 182, p. 18.055–18.055, 20 set. 1990. Seção I, pt. 1. ______. Lei nº 8142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 31 dez. 1990. COTTA, R.M.M.; MENDES, F.F.; MUNIZ, J.N. Descentralização das Políticas Públicas de Saúde ­ do imaginário ao real. Viçosa: UFV; 1998. GUIZARDI, F.L.; PINHEIRO, R. Dilemas culturais, sociais e políticos da participação dos movimentos sociais nos Conselhos de Saúde. Cien. Saude Coletiva, v.11, n. 3, 797­805, 2006. MARTINS, P.C. et al. Conselhos de saúde e a participação social no Brasil: matizes da utopia. Physis, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, 2008.

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Alberto Siqueira, caminhoneiro aposentado J osé e atual presidente do Conselho Municipal de Matias Barbosa fala sobre a realidade dos Conselhos de Saúde e os desafios da participação popular e controle social. COMO E QUANDO O CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE MATIAS BARBOSA FOI CRIADO? O Conselho Municipal de Saúde de Matias Barbosa, situado à Rua Dr. Oscar Vidal, 270, foi criado no ano de 1994, no dia 18 de agosto. Foi criado através de projeto de lei municipal, seguindo os padrões de Brasília e de Minas Gerais. O conselho aqui é autônomo, um colegiado autônomo e deliberativo, como são todos os conselhos de saúde. Participo deste conselho desde 2000. E antes da sua criação, de 1994, não tinha nada, não tinha nenhum tipo de reunião, nenhum tipo de participação popular. COMO O CONSELHO É FORMADO? Ele é constituído 50% usuários, 25% dividido entre governo e prestador, e os outros 25% são trabalhadores da saúde. A paridade maior tem que ser do usuário. Os conselheiros sempre participam da reunião, mas população como um todo, é difícil de comparecer na reunião. Eles vêm aqui só para reclamar e buscar os direitos, mas para conhecer os direitos e deveres que eles tem, eles não vêm. Quem participa mais são os conselheiros.

esclarecimento do motivo dessas faltas. Isso não é importante para nós, porque o conselho é deliberativo, com eles ou sem eles nós vamos tomar decisões. COMO

A POPULAÇÃO É MOBILIZADA A PARTICIPAR

DO CONSELHO?

Nós fazemos a divulgação através de motos com auto falantes que circulam pela cidade no dia anterior à tarde e no dia da reunião pela manhã. Por exemplo, nossa reunião é quinta­feira agora, dia 09, então na quarta­feira à tarde e na quinta­feira de manhã, passa a moto, com auto falantes divulgando da reunião do conselho. E pedimos também para divulgar no rádio. Eles não comparecem às reuniões, porque não gostam de participar. QUAL A MAIOR PREOCUPAÇÃO DOS CONSELHEIROS E DOS PARTICIPANTES? É dar uma saúde de qualidade para o povo. Ter as consultas marcadas, os exames marcados com mais facilidade. É repor as especialidades que estão faltando no município. Aqui o grande problema, a minha preocupação e a preocupação do conselho, é você dar uma saúde de qualidade, é você investir mais nas unidades. Porque se você investir mais nas unidades, você vai diminuir o fluxo que você tem na sala

AQUI EM MATIAS EXISTEM CONSELHOS LOCAIS? Nós estamos criando os conselhos locais. Está em processo de implantação. É uma norma do Ministério da Saúde para que o município tenha mais recursos. Todo lugar que tiver uma Unidade Básica de Saúde, nós temos que ter um conselho local, que vai ajudar a UBS a formalizar a estratégia da saúde, já que eles estão mais perto da população do que nós. Então os conselhos locais vieram para ajudar as unidades de saúde a dar uma saúde de qualidade, a fazer 'aquela' estruturação. Nós temos 4 unidades de saúde aqui em Matias, e agora 5, com a criação de mais uma. Os Conselhos Locais vão funcionar dentro das unidades. É uma recomendação do Ministério da Saúde. Ainda não tem nenhum implantado, pois nós estamos na fase de sensibilização da população. A participação da população é muito importante. As pessoas acham que não, mas quando você tem a participação da comunidade, aí é outra coisa. O QUE VOCÊ PENSA SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA POPULAÇÃO NOS CONSELHOS? A participação da comunidade não é importante, ela é super, hiper importante. É importante demais a participação da comunidade. Por exemplo, para mudar um protocolo de exames, tem que ser discutido com a comunidade. Como vamos fazer? Vamos trazer mais profissionais na APS? Ahh... não vamos?! Porque não vamos? A estratégia é levar os profissionais especialistas para APS para desafogar a sala de estabilização [serviço de urgência e emergência do município]. Ali não é para atendimento médico, é para urgência e emergência, não é para fazer consulta diária. Isso que nós temos que mudar. A nossa intenção é levar as especialidades para o PSF. Então, a tendência do núcleo de atendimentos [espaço onde é realizado os atendimentos das especialidades – atenção secundária] é acabar, porque a atenção secundária, ela tem que andar junto com a atenção primária. Porque veja bem, você quer fazer uma consulta com o especialista, você tem que ir lá na unidade, pegar um encaminhamento, para depois marcar para daqui 30 a 40 dias. Você já pensou se nós conseguíssemos, por exemplo, levar o cardiologista, o ginecologista e o ortopedista para o PSF... Eles falam que eu sou louco, mas não, eu estou fazendo as coisas com os pés no chão. Ele atende aqui no núcleo na segunda ­feira à tarde, ele passa atender na segunda à tarde no PSF do bairro X, na terça do bairro Y... e assim por diante. Entendeu? Vamos levar o médico para junto da comunidade e não dispersar a comunidade. Então temos que acabar com isso de que a sala de estabilização é para consultar, porque não é, porque lá é urgência e emergência. O QUE TE MOTIVA A ESTAR NO CONSELHO? Porque a gente está vendo a necessidade do povo, e o povo, principalmente aquele que mora lá na zona rural, ele desconhece o seu direito e a gente está aqui para lutar por esse direito. Nós estamos aqui para defender o usuário. O melhor plano de saúde é o SUS, só que ele é mal administrado, se ele fosse bem administrado.... Você vê que vem gente aí de fora, do Canadá, por exemplo, para copiar o nosso modelo de saúde. COMO

VOCÊ PERCEBE A PARTICIPAÇÃO DA GESTÃO AQUI NO CONSELHO?

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Péssima. Os representantes do governo não vem, nem os suplentes, e não justificam. A participação do governo é insuficiente. Eles não dão a ênfase que tem que ser dada. Por exemplo, a nova secretária, nós já fizemos 4 reuniões, ela apareceu só em uma, eu já mandei ofício, pedindo

de estabilização. Nossa preocupação é investir na atenção primária, onde está o paciente. Se você investir lá, você vai diminuir o fluxo aqui. Mas parece que ainda não entenderam a mensagem. Você vai lá agora na sala de estabilização você vai encontrar mais de 20 pessoas, para uma cidade com aproximadamente 14 mil habitantes. Então, a idéia é investir na atenção básica, colocar mais profissionais, médicos, especialistas, outros profissionais. Hoje o nosso médico do PSF... Ele não foi feito para ficar lá dentro do posto, ele não foi feito para consultar também. O PSF foi feito para fazer a prevenção, e não curar. É prevenção. Quando começou, quando o conselho era atuante, você ia até o PSF, você não encontrava os médicos no posto, eles estavam na rua, visitando os pacientes, acamados... Hoje você tem que implorar para o cara fazer um atendimento, porque está desorganizado. Aqui infelizmente nós não temos gestão, temos cestão [sic]. A partir do momento que eles vierem para realidade, e pensarem vamos melhorar isso, aí sim nós iríamos ter uma saúde de qualidade, por exemplo, não ia deixar faltar medicamento. Os funcionários mal remunerados, isso tudo leva a ter uma gestão péssima. Temos uma saúde péssima, não porque o funcionário é o culpado, mas é a falta de investir no funcionário. O QUE VOCÊ PENSA SOBRE OS MANDADOS DE SEGURANÇA DAQUI DE MATIAS? Eu acho que é um direito do paciente, nós inclusive orientamos isso aqui na ouvidoria. Se o gestor não tem capacidade de gerir isso, nós vamos para o judiciário. Apesar do que, a saúde não é uma questão de justiça, é um direito. Pela incapacidade de gerir esse sistema, as pessoas tem que recorrer a outros artifícios. E todas as vezes que vai para o judiciário, normalmente dá ganho de causa.


QUAL

A

MAIOR

DIFICULDADE

ENFRENTADA

direito de todos né, então eu luto aqui para todos terem uma saúde de qualidade e igualitária, somos todos iguais. E hoje, nós temos que lutar para que todos sejam tratados iguais.

PELO

CONSELHO?

As dificuldades, elas sempre existem, nós tentamos encontrar um jeito de driblar essas dificuldades, mas se for preciso a gente briga também, briga para fazer valer o direito. Não foi eu, você ou outra pessoa que disse que a saúde é direito de todos, foi a lei, então essa lei tem que ser cumprida. É atender a população nos mínimos detalhes, em tudo que for preciso. Uma das dificuldades é o cumprimento dos acordos feitos pela prefeitura, como por exemplo o fornecimento de medicações. QUAL A MAIOR facilidade.

FACILIDADE?

