DILEMAS DA UNIÃO EUROPÉIA NA REFORMA DA POLÍTICA AGRÍCOLA COMUM

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E CONTABILIDADE

DILEMAS DA UNIÃO EUROPÉIA NA REFORMA DA POLÍTICA AGRÍCOLA COMUM

Tese apresentada ao Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade para a obtenção do título de LivreDocente em Economia

São Paulo, fevereiro de 1999


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CAPA INTERNA

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................3 PARTE I - PAC- FORMAÇÃO , CRISE E REFORMA .................................................................. 11 1. APRESENTAÇÃO ..............................................................................................................................14 2. DISPARIDADES E CONTRADIÇÕES ....................................................................................................18 2.1. O peso da agricultura nas economias nacionais.....................................................................19 2.2. As estruturas agrícolas nacionais ...........................................................................................24 2.3 Tradições e modalidades da intervenção pública na agricultura ............................................26 2.3.1. Reino Unido...................................................................................................................................... 26 2.3.2. Dinamarca, Holanda e Bélgica.......................................................................................................... 29 2.3.3. Alemanha e França ........................................................................................................................... 30

3. A FORMAÇÃO DA PAC ....................................................................................................................40 3.1. Preços e estruturas: a convergência frustrada........................................................................40 3.2. O pecado original e a tentativa de Mansholt de corrigí-lo .....................................................46 4. O PREÇO DE UM GRANDE SUCESSO ..................................................................................................51 4.1. A saturação dos mercados.......................................................................................................51 4.2. Os preços caem, e os gastos aumentam...................................................................................54 4.3. Subsídios para quem e para quê ?...........................................................................................56 5. UMA MINORIA COMO OUTRA QUALQUER .........................................................................................62 5.1. A situação demográfica ...........................................................................................................63 5.2. A importância da pluriatividade..............................................................................................65 5.3. Novas funções para o meio rural.............................................................................................66 6. A REFORMA DA PAC.......................................................................................................................68 PRODUTO ....................................................................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. Alemanha.................................................................................................................................................... 22

PARTE II - SUBSÍDIOS: EM BUSCA DE NOVA LEGITIMIDADE SOCIAL............................ 76 1. APRESENTAÇÃO: CORRENTES DE OPINIÃO .......................................................................................77 1.1. Os interlocutores .....................................................................................................................77 1.2. Os temas centrais do debate ....................................................................................................82 2. O QUE HAVIA DE ERRADO COM A PAC ? .........................................................................................82 2.1.Os liberais ................................................................................................................................83 2.2. A escola do controle corporativista da oferta .........................................................................84 2.3. A escola do controle distributivista da oferta..........................................................................86 3. RENDAS, PREÇOS E AJUDAS: EM DIREÇÃO A OUTRO MODELO ..........................................................89 3.1. Os liberais ...............................................................................................................................92 3.1.1. O liberalismo "puro e duro" .............................................................................................................. 93 3.1.2. O liberalismo temperado................................................................................................................... 98

3.2. A escola do controle corporativista da oferta .......................................................................103 5.2.1. Interprofissão versus agências públicas .......................................................................................... 104 3.2.2. Ajudas diretas ................................................................................................................................. 109 5.2.3. Produzir para quem ? ...................................................................................................................... 111

3.3. A escola do controle distributivista da oferta........................................................................112 CONCLUSÃO ......................................................................................................................................118 BIBLIOGRAFIA ................................................................................ ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.


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INTRODUÇÃO I O ano de 1992 marca muito mais que um simples armistício entre as duas maiores potências agrícolas contemporâneas: pela primeira vez, as nações mais desenvolvidas do Planeta convergem em direção a um modelo único de política agrícola. É bem verdade que os acordos internacionais que celebraram esta convergência contêm inúmeras cláusulas transitórias ( “de paz ”) cuja supressão dará lugar ainda a um sem número de conflitos. Não é menos certo também que, de um lado e de outro do Atlântico é comum ainda – embora com freqüência cada vez menor - o recurso às modalidades convencionais de apoio estatal às exportações em torno das quais, aliás, os países do hemisfério Sul têm concentrado mais freqüentemente seus protestos. O mais importante, entretanto, ao menos no que se refere à União Européia não tem vindo à tona: os preços de sustentação dos cereais e das oleaginosas, de fato caíram e tendem a ser eliminados como mecanismo de garantia de renda; em contrapartida, eles foram substituídos por um dispositivo autorizado hoje pela Organização Mundial do Comércio e aos quais dificilmente os países do Terceiro Mundo poderão ter acesso: os pagamentos diretos aos agricultores como compensação à queda nos preços de sustentação e forma de controle da oferta. À primeira vista – e na visão de seus mais importantes teóricos (OCDE, 1994:111) trata-se de uma forma transitória de adaptação às realidades de mercado. Na verdade, entretanto, os montantes pagos aos agricultores europeus para compensar a redução das cotações agrícolas e o declínio das superfícies plantadas é de tal magnitude que se incorporam a seus orçamentos produtivos e formam parte decisiva da renda de seus estabelecimentos. Que os preços de garantia tenham caído e tendam a ser eliminados como mecanismo de sustentação, disso não há dúvida. Que a agricultura européia seja hoje menos subsidiada que no passado, isso já não é tão evidente. II O objetivo deste trabalho é estudar a formação, a crise e os primeiros passos da reforma da Política Agrícola Comum. De certa forma, ele pode ser considerado como um desdobramento do esforço teórico de compreender as estruturas sociais do desenvolvimento agrícola contemporâneo (Abramovay, 1992). A importância das


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unidades familiares de produção nos países capitalistas centrais em contextos históricos tão variados como os do Japão, da Europa Ocidental, dos EUA, do Canadá e mais recentemente dos Tigres Asiáticos pode ser explicada teoricamente pelas particularidades da própria agricultura e sobretudo por sua paradoxal tendência a reagir à redução nos preços aumentando as safras, em vez de reduzi-las (Cochrane, 1979). O resultado é uma propensão crônica aos excedentes, em torno da qual se formam as políticas agrícolas contemporâneas (Boussard, 1994). A idéia central de Boussard é que a combinação da aversão ao risco por parte dos produtores e a rigidez da demanda dos consumidores pode engendrar, nos mercados agrícolas – e diferentemente dos mercados para os quais a demanda é mais sensível ao preço – um regime caótico que nunca converge para o equilíbrio. Por isso, num mercado livre de produtos alimentares de base, pode-se esperar flutuações indefinidas da oferta e da procura. No decorrer destas flutuações, o preço nunca iguala o custo marginal: às vezes é muito baixo, outras muito elevado. Os trabalhos de Boussard procuram demonstrar a natureza endógena deste comportamento dos preços, quando se trata do setor agrícola (Boussard 1995). Ao proteger os agricultores do desastre da superprodução permanente, o Estado reflete, antes de tudo, a elaboração de um pacto, de um contrato pelo qual os produtores participam da corrida da inovação técnica incessante e recebem uma certa garantia de sua renda, ao menos em montantes que permitam reduzir a distância entre seus padrões de vida e os das populações urbanas. A reforma da PAC, em 1992 exprime, antes de tudo, a crise desta forma de relação entre o setor agrícola e o restante da sociedade. Três mudanças são aí decisivas: em primeiro lugar, é cada vez menor o valor que se atribui à produção de alimentos e de produtos agrícolas, sobretudo dos gêneros indiferenciados que entram nos circuitos de comercialização como “commodities ” (1); em segundo lugar, vai diminuindo também a importância dos agricultores não só na sociedade, mas no próprio meio rural, onde são franca minoria, em todos os países desenvolvidos; e em terceiro lugar, novas 1 “Em certos países, o valor social dos serviços outros que os da produção aumenta relativamente à produção tradicional de alimentos e fibras. Pode-se observar então que os produtos e as políticas agrícolas são apenas um dos componentes que infuenciam a utilização dos recursos no meio rural ” (OCDE, 1993:10).


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atividades e novos mercados são formados no espaço rural: não só turismo, serviços, local de moradia e residências secundárias, mas também produtos de qualidade correspondentes a mercados segmentados. Os autores ligados à teoria das convenções (Allaire e Boyer, 1995) enxergam nestas mudanças razões suficientemente fortes para que a intervenção do Estado na formação da renda agrícola contemporânea seja vista como um resquício do passado que será suprimido em pouco tempo. Num padrão “fordista ” de crescimento, onde os agricultores fornecem produtos massificados e indiferenciados e onde são estimulados a aumentar constantemente a produtividade, é praticamente inevitável a existência de excedentes crônicos e sua regulação pela autoridade estatal. A crise da PAC – que levou à sua reforma – é a crise deste padrão de crescimento agrícola e portanto desta forma de intervenção estatal no setor. Esta é certamente a razão pela qual, no índice onosmático da mais importante obra de conjunto da teoria das convenções voltada à agricultura (Allaire e Boyer, 1995), o item política agrícola está ausente. A organização dos mercados agrícolas torna-se uma questão de regulação setorial. Uma vez que os produtos tendem a se destacar não por sua quantidade, mas por características qualitativas referentes a sua origem e suas formas de produção, os mercados segmentam-se cada vez mais e sua organização depende dos acordos, dos contratos e das hierarquias (para usar a terminologia institucionalista) entre os agentes envolvidos em sua comercialização. Esta segmentação dos mercados não é uma particularidade da agricultura, mas um dos traços mais importantes das economias contemporâneas (Castells, 1996). O interesse teórico e histórico deste ponto de vista é inegável. A teoria das convenções é certamente de grande utilidade para o estudo destes novos mercados, cada vez mais significativos na agricultura. Mas não se pode ignorar o fato de que, até hoje – em que pese a reforma da PAC, o discurso oficial de Bruxelas e dos próprios dirigentes profissionais agrícolas enaltecendo o desenvolvimento rural e a importância real dos mercados de qualidade, que não dependem de subvenções oficiais – o peso dos recursos públicos na formação da renda agrícola é absolutamente decisivo. Inércia em torno de prerrogativas adquiridas há tanto anos pelos agricultores ? Expressão de sua força corporativa ? É difícil aderir a esta hipótese diante da timidez


