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Ocupações:
movimentos de luta pelo direito à moradia
Autora:
Vanessa Ribeiro de Amorim Orientador:
Cláudio Rezende Ribeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho Final de Graduação - Banca Final Novembro de 2018
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Folha de aprovação
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Vanessa Ribeiro de Amorim Ocupações: movimentos de luta pelo direito à moradia
Trabalho apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a ser utilizado como avaliação do Trabalho Final de Graduação.
Banca Examinadora ________________________________
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Prof. Wagner Rufino
Prof. Gerônimo Leitão
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Prof. Paula Albernaz
Prof. Cláudio Ribeiro Rio de Janeiro/2018
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À expressão, pela vida. Aos lápis, ferramentas para exercê-la. E aos companheiros de caminhada, pelas cores.
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Agradecimentos
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Aos movimentos, por seus extensos trabalhos na luta pelo direito à moradia e à cidade. Sua existência contra-hegemônica nos encoraja a não aceitar as precariedades impostas. Às ocupações, por me mostrarem que as possibilidades de atuação na arquitetura e no urbanismo podem transcender o alcance às classes mais abastadas e que a profissão pode cumprir uma importante função social. À universidade pública e gratuita, pela graduação em Arquitetura e Urbanismo. Ao meu orientador, Cláudio — minha primeira e única opção, uns bons anos antes de chegarmos aqui —, por aceitar me acompanhar na empreitada do Trabalho Final de Graduação. Por sua compreensão e humanidade nos momentos de turbulência. E também pela dedicação e pelo afeto que dedica à docência e à arquitetura como ação política. À minha família, Claudia, Moisés, Anderson e Felipe, pelo amor e suporte durante toda a minha vida. Aos demais orientandos acolhidos, Marcos, Bruna, Johanna, Paula, Maria Luiza, Lígia e Beatriz, por contribuirmos uns com os outros e por nos darmos as mãos no meio dos perrengues. À Nathalia, ao Nathan e ao Penalva, amados amigos que tornaram a academia e a vida mais doce. Aos companheiros de longa data, Luan, Paula, Thalles, Gabriela, Luana, Ana, João e Lohan, que acompanharam toda a minha graduação e amadurecimento como ser. Ao Pedro, que me tranquilizou e por vezes juntou o quebra-cabeça dos meus pensamentos.
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“O capital — isso está definitivamente constatado — não quer eliminar a escassez de moradia, mesmo que possa. Restam apenas dois recursos: a ajuda mútua dos trabalhadores e o auxíio do Estado.” Friedrich Engels, em Sobre a Questão da Moradia, de 1872
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Resumo
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O trabalho é uma investigação sobre as ocupações, movimentos que conferem emprego social a terrenos e edifícios subutilizados e ociosos, lutando pelo direito à moradia e à cidade. Serão apresentadas com mais ênfase as ocupações organizadas por movimentos sociais, trazendo três casos-referência: Manuel Congo, Mariana Crioula e Quilombo da Gamboa. Além de ser uma fonte de aprofundamento acerca das ocupações, este trabalho se propõe a construir uma narrativa em que o leitor perceba que elas não são “invasões”, mas movimentos legítimos. Isto se faz extremamente necessário pois as ocupações são, pelo senso comum e (reforçadas) pela grande mídia, vistas como algo criminoso, como um atentado ao inviolável “direito de propriedade”. O material foi produzido por meio de refereniais teóricos (livros, dissertações, artigos) e por meio de trabalho de campo, isto é, de idas às ocupações. Contou também com entrevistas a modarores, coordenadores e arquitetos e urbanistas envolvidos. A transformação dessas três ocupações em habitação social foi possível apenas com o Programa Minha Casa Minha Vida-Entidades, que permitia o processo autogestionário. Nele, o processo projetual, a relação arquiteto-morador e o resutado arquitetônico são diferentes do tradicional. Diferentes de outros projetos de habitação, principalmente social, em que os moradores são alienados de todo o processo. Concluiu-se, entretanto, que o MCMV-Entidades não respondia completamente aos anseios do modelo autogestionário, que propõem a superação do individualismo pela coletividade. Por este motivo, foi apresentado, a exemplo de cooperativas uruguaias, um “modelo ideal” de habitação de interesse social. Nele, os moradores não deteriam o direito de propriedade, mas o direito de uso.
Palavras-chave: ocupações; habitação social; direito à cidade.
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Lista de Figuras, Grรกficos e Tabelas
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Lista de Figuras Figura 1 – Cozinha, ainda em obra, da ocupação Manuel Congo..................................................... 16 Figura 2 – Palavras de ordem frequentemente utilizadas por movimentos de luta por moradia.............. 26 Figura 3 – Conjunto Habitacional Vila Kennedy nos anos 1960......................................................... 42 Figura 4 – Conjunto Habitacional Cidade de Deus nos anos 1960.................................................... 43 Figura 5 – Conjunto habitacional do PMCMV: padronização, baixa qualidade arquitetônica, longe de regiões centrais infraestruturadas....................................................................................................... 58 Figura 6 – Autogestão no dia a dia: escala de limpeza do quarto pavimento da ocupação Manuel Congo............................................................................................................................................. 62 Figura 7 – Fachada na Rua da Gamboa. À esquerda, os trilhos do VLT (veículo leve sobre trilhos)........ 68 Figura 8 – Mapa de trecho da Zona Portuária do Rio de Janeiro, com os terrenos da ocupação marcados em amarelo...................................................................................................................................... 69 Figura 9 – Parte do terreno voltado para a rua Pedro Ernesto, onde funcionava um galpão. Atualmente, acomoda, de forma precária, cinco famílias. As famílias estabelecidas nas construções improvisadas estão inscritas e serão proprietárias das unidades, quando construídas................................................. 70 Figura 10 – Parte do terreno voltado para a rua da Gamboa, em antigo casarão em ruínas................ 70 Figura 11 – Prisma de ventilação da Manuel Congo......................................................................... 72 Figura 12 – Mapa de trecho do Centro do Rio de Janeiro, com o edifício da Manuel Congo (antes pertencente ao INSS) marcado em amarelo........................................................................................ 74 Figura 13 – Pavimento térreo. Sem escala........................................................................................ 75 Figura 14 – 2º pavimento. Sem escala............................................................................................. 75 Figura 15 – 3º ao 7º pavimentos. À esquerda, unidades do tipo quitinete; à direita, unidades de um quarto (conversível em dois) e de dois quartos. Sem escala.................................................................. 76 Figura 16 – 8º e 9º pavimentos. À esquerda, unidades de um quarto e unidades de um quarto (conversível em dois); à direita, unidades de um quarto (conversível em dois) e quitinete (com varanda).. 76
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Figura 17 – 10º pavimento. À esquerda, quitinetes e unidades de um quarto (conversível em dois); à direita, unidades de um quarto (conversível em dois) e quitinete (sem varanda). Sem escala................... 77 Figura 18 – Fachada na rua Evaristo da Veiga.................................................................................. 80 Figura 19 – Corte perspectivado do projeto..................................................................................... 81 Figura 20 – Mapa de trecho do Centro do Rio de Janeiro, com o edifício da Manuel Congo (antes pertencente ao INSS) marcado em amarelo........................................................................................ 83 Figura 21 – Implantação do projeto com os diferentes níveis de permeabilidade................................. 85 Figura 22 – Organograma com as áreas de uso comum discutidas pelo coletivo................................ 86 Figura 23 – Mapa com a localização dos três conjuntos habitacionais, localizados na região portuária. 1- Quilombo da Gamboa; 2- conjunto do MCMV; 3- conjunto do Programa Novas Alternativas...................................................................................................................................... 86 Figura 24 – Implantação dos projetos (de cima para baixo) Quilombo da Gamboa (MCMVEntidades), do MCMV e do Novas Alternativas.................................................................................... 88 Figura 25 – Tipologias de um (aproximadamente 38m²) e dois quartos (aproximadamente 50m²) do Quilombo da Gamboa..................................................................................................................... 91 Figura 26 – Tipologia de dois quartos (aproximadamente 48m²) do projeto financiado pelo MCMV..... 91 Figura 27 – Tipologia de dois quartos (aproximadamente 45m²) do projeto financiado pelo Programa Novas Altenativas.............................................................................................................................. 91 Figura 28 – Mapa de trecho do bairro da Lapa, região central do Centro do Rio de Janeiro, com o edifício do INSS marcado em amarelo................................................................................................ 102 Figura 29 – Fachada do edifício (vista 1). Fotografia tirada durante uma reintegração de posse........... 103 Figura 30 – Divulgação do MCMV para inscrição de 2017............................................................... 108 Figura 31 – Divulgação do MCMV................................................................................................... 108 Figura 32 – Corte esquemático do prédio com os níveis de permeabilidade e usos............................. 111 Figura 33 – Na parede da sede da FUCVAM estão estampadas as bandeiras de alguns movimentos por moradia brasileiros, como a UMP e o MNLM................................................................................ 113
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Figura 34 – Diagrama mostrando unidades de 1 e 2 quartos em cada pavimento............................... 114 Figura 35 – Diagrama mostrando unidades de 1 e 2 quartos em cada pavimento............................... 114 Figura 36 – Diagrama mostrando uma das possibilidades de resultado das “doações” dos quartos...... 115 Figura 37 – Diagrama mostrando unidades de 1 quarto, 2 quartos e 2 quartos duplex........................ 116 Figura 38 – Diagrama mostrando unidades de 1 quarto duplex, 2 quartos e 3 quartos após “doação” de quartos........................................................................................................................................ 116 Figura 39 – Diagrama mostrando unidades de 1 quarto, 2 quartos e 2 quartos duplex........................ 118 Figura 40 – Diagrama mostrando unidades de 3 quarto duplex, 2 quartos e 1 quartos após “doação” 118 de quartos........................................................................................................................................ Figura 41 – Perspectiva do ensaio.................................................................................................... 120 Figura 42 – Fachada da Covicivi..................................................................................................... 123 Lista de Gráficos Gráfico 1 – Déficit habitacional quantitativo por região e o total absoluto. É importante ressaltar que não contém dados do déficit qualitativo.............................................................................................. 35 Gráfico 2 – Demonstra a enorme reserva de imóveis que não cumprem função social (não ocupados vagos), que correspondem a mais de 9% do total de imóveis particulares no Brasil. Também demonstra a fatia de imóveis que tem uso apenas esporádico (como casas de praia), que concentram 5,8% do total................................................................................................................................................. 37 Gráfico 2 – Demonstra a reserva de imóveis que não cumprem função social (não ocupados vagos) por região......................................................................................................................................... 38 Lista de Tabelas Tabela 1 – Opções de construção dentro do processo autogestionário............................................... 70
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Lista de abreviaturas e siglas
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BNH: Banco Nacional da Habitação CAPs: Caixas de Aposentadoria e Pensões CEF: Caixa Econômica Federal Cehab: Companhia Estadual de Habitação CMP: Central de Movimentos Populares Covicivi: Cooperativa de Vivienda Ciudad Vieja Cohab-GB: Companhia de Habitação da Guanabara CUEM: Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia CUT: Central Única dos Trabalhadores FCP: Fundação Casa Popular FGTS: Fundo de Garantia do Tempo de Serviço FIST: Frente Internacionalista dos Sem Teto FNHIS: Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social Fucvam: Federación Uruguaya de Cooperativa de Viviendas para La Ayuda Mutua HIS: Habitação de Interesse Social IAP: Instituto de Aposentadoria e Pensões IAPB: Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários IAPC: Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários IAPM: Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos IAPETEC: Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Condutores de Veículos e Empregados de Empresas de Petróleo IAPE: Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Estivadores IAPI: Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários INSS: Instituto Nacional do Seguro Social MNLM: Movimento Nacional de Luta pela Moradia MST: Movimento dos Sem-Terra MTST: Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
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NAPP: Núcleo de Assessoria, Planejamento e Pesquisa PCB: Partido Comunista do Brasil PMCMV: Programa Minha Casa Minha Vida PMCMV-Entidades ou PMCMV-E: Programa Minha Casa Minha Vida-Entidades SFH: Sistema Financeiro da Habitação SNH: Sistema Nacional de Habitação SNHIS: Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social SPU: Secretaria de Patrimônio da União UMP: União por Moradia Popular
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Sumário
Figura 1 – Cozinha, ainda em obra, da ocupação Manuel Congo. Fonte: fotografia da autora.
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1. Introdução............................................................................................................................................... 24 2. Por que as pessoas ocupam – e em quais contextos....................................................................... 28 2.1. (Alguns) movimentos sociais....................................................................................................................... 33 2.2. Deficit Habitacional versus imóveis vagos................................................................................................... 35 3. Breve histórico dos programas de habitação social e das ocupações............................................ 42 3.1. Origem da produção de moradia pelo Estado............................................................................................. 43 3.2. A Ditadura Militar (1964-1985).................................................................................................................. 47 3.3. Transição e redemocratização, de Sarney até FHC (1985-2002)................................................................... 52 3.3.1. O Estatuto da Cidade................................................................................................................ 56 3.4. Governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016)...................................................................................... 58 3.4.1. Sistema e Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS e FNHIS)................................ 59 3.4.2. Financeirização da moradia: Programa Minha Casa Minha Vida................................................... 61 3.4.3. Programa Minha Casa Minha Vida-Entidades.............................................................................. 66 4. Ocupações............................................................................................................................................... 68 4.1. Processo e projeto autogestionários............................................................................................................ 70 4.2. Ocupação Mariana Crioula....................................................................................................................... 75 4.3. Ocupação Manuel Congo......................................................................................................................... 79 4.4. Ocupação Quilombo da Gamboa............................................................................................................. 86 5. Ensaio: projeto de moradia por aluguel social.................................................................................. 98 5.1. Ideologia da casa própria......................................................................................................................... 104 5.2. Propriedade coletiva e cooperativismo: o caso uruguaio.............................................................................. 110 5.3. Considerações finais................................................................................................................................. 124 6. Referências bibliográficas.................................................................................................................... 128 7. Anexos..................................................................................................................................................... 134
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1. Introdução
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Este trabalho se propõe a investigar as ocupações, sobretudo as organizadas (isto é, as que são geridas por movimentos sociais), e suas lutas pelo direito à moradia e à cidade. Elas não se restringem à busca por casa, mas por um direito como entendido por Lefebvre (1996, p. 158), para quem o direito à cidade “pode apenas ser formulado como um renovado e transformado direito à vida urbana”. As ocupações consistem no emprego social de terrenos e edifícios subutilizados e ociosos, públicos e privados. Nem todas as ocupações são organizadas e geridas por movimentos sociais, há também as “desorganizadas”. Contudo, são as organizadas que têm as maiores condições de articulação, pautas e ideologias melhor definidas e maiores chances de serem “bem-sucedidas”1. Por esses motivos, as ocupações organizadas e alguns desses movimentos (com atuação no Rio de Janeiro) são os objetos de estudo que escolhemos aqui. O presente trabalho é uma investida em se discutir as ocupações, apresentando seus posicionamentos políticos, os aparatos legais sobre as quais elas se sustentam (principalmente a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade) e outros contextos políticos, sociais e econômicos pela perspectiva da arquitetura e do urbanismo. Serão brevemente introduzidos alguns programas de habitação de interesse social (HIS), principalmente a nível federal, da Era Vargas até hoje (1930-2018), pincelando, em paralelo, a atuação dos movimentos por moradia. Será também introduzido o fictício déficit habitacional, já que, em tese, o número de imóveis permanentemente desocupados seria suficiente para resolvê-lo. São imóveis que, em sua maioria, são usados para especulação imobiliária (BOULOS, 2014). Também serão apresentadas três ocupações no Rio de Janeiro que vingaram: Manuel Congo, Mariana Crioula2 e Quilombo da Gamboa3, junto ao processo de autogestão, que as rege em todos os âmbitos, inclusive no projeto de arquitetura. Ela gera processos e resultados projetuais diferentes dos quais 1 Aqui, consideram-se “bem-sucedidas” as ocupações em que as pessoas obtêm respaldo legal para morar definitivamente, por meio da concessão de usucapião, de doação pelo Estado ou de compra do terreno ou edifício ocupado. Mais à frente, no capítulo 4, serão apresentadas algumas dessas ocupações no Rio de Janeiro. 2 Coordenadas pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). 3 Coordenada pela UMP (União por Moradia Popular) e pela CMP (Central de Movimentos Populares).
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estamos acostumados. Isso vale tanto para projetos de edifícios multifamiliares tradicionais quanto para projetos voltados para HIS (um grande exemplo é o Minha Casa Minha Vida). Isso porque enquanto no processo tradicional os moradores são alienados do processo, na autogestão eles são protagonistas na construção do espaço (e da cidade) (MIRANDA, 2017). Na contramão da ideologia da casa própria (VILLAÇA, 1986), que rege os programas de HIS brasileiros apresentados, apresentamos como caso-referência o modelo uruguaio de propriedade coletiva, formado por cooperativas (BARAVELLI, 2006). A partir dele, foi elaborado um projeto-ensaio em um edifício no Centro do Rio de Janeiro em que, como no caso uruguaio, os moradores não detém a propriedade das unidades: têm direito de uso por aluguel social. A partir desses inúmeros temas e conteúdos, além de apenas abordar as ocupações, busca-se construir narrativas que demonstrem sua legitimidade. Isso é importante — e talvez fundamental — pois estamos falando de um movimento extremamente criminalizado e repudiado. Temos números astronômicos de pessoas sem casa junto a casas e terrenos vazios, apenas especulando, sem cumprir função social. Temos também programas de HIS não somente ineficazes, como também voltados para o modelo de propriedade privada, de mercantilização da terra, ao qual grande parte da classe trabalhadora não tem acesso (SORAGGI; ARAGÃO, 2011). Como afirmou Engels (2015, p. 100), o Estado, como a “totalidade do poder organizado das classes possuidoras, dos proprietários de terra e dos capitalistas em confronto com as classes espoliadas” não quer resolver a questão da falta de moradias. Sendo assim, resta a “ajuda mútua dos trabalhadores” (ENGELS, 2015, p. 90). Como dizem os movimentos: “se morar é um direito, ocupar é um dever”.
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2. Por que as pessoas ocupam – e em quais contextos
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Um dos meios de reivindicação do direito à moradia são as ocupações organizadas por movimentos sociais de terrenos e edifícios ociosos ou subutilizados. Além de lutarem por moradia digna, a maioria destes movimentos reconhece que o problema habitacional brasileiro não será resolvido isoladamente e – é importante salientar – se mobilizam pelo direito à cidade, dialogando, assim, com a reivindicação feita por Henri Lefebvre (1996). Atualmente, ao ocupar imóveis e terras, um dos pilares de reivindicação da função social da propriedade é a Constituição Federal de 1988: Art. 5º (...) XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição. (...) Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. § 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.