Tudo no conselho é difícil. Não tem nenhuma

QUAL FOI A MAIOR CONQUISTA DO CONSELHO? Foi a sede própria né, sem sombra de dúvidas. Foi em torno de 2010. Nós falamos com o prefeito, então tá... nós estamos desacreditados com a realidade aqui, nós vamos comunicar ao Ministério da Saúde sobre a situação do nosso conselho aqui, vamos fazer um documento, pedindo para cancelar todos os repasses tanto voluntários como obrigatórios referentes ao conselho de saúde. Aí ele me disse, não precisa de você fazer nada disso. Pode procurar uma casa para você alugar. Aí alugamos aqui, e o Ministério da Saúde mandou verba para equipar a sede, mesas, armários, computador, telefone. Além das pequenas conquistas do dia a dia. O QUE FAZ VOCÊ CONTINUAR, DIANTE DE TANTA DIFICULDADE? Ah... as desigualdades não deixam eu desistir de jeito nenhum, porque a saúde é um

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o dia nove de abril de 2015, participamos da Reunião do Conselho Municipal de Matias Barbosa. A reunião começou às 19h30 após duas chamadas sem quorum. Antes da leitura da ata, o presidente do conselho, Sr. Siqueira, justificou a ausência de 2 conselheiros e informou que 2 gestores não compareceram e não deram justificativa. Na leitura da ata, foi informado sobre a auditoria da CGU (Controladoria Geral da União), que visitou o município recentemente e apontou problemas de gestão em torno do funcionamento e cumprimento de leis e normas: funcionários contratados e médico ausente no posto de trabalho. As eleições do CMS estão previstas para breve, mas não há candidatos para novos conselheiros e o mandato dos atuais já foi reconduzido outras vezes. É cobrada maior atuação da população, para que participem mais. O presidente reclamou de falta de apoio da gestão local ao CMS. Os conselheiros solicitaram assessoria para a comissão de finanças pois eles

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Conselho Municipal de Saúde do município de Matias Barbosa foi criado por uma imposição legislativa, vinculada ao repasse de verba e não através da luta legítima da população. E até hoje, a participação da comunidade é incipiente. O presidente do Conselho, ao longo da entrevista, resgata alguns conceitos e princípios da Lei 8.080, 8.142 e da Constituição Federal de 1988, quando fala sobre o caráter deliberativo, da constituição paritária dos conselhos de Saúde e da Saúde como um direito de todos. Por outro lado, podemos perceber que sua visão de saúde ainda está restrita a consultas, exames, remédios e especialidades. Esta postura ignora o aspecto socioeconômico, cultural e psicossocial da origem dos agravos à saúde, ligados a uma noção mais ampliada de saúde. Desse modo, reforça e contribui para manutenção do modelo flexneriano de atenção à saúde, focado na clínica. Ele reconhece a necessidade de investimento na Atenção Primária à Saúde para desafogar o sistema de urgência e emergência, tem a noção de prevenção aos agravos. Entretanto a visão do investimento na Atenção Básica constitui a alocação de especialistas para atenderem nas Unidades Básicas de Saúde. Na nossa observação há realmente um afastamento entre o Conselho Municipal de Saúde e a gestão municipal, evidenciada pela dificuldade de acesso dos conselheiros à informações necessárias para que executem as tarefas esperadas.

QUAL A FORMA DE INGRESSO NO CONSELHO? Bom, eu já estou aqui no conselho há 10 anos, já conheço todo mundo aqui, quando a pessoa chega, eu já sei o que ela quer. Eu não fui eleito, eu fui indicado pelo bairro. Porque aqui, quando alguém quer ser conselheiro, então a sua entidade vai encaminhar você para o conselho, e a gente vai levar para mesa diretora, se tiver vaga é aceito. Mas se não tiver vaga, tem que aguardar, porque não pode desrespeitar a paridade. Nosso regimento também tem algumas regras para aceitar ou excluir algum conselheiro. VOCÊ RECEBEU ALGUM TREINAMENTO PARA SER CONSELHEIRO? Sim, recebemos capacitação, feita pelo Estado. Não são todos os conselheiros que vão, nós temos essa dificuldade quanto a isso aqui no conselho. COMO

CONFERÊNCIA DE SAÚDE QUE ACONTECERÁ NESTE ANO? Então, estamos trabalhando a todo vapor, e este ano vamos criar uma comissão para acompanhar os resultados e o processo de implantação de todas as pautas da conferência e tudo que foi decidido lá. Porque nos outros anos em que eu participei, nós decidimos as coisas, mas ficava ali, não ia pra frente, porque não tinha ninguém para acompanhar o que ficou acordado e votado na conferência. VOCÊS ESTÃO VIVENCIANDO A

afirmam não se sentirem capacitados para executar a função prevista em lei do controle de finanças do município. O relatório financeiro está atrasado e foi sugerido uma reunião extraordinária para discutir o relatório. Foi colocado a necessidade de investir na atenção primária (colocar especialistas no posto de saúde) e orientar a população que continua procurando a sala de estabilização (atendimento de emergência e urgência) para consulta médica. A Secretaria de Saúde está com poucos funcionários e teve que desviar uma profissional de função. A Secretária de Saúde estava presente na reunião e falou sobre o modelo hospitalocêntrico e a necessidade de sensibilizar a população em confiar no trabalho do clínico geral para a resolução de grande parte de seus problemas de saúde e que isso faz parte das responsabilidades da CMS.

Percebemos que não há participação espontânea dos cidadãos, como representantes de conselhos locais, líderes de comunidades e associações, apesar do convite ser feito via rádio e carro de som. Por outro lado, o conselho é procurado por cidadãos para resolução de problemas individuais e, segundo a secretária de saúde, esses problemas são atendidos caso a caso. Não há, portanto, um estudo para identificar necessidades gerais da comunidade e esta não se organiza também neste sentido. A não participação popular é evidenciada também pelo fato de não haver candidatos a novos conselheiros para a próxima gestão e o quadro atual não poder ser reconduzido novamente. Há uma confusão também de ideologias com relação ao que o SUS preconiza (Atenção Básica) e o que o Conselho Municipal de Saúde e a população parecem desejar (especialistas em todos os níveis de atenção). Os conselheiros parecem não se sentir aptos para realizar relatórios, pelo menos de finanças. O Conselho foca sua atividade na vigilância de regras e normas aplicadas à gestão de saúde do município. Nesse contexto, resgatamos Paulo Freire sobre a educação, e aqui extrapolamos para a educação em saúde. Ele sugere uma educação para decisão, para uma responsabilidade social e política. Educação que colocasse o indivíduo em diálogo sempre com o outro, através de uma visão crítica e não apenas passiva. Acreditamos que este é o caminho para transformação da realidade dos conselhos de saúde e da participação popular no Brasil.

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enata da Rocha Lopes, Enfermeira e atual secretária do Conselho Municipal de Saúde de Matias Barbosa fala sobre o planejamento da 15º Conferência Nacional de Saúde no âmbito municipal. QUAL A SUA FUNÇÃO NO CONSELHO? Eu sou secretária do conselho eleita pela plenária, porque como que funciona assim o básico do conselho, você tem o presidente, vice – presidente e secretário, então assim, é como se fosse na câmara dos vereadores também assim. Aí eu sou secretária, secretária voluntária, porque todo cargo dentro do conselho é voluntário, e como eu sou voluntária, eu trabalho de acordo com a minha disponibilidade, geralmente eu venho na parte da manhã aqui dar uma ajuda. Venho as reuniões, fico responsável pela confecção das atas, e ajudar nas demandas que forem surgindo, eu venho ajudar porque é muita coisa e a funcionária daqui não consegue sozinha, e tem coisa que só quem vem na reunião, quem sabe do que está acontecendo, consegue resolver. Eu represento a pastoral da criança aqui no conselho. A pastoral da criança ocupa a cadeira de usuário. Eu entrei em abril como secretária e agora vai fazer um ano que eu estou aqui. Eu entrei aqui porque a funcionária estava de férias e a prefeitura não tinha ninguém para substituir, então eu vim dar uma ajuda para o Sr. Siqueira né. Aí ele falou: "vamos fazer o negócio direito". Então eu fui para plenária, fui votada e fui eleita, tudo consta em ata, tudo documentado. Porque aqui é tudo regulamentado, tudo consta em ata. O QUE TE MOTIVA A FAZER ESTE TRABALHO? Aqui no conselho, já é meu segundo mandato como representante da Pastoral da Criança. Eu já trabalho na Pastoral da Criança há 9 anos, sempre tive motivação pela parte do trabalho voluntário, por acreditar que a construção da política pública. Não adianta você ficar

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esperando tudo do governo.... Como eu já fazia parte da Pastoral da Criança e como a Pastoral da Criança estava sem cadeira aqui... então..... A minha motivação mesmo é ajudar na construção da política pública e não ficar só reclamando. O

15º CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE REPRESENTA PARA O CONSELHO LOCAL DE SAÚDE DE MATIAS BARBOSA? A lei 8.142, ela já fala que as conferências municipais e estaduais devem acontecer a cada 2 anos e a nível nacional, de 4 em 4 anos. E este ano, vamos ter a Conferência Nacional. E aí acontece as 3 etapas né. Municipal, Estadual e Federal. Aqui vai acontecer no dia 24 de abril, com abertura solene na câmara e dia 25 na escola.

QUE A

A conferência é o momento em que você convoca a população para discutir as questões de saúde. É a educação em saúde, é o financiamento. Tem que bater em cima da tecla, para ver se você consegue mobilizar a população para vir a lutar junto com a gente, porque se não a gente fica na mesma história de sempre, cinco ou seis pessoas 'batendo cabeça' com a gestão. E isso não adianta. O fato de você não poder estar ali todos os dias não quer dizer que você não está envolvida com o conselho. E isso é muito difícil. A participação das pessoas. A gente convida, mas ninguém vem. Não é querer fazer milagre, porque aqui a gente sabe que não vai conseguir isso. Mas cada passo que a gente dá, a gente sabe que vai trazer resultados. Se as pessoas não tivessem lutado na 8º Conferência de Saúde há 30 anos atrás, a gente teria hoje, o SUS? Estamos vendo o resultado daquilo agora. É um processo de construção. Não é nada imediatista. Não é uma coisa do dia para o outro, é uma construção.