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com que as organizações profissionais – inclusive na França - reagiram à consolidação das reformas da PAC e à adesão da Europa aos acordos que deram origem à Organização Mundial do Comércio. O que está em jogo na permanência dos subsídios públicos ao setor agrícola (apesar da mudança forma tão importante representada pelos pagamentos diretos) envolve uma questão teórica e um problema estratégico. O que ainda não ficou demonstrado, sob o ângulo teórico, é a possibilidade de a agricultura contemporânea dispensar as garantias que lhe permitiram avançar em seu processo de modernização, sobretudo na segunda metade do Século XX. A diversificação de seus mercados, o peso das cadeias agroindustriais e a capacidade reguladora dos contratos entre suas partes componentes, no sentido de evitar situações de oferta excessiva, a redução nas áreas plantadas patrocinadas pela reforma da PAC representam, de fato, um período novo no desenvolvimento internacional da agricultura. Entretanto, nada indica que as grandes explorações voltadas à produção de grãos e carnes, sobretudo no Norte da Europa, sejam capazes de produzir segundo a estrita necessidade dos mercados, livres do fantasma dos excedentes, que acompanhou a agricultura dos países desenvolvidos durante boa parte do nosso Século. Deixar ao mercado a tarefa de selecionar aqueles que terão maior aptidão para preencher suas necessidades poderia levar a uma desarticulação do aparelho produtivo, altamente comprometedora para as chances futuras do setor agrícola. Enquanto, na Europa, a agricultura atendia a uma demanda interna crescente de uma população ainda traumatizada pela escassez dos tempos de guerra, contrabalançar as oscilações caóticas dos mercados agrícolas por meio da ação estabilizadora do Estado era sentido como legítimo: tanto mais que o setor imediatamente beneficiado por esta intervenção formava-se por unidades familiares a cujo apoio a política agrícola dedicava-se explicitamente, como será visto na parte I deste trabalho. Quando estas necessidades estão mais que atendidas, por que razão manter um aparato produtivo de grande eficiência econômica – e apto a produzir comprometendo cada vez menos o meio ambiente – mas incapaz de dispensar as subvenções públicas em que se apoiou seu crescimento ?


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A Agenda 2000 (Communautés européennes, 1997:28), documento recente e fundamental, que fixa os horizontes da União Européia para os próximos anos não coloca, evidentemente, esta questão, mas fornece uma pista importante para sua resposta, quando estima que o Continente tem um papel decisivo a desempenhar no abastecimento alimentar mundial: “as perspectivas de longo prazo nos principais mercados agrícolas apresentamse favoráveis aos países exportadores...os preços dos produtos agrícolas devem ficar firmes até 2006 e talvez além disso [com perspectivas de melhoria para] os cereais, as oleaginosas, a carne bovina, a carne de frango, o queijo, o leite em pó, mas não para a carne de porco ”. Apesar destes prognósticos favoráveis (e é bom não esquecer que o documento foi publicado antes das crises asiática, russa e brasileira...) o texto prevê excedentes na produção de carnes, cereais, açúcar, vinho, óleo de oliva e produtos leiteiros. Por mais importante que sejam os novos objetivos da PAC (valorização da pluriatividade, das funções ambientais e territoriais das atividades agrícolas) e os fundos que para eles se dirigem, os recursos ainda estão voltados fundamentalmente para a manutenção de unidades produtivas cujo papel primordial será o de garantir o lugar que a Europa conquistou nos últimos anos no mercado internacional de produtos agrícolas. É bem verdade que estas unidades produtivas venderão seus produtos aos preços mundiais e com base nas regras admitidas pela Organização Mundial do Comércio. Não é menos certo, porém, que não sobreviveriam se delas fosse retirado o que vem diretamente do Tesouro Comunitário sob a forma de um cheque para compensar os efeitos da Reforma de 1992. Sob o ângulo teórico, os pagamentos diretos apoiam-se na idéia de que a instabilidade dos mercados agrícolas resulta muito mais de intervenção estatal (que ao garantir preços estimula a elevação das safras) que de uma dinâmica setorial específica. As oscilações de preços, segundo este ponto de vista, podem ser reduzidas significativamente pelo amadurecimento de um mercado de seguros agrícolas, pela flexibilização das unidades produtivas e pela menor vulnerabilidade das pequenas e médias explorações. Neste sentido, os pagamentos diretos teriam natureza eminentemente transitória. (OCDE, 1994).


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Ocorre que os estabelecimentos que hoje recebem a maior parte das ajudas diretas são exatamente os maiores e os mais especializados, voltados fundamentalmente à produção de grãos e carnes: não são absolutamente os “pequenos e médios ”, nem os mais flexíveis: em 1996, na França, nas unidades produtivas de “grandes culturas ” (cereais, oleaginosas, e proteoleaginosas) as ajudas diretas representaram nada menos que 57% do “excedente bruto de exploração ” cifra que no caso da carne vai a 66%. Estas porcentagens podem ultrapassar 100% quando relacionadas à renda líquida dos produtores (Chambres d ’Agriculture, 1997, 1:8). Em outras palavras, por mais que a OCDE (1994:11) insista na idéia de que os pagamentos diretos são uma forma de promover transferência de renda aos agricultores sem falsear os sinais de mercado, não são exatamente nos verdadeiros sinais de mercado que têm origem os ganhos sem os quais as maiores unidades produtivas européias já teriam sido obrigadas a fechar as portas. Os pagamentos diretos são independentes dos níveis de produção e dos fatores de produção: sem eles entretanto, os fatores não poderiam ser reproduzidos e a produção se estancaria. Os armazéns e os frigoríficos ficam, é bem verdade, menos saturados (2). Dizer entretanto que os mercados estão cumprindo sua verdadeira função é ignorar que as ajudas diretas incorporam-se ao capital que permite aos agricultores sua permanência na atividade. O Estado não regula preços e estoques. Mas ele passa a ter um papel crucial e direto – sem a mediação do mecanismo dos preços, ainda que fossem preços fixados institucionalmente - na determinação da renda setorial. Se isso é verdade – e contando com a inegável virtude da transparência desta forma de subsídio, relativamente à sustentação dos preços (já que o agricultor agora recebe um cheque vindo diretamente do poder público e não um auxílio escamoteado no preço de seu produto) – é claro que o tema da distribuição destas ajudas voltadas à sustentação da renda setorial e de seu sentido mesmo adquire uma importância crucial.

2 Os estoques públicos de cereais que chegaram a 33 milhões de toneladas na safra 1992/93 caíram para apenas 9 milhões em 1994/95. Os estoques de carne que ultrapasaram um milhão de toneladas antes da reforma, chegaram a apenas 20 mil toneladas no outono de 1995 (Commission européenne, 1996).


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Políticas voltadas para a valorização de um conjunto variado de funções que as unidades produtivas podem preencher - além da simples produção agropecuária - são cada vez mais importantes na Europa como um todo e em cada país. O governo socialista francês adotou recentemente o Contrato Territorial de Exploração, que pretende encorajar “uma agricultura produtora de valor adicionado (3), o desenvolvimento do emprego, a ocupação equilibrada do território, a preservação dos recursos naturais. Os contratos territoriais de exploração permitirão remunerar a tomada em consideração, pelos agricultores, do conjunto destes objetivos. Eles traduzirão na política pública a multifuncionalidade da agricultura ” (4) É neste sentido que Ray (1997) enfatiza o desenvolvimento rural local como um elemento novo e decisivo nos horizontes futuros da Política Agrícola Comum. O sentido da “política estrutural ” da União Européia hoje é, de certa forma, o oposto do que vigorou nos primeiros vinte anos de sua criação (ver parte I deste trabalho), quando todo o esforço esteve voltado a organizar o meio rural fundamentalmente em função das necessidades da agricultura. O próprio título de um importante programa europeu como o LEADER mostra a orientação da nova política: Ligações Entre Ações do Desenvolvimento da Economia Rural. A política pública, sob esta ótica, concebe o desenvolvimento numa “escala territorial e não setorial ” (Ray, 1997:345). É provável que estes programas mostrem (e não só aos europeus [5], conforme procuro mostrar em trabalhos recentes) o conteúdo do que serão as políticas agrícolas do Século XXI: muito mais voltadas à valorização dos territórios, à preservação do tecido social do meio rural, ao fortalecimento do caráter múltiplo das atividades que se desenvolvem no campo, do que à sustentação dos preços e das rendas de um certo setor. O caráter profético destas iniciativas, entretanto, não pode escamotear a distância entre a situação atual e os horizontes para os quais elas apontam. Se a ênfase de Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão (Abramovay, 1992) está na unidade do desenvolvimento agrícola do capitalismo avançado em torno da agricultura familiar, o acento aqui é colocado nas diferenças existentes em seu interior. Como será visto na primeira parte do texto, as duas primeiras décadas de 3

A expressão opõe-se nitidamente a uma agricultura altamente especializada produtora de grãos. Carta do Gabinete do Ministro da Agricultura, de julho de 1998, aos “Préfets ” dos Departamentos franceses. 5 Abramovay 1998 e Abramovay 1999 4


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implantação da PAC correspondem a uma notável convergência das organizações profissionais agrícolas e das autoridades de Bruxelas em torno da necessidade de se organizar o setor sobre a base de um padrão definido e unitário de estabelecimento produtivo, fundamentado na mão-de-obra familiar e capaz de reproduzir-se com base estritamente em seus ganhos agropecuários. Este projeto supunha a eliminação social daqueles que não seriam capazes de incorporar a sua base produtiva os meios químicos, mecânicos e biológicos da agricultura moderna. Como este “saneamento ” do setor agrícola (para empregar o termo - de gosto duvidoso - de um antigo comissário europeu, Sicco Mansholt) não ocorreu, a diversidade acabou não só predominando, mas tornando-se hoje uma peça decisiva na própria reforma da política agrícola, como será visto na parte II do presente trabalho. III Este trabalho corresponde a uma versão revisada dos relatórios de pesquisa elaborados durante pós-doutoramento no Centre d ’Études et des Recherches Internationales da Fondation Nationales des Sciences Politiques entre 1993 e 1995. O título do projeto que lhe deu origem é “A reocupação do espaço rural na unificação européia ”. O pressuposto era que as políticas produtivistas levadas adiante pela PAC com a intenção explícita de promover um êxodo agrícola acelerado (visto como condição de aumento da renda setorial tanto por Bruxelas como pelas organizações profissionais, como se mostra na parte I) não tinham alcançado este objetivo. Já a partir de 1975 começam a aparecer medidas que visam, ao contrário, manter parte da população no campo, mas não necessariamente vinculada a um desempenho produtivo exemplar. A reforma de 1992 adere explicitamente a este objetivo e durante as discussões em torno do GATT eram freqüentes as declarações de Jacques Delors insistindo que a Europa prezava um meio rural povoado e que as políticas agrícolas tinham que contemplar esta aspiração. Por mais que o desenvolvimento rural e a preservação ambiental sejam centrais na agenda européia contemporânea, o fato é que, até hoje, o essencial dos gastos públicos continua se destinando à manutenção de um aparato produtivo cuja utilidade social é cada vez mais colocada em dúvida. A Política Agrícola Comum encontra-se numa fase de transição cujos rumos futuros ainda não estão definidos. Tanto mais que, diferentemente do grupo relativamente homogênero de países que deu origem à