30 § 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. § 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. (BRASIL, 1988, grifos da autora)
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A Constituição de 1988, e principalmente os artigos 182 e 183 são fruto de grande mobilização social da época, período de redemocratização pós-ditadura. Elas são um dos maiores suportes das ocupações à medida que afirmam a fundamentalidade da função social da propriedade e a caracterizam (ela deve cumprir as exigências do plano diretor), bem como especificam a pena às propriedades e aos proprietários que não a cumprem. Além disso, reconhece o direito à usucapião. A função social da propriedade é reafirmada pelo Estatuto da Cidade (2001), que “substitui a noção de propriedade privada individual sem maiores qualificações pela noção das funções sociais da propriedade e da cidade” (FERNANDES, 2011, p. 215), como forma de dar apoio às políticas públicas de democratização do acesso ao solo urbano nas cidades: Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. (...) Art. 4º (...) § 2o Nos casos de programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos por órgãos ou entidades da Administração Pública com atuação específica nessa área, a concessão de direito real de uso de imóveis públicos poderá ser contratada coletivamente. (...) Art. 9º Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (...)
32 Art. 10. Os núcleos urbanos informais existentes sem oposição há mais de cinco anos e cuja área total dividida pelo número de possuidores seja inferior a duzentos e cinquenta metros quadrados por possuidor são suscetíveis de serem usucapidos coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei. (BRASIL, 2001, grifos da autora)
O direito à usucapião e a definição da função social são reiterados pelo Estatuto. Entretanto, a ele é acrescentado o direito de serem usucapidas edificações (além das “áreas”) e o direito de usucapião coletivo — o que se alinha com as ocupações, já que são feitas coletivamente. Dentre outras coisas, determina que os municípios com mais de 20 mil habitantes criem um plano diretor. Entretanto, “apesar de termos uma legislação avançada, que afirma o direito à moradia e a função social da propriedade e da cidade, os municípios precisam regulamentar a função social em Figura 2 – Palavras de ordem frequentemente utilizadas seus planos diretores e, até hoje, foram poucos os que por movimentos de luta por moradia. Fonte: http://brazil. o fizeram” (MELLO, 2012, p. 234). indymedia.org/content/2008/03/415492.shtml.
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2.1. (Alguns) movimentos sociais
As ocupações podem ter características, objetivos e articulações diferentes. Os movimentos organizados normalmente apresentam debates sobre suas reinvindicações e táticas em suas redes sociais, páginas de internet, livros, cartilhas e outros. Entre os mais populares – e que dialogam de forma mais direta com este trabalho –, estão o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a Frente Internacionalista dos Sem Teto (FIST) e a Central de Movimentos Populares (CMP). Por exemplo, há alguns que optam principalmente pela participação institucional, em negociações com o Estado, em participações em conselhos (de habitação, de orçamento participativo etc.) e em parcerias com governos. Ao contrário disso, o MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto) aponta que sua principal forma de atuação são as grandes ocupações em terrenos vazios nas periferias urbanas. Surgido em 1997 e hoje o maior movimento de luta por moradia do país (BOULOS, 2012, p. 48), ressalta que a participação institucional que ocorre por meio das negociações com o Estado “está sempre em função das mobilizações e ações diretas de pressão” (MTST, 2011, p. 5). Ou seja, a participação institucional não é o principal meio de reivindicação e ocorre após outras ações: Nossa forma de ação mais importante são as ocupações de terras urbanas. Com elas pressionamos diretamente os proprietários e o Estado, denunciamos o problema social da moradia e construímos um processo de organização autônoma dos trabalhadores. (MTST, 2011, p. 11)
As ocupações podem ser acompanhadas de outras pressões focadas nos órgãos do Estado, como marchas e bloqueios de rodovias e avenidas importantes. O MTST (2001, p.11) aponta que os bloqueios pressionam, além do Estado, o capital, pois impedem o escoamento de mercadorias.
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O MTST adotou a tática de construir grandes ocupações em terrenos vazios nas periferias urbanas, buscando com isso integrar a luta por moradia com a luta por serviços e infraestrutura nos bairros periféricos. Desde sua formação, o movimento tem realizado ocupações que reúnem milhares de famílias, em vários estados do Brasil. Outro movimento apresentado é o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), fundado em 1990 e hoje organizado em 16 estados brasileiros (SILVA, 2010, p. 149). Sua atuação se dá, principalmente, por meio da ocupação de imóveis públicos em regiões centrais da cidade – devido à presença de infraestrutura urbana e por serem as regiões onde há maior oferta de empregos formais. Neste ponto, percebe-se que o MNLM contrasta com o MTST: o primeiro se instala na malha urbana infraestruturada; e o segundo, em regiões periféricas com pouca ou nenhuma infraestrutura urbana. Por outro lado, indo ao encontro do MTST, o MNLM também tem como objetivo a “reforma urbana e melhores condições de vida para a população” (SILVA, 2010, p. 149). De acordo com Maria das Lurdes Lopes e Elisete Napoleão, coordenadoras do movimento, sua principal missão é a luta pela reforma urbana, que “compreende primeiramente a questão da desmercantilização da terra, para que ela seja democratizada” (RIVERA et al, 2016, p. 8) – além, é claro, da luta pela conquista de moradia digna como direito fundamental. Assim, o MNLM não luta pelo título de propriedade, mas pela concessão real de uso (o que inclui não colocar a moradia no mercado). Em segunda instância, lutam pela melhoria de serviços básicos urbanos, como mobilidade (RIVERA et al, 2016, p. 8). Além de ocupar, seus outros meios de reivindicação são manifestações e diálogos com entidades governamentais. A FIST (Frente Internacionalista dos Sem Teto) teve início em 1999 e é dissidente da Central de Movimentos Populares (CMP) e do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). De acordo com André de Paula, advogado e cofundador da FIST1, os principais objetivos do movimento são a reforma urbana sob controle dos trabalhadores, as lutas contra remoções e despejos e a Petrobras 100% estatal, sem leilões e sob controle da classe trabalhadora. As formas de ação são ocupações e movimentos de rua 1
Os outros fundadores são Antônio Louro e membros da Federação Anarquista do Rio de Janeiro.
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(RIVERA et al, 2016, p. 6). Ao contrário dos outros movimentos, a FIST não dialoga com a prefeitura, com o governo do estado ou com o governo federal. Apesar das diferenças, as ocupações por movimentos organizados tem pontos em comum. Conforme aponta Leitão et al. (2015), esses pontos são o levantamento prévio de dados sobre a área ocupada; uma organização logística para ocupar; a precariedade das ocupações nos primeiros momentos (ou seja, nos primeiros dias ou meses que sucedem o dia da festa1); e, por fim, garantida a permanência na terra ou no edifício, a luta por regularização fundiária com a titulação das famílias e, no caso das terras em áreas sem infraestrutura preexistente, a implantação desta.
2.2. Deficit Habitacional versus imóveis vagos
O Brasil é um dos países com o maior déficit habitacional do mundo, ao lado de países como Índia e África do Sul. Guilherme Boulos2 (2014) aponta que a falta de moradia é um dos problemas mais graves do país. Ele explica sobre os dois modos de definição do déficit que, juntos, demonstram o problema habitacional brasileiro. São eles: o quantitativo e qualitativo. (BOULOS, 2014, p. 13). O déficit qualitativo não é contabilizado pelo IBGE, que averigua apenas o quantitativo. O qualitativo é caracterizado pelo número de famílias que vivem em situação extremamente inadequada, sem regularização fundiária e sem infraestrutura urbana básica (com falta de saneamento básico, de rede pública de transportes, de abastecimento de água, de iluminação elétrica, de coleta de resíduos sólidos).
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Dia da festa é como os movimentos chamam o primeiro dia de ocupação. Boulos é um dos coordenadores nacionais do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
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O déficit habitacional quantitativo é calculado com a soma de quatro componentes: domicílios precários, coabitação familiar, ônus excessivo com aluguel urbano e adensamento excessivo de domicílios alugados (IBGE, 2015). O componente “domicílios precários” considera dois subcomponentes: os domicílios improvisados e os rústicos. Os primeiros consistem em lugares que inicialmente não tinham fim residencial, mas que servem como moradia alternativa (imóveis comerciais, abaixo de pontes e viadutos, barracas, carcaças de carro abandonadas); e o segundo, em lugares sem paredes de alvenaria ou madeira. Esse tipo de edificação apresenta grande insalubridade. Já o segundo componente, coabitação familiar, consiste na soma dos cômodos e das famílias conviventes secundárias com intenção de constituir um domicílio exclusivo. O terceiro componente, ônus excessivo com aluguel urbano, corresponde às famílias com renda de até três salários mínimos que despendem 30% ou mais de sua renda com aluguel. O último componente, adensamento excessivo, ocorre quando o número de moradores por dormitório é igual ou superior a três (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2013). É fundamental ressaltar que o déficit qualitativo possui igual relevância ao quantitativo, atingindo inclusive números maiores. No Brasil, o déficit habitacional quantitativo total é de 6.186.503 famílias (IBGE, 2015), correspondendo a cerca de 22 milhões de pessoas (ver Gráfico 1). Os sem-teto são mais de 10% da população do país (BOULOS, 2014, p. 14). Como já apontado, este problema é agravado pelo déficit qualitativo: São quase 15.307.406 famílias nesta situação, isto é, cerca de 53 milhões de pessoas. Ou seja, quase 1/3 dos brasileiros sofrem com a falta das condições mínimas de moradia digna. [...] O maior destes problemas, que afeta quase 10,5 milhões de famílias (sempre segundo os dados oficiais) é a falta de infraestrutura e serviços básicos a uma moradia: luz elétrica, água encanada, esgoto e coleta de lixo. (BOULOS, 2014, p. 14)
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Gráfico 1 – Déficit habitacional quantitativo por região e o total absoluto. É importante ressaltar que não contém dados do déficit qualitativo. Fonte: elaborado pela autora a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2015.
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Em seu livro Por que Ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto (2014), Boulos aponta que a luta por moradia está diretamente ligada à precarização ou falta de trabalho e à segregação socioespacial. Em um levantamento feito com mais de 5.200 famílias que participaram de uma ocupação organizada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), constatou-se que 26% eram trabalhadores formais; 27% eram trabalhadores informais, sem registro; e 47% estavam desempregados. Também foi constatado que a maioria vive nas periferias urbanas: Vemos com isso que o problema da moradia reflete uma desigualdade social profunda. Quem sofre com essas condições tem nome e endereço: são os trabalhadores mais pobres, que moram nas periferias das cidades. Essa lógica da desigualdade se mostra nua e crua quando vemos o número de imóveis vazios no país. (BOULOS, 2014, p. 16)
O déficit habitacional é ainda mais dramático quando o comparamos com a quantidade de imóveis vazios (“não ocupados vagos”), que correspondem a 9% do total (ver Gráfico 2). Esses são imóveis permanenatemente desocupados e, como ponta Boulos (2014, p. 17), em sua grande maioria usados para especulação imobiliária, sendo que 85% deles teriam condições de serem imediatamente ocupados por moradores. Desses imóveis não ocupados vagos, foi elaborado o Gráfico 3, que mostra sua quantidade e porcentagem por região no Brasil. Isso ainda sem considerar os imóveis que são usados esporadicamente, como casas de praia (“não ocupados de uso ocasional”, que correspondem a 5,8% dos imóveis particulares brasileiros (ver Gráfico 2). Em tese, quase nenhum imóvel precisaria ser construído para resolver o problema habitacional do Brasil.
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Gráfico 2 – Demonstra a enorme reserva de imóveis que não cumprem função social (não ocupados vagos), que correspondem a mais de 9% do total de imóveis particulares no Brasil. Também demonstra a fatia de imóveis que tem uso apenas esporádico (como casas de praia), que concentram 5,8% do total. Fonte: gráfico elaborado pela autora a partir do IBGE, Censo Demográfico 2010.
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Gráfico 3 – Demonstra a reserva de imóveis que não cumprem função social (não ocupados vagos) por região. Fonte: gráfico elaborado pela autora a partir do IBGE, Censo Demográfico 2010.
Estima-se que, em alguns municípios brasileiros, 20% de terras urbanas pertencentes à malha urbana, dotadas de infraestrutura e de serviços públicos, são mantidas vazias por seus proprietários. Há também um enorme “estoque”, ainda sem cálculo preciso, de bens públicos vazios, em todos os níveis governamentais (FERNANDES, 2013, p. 215). Um grande exemplo disso são os prédios que pertencem ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), que tem um enorme patrimônio de imóveis vazios e subutilizados. Esses imóveis são fruto do pagamento de dívidas e não geram nenhum benefício para o fundo previdenciário e para os aposentados (ROLNIK, 2017). Por estas razões e por outras questões estratégicas, muitas ocupações são feitas em edifícios do INSS. Também por esses motivos, o ensaio que será apresentado posteriormente (no último capítulo), contendo um projeto projeto de requalificação, foi executado em um dos edifícios do INSS.
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3. Breve histórico dos programas de habitação social
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Neste capítulo, serão brevemente analisados alguns dos mais expressivos programas de habitação de interesse social junto aos panoramas urbanístico e políticos. Algumas partes irão conter, ligeiramente, a atuação dos movimentos de ocupação no Rio de Janeiro. O recorte temporal é dado pela Era Era Vargas (1930-1945), para depois passar pela Ditadura Militar (que durou de 1964 a 1985), até a redemocratização na Nova República, marcada pelos governos Sarney, Collor (e Itamar Franco), FHC, Lula e Dilma. Em cada contexto, os programas habitacionais e também as ocupações tiveram configurações e demandas diferentes. De inúmeras formas, a agenda urbanística e os programas habitacionais não atenderam às demandas e aos anseios dos ocupantes e dos movimentos. Torna-se indispensável abordar o futuro próximo, com o novo presidente eleito, Jair Bolsonaro — o que será feito no último capítulo, das Considerações Finais. O presidente que em breve tomará posse, em declarações públicas e nas propostas de governo, apresenta um projeto político que constitui grande ameaça aos movimentos sociais e às ocupações. Uma de suas pautas é a de tipificar as ocupações (às quais chama de “invasões”) como terrorismo (BRASIL, 2018). 3.1. Origem da produção de moradia pelo Estado No período populista varguista se inicia a atuação direta de órgãos federais no setor habitacional. Ela ocorre pela produção direta de conjuntos habitacionais e pelo financiamento de moradias para trabalhadores, por meio do Instituto de Aposentadoria e Pensões (IAP) e da Fundação Casa Popular (FCP). O fim da Era Vargas, em 1945, interrompeu esse processo institucional que fazia caminhar uma política habitacional, que de acordo com Bonduki (1998) tinha os seguintes ingredientes:
44 1) Recursos vultosos, que se encontravam acumulados nos fundosdos lAPs. 2) Reestruturaçoo dos lAPs, os quais seriam unificados no lnstituto de Serviços Sociais do Brasil (ISSB) (...). Se implementado, o ISSB reuniria os fundos dos lAPs, alavancando o financiamento de uma política universal de habitação social. 3) Criação de uma “superagência habitacional” (MELO 1991A), a Fundação da Casa Popular, garantindo uma estrutura institucional capaz de implementar a política habitacional e tendo à sua disposição os recursos previdenciários. 4) Capacitação técnica, comprovada pela qualidade dos projetos dos lAPs nos anos 40 (...). 5) Reconhecimento pela sociedode da importância da questão devido à gravidade da crise de moradia que afetava a classe média e os trabalhadores. De enorme repercussão pública, a crise gerou inusitada pressão social sobre o governo, compelindo-o a acelerar sua produção habitacional no período de 1945 a 1950. 6) Vontade polítíca do governo, expressa na disposição de Vargas de dar prioridade à questão. (...) Vargas, nos últimos meses de governo, passou a propor o uso dos fundos previdenciários para a construção de grandes conjuntos habitacionais. Quanto mais dependesse do apoio popular para se manter no poder, maior seria seu empenho para implementar projetos de habitação social capazes de manter sua imagem de protetor dos trabalhadores. (BONDUKI, 1998, p. 100. Grifos da autora.)
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Mesmo com a interrupção, entretanto, a produção de habitação não foi inexpressiva, como comprovam os projetos dos IAPIs, que contêm qualidade arquitetônica, urbanística e social. Criadas nos anos 30 para cada categoria profissional, as instituições do setor previdenciário propiciaram grandes recursos para a produção estatal de moradia. Tiveram como embrião as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs), com a diferença de que nos IAPs a produção de moradia estava estruturada de forma “tripartite” (empregado, empregador e Estado) e nas CAPs eram administradas por um colegiado de trabalhadores e empregadores, sem atuação determinante do Estado. Como destaca Bonduki (1988), entre “1933 e 1938, foram criados seis IAPs: IAPM (marítimos), IAPB (bancários), IAPC (comerciários), IAPl (industriários), IAPETEC (condutores de veículos e empregados de empresas de petróleo) e IAPE (estivadores)”. As IAPs não possuiam uniformidades em suas atuações, cada qual possuía instruções específicas. Porém, ao longo do tempo, as operações imobiliárias do IAPI, baseadas em três planos, foram gradativamente sendo anexados pelos demais institutos, até 1964. Os planos eram: Plano A: locação ou venda de unidades habitacionais em conjuntos residenciais adquiridos ou construídos pelos institutos, com o objetivo de proporcionar aos associados moradia digna, sem prejuízo da remuneração mínima do capital investido. Plano B: financiamento aos associados para aquisição da moradia ou construção em terreno próprio. Plano C: empréstimos hipotecários feitos a qualquer pessoa física ou jurídica, bem como outras operações imobiliárias que o instituto julgasse conveniente, no sentido de obter uma constante e mais elevada remuneração de suas reservas. (BONDUKI, 1998, p. 106. Grifos da autora.)