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anguardismo e desejo de reconhecimento: foi o que Flora Tristan demonstrou em seus 41 breves anos de vida, militância e obra. De fato, esta menina nascida em Paris no dia 7 de Abril de 1803, era filha ilegítima do casamento não reconhecido de um militar da aristocracia espanhola, oriundo do Peru e uma mãe burguesa refugiada na Espanha após a Revolução Francesa. Quando da morte do pai, seus sonhos foram desfeitos pelas dificuldades de toda ordem. Foi talvez sua natureza orgulhosa que a levou a reagir contra um marido possessivo e encontrar a força necessária para lutar sozinha a fim de prover às necessidades de sua família, não sem deixar de ser, enquanto mulher separada, vítima do preconceito. Este fato, seguramente, marcou sua vida, a ponto de despertar­lhe um sentimento de não pertencimento social profundo e intenso. Entre 1833 e 1834, ela realiza uma viagem histórica ao Peru, em busca da família paterna, que transformou sua vida. Flora Tristan refletiu as grandes transformações da sociedade francesa do início do século 19, na qual a mulher não tinha um lugar bem definido. A primeira grande perturbação ocorrida em sua vida deu­se quando Napoleão desapropriou os bens estrangeiros, decisão que deixou sua mãe viúva no mais completo abandono social. A segunda, deve­se à realidade das leis, que produziu uma situação inesperada e difícil para ela, mulher separada. Apesar dos ideais feministas circularem na França, foi somente após a Revolução Francesa, a partir da mudança nos direitos políticos dos homens, que as mulheres começam a exigi­los para elas mesmas. Levantaram a bandeira da liberdade contra o poder monárquico ao lado dos homens e começaram a participar de todas as transformações de seu tempo. Reivindicavam para si o papel de cidadãs numa sociedade pós revolucionária e clamavam por mudanças. Os grandes teóricos antes da Revolução Francesa demonstravam ainda preconceitos contra as mulheres. Rousseau (1712­1778) declarava que eram feitas “para agradar ao homem”; Voltaire (1694­ 1778), em seu Dicionário Filosófico, afirma que as mulheres eram geralmente inferiores ao homem pelo corpo e o espírito. Acrescenta ainda que era necessário aperfeiçoar este último. Mais tarde, Napoleão declararia ao Conselho de Estado: “se existe uma coisa definitivamente anti francesa, é que elas possam fazer aquilo que desejarem.” Em 1790, quando Condorcet reivindica “a Admissão da Mulher ao direito de cidade”, parece que o temor dos homens era que, com uma participação política mais acentuada, a mulher abandonasse o seu habitat natural, “o lar”, e seu papel histórico, o de “esposa e mãe”, uma visão do papel feminino que, por muito tempo, fez parte da mentalidade europeia, apesar das pressões dos revolucionários. De fato, as leis francesas sobre o casamento, mais flexíveis pouco depois da Revolução, ficaram rígidas no início do século 19. O divórcio havia sido introduzido em 1792, mas o Império limitou­o em 1803 e, sob pressão da Igreja Católica, o governo da Restauração o aboliu em 1816. Apenas no final do século ele seria restabelecido. Assim, a mulher casada era condenada pela lei e pela sociedade – juridica e eticamente – à desapropriação, já que os homens geriam todos os bens da família e podiam desfalcar suas mulheres impunemente. A partir de 1790, Olympe de Gouges (1748­1793) fez menção a um direito à tribuna para todas aquelas que tivessem contribuído para com a Revolução, da mesma maneira que o atribuído aos homens. Porém, no início do século 19, a sociedade francesa ainda estava longe de reconhecer esse direito, como demonstram as medidas repressivas tomadas pelo governo para impedir que as mulheres se unissem a fim de discutir suas opiniões ou manifestar­se legalmente_ o controle e fechamento de todos os clubes femininos onde as mulheres levantavam suas vozes, em uníssono, para reclamar seus direitos, alguns reformadores vão trazer uma nova esperança. Tal foi o caso dos sansimonistas e fourieristas que contribuíram para a formação dos ideais sociais de Flora Tristan. As teorias socialistas e utopistas desses pensadores denunciavam um sistema que massacrava as famílias. Entre eles figurava o Conde de Saint­ Simon (1760­1825) e mais tarde, seu discípulo Prosper Enfantin (1796­1864), transformou a metafísica e o feminismo numa “religião racional”. A metafísica era, na nova concepção de Deus, espírito e matéria ao mesmo tempo, inteligência e força, sabedoria e beleza. O feminismo estava ligado a este conceito que

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tanto sensibilizou Flora. A mulher era vista como matéria e espírito: a carne, o amor, “a vida na sua unidade”. Através dela que os homens seriam libertados. Devia ser liberada do domínio masculino e, por conseguinte, do casamento – para vincular­se a eles livremente. É com serenidade que abandona o Peru para um novo combate na arena da vida, em sua França natal, republicana, desafio que enfrenta solitária e corajosamente. O depois será o tempo de poder realizar suas ambições, por tanto tempo contidas, e que as experiências de viagem a tinham permitido definir: abraçar uma causa através da escrita. De volta à França, tudo mudara em sua vida. Durante a viagem, ela capta o sofrimento além do seu: na vida rude dos marinheiros, no olhar dos seres dominados pela escravidão e das vítimas da guerra, no coração das mulheres que, na outra extremidade do mundo, se encontravam também submissas a um casamento e às convenções de uma sociedade patriarcal que as oprimia. Testemunha da miséria humana entra em comunhão com outros sofredores. Tomará consciência de que as injustiças que lhes são impostas são o resultado da violência da sociedade baseada no lucro. Na França republicana, por toda a parte havia um confronto de ideologias, a revolta inscrevia­se numa busca romântica pela igualdade pessoal e coletiva. O empobrecimento da população era uma nova realidade, fruto do crescimento demográfico e o aumento da massa operária. Após o malogro da democracia, em julho de 1830, apreensões sociais de toda espécie começaram a fazer parte das preocupações gerais e os protestos dos trabalhadores eram violentamente reprimidos. No entanto, se os idealistas queriam conscientemente uma mudança social, os prejuízos da Revolução Industrial vinham opor­se a esses ideais. As leis repressivas, votadas entre 1834 e 1835, proibiam a formação de associações e limitavam o poder da imprensa. Flora Tristan busca contato com todos os que, por seus pensamentos e ações, lhe parecem susceptíveis de trazer uma solução aos problemas sociais. Flora prosseguirá a busca por sua cidadania, apresentando duas petições à Câmara dos Deputados: a possibilidade do divórcio e a abolição da pena de morte, de onde salienta a inutilidade desta punição numa sociedade onde todas as injustiças contra o povo o induz aos crimes mais diversos. Este compromisso será total e tornar­se­á o combate de sua vida. Os personagens de seus livros são porta­vozes de suas aspirações sociais. Peregrina incansável, volta à Inglaterra em 1836 e 1839. Durante o ano que segue esta última viagem. Seus passeios londrinos marcam uma mudança decisiva nas ações que inicia. Após haver testemunhado a vida dos escravos peruanos, descobre na classe operária londrina outro universo de explorados. Em 1837, conhece Robert Owen (1771­1858), pioneiro do socialismo inglês, que procurava remediar os males da sociedade industrial pela organização da classe operária. O interesse pela terrível situação do mundo operário não implicará no recrudescimento da luta pelas mulheres que sofrem uma dupla exploração: pelo sexo e a condição social. O momento era chegado, segundo ela, de lutar por todo o proletariado, no qual as mulheres representavam “o proletário do proletário”. E expandirá suas relações com os escritores do mundo do trabalho a fim de divulgar à classe operária francesa informações sobre a situação dos trabalhadores ingleses, levando­a a refletir sobre sua própria condição. Armada de sua bagagem de vivências e viagens, Flora investe­se na defesa dos trabalhadores enfrentando a ordem burguesa e propunha uma coesão estreita da classe operária mundial. Dizia: “Na França todos são franceses, inclusive nas províncias. Está próximo o dia tão desejado em que seremos todos homens, irmãos, sem nos diferenciarmos pelos nomes de ingleses, alemães, franceses etc [...] O essencial é fazer com que as crianças compreendam que o nosso globo é um grande corpo humanitário... e que odiandoou fazendo o mal a seus irmãos em humanidade, é a eles mesmos que odeiam e a quem fazem o mal. É necessário fixar nos espíritos esta dupla noção, esta individualidade do grande corpo humanitário e esta solidariedade entre as nações e os indivíduos”. Deixa Paris em direção à Auxerre no dia 12 de abril de 1844. Será a primeira etapa de seu “Tour de France” onde tenta um trabalho verbal de sensibilização até o esgotamento físico, que culmina com sua morte, no mesmo ano.


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violência é uma manifestação extrema que denota problemas sociais e atinge o desde o indivíduo, o núcleo social que é a família até a sociedade como um todo. Temos na história da humanidade registros do terror da violência vinculados aos mais diversos objetivos. Tomaremos como referência a Revolução Francesa, porque foi caracterizada por um sangrento processo de reversão do status quo social, conduzida pela massa de cidadãos insatisfeitos com a situação de miséria e iniquidade insustentáveis, organizada por pensadores iluministas e alimentada e direcionada pela nascente imprensa escrita. Outros episódios se repetem ao longo da história, desde os primórdios ao Século XXI, deixando marcas de dor, sofrimento e traumas. Mais recentemente observamos uma nova forma de violência que é chamada de performática por J. Juris. Como exemplo, o grupo de comportamento disperso, sem liderança e sem objetivo final definido, acoplando­se a movimentos e reivindicações sociais das mais diversas e sem fronteiras, denominado Black Bloc. Os Black Blocs, grupo de ativismo que virou notícia em 2013, tem sua origem em 1969, iniciando com protestos contra a Guerra do Vietnã e teve a sua estética e marca definitiva adotada consolidada na década de 1980, em que alemães protestaram contra a Guerra Fria e o programa militar dos países desenvolvidos, durante a visita do presidente americano Reagan a Berlim. Na época, o uso da roupa preta, máscara e manifestação em bloco aliaram­se ao ataque a símbolos do capitalismo. A ação desse grupo ocorreu também em 1999, nos Estados Unidos, durante Conferência da Organização Mundial do Comércio. Pode­se dizer que sua ação é coletiva centrada no indivíduo e mediada pelas redes sociais da internet.

vencido para que assumamos o papel de homens civilizados e exerçamos a liberdade de expressão e capacidade de comunicação para um bem maior, sem utilizar formas de protestos que causam tantos prejuízos pessoais e sociais como efeito colateral. Sabemos que o diálogo é libertador e através dele há que se encontrar a ação concreta e transformadora da sociedade. Como diz Hannah Arendt: “(...)o perigo da violência, mesmo que esta se movimente dentro de uma estrutura não extremista de objetivos a curto prazo será sempre que os meios poderão dominar os fins. (...)A prática da violência, como toda ação, transforma o mundo, mas a transformação mais provável é em um mundo mais violento”.