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comunidade, hoje ela abrange nações do Norte e do Sul da Europa e está na iminência de incorporar alguns dos países que viveram em regime de economia centralmente planificada até dez anos atrás. Se o meio rural será ou não “reocupado ” o trabalho não oferece uma conclusão a respeito. O que ele faz é apresentar os pontos de vista em torno dos quais se organiza o debate europeu – com um vié inegavelmente francês - sobre a utilização dos fundos públicos no quadro da Política Agrícola Comum. São estas correntes de pensamento e estas forças sociais que acabarão por decidir se a “reocupação do meio rural ” faz parte do horizonte da Europa contemporânea. O trabalho divide-se em duas partes. Na primeira são estudados os fundamentos da PAC ;procurando compreender justamente o esforço pela implantação da norma unitária que a regeu até sua extinção, por um lado, e a pressão permanente para que esta norma não fosse levada efetivamente à prática. É sobre a base de um meio rural muito mais diversificado do que teriam desejado os formuladores iniciais da PAC que ela se reestrutura. Após uma breve apresentação dos aspectos mais importantes da reforma da PAC ao final da parte I, a parte II dedica-se a expor os pontos de vista das três mais importantes correntes de opinião que influem em seus destinos atuais. Não se trata de um estudo de ciência política em que seriam analisadas as circunstâncias concretas de organização destas forças nem de uma exame sociológico a respeito de suas origens sociais. O interesse foi apresentar a lógica de argumentação de cada um destes segmentos, como um meio de se conhecer os principais temas que irão organizar o debate. O foco está na maneira como as principais correntes formulam os argumentos que terão repercussão na própria política. IV A realização deste trabalho contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e do Departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP). Na França, Hélène Delorme do Centre d ’Études et des Recherches Internationales não só me recebeu de forma amiga e generosa, como auxiliou-me a destrinchar parte do emaranhado de que consiste a PAC. Os convites que me foram formulados por Pierre


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Coulomb do Institut Agronomique Méditérranéen e por Albert Marouani da Faculdade de Economia de Nice, por Alain Ruellan e Philippe Jouve, do Centre National d ’Études Agronomiques sur les Régions Chaudes (CNEARC) e, mais recentemente por Denis Sautier do Centre International de Recherches sur le Développement (CIRAD) foram fundamentais para ampliar os contatos necessários à realização do trabalho. Nas pessoas destes pesquisadores agradeço todos os colegas das respectivas instituições que tão solicitamente me receberam. Tive também a oportunidade de participar, durante os dois anos de meu pós-doutorado das reuniões semanais da Société Française d ’Économie Rurale e fui recebido algumas vezes em entrevista por seu presidente, Jean-Marc Boussard. As conversas constantes com o professor e amigo Ignacy Sachs (do Centre de Recherches sur le Brésil Contemporain da École des Hautes Études en Sciences Sociales) foram e são sempre de grande valia, bem como minha participação nos Seminários das quartas-feiras organizados naquela instituição há vinte anos e pelo qual respondiam, durante minha estada na França, Marion Aubrée e Maurício Dias David. Bertrand Delpeuch contribuiu para que eu fizesse importantes entrevistas, quando de minha visita à Direction Générale XI da Comunidade, em Bruxelas. Claude Roger e Marcel Marloie, de Solidarités Agroalimentaires (SOLAGRAL) foram sempre pacientes com minhas interrogações. Catherine Domart do Réseau Animation, Formation, Information (AFIP) leu um dos relatórios e me deu conselhos interessantes, bem como Celina Whitaker Ferreira e Olivier Réchauchère. Tive a ocasisão de discutir também partes deste trabalho com o amigo e colega José Eli da Veiga. A todos, meu sincero agradecimento.


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Parte I - PAC- Formação , crise e reforma


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1. Apresentação Em 1963 um jovem agricultor francês publica o livro que fornecerá a base programática, política e cultural do processo de modernização pelo qual vai passar o meio rural do país a partir de então. Mais do que simplesmente uma denúncia da injustiça a que estão submetidos a maior parte de seus colegas ("a idade média no tempo da eletrônica", título da primeira parte da obra), das longas jornadas de trabalho, da produção sub-remunerada, da marginalização da mulher, do isolamento do camponês, Debatisse (1963) formula uma proposta ousada, que se poderia esperar de um tecnocrata de Washington ou de Bruxelas, mas não de um sindicalista: é preciso lutar pela modernização, mas reconhecendo que, no meio rural, nem todos a ela poderão ter acesso. Há braços demais no campo e a promoção organizada do êxodo é o único meio de permitir que o progresso técnico provoque a elevação da renda agrícola. Produzir mais, adotar novas técnicas, intensificar os métodos de trabalho, aumentar as superfícies exploradas, eliminar as explorações muito pequenas, ampliar o uso de máquinas e insumos químicos, recorrer largamente ao sistema de crédito, eis alguns dos objetivos aos quais queria chegar a Revolução Silenciosa de Debatisse e que - num dos mais notáveis exemplos de cogestão de uma política pública de que se tem notícia - inspirou a formulação da política agrícola na França e, em grande parte, na Comunidade Européia (6). Trinta anos depois, começam a ser aplicadas diretrizes comunitárias que vão exatamente no sentido oposto: é necessário produzir menos, extensificar a produção, reduzir a área cultivada e o tamanho dos rebanhos, diminuir o uso de máquinas e sobretudo de insumos químicos, assim como o uso de créditos visando a produção e, agora, fazer o possível para conservar a ocupação da mão-de-obra no meio rural (Commission des Communautés Européennes, 1993, Commission européenne, 1997). Os desafios que tem pela frente a União Européia na organização do destino de seu meio rural não são menos cruciais que os colocados trinta anos atrás por Debatisse. A diferença é que naquele momento pareciam claros o sentido econômico, a base social 6 O conjunto que hoje se chama União Européia (UE) mudou de nome várias vezes de nome desde sua constituição, em 1958 em torno de seis países: Bélgica, França, Itália, Luxemburgo, Holanda e República Federal da Alemanha, quando se chamava Comunidade Econômica Européia. Em 1973, Reino-Unido, Irlanda e Dinamarca aderem à Comunidade. A Grécia entra em 1979 e em 1986 será a vez da Espanha e de Portugal. Áustria, Finlândia e Suécia aderem em 1995 à União Européia.


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e - na confluência destes dois aspectos - a legitimidade política do processo de modernização empreendido. O drama das mudanças atuais é que os fundamentos que sustentaram o projeto de modernização do início dos anos 1960 se esvaneceram. Neste sentido, convém colocar, logo de início, que a crise agrícola atual não pode ser compreendida senão no contexto geral da ruptura das bases de coesão da sociedade do trabalho e portanto dos modos de inserção social dos indivíduos a partir de suas funções produtivas (7). Durante os anos 1960, perdiam-se postos de trabalho na agricultura em nome de maior eficiência e sob o manto protetor de uma economia cujo crescimento criava condições objetivas para o sucesso de políticas de reinserção dos indivíduos que deixavam o campo. Hoje, não só o trabalho agrícola é cada vez menos necessário, mas a própria produção deve diminuir e com ela, fatalmente, a ocupação produtiva do espaço e tudo num contexto em que não há qualquer perspectiva realista de expansão dos empregos em outros setores da economia. Transitar para a modernização parecia mais claro e oferecia instrumentos mais evidentes do que sair dela em direção a uma organização social sobre a qual não se tem muita nitidez. É no quadro da atividade agrícola e com os instrumento das políticas públicas que a sustentariam que os grandes problemas do meio rural seriam enfrentados a partir da IIª Guerra Mundial. Só parecia possível pensar o meio rural em função da atividade econômica que o ligava ao restante da sociedade, isto é a produção agrícola. A gestão do espaço confundia-se - com exceção daquilo que seria próprio aos parques naturais, é claro - com a própria política agrícola. Por isso, a palavra agricultura podia ser enunciada no singular: a diversidade das situações sociais era encarada, no fundo, como o mais eloqüente sinal de que o trem da história ainda não havia verdadeiramente entrado no campo e de que tão logo seus trilhos fossem dispostos somente os mais eficientes entre os produtores continuariam a receber da sociedade o voto de confiança pelo qual se confirmariam como legítimos ocupantes do espaço rural.

7 O livro fundamental de Gorz (1988) ainda é a referência até aqui mais importante a respeito. Visto como utópico no momento de sua publicação, Gorz é hoje amplamente citado por responsáveis políticos. Aznar (1993) faz uma importante tentativa de traduzir praticamente as idéias expostas por Gorz.