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Conforme demonstra Bonduki (1998), cabe ressaltar que o número de conjuntos por aluguel no Plano A, foi bastante mais expressiva do que o do Plano B (modelo de casa própria). Em um período de incremento da inflação, a Lei do Inquilinato1 é promulgada (em 1942), regulando os valores dos alugueis das habitações, inclusive as produzidas pelos IAPs. Nas suas instruções não havia regulamentação sobre valores dos alugueis. Consequentemente, o Plano A se transformou num programa habitacional com forte subsídio governamental. No Plano B ocorreu algo mais grave, pois assim como os alugueis, as prestações do financiamento se depreciavam com o tempo, perdendo valor real. Bonduki aponta não a presença de uma política de habitação social, mas de populismo: Financiar ou alugar moradias abaixo do custo, sem dispor de recursos para dar continuidade à ação, não configurava uma política social e sim populismo, com objetivos políticos de curto prazo. Uma política de habitação socialdeveria estabelecer critérios de investimento que dirigissem os subsídios para quem de fato tinha necessidade, defrnindo a origem dos recursos necessários para cobri-los. E, por outro lado, garantir o retorno dos recursos a serem financiados para que não houvesse depreciação de seus fundos. Só nessas condições seria possívelmanter um fluxo constante de recursos para sustentar a produção habitacional. (BONDUKI, 1998, p. 108)
Já no governo de Eurico Dutra (1946-1951), temendo que a insatisfação devido à crise de habitação e de abastecimento pudesse gerar grandes rebeliões, são destinados mais recursos para os planos A e B, que atendiam as classes mais baixas. Paradoxalmente, neste período foi adotada uma política ligada aos interesses capitalistas internacionais e que se “destacou pela repressão às organizaçoes populares e sindicais, com destaque para a ilegalidade do PCB 1
Ela será melhor apresentada no capítulo 5, no item 5.1. Ideologia da casa própria
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em 1947” e pela contraposição ao Partido Comunista do Brasil (PCB) (BONDUKI, 1998, p. 106). 3.2. A Ditadura Militar (1964-1985) A ditadura militar (1964-1985) reprimiu qualquer avanço social que poderia ter caminhado junto ao rápido processo de modernização econômica que se desenvolvia no país. Ela resultou na “consolidação de uma das sociedades mais desiguais do mundo, em que a maioria da população não tem atendidas necessidades básicas, tal como a habitação” (ROLNIK, 2015, p. 267). No âmbito das reformas lançadas pelo governo imediatamente após o golpe está o Banco Nacional da Habitação (BNH), banco público voltado para o financiamento habitacional e para saneamento. Foi criado também o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), sociedade de crédito imobiliário. O BNH foi fruto dos interesses comuns entre o governo e interesses empresariais, especialmente ligados à construção civil. Além dos objetivos econômicos, tinha motivações autoritárias, com o intuito de transformar a classe trabalhadora em proprietária. Nas palavras da primeira presidente do BNH, Sandra Cavalcanti, “‘a casa própria faz do trabalhador um conservador que defende o direito de propriedade’” (ROLNIK, 2015, p. 282). Sob sua gestão, foram feitas remoções em massa de favelas e construídos conjuntos habitacionais, como a Cidade de Deus (Figura 4) e a Vila Kennedy (Figura 3), por meio da Companhia de Habitação da Guanabara (Cohab-GB).
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Figura 3 - Conjunto Habitacional Vila Kennedy nos anos 1960. Fonte: http:// g1.globo.com/rio-dejaneiro/rio-450-anos/ noticia/2015/03/ foi-noticia- em-1965governo-removiamoradores-de-favelasdo-rio.html
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Figura 4 - Conjunto Habitacional Cidade de Deus nos anos 1960. F o n t e : h t t p : / / w w w. matheusgraciano.com. br/cidade-de-deushistoria-real-a-parte/
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Em 1966, é criado o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), poupança compulsória do trabalhador, que passa a alimentar o BNH. Apenas 30% do total de 4,5 milhões de financiamentos habitacionais concedidos pelo BNH contemplaram as classes mais baixas. Apenas em 1970 o BNH passa a crescer como promotor de “casas populares”, por meio do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), que fortalece as Cohabs e empreende grandes conjuntos habitacionais nas periferias das cidades. Também fomenta a autoconstrução nos conjuntos já implantados. O conjunto habitacional José Bonifácio (Itaquera II e III) demonstra a megalomania do Cohab: produziu 19,6 mil unidades, com população de 76,8 mil habitantes em 1983 (ROLNIK, 2015) — quase a população atual de Saquarema, município a aproximadamente 100 km do Rio de Janeiro. Seu modelo de urbanização consistiu no espraiamento de assentamentos autoconstruídos em franjas urbanas, com nenhuma segurança de posse e sem planejamento de uso do solo. Neste contexto, explica-se por que na redemocratização o direito à moradia e, sobretudo, o direito à cidade foram uma das mais importantes exigências dos movimentos sociais. Contraditoriamente, muitos dos conjuntos financiados pelo BNH e sob os governos ditatoriais são dotados de melhor qualidade arquitetônica que outros programas de habitação social empreendidos posteriormente, sobretudo o Minha Casa Minha Vida. Ainda na ditadura, sob o governo do presidente João Figueiredo (conhecido como o período de declínio do regime) ocorrem, em 1981, as primeiras ocupações registradas (LEITÃO, 2015. Grifo da autora). Como este trabalho discorre sobre ocupações no Rio de Janeiro, é nele que iremos nos concentrar. Portanto, em 1983, com a vitória de Leonel Brizola (primeiro mandato de 1983 a 1987) como governador do Rio de Janeiro, é que elas se intensificam e ganham até destaque na mídia (LEITÃO et al., 2015, p. 29). Poucos dias após sua posse, Brizola se deparou com crescentes ocupações de terras por centenas de famílias. Seu enfrentamento à questão foi a de não criminalizar o movimento, “considerendo-o uma decorrência da crise econômica e da ausência de políticas habitacionais para os segmentos mais pobres da população” (LEITÃO et al., 2015, p. 31). Para examinar as ocupações de terrenos, criou uma “comissão especial”.
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A multiplicação das ocupações neste período pode explicada pela campanha política feita por Brizola em 1982. Com slogans como “Um governo para as classes menos favorecidas” e “Para o PDT1, a palavra remoção não existe” (LEITÃO et al., 2015, p. 34), a população pobre criou expectativas positivas sobre a ação do governo sobre as ocupações. De fato, este governo, ao contrário dos anteriores, negociava com os ocupantes. Brizola reconhecia as ocupações como lutas pelo direito à moradia, acentuada pelo cenário de crise econômica e pela insuficiência de políticas públicas habitacionais. Embora se utilizassem de estratégias que também serão utilizadas por ocupações posteriores — como o levantamento cuidadoso sobre a situação fundiária do terreno, evitando, assim, reintegrações de posse —, é importante ressaltar que essas ocupações não eram promovidas por movimentos organizados. À época, elas eram apoiadas por por setores da Igreja Católica e por parlamentares progressistas. Conforme aponta Leitão et al. (2015), as ocupações surgiam a partir da identificação de terrenos vazios por moradores de favelas próximas ou de associações de moradores, seguidas pela apropriação de terrenos e pela propagação destas notícias. O perfil dos ocupantes (o que não se difere do perfil das ocupações atuais ou recentes) era o de pessoas que desejavam ter casa própria, fugindo dos onerosos alugueis; e de famílias que viviam em condições precárias, muitas delas em situação de coabitação familiar e/ou adensamento excessivo. Uma das medidas implementada por Brizola foi a de determinar que “terrenos públicos desocupados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro fossem destinados à construção de moradias” (LEITÃO et al., 2015, p. 36) para famílias de baixa renda cadastradas, com moradias autoconstruídas por por meio do financiamento do Estado para a compra de materiais de construção, o que permitiria entregar 12 mil novas unidades residenciais da Cehab (Companhia Estadual de Habitação).
1 Partido Democrático Trabalhista, surgido em 1979. Sua criação foi liderada por Leonel Brizola junto a trabalhistas no Brasil e no exílio. Fonte: <http://www.pdt.org.br/index.php/o-pdt/historia/>. Acesso em 18 nov. 2018.
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3.3. Transição e redemocratização, de Sarney até FHC (1985-2002) Nos anos 1980, após mais de vinte anos de ditadura militar, temos lentamente uma retomada da democracia, com o direito de voto universalizado e garantido o direito de organização política, social e partidária. Em 1985, José Sarney ocupa a cadeira presidencial (1985-1990). As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas por avanços legais no campo do direito à moradia e à cidade e da função social da propriedade. Quando o modelo desenvolvimentista autoritário se esgota, tomam força os movimentos sociais de caráter progressista, levando a um processo de democratização que culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988. Como apresentado no primeiro capítulo, ela possui caráter estruturante para os movimentos, principalmente nos artigos 182 e 183. De acordo com Rolnik (2015, p. 264) a Constituição possibilita a atribuição da “função social da cidade e da propriedade, do reconhecimento dos direitos de posse dos milhões de moradores de favelas e periferias (...) e da incorporação direta dos cidadãos aos processos decisórios relacionados a essa política”. No início dos anos 1980, os sinais de crescimento econômico são vistos na expansão e na maior disponibilidade de subsídios públicos ao crédito para produção habitacional. Eles constituíram um dos maiores ciclos de crescimento do setor imobiliário das cidades. Entretanto, no final anos 1980 o Brasil passa por uma séria crise financeira. Por mais que os movimentos sociais e sindicais tenham tomado força no período de redemocratização, os antigos atores conservadores detinham ainda grande influência e controle político. Neste período, portanto, em vez de adotar políticas redistributivas, a ascensão do consenso neoliberal leva à retração dos gastos públicos em direitos sociais. Neste período, cresceu significativamente o número de moradores de favelas até 1990 (ROLINK, 2015). Com o fim do mandato do governador Brizola (1983-1987) e tendo como prefeito Saturnino Braga (1986-1988), aumenta no Rio de Janeiro a reação do Estado contrária às ocupações e aos movimentos e entidades, como o Insituto da Cultura Negra, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos SemTerra (MST). Apesar disso, com o respaldo da Constituição crescem e vão surgindo novos movimentos de luta
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por moradia. Nos anos 1980-1990 eles promoveram significantes ocupações de terrenos nas periferias. As ocupações de edifícios em áreas centrais são endossadas pelo “respaldo” da Constituição, e são ainda mais catalizadas pela enchente de fevereiro de 19881, que deixou muitas famílias desabrigadas. Neste período, foram ocupados Centros Integrados de Educação Popular (Cieps) em construção e prédios inacabados (LEITÃO, 2015, p. 39). Juntas, essas ocupações colocam a perpetuada crise habitacional em evidência, chamando a atenção e pressionando por uma política habitacional para os sem-teto (ROLNIK, 2015). Nas eleições de 1989, vence o neoliberal Fernando Collor (e seu vice, Itamar Franco, com mandatos de 1990 a 1995) nas eleições presidenciais — e a nova Constituição permanece um programa não realizado. O BNH se extingue em 1986 e a produção de moradia só seria retomada em meados dos anos 1990. Nesta época — e sobretudo a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) — as decisões políticas a nível nacional foram cada vez mais submetidas às condições estabelecidas por instituições financeiras. Logo, a “resposta às necessidades sociais deveria ser a promoção do acesso a bens e serviços por meio de relações de mercado” (ROLNIK, 2015, p. 271). A partir daí, começa a atuar o chamado “empreendedorismo urbano”, que da porta para dentro avança e da porta para fora regride. Em outras palavras, aumenta-se o consumo enquanto o espaço público é tomado por infraestruturas urbanas precárias e insuficientes. As já discrepantes desigualdades entre as periferias e as regiões centrais se agravaram. No âmbito da mobilidade, por exemplo, cresceu a circulação de automóveis privados e se intensificou a baixíssima qualidade do sistema de transporte coletivo. Enquanto as classes mais abastadas aumentavam as distâncias percorridas e sua velocidade, o usuário do transporte coletivo teve seu tempo de deslocamento aumentado (ROLNIK, 2015).
1 “Em 1988, no início de fevereiro, outra enchente também devastou o Estado do Rio. Em consequência de desabamentos, foram 273 mortes no estado, sendo 78 no município do Rio e 170 em Petrópolis. (...) As principais vias da cidade ficaram alagadas e os engarrafamentos se estenderam madrugada a dentro. Na Avenida Radial Oeste, no Maracanã, a força das águas arrastou dezenas de carros.” Fonte: https://oglobo.globo.com/rio/rio-vive-pior-enchente-da-historia-3029065
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Neste mesmo período que surgem os movimentos estudados: MNLM, MTST, FIST e CMP1 Tendo Marcello Alencar (1989-1993) à frente da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, observase, em escala municipal, a retomada de ações de regulamentação fundiária com a criação da Comissão de Assuntos Fundiários. Ela foi voltada para resolver os conflitos gerados pelas ocupações, que se intensificaram especialmente na Barra da Tijuca, na região de Jacarepaguá e nas zonas Norte e Oeste. Brizola, eleito para seu segundo mandato (1991-1994) à frente do governo do estado do Rio de Janeiro, foi apontado como um estímulo para o movimento de ocupações urbanas. A ação do governo, assim como no primeiro mandato, foi a de não criminalizar as ocupações. Ele as reconheceu como atos decorrentes da falta de políticas habitacionais efetivas, mas, paradoxalmente, continuou com a política em que os “membros dos movimentos organizados de ocupação de terras urbanas faziam, conscientemente, ‘política habitacional com as próprias mãos’” (LEITÃO, 2015, p. 45). Com César Maia (1993-1997) sucedendo Marcello Alencar observou-se um recuo nas ocupações. Seu posicionamento era de não “ser complacente com as invasões”, as quais chamou de “indústria da invasão” e afirmou que tomaria “medidas enérgicas” contra elas (JORNAL DO BRASIL, 1993, apud. LEITÃO, 2015). De qualquer forma, a partir de meados dos anos 1990 houve uma gradual diminuição das ocupações. Nas gestões posteriores a 1994 houve uma mudança na postura do poder público, que criminalizava e não reconhecia o caráter social das ocupações. Além desses, Leitão (2015, p. 47) acrescenta outros fatores, como: A fragilização dos movimentos comunitários, observandose uma crise de representatividade, seja pela cooptação de lideranças por agentes dos poderes Executivo e Legislativo, seja pela ação do narcotráfico e de milícias (...) [e] a existência da ‘lei de responsabilidade fiscal, que restringiu as possibilidades de desapropriação de terras’.
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Os sindicatos e movimentos sociais permaneceram atores marginais na participação governamental no período FHC. Em vez de adotar os direitos sociais garantidos pela nova Constituição, sua agenda investia no retraimento da intervenção estatal. Com o aumento da pobreza e a inexistência de políticas redistributivas, surgiram os “enclaves fortificados”, que consistem em shoppings ou condomínios residenciais e que geram novas formas de segregação. São espaços privatizados que renegam a cidade e têm como oposto as periferias e as favelas (ROLNIK, 2015, p. 273). Ainda sob o governo FHC e em pequena escala, foi lançado o Programa de Arrendamento Residencial (PAR). Nele, o agente privado era responsável por toda a operação, desde a compra do terreno até a construção e elaboração do projeto. Tudo isso financiado e subsidiado pelo Estado, através da Caixa Econômica Federal (CEF), herdeira do BNH (ROLNIK, 2015, p. 289)., A oposição entre o enclave fortificado e o “habitat popular” ultrapassou em parte as fronteiras de classe, constituindo modelo urbanístico para o conjunto da sociedade, e adotado em programas de habitação de interesse social como o Minha Casa Minha Vida (que será abordado à frente), na política habitacional do governo Lula e Dilma (ROLNIK, 2015). Apesar disso, as influências progressistas foram eleitas, nas esferas municipais e estaduais, nos poderes legislativo e executivo. Assim, em 2001, é aprovado o Estatuto da Cidade, outro importante pilar jurídico para as ocupações.
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3.3.1. O Estatuto da Cidade O Estatuto da Cidade1 foi aprovado em 2001, após doze anos de negociações no Congresso Nacional, e vem regulamentar o capítulo sobre política urbana que havia sido aprovado pela Constituição Federal de 1998 (FERNANDES, 2013). A aprovação dessa lei federal, fruto da grande mobilização sociopolítica dos sindicatos e movimentos, tem sido aclamada internacionalmente. O Estatuto “substituiu a noção de propriedade privada individual sem maiores qualificações pela noção das ‘funções sociais da propriedade e da cidade’”, dando embasamento às estratégias de democratização do solo urbano e à moradia nas cidades (FERNANDES, 2013, p. 215). Também reconheceu os direitos coletivos dos residentes, assegurando a segurança política da posse, por meio do usucapião coletivo (BRASIL, 2001). Edésio Fernandes (2013, p. 2015) vê o Estatuto como um novo “marco de governança da terra urbana” no Brasil. Apesar disso, mais de quinze anos depois, a crise fundiária e habitacional no Brasil persiste e ganhou novos contornos. Como já vimos, o déficit habitacional e o número de imóveis vazios atingem proporções descomunais (BOULOS, 2014). A aplicação do Estatuto da Cidade tem sido criticada não só por não resolver esses problemas, mas por reforçar os processos históricos de segregação socioespacial e a especulação imobiliária (FERNANDES, 2013, p. 215). Ao longo das duas últimas décadas, o Estado vinha transferindo ainda mais recursos públicos para o setor privado, sobretudo para construtoras e agentes imobiliários. O programa “Minha Casa minha Vida” é um grande exemplo dessa mercantilização da cidade. Ao deslocamento dos recursos públicos às empresas privadas, as administrações públicas dão a justificativa de “renovação urbana”, “revitalização de áreas centrais”, “requalificação de centros históricos” e “grandes projetos urbanos”,
1 Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.
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o que inclui os grandes eventos como a Copa do Mundo1 e os Jogos Olímpicos2. Sob esses pretextos, além da especulação imobiliária e da gentrificação de diversas regiões, temos como consequência despejos e remoções de comunidades e ocupações, muitos deles consolidados há anos (FERNANDES, 2013, p. 218) — que, pelo Estatuto, poderiam ser usucapidos. Os movimentos sociais exigem a aplicação efetiva da Constituição e do Estatuto da Cidade, que criou diversas possibilidades jurídicas e sociopolíticas para o “reconhecimento de uma série de direitos coletivos e sociais criados pela nova ordem jurídico-urbanística” (FERNANDES, 2013, p. 219). Apenas o Estatuto e a Constituição (após mais de trinta e de mais de dez anos de nascimento, respectivamente) não foram e continuam não sendo suficientes para a efetivação dos direitos adquiridos.
1 Na Copa do Mundo realizada no Brasil em 2014, o total de gastos foi de R$ 27,8 bilhões. Destes, apenas 17% foram arcados pela iniciativa privada (Fonte: Portal da Transparência). 2 As Olimpíadas, realizadas no Rio de Janeiro em 2016, tiveram orçamento de R$ 38,7 bilhões, dos quais 43% foram desembolsados pelo Estado (Fonte: Portal da Transparência).