NUNES, Everardo Duarte. Violência em tempo real. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 11, supl. p. 1154­1155, 2006. CARREIRO, Rodrigo. Black Bloc em ação: reforço de identidade e outras dinâmicas de ativismo no Facebook. Liinc. Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 241­257, 2014. GOHN, Maria da Glória. Demandas populares urbanas no Brasil: formas educativas da população. R. bras. Est. pedag., Brasília, v.7­4, p.51 ­72, 1993;

O que chama nossa atenção é a violência sendo usada como fim em si mesmo, como reafirmação de identidade de um grupo, mas com pouco ou nenhum objetivo coletivo. Em tempos em que a comunicação é facilitada e alcança a grande maioria, os meios de comunicação, no caso redes sociais ­ são usados para a orientação do método – violência – e nenhuma discussão do conteúdo, das razões, da motivação. Nosso país se ressente da violência intensa da repressão a revoltas e manifestações, como Revolta de Canudos, das Vacinas e manifestações contra a ditadura militar. Nunes cita que o psiquiatra Jair Mari opina que “a revitalização do país passa também pela recuperação daqueles que foram marcados pela violência”. O Brasil acumula traumas históricos de violência e convive diariamente com altas taxas de homicídios, sequestros, enchentes e acidentes que deixam marcas. Entender o estresse pós­traumático (TEPT) seria um dos caminhos para, no plano psicológico e pessoal, enfrentar os efeitos da violência. E no plano da sociedade, das instituições, que medidas preventivas devem ser tomadas? Existe ainda um longo caminho a ser

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MF: Ela influenciou a política, a economia, a sociedade (relações sociais), a luta de classes. Antes da Revolução Francesa a sociedade era estamental e a grande maioria da população, formada por camponeses pobres, era explorada, pagava muitos impostos e não tinha força para se manifestar. Existiam diferenças de classes exorbitantes e só através do apoio da burguesia foi possível uma nova caracterização desse modelo, isto é, a possibilidade (direito) de poder intervir, questionar, lutar. S&S: Atualmente, o Brasil passa por um momento conturbado, que tem gerado muitas manifestações populares nas ruas. Em sua opinião, você vê alguma ligação entre a Revolução Francesa e essas manifestações? MF: Na verdade, esses movimentos representam uma luta pelos direitos dos cidadãos que teve início com a Revolução Francesa, em 1789, e continuam sendo resgatados pelas sociedades atuais (direito ao voto, direito à liberdade de expressão, direito de se manifestar publicamente). Podemos ver esse discurso nos livros de Maria Raquel Apolinário (2010) e Alfredo Boulos Júnior (2012), onde os mesmo realçam que essas manifestações refletem um pensamento democrático. Mas infelizmente, apesar do número significativo de participantes nesses movimentos, a maioria não tem conhecimento do fato histórico, mostrando um completo desconhecimento da causa, do significado desse direito, dessa busca, refletindo, assim, uma participação pouco efetiva.

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ertamente a Revolução Francesa não se trata de um evento isolado, retido às redondezas da França do século XVIII. Ela faz parte de um quadro de revoluções que demonstraram o descontentamento daqueles que se consideraram excluídos e injustiçados. Os reflexos da Revolução Francesa ainda hoje são visíveis na sociedade. No Brasil a onda de insatisfação política vem tomando uma grande repercussão na mídia, ganhando maior incentivo devido às redes sociais. Para discorrer sobre o tema convidamos a historiadora Maria de Fátima Franco Gonçalves, 51 anos, professora da rede pública estadual há 26 anos. Maria de Fátima dá aulas no ensino fundamental e médio e se considera uma pessoa politizada, sempre a par das questões relacionadas à vida pública, não só de seu país, mas também do mundo todo. *** S&S: Sabe­se que cada professor passa pela definição de sua profissão devido a inúmeras situações: referência a outro professor; influência dos pais; gosto pela matéria. Sendo assim, porque você decidiu cursar História? O que mais te inspirou a realizar essa escolha? MF: Desde o segundo grau (atualmente denominado como ensino médio) a área das ciências sociais sempre me atraiu. Tive aulas com uma professora que me fez gostar do conteúdo de História, abriu meus os olhos para as novas descobertas e despertou meu interesse em sempre estudar e buscar as respostas. S&S: Como você enxerga o tema Revolução Francesa na formação de seus alunos? Em que ela pode ser considerada importante? MF: A Revolução Francesa é uma matéria de grande importância na formação dos alunos. Para eles é um marco importante na conscientização da igualdade entre as classes sociais, no espírito de democracia, no respeito ao ser humano e ao cidadão. S&S: Sabe­se que no Brasil tanto a educação quanto a saúde não foram pensadas para elas mesmas. Logo, você vê a Revolução Francesa como um símbolo que pode ser extrapolado além da educação? Você vê alguma relação, por exemplo, na saúde? MF: Sim, com certeza. Através da Revolução Francesa podemos ver um ideal, a luta das pessoas por melhores salários, impulsionando o desejo por uma vida digna. O lema da revolução resolve o dilema em todas as profissões, nas diversas áreas, incluindo a saúde. Desse modo, as pessoas podem lutar por uma saúde igualitária, mais justa, que atenda a todos e também seja direcionada para aqueles que mais necessitam, afinal, saúde é um dos direitos do cidadão, assim como segurança, educação e saneamento básico.

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S&S: Baseando no seu ponto de vista, cite exemplos onde a Revolução Francesa tem suas influências.

Apoliário, Maria Raquel. Projeto Araribá. História. 8º Ano. São Paulo. Editora Moderna. 3 ed. 2010. Boulos Júnior, Alfredo. História: Sociedade e cidadania. 8º Ano. São Paulo. Editora FTD. 2ª Ed. 2012.


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colonização brasileira foi marcada pelo grande controle e dominação dos Portugueses sob a população indígena. Desde a chegada, os primeiros colonizadores desejavam não somente se apropriar das terras, como também queriam se apoderar dos próprios indígenas com o objetivo de transformá­los em escravos. Além disso, os missionários portugueses tinham por interesse convertê­los ao cristianismo e ao mesmo tempo fazê­los adotar forçadamente os costumes dos “civilizados”, incluindo as práticas de higiene, vestimenta e conseqüentemente “saúde”. Como este foi um processo de decisão vertical, que atendia somente aos interesses dos colonizadores, em diversas situações, houve uma batalha entre as partes. A herança do controle da população por um governo com decisões verticais e a intervenção estatal nos serviços de saúde data da época colonial, passando pelo período republicando e presente até os dias atuais. Mas, as relações entre Estado e sociedade, quanto no que se refere à utilização do conhecimento científico como um dos pilares de sustentação de ações governamentais no campo social, sempre ocorreu de forma equívoca. Pois a etapa de conscientização e sensibilização da população para o problema enfrentado, nem sempre era seguida, e assim, as intervenções estatais no campo da saúde nem sempre foram bem aceitas pela população

A morte do índio e a presença de um jesuíta, supostamente Pe. Anchieta: culpa, confissão de um pecado, a constatação de um crime perpetrado pelo homem branco em nome do seu projeto civilizador?

No século 20, a saúde brasileira se encontrava em condições precárias e, muitos pesquisadores e estudiosos relacionavam a pobreza e a Trecho de análise sobre o quadro, disponível em http://bit.ly/1CqYSW1 miséria como sendo as grandes causas das doenças. O Brasil, devido a palavras, só com ações”, aconselhou o professor João Lopes. esses problemas, estava necessitando urgentemente de intervenção do governo no setor sanitário, posto que saúde e desenvolvimento econômico são ações Para que os portugueses conseguissem manter o controle sobre os índios, foi paralelas, uma depende da outra. Neste contexto, o médico­sanitarista Oswaldo necessário uma mínima “negociação”, por exemplo, o uso do escambo no início Cruz foi convocado pelo governo brasileiro para traçar um plano de ação para do processo de colonização, que consistia na troca de mercadorias sem utilizar erradicação das várias doenças que estavam assolando a população brasileira, e moedas, mercadorias estas que tinham bem pouco valor para os navegadores, como no caso da troca, de madeiras nobres por facas e tesouras. Para a uma das ações propostas foi obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. erradicação da varíola e o sucesso da vacinação, foi necessário a conscientização O povo brasileiro se mostrou muito arredio ao processo de vacinação, pois a do povo sobre a importância e função dessa “nova” tecnologia. No caso da população não era esclarecida sobre a importância dessa intervenção. Foi um dengue, doença endêmica no país atualmente, é necessário sensibilizar a período muito tumultuado e de grande violência por parte das autoridades população e chamar a atenção para magnitude do problema. Arrombar casas em policiais. Como conseqüência desses atos, foi deflagrada a Revolta da Vacina e março de 2015 não assegura que em 2016, os proprietários não deixarão água inúmeras foram às manifestações contrárias as medidas impostas pelo governo, acumular nos recipientes no próximo verão. dando origem a diversos movimentos de Compreender as relações de poder na sociedade, resgatar o princípio de oposição. solidariedade, com o reconhecimento do outro como alguém capaz de reclamar, Essa ideia de controle social é conceituada pelo aceitar ou negar a assistência, inserida em uma rede de vínculos em que seja filósofo Michael Foucault por biopoder e conhecida como igual em orgulho e dignidade e investir na educação do biopolítica. O biopoder situa­se no plano das homem pautada na compreensão da sua realidade, levantando hipóteses sobre o relações entre o estado e os sujeitos, onde o desafio dessa realidade é um caminho para transformá­la. estado emite normas e regulamentos que modelam a vida, exercendo controle das formas de viver e de morrer; negando, desta forma, a subjetividade e o direito do sujeito tomar decisões sobre si. Já a biopolítica investe no corpo, tendo como referência estudos de massa, elaborados na perspectiva de se alcançar um equilíbrio e uma regulação social. Em março de 2015, o número de casos de dengue no município de Rio Claro (SP) chegou a 5.862 nesta sexta­feira (20). Em apenas uma semana, a cidade confirmou 2.749 casos, de acordo com a Vigilância Epidemiológica. Em 15 dias, a cidade notificou proprietários de 38 residências por estarem fechadas e multou seis por risco de dengue. Nesta sexta­feira (20), os agentes de saúde entraram em algumas casas com a ajuda de um chaveiro, os cadeados no portão das residências não impediram que a equipe da vigilância epidemiológica vistoriasse a casa que estava fechada. A justificativa para o arrombamento da casa sem o consentimento do proprietário foi a frase “Epidemia não se resolve com

Reportagem "Em busca de criadouros, agentes de Rio Claro entram em casas fechadas". http://glo.bo/1PlKvMq CAPONI, Sandra. Da Compaixão à Solidariedade: uma genalogia da assistência médica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 13ºed. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1982 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26º Ed.São Paulo. Companhia das Letras. 1995

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Em 2008, a estudante de direito Clarice Zeitel Viana (UFRJ) foi agraciada pelo prêmio da Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura, pela seu texto submetido ao concurso Pátria Madrasta Vil, que reproduzimos abaixo.

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É disso que o Brasil precisa: mudanças estruturais, revolucionárias, que quebrem esse sistema­esquema social montado; mudanças que não sejam hipócritas, mudanças que transformem! A mudança que nada muda é só mais uma contradição. Os governantes (às vezes) dão uns peixinhos, mas não ensinam a pescar. E a educação libertadora entra aí. O povo está tão paralisado pela igno

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nde já se viu tanto excesso de falta? Abundância de inexistência... Exagero de escassez... Contraditórios?? Então aí está! O novo nome do nosso país! Não pode haver sinônimo melhor para BRASIL.

rância que não sabe a que tem direito. Não aprendeu o que é ser cidadão. Porém, ainda nos falta um fator fundamental para o alcance da igualdade: nossa participação efetiva; as mudanças dentro do corpo burocrático do Estado não modificam a estrutura. As classes média e alta – tão confortavelmente situadas na pirâmide social – terão que fazer mais do que reclamar (o que só serve mesmo para aliviar nossa culpa)... Mas estão elas preparadas para isso?