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Em todos os planos - social, econômico e agronômico - a diversidade era a anomalia que o passado tinha nos legado e que a construção da política agrícola moderna deveria suprimir. A economia agrícola como disciplina científica e a agricultura como atividade econômica deveriam estruturar-se em torno de uma norma unitária cuja meta era a elevação constante dos rendimentos da terra e da produtividade do trabalho. O vocabulário corrente e oficial, o acadêmico e o administrativo não hesitam em tratar de marginais aqueles que não obedecem a esta norma e a incluir o planejamento ativo de sua eliminação social: o campo aos que têm eficiência para produzir muito, usando pouco espaço e pouco trabalho ! Esta é a consigna básica da agricultura moderna, que entra em crise desde meados dos anos 1980. A legitimidade deste movimento organizado de concentração do progresso técnico e da produção entre uma camada superior de agricultores familiares é contestada não só quando os gastos públicos com sua sustentação tornam-se excessivos, mas sobretudo quando o sentido econômico do que ela faz deixa de apresentar qualquer benefício para outros setores da sociedade. Neste momento em que se rompe o "contrato da modernização" (8) anteriormente estabelecido e surge a necessidade, para usar a expressão do documento preparatório do XIº Plano do Governo Francês, de um "novo contrato" (Commissariat Général du Plan, 1993; Jollivet, 1992:10), no qual a questão do espaço rural terá tanta ou maior importância que a da produção agropecuária. É neste sentido que vários pesquisadores franceses falam de uma nova forma de organização que corresponde à "passagem da regulação keynesiana à regulação territorial" (Coulomb, 1991). O que muda não é a necessidade de um controle público sobre a oferta agropecuária, mas a forma como se dispõem das subvenções voltadas a esta finalidade. As tentativas de diminuir a produção agropecuária por meio de preços desde o início dos anos 1980 ou por meio do estabelecimento de cotas e contingenciamentos foram sistematicamente mal sucedidas. O que caracteriza a reforma de 1992 é que o agricultor recebe basicamente não pelo que produz, mas pelo que deixa de produzir, pela imobilização do capital e pela não utilização de parte de suas terras. A renda que o agricultor recebe do Estado deixa de estar vinculada diretamente à produção e por esta razão Coulomb (1991) a batizou de “renda fundiária orçamentária ”. Pode-se imaginar o trauma de tal mudança, sobretudo num 8 Para retomar a feliz expressão de Delord e Lacombe (1993)


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país como a França, onde os agricultores sempre foram vistos não só como fonte de alimentação, mas como base da própria identidade nacional. O novo contrato que se estabelece a partir de então não será mais homogêneo, sintético, nem administrado por grandes organizações em torno de objetivos unificadores. Ao contrário, como bem sublinham Bonnet, Delorme e Perraud (1993:3), o meio rural europeu vive hoje o fim do que chamam de política de convergência social em torno de uma norma produtiva unificada. No seu lugar começam a surgir políticas de coesão com forte orientação espacial e que, por definição, encaram a diversidade nas situações e nos ritmos de crescimento não como distorções a abolir, mas como potenciais para a valorização de formas específicas, adequadas e sustentávies de crescimento. A ênfase da PAC até meados dos anos 1980 concentra-se na tentativa permanente de fazer do meio rural o espaço da modernização agrícola; a reforma procura atenuar esta orientação e enfatizar a importância das funções não estritamente produtivas que o meio rural representa para a sociedade européia. O paradoxo, como será visto na parte II do trabalho é que há imensa distância entre o discurso dos dirigentes comunitários enaltecendo o desenvolvimento rural e a realidade do orçamento da União cuja maior parte dirigese, até hoje, a remunerar as perdas que os agricultores – e sobretudo os maiores – tiveram com a reforma de 1992. Neste sentido, embora haja uma política de convergência haverá muitas políticas de coesão. É que os atores sociais que tentaram construir o mundo rural à imagem e semelhança das necessidades quase exclusivas do processo produtivo tinham uma conotação sociológica unificada: a modernização da agricultura européia consistiu num espetacular processo de cogestão da concentração de recursos produtivos e de subsídios públicos entre as mãos de um setor que conseguiu conquistar junto à sociedade e ao Estado - com maior ou menor sucesso, dependendo da história de cada país, é claro - o lugar de legítimos administradores daquilo que poderia ou não ser feito com o espaço rural. Bertrand Hervieu (1993:11), num dos mais notáveis livros publicados sobre o assunto, fala do “do fim de um ofício e de uma forma de exercê-lo, do fim de um território e de uma forma de gerí-lo ”.


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Esta primeira parte do texto divide-se em sete itens, além desta introdução. Os itens dois e três procuram compreender as condições em que se formou a Política Agrícola Comum: no item dois é ressaltada a diversidade entre os países que compuseram inicialmente a Comunidade Européia e no três os paradoxos a que conduziu sua tentativa inicial de preparar as condições que permitissem num futuro mais ou menos distante que o setor se emancipasse da intervenção estatal permanente. Espero que possa ter ficado claro aí o objetivo da política agrícola comum de promover as condições sociais para o funcionamento de uma norma homogênea em torno da eficiência econômica e, ao mesmo tempo, sua incapacidade de implantar as mudanças sociais que garantiriam o funcionamento desta norma. O item quatro procura mostrar que os grandes sucessos alcançados pela execução da PAC no plano produtivo não podem escamotear três problemas que acabaram por ser centrais em sua crise: os excedentes, os gastos públicos e a concentrçação cada vez maior dos recursos produtivos e dos subsídios entre os grandes produtores. É exatamente na confluência destes três fatores que os problemas ambientais adquirem importância. À crise da Política Agrícola Comum, tal como existiu durante trinta anos, acrescentam-se mudanças na paisagem social do mundo rural onde os agricultores não passam de uma minoria: o item cinco descreve, ainda que rapidamente, as mudanças que acompanham, no meio rural, esta perda de sentido econômico das atividades produtivas dos agricultores: mudanças demográficas, peso crescente da pluriatividade e necessidade de ocupar o solo com atividades que não se confundem mais com a convencional produção de gêneros alimentares. No item seis, então, os principais aspectos da reforma são expostos de maneira sumária.

2. Disparidades e contradições Se o artigo 39 do Tratado de Roma previsse simplesmente um mercado comum agrícola não seriam necessários os dez anos que transcorreram antes de sua aplicação prática aos principais produtos da Comunidade nem a montagem da verdadeira parafernália institucional e das exaustivas rodadas de negociações - as famosas


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maratonas (9)- com as quais se identifica até hoje a política agrícola comum . Diferentemente do que ocorre com o NAFTA e com o Mercosul, muito mais do que uma simples abertura de fronteiras, tratava-se, antes de tudo, de unificar e centralizar políticas de intervenção pública, o que coloca, desde logo, uma questão chave: o que podia ser uma política comum num quadro tão diferenciado e diversificado como o que caracterizava o meio rural dos países que estavam negociando a formação da Comunidade Européia desde o início da década? É bem verdade que a agricultura européia, bem como a dos EUA, do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia estrutura-se em torno daquilo que Johnston e Kilby (1975) chamaram de unimodalismo (10). Mas é claro que o unimodalismo não exclui processos de diferenciação próprios a qualquer economia mercantil e muito menos as divergências nacionais de interesses quanto à gestão da política agrícola. Não há porque supor que o caráter fundamentalmente familiar da estrutura agrícola suprime as contradições entre diferentes grupos de agricultores e entre países, muito menos que ele represente um quadro inalterável e impermeável a mudanças. A exposição destas diferenças exigiria, é claro, um estudo minucioso da história agrícola de cada país o que extrapola os objetivos do projeto. Para o que nos interessa, elas podem ser resumidas a três aspectos básicos.

2.1. O peso da agricultura nas economias nacionais O eixo de formação da Comunidade, já desde o início dos anos 1950, é francoalemão. Excedentária em cereais (tabela 1), a França condiciona a liberalização das tarifas industriais e a participação européia na rodada Kennedy das negociações do GATT (Neville-Rolfe, 1984:1; Gabdin, 1992:358; Clerc, 1964/1981) à garantia de escoamento de sua produção. Mais que isso, ela acreditava reunir condições que lhe permitiriam tornar-se o celeiro da Europa e lutava, desde esta época para organizar

9 O livro de Neville-Rolfe (1984) fornece uma descrição detalhada a respeito. Aliás, trata-se de obra do maior interesse pois alia uma reflexão profunda sobre os principais dilemas da PAC com a vivência de alguém que trabalhou diretamente em aspectos importantes da execução desta política. 10 Ver também Veiga (1991) e Abramovay (1992). Os casos da Oceania são pouco conhecidos entre nós e muitas vezes a extensão territorial das fazendas obscurece o fato de serem familiares. "Apesar de seu grande tamanho, as explorações australianas são possuídas e exploradas por uma só família que fornece o grosso do trabalho necessário" (Stent, 1981:47). "A fazenda néo-zelandesa tipo é constituída por um proprietário-empreendedor e sua mulher que fornecem a parte essencial do trabalho da exploração" (Easton, 1981:33).


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os mercados europeu e internacional para atingir este objetivo, ciente de suas possibilidades competitivas neste setor. Tabela 1 Taxa de auto-suficiência em cereais – Comunidade européia. 1957.1981. Em %. 1957 1968 1974 1981 74,5 79,3 82,2 92,3 RFA 105,2 147,0 165,0 176,9 França 94,0 69,2 69,0 79,0 Itália 36,2 38,1 25,1 29,0 Holanda 49,5 47,4 39,6 52,0 U.E.B.L. 67,9 105,1 Reino Unido 68,6 83,8 Irlanda 101,4 108,4 Dinamarca 81,3 112,5 Grécia CEE de 6 CEE de 9 CEE de 10

84,9

93,1

96,8 90,9 90,6

110,3 108,5 109,0

Fonte: Insee, 1987:49

Embora sem uma forte tradição de pensamento liberal influenciando a política agrícola - com exceção talvez do período de Napoleão III, como bem mostra Tracy (1964/1989) - a França só podia, no caso, aderir à teoria das vantagens comparativas que lhe permitiria, em tese, deslocar parte considerável de seus concorrentes europeus e desempenhar um papel importante no abastecimento internacional. Basta ver o nível de preços de cereais vigente antes que a política comum unificasse a sustentação das cotações (tabela 2) para observar que, potencialmente, as chances não só de escoamento, mas de expansão da produção cerealífera francesa estariam praticamente garantidas com a unificação.


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Tabela 2 Preços dos principais produtos agrícolas dos Estados membros, 1958/1959. Média aritmética 1958/59 = 100 Produto Trigo Malte Cevada Aveia Açúc. Bet. Leite Carne bov. Carne suína Ovos

Alemanha

França

Itália

Bélgia

Luxemb.

Holanda

109,4 116,7 134,6 121,2 122,3 101,6 101,3 110,0 109,4

74,9 71,0 76,6 83,6 81,5 92,1 87,8 93,7 89,8

109,1 101,7 93,4 84,3 103,9 98,7 113,7 105,7 113,1

100,4 87,1 105,1 100,3 92,8 94,3 89,5 84,9 94,5

123,3 138,9 98,9 110,5

83,0 84,7 91,4 100,1 99,1 97,8 101,8 90,4 73,2

116,1 105,9 115,3 119,9

Fonte: Neville-Rolfe, 1984:500

Desde que, o princípio econômico da especialização com base na eficiência do uso dos fatores traduzida em seus custos fosse respeitado: a Europa agrícola à la française deveria, antes de tudo consolidar o país como grande fornecedor de cereais para a pecuária estabulada de todo o Continente. Como veremos adiante, este objetivo será frustrado tanto pela expansão da produção cerealífera do Norte da Europa, quanto sobretudo, pela entrada de componentes da ração alimentar vindos, a preços inferiores aos dos cereais europeus, dos Estados Unidos, do Brasil e de países asiáticos e que vão obrigar a Comunidade a implantar uma política agressiva - e subsidiada - de exportações (Delorme, 1994, Bousard, 1998, Snessens et al. S/d). Um dos objetivos da reforma da PAC aliás é permitir que, pelo barateamento de seus cereais, a produção européia reconquiste seu próprio mercado interior de rações animais. Juntamente com a Itália, a França, em 1958, é o país com maior proporção da população ativa na agricultura (tabela 3).