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3.4. Governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016) Após ser derrotado três vezes, Luiz Inácio Lula da Silva vence as eleições de 2002. Por meio de um discurso moderado, conciliou setores apoiadores do Partido dos Trabalhadores (PT) com os setores liberais. Sua governabilidade dependeu, então, de alianças com partidos conservadores e com as instituições de mercado. Seu governo não significou uma ruptura radical, mas uma conciliação de interesses e intenções conflitantes. Nesse cenário político, “as margens efetivas para mudança permaneceram muito limitadas” (ROLNIK, 2015, p. 294). Uma das primeiras iniciativas tomadas pelo governo Lula foi a criação do Ministério das Cidades. Este órgão foi encarregado de formular políticas urbanas a nível nacional e fornecer apoio técnico e financeiro a governos locais, contemplando habitação, saneamento e transportes. Inicialmente, foi gerido por membros do PT e por representantes de movimentos sociais — aqueles surgidos nas décadas de 1980 e 1990. Desta forma, propunham processos participativos para a elaboração de políticas urbanas e a autogestão na produção de habitação, tal qual na primeira administração municipal do PT em São Paulo (1989-1992), na gestão da Luiza Erundina1. Foi criado também o Sistema Nacional de Habitação (SNH), formado pelos três entes da federação e coordenadas pelo recém-inaugurado Ministério das Cidades, que tinha como objetivo subsidiar moradia para a população de baixa renda. Para implementá-lo, seria necessário criar o Fundo Nacional de Habitação (FNH), que tramitava desde 1991 no Congresso Nacional. De acordo com Raquel Rolnik (2015), na primeira Conferência Nacional das Cidades, o primeiro conselho eleito para o Ministério das Cidades tinha grande composição de movimentos sociais, o que representava um grande avanço na democratização das cidades. Já na II Conferência Nacional das Cidades, em 2005, foi deliberada a criação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), com o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). O programa priorizava as famílias de baixa renda, atuando na “produção habitacional (...), urbanização, 1
Luiza Erundina foi prefeita do município de São Paulo entre 1989 e 1993, eleita pelo PT
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regularização fundiária, melhoria habitacional, reforma e conversão de imóveis para habitação” (ROLNIK, 2015, p. 197). Já no final do mandato de Lula e no início do mandato de Dilma Rousseff (2011-2016), o incentivo ao consumo se configurou como elemento de importância crucial e em importância cada vez maior. Um de seus frutos foi a concessão de incentivos para a produção e aquisição de bens duráveis, por meio de “isenções fiscais, linhas de crédito com baixas taxas de juro e (...) subsídios diretos” (ROLNIK, 2015, p. 299), como o Programa Minha Casa Minha Vida, apresentado no próximo capítulo. 3.4.1. Sistema e Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS e FNHIS) O Sistema e Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS e FNHIS) foram criados pela Lei 11.124/2005, considerada a primeira lei de iniciativa popular aprovada no país, e tiveram participação fundamental dos movimentos de moradia (FERREIRA, 2012b). O SNHIS foi baseado em uma distribuição das atribuições entre os três níveis do governo. Para aderir ao sistema, os estados e municípios deveriam se comprometer com a criação de um fundo de habitação e com a elaboração de um Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS). Seus diferenciais foram a abertura à participação popular, visto que o fundo deveria ser gerido pelos Conselhos Gestores dos Fundos locais (que definiriam a alocação e o uso dos recursos aportados para Habitação de Interesse Social); e o alcance às camadas de baixa renda por meio do subsídio direto (CARDOSO, A.; ARAGÃO, T., 2013, p. 30). O SNHIS fomentava o fortalecimento das esferas locais, dos órgãos públicos municipais e estaduais, para a implantação de políticas habitacionais, à medida que impulsionava os municípios a utilizar recursos próprios ou a potencializar os recursos estaduais ou federais que lhes eram repassados (CARDOSO, A.; ARAGÃO, T., 2013, p. 32).
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Os panoramas políticos, sociais e econômicos são determinantes para entender as características dos programas de Habitação de Interesse Social (HIS) brasileiros. O SNHIS e o FNHIS foram implementados em um cenário de crescimento econômico. A partir de 2006, houve uma “progressiva liberalização dos gastos públicos, viabilizada pela ampliação internacional das reservas que, por sua vez, foram possibilitadas pela ampliação da exportação de commodities” (CARDOSO; ARAGÃO, 2013, p. 32). Cardoso e Aragão (2013, p. 33) afirmam que esses elementos, junto ao crescimento do PIB, foram determinantes para o quadro favorável de desenvolvimento da política habitacional e da ampliação do financiamento de moradias. Abortou-se, porém, essa política habitacional diversificada, “aderente às especificidades locais e sob controle social, aposta dos movimentos sociais e dos militantes da reforma urbana no início do governo Lula” (ROLNIK, 2015, p. 308). O governo dá início, então, ao Programa Minha Casa Minha Vida.
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3.4.2. Financeirização da moradia: Programa Minha Casa Minha Vida Em 2008, o quadro econômico internacional e nacional era de crise1. A reação do governo brasileiro foi a de adotar medidas de expansão de crédito pelos bancos públicos (BNDES, Caixa Econômica e Banco do Brasil), compensando a retração do setor privado. Nesse contexto, em março de 2009, o governo anunciou o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). O programa é, originalmente, um programa econômico, lançado para enfrentar a crise internacional, em diálogo com o setor imobiliário e da construção civil (AMORE, 2015, p. 15). O contexto da crise econômica, junto com o enfraquecimento do Ministério das Cidades no seu papel de formulador e condutor da política urbana, levou o governo acolher a proposta do setor da construção civil, apostando no potencial econômico da produção de habitação em massa. [...] Com essa iniciativa de caráter anticíclico, previa-se gerar empregos num setor da economia capaz de mobilizar diversos outros setores associados: desde a indústria extrativista e produtora dos materiais básicos da construção civil até a indústria moveleira e de eletrodomésticos, que é ativada no momento da entrega das chaves. (AMORE, 2015, p. 17).
1 “Em 2008, o mundo submergiu em uma profunda crise econômica que teve início nos Estados Unidos a partir dos problemas sistêmicos financeiros provocados pela crise dos mercados secundários de títulos lastreados em hipotecas, envolvendo os chamados subprimes. [...] Os subprimes eram créditos de alto risco que, em um ambiente financeiro desregulado, eram vendidos como papéis seguros e que permitiam taxas elevadas de rentabilidade. A crise imobiliária, ao fazer cair abruptamente os preços e reduzir a liquidez dos imóveis, deflagrou uma crise financeira cujo cerne, na verdade, era a desregulação das finanças globais.” (CARDOSO; ARAGÃO, 2013, p. 35)
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O PMCMV se estruturou a partir das modalidades de subprogramas (PNHU, PNHR, MCMVEntidades, MCMV abaixo de 50.000 habitantes) e por faixas de renda: de zero a três salários mínimos (SM), com execução via Fundo de Arrendamento Residencial (FAR); de zero a três SM a partir do MCMV Entidades1; de três a dez SM, com financiamento via Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS); e por municípios com menos de 50 mil habitantes (“sub 50”), com financiamento operado através de Agentes Financeiros Privados (e não pela Caixa Econômica) (CARDOSO; ARAGÃO, 2013). O programa apresenta duas contradições básicas. A primeira delas ocorre pelo surgimento com o objetivo de combater a crise econômica; a segunda, pelo privilégio que é concedido ao setor privado como agente de produção habitacional, deixando totalmente de lado alternativas de produção, como a pública, ou por autogestão, coletiva ou individual (CARDOSO; ARAGÃO, 2013, p. 45). Adauto Cardoso e Thêmis Aragão dividem a política habitacional em três tipos de atuação: (i) através do circuito em que o poder público é o agente promotor – modelo de execução do SNHIS; (ii) através do circuito em que o setor privado é o agente promotor – modelo de execução do PMCMV e (iii) através do circuito em que as cooperativas e associações habitacionais se colocam como agente promotor do empreendimento. (2013, p. 53)
Não se podem negar os benefícios do PMCMV, que originalmente se propunha a reduzir 14% do déficit habitacional. Ao todo, o programa produziu três milhões de unidades, sendo um milhão na Fase 1 e 2 milhões na Fase 2. Na fase 1, 40% das unidades foram destinadas para a Faixa 1 (de 0 a 3 SM), enquanto na Fase 2 essa fatia subiu para 60%. Refém do setor privado, porém, o programa não se articula com políticas urbanas e habitacionais e ignora o processo de planejamento em detrimento da produção em 1 Esta modalidade, que será apresentada em breve, é de extrema importância, visto que foi a financiadora de habitação nas ocupações.
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escala industrial da moradia (AMORE, 2015). As consequências desse modelo de política habitacional são vários. Os empreendimentos são constantemente viabilizados a partir da dinâmica de mercado, onde há terras mais baratas, distantes das centralidades urbanas e com extrema precariedade de infraestrutura (CARDOSO; ARAGÃO, 2013, p. 47) (Figura 5). A leitura dessas consequências pode ser vista em Fix e Arantes (2009, p. 200): Na ânsia de poder viabilizar o maior número de empreendimentos, o poder local ficará refém de uma forma predatória e fragmentada de expansão da cidade. [...] O modelo de provisão mercantil e desregulada da moradia irá sempre procurar a maximização dos ganhos por meio de operações especulativas. Não há nada no pacote, por exemplo, algo que estimule a ocupação de imóveis construídos vagos (que totalizam 6 milhões de unidades, ou 83% do déficit), colaborando assim para o cumprimento da função social da propriedade. A existência desse imenso estoque de edificações vazias é mais um peso para toda a sociedade, pois são em sua maioria unidades habitacionais providas de infraestrutura urbana completa, muitas delas inadimplentes em relação a impostos. Não há dúvida de que o pacote irá estimular o crescimento do preço da terra, favorecendo ainda mais a especulação imobiliária articulada à segregação espacial e à captura privada de investimentos públicos.
Raquel Rolnik (2018) corrobora com as afirmações acima, acrescentando ainda que o modo de produção de moradias populares para além dos limites da cidade aprofunda a segregação socioespacial
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Figura 5 – Conjunto habitacional do PMCMV: padronização, baixa qualidade arquitetônica, longe de regiões centrais infraestruturadas. Fonte: https://www.cartacapital.com.br/revista/903/cortes-no-minha-casa-minha-vida-vao-estimularprecarizacao-da-moradia
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e encarece os custos da mobilidade. Os longos movimentos pendulares1 prejudicam a qualidade de vida coletiva. Uma das formas de reivindicação por moradia e pelo direito à cidade, frente não somente aos programas de habitação, mas ao modelo de cidade em que vivemos, é ocupar. Demonstrou-se que, historicamente, esses programas segregam, fornecem moradia de péssima qualidade — pois os entes privados buscam a maior margem de lucro possível, logo preocupam-se em baratear o empreendimento, não em conferir a ele qualidade — e, sobretudo, não dão protagonismo às pessoas neles que moram. Os poucos avanços promovidos pelo SNHIS, que no início de sua agenda permitiam o protagonismo de outros atores (movimentos sociais, etc) se dissolvem no PMCMV. Também se dissolve a descentralização que fomentava a atuação dos estados e municípios na provisão de moradia. Nos últimos anos, quando “legitimadas”, as ocupações recorreram ao financiamento do Programa Minha Casa Minha Vida-Entidades (PMCMV-Entidades). Ele permitiu a produção habitacional autogerida. As Entidades podem ser movimentos sociais, cooperativas, associações de moradia, etc. Elas apresentam projetos à Caixa Econômica Federal, que seleciona as entidades e os beneficiários enquadrados2, contrata a operação e acompanha a execução da obra (CARDOSO; ARAGÃO, 2013, p. 38).
1 Migração ou movimento pendular é o deslocamento diário de ida e volta do domicílio-trabalho/estudo. Os fatores associados à pendularidade são: “a dinâmica do mercado de terras no município-pólo dos aglomerados; a alteração do perfil econômico e a desconcentração da indústria para municípios que não o pólo ou distritos industriais consagrados; o acesso diferenciado ao mercado de trabalho e/ou oportunidades de estudo; os custos e a qualidade do transporte disponível e o tempo de deslocamento” (MOURA; CASTELLO BRANCO; FIRKOWSKI, 2015). 2 A renda máxima é de três salários mínimos, o beneficiário não pode possuir outro imóvel etc.
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3.4.3. Programa Minha Casa Minha Vida-Entidades Dos subsídios públicos para o PMCMV, apenas 3% eram destinados para as entidades. O programa claramente prioriza a oferta e produção direta por construtoras privadas, a quem destina os outros 97% dos seus recursos (CARDOSO; ARAGÃO, 2013). Embora tenha sido uma importante ferramenta para os movimentos sociais, o programa não só é insuficiente, como é restritivo. Dentre outros motivos, restritivo porque suas exigências (nas normas) limitam o projeto arquitetônico. Insuficiente porque os movimentos de luta por moradia não anseiam apenas por uma casa: anseiam pelo direito à cidade, como entendido por Lefebvre (1996). Anseiam por participar, por escolher, por serem atores ativos na casa e na cidade. Além do direito à moradia, o direito à cidade não se restringe unicamente à possibilidade de locomoção (HARVEY, 2013; LEFEBVRE, 1996). Para Lefebvre (1996), o direito à cidade “não pode ser concebido como um simples direito de visita a ou um retorno às cidades tradicionais” pelo contrário, “ele pode apenas ser formulada como um renovado e transformado direito à vida urbana” (LEFEBVRE, 1996, p.158). A implicação é que nós, individual e coletivamente, fazemos nossa cidade através de nossas ações diárias e de nossos engajamentos políticos, intelectuais e econômicos. Todos somos, de um jeito ou de outro, arquitetos de nossos futuros urbanos. O direito à mudança da cidade não é um direito abstrato, mas sim um direito inerente às nossas práticas diárias, quer estejamos cientes disso ou não. Esse é um ponto profundo, o pivô sobre o qual grande parte de meu argumento revolve. (HARVEY, 2013, p. 55)
Por fim, sua configuração não se adequa às exigências dos movimentos, e tampouco ao modelo autogestionário presente nas ocupações, que é a de real direito de uso, não de propriedade privada.
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4. Ocupações
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As ocupações constituem uma das formas de reivindicação por moradia e pelo direito à cidade. Como já apontado, elas possuem características diferentes, são coordenadas por variados movimentos sociais (no caso das ocupações organizadas), ocorrem em espaços diferentes (terrenos ou edifícios, em regiões centrais ou periféricas), dentre outras. As ocupações que serão analisadas neste capítulo são: Mariana Crioula, Manuel Congo e Quilombo da Gamboa. Como referência, têm-se estudos (dissertações, artigos, livros) sobre as ocupações, mas também a reunião de informações a partir de entrevistas a moradores, coordenadores e arquitetura de ocupações e de visitas às mesmas. Todas as três se situam em regiões centrais do Rio de Janeiro, no Centro e na Região Portuária. Há movimentos e ocupações que atuam na periferia — como o faz o MTST, por exemplo —, porém a escolha pela área central se deu por esta ser uma área já dotada de infraestrutura urbana e por concentrar a maior parte da oferta de empregos formais. As duas primeiras (Mariana Crioula e Manuel Congo) são coordenadas pelo MNLM e a última (Quilombo da Gamboa) pela UMP e pela CMP. Uma característica que todas têm em comum é o funcionamento por autogestão, que será explicado a seguir. O processo autogestionário as permeia por inteiro: as rege no dia a dia, na divisão de tarefas, na tomada de decisões e até no processo projetual de arquitetura e na fase de construção. A autogestão pode ser concebida por vários vieses. De modo generalista, pode-se dizer que os processos autogestionários tem como objetivo transcender um poder hegemônico, sendo fruto da auto-organização política, econômica e social, de uma classe ou grupo. A autogestão fundamentalmente deve ocorrer de forma autônoma e horizontal (MIRANDA, 2017). Ela “é uma forma de luta democrática contra um poder hegemônico”que busca reorganizar a sociedade de baixo para cima (MIRANDA, 2017, p. 6).
Figura 6 - Autogestão no dia a dia: escala de limpeza do quarto pavimento da ocupação Manuel Congo. Fonte: fotografia da autora.
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4.1. Processo e projeto autogestionários Na prática das ocupações, a base do modelo de autogestão são as assembleias. Elas compõem um modo horizontal – isto é, não hierárquico – de tomada de decisões. Todos têm direito à fala e ao voto, sendo que cada voto tem o mesmo peso. A partir dessa base, são tomadas as mais variadas decisões: desde a montagem das áreas coletivas (principalmente das cozinhas1), das escalas de limpeza (Figura 6) e de portaria (das quais todos os moradores tem que participar), até os processos de negociação com o Estado. Ou então sobre como proceder em questões legais, por exemplo, quando há reintegração de posse ou quando um morador descumpre a carta de princípios interna (RIVERA; COLI; PERROTTA-BOSC, 2016). A autogestão se aplica também ao projeto arquitetônico: Os moradores e líderes dos movimentos anseiam ter voz ativa no processo de projeto, a equipe de arquitetura precisa ir às assembleias, utilizar-se de instrumentos para fomentar a participação, estabelecer métodos de apresentação, de compreensão e diálogo com os residentes por meio do desenho, a fim de aprimorá-lo com soluções para as reais necessidades da ocupação (RIVERA; COLI; PERROTTA-BOSC, 2016, p. 23).
Ao se fazer um projeto de requalificação de edifício existente ou até um projeto “do zero”, é fundamental compreender que a relação arquiteto-cliente não ocorre da maneira tradicional. E quando falamos do tradicional, podemos mencionar os projetos de programas de habitação de interesse social (tal qual o PMCMV) e também os enclaves fortificados da classe média, ambos promovidos por grandes incorporadoras e construtoras (ROLNIK, 2015). Produzidos em escala industrial (AMORE, 2015), os 1 frente.
As cozinhas coletivas são o “coração” das ocupações. Falaremos delas e de outros ambientes de uso coletivo mais à
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moradores são completamente alienados do processo de concepção arquitetônica, de escolha do terreno, de construção1 . Em contraste, no modelo autogestionário os moradores são participantes ativos desses processos. Com isso, “as qualidades arquitetônica e urbanística resultantes distinguem-se em muito das carências espacial e construtiva de grande parte dos conjuntos habitacionais financiados pelo governo” (RIVERA; COLI; PERROTTA-BOSC, 2016, p. 23) — o que será examinado posteriormente, no caso do Quilombo da Gamboa. Apesar das limitações, um exemplo de programa que tolheu menos movimentos foi o Programa Minha Casa Minha Vida-Entidades (PMCMV-Entidades), possibilitou para arquitetos e moradores chegar a soluções de unidades de habitação e de espaços de uso comum de qualidade notável (MIRANDA, 2017). Uma exigência das ocupações é a formação de espaços geradores de renda, do qual muitos moradores dependem para garantir sua subsistência. Nos conjuntos do PMCMV quase não existe instalação de comércio regular e os projetos raramente preveem uso misto. Consequentemente, os moradores exercem atividades econômicas informais dentro das unidades (cabeleireiras, manicures, esteticistas, confecção e/ ou venda de roupas, fabricação e venda de bombons, pães, biscoitos, pizzas, etc). O uso misto, que só passou a ser permitido na fase 2 do programa, é desincentivado pelo regulamento, que determina que a “parte comercial e/ou de serviço deve ser executada com recurso da construtora (ou de outra fonte)” (NASCIMENTO, D. et al, 2015, p. 218).
