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1 “Ploc, ploc!”

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AO JABUTI

AO JABUTI

Era uma manhã daquelas em que tudo parecia estar em um lugar bem bonito: sabiá na laranjeira, boi no pasto, sapo na lagoa... E jabuti debaixo da jabuticabeira, comendo as frutas bem doces que haviam caído ao chão. É que teve chuvarada na noite anterior.

A primavera quente já se espalhava pelas cidadezinhas do cerrado.

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“Ploc, ploc!”... As gorduchinhas estalavam gostosamente quando o bichinho as apertava com a boca.

O jabuti, que depois eu soube chamar-se Quirino, ficava de olhos bem abertos para ver se novas frutinhas rolariam até sua boca, desprendidas do tronco liso.

Quando a molecada subia em busca dos galhos mais altos, aí, sim, ele fazia sua festa: cada pernada de menino escalando a jabuticabeira derrubava dezenas de bolinhas negras e suculentas.

Ele sequer precisava caminhar léguas, digo, centímetros, para abocanhar seu almoço. Era mais gostoso aguardar sob a sombra fresca aquelas negrinhas se soltarem do pé e caírem perto de suas patas verdes. Daí, era só estourá-las com a boca, “ploc! ploc!”, como sempre fazia.

A vida no campo sempre foi boa para Quirino. Em outubro, muitas frutas amadureciam e antecipavam o verão, que traria sol bem forte, deliciosos cheiros e sabores diferentes.

Em dezembro, começavam as férias e a criançada toda – primos, amigos e vizinhos – enchia o quintal do sítio de algazarra. Porém, o jabuti não teria mais sossego por umas boas semanas, ele bem sabia. As crianças costumavam carregá-lo de lá para cá, pintavam suas unhas com esmalte vermelho, colocavam fitinhas sobre seu casco e criavam uma corrida maluca em que ele teria de ultrapassar uma galinha zarolha. O jabuti sempre perdia, mas, ainda assim, era o preferido de todos.

Ah!... Dava-lhe até um frio no casco só de pensar na fuzarca que virava aquele quintal sombreado por silêncios e esperas. Como quase todo jabuti que conheci em minha vida, Quirino já era um senhor de idade, apesar de não aparentar. Pouco dado às brincadeiras dos garotos, em especial àquelas mais barulhentas, preferia ficar em seu cantinho.

Ele dormia no oco que a natureza fizera sob a maior jabuticabeira do pomar, longe dos alaridos dos moleques e dos folguedos dos tios.

Entretanto, ainda que se escondesse boa parte do dia, a patota o encontrava e o fazia de gato e sapato, ou de “jabuti e sapato”, como ele próprio reclamou certa vez ao pé de meu ouvido. De nada adiantava querer correr. Até porque velocidade não era o forte daquele bicho de pernocas curtas e olhar meditativo. O jeito era esperar calmamente até que as férias acabassem.

Quirino vivia daquela maneira há anos.

Aliás, há décadas...

Entre os meninos que sempre vinham passar a temporada, havia um que se chamava Tiago e era muito alegre e saltitante, cheio de sardas no rosto e com um cabelo de fogo que esvoaça- va ao mínimo toque do vento. Aquele garoto adorava fazer brincadeiras que deixavam Quirino de pernas para o ar.

– Jabuticaba. Jabuti acaba. O jabuti acaba sua salada de jabuticaba com mangaba – dizia o garoto, em sua divertida invencionice de trava-línguas.

De repente, Tiago levava o bicho até a sala onde todos da família se reuniam à noite:

– Cadê o prato principal do jantar? Bota ele na mesa. Já bota! Jabota!

Alguns adultos riam, mas havia sempre uma tia que trazia na voz um tom de reprovação:

– Ah, menino, deixa o coitadinho lá no pomar... Desvire-o. Para que deixá-lo com o casco pra baixo?

– É para ele não fugir. – argumentava o pequeno ruivo.

– Fugir para onde? – ria-se um tio gordo. – Só se ele subir no patinete da Aninha para ganhar mundo. Esse bicho não foge, Tiaguinho, só se esconde...

– E, além do mais... – continuou a mesma tia – esse animal é sujo. Tem de devolvê-lo ao pomar e lavar as mãos com bastante sabão de cinza em seguida.

Apesar do disse me disse dos adultos, Quirino era querido pelos garotos. Sim, pelos mesmos com pernocas de taquara que logo cresciam, engrossavam a voz e as batatas do muque...

Todos mudavam, exceto o bichinho.

E aquele garoto ruivo? Hum, sabe quem era?

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