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Tabela 3 Emprego por setor de atividade - 1958 em %

Alemanha França Itália Holanda Bélgica Luxemburgo

Agricultura, silvicultura e pesca 15,7 23,7 34,9 12,7 9,4 17,9

Indústria 47,7 39,0 35,4 41,8 47,5 43,3

Serviços 36,7 37,3 29,7 45,5 43,2 38,8

CEE de 6

22,7

41,6

35,7

Fonte: Insee, 1987:6

Mais importante porém que o peso da população agrícola é a participação da agricultura nas exportações tanto da França como da Holanda, em contraste com uma participação pouco relevante da Alemanha (tabela 4). Se, sob o ângulo da população agrícola, a França hoje atinge proporções comparáveis às de seus vizinhos do Norte (5% da população ativa em 1990, Insee, 1993:13) o contraste com a Alemanha, sob o ângulo das exportações permanece: o setor agroalimentar responde por 16% das exportações francesas e apenas 4% da Alemanha (Delorme, 1994:2).

Tabela 4 Participação dos produtos agrícolas no total das exportações – 1958 - em % Alemanha França Itália Holanda * UEBL CEE de 6

3,3 17,6 22,6 33,6 9,6 12,1

* A importância do porto de Rotterdam tende a superestimar a cifra de exportação originária da Holanda Fonte: Insee, 1987:6


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Embora não faça parte dos seis países que formaram inicialmente a Comunidade, é bom lembrar que o Reino Unido encontra-se em situação bem distinta. Tracy (1964/1979) mostra bem como a agricultura mais próspera do mundo foi destruída - e, por aí, aniquilado o poder de sua aristocracia fundiária - na ausência de qualquer defesa protecionista contra a entrada na Europa dos cereais baratos que, sob o impulso da revolução nos meios de transporte, afluem ao Continente a partir de 1880. Marc Bloch (1936/1967) resume a diferença entre a França e a Grã-Bretanha quanto ao lugar da agricultura na sociedade, mostrando que enquanto na Inglaterra e País de Gales a população agrícola relativamente à população ativa total era de 5,3% em 1934, na França esta cifra chegava a 35,3%. As lavouras nesta época ocupavam na Grã-Bretanha 21% da superfície agrícola, contra 38% na França. Convém insistir que o objetivo aqui é simplesmente fornecer de maneira panorâmica o quadro de diferenças em que vai realizar-se a PAC e não explicar as particularidades da formação histórica de cada país. Mas só este retrato da situação demográfica ilustra uma característica importante ressaltada no excelente livro de Neville-Rolfe (1984) e que separa radicalmente o Reino Unido dos países continentais que deram início à Comunidade. A diminuição drástica e muito precoce da população rural inglesa não só torna seu peso eleitoral muito reduzido, como não permite a formação de um sentimento de solidariedade, de identidade que a população rural é capaz de despertar nos próprios habitantes num país como a França (11). País altamente urbanizado e de poucas terras cultiváveis, já em 1880 a Inglaterra tem a vantagem de encontrar no mercado mundial alimentos a preços bem inferiores aos que serão pagos no restante do Continente (12). Assim, é muito mais à idéia de livre mercado que à de agricultura nacional que se liga o abastecimento alimentar do cidadão britânico. A vinculação -nítida até hoje num país como a França - entre o alimento que se compra na feira e sua origem precisa, não faz parte da tradição inglesa (13). Neville11 Também nos Estados Unidos, como mostrou Veiga, 1994. 12 Segundo Tracy (1964:97) na virada do século, um trabalhador alemão médio trabalhava treze dias do ano só para pagar a taxa de 5,50 marcos por 100 quilos para a importação de trigo. 13 Em 1994, quando pescadores franceses manifestaram-se contra a “concorrência desleal ” vinda de outros países presenciei, na França, uma cena que dificilmente ocorreria no Reino Unido, quando algumas pessoas, na feira, diante da banca de peixes, insistiam com o vendedor que queriam o produto dos pescadores bretões e não dos concorrentes asiáticos ou da Europa do Norte que ameaçavam sua sobrevivência. Por mais que as autoridades tenham, é claro, condenado a violência das manifestações dos pescadores, elas inspiram certamente um sentimento de solidariedade muito forte. Como veremos mais adiante, este sentimento sociologicamente "tradicional" pode contribuir para o desenvolvimento


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Rolfe (1984:64) nota também que no Continente não existem fortes movimentos de protestos contra altos preços alimentares: os próprios sindicatos urbanos, diferentemente do que acontece na Inglaterra, jamais questionaram os efeitos eventualmente nocivos que a PAC poderia ter sobre a cesta de consumo dos trabalhadores. No Reino Unido, o meio rural não está associado aos agricultores ou à agricultura, mas antes de tudo à paisagem e àquilo que dela podem extrair os habitantes urbanos em termos de lazer e contemplação. Existem portanto sólidas razões históricas de que os britânicos estejam na origem do famoso artigo 19, antecipação de um dos aspectos centrais da reforma de 1992, adotado pela Comunidade em 1985, e que se propõe a fornecer “ajudas às zonas sensíveis do ponto de vista da proteção do meio ambiente e dos recursos naturais, bem como do ponto de vista da manutenção do espaço natural e da paisagem" e também a compensar financeiramente os agricultores que adotarem práticas agrícolas que respondam a estes objetivos (Mainsant, 1992:136). Em contraste com a situação britânica, Mellon (1993:4) lembra que a ascendência rural de boa parte da população francesa e o fato de os franceses deterem o recorde mundial de residências secundárias contribuem para que a relação imaginária do país com sua agricultura seja diferente daquela mantida por exemplo com sua siderurgia.

2.2. As estruturas agrícolas nacionais Quase um em cada quatro habitantes dos seis países signatários do Tratado de Roma trabalhavam na agricultura em 1958, num total de 16 milhões de pessoas. A tabela 3 mostra que, na verdade, as situações nacionais são diferentes: um para quatro na França, um para três na Itália, mas apenas um para dez na Bélgica. Note-se que, pelo quadro fornecido por Marc Bloch, a situação britânica em 1934 já é de um para cada vinte, o que só será atingido pela França em 1990 ! A importância demográfica da agricultura era bem maior que seu peso na formação dos produtos nacionais (tabela 3) o que, por si só, já testemunha os problemas

de um fenômeno da maior importância na renovação do sentido econômico do espaço rural que é a valorização dos produtos correspondentes a marcas regionais de origem. Hoje há mais de 500 produtos com garantia certificada de origem junto à União Européia em Bruxelas.


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"estruturais" que deveriam ser enfrentados (14). Esta desproporação entre o peso dos trabalhadores agrícolas sobre a PEA total, relativamente ao peso da agricultura no produto total não é homogênea quando se comparam os diferentes países: de dois para um na Alemanha, na França e na Itália, ela é de apenas 1,3 para um na Holanda e de 1,4 para um na Bélgica. É que nestes dois últimos países, já nesta época, a intensificação da produção agrícola e pecuária aumentava o valor da produção por ativo agrícola. Mesmo no interior dos países, entretanto a situação era muito diferente. Na Alemanha Federal é pequeno o peso das grandes propriedades (apesar de sua força política, como veremos adiante), concentradas na parte leste do País e incorporadas à DDR. Já na França, a grande exploração cerealífera tem apreciável peso econômico e é responsável pelo fato de que o País, já desde os anos 1950, tenha atingido a autosuficiência em trigo (tabela 1). Aqui também o contraste com o Reino Unido é notável. Enquanto em outras regiões do Continente, sobretudo onde prevaleceu a lei romana e o código Napoleão, as propriedades foram intensamente subdividas entre herdeiros, a Inglaterra - bem como os grandes latifúndios italianos ou as terras da Igreja em volta do Bassin Parisien conseguiu manter suas grandes extensões de área, embora dois terços dos 286 mil estabelecimentos tenham menos de 40 hectares em 1851 (Neville-Rolfe, 1984). A grande propriedade foi a base fundamental de desenvolvimento capitalista o que evitou muitos dos "problemas estruturais" que se colocam permanentemente aos países do Continente. Reflexo desta situação histórica, a superfície média das explorações agropecuárias britânicas, em 1991, é de 109 hectares, mais que o dobro de qualquer outro país da Comunidades. Além disso, os estabelecimentos com mais de 50 hectares ocupam nada menos que 83% da superfície agrícola útil, segundo dados da Comissão Européia. Outro traço importante da estrutura social da agricultura inglesa é o peso que aí tem o trabalho assalariado: se nos outros países do Continente a exploração econômica do meio rural tende a se confundir com a figura do agricultor que trabalha com sua família, o quadro inglês é bem diferente. Hoje, quarenta por cento das horas

14 Após ter apontado o fenômeno geral da rápida queda do peso da agricultura na renda nacional em contraste com a lenta diminuição de sua participação no emprego, Debatisse (1963:33) conclui o capítulo inicial de seu livro dizendo: "é preciso então ver neste hiato entre a diminuição da renda agrícola e a persistência de uma população agrícola numerosa uma das fontes do marasmo atual".


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de trabalho na agricultura são gastas por trabalhadores assalariados, uma proporção que não é atingida, nem de longe, por qualquer outro país da Comunidade. Mas a principal diferença entre Grã-Bretanha e França está na própria relação entre a sociedade e o meio rural. “Não existe na Grã-Bretanha sociedade rural no sentido em que esta palavra é empregada na França, uma população diversificada nas suas atividades, ocupando o espaço ” (Bodiguel, 1989:17). A modernização e o êxodo rural acelerado desde Revolução Industrial restringem a agricultura a espaços relativamente pequenos (mesmo que em grande unidades produtivas) e faz do campo, antes de tudo, um local bucólico em que se pode contrabalançar a própria dureza da vida urbana. “Desde início do Século XIX, o campo é protegido, memória viva e espaço não poluído...A elite burguesa e aristocrática desencadeou um movimento de proteção do meio ambiente natural e do patrimônio histórico, animado e gerido por associações que vão tornar-se muito influentes, com grande poder até hoje...Há mais de cem anos proteger o meio ambiente era considerado um dever social ” (Bodiguel, 1989:23).