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Aqui refere-se em especial aos programas de habitação social, foco do trabalho.
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O período de obras também pode funcionar como geradoras de renda para o coletivo, por meio da contratação dos próprios moradores como mão de obra. Além de gerar renda, promove a capacitação e qualificação dessas pessoas. No modelo de autogestão pelo MCMV-Entidades, a construção pode seguir três regimes (Tabela 1): autoconstrução, mutirão ou autoajuda e administração direta (CAIXA apud. MIRANDA, 2017, p 103).
Tabela 1 - Opções de construção dentro do processo autogestionário. Fonte: MIRANDA, 2015, p. 103
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A autogestão está relacionada à superação do poder hegemônico, possibilitando maior independência de organização e de tomada de decisões. Esse modelo busca sofrer o mínimo de interferência por parte de setores empresariais e governamentais. Entretanto, essa autonomia e superação estão limitadas, pois os grupos dependem dos programas de habitação promovidos pelo Estado. Estes, por sua vez, são ditados por quem está no poder, como vimos no segundo capítulo. Uma das influências no coletivo são as alternâncias entre governos. Outra consequência dessa não-superação é a construção de cidades (e aqui se incluem os programas de habitação de interesse social) alinhadas não com os interesses da classe trabalhadora, mas com os interesses do empresariado (ENGELS, 2015). No caso do Quilombo da Gamboa, por exemplo, houve pressão da prefeitura para que o grupo abandonasse a ideia de projeto autogerido, cujo processo é mais lento, e aderisse ao Minha Casa Minha Vida (padronizado, com projeto de arquitetura e erguido por construtora sem protagonismo algum dos moradores). Isso gerou alguns conflitos no grupo, pois: Apesar de muitas vezes nunca terem usufruído, [as pessoas] estão familiarizadas com a forma de produção habitacional tradicional a partir de empreiteiras, na qual o morador recebe o apartamento pronto, sem participar do processo de gestão do projeto e da obra (MIRANDA, 2017, p. 110).
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Figura 7 — Fachada na Rua da Gamboa. À esquerda, os trilhos do VLT (veículo leve sobre trilhos). Fonte: fotografia da autora
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4.2. Ocupação Mariana Crioula A Ocupação Mariana Crioula ocupa dois terrenos na Gamboa, região portuária do Rio de Janeiro. Tem como endereços a Rua da Gamboa, 120 e a Rua Pedro Ernesto, 125. Os terrenos foram concedidos pela União ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e são administrados pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
Figura 8 — Mapa de trecho da Zona Portuária do Rio de Janeiro, com os terrenos da ocupação marcados em amarelo. Fonte: Google Maps (marcação da autora).
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O projeto foi realizado por autogestão com assessoria técnica do Núcleo de Assessoria, Planejamento e Pesquisa (NAPP), prevendo 60 unidades distribuídas em três edifícios. De acordo com Wilson Carolino, coordenador da ocupação entrevistado, os futuros moradores que receberão as unidades estão cadastrados pelo MNLM. No terreno, atualmente moram cinco famílias cadastradas que se encontram em situação de vulnerabilidade. Para elas, foram erguidas construções improvisadas sob o galpão existente no terreno (Figura 8). Na testada da Rua da Gamboa foi projetado um restaurante, que será o espaço gerador de renda. De acordo com Lucas Faulhaber, um dos arquitetos responsáveis, o programa também conta com outros espaços de uso coletivo, como auditório, vestiário, área para crianças e alojamento (para receber convidados externos, tendo em vista que a Mariana Crioula será sede do MNLM no Rio de Janeiro). As unidades são dividias em um e dois quartos, com área média de 42m². (RIVERA; COLI; PERROTTA-BOSC, 2016, p. 23)
Figura 9 — Parte do terreno voltado para a rua Pedro Ernesto, onde funcionava um galpão. Atualmente, acomoda, de forma precária, cinco famílias. As famílias estabelecidas nas construções improvisadas estão inscritas e serão proprietárias das unidades, quando construídas. Fonte: fotografia da autora Figura 10 — Parte do terreno voltado para a rua da Gamboa, em antigo casarão em ruínas. Fonte: fotografia da autora
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4.3. Ocupação Manuel Congo Teve início em outubro de 2007, quando houve seu dia da festa1. Cerca de 70 famílias ocuparam o prédio do extinto Cine Vitória, que sofreu reintegração de posse uma semana depois. Após o despejo, as 42 famílias mais necessitadas encontraram um endereço definitivo em um prédio do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), abandonado há quase vinte anos, na Rua Alcindo Guanabara, 20 (Figura 12), ao lado da Câmara Municipal do Rio de Janeiro (RIVERA; COLI; PERROTTA-BOSC, 2016). De acordo com Maria Lourdes Lopes e Elisete Napoleão, coordenadoras do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), o imóvel foi comprado em 2011 por R$700 mil com verba do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). Posteriormente, o movimento montou um CNPJ para contratar o projeto de requalificação do edifício, feito pelo Núcleo de Assessoria, Planejamento e Pesquisa (NAPP), pelas arquitetas Claudia Serpa e Ticianne Ribeiro. O CNPJ permitiu a obtenção de fundos do Minha Casa Minha Vida-Entidades (MCMV-Entidades) e, assim, a contratação dos profissionais que preferissem, sem depender das assessorias técnicas habilitadas no Ministério das Cidades. (RIVERA; COLI; PERROTTA-BOSC, 2016). Ao contrário da Mariana Crioula, o projeto da Manuel Congo é de requalificação de imóvel. Ou seja, de modificação do uso original para o uso proposto – no caso, para moradia. Assim como os demais projetos apresentados aqui, o projeto foi concebido pelo processo de autogestão.
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Os movimentos chamam de dia da festa o primeiro dia da ocupação.
Figura 11 — Prisma de ventilação da Manuel Congo. Fonte: fotografia da autora.
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Figura 12 — Mapa de trecho do Centro do Rio de Janeiro, com o edifício da Manuel Congo (antes pertencente ao INSS) marcado em amarelo. Fonte: Google Maps (marcação da autora).
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Os dois primeiros pavimentos são reservados para áreas de uso coletivo. No térreo (Figura 13) há a Casa de Samba Mariana Crioula (restaurante voltado para geração de renda) e a cozinha, que já foi a cozinha coletiva, fundamental para o início da ocupação. No segundo pavimento (Figura 14) há sala para assembleias, o Espaço Criarte (sala voltada para crianças e adolescentes) e o escritório, que funciona como sala administrativa do prédio.
Figura 13 — Pavimento térreo. Sem escala. Imagem: NAPP (Núcleo de Assessoria, Planejamento e Pesquisa). Marcações da autora.
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Figura 14 — 2º pavimento. Sem escala. Imagem: NAPP (Núcleo de Assessoria, Planejamento e Pesquisa). Marcações da autora.
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Figura 15 — 3º ao 7º pavimentos. À esquerda, unidades do tipo quitinete; à direita, unidades de um quarto (conversível em dois) e de dois quartos. Sem escala. Imagem: NAPP (Núcleo de Assessoria, Planejamento e Pesquisa). Marcações da autora..
Figura 16 — 8º e 9º pavimentos. À esquerda, unidades de um quarto e unidades de um quarto (conversível em dois); à direita, unidades de um quarto (conversível em dois) e quitinete (com varanda). Sem escala. Imagem: NAPP (Núcleo de Assessoria, Planejamento e Pesquisa). Marcações da autora.
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Figura 17 — 10º pavimento. À esquerda, quitinetes e unidades de um quarto (conversível em dois); à direita, unidades de um quarto (conversível em dois) e quitinete (sem varanda). Sem escala. Imagem: NAPP (Núcleo de Assessoria, Planejamento e Pesquisa). Marcações da autora.
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Além do programa, outro importante ponto não-tradicional na arquitetura é a fase da obra. Em muitos casos é necessário que os moradores permaneçam nas ocupações durante sua execução. Por este motivo, o projeto e o gerenciamento da obra devem prever sua permanência. Uma das coordenadoras do MNLM, Elisete Napoleão, conta como esse processo ocorreu na Manuel Congo. A obra foi executada em uma extremidade do edifício por vez. Com uma das extremidades interditada, os moradores dela iam para a extremidade oposta. Com isso, duas ou mais famílias ocuparam cada unidade. Nos pavimentos superiores ficam as unidades habitacionais, com três tipologias diferentes. As unidades foram distribuídas e sorteadas de acordo com o tamanho das 42 famílias. Há 5 tipologias diferentes: quitinetes (com e sem varanda); unidades de um quarto; unidades de um quarto que podem ser convertidos em dois; e unidades de dois quartos. (Figuras 15, 16 e 17).
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1_ ACESSOS 2_ RESTAURANTE E CASA DE SAMBA Café, restaurante e centro cultural para colaborar no custeamento das despesas. Atualmente serve de depósito para o material da obra. 3_ ESCRITÓRIO Escritório do Movimento e da Associação de Apoio à Moradia. 4_ ESPAÇO CRIARTE Espaço para a infância e adolescência. 5_ ASSEMBLEIA Área de assembleias para discutir a vida da comunidade e o projeto de requalifi cação do prédio. Auditório em construção. Figura 18 — Fachada na rua Evaristo da Veiga. Fonte: fotografia da autora.
6_ COZINHA TEMPORÁRIA Cozinha temporária para os operários da construção e venda de quentinhas
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A_ UNIDADE DE 1 QUARTO B_ UNIDADE DE 2 QUARTOS C_ UNIDADE DE 1 QUARTO Podendo ser convertido em 2.
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D_ QUITINETE E_ QUITINETE
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6 Figura 19 — Corte perspectivado do projeto. Fonte: (RIVERA; COLI; PERROTTA-BOSC, 2016). Marcações da autora.
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4.4. Ocupação Quilombo da Gamboa O projeto de moradia popular Quilombo da Gamboa teve um processo diferente das demais ocupações e dos projetos que as sucederam. Ao contrário da Manuel Congo, cujo projeto consistiu na requalificação de edifícios, este foi um projeto de edifícios multifamiliares, ou seja, um projeto “do zero”. Além disso, o terreno surgiu antes da formação do grupo, por meio da identificação de terrenos pelo Grupo de Trabalho Nacional da Secretaria do Patrimônio da União, formado no primeiro mandato do expresidente Lula, em 2006, com fundos do FNHIS (MIRANDA, 2017). Seu objetivo era o de juntar entidades locais, em várias cidades brasileiras, para buscar terras com potencial para serem destinadas para moradia popular (MIRANDA, 2017, p. 74). A partir daí, surgiu um grupo composto pela Caixa Econômica Federal, pela Fundação Bento Rubião, pela Secretaria do Patrimônio da União, pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), por movimentos sociais locais, que tiveram como objetivo buscar terrenos para moradia na região portuária1. Por fim, o Quilombo foi composto pelo remembramento de seis terrenos, quatro da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e dois da Prefeitura do Rio (CDURP)2 (Figura 20). O coletivo Quilombo da Gamboa foi formado em 2009, composto pela UMP (União por Moradia Popular), cuja demanda foi a de abranger moradores do antigo Quilombo das Guerreiras3, pela CMP (Central de Movimentos Populares) e pela Fundação Bento Rubião, que trouxe moradores próximos à Central do Brasil. Em 2009, o coletivo passou a se reunir com o escritório de arquitetura Chiq da Silva para desenvolver o projeto habitacional, que ganhou menção honrosa no 4º Prêmio da Caixa dos anos de 2008 e 2009 (MIRANDA, 2017, p. 80). Em 2015, fecharam contrato com o MCMV-Entidades. 1 À época ainda não se falava do Porto Maravilha. 2 Os terrenos que haviam sido designados anteriormente foram alterados pelo traçado da Via Binário do Porto, o que gerou alterações no projeto (e mais demora na execução deste), que já até se encontrava em fase de aprovação junto à prefeitura. 3 O Quilombo das Guerreiras começou em 2006, com a ocupação de um edifício onde funcionava o setor de engenharia da Companhia Docas do Rio de Janeiro (CDRJ). Permaneceu até 2013, quando o governo federal desapropriou o edifício e outros terrenos adjacentes em detrimento do Projeto Porto Maravilha, incluindo as Trump Towers (MIRANDA, 2017, p. 80).
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Figura 20 — Mapa de trecho do Centro do Rio de Janeiro, com o edifício da Manuel Congo (antes pertencente ao INSS) marcado em amarelo. Fonte: Google Maps (marcação da autora).
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Assim como na ocupação Mariana Crioula, foram criadas, dentro de um galpão existente no terreno do projeto, residências temporárias, que abrigaram dez famílias em situação mais vulnerável. O grupo discutiu a possibilidade de os moradores se distribuírem de forma mais orgânica no edifício. Ou seja, foi pensada a possibilidade de haver troca de moradores e unidades, como ocorre em alguns bairros autogeridos no Uruguai (MIRANDA, 2017, p. 120). Há alguns exemplos de que maneiras isso poderia ocorrer: se uma pessoa que mora sozinha constitui uma família, ela poderia ir para uma unidade com mais quartos; se numa unidade os filhos vão constituindo suas próprias famílias e sobram a mãe e/ou o pai, estes iriam para uma unidade menor, de um quarto; se um morador envelhece ou se lhe ocorre algum problema de saúde, ele poderia migrar para pavimentos inferiores etc. Essa organicidade, entretanto, não é permitida nem pelo regulamento do MCMV, nem pela lei, pois só seria possível se a propriedade fosse coletiva1. No Quilombo, apesar das unidades serem financiadas individualmente, há a priorização das áreas de uso comum, que têm como objetivo servir não somente aos próprios moradores, como também cumprir função social para o bairro. Para isso, o projeto possui diferentes níveis de permeabilidade (Figura 21) e foram pensados programas que atendessem às demandas da vizinhança (foi cogitada uma padaria, por exemplo) (MIRANDA, 2017, p. 121). Para a definição dos espaços coletivos foi fundamental a participação democrática de todos. A Figura 22 mostra os esquema de usos dos espaços comuns discutidos coletivamente. A partir das discussões, são gerados potenciais para serem pensados, como geração de renda, de cultura, de educação, de lazer (MIRANDA, 2017, p. 122).
1
Este assunto será melhor abordado no capítulo seguinte, 5. Ensaio: projeto de moradia por aluguel social.
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Público
Semipúblico
Privado
Figura 21 — Implantação do projeto com os diferentes níveis de permeabilidade. Fonte: Chiq da Silva apud. Miranda, 2015. Legenda feita pela autora.
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Figura 22— Organograma com as áreas de uso comum discutidas pelo coletivo. Fonte: Chiq da Silva apud. Miranda, 2015.
Figura 23— Mapa com a localizaçã localizados na região portuária. 1MCMV; 3- conjunto do Programa N autora a partir de Miranda, 2015
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ão dos três conjuntos habitacionais, Quilombo da Gamboa; 2- conjunto do Novas Alternativas. Fonte: elaborado pela
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Miranda (2017), corroborando com Rivera, Coli e Perrotta-Bosc (2016), faz um comparativo entre projetos. Estes afirmam que as qualidades arquitetônicas dos projetos autogeridos são superiores à de grade parte dos conjuntos habitacionais financiados pelo governo. Miranda (2017, p. 125), por sua vez, compara o projeto do Quilombo com outros dois, do MCMV e do Programa Novas Alternativas1. Esses dois últimos, concebidos por gestão tradicional, se desenvolveram por escritórios de arquitetura e construtoras, e com a gestão da Prefeitura do Rio de Janeiro.
1 “O Programa Novas Alternativas atua na reabilitação, recuperação e construção de imóveis em vazios urbanos infraestruturados localizados no Centro do Rio. A área, dotada de redes de infraestrutura urbana e serviços, é o foco principal de atuação do Programa.” (Fonte: http://www0.rio.rj.gov.br/habitacao/novas_alt.htm)
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Público Semipúblico Privado
Figura 24 — Implantação dos projetos (de cima para baixo) Quilombo da Gamboa (MCMVEntidades), do MCMV e do Novas Alternativas. Fonte: Chiq da Silva apud. Miranda, 2015.
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Os três conjuntos são próximos entre si, situados na região portuária (Figura 23). Apesar de possuírem parâmetros urbanísticos em comum — como o mesmo gabarito, logo todos tem quatro pavimentos — é bastante clara a diferença de níveis de permeabilidade dos três conjuntos (Figura 24). O Quilombo possui três níveis: público, semipúblico e privado; o conjunto do MCMV possui áreas públicas e privadas, porém sem áreas de transição, intermediárias, e sem dialogarem entre si; e o do Programa Novas Alternativas só possui áreas privadas. A presença desses três níveis de permeabilidade se deveu ao “esforço do grupo em criar uma relação com o bairro em que o projeto será desenvolvido” e pelo propósito de cumprir uma função social não apenas para os moradores, mas também para o bairro (MIRANDA, 2017, p. 128). A quantidade e a qualidade de áreas de uso comum também são dissemelhantes: [No Quilombo] foi ensaiada uma ligação da futura praça pública com espaços comuns do projeto, que também se tornariam espaços públicos, provavelmente voltados para cultura. A discussão dos moradores de utilização de alguns espaços coletivos como sala de leitura, biblioteca, sala de curso, por exemplo, poderá permitir a presença de outras pessoas da região no prédio, para além dos moradores, tornando se uma área semi-pública. Somente um pátio do projeto seria destinado especificamente para os moradores, tornando-se uma área de acesso apenas privada. Somado a isso, a destinação de áreas de geração de renda (MIRANDA, 2017, p. 129).