Porque o Brasil nada mais é do que o excesso de falta de caráter, a abundância de inexistência de solidariedade, o exagero de escassez de responsabilidade. O Brasil nada mais é do que uma combinação mal engendrada – e friamente sistematizada – de contradições. Há quem diga que "dos filhos deste solo és mãe gentil.", mas eu digo que não é gentil e, muito menos, mãe. Pela definição que eu conheço de MÃE, o Brasil está mais para madrasta vil. A minha mãe não "tapa o sol com a peneira". Não me daria, por exemplo, um lugar na universidade sem ter­me dado uma bela formação básica. E mesmo há 200 anos atrás não me aboliria da escravidão se soubesse que me restaria a liberdade apenas para morrer de fome. Porque a minha mãe não iria querer me enganar, iludir. Ela me daria um verdadeiro PACote que fosse efetivo na resolução do problema, e que contivesse educação + liberdade + igualdade. Ela sabe que de nada me adianta ter educação pela metade, ou tê­la aprisionada pela falta de oportunidade, pela falta de escolha, acorrentada pela minha voz­nada­ativa. A minha mãe sabe que eu só vou crescer se a minha educação gerar liberdade e esta, por fim, igualdade. Uma segue a outra... Sem nenhuma contradição!

Eu acredito profundamente que só uma revolução estrutural, feita de dentro pra fora e que não exclua nada nem ninguém de seus efeitos, possa acabar com a pobreza e desigualdade no Brasil. Afinal, de que serve um governo que não administra? De que serve uma mãe que não afaga? E, finalmente, de que serve um Homem que não se posiciona? Talvez o sentido de nossa própria existência esteja ligado, justamente, a um posicionamento perante o mundo como um todo. Sem egoísmo. Cada um por todos... Algumas perguntas, quando auto­indagadas, se tornam elucidativas. Pergunte­se: quero ser pobre no Brasil? Filho de uma mãe gentil ou de uma madrasta vil? Ser tratado como cidadão ou excluído? Como gente... Ou como bicho?

1. A lei que proibiu o tráfico de escravos no Brasil. 2. Uma das formas de trabalho escravo brasileiro em que as mulheres eram inseridas. 3. Um bairro da cidade de Juiz de Fora que receberam os escravos libertos. 4. Um dos princípio do SUS que nortea a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra? 5. Um dos determinantes sociais das condições de saúde da população brasileira. 6. No Brasil, a doença de maior frequência na população negra e que representa uma herança genética do continente africano. 7. Local de refúgio dos escravos africanos, atualmente havendo comunidades remanescentes. 8. Manifestação Artística típica da cultura negra. 9. Durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida no ano de 1986, houveram o engajamento de vários movimentos sociais, entre eles, o movimento sanitarista e ???.

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10. Embarcação utilizada para o comércio de escravos africanos. Respostas: vide página 13.


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proposta “Cidades Saudáveis” é parte integrante do que é denominado “Nova Saúde Pública”, uma consequência do movimento de Promoção da Saúde. Trata­se de um processo que se inicia mediante o Relatório Lalonde (1974), e foi formulado na Carta de Ottawa, de 1986 (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1986); destacando­se que o Canadá foi o primeiro país a utilizar a estratégia das Cidades Saudáveis, bem como a difusão desta como um modelo. Canadá realizou estudos que demonstraram que grandes gastos em saúde não produzem necessariamente uma população mais saudável. O conceito não é novo e pretende reviver o impacto que o movimento da saúde das cidades teve sobre a ordem governativa urbana no Século XIX, com os trabalhos de Chadwick, resultantes da Comissão de Saúde das Cidades (ROSEN, 1980). Modernamente, ressurgiu em um seminário sobre “Toronto Saudável 2000”, realizado em 1984, parte integrante de uma Conferência sobre Políticas Públicas Saudáveis.

criminalidade do país, em especial na capital, Bogotá. Na Costa Rica, foram alcançados resultados positivos em relação à limpeza das cidades e aumento de coleta de lixo reciclável.

Transformada num movimento mundial, a proposta chegou à América Latina na década seguinte com o nome de Municípios e Comunidades Saudáveis, por meio da organização Panamericana de Saúde (Opas), que integra a OMS. Embora ainda não exista nenhuma metodologia de avaliação com indicadores das mudanças ocorridas nas cidades após a aplicação das estratégias propostas pelo movimento, os resultados podem ser percebidos em cada região e as avaliações, por ora, são apenas descritivas.

Assim, fundamentados na teoria da produção social (MATUS, 1987), a construção da cidade saudável pode ser olhada como expressão de um processo que vem buscando uma nova direcionalidade que rompe com a setorização fragmentada e internaliza a situação em sua integralidade. Esta abordagem rompe com o conceito restrito de “produção econômica” e introduz o de “produção social”, que articula as dimensões: política, organizativa, ideológico cultural e cognitiva, no qual a saúde está em permanente transformação. E fica o desafio colocado por Márcia: “para melhorar a qualidade de vida das cidades, o setor privado, o terceiro setor e a população devem trabalhar em conjunto, apoiadas por um gestor municipal.”

Para a OMS, Cidade Saudável é aquela que articula um grande conjunto de seus atores sociais, ou seja, governo, partidos políticos, instituições públicas e privadas, sindicatos, associações, ONGs, famílias e indivíduos, objetivando a orientação de suas ações direcionadas à produção coletiva da saúde, que visa à construção de uma rede de solidariedade com o objetivo comum de melhorar a qualidade de vida da população da cidade. Assim, um município se torna saudável quando seus líderes políticos, organizações locais e cidadãos comprometem­se e iniciam o processo de melhorar contínua e progressivamente as condições de saúde e a qualidade de vida dos habitantes do local.

No Brasil, o movimento Cidades Saudáveis é normalmente conduzida por um grupo de pesquisadores ligados a uma universidade ou instituto de pesquisa que, a partir do conhecimento da ideia da OMS, desenvolvem um acompanhamento metodológico de ações públicas que visam melhorar a qualidade de vida de uma determinada comunidade, cidade ou rede de cidades. Atualmente, o movimento já atinge as regiões Sul, Sudeste e Nordeste do país. Entre eles estão: Sobral e Crateús, no Ceará, em parceria com a Escola de Saúde Pública do Ceará, em Fortaleza (ESP­CE); alguns municípios mineiros ribeirinhos do São Francisco, sob consultoria do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva e Nutrição daUniversidade Federal de Minas Gerais (NESCON / UFMG) (CIÊNCIA E CULTURA, 2004); no Rio de Janeiro, no bairro de Manguinhos e entorno, em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ESNSP/ FIOCRUZ), entre outros. Segundo a presidente do Centro de Estudos, Pesquisas e Documentação em Cidades e Municípios Saudáveis (Cepedoc), Márcia Westphal, “É preciso melhorar a administração, que é desintegrada, das cidades no Brasil, além de estimular a participação popular nas ações públicas, via todas as instituições representativas”

O conceito “saudável” varia em cada cidade e depende das condições sociais, econômicas e até climáticas da região. No Peru, por exemplo, algumas cidades investiram na formação de um comitê de liderança para lidar com os efeitos causados pelo fenômeno El Niño, uma constante no país. Já a Colômbia tem investido em políticas públicas, como campanhas pela redução do consumo de álcool e contra o porte de armas, visando diminuir os altos índices de

CORDEIRO, Joselma Cavalcanti. A promoção da saúde e a estratégia de cidades saudáveis: um estudo de caso em Recife­Pernambuco. Diss. 2008. RIGHETTI, Sabine. Condições ambientais e bem estar social são fatores que influenciam saúde da população. Ciência e Cultura 56.2 (2004): 06­07. GLÓRIA, G.M. Demandas Populares Urbanas no Brasil: Formas Educativas da População. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 74, n. 176, 1993.

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faz­se necessário considerar as particularidades históricas brasileiras. Dentre estas, destaco: ­ não rompimento com as formas econômico­sociais, que tem como exemplo os latifúndios, não sendo liquidados, apenas refuncionalizados. Ou seja, não houve transformações estruturais; ­ exclusão das forças populares dos processos de decisão política. Dessa forma, a socialização da política, na vida brasileira, sempre foi um processo inacabado; ­ a característica do Estado brasileiro, desde 1930, em reprimir os agentes que expressavam os direitos das classes subalternas. Outra característica determinantes na formação social e política da sociedade brasileira refere­se ao desenvolvimento tardio do capitalismo, que o torna excludente e faz com que os processos decisórios ocorram “pelo auto”. Sendo assim, a ditatura militar no Brasil constituiu­se em um golpe contra a democracia.

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autor Luis Werneck Vianna em sua obra intitulada “A Revolução Passiva: iberismo e americanismo no Brasil”, de 1997, traz o conceito gramsciano de revolução passiva para o contexto brasileiro. O termo refere­se a uma modernização conservadora, sendo transformações que consolidam e atualizam o que já existe, em que o novo não cancela a antiga ordem social.

No campo das políticas públicas e destas, destaco o campo da saúde, é necessário que a incorporação de conceitos e valores ocorra através de um processo “não passivo”. É válido ressaltar acerca do processo de construção do SUS, não sendo uma concessão “passiva” do Estado, mas realizado através de mobilização social e de luta da Classe Trabalhadora pela conquista do direito à saúde, sendo garantido pela Constituição Federal de 1988 como um direito universal e dever do Estado.

A análise da formação sócio­histórica brasileira, permite verificar que no Brasil nunca houve uma revolução de fato. Apesar disso, existem alguns momentos da história brasileira que foram assim denominados: “Revolução da Independência”, “Revolução de 1930” e “Revolução de 1964”. No primeiro caso, não houve de fato uma revolução, sendo a Independência uma iniciativa da Coroa Portuguesa. Um outro momento da história assim denominado, refere­ se à “Revolução de 1964”, sendo na verdade, um movimento político que objetivava a não ocorrência de uma revolução de fato. Correlacionando com os escritos de Vianna, o autor José Paulo Netto em Ditadura e Serviço Social (2011) denominou a “Revolução de 1964” como uma contra­ revolução preventiva, ocorrida em um contexto marcado por golpes de Estado – ocorridos em outros países da América Latina e para além, como foi o caso da Indonésia – e de alteração na divisão internacional capitalista do trabalho, sob a hegemonia norte­americana. Para entender o que foi esta contra­revolução preventiva,

VIANNA, Luis Werneck. A revolução passiva: iberanismo e americanismo no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Renan, 2004. PAULO NETTO, Jose. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós­64. 16 ed. São Paulo: Cortez, 2011.

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1. Eusébio de Queiroz.