2.3 Tradições e modalidades da intervenção pública na agricultura A prática de sustentação estatal da renda dos agricultores era generalizada na Europa após a IIª Guerra Mundial, com a adoção por parte da maior parte dos países de diplomas legais que estabeleciam as bases da relação entre o governo e a agricultura. Resumidamente, podemos falar de três situações básicas: 2.3.1. Reino Unido É preciso lembrar, em primeiro lugar, que a agricultura foi o principal obstáculo que atrasou a adesão do Reino Unido à Comunidade até o ano de 1973. Isso se relaciona à profunda diferença entre o sistema inglês e os continentais de sustentação da renda agropecuária. Foi a Inglaterra que inventou, em meados do século XIX, após a abolição das corn laws (Baudin, 1993:17) o sistema de deficiency payment (que poderia ser traduzido por pagamento compensatório), hoje vigente nos Estados Unidos, pelo qual não é intervindo nos preços dos produtos que o Estado sustenta a renda do agricultor, mas oferecendo-lhe um pagamento que corresponde à diferença entre o que paga o mercado mundial e uma cotação estabelecida pelo organismo de intervenção.


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Neste sistema não há necessidade de proteção tarifária para a agricultura: o agricultor vende seu produto ao preço mundial e recebe um complemento de renda proporcional ao que produziu. Ao mesmo tempo, o país pode abrir-se às importações, o que, para o Reino Unido é absolutamente fundamental, tanto em virtude de sua dependência do mercado internacional, como por seus compromissos junto ao Commonwealth (15). A diferença com relação ao restante do Continente é que não há um preço de garantia fixado independentemente do que ocorre no mercado mundial e pelo qual o Estado compraria a produção em quantidades ilimitadas. O preço do produto não difere praticamente do que vigora internacionalmente e é por esta cotação que os beneficiadores o adquirem. A exposição ao mercado exterior portanto é completa. Como os custos de produção do agricultor britânico são mais altos que o que recebe do mercado internacional, esta diferença é compensada por um pagamento governamental (pagamento compensatório ou deficiency payment). Portanto, da mesma forma que no sistema praticado pela Comunidade (e que o Reino Unido obviamente teve que abandonar a partir de 1973), o deficiency payment representa uma sustentação da renda do agricultor só que quem a paga não é o consumidor e sim o contribuinte. O argumento dos defensores deste sistema é duplo. Por um lado, ele interfere muito menos sobre o mercado mundial do que a sustentação de preços. Por outro, ele é mais equânime do ponto de vista distributivo, já que conta com verbas do Tesouro - para cuja formação a contribuição maior vem dos setores de alta renda - e não com maiores preços para os consumidores o que os penaliza tanto mais quanto maior o peso da alimentação em seus orçamentos, atingindo assim os mais pobres (Tracy, 1993). De fato, a entrada do Reino Unido na Comunidade trouxe como primeiro impacto um encarecimento dos preços alimentares, o que parecia confirmar o slogan dos oponentes à adesão de que "o mercado comum é sinônimo de vida cara" (Boussard, 1993:51). Se é verdade que qualquer sistema de sustentação de renda é pago pela sociedade, no deficiency payment é o contribuinte quem arca com a despesa e não o consumidor como no apoio pela via dos preços. Outra característica importante deste sistema é a sua transparência: aquilo em que a sociedade contribui para a formação da renda do agricultor não se dissolve no preço

15 Estes compromissos têm um tal peso que o ingresso do Reino Unido na Comunidade foi acompanhado da autorização a que à Nova Zelândia fossem feitas importantes concessões quanto a suas exportações de manteiga e carneiro.


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do produto mas dele se distingue de maneira palpável através do cheque que ele recebe do organismo de intervenção. Uma diferença fundamental entre o Reino Unido e os outros países do Continente, é que antes da IIª Guerra Mundial, a intervenção governamental na agricultura esteve sempre vinculada a questões de abastecimento e segurança nacional, muito mais que à proteção da renda dos agricultores. Enquanto na França o Ministério da Agricultura surge na IIIª República, no Reino Unido é só em 1914 que se cria um Ministry of Food. É verdade que em 1916 introduz-se no governo britânico uma espécie de secretaria de segurança alimentar (Food Controler) e mesmo nos condados formam-se comitês executivos que se encarregam de obrigar o cultivo de terras não trabalhadas e que em 1918, toda a oferta de alimentos básicos passa por este Food Controler (Tracy, 1964/1979:150, 151). É neste contexto - ou seja, de ameaça à integridade do abastecimento - que o deficiency payment é adotado em sua forma atual, num contrato de cinco anos entre o Estado e os agricultores. Terminada a Guerra, uma comissão Real, em 1919 opta pela continuidade do apoio à renda dos agricultores. Mas diante da queda dos preços internacionais, que tem início em 1921, os custos desta política parecem excessivamente elevados e, com a volta ao laissez-faire agrícola, o setor entra em franco declínio. Tão logo foi possível garantir o abastecimento nacional recorrendo às importações, perdeu razão de ser a sustentação de uma agricultura incapaz de assegurar o consumidor e excessivamente onerosa para o contribuinte. Só a crise de 1929 e a ameaça de uma nova Guerra puderam trazer de volta a intervenção na agricultura e a criação de um ministério voltado ao setor e não só à alimentação (Chalmin, 1993). Reimplantando uma prática abolida desde a vitória contra as Corn Laws, a adoção de barreiras tarifárias - a partir de 1931 - tinha por objetivo muito mais a proteção das exportações das colônias britânicas do que uma tentativa de reerguer o setor agrícola. Já a perspectiva da IIª Guerra levou o Governo a um rígido planejamento da produção agropecuária, que se provou eficaz tanto sob o ângulo da oferta como dos preços, na resistência britânica ao bloqueio imposto durante o conflito.(Marsh, 1981:129). Aí sim - mas, era o abastecimento que estava em jogo - a política apoiou-se na sustentação interna da renda agropecuária. Se não se pode dizer que o final da IIª Guerra Mundial marca a volta do Reino Unido ao liberalismo agrícola, o certo é que as políticas de proteção à agricultura, a partir de


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então, subordinaram-se a duas preocupações básicas: a manutenção de preços alimentares baixos e a contenção dos gastos públicos. Assim, desde o Agricultural Act de 1947 são fixados preços de garantia aos agricultores, mas num limite que não ultrapassa em geral 10% das cotações internacionais e os gastos públicos são limitados por um teto previamente estabelecido (Neville-Rolfe, 1984:39). A própria National Farmer's Union aceitava o princípio de que os preços de garantia seriam fixados num patamar sempre inferior ao vigente no ano que passou. Não é sem razão que foi sobretudo no bolso que o consumidor britânico percebeu que a Inglaterra, a partir de 1973, entrava na Comunidade. 2.3.2. Dinamarca, Holanda e Bélgica A grande crise mundial de 1880 definiu padrões de relação entre o Estado e a agricultura que teriam grande influência para o futuro. Se a reação inglesa - sob a forte influência tanto do pensamento liberal, como do próprio movimento operário, preocupado antes de tudo com a redução do custo de vida de uma população fundamentalmente urbana e com poucos vínculos afetivos com o meio rural - foi de aceitar o declínio da agricultura, o quadro no Continente foi outro. Holanda e Bélgica seguem basicamente o "modelo dinamarquês" de liberação das importações de cereais como base para a reorganização e fortalecimento da pecuária intensiva (16). A Dinamarca é uma das provas mais notáveis de que o livre comércio pode estar associado ao mais estrito planejamento agropecuário: Servolin (1985, 1989), Veiga (1991) e Abramovay (1992) mostram como a Dinamarca inaugura a política agrícola moderna, no sentido de que vincula o equilíbrio do setor à organização dos mercados. À liberdade de importação corresponde um plano de reconversão da criação de porcos para a produção de bacon voltado ao mercado inglês o que só pode se efetivar graças tanto a uma reforma agrária precoce, como ao enquadramento dos produtores e sua obediência a um conjunto de normas determinadas pela organização cooperativa (17).

16 Para a Bélgica, ver Mormont e Van Doninck, 1992 e para a Holanda, Frouws e Hoetjes, 1992. 17 Não é inútil lembrar a admiração de Alexander Chayanov ao modelo dinamarquês que ele cita explicitamente em seu livro como base da concentração vertical da produção no quadro de uma agricultura basicamente familiar (Abramovay, 1992, capítulo 2). Tracy (1964/79), que faz a análise histórica mais completa deste período mostra que além do auxílio governamental à compra de terras pelos camponeses, foi muito importante no "modelo dinamarquês" o desenvolvimento da educação entre os agricultores. A importância de um precoce sistema educacional voltado para os agricultores na Holanda é salientada também por Frouws e Hoetje (1992).


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Este sistema que combinava liberalismo nas trocas internacionais com a organização do setor para enfrentar os desafios do mercado mundial foi bem sucedido até a explosão da crise de 1929 e o colapso das exportações que ela acabou provocando. Em meados de 1929, os estoques mundiais de trigo elevavam-se a 28 milhões de toneladas, o correspondente a um ano das vendas de todos os países exportadores (Tracy, 1993: 152). A partir de 1931, são os produtos animais que têm seus preços em franco declínio, o que obriga uma reviravolta na posição das organizações de agricultores dos três países. Até então, toda a organização e o enquadramento do setor se realizara de maneira independente do Estado. A profundidade da crise de 1929 exige que se rompa com esta tradição não estatal (mas que não é sinônimo de não intervencionista) e organismos governamentais são convocados para auxiliar na tarefa de estabelecer cotas e até o contingenciamento da produção. É impossível, após a IIª Guerra Mundial, voltar à situação em que as próprias entidades sindicais organizam e enquadram o setor, prescindindo da intervenção do Estado, característica básica da evolução da Holanda, da Dinamarca e da Bélgica até a crise de 1929. Com efeito, a partir de então, e na perspectiva da unificação européia, é fundamental que o setor agrícola possua uma estrutura que lhe permita enfrentar a concorrência que a Comunidade deverá impor. Resta saber, entretanto, em que direção vai inclinar-se esta inevitável presença do Estado: nos três países - bem como na França, a partir dos anos 1960 e diferentemente da Alemanha - a política de preços mostra-se não só insuficiente, mas inadequada como modalidade fundamental de sustentação da renda. Holanda, Bélgica e Dinamarca adotam políticas de modernização onde o desaparecimento das pequenas explorações, incapazes de se afirmarem no mercado por suas virtudes competitivas, é preconizado e organizado conjuntamente pelo Estado e pelas organizações profissionais. 2.3.3. Alemanha e França Diferentemente da reconversão dinamarquesa e da abertura britânica, o protecionismo é a marca dominante da reação à grande crise de 1880 por parte da Alemanha e da França que vinham ambas de duas ou três décadas de práticas liberais com relação à agricultura. Tanto, que, apesar da queda nos preços dos produtos agrícolas, a área cultivada com grãos cresce em ambos os países no final do século XIX, assim como a própria população rural. Além da importância demográfica da agricultura, o peso dos