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Já o projeto do MCMV destina a área interna apenas para moradores, prevendo poucos espaços de uso comum (churrasqueira, playground e “espaço comunitário”) sem relação alguma com a cidade. O projeto do Programa Novas Alternativas não possui espaço coletivo algum, se resumindo a um projeto de unidades habitacionais, sem debate para gerar renda para os moradores ou para uma função social à região para além da moradia (MIRANDA, 2017, p. 131). Em relação às unidades, a metragem quadrada não apresenta diferenças significativas, porém podemos reparar que o Quilombo é o único que possui duas tipologias (um e dois quartos) (Figura 25). Nos outros projetos, de gestão tradicional, há apenas a tipologia de dois quartos (Figuras 26 e 27). Essa diferença pode ser explicada pelo “fato do projeto do Quilombo da Gamboa (MCMV-E) ser desenvolvido diretamente pelas demandas dos moradores, que buscam uma maior adequação do desenho ao perfil das famílias, dando a possibilidade de gerar uma maior variedade no projeto das unidades habitacionais” (MIRANDA, 2017, p. 133). A partir do comparativo entre projetos por gestões diferentes podemos ver alguns pontos chave. O diálogo constante e horizontal com os moradores na autogestão permite soluções que se adequam às especificidades das famílias, da porta de casa para dentro e para fora. Além da diversidade tipológica, percebese uma preocupação em o edifício não estar dissociado do bairro e da cidade.
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Figura 25 — Tipologias de um (aproximadamente 38m²) e dois quartos (aproximadamente 50m²) do Quilombo da Gamboa. Fonte: Chiq da Silva apud. Miranda, 2015.
Figura 26 — Tipologia de dois quartos (aproximadamente 48m²) do projeto financiado pelo MCMV. Fonte: Chiq da Silva apud. Miranda, 2015.
Figura 27 — Tipologia de dois quartos (aproximadamente 45m²) do projeto financiado pelo Programa Novas Altenativas. Fonte: Chiq da Silva apud. Miranda, 2015.
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As soluções projetuais demonstram preocupação com a função social da habitação além-muro e dialogam com a ideia de direito à cidade de Lefebvre (1996) e Harvey (2013). Para Lefebvre (1996), “ele pode apenas ser formulada como um renovado e transformado direito à vida urbana” (LEFEBVRE, 1996, p.158). Harvey aponta da seguinte maneira: A implicação é que nós, individual e coletivamente, fazemos nossa cidade através de nossas ações diárias e de nossos engajamentos políticos, intelectuais e econômicos. Todos somos, de um jeito ou de outro, arquitetos de nossos futuros urbanos. O direito à mudança da cidade não é um direito abstrato, mas sim um direito inerente às nossas práticas diárias, quer estejamos cientes disso ou não. Esse é um ponto profundo, o pivô sobre o qual grande parte de meu argumento revolve. (HARVEY, 2013, p. 55)
Seu pensamento é completado por David Harvey, para quem a liberdade da cidade é mais do que acesso ao que existe: é o direito de mudar a cidade (HARVEY, 2013, p.158). Ora, se além da moradia os movimentos sociais e as ocupações reivindicam a reforma urbana, a modificação estrutural da cidade, não estariam eles lutando também pelo direito à cidade? Apesar de possibilitar resultados melhores e uma busca pelo direito à cidade, o MCMV-Entidades é restritivo para o processo autogestionário. Isso é explicado, inclusive, pelo programa trabalhar na perspectiva da propriedade privada, o que será discorrido no próximo capítulo.
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5. Ensaio projetual: moradia por direito de uso
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É importante ressaltar que as ocupações transcendem a luta por moradia, são luta pelo direito à cidade . As ocupações autogeridas (que são o alvo do trabalho), são contra-hegemônicas e construídas de forma coletiva, junto à ideia do direito à cidade ser mais do que um direito individual. Desta forma, os movimentos combatem o individualismo em detrimento de uma organização coletiva. Quantitativamente, os avanços dessa batalha contra-hegemônica podem ser vistos como inexpressivos, porém “cada caso mostra uma luta de resistência que traz uma outra forma de se pensar a cidade” (MIRANDA, 2017, p. 90). 1
Apesar de possibilitar alguns avanços, o MCMV-Entidades apresentou inúmeros entraves para o modelo autogestionário. Além das restrições do próprio programa, há a incongruência da autogestão ser pautada na transcendência dos limites do Estado (MIRANDA, 2017, p. 93). Nos moldes do MCMV-Entidades há, portanto, grande interferência do Estado e do empresariado. Os movimentos acabam por depender diretamente daquele, que sofre alternâncias entre governos e, consequentemente, provoca inúmeras alterações nos programas de habitação. Outro ponto crítico é que o Estado atua em prol de capital em detrimento da classe trabalhadora, conforme afirma Engels (2015): Está claro como a luz do sol que o Estado atual não pode nem quer remediar o flagelo da falta de moradias. O Estado nada mais é que a totalidade do poder organizado das classes possuidoras, dos proprietários de terras e dos capitalistas em confronto com as classes espoliadas, os agricultores e os trabalhadores. O que não querem os capitalistas individuais (…) tampouco quer o seu Estado. (ENGELS, 2015, p. 100)
Não vamos, contudo, nos aprofundar no pensamento engelsiano. Por ora, basta analisar como o MCMV priorizava a oferta e produção direta por construtoras privadas, destinando apenas 3% de seus recursos às entidades (CARDOSO; ARAGÃO, 2013). 1 Como entendido por Henri Lefebvre (1996) e David Harvey (2013).
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Alguns autores vêem o modelo de propriedade privada em detrimento da propriedade social como um entrave para o direito à cidade e, portanto, ao modelo autogestionário. O direito à propriedade privada, normalmente visto como inviolável, constitui fonte de riqueza à classe dominante e ameaça a população na busca por direitos fundamentais (MELLO, 2012, p. 223). Engels e Marx (2013, p. 15) falam sobre seu caráter restritivo e que sua existência é possível apenas porque boa parte da população é exclusa desse modelo. Apesar de não terem a propriedade coletiva como uma de suas principais bandeiras de luta (MIRANDA, 2017, p. 114), os movimentos sociais são críticos da propriedade privada. Como vimos, ela constitui modelo inacessível para boa parte da sociedade: o deficit quantitativo, que é calculado pelo IBGE (2015) com a soma de quatro componentes (domicílios precários, coabitação familiar, ônus excessivo com aluguel urbano e adensamento excessivo de domicílios alugados1) atinge mais de 10% da população do país. Já o deficit qualitativo (que consiste na ausência de infraestrutura e serviços básicos) atinge mais de 25% da população (BOULOS, 2014, p. 14). Paralelamente, há um enorme estoque de imóveis e terras vazios, muitos deles inseridos na malha urbana infraestruturada (FERNANDES, 2013, p. 215), sem cumprir função social — determinada pela Constituição e pelo Estatuto da Cidade. Embora não rompa com a propriedade privada, a propriedade coletiva é a que mais se aproxima da propriedade social (MIRANDA, 2017, p. 115) e é justamente sobre ela que debruçaremos o ensaio arquitetônico. Como referência, usaremos o caso do Uruguai, que com a Federación Uruguaya de Cooperativa de Viviendas para La Ayuda Mutua (Fucvam) institucionalizou a “Ley de Vivienda”. No Brasil, dentre outras razões, a forte herança da propriedade privada impossibilita a implementação de iniciativas como a propriedade coletiva (MIRANDA, 2017, p. 116). Herança esta que será discutida no item a seguir, sobre ideologia da casa própria. 1 Ver Capítulo 2. Os domicílios precários compreendem lugares que inicialmente não tinham fim residencial (como imóveis comerciais, abaixo de pontes e viadutos, barracas, carcaças de carro abandonadas) ou lugares sem paredes de alvenaria e madeira (“barracos”). A coabitação familiar considera famílas conviventes em um único domicílio. O ônus excessivo com aluguel corresponde às famílias com renda de até três salários mínimos que despendem 30% ou mais de sua renda com aluguel. O adensamento ocorre quando o número de moradores por dormitório é igual ou superior a três (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2013).
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Por meio do diálogo direto com esses debates (sobre ideologia da casa própria e sobre o modelo de propriedade coletiva) será debruçado o ensaio arquitetônico. Nele, as unidades funcionariam por aluguel social, ou seja, os moradores não deteriam a propriedade, e sim o direito de uso. É necessário explicar que o ensaio não consiste num projeto propriamente dito, com plantas e cortes consolidados, mas num “esboço”, um exercício com um tanto de abstração1. De qualquer forma, ele se propõe a requalificar2 um edifício do INSS para moradia. Sua escolha se deve à localização estratégica3 e ao seu extenso histórico de ocupações, todas seguidas de truculentas reintegrações de posse (Figura 29). Esse edifício, que há décadas não cumpre função social, foi a leilão no ano passado, em 2017, e continua sem uso. De acordo com o INSS, ele foi anunciado por R$343.200,00, mas vendido por R$250.000, valor muito abaixo do mercado, a uma empresa privada. Meses depois, o edifício não demonstra sinal algum de intervenção (obra, reforma), e muito menos de que está em uso. Para impedir novas ocupações, os acessos estão bloqueados com alvenaria de concreto. Seu processo de deterioração se aprofunda a cada dia. Próximo da Praça da Cruz Vermelha, no seu entorno há comércio e serviços em abundância. Conta também com equipamentos como o Instituto Nacional de Câncer (INCA), a Praça da República (Campo de Santana) e a estação Central do Brasil. Na frente do edifício há um ponto de ônibus, com linhas para a região portuária e para a zona norte da cidade. Graças à diversidade de usos4 e à escala do pedestre no entorno imediato, há considerável fluxo de pessoas durante todo o dia.
1 Para manter o ensaio dentro do real existente, foram realizados alguns primeiros estudos de projeto em planta, que estão no Anexo II. 2 Um projeto de requalificação consiste em modificações internas alterando o uso original do edifício. 3 Assim como nas demais ocupações, a escolha de edifícios em áreas centrais se deve ao fato de possuírem infraestrutura preexistente e maior oferta de empregos formais. 4 Com enfoque à grande presença de habitação. Isso é um contraste com a monofuncionalidade de outras áreas do Centro do Rio, onde quase não há haitação.
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Figura 28 — Mapa de trecho do bairro da Lapa, região central do Centro do Rio de Janeiro, com o edifício do INSS marcado em amarelo. Fonte: Google Maps (marcação da autora).
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Ele se situa na Av. Mem de Sá, 234, no Centro. O edifício é preservado, pertencente à Área de Proteção do Ambiente Cultural (APAC) da Cruz Vermelha (conforme o Decreto 11883/1992). A legislação “autoriza a transformação de uso, estimula o aproveitamento e a conservação de edificações tombadas ou preservadas, e dá outras providências” (RIO DE JANEIRO, 1992). A lei proíbe a descaracterização do edifício1, determinando que sejam respeitados os telhados, a volumetria preexistente, os elementos morfológicos da fachada. Ficam mantidas a altura, a volumetria e elementos construtivos (que incluem estatuárias, luminárias, vitrais, portas, portões e escadarias). Assim, o projeto já possui determinações. Não se poderia verticalizar o edifício, alterar as aberturas existentes, retirar e/ ou modificar a escadaria, aumentar a taxa de ocuapação do terreno. 1 Suas plantas as built, ou seja, de como o edifício se encontra hoje em dia, estão no Anexo I.
Figura 29 — Fachada do edifício (vista 1). Fotografia tirada durante uma reintegração de posse. Fonte: Gabriel Bernardo/ Fazendo Média.
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5.1. Ideologia da casa própria Segundo Flávio Villaça (1986), a casa própria assume duas formas no Brasil, a primeira produzida para ser vendida no mercado, voltada para as classes média e alta; e a segunda por autoconstrução. Esta é produzida como valor de uso1, logo não se enquadra no mesmo processo mercadológico da primeira. Nas décadas de 1910 e 1920, o excedente de capital (fruto da diminuição das atividades industriais do café) e o explosivo crescimento urbano fazem com que a economia se oriente para a atividade imobiliária. Esta pode ser dividida em duas atividades: na construção de casas para alugar, tanto para a classe média quanto para as classes mais baixas, e na atividade loteadora com moradias autoconstruídas (VILLAÇA, 1986, p. 22). Já o período entre 1920 e 1950 (que varia por região brasileira) marca a transição para o modelo de casa própria. A superação do modelo “casa de aluguel” tem como um dois principais causadores a Lei do Inquilinato, promulgada em 1942, durante a Era Vargas. Ela consistiu na regulamentação pelo Estado do mercado de alugueis, que foram congelados. Consequentemente, a lei acabou desestimulando a produção rentista e transferiu para o Estado e para os próprios trabalhadores o encargo de autoproduzir suas moradias (BONDUKI, 1998, p. 209). Ao contrário do que se pode pensar, essa lei não foi uma medida “social”, mas uma medida do Estado que tinha como fim contribuir para “destruir o modelo da casa alugada e implantar o da casa própria” (VILLAÇA, 1986, p. 22). Com o desestímulo do congelamento dos alugueis, deixa de ser lucrativo ser senhorio. Como consequência, aumenta a carência de moradias, antes produzidas por rentistas. Essa situação foi ainda mais agravada pelos despejos judiciais de locatários de baixa e média renda e pela demolição acelerada de edifícios nas áreas centrais para a abertura de novas vias e para a verticalização de edificações, marcada pela especulação imobiliária e pelas transformações no mercado imobiliário durante o Estado Novo. Em meio a uma das mais graves crises de moradia do país, ficaram estabelecidas novas formas alternativas de produção, baseadas na autoconstrução em favelas, loteamentos periféricos e outros assentamentos informais (BONDUKI, 1998). 1
Como definido por Lefebvre (1996).
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Além de deixar ser interessante investir na construção de habitação pelo controle dos alugueis e pelas restrições governamentais aos financiamentos de incorporações de edifícios, há outros fatores que explicam o desequilíbrio entre oferta e demanda. Ele foi aprofundado pela Segunda Guerra Mundial e pela falta de insumos para construção, mas principalmente pelo êxodo rural. Centro mais importante de um país em rápida industrialização, a cidade de são Paulo viu sua população crescer intensamente na década de 1940, passando de 1,3 milhão para 2,2 milhões (IBGE 1940 e 1950). Esse aumento demográfico criou uma necessidade adicional de no mínimo 200 mil novas moradias, sem contar o deficit já existente e o número considerável de prédios demolidos em função do boom imobiliário e de desapropriações para obras viárias. No mesmo período, no entanto, foram construídos apenas 120 mil unidades (BONDUKI, 1998, p.248)
De acordo com Bonduki (1998, p. 258), a Lei do Inquilinato, além de reduzir a rentabilidade dos investidores que viviam da renda imobiliária, estimulava a difusão da pequena propriedade urbana e da casa própria. Essa postura era coerente com o discurso getulista, que (tal qual vimos na ditadura) via como “fator de estabilidade social e política tornar o trabalhador um proprietário”. Villaça (1986, p. 22) ainda atribui outros fatores simultâneos, além do declínio das moradias de aluguel, que conduziram para a ideologia casa própria, sendo eles: – Desenvolvimento do capital financeiro. – Intervenção do Estado tanto na esfera jurídica como econômica para a afirmação do modelo da casa própria. – Desenvolvimento da ideologia da casa própria.
106 – A indústria da construção civil e os empreendedores imobiliários abandonam, ou melhor, deixam de atender as crescentes massas populares que se acumulam nas cidades, e seu problema habitacional fica sem solução. – Desenvolvimento dos transportes urbanos através dos bondes e com estes desbravam-se amplas fronteiras adequadas a loteamentos. – Expansão dos loteamentos “clandestinos”. – Desenvolvimento da prática da autoconstrução. Englobamos sob essa denominação, todas as formas de mutirão, autoajuda ou ajuda mútua. – O Estado, inclusive as Prefeituras Municipais, assume posição totalmente omissa face aos loteamentos ilegais. (...)
Antes uma condição consolidada do trabalhador assalariado, ser inquilino tornou-se algo incerto e inseguro. Isso contribuiu para que fosse vislumbrada a casa própria na periferia. Mesmo longe dos centros urbanos, era a terra que essa população podia pagar, e, apesar das más condições, era “possível vislumbrar um horizonte de tranquilidade” (BONDUKI, 1998, p. 261). Neste período, então, a classe trabalhadora passa a erguer ela própria moradias precárias em loteamentos nas periferias ou em favelas, ambos sem infraestrutura urbana, ampliando, assim, a área ocupada da cidade. De acordo com Flávio Villaça (1986, p.19), a transformação da habitação em “casa própria” é uma necessidade histórica do capitalismo. A disseminação da ideologia da casa própria, de acordo com David Harvey (apud Mello, 2012, p. 222) é vista como vantajosa para o capitalista porque estimula a “fidelidade de, pelo menos, uma parte da classe operária ao princípio da propriedade privada”, bem como promove a fragmentação destes em “classes de habitação” divididas em proprietários e inquilinos. Dessa forma, o capital procura construir um argumento de convencimento da classe trabalhadora de que a transformação da propriedade privada
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em pública significaria uma perda de patrimônio (MELLO, 2012, p. 223). Friedrich Engels (2015), em 1872, também releva o interesse dos capitalistas em fazer a classe trabalhadora abandonar suas perspectivas revolucionárias por meio da aquisição da propriedade privada. Cita Emil Sax, que diz: Mas não só a classe trabalhadora, como também toda a sociedade tem o maior interesse em ver o maior número possível de seus membros presos ao chão (…). A posse fundiária (…) reduz o número dos que oferecem resistência à dominação da classe possuidora (ENGELS, 2015, p. 78. Grifos da autora).
Como vimos, o Estado atua sobre a propriedade privada em prol do capital (ENGELS, 2015), que pode ser ainda ser usada para controle social. Um bom exemplo da aplicação dessa ideologia se deu na ditadura militar (1964-1985). Sandra Cavalcanti, primeira presidente do BNH, afirmou que “a casa própria faz do trabalhador um conservador que defende o direito de propriedade” (BONDUKI, 1998). Corrobora também o Ministro do Planejamento Roberto Campos, que em 1966 declarou que “o proprietário da casa própria pensa duas vezes antes de se meter em arruaças ou depredar propriedades alheias e torna-se um aliado da ordem” (SACHS, 1999, p. 121). Villaça (1986) afirma que a ideia de associação entre casa própria e segurança social representou uma relação imaginária (ou ideológica) apenas num certo período do desenvolvimento da habitação no Brasil, que correspondeu à época entre 1920 e 1950. Durante esse período, a classe dominante foi transformando o que era imaginário e ideológico em real:
108 [Hoje] a posse de uma casa não só confere mais status como facilita as relações econômicas, abre as portas aos empréstimos e aos crediários e constitui não só uma forma bastante segura de investimento como uma eficaz defesa contra a inflação. É claro que pode ser falsa a ideia de que para se ter segurança social e econômica é necessário ter casa própria, mas o mundo real construído pela burguesia tornou verdadeira essa ideia (VILLAÇA, 1986, p. 24. Grifos da autora).