6. Anemia Falciforme

2. Negras de tabuleiro.

7. Quilombos

3. Dom Bosco

8. Capoeira

4. Equidade

9. Movimento Social Negro

5. Desigualdade Racial

10. Navio Negreiro


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A

crença sobre manga e leite teve origem na escravidão. Os senhores de engenho , preocupados em diminuir o consumo de leite por parte dos escravos (quanto menor o consumo maior a sobra para comercialização) e conhecedores da grande quantidade de manga que os escravos consumiam devido à fartura dessa fruta, diziam que comer manga e tomar leite poderia até causar a morte. ''São crendices que vêm de Portugal'', explica o doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), Hernani Maia Costa ao site do Ministério Público Federal (http://www2.pgr.mpf.gov.br/). Daqueles tempos para cá, esse mito caiu no consenso popular e virou uma crença que permanece até os dias atuais.

Ingredientes ­ Polpa congelada de 1 ½ mangas espada ou palmer bem madura ­ 1 pacotinho de Chantily ­ 200 g de creme de leite ­ 1 colher (de sopa) de açúcar ­ 2 colheres (de sopa) de leite condensado Modo de preparo ­ Faça o chantily conforme instruções no pacote (bata o creme de leite em chantilly e depois acrescente o açúcar). ­ Bata a manga com o leite condensado, fica um purê super cremoso. ­ Misture tudo com uma espátula e coloque em potes para gelar. Dica: A quantidade de leite condensado é suficiente se as mangas estiverem bem maduras e doces, mas é melhor experimentar. Se você tiver creme de leite fresco: bata em chantilly e acrescente a polpa de manga batida com o leite condensado. Fonte: Comida & Receitas ­ http://bit.ly/1JaDMmb

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Todo camburão tem um pouco de navio negreiro O nó: Ato Humano Deliberado (Dílson Araújo) A introdução criminosa da doença vassoura­ de­bruxa nas plantações de cacau do sul da Bahia e o fracasso da intervenção do Estado brasileiro ocasionaram um desastre socioeconômico e ecológico sem precedentes na história, que inviabilizou mais de seiscentos mil hectares da cultura, destruindo as vidas e os sonhos de milhares de famílias de trabalhadores rurais, cacauicultores e comerciantes. As consequências da catástrofe ainda repercutem mesmo depois de passados mais de vinte anos, sem que os danos sejam reparados. O documentário aborda o fato histórico a partir dos relatos dos depoentes e do conteúdo de documentos oficiais, revelando uma realidade bem diferente daquela que por muito tempo vem alimentando o imaginário popular. Podemos identificar as consequências da inação do Estado e as consequência na sociedade. https://www.youtube.com/watch?v+_0mPiYocm­4 Ilha das Flores (Jorge Furtado)

(Marcelo Yuka e O Rappa) Tudo começou quando a gente conversava Naquela esquina alí De frente àquela praça Veio os homens E nos pararam Documento por favor Então a gente apresentou Mas eles não paravam Qual é negão? qual é negão? O que que tá pegando? Qual é negão? qual é negão? É mole de ver Que em qualquer dura O tempo passa mais lento pro negão Quem segurava com força a chibata Agora usa farda Engatilha a macaca

Chega (Gabriel O Pensador)

Este filme retrata a sociedade atual, tendo como enfoque seus problemas de ordem sociais, econômicas e culturais, na medida em que contrasta a força do apelo consumista, os desvios culturais retratados no desperdício, e o preço da liberdade do homem, enquanto um ser individual e responsável pela própria sobrevivência. Através da demonstração do consumo e desperdício diários de materiais (lixo), o autor aborda toda a questão da evolução social de indivíduo, em todos os sentidos. Torna evidente ainda todos os excessos decorrentes do poder exercido pelo dinheiro, numa sociedade onde a relação opressão e oprimido é alimentada pela falsa idéia de liberdade de uns, em contraposição à sobrevivência monitorada de outros.

A gente é saco de pancada há muito tempo e aceita Porrada da esquerda, porrada da direita É tudo flagrante, novas e velhas notícias Mentiras verdadeiras, verdades fictícias Polícia prende o bandido, bandido volta pra pista Bandido mata o polícia, polícia mata o surfista O sangue foi do Ricardo, podia ser do Medina Podia ser do seu filho jogando bola na esquina Morreu mais uma menina, que falta de sorte Não traficava cocaína e recebeu pena de morte Mais uma bala perdida, paciência Pra ela ninguém fez nenhum pedido de clemência

https://www.youtube.com/watch?v=e7sD6mdXUyg

Chega! Que mundo é esse, eu me pergunto Chega! Quero sorrir, mudar de assunto Falar de coisa boa mas na minha alma ecoa Agora um grito eu acredito que você vai gritar junto Chega! Vida de gado, resignado Chega! vida de escravo de condenado A corda no pescoço do patrão e do empregado Quem trabalha honestamente tá sempre sendo roubado

Doze anos de escravidão (Steve McQueen) 1841. Solomon Northup é um escravo liberto, que vive em paz ao lado da esposa e filhos. Um dia, após aceitar um trabalho que o leva a outra cidade, ele é sequestrado e acorrentado. Vendido como se fosse um escravo, Solomon precisa superar humilhações físicas e emocionais para sobreviver. Ao longo de doze anos ele passa por dois senhores, Ford e Edwin Epps, que, cada um à sua maneira, exploram seus serviços.

Um estranho no ninho (Milos Forman) Randle Patrick McMurphy, um prisioneiro, simula estar insano para não trabalhar e vai para uma instituição para doentes mentais. Lá estimula os internos a se revoltarem contra as rígidas normas impostas pela enfermeira­chefe Ratched, mas não tem idéia do preço que irá pagar por desafiar uma clínica "especializada".

Chega! Água que falta, mágoa que sobra Chega! Bando de rato, ninho de cobra Chega! Obras de milhões de reais E milhões de pacientes sem lugar nos hospitais Chega! Falta comida, sobra pimenta Chega!Repressão que não me representa Chega! Porrada pra quem ama esse país E bilhões desviados debaixo do meu nariz Chega! Contas, taxas, impostos, cobranças Chega! Tudo aumenta menos a esperança Multas e pedágios para o cidadão normal E perdão pra empresas que cometem crime ambiental Chega! Um para o crack, dois para a cachaça Chega! Pânico, morte, dor e desgraça Chega! Lei do mais forte, lei da mordaça Desce até o chão na alienação da massa Eu vou, levanta o copo e vamos beber! Um brinde aos idiotas incluindo eu e você

Escolhe sempre o primeiro Negro pra passar na revista Pra passar na revista Todo camburão tem um pouco de navio negreiro Todo camburão tem um pouco de navio negreiro É mole de ver Que para o negro Mesmo a aids possui hierarquia Na áfrica a doença corre solta E a imprensa mundial Dispensa poucas linhas Comparado, comparado Ao que faz com qualquer Figurinha do cinema Comparado, comparado Ao que faz com qualquer Figurinha do cinema Ou das colunas sociais Todo camburão tem um pouco de navio negreiro Todo camburão tem um pouco de navio negreiro

Democracia, que democracia é essa? O seu direito acaba onde começa o meu, mas onde o meu começa? Os ratos fazem a ratoeira e a gente cai Cada centavo dos bilhões é da carteira aqui que sai E a gente paga juros paga entrada e prestação Paga a conta pela falta de saúde e educação Paga caro pela água, pelo gás, pela luz Pela paz, pelo crime, por Alá, por Jesus Paga importo paga taxa, aumento do transporte Paga a crise na Europa e na América do norte Os assassinos da Febem, o trabalho infantil na China E as empresas e os partidos envolvidos em propinas Presidente, deputados, senadores, prefeitos Governadores, secretários, vereadores, juízes Procuradores, promotores, delegados, inspetores Diretores, um recado pras senhoras e os senhores Eu pago por tudo isso, imposto sobre o serviço A taxa sobre o produto, eu pago no meu tributo Pago pra andar na rua, pago pra entrar em casa Pago pra não entrar no Spc e no Serasa Pago estacionamento, taxa de licenciamento Taxa de funcionamento liberação e alvará Passagem, bagagem, pesagem, postagem Imposto sobre importação e exportação, Iptu, Ipva O Ir, o Fgts, o Inss, o Iof, o Ipi, o Pis, o Cofins e o Pasep A construção do estádio, o operário e o cimento Eu pago o caveirão, a gasolina e o armamento A comida do presídio, o colchão incendiado Eu pago o subsídio absurdo dos deputados A esmola dos professores, a escola sucateada O pão de cada merenda, eu pago o chão da estrada Na compra de cada poste eu pago a urna eletrônica E cada arvore morta na nossa selva amazônica Eu pago a conta do Sus e cada medicamento A maca que leva os mortos na falta de atendimento Paguei ontem, pago hoje e amanhã vou pagar Me respeita! Eu sou o dono desse lugar! Chega!

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Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia e de vários filhinhos pálidos e tristes. Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha idéia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo.

­ Quá! Não paga a pena... Além de preguiçoso, bêbado; e além de bebado, idiota, era o que todos diziam. Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou­se de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e chucro, resolveu examiná­lo. ­ Amigo Jeca, o que você tem é doença. ­ Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada no peito que responde na cacunda.

aqui

­ Isso mesmo. Você sofre de anquilostomiase. ­ Anqui... o quê?

Todos que passavam por ali murmuravam:

­ Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo é a mesma coisa, está entendendo? A sezão também produz anemia, moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente. Conhece­se a maleita pelo arrepio, ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em horas certas e com muito suor. O que você tem é outra coisa. É amarelão.

Jeca Tatu era tão fraco que quando ia lenhar vinha com um feixinho que parecia brincadeira. E vinha arcado, como se estivesse carregando um enorme peso. ­ Por que não traz de uma vez um feixe grande? Perguntaram­lhe um dia. Jeca Tatu coçou a barbicha rala e respondeu: ­ Não paga a pena. Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta, nem plantar arvores de fruta, nem remendar a roupa. Só pagava a pena beber pinga. ­ Por que você bebe, Jeca? Diziam­lhe. ­ Bebo para esquecer. ­ Esquecer o quê? ­ Esquecer as desgraças da vida. E os passantes murmuravam: ­ Além de vadio, bêbado... Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá­la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham poucos ovos. Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom companheiro e leal amigo. Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por que? Desânimo, preguiça... As pessoas que viam aquilo franziam o nariz. ­ Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro... Jeca só queria beber pinga e espichar­ se ao sol no terreiro. Ali ficava horas, com o cachorrinho rente; cochilando. A vida que rodasse, o mato que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele. Perto morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo? Quando lhe perguntavam isso, ele dizia: ­ Não paga a pena plantar. A formiga come tudo. ­ Mas como é que o seu vizinho italiano não tem formiga no sítio? ­ É que ele mata.