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grandes proprietários e de suas organizações representativas é determinante: na França a Société des Agriculteurs de France, de orientação monarquista, na Alemanha o Bund der Landwirte, dirigida por proprietários prussianos. Mas o protecionismo não é apenas a vitória política dos interesses dos grandes proprietários: ele repousa sobre uma sólida base ideológica. A apologia da vida rural e o temor da industrialização excessiva são os temas tanto do Retour à la Terre de Jules Méline, ministro francês em 1892, quanto do Agrar-oder Industriestaat de Adolf Wagner, obras que tiveram grande influência sobre a concepção de política agrícola do regime do Marechal Pétain e do Nazismo. Nenhum país europeu foi tão longe na adoção de práticas protecionistas quanto a França e a Alemanha. Além de barreiras tarifárias e não tarifárias, ambos os países introduziram agências governamentais com poder monopolista sobre o comércio de cereais, como reação à queda de preços dos anos 1930. Em 1936, sob o regime do Front Populaire é implantado o Office National Interprofessionnel du Blé, que fixa o preço do trigo, controla o comércio exterior, regula as importações e subsidia as exportações. A produção de vinhos também foi submetida ao controle de uma organização de mercado a partir de 1934 (Tracy, 1964/1967:125). No caso alemão, este papel era desempenhado pela Reichsnährstand (Corporação Estatal Alimentar) implantada já em 1933 e com poder de organizar todos os aspectos relativos à produção e distribuição de alimentos para o mercado interno, para as exportações e as importações. Estas agências permaneceram após a IIª Guerra Mundial: o ONIB francês amplia seu raio de ação e abrange todos os cereais e não mais só o trigo (passa então a ser Office National Interprofessionnel des Céréales - ONIC). A partir dos anos 1950, os excedentes começam a aparecer, o que exige a intervenção reguladora do governo, que praticamente isola o mercado interior das influências externas. As exportações eram subsidiadas, com uma diferença entretanto crucial com relação ao que ocorrerá sob a política agrícola comum: a sustentação dos preços dos cereais submetia-se a um determinado quantum, a partir do qual a remuneração agricultor caía aos patamares do mercado mundial. Era uma forma de impedir que os mecanismos de sustentatação de preços concentrassem ainda mais a renda no setor agrícola.


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A manutenção, na Alemanha, da agência governamental criada sob o nazismo (agora com o nome de Einfuhr und Vorratsstellen Agência de Importação e Armazenagem) consolida a visão de que a agricultura deve ser um setor protegido. A lei agrícola de 1955 (a Landwirtschaftgesetz) impõe ao Governo a obrigação de "capacitar a agricultura a contrabalançar suas desvantagens naturais e econômicas" e "atingir paridade social entre os que trabalham na agricultura relativamente a outras ocupações" (apud Neville-Rolfe, 1984:72). Mas em que consiste exatamente esta paridade social ? Tanto na França como na Alemanha, a opinião das influentes organizações profissionais e do próprio governo, ao menos até o final dos anos 1950, é radicalmente diferente do que será estabelecido pelos documentos fundadores da Política Agrícola Comum. De certa forma, é exatamente contra esta visão de como alcançar a paridade social, então dominante entre as organizações profissionais dos dois países, que se insurgem os jovens agricultores franceses a partir dos anos 1960. No caso alemão, não é pleiteando uma política que aumentasse sua produtividade e reduzisse seus efetivos que a poderosa Deutsche Bauernverband (DBV) preconiza a melhoria da situação dos agricultores, cujas condições de vida deterioram-se, em contraste com o período de abundância por que começam a passar as populações urbanas: tanto mais que a queda nos preços internacionais e uma política ativa de importações reduzia o custo da alimentação na cesta de consumo dos assalariados, ao mesmo tempo que comprimia ainda mais a renda dos agricultores (18). Neville-Rolfe (1984:73-80) expõe detalhadamente os dilemas do governo Adenauer diante da poderosa organização agrícola, a Deutsche Bauernverband (DBV). Por um lado, tanto sua influência eleitoral, como o temor de sua inclinação fortemente à direita levariam o governo a encarar de maneira benevolente a aspiração dos agricultores por paridade de renda. Por outro lado, entretanto, o conceito de paridade de renda é incompatível com a idéia de economia social de mercado que repudia, como princípio, que se assegure institucionalmente a um certo setor empresarial um patamar de ganho, independente de seu desempenho e rentabilidade econômica. A 18 "Com preços internacionais declinantes, o custo da alimentação importada era sentido não pelos consumidores, mas pelos agricultores. A organização dos agricultores, Deutsche Bauernverband (DBV) afirma que em 1952/53 as rendas agrícolas caíram tão abaixo das de outros setores que o ingresso mensal de um agricultor independente era 17% menor que o de um funcionário público de baixo escalão ou um trabalhador de escritório..." (Neville-Rolfe, 1984:73).


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paridade de renda, na opinião dos técnicos que assessoravam Adenauer, entorpecia a concorrência e sua adoção bloquearia a modernização do setor. O importante era rebaixar os custos de produção na agricultura graças ao progresso tecnológico no setor de insumos e não subsidiar o atraso. Se algum tipo de intervenção governamental mostrava-se necessário era no sentido de melhorar as estruturas, aumentar o tamanho das propriedades, reduzir sua quantidade para dotar a agricultura alemã de competitividade internacional. Embora o conceito de paridade de renda não tenha sido incorporado à lei agrária alemã de 1955 (a Landwirtschaftgesetz) não se pode dizer que houve derrota da DVB. Primeiramente porque foi incluído na lei o princípio que estipula o caráter especial do setor agrícola. A DVB soube aproveitar as discussões para organizar a defesa da agricultura contra os planos de modernização que ameaçavam sua estrutura de então. Quando em 1962, já sob o governo Erhard, um grupo de economistas prepara um documento numa linha bem próxima ao que será, seis anos depois, o famoso memorandum Mansholt (que será analisado mais abaixo) - defendendo a idéia de que o aumento da produtividade fatalmente conduz à redução da população rural e de que baixos preços de cereais eram necessários para adaptar-se à entrada na comunidade - a DVB não só se opõe a seu conteúdo, como organiza manifestação de oito mil agricultores em Göttingen, onde viviam quatro dos professores que redigiram o texto. Entre os intelectuais da modernização agrícola e os agricultores, a ruptura não poderia ser mais completa. Em seu minucioso relato, Neville-Rolfe (1984:79) conta que o presidente da DVB "acusava os professores de uma insensível desconsideração pelo destino de centenas de milhares de agricultores e de adotarem a ótica capitalista e materialista segundo a qual a economia não fornece simplesmente instrumentos úteis para a tomada de decisões dos homens, mas estabelece processos ineludíveis". A segunda vitória da DVB foi a imposição de que não houvesse qualquer redução nos preços dos cereais, como preparação para a entrada na Comunidade, apesar da antipatia desta posição frente ao Partido Social Democrata, às organizações de trabalhadores, de consumidores e as patronais, preocupadas com o destino da rodada Kennedy das negociações do GATT. Em 1964, diante da ameaça francesa de deixar a Comunidade, caso não fossem adotados preços comuns, a DBV diz que aceitaria


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preços comuns, caso os agricultores alemães tivessem a mesma capacidade competitiva dos franceses e reivindica investimentos de melhoria. Quando já ao final dos anos 1960 foram adotados preços comuns entre os seis países da Comunidade, prevaleceram os interesses dos agricultores alemães(19): a agricultura foi uma exceção na economia social de mercado, que, como princípio de organização, jamais poderia preconizar a manutenção das centenas de milhares de estabelecimentos part-time que, no início dos anos 1980, representavam praticamente metade de todas as unidades alemãs. Na verdade entretanto, estas pequenas unidades produtivas nada mais eram que a ponta de lança do corporativismo conservador da DVB, cujo poder até hoje é imenso: representando 80% dos agricultores, a DBV é dirigida desde 1969 por um nobre, o Barão Constantin Freiherr Heeremann von Zuydtwyck, proprietário de uma fazenda de 2.000 hectares e que, neste período, só deixou a presidência por um curto período - sendo então substituído por sua irmã ! para assumir uma cadeira no Bundestag (Brüggeman e Riehle, 1992:14).

Até o final dos anos 1950, a situação francesa lembra bastante a da Alemanha, sob o ponto de vista das políticas públicas e da representação sindical. O primeiro secretário-geral e depois presidente da poderosa Fédération Nationale des Syndicats des Exploitants Agricoles (FNSEA) logo depois da IIª Guerra não era nobre, mas pertencera à Corporation Paysanne, organização de inspiração católica e autoritária com que o regime de Vichy procurava controlar o setor agrícola. Grande fazendeiro (embora não possuísse como seu colega alemão 2.000 hectares de terra !), René Blondelle conseguiu impor a unicidade da representação sindical dos agricultores franceses em torno da FNSEA até o final dos anos 1950, mantendo-se "...fiel a uma política clássica de defesa das explorações baseada em preços e recusando toda evolução estrutural..." (Hubscher e Rinaudo, 1992:100). Ao final dos anos 1950, a organização da agricultura francesa toma um rumo inteiramente distinto da evolução alemã. Da mesma forma que o projeto de economia social de mercado, a Vª República francesa implanta-se em 1958 sob forte influência dos economistas e da ideologia da modernização segundo a qual caberia 19 O que Baudin (1993:6) chama de "...pecado original da política agrícola comum".