Figura 30 — Divulgação do MCMV para inscrição de 2017. Fonte: http://www. minhacasaminhavidabrasil.com. br/minha-casa-minha-vida-2015inscricoes
Figura 31 — Divulgação do MCMV. Fonte: http://feiraodacaixa2018.org/ minha-casa-minha-vida-roraima-2018/
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O MCMV foi um grande promotor da ideologia da casa própria. O programa reafirma a propriedade privada, única modalidade possível, com o financiamento individualmente das unidades. Slogans como “esta é a sua chance de realizar o sonho da Casa Própria” e “o sonho da Casa Própria ao alcance de suas mãos e do seu bolso” foram frequentemente disseminados (Figuras 30 e 31). A ideologia da casa própria é um entrave para os movimentos de luta por moradia. Esse tema é frequentemente alvo de críticas em alguns movimentos, como o MNLM. Dentro das ocupações, uma das coisas necessárias é formação política para que os moradores desconstruam o individualismo em prol da coletividade (MELLO, 2012). Só assim o modelo autogestionário funciona. Fora das ocupações, na sociedade, há grande repúdio às ocupações. Elas são com bastante frequência vistas como “invasões”. Pertencentes e representantes da classe dominante, os meios de comunicação em massa são grandes veiculadores dessa ideologia. Isso é uma boa amostra do que Engels (2015) revela quando diz que é de interesse dos capitalistas transformar a classe trabalhadora em proprietária (para assim abandonar suas concepções progressistas), assim como é de interesse convencer a classe trabalhadora de que esse é o único modelo possível e legítimo. Enraizada essa ideia, a própria classe trabalhadora se volta contra si mesma. O ensaio arquitetônico será um contraponto, dentre outras coisas, à ideologia da casa própria e irá propor a propriedade coletiva.
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5.2. Propriedade coletiva e cooperativismo: o caso uruguaio O modelo autogestionário funciona com a superação do individualismo pela ideia de coletividade. Há vários movimentos que defendem real direito de uso, e não o de propriedade, como por exemplo o MNLM. Antes do edifício da ocupação Manuel Congo ser comprado pelo movimento1, era desejado que os moradores obtivessem “Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia”2. Nele, cada apartamento receberia uma CUEM no nome do representante de cada família (MELLO, 2012): Ao se adotar a CUEM, em vez do título de propriedade, para a regularização da situação do imóvel, duas funções são cumpridas: 1) o reconhecimento do direito à moradia dos ocupantes, com especial proteção contra a pressão do mercado imobiliário, e consequente venda dos imóveis recém-conquistados, procurando evitar a volta do problema que se queria resolver; e 2) o cumprimento da função social da propriedade, sem a privatização das terras públicas. (MELLO, 2012, p. 233)
1 A Constituição proíbe a desapropriação de imóveis públicos. O edifício, que era do INSS, foi comprado pelo movimento com fundos do FNHIS e, apesar de contrariar o que o MNLM defende, as unidades habitacionais constituem propriedades privadas. 2 “O direito à concessão de uso especial para fins de moradia foi reconhecido pela Constituição Federal, nos termos do parágrafo primeiro do artigo 183, já que a aquisição do domínio pleno sobre as terras públicas através de usucapião é proibida. Conforme o parágrafo terceiro deste artigo, a concessão de direito especial de uso para fins de moradia é o instrumento hábil para a regularização fundiária das terras públicas informalmente ocupadas pela população de baixarenda, visando a atender à função social da propriedade. (BRASIL, 2001) Para este instrumento poder ser utilizado, de acordo com a MP 2.220/2001, o imóvel deve estar ocupado há 5 anos, e ter no máximo 250m². Além disso, o pleiteador da CUEM não pode ter nenhuma outra propriedade imobiliária.” (MELLO, 2012, p. 231)
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De encontro à coletividade, o ensaio tem como proposta a destinação do térreo para ser uma totalmente semipública, com função social tanto para os moradores quanto para a cidade. Nele, estaria o espaço gerador de renda para os moradores em condições de maior vulnerabilidade e para o próprio edifício, na sua manutenção e limpeza. A função desse espaço dependeria da demanda dos moradores e do potencial do entorno. Também no térreo estaria a portaria e uma área voltada para uso dos moradores do edifício e dos moradores do entorno, como uma sala de estudos ou uma biblioteca ou uma sala onde poderiam ser ministrados cursos. Público Semipúblico Privado
Figura 32 — Corte esquemático do prédio com os níveis de permeabilidade e usos. Fonte: http:// feiraodacaixa2018.org/ minha-casa-minha-vidaroraima-2018/
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Nos pavimentos onde ficarão as unidades habitacionais (do 1º ao 7º), são propostas unidades flexíveis. Como os moradores detêm o direito de uso e não de propriedade, não só poderiam trocar de unidades entre si, como também expandir ou reduzir suas unidades conforme a necessidade. Como vimos no capítulo anterior, há o anseio por parte dos movimentos de haver essa permuta entre moradores. Demos como exemplo uma família que cresce ou de uma família que diminui ou de uma família na qual algum membro é acometido por alguma dificuldade de mobilidade, ou até de envelhecimento (nesse caso, poderia se mudar para uma unidade mais próxima do térreo). A propriedade coletiva possibilita a permuta, mas não somente ela. Permitiria que as unidades fossem flexíveis de forma que pudessem ter anexado um quarto, com o crescimento da família (nascimento de filhos, por exemplo); ou perder um quarto, com a diminuição da família (por exemplo, filhos que saem de casa e constituem suas próprias famílias). Propõe-se que nas unidades não haja área de serviço. Desta forma, ganha-se área e é gerada uma lavanderia coletiva. A cobertura, privada, mas de uso comum dos moradores, é destinada para a lavanderia. São também previstas outras funções (que também variariam de acordo com os ensejos dos moradores), como salão de festas, churrasqueira, sala administrativa, área de permanência coberta e descoberta. Além dos movimentos de luta por moradia contrários à especulação imobiliária e a favor da moradia para todos brasileiros, há outros na América Latina No Uruguai, a Federación Uruguaya de Cooperativa de Viviendas para La Ayuda Mutua (Fucvam), movimento expressivo no campo da habitação social, institucionalizou, em 1968, uma “Ley de Vivienda”. Essa lei, entre outros pontos, “regulamenta detalhadamente o significado do direito à moradia, sua finalidade, as formas de obtê-la,” (MELLO, 2012, p. 234). A Fucvam unifica as 330 cooperativas1 de habitação por ajuda mútua existentes no Uruguai, contrapondo-se à concentração de poder pelo Estado ou por empresas da construção civil. Pela lei, as cooperativas não podem ter lucro. Um de seus objetivos, além da unificação, é reforçar uma rede 1
Levantamento referente ao ano de 2006, de acordo com Baravelli (2006).
113
latino-americana de movimentos por moradia. A sede da Fucvam é repleta de bandeiras de encontros com esses movimentos (Figura 33).
Figura 33 — Na parede da sede da FUCVAM estão estampadas as bandeiras de alguns movimentos por moradia brasileiros, como a UMP e o MNLM. O quadro que encontra-se abaixo à direita contém fotos de Erundina, ex-prefeita de São Paulo. Fonte: BARAVELLI, 2006.
Todas as habitações das cooperativas vinculadas à Fucvam são regidas pela propriedade coletiva. Em termos práticos, isso significa que a propriedade das unidades habitacionais não pertence a indivíduos, mas à cooperativa. No regime de propriedade coletiva, os moradores são usuários, não proprietários, possuindo o que aqui chamamos de direito real de uso. O tempo de uso das unidades é ilimitado e transferido aos herdeiros. Elas não podem ser vendidas ou alugadas, e somente a cooperativa pode transferir o direito de uso. As cooperativas ainda possuem um fundo, chamado Fondo de Socorro, que cobre as prestações em dívida por famílias em situação de desemprego ou enfermidade. Uma das diferenças entre a habitação promovida pelo cooperativismo e pelo Estado é que no primeiro o usuário está respaldado solidariamente pelo coletivo diante de qualquer situação emergencial, não correndo o risco de perder sua moradia (BARAVELLI, 2006). À exemplo da CUEM, da Fucvam, da habitação por ajuda mútua, da propriedade coletiva e dando andamento ao estudo (ilustrado no corte perspectivado) sobre a distribuição das funções no espaço e de suas características funtamentais, nos aprofundaremos no ensaio:
114
TIPOLOGIAS DE 1 E 2 QUARTOS
A Figura 34 — Diagrama mostrando unidades de 1 e 2 quartos em cada pavimento (uma das possibilidades). Fonte: feito pela autora.
B
OU
C
Figura 35 — Diagrama mostrando unidades de 1 e 2 quartos em cada pavimento (uma das possibilidades) e a “doação” de quartos. Fonte: feito pela autora.
2 quartos
Áreas de uso comum
1 quarto
Transferência de um quarto para outra família
D
115
Total de unidades: 14 7 unidades de 2 quartos 7 unidades de 1 quarto
C A C A C
Figura 36 — Diagrama mostrando uma das possibilidades de resultado das “doações” dos quartos num determinado período e conforme a demanda. Fonte: feito pela autora.
D B
D B D
14 famílias 14 quartos x 2 pessoas/ quarto = 28 pessoas 7 quartos x 2 pessoas/ quarto = 14 pessoas Total de moradores: 42 pessoas
Cada pavimento do edifício tem uma unidade de um quarto e uma unidade de dois quartos, ambas flexíveis. Assim, conforme a demanda, pode haver “doação” (Imagem 35) de um quarto de uma unidade para outra (Imagem 36). Nessa conformação com tipologias de um e dois quartos, poderiam morar 14 famílias no edifício (aproximadamente 42 moradores).
116
TIPOLOGIAS DE 1, 2 E 3 QUARTOS
A E
A D
D D
F
Figura 37 — Diagrama mostrando unidades de 1 quarto, 2 quartos e 2 quartos duplex. Fonte: feito pela autora.
D
D
G G G
Figura 38 — Diagrama mostrando unidades de 1 quarto duplex, 2 quartos e 3 quartos após “doação” de quartos. Fonte: feito pela autora.
Transferência de um quarto para outra família 2 quartos
2 quartos em unidade duplex
Áreas de uso comum
1 quarto
1 quarto em unidade duplex
3 quartos
117
Total de unidades: 11 7 unidades de 2 quartos 1 unidade de 1 quarto 3 unidades duplex de 2 quartos
Total de unidades: 11 4 unidades de 2 quartos 3 unidades de 3 quartos 1 unidade de 1 quarto 3 unidades duplex de 1 quartos
11 famílias 14 quartos x 2 pessoas/quarto = 28 pessoas 1 quartos x 2 pessoas/quarto = 2 pessoas 6 quartos x 2 pessoas/quarto = 12 pessoas
11 famílias 8 quartos x 2 pessoas/quarto = 16 pessoas 9 quartos x 2 pessoas/quarto = 18 pessoas 1 quartos x 2 pessoas/quarto = 2 pessoas 3 quartos x 2 pessoas/quarto = 6 pessoas
Total de moradores: 42 pessoas
Total de moradores: 42 pessoas
Tipologias de 1, 2 quartos e 2 quartos duplex (Figura 37). As unidades de 2 quartos duplex, quando “doam” um dos quartos, geram tipologias de 3 quartos e tipologias de 1 quarto duplex (Figura 38). Nessa conformação, seriam acomodadas 11 famílias, menos que na conformação anterior. Por ter o mesmo número total de quartos, a quantidade (aproximada) de moradores seria a mesma: 42 pessoas. Um ponto negativo é que teriam que ser construídas escadas e abertos vãos nas lajes das unidades duplex, o que encareceria o projeto. Já um ponto positivo é esse modelo poderia se adequar às famílias que porventura necessitassem de três quartos.
118
TIPOLOGIAS DE 1, 2 E 3 QUARTOS
A E
A D
H
D D D D
B B B
Figura 40 — Diagrama mostrando unidades de 3 quarto duplex, 2 quartos e 1 quartos após “doação” de quartos. Fonte: feito pela autora.
Figura 39 — Diagrama mostrando unidades de 1 quarto, 2 quartos e 2 quartos duplex. Fonte: feito pela autora.
Transferência de um quarto para outra família 2 quartos
2 quartos em unidade duplex
Áreas de uso comum
1 quarto
1 quarto em unidade duplex
3 quartos
119
Total de unidades: 11 7 unidades de 2 quartos 1 unidade de 1 quarto 3 unidades duplex de 2 quartos
Total de unidades: 11 4 unidades de 2 quartos 4 unidades de 1 quarto 3 unidades duplex de 3 quartos
11 famílias 14 quartos x 2 pessoas/quarto = 28 pessoas 1 quartos x 2 pessoas/quarto = 2 pessoas 6 quartos x 2 pessoas/quarto = 12 pessoas
11 famílias 8 quartos x 2 pessoas/quarto = 16 pessoas 4 quartos x 2 pessoas/quarto = 8 pessoas 9 quartos x 2 pessoas/quarto = 18 pessoas
Total de moradores: 42 pessoas
Total de moradores: 42 pessoas
Esse modelo se assemelha ao anterior, com a excessão que, em vez de as unidades duplex perderem quartos, elas ganham. As unidades de 2 quartos “perdem” um quarto e as unidades duplex ganham mais um quarto (Figura 39), transformando-se em unidades de 3 quartos (Figura 30). Como no modelo anterior, o número de famílias acomodadas e os pontos positivos e negativos são os mesmos. Este e o modelo anterior são uma “variação” deles próprios e podem ser mesclados.
120
4
5 F
G D
E A H 3
B D
1
2
A_ UN
B_ UN
D_ UN
E_ UNIDADE DE
F_ UNIDADE D Figura 41 â&#x20AC;&#x201D; Perspectiva do ensaio. Fonte: feito pela autora.
G_ UN
H_UNIDADES DE
NIDADE DE 1 QUARTO
NIDADE DE 1 QUARTO
NIDADE DE 2 QUARTOS
E 2 QUARTOS DUPLEX
DE 1 QUARTO DUPLEX
NIDADE DE 3 QUARTOS
E 3 QUARTOS DUPLEX
1_ ESPAÇO GERADOR DE RENDA Café, restaurante, centro cultural, lanchonete (a depender da demanda) 2_ÁREA DE USO DOS MORADORES E DE QUEM MAIS QUISER Sala de estudos, biblioteca, sala de cursos (a depender da demanda)
121
A perspectiva ao lado mostra como poderiam se conformar as 8 tipologias diferentes criadas (nomeadas de A a H nos diagramas). Essa é apenas uma de inúmeras possibilidades, que seriam constituídas de acordo com as necessidades dos ocupantes aos quais fossem destinadas as moradias por direito de uso.
3_ ACESSO (PRIVATIVO) E PORTARIA 4_ LAVANDERIA USO COMUM MORADORES
DE DOS
5_ÁREA DE USO COMUM DOS MORADORES Salão de festas, churrasqueira, sala administrativa, área de permanência coberta e descoberta (a depender da demanda)
Áreas de uso comum 3 quartos
3 quartos em unidade duplex
2 quartos
2 quartos em unidade duplex
1 quarto
1 quarto em unidade duplex
122
Nesse ensaio, idealizamos como poderia ser um projeto para uma ocupação fora do modelo segregatório de propriedade privada. A propriedade coletiva nos levaria a cidades mais democráticas e poderíamos chegar a resultados arquitetônicos interessantes. Ainda no campo da arquitetura, mostra como a profissão pode cumprir importante função social (para além do alcance às classes mais abastadas) e que ela podeultrapassar o segregatório modelo de propriedade privada e os programas de habitação de interesse social ditados não por pessoas, mas pelo mercado. Uma das cooperativas de ajuda mútua uruguaia que mais se aproxima do ensaio projetual é a Cooperativa de Vivienda Ciudad Vieja (Covicivi), responsável pela ocupação de dois edifícios na região portuária de Montevidéu (Figura 42). Nessa ocupação, os edifícios foram requalificados para moradia e ainda houve a construção de um novo edifício no mesmo terreno. Essa ainda é uma experiência modesta, mas promissora, assentando sobretudo trabalhadores prestes à expulsão da área central da cidade (BARAVELLI, 2006).
123
Figura 42 â&#x20AC;&#x201D; Fachada da Covicivi. Fonte: BARAVELLI, 2006.
124
5.4. Considerações finais Este trabalho buscou compreender como se estruturam as ocupações organizadas. Em primeiro lugar, pelos principais aparatos legais sobre as quais elas se sustentam — que são a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade — e pela demonstração da gravidade de que muitas pessoas não têm um teto ao mesmo tempo em que sobram edifícios vazios. Esses dois primeiros tópicos dialogam diretamente entre si, principalmente no que tange a conceituação e a importância da função social da propriedade. Ao ocupar imóveis e terras, as pessoas reivindicam seu cumprimento. Vimos um breve histórico, desde a Era Vargas, dos programas de habitação de interesse social e dos governos envolvidos, e seus consequentes impactos na construção da cidade, no nascimento da ideologia da casa própria e na atuação dos movimentos de luta por moradia — impactos esses que continuam reverberando. O surgimento dos IAPs, em 1930, marcam o início da produção de moradia pelo Estado. O número de conjuntos por aluguel foi bastante mais expressivo do que o de financiamento para aquisição ou para construção em terreno próprio, conforme aponta Bonduki (1988). O modelo “casa de aluguel”, contudo, vai sendo crescentemente reduzido1 com a promulgação da Lei do Inquilinato, em 1942. Ela consistiu no congelamento dos alugueis, desestimulando a produção rentista e transferindo para os próprios trabalhadores o encargo de autoproduzir suas moradias (BONDUKI, 1998). Duas de suas principais consequências que pontuamos são: 1) a expansão da área ocupada da cidade, em loteamentos irregulares nas periferias e em favelas; 2) o pontapé inicial para o surgimento da ideologia da casa própria. A transformação da habitação em “casa própria” é uma necessidade histórica do capitalismo (VILLAÇA, 1986, p.19) que contribui para que o trabalhador abandone suas perspectivas revolucionárias (ENGELS, 2015), promovendo “controle social”. O surgimento desse modelo foi fundamental para constituir os programas de habitação de interesse social posteriores, incluindo o que talvez tenha sido o mais relevante no trabalho: o Programa Minha Casa Minha Vida.