Jeca coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história:

Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só. ­ Que grandíssimo preguiçoso!

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­ E porque você não faz o mesmo?

­ Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita. ­ Essa tal maleita não é a sezão?

O doutor receitou­se o remédio adequado; depois disse: "E trate de comprar um par de botinas e nunca mais me ande descalço nem beba pinga, ouviu?" ­ Ouvi, sim, senhor! ­ Pois é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva passou e vou­me embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. Na semana que vem estarei de volta. ­ Até por lá, sêo doutor! Jeca ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da ciência, mas por fim resolveu comprar os remédios, e também um par de botinas ringideiras. Nos primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas acostumou­se, afinal... Quando o doutor reapareceu, Jeca estava bem melhor, graças ao remédio tomado. O doutor mostrou­lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas. ­ Veja, sêo Jeca, que bicharia tremenda estava se criando na sua barriga! São os tais anquilostomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela carne adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam­se nas tripas e escangalham com o freguês. Tomando este remédio você bota p'ra fora todos os anquilostomos que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa que entrem os que estão na terra. Assim fica livre da doença pelo resto da vida. Jeca abriu a boca, maravilhado. ­ Os anjos digam amém, sêo doutor! Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era "positivo" e dos tais que "só vendo". O doutor resolveu abrir­lhe os olhos. Levou­o a um lugar úmido, atrás da casa, e disse: ­ Tire a botina e ande um pouco por aí. Jeca obedeceu. ­ Agora venha cá. Sente­se. Bote o pé em cima do joelho. Assim. Agora examine a pela com esta lente. Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que já estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos assombrado. ­ E não é que é mesmo? Quem "havera" de dizer!... ­ Pois é isso, sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que a ciência disser.


­ Nunca mais! Daqui por diante nha ciência está dizendo e Jeca está jurando em cima! T'esconjuro! E pinga, então, nem p'ra remédio... Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses depois ninguém mais conhecia o Jeca. A preguiça desapareceu. Quando ele agarrava no machado, as arvores tremiam de pavor. Era pan, pan, pan... horas seguidas, e os maiores paus não tinham remédio senão cair. Jeca, cheio de coragem, botou abaixo um capoeirão para fazer uma roça de três alqueires. E plantou eucaliptos nas terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os buracos da casa. E fez um chiqueiro para os porcos. E um galinheiro para as aves. O homem não parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu vizinho italiano. ­ Descanse um pouco, homem! Assim você arrebenta... diziam os passantes. ­ Quero ganhar o tempo perdido, respondia ele sem largar do machado. Quero tirar a prosa do "intaliano". Jeca, que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem de onça! Uma vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho.

Em pouco tempo os resultados foram maravilhosos. A porcada aumentou de tal modo, que vinha gente de longe admirar aquilo. Jeca adquiriu um caminhão Ford, e em vez de conduzir os porcos ao mercado pelo sistema antigo, levava­os de auto, num instantinho, buzinando pela estrada afora, fon­fon! fon­fon!... As estradas eram péssimas; mas ele consertou­as à sua custa. Jeca parecia um doido. Só pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros e por fim tomou um professor de inglês. ­ Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa. O seu professor dizia: ­ O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha! É hen... Mas de álcool, nada. Antes quer ver o demônio do que um copinho da "branca"... Jeca só fumava charutos fabricados especialmente para ele, e só corria as roças montado em cavalos árabes de puro sangue. Quem o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um "estranja" legítimo, até na fala.

­ Onça! Exclamou ele. É onça e eu aqui sem nem uma faca!...

Na sua fazenda havia de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com quanta fruta há no mundo. Até criação de bicho da seda; Jeca formou um amoreiral que não tinha fim.

Mas não perdeu a coragem. Esperou a onça, de pé firme. Quando a fera o atacou, ele ferrou­se tamanho murro na cara, que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou­a pelo pescoço e estrangulou­a

­ Quero que tudo aqui ande na seda, mas seda fabricada em casa. Até os aqui da fazenda têm que ser de seda, para moer os invejosos...

­ Conheceu, papuda? Você pensa então que está lidando com algum pinguço opilado? Fique sabendo que tomei remédio do bom e uso botina ringideira... A companheira da onça, ao ouvir tais palavras, não quis saber de histórias ­ azulou! Dizem que até hoje está correndo... Ele, que antigamente só trazia três pausinhos, carregava agora cada feixe de lenha que metia medo. E carregava­os sorrindo, como se o enorme peso não passasse de brincadeira. ­ Amigo Jeca, você arrebenta! Diziam­lhe. Onde se viu carregar tanto pau de uma vez? ­ Já não sou aquele de dantes! Isto para mim agora é canja, respondia o caboclo sorrindo. Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou no mato grossas perobas, atorou­as, lavrou­as e trouxe no muque para o terreiro as toras todas. Sozinho! ­ Quero mostrar a esta paulama quanto vale um homem que tomou remédio de Nha Ciência, que usa botina cantadeira e não bebe nem um só martelinho de cachaça. O italiano via aquilo e coçava a cabeça. ­ Se eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente, Per Bacco! Dava gosto ver as roças do Jeca. Comprou arados e bois, e não plantava nada sem primeiro afofar a terra. O resultado foi que os milhos vinham lindos e o feijão era uma beleza. O italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca ter visto roças assim. E Jeca já não plantava rocinhas como antigamente. Só queria saber de roças grandes, cada vez maiores, que fizessem inveja no bairro. E se alguém lhe perguntava: ­ Mas para que tanta roça, homem? Ele respondia: ­ É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui uma enorme fazenda. E hei de ser até coronel... E ninguém duvidava mais. O italiano dizia: ­ E forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!... Por esse tempo o doutor passou por lá e ficou admiradíssimo da transformação do seu doente. Esperara que ele sarasse, mas não contara com tal mudança. Jeca o recebeu de braços abertos e apresentou­o à mulher e aos filhos. Os meninos cresciam viçosos, e viviam brincando contentes como passarinhos. E toda gente ali andava calçada. O caboclo ficara com tanta fé no calçado, que metera botinas até nos pés dos animais caseiros! Galinhas, patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O galo, esse andava de bota e espora! ­ Isso também é demais, sêo Jeca, disse o doutor. Isso é contra a

aparecem por aqui, vêem isso e não se esquecem mais da história.

natureza!

­ Bem sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles

sacos

E ninguém duvidava de nada. O homem é mágico, diziam os vizinhos. Quando assenta de fazer uma coisa, faz mesmo, nem que seja um despropósito... A fazenda do Jeca tornou­se famosa no país inteiro. Tudo ali era por meio do rádio e da eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório, tocava num botão e o cocho do chiqueiro se enchia automaticamente de rações muito bem dosadas. Tocava outro botão, e um repuxo de milho atraia todo o galinhame... Suas roças eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço, na varanda, ele dava ordens aos feitores lá longe. Chegou a mandar buscar no Estados Unidos um telescópio. ­ Quero aqui desta varanda ver tudo que se passa em minha fazenda. E tanto fez, que viu. Jeca instalou os aparelhos e assim pode, da sua varanda, com o charutão na boca, não só falar por meio do rádio para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por meio do telescópio, o que os camaradas estavam fazendo. Ficou rico e estimado, como era natural; mas não parou aí. Resolveu ensinar o caminho da saúde aos caipiras das redondezas. Para isso montou na fazenda e vilas próximas vários Postos de Maleita, onde tratava os enfermos de sezões; e também Postos de Anquilostomose, onde curava os doentes de amarelão e outras doenças causadas por bichinhos nas tripas. O seu entusiasmo era enorme. "Hei de empregar toda a minha fortuna nesta obra de saúde geral, dizia ele. O meu patriotismo é este. Minha divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia que devora o brasileiro..." E a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu, aos 89 anos, não teve estátua, nem grandes elogios nos jornais. Mas ninguém ainda morreu de consciência tranquila. Havia cumprido o seu dever até o fim. Meninos: nunca se esqueçam desta história; e, quando crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se forem fazendeiros, procurem curar os camaradas da fazenda. Além de ser para eles um grande benefício, é para você um alto negócio. Você verá o trabalho dessa gente produzir três vezes mais. Um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ter saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí. Fonte: http://bit.ly/1Itfhhq

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O

ato de cuidar em saúde é sempre permeado por uma intenção. Cuidamos do próximo por ele ter a necessidade de cuidado. Mas como determinamos esta necessidade? Com que intenção cuidamos? São nas respostas à estas perguntas que a compaixão se infiltra. Uma compaixão que se confunde com caridade e pena. Esta compaixão pode estar muito mais relacionada às nossas próprias necessidades do que a do próximo. Muitas vezes prestamos o cuidado – sem perceber – para nos enaltecer, desatento às reais necessidades de quem é cuidado. Desta forma, perpetua­se o ciclo, legitimando as desigualdades através do cuidado da compaixão, prestado por pena, cego às necessidades além da doença. Ora, cuidar é necessário. Este é o papel do profissional da saúde na sociedade. Então, como romper este ciclo? Ao compreender que o cuidado é uma relação mútua, em duas direções, percebemos que o real ato em saúde se dá através da mediação que humaniza. Se faz necessário transitarmos

CAPONI, Sandra. Da Compaixão à Solidariedade: uma genalogia da assistência médica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000.

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Brasil hoje enfrenta uma grande crise, nos campos sociopolítico e econômico. Isto impõe ao atual governo a responsabilidade de gerenciar a crise, mas, sobretudo de demonstrar, em meio às suas próprias deficiências a coragem de lidar contra um vício estabelecido na estrutura administrativa, que é a corrupção. Segundo o historiador Vitor Amorim de Angelo a corrupção é um problema complexo e, como tal, merece ser tratada com complexidade, atingindo todas as esferas do poder: Executivo, Legislativo, setor público e setor privado, Vivemos em um momento de disputa pelo poder, sendo a imprensa, o mercado, o governo, a oposição e a opinião pública marcadores fiéis de uma conjuntura repleta de interesses que quase sempre não confluem. Dentre os agravantes desta situação, estão o aumento da gasolina e da energia, a Operação Lava Jato, o aumento da inflação, a quebra da Petrobras.

Segundo Paulo Freire em seu livro Educação como Prática da Liberdade,

Em meio a esta crise, diversos protestos foram organizados a fim de expressar a insatisfação do momento vivenciado pelo país. Mas até agora, estes movimentos apresentam­se heterogêneos, sem uma luta definida. A impressão é de que esta luta não é legítima, sem o senso crítico e analítico que é responsável por nos fazer compreender os fundamentos da política.