125
Por meio de referenciais teóricos, de idas a campo e de entrevistas a moradores, a coordenadores de movimentos e a arquitetos envolvidos, pudemos desenvolver um estudo que abordou temas que circunscrevem as ocupações e que apresentou três casos-referência: Mariana Crioula, Manuel Congo e Quilombo da Gamboa. Sua localização central A partir das leituras e das entrevistas feitas, vimos que as três têm como base a autogestão, onde os moradores são protagonistas na gestão e na construção do espaço em que vivem. Ela se aplica a assuntos do dia a dia (às assembleias, às escalas de portaria e de limpeza, etc) e ao projeto arquitetônico. Ao contrário do que ocorre nos programas de habitação de interesse social, como o Minha Casa Minha Vida, em que os moradores são alienados do processo de projeto e de obra, na autogestão “moradores e líderes dos movimentos anseiam ter voz ativa no processo de projeto, a equipe de arquitetura precisa ir às assembleias, utilizar-se de instrumentos para fomentar a participação” (RIVERA; COLI; PERROTTA-BOSC, 2016, p. 23). Dentre outras, uma das consequências é a priorização das áreas de uso comum, que têm como objetivo servir aos próprios moradores, e também cumprir função social para o bairro (MIRANDA, 2017, p. 121). Esses componentes, juntos, resultam em soluções de unidades de habitação e de espaços de uso comum de qualidade notável (MIRANDA, 2017). Embora tenha destinado apenas 3% de seus recursos para as Entidades, o MCMV foi o programa financiador das três ocupações. No entanto, o MCMV-Entidades, assim como a legislação brasileira, impõem restrições ao modelo autogestionário. Seu funcionamento pleno ocorre com a superação do individualismo pela ideia de coletividade, o que, na prática, seria que nas ocupações os moradores possuíssem o real direito de uso, e não de propriedade. Como referência, tomou-se o cooperativismo de habitação por ajuda mútua existente no Uruguai. Chegou-se, então, a um ensaio arquitetônico: um projeto-esboço de requalificação de um edifício do INSS, contemplando as duas especificidades discriminadas acima, uma relativa à arquitetura — na priorização das áreas de uso comum e no cumprimento de função social para o bairro1 — e a outra relativa à propriedade — considerando, de forma hipotética, que nas ocupações haveria o direito real de uso, e
126
não de propriedade. O modelo autogestionário funciona com a superação do individualismo pela ideia de coletividade e há movimentos, como o MNLM, que defendem o aluguel social. Houve ainda duas lacunas a serem preenchidas. A primeira delas consiste nos acontecimentos após o golpe que pôs fim ao segundo mandato de Dilma Rousseff (2014-2016) e deu início ao governo Temer (2016-atual). Já a segunda consiste nas perspectivas futuras com a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência, que coloca as ocupações em grave risco. Sem querer fazer uma avaliação extensa, é importante destacar que desde que Temer assumiu, nenhuma nova contratação no Minha Casa Minha Vida foi realizada. A Auditoria Cidadã da Dívida, por meio de dados do Senado1, constatou que em 2017 o Orçamento Geral da União Executado foi de 0,00% (Senado Federal), de R$ 2,483 trilhões (sendo que o valor previsto aprovado para o mesmo ano havia sido de R$ 3,415 trilhões). Em 2016 foi promulgada a Emenda Constitucional 95, decorrente da aprovação da PEC 241, e depois PEC 55, que cria um teto para os gastos públicos por 20 anos. Esse montante é definido pelo valor gasto no ano anterior reajustado pela inflação, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA). A emenda implica em um congelamento das despesas do Governo Federal. Dentre outros direitos sociais, o direito à habitação será diretamente afetado, já que os recursos voltados para ela serão substancialmente reduzidos2. Com a diminuição da participação do Estado se intensificará a atuação do mercado sobre o solo e sobre a moradia, o que deverá acentuar a segregação socioespacial e o déficit habitacional. O futuro presidente, Jair Bolsonaro, não possui propostas para a habitação em seu plano de governo, denominado “Caminho da Prosperidade”. Suas propostas enaltecem a proprieade privada, deixando a propriedade coletiva e a democratização da cidade como sonhos ainda mais distantes. 1 Senado Federal - Siga Brasil, disponível no site: https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil. Dados atualizados até 31/12/2017. 2 Redução do gasto público relativamente ao número de habitantes (já que ocorre crescimento populacional) e ao PIB. Em suma, os gastos públicos não vão acompanhar o crescimento da população e da renda.
127
Dentre outras atrocidades, declara que sua casa [...], sua terra [...] são sagrados e não podem ser roubados, invadidos ou expropriados” (TSE, 2018, grifo da autora). Por fim, propõe tipificar como terrorismo “as invasões de propriedades rurais e urbanas no território brasileiro” (TSE, 2018, grifo da autora), constituindo grave ameaça às ocupações e aos movimentos de luta pela moradia. Em contraste com os avanços à época da promulgação da Constituição, do crescimento dos movimentos sociais e da redemocratização, atualmente e num futuro que se encontra bastante próximo encontraremos diversas perdas de direito. Com a agenda neoliberal crescente e a atuação cada dia mais minguada do Estado, veremos os impactos sobre a provisão de moradia e sobre as cidades, cada vez mais desiguais. Como arquitetos e urbanistas, ficaremos ainda mais imersos na atuação mercadológica, e cada vez mais restritos no exercício do papel social e político da nossa profissão. A nós é cabido fazer oposição à perda de direitos e também nos juntar à luta por cidades igualitárias, em que as pessoas tenham acesso à moradia, e que dela possam ter acesso a outros direitos, também previstos na Constituição, como à saúde, à alimentação, ao trabalho, ao transporte, ao lazer. Ao exigir a função social da propriedade em detrimento da mercantilização, as ocupações priorizam o habitar sobre o habitat (LEFEBVRE, 2001). Também o ensaio arquitetônico, ao propor a propriedade coletiva — a exemplo das cooperativas uruguaias — enaltece o valor de uso da moradia e do espaço urbano, e não o de troca. Ao final desse estudo, pudemos aprofundar nossos conhecimentos sobre as ocupações organizadas. Durante esse processo — e isso é necessário, por se tratarem de movimentos extremamente criminalizados — pudemos compreender as ocupações não como invasões, mas como movimentos legítimos de luta pelo direito à moradia e à cidade. O trabalho também possibilitou um interessante exercício, que como arquitetos raramente fazemos, que é o de se pensar em outras formas de se construir a arquitetura e a cidade para além do (excludente) modelo de propriedade privada.
128
ReferĂŞncias
129
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133
134
Anexos
135
Anexo I - Desenhos técnicos as built do edifício (Av. Mem de Sá, 234) Fonte: fornecidos em arquivo digital pelo INSS
COZINHA
WC
6,80M²
3,98 M²
WC1
1,22 M² 1.10
mesanino CORREDOR
10,88 M²
3,94M²
WC2
3,49 M²
QUARTO5
7,72 M²
0.80x1.00
01
MEZANINO ESC.: 1/50
PRISMA
27,09 M² PRISMA
HALL 3,09M²
WC
1,26 M²
1.40 COMP. BOMBA
0.63x1.04
0.60
QUARTO3 77,20 M²
0.75x2.18m
LOJA
HALL
1,35M²
HALL
ELEVADOR
13,47M²
QUARTO1
ENTRADA
ELEVADOR
10,51 M²
1.60x2.10/0.50
PREVIDÊNCIA SOCIAL
xxxx
1.60x2.10/0.50
PREVIDÊNCIA SOCIAL
Instituto Nacional do Seguro Social Coordenação Geral de Engenharia e Patrimônio Imobiliário Divisão de Projetos e Obras OBRA:
12,87 M²
QUARTO2
Instituto Nacional do Seguro Social Coordenação Geral de Engenharia e Patrimônio Imobiliário Divisão de Projetos e Obras OBRA:
Prancha:
Prancha:
xxx ENDEREÇO:
ENDEREÇO:
Rua Mem de Sá, Nº234 - Centro - Rio de Janeiro/ RJ. Desenhista:
Escala:
Engº Responsável:
Cotas:
1:100
Metros
Data:
Março/2014
Assunto:
01/ 12 Área do pavimento:
PLANTA BAIXA - AS BUILT PAVIMENTO TERREO
111,48M²
(PAV.TERREO)
13,51M²
(MEZANINO)
Rua Mem de Sá, Nº234 - Centro - Rio de Janeiro/ RJ. Desenhista:
Escala:
Engº Responsável:
Cotas:
1:100
Metros
Data:
Março/2014
Assunto:
02/ 12 Área do pavimento:
PLANTA BAIXA - AS BUILT PRIMEIRO PAVIMENTO
96,47M²
136
COZINHA
COZINHA
8,08 M²
7,71 M²
WC1
1,21 M²
1.10
1.10
QUARTO5
QUARTO5 7,80M²
WC2
7,88 M²
WC2
5,05M²
3,35 M²
1.10x2.30
0.70X1.50
CORREDOR
9,02 M²
9,06 M²
CORREDOR
0.67X1.10
QUARTO4
PRISMA
10,32 M²
QUARTO4
PRISMA
0.63x1.04
0.63x1.04
QUARTO3
QUARTO3
10,78M²
HALL
1,35M²
ELEVADOR
0.75x2.18m
10,66 M²
0.75x2.18m
HALL
1,35M²
ELEVADOR
QUARTO1
QUARTO1
QUARTO2
14,16 M²
QUARTO2
1.60x2.70/0.50
1.60x2.18/0.50
1.60x2.70/0.50
PREVIDÊNCIA SOCIAL
OBRA:
PREVIDÊNCIA SOCIAL
OBRA:
Prancha:
ENDEREÇO:
Rua Mem de Sá, Nº234 - Centro - Rio de Janeiro/ RJ. Engº Responsável:
Cotas:
1:100
Metros
Data:
Março/2014
Assunto:
03/ 12 Área do pavimento:
PLANTA BAIXA - AS BUILT SEGUNDO PAVIMENTO
1.60x2.18/0.50
Instituto Nacional do Seguro Social Coordenação Geral de Engenharia e Patrimônio Imobiliário Divisão de Projetos e Obras
Instituto Nacional do Seguro Social Coordenação Geral de Engenharia e Patrimônio Imobiliário Divisão de Projetos e Obras
Desenhista:
14,02M²
8,69 M²
8,69 M²
Escala:
PRISMA
10,65M²
PRISMA
Prancha:
ENDEREÇO:
Rua Mem de Sá, Nº234 - Centro - Rio de Janeiro/ RJ. Desenhista:
Escala:
1:100
96,47M²
Engº Responsável:
Cotas:
Metros
Data:
Março/2014
Assunto:
04/ 12 Área do pavimento:
PLANTA BAIXA - AS BUILT TERCEIRO PAVIMENTO
96,47M²
137
COZINHA 7,60 M²
COZINHA 6.92 M²
WC1
WC1
1,26 M²
1,26 M²
1.10
1.10
QUARTO5 7,88 M²
WC2
QUARTO5
WC2
3,36 M²
PRISMA
8,25 M²
3,48 M²
0.59X1.00
10,02M²
CORREDOR
9,47M²
CORREDOR
0.50
QUARTO4
PRISMA
10,52M²
QUARTO4 10,86 M²
PRISMA
PRISMA
0.63x1.04
0.63x1.04
QUARTO3
QUARTO3
10,78M²
10,70 M²
HALL
HALL
1,35M²
ELEVADOR
ELEVADOR
QUARTO1
QUARTO1
14,02 M²
QUARTO2
QUARTO2
1.60x1.92/0.50
1.60x1.92/0.50
1.60x1.92/0.50
PREVIDÊNCIA SOCIAL
OBRA:
Instituto Nacional do Seguro Social Coordenação Geral de Engenharia e Patrimônio Imobiliário Divisão de Projetos e Obras OBRA:
Prancha:
ENDEREÇO:
Prancha:
ENDEREÇO:
Rua Mem de Sá, Nº234 - Centro - Rio de Janeiro/ RJ. Desenhista:
Engº Responsável:
Cotas:
1:100
1.60x1.92/0,50
PREVIDÊNCIA SOCIAL
Instituto Nacional do Seguro Social Coordenação Geral de Engenharia e Patrimônio Imobiliário Divisão de Projetos e Obras
Escala:
14,24M²
8,77M²
8,83 M²
Metros
Data:
Março/2014
Assunto:
05/ 12 Área do pavimento:
PLANTA BAIXA - AS BUILT QUARTO PAVIMENTO
Rua Mem de Sá, Nº234 - Centro - Rio de Janeiro/ RJ. Desenhista:
Escala:
Cotas:
1:100
96,47M²
Engº Responsável:
Metros
Data:
Março/2014
Assunto:
06/ 12 Área do pavimento:
PLANTA BAIXA - AS BUILT QUINTO PAVIMENTO
96,47M²
138
COZINHA
COZINHA
6,90 M²
8,34M²
WC1
WC1
1,09M²
1,26 M² 1.10
1.10
WC2
3,64 M²
QUARTO5
QUARTO
8,40 M²
8,23 M²
WC2
PRISMA
3,78 M²
0.59X1.00
QUARTO4
11,06M² PRISMA
10,18 M²
CORREDOR
8,48M²
CORREDOR
0.59X1.00
QUARTO3
QUARTO 11,29M²
11,34M²
HALL
HALL
ELEVADOR
ELEVADOR
QUARTO1 QUARTO2
QUARTO
14,35 M²
QUARTO
8,35 M²
1.60x1.92/0.50
1.60x1.92/0.50
PREVIDÊNCIA SOCIAL
OBRA:
Instituto Nacional do Seguro Social Coordenação Geral de Engenharia e Patrimônio Imobiliário Divisão de Projetos e Obras OBRA:
Prancha:
ENDEREÇO:
Rua Mem de Sá, Nº234 - Centro - Rio de Janeiro/ RJ. Engº Responsável:
1:100
Metros
Data:
Março/2014
Assunto:
07/ 12 Área do pavimento:
PLANTA BAIXA - AS BUILT SEXTO PAVIMENTO
2x0.90x1.93/0.5
PREVIDÊNCIA SOCIAL
Instituto Nacional do Seguro Social Coordenação Geral de Engenharia e Patrimônio Imobiliário Divisão de Projetos e Obras
Cotas:
14,48 M²
8,98 M²
2x0.90x1.93/0.5
Escala:
PRISMA
10,45 M²
0.63x1.04
0.63x1.04
Desenhista:
SALA
PRISMA
Prancha:
ENDEREÇO:
Rua Mem de Sá, Nº234 - Centro - Rio de Janeiro/ RJ. Desenhista:
Escala:
1:100
96,47M²
Engº Responsável:
Cotas:
Metros
Data:
Março/2014
Assunto:
08/ 12 Área do pavimento:
PLANTA BAIXA - AS BUILT SÉTIMO PAVIMENTO
96,47M²
139
CAIXA D´ÁGUA ÁREA 4,99 M²
WC
AREA DESC.
1,53M²
COZINHA
QUARTO
4,12 M²
9,79M²
PRISMA
6.22M²
CORREDOR
PRISMA
0.63x1.04
TERRAÇO COB. 15,31M²
HALL
1,40M²
CASA DE MÁQUINAS 3,05 M²
AREA DESCOBERTA 29,84 M²
PREVIDÊNCIA SOCIAL Instituto Nacional do Seguro Social Coordenação Geral de Engenharia e Patrimônio Imobiliário Divisão de Projetos e Obras OBRA:
Prancha:
ENDEREÇO:
Rua Mem de Sá, Nº234 - Centro - Rio de Janeiro/ RJ. Desenhista:
10/ 12
Engº Responsável:
LOJA Cotas:
Escala:
1:100
Metros
Data:
Março/2014
PREVIDÊNCIA SOCIAL Instituto Nacional do Seguro Social Coordenação Geral de Engenharia e Patrimônio Imobiliário Divisão de Projetos e Obras OBRA:
Prancha:
ENDEREÇO:
Rua Mem de Sá, Nº234 - Centro - Rio de Janeiro/ RJ. Desenhista:
Escala:
Engº Responsável:
Cotas:
1:100
Metros
Data:
Março/2014
Assunto:
09/ 12 Área do pavimento:
PLANTA BAIXA - AS BUILT OITAVO PAVIMENTO
57,06M²
(A.COBERTA)
32,54M²
(A.DESCOBERTA)
Assunto:
Área do pavimento:
PLANTA BAIXA - AS BUILT CORTE AA
140
PREVIDÊNCIA SOCIAL Instituto Nacional do Seguro Social Coordenação Geral de Engenharia e Patrimônio Imobiliário Divisão de Projetos e Obras OBRA:
Prancha:
ENDEREÇO:
Rua Mem de Sá, Nº234 - Centro - Rio de Janeiro/ RJ. Desenhista:
Cotas:
Escala:
1:100
11/ 12
Engº Responsável:
Metros
LOJA Data:
Março/2014
Assunto:
Área do pavimento:
PLANTA BAIXA - AS BUILT CORTE BB
141
PREVIDÊNCIA SOCIAL Instituto Nacional do Seguro Social Coordenação Geral de Engenharia e Patrimônio Imobiliário Divisão de Projetos e Obras OBRA:
Prancha:
ENDEREÇO:
Rua Mem de Sá, Nº234 - Centro - Rio de Janeiro/ RJ. Desenhista:
Engº Responsável:
Cotas:
Escala:
1:100
Metros
Data:
Março/2014
Assunto:
PLANTA BAIXA - AS BUILT FACHADA
12/ 12
142
Anexo II - Desenhos preliminares das tipologias C e D Fonte: produzidos pela autora
COZINHA+SALA 18.49m²
SANIT. 1.22m²
CIRC. 4.52m²
BANH. 3.50m²
09 08 07 06 05
QUARTO 9.45m²
15 16 17 18 19
04
20
03
21
02
22
01
23
QUARTO 9.73m²
CIRC. 2.82m²
ELEVADOR
QUARTO 8.82m²
COZINHA+SALA 11.28m²
BANH. 2.88m²
143
Anexo II - Desenhos preliminares das tipologias H e B Fonte: produzidos pela autora
COZINHA+SALA 18.49m²
SANIT. 1.22m²
08 07 06 05
CIRC. 4.52m²
BANH. 3.50m²
CIRC. 4.52m²
BANH. 3.50m²
09
QUARTO 9.45m²
09
15 16
08
17 18 19
04
20
03
21
02
22
01
23
COZINHA+SALA 18.49m²
SANIT. 1.22m²
QUARTO 9.73m²
07 06 05
15 16 17 18 19
04
20
03
21
02
22
01
23
CIRC. 2.82m²
CIRC. 2.82m²
ELEVADOR
ELEVADOR
COZINHA+SALA 11.28m²
BANH. 2.88m²
QUARTO 9.45m²
QUARTO 9.73m²