Dessa forma, acreditamos que o caminho para a transformação da realidade em que vivemos é a legitimidade dos movimentos sociais constituídos por atores comprometidos com uma demanda coletiva, de maneira responsável através do empoderamento destes sujeitos.

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“Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões. As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele apresentadas por uma “elite” que as interpreta e lhas entrega em forma de receita, de prescrição a ser seguida.” Reconhecemos que as manifestações populares são importantes, sendo conquistado através dos processos de resistência da ditadura e retorno da democracia há 30 anos. Porém deve ser realizada com responsabilidade social e política, que tem como pressuposto a educação para a decisão, como propõe Paulo Freire na pedagogia da liberdade. “Mas se uma pedagogia da liberdade traz o gérmen da revolta, nem por isso seria correto afirmar que esta se encontre, como tal, entre os objetivos do educador. Se ocorre é apenas e exclusivamente porque a conscientização divisa uma situação real em que os dados mais freqüentes são a luta e a violência. Conscientizar não significa, de nenhum modo, ideologizar ou propor palavras de ordem. Se a conscientização abre caminho à expressão das insatisfações sociais é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão; se muitos dos trabalhadores recém­alfabetizados aderiram ao movimento de organização dos sindicatos é porque eles próprios perceberam um caminho legítimo para a defesa de seus interesses e de seus companheiros de trabalho.”


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ótica de Paulo Freire sobre a educação como instrumento de mudança social pode ser vista em prática como nos exemplos que a revista RADIS nª. 80 (abril de 2009) apresenta, sobre formação técnica em saúde na população indígena do Alto Rio Negro. A sanitarista e antropóloga Maria Luiza Garnelo Pereira foi a coordenadora do primeiro curso técnico de Agentes Indígenas de Saúde. Em entrevista à RADIS, explica como a estrutura do curso mediou as particularidades da saúde indígena e os desafios enfrentados. *** QUAL A AVALIAÇÃO DO CURSO? Muito positiva. Viemos construir um protótipo. Nunca foi ministrado um curso com essa adaptação à realidade cultural. Viemos montar um protótipo que já tinha função formativa, mas também a de organizar uma estrutura culturalmente sensível. Neste sentido, atingimos plenamente o objetivo. Já existe um módulo pré­formatado que agora poderemos adotar, com pequenas adaptações, em outras regiões, porque as diferenças culturais existem, são importantes, mas é possível ter um protótipo para os outros quatro pólos de formação. PERCEBE­SE QUE A ESSÊNCIA DO CURSO É COLABORATIVA... Na verdade, o curso é uma associação de características dos indígenas, que têm prática importante de processo participativo e gestão colegiada, e da própria proposta de promoção à saúde, vigilância à saúde em territórios específicos, que prevê um modelo de atenção que pensa a população como agente político e de mudança. A participação é elemento essencial do próprio processo formativo e da ação de saúde. O QUE DIFERENCIA OS POVOS INDÍGENAS NO QUE DIZ RESPEITO À SAÚDE? Uma matriz cultural operativa estruturada. Essas populações têm uma sabedoria ancestral organizada, muito viva, que permite a apropriação racional dos recursos do ambiente. É um ambiente hostil, com especificidades ecológicas, carência de alimentos. As pessoas conseguem usar isso de forma muito racional, com influência forte nos níveis de saúde. Se as pessoas não soubessem usar os equipamentos que a natureza lhes proporcionou, os meios de subsistência, estariam em condição muito pior. E são pessoas de matriz cultural diferente. Só para exemplificar, a língua­mãe não é o português, que é a segunda língua. A vitalidade das línguas indígenas aqui é ilustrativa da vitalidade cultural. Então, quando as pessoas falam de seu ambiente e das doenças, fazem uma interface entre sua cultura de origem e as doenças trazidas pelo processo histórico, pelo perfil epidemiológico que se estrutura aqui na região. É uma singularidade, e a gente não pode ignorar isso num processo formador. É preciso valorizar essa interface entre o perfil epidemiológico trazido pelo contato interétnico e o específico desta região. E O CURSO SE ESTRUTURA A PARTIR DISSO... Exatamente. Nossos eixos norteadores são cultura, território e política. Cultura, em primeiro lugar — a dimensão da especificidade e da singularidade; território, na perspectiva da vigilância em saúde, fusão entre a cultura tradicional e as premissas da saúde pública comprometida com a mudança social; e a política, que dá a dinâmica. Essa população tem uma história muito bem sucedida de lutas sociais — pela demarcação da terra, pelo subsistema de atenção à saúde indígena, criado em 1999 e articulado ao SUS pelos 34 Dsei [Distritos Sanitários Especiais Indígenas]. A discussão da política de saúde, seja do SUS, seja da saúde indígena, se mescla com a política da demarcação e da sustentabilidade do território, e vai promover um upgrade na participação desses agentes de saúde nos processos políticos do próprio movimento indígena. REUNIR

ALTO RIO NEGRO, COM EXPERIÊNCIAS DIFERENTES, ENRIQUECEU O CURSO? Certamente, porque além da revitalização de tradições culturais distintas, há variações importantes, que expressam formas diferentes de dominar ecossistemas. É uma região muito vasta, então os ecossistemas são diversos. Os agentes vivem em regiões remotas, e isso cria um espírito de corpo, uma unidade política que os situa como agentes de construção do subsistema de saúde indígena, que conjuntamente está construindo o SUS. OS AGENTES DO

POR ISSO A PREOCUPAÇÃO EM VALORIZAR SABERES TRADICIONAIS. Essa região é uma grande matriz cultural com variações étnicas. Temos grupos de tradição tukano e arawak, subdivididos em grupos étnicos menores, mas partilham uma matriz explicativa do processo saúde­doença comum. Grosso modo, é possível classificar a noção de doença deles como doenças de relacionamento com o

ambiente, decorrentes de relações hostis ou conflituosas com o ambiente. O QUE É ESSE “AMBIENTE”? Para nós, a natureza é objeto distante que não está em interação conosco. Interferimos, exploramos a natureza. Para a tradição ameríndia, a natureza é formada de sociedades não­humanas. Não são apenas árvores; são sociedades de árvores, antigos humanos que se transformaram em seres vegetais. Há sociedades de peixes, dos animais que voam, dos animais de caça... Essa interação é de conflito: se são animais de caça e pesca, são a comida, a presa: são inimigos. É preciso lidar com eles com cuidado. Então, para cada animal caçado existe o risco da sociedade deste animal retaliar e a pessoa adoecer. São doenças ligadas a essa relação conflituosa com a natureza. Trazem implícita a noção de preservação ambiental, ainda que os índios não usem esta terminologia. Se abusa, se mata demais, torna­se vítima da vingança e adoece. E COM OS HOMENS? São as doenças que resultam de interações conflituosas, ciúme, inveja, disputa, ganância, sovinice. O outro se vinga. Há grupos com outra concepção estruturada, as doenças causadas pelas estrelas: antepassados precursores da existência humana na Terra, deuses que povoaram isso aqui e se mudaram para o céu. Em algumas etapas da vida, como a puberdade e o nascimento, o ser humano está muito vulnerável. Nestas condições, que chamamos de “liminaridade”, as estrelas podem atingir as pessoas: flecham e causam doenças. Este, sim, é o principal grupo de doenças ditas tradicionais, estruturado antes do contato com os brancos. E INFLUENCIAM NA VIDA SOCIAL? Numa dimensão mais operativa, mais prática, são extremamente eficazes para regulamentar a maneira de interagir com a natureza, para gerar bons princípios de convivência humana, para coagir um pouco a sociedade a ser mais solidária, a dividir as coisas. São valores importantes aqui. Ser sovina com alimento é considerado antissocial por excelência. A sociedade indígena é estruturada contra a acumulação: quem tem precisa partilhar. Se não partilha, sofre sanções sociais e na saúde. Evidentemente que a entrada da economia capitalista altera um pouco isso, mas esses valores fundamentais estão na base da vida social, ajudam a tornar a vida mais harmoniosa. Nessa sociedade, se há briga, conflito e desentendimento, em algum momento a doença aparece como consequência. NO

ENCERRAMENTO, UM ALUNO DISSE

“AGORA VAI”. ESSES ALUNOS CONCLUIRÃO Isso se deve ao descrédito que acumularam nas tentativas anteriores de capacitação que foram descontinuadas pelas sucessivas mudanças de prioridade na política de saúde indígena, mudança de gestores, que têm ocorrido com relativa rapidez no subsistema de saúde indígena. Nós também não podemos garantir que o curso chegará ao término no tempo previsto e com a devida certificação, pois os problemas que ocorreram no passado tendem a se repetir no futuro: os gestores mudam, o financiamento se descontinua. Porém, há algo que podemos garantir: nosso empenho em lutar para levar essa proposta à conclusão. Para isso, continuaremos a fazer mobilização permanente entre os gestores, buscando sensibilizá­los para a relevância da proposta. Temos competência técnica e determinação. O que precisamos é da continuidade do apoio. As parcerias serão a chave do sucesso do curso, pois sua característica intersetorial demanda o envolvimento institucional em vários campos de atividade. O desafio não é apenas do setor saúde. A FORMAÇÃO?

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Dias ensolarados, Índios vivendo no Brasil, livremente.

Aproximação de uma grande tempestade com a chegada das caravelas Portuguesas no Brasil. Frente fria e exploração permanece, nos próximos 300 anos.

Tempestade cede lugar à fortes pancadas de chuva, com a chegada da Corte Portuguesa no Brasil e a falsa esperança na mudança.

Fortes pancadas de cuva cessão e o tempo permanece nublado.Brasil é presentado com sua Independência por D. Pedro, tornando­ se imperador do país.

Sol encoberto por nuvens permanece Revolução leva Getúlio Vargas ao poder.

Chegada de uma grande tempestade com o golpe militar e início da Ditadura no Brasil, que perdurá por algumas décadas O período é marcado por censura, repressão aos movimentos sociais, perseguições políticas, falta de democracia e intervenção estatal na economia.

Sol encoberto por nuvens volta a reinar no céu brasileiro com o movimento das Diretas Já, com o fim da Ditadura Militar com a eleição de Tancredo Neves.

Grande bonanza e bons ventos. Promulgada a Constituição da Republica Federativa do Brasil, lançando o conceito fundamental de saúde como direito de todos e dever do estado.

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Sol encoberto de nuvens começaa aparecer com a Proclamação a República no Brasil, em 15 de novembro pelo Marechal Deodoro da Fonseca.

Sol encoberto por nuvens permanece nas próximas décadas com a eleição Prudente de Morais como presidente do Brasil através de voto direto.

Chegada de dias quentes e ensolarados com a organização de grandes movimentos sociais com lutas legítimas, que resultará em grandes conquistas e o início de um real bem estar social.


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