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aos mecanismos de mercado - e não à proteção corporativa dos interesses particulares - promover uma alocação de recursos que propiciasse o crescimento. Se na Alemanha, entretanto, a submissão à racionalidade econômica chocou-se contra a feroz resistência dos grandes proprietários - que souberam utilizar sua considerável influência eleitoral sobre os agricultores para, em torno da unidade da agricultura e da defesa da integridade do mundo rural, preservar seus privilégios corporativos - na França as coisas tomaram um outro rumo. À direita representada na FNESA opunhase não só uma influência socialista e comunista considerável, como sobretudo um bloco democrata-cristão, representado pela Juventude Agrária Católica - ligada a "...escolas de pensamento como Ação Popular e Economia e Humanismo" (Debatisse, 1963:131) - que conseguiu unificar setores importantes da agricultura em torno do projeto modernizante do General de Gaulle. Vale a pena seguir, neste sentido, o raciocínio daquele que será um dos principais articuladores destas mudanças, Michel Debatisse. Na segunda parte de seu livro, ele cita o longo trecho de um discurso de 1956 em que René Blondelle, então presidente da FNSEA, não hesita em aplicar o sensível termo de deportação (20) ao destino que a modernização excessiva reservaria aos agricultores. Diz Blondelle (apud Debatisse, 1963:93): "...a verdadeira questão são os preços. Se eles fossem normais, não haveria estabelecimentos marginais (aplausos). Isso precisa ser enfatizado, mesmo que não agrade aos que querem a industrialização extremada do país (21)" (Debatisse, 1963:93). Da mesma forma que na Alemanha, os dirigentes corporativos procuram erguer a unidade em bloco do mundo rural contra os economistas e seus planos de modernização. Ao contrário entretanto da situação de que desfrutava a direção da DVB, uma forte oposição põe em cheque a hegemonia conservadora da FNSEA. Após citar este trecho de Blondelle, Debatisse (1963:94) lamenta que a maior parte dos dirigentes agrícolas recusem-se a encarar a realidade de que os agricultores já estão deixando o meio rural numa proporção de 50 a 100 mil por ano e - o que é mais

20 Velha mania: alguns anos atrás, um líder da organização de direita "Coordination Rurale" referiu-se ao "genocídio camponês"...(Hervieu, 1993:16). 21 "Nous devons nous acharner à le dire, même si cela ne plaît pas à ceux qui veulent l'industrialisation à outrance du pays".


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interessante vindo de um dirigente sindical de agricultores - que melhores preços não ajudariam a reverter esta situação: "no entanto, para centenas de milhares de agricultores...um aumento mesmo de 20% ou de 30% dos preços dos produtos não teria senão uma fraca incidência sobre suas rendas". O nosso problema, prossegue Debatisse é o atraso técnico em que se encontram nossos agricultores e com relação a isso, "se a batalha dos preços era justificada, ela não poderia constituir o essencial da política profissional" (Debatisse, 1963:95). Tanto mais que somente os grandes produtores (concentrados nos setores de cereais e beterraba) eram beneficiados com preços de sustentação, enquanto que o restante da agricultura submetia-se às oscilações do mercado. É assim que o Cercle National des Jeunes Agriculteurs (CNJA), formado em 1946 e transformado em Centre National des Jeunes Agriculteurs em 1961, afilia-se à FNSEA e consegue derrotar as teses conservadoras no debate que, na época, traduziase pelo dilema preços versus estruturas (22). O interessante do caso francês é que esta adesão às premissas básicas da racionalidade econômica e a crítica a sua contestação de natureza corporativa tal como se manifestava entre os antigos dirigentes sindicais, não significa, entretanto, adesão a posições liberais. A eficiência econômica não era, para os jovens agricultores franceses sinônimo de repúdio a qualquer forma de intervenção do Estado (23). Ao contrário, o Estado deveria, juntamente com a representação sindical, gerir a transição de um setor que guarda, no início dos anos 1960, fortes traços tipicamente camponeses (24). O caso francês é aquele em que a cogestão da modernização agrícola entre o Estado e a profissão envolvendo a reorganização das práticas produtivas e dos mercados, a formação dos agricultores, o controle da evolução das estruturas agrárias e a administração política do êxodo rural - chegou mais longe. 22 Tal como o definiu o senhor Etienne Lapèze, vice-presidente da FNSEA, em entrevista a mim concedida no mês de janeiro de 1994. 23 Aqui parece também haver uma diferença com relação ao caso dinamarquês em que todas as práticas precoces de organização dos mercados agrícolas desenvolveram-se independentemente do Estado. 24 No sentido em que defini este termo no capítulo IV de Abramovay (1992): confesso ter ficado surpreso com a descrição que Debatisse fornece do mundo rural do final dos anos 1950 na França e como aí são fortes as características de uma sociedade camponesa.


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Vinda de uma tradição de propriedades pulverizadas em pequenos lotes (25), a inadequação da estrutura agrária francesa à aplicação de técnicas modernas desejadas pelos jovens agricultores era agravada pela pirâmide demográfica do mundo rural onde a população acima de 55 anos tinha um peso muito considerável. Seria totalmente estranha à formação cultural, e ao tipo de influência católica que sofriam os jovens agricultores, qualquer plano que optasse por encarregar o mercado de corrigir estas estruturas e realocar a população deslocada. Ao mesmo tempo, o desejado aumento na extensão das propriedades não poderia ser ilimitado: a crítica à estrutura atomizada da estrutura fundiária não conduzia à adoração de toda e qualquer forma de grande exploração (26). Ao contrário, um dos objetivos fundamentais tanto dos jovens agricultores como dos representantes do Estado francês que com eles diretamente negociavam era a valorização da empresa familiar como base para a reestruturação do setor. Estas preocupações materializam-se, no início dos anos 1960, num conjunto conhecido como leis de orientação (1960) e leis complementares (1962) fundamentais na reestruturação da agricultura francesa e que vale a pena examinar um pouco mais de perto. O Code Rural francês fixa no seu título sétimo (Du contrôle des structures des exploitations agricoles), artigo 188-1 o objetivo de "contribuir à constituição ou à preservação de explorações familiares sob responsabilidade pessoal e de favorecer o aumento das explorações cujas dimensões são insuficientes". Existe um parâmetro a partir do qual é estipulado o tipo de estrutura agrária que o poder público deseja ver implantado no país que é a superfície mínima de instalação, que equivale, aproximadamente ao que nosso antigo Estatuto da Terra entendia por módulo rural e que é fixado para cada um dos 95 Departamentos em que se divide o País, em função do tipo organização da produção. O nome que este módulo recebe na França deve-se ao fato de que se trata de um parâmetro que vai nortear a política de instalação de jovens agricultores. A lei vai definir tanto o 25 No final do século XIX, havia no País 5,7 milhões de explorações que continham nada menos que 125 milhões de lotes separados, perfazendo um total de 22 partes por exploração!. Cada lote tinha 0,39 ha (Tracy, 1964/1979:61).


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mínimo de área abaixo do qual nenhuma propriedade pode subdividir-se por venda ou fracionamento, como também o máximo de superfície que o reagrupamento de propriedades poderá atingir. Cada um dos noventa e cinco Departamentos deve possuir um "esquema diretor das estruturas agrícolas" que "determina as prioridades da política de organização das estruturas de exploração". Para que esta orientação legislativa fosse levada à prática foram criadas, desde 1961, as Sociétés d'aménagement foncier et d'établissement rural (as SAFERs) unidades descentralizadas formadas regionalmente e da qual fazem parte o movimento sindical, as autoridades locais e o governo central. O poder das SAFERs é exercido, resumidamente, da seguinte maneira: cada vez que há uma operação de compra e venda de terra, o cartório local é obrigado a informá-la detalhadamente à SAFER local que examina se a operação está conforme aos objetivos de evolução da estrutura agrária fixada tanto na lei quanto no plano de desenvolvimento departamental. A SAFER tem três meses para autorizar ou vetar a operação. O veto consiste no exercício do direito de preempção (droit de préemption): caso a SAFER julgue que a terra está sendo vendida a um profissional liberal que não saberá explorá-la adequadamente, ou que ela foi oferecida a alguém da região que já tem muita terra, num momento em que jovens querem instalar-se e não encontram a oportunidade, ou para um objetivo que vai prejudicar a integridade da paisagem ou do meio ambiente (27) a SAFER tem o direito de comprar esta terra pelo preço por que a operação foi declarada no cartório para fins fiscais. Pelo que pude ler no Code Rural e também pelas entrevistas que fiz a respeito (inclusive com um professor de direito agrário da Universidade de Paris - I), os particulares não podem alegar que o preço declarado em cartório não corresponde à situação do mercado. Tampouco encontrei algo sobre uma possível contestação jurídica do droit de préemption (28). Entretanto, a SAFER é 26 Talvez por eu ser brasileiro, o sr. Lapèze, da FNSEA referiu-se a este momento de nossa entrevista dizendo que os agricultores se perguntavam: será que queremos adotar o modelo latino-americano ? 27 Estes objetivos foram incluídos, é claro, muito mais recentemente entre as prerrogativas da SAFER. 28 O funcionamento do direito de preempção é uma das expressões claras do rigor em que são contidos os limites entre o público e o privado numa sociedade democrática: a venda de terras é uma questão entre particulares, mas que envolve uma dupla dimensão pública. Primeiramente porque em torno dela vai definir-se a estrutura de desenvolvimento da produção agropecuária e de ocupação do meio rural. Em segundo lugar, porque ela coloca os particulares frente ao fisco. Na regulamentação de nossa lei agrária, o Congresso Nacional renunciou a esta dupla dimensão. Primeiro derrubando qualquer norma referente aos padrões desejados de ocupação do solo. E em segundo lugar desvinculando inteiramente o valor pago ao particular em caso de desapropriação e o valor que este mesmo particular declarou ao fisco como sendo o de sua terra. A lei brasileira consagrou por aí a omissão e a fraude fiscal como


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obrigada, tão logo adquire a terra a lançar um edital e selecionar rapidamente um candidato a sua aquisição, justificando não só as razões da escolha, como tornando-as públicas e comunicando-as individualmente aos candidatos não selecionados (Le Bihan, 1992:129-133). Quando se fala em controle de estruturas na França (termo que faz parte do Code Rural) a preocupação central é com o tipo de exploração agrícola que será implantado. Além de seu tamanho (nem muito pequeno que impeça sua viabilidade, nem tão grande que compormeta o objetivo de ter na família o eixo do desenvolvimento do meio rural) é fundamental a competência técnica de quem se estabelece. Ao se instalar o jovem agricultor se compromete com um cahier de charge, termo consagrado na legislação pelo qual são estabelecidos claramente o plano de desenvolvimento da propriedade para que ela se torne viável. Uma vez que envolvem um bem sobre o qual existe controle público (a terra), as atividades econômicas do agricultor estão submetidas a uma apreciação que extrapola o âmbito puramente particular. Se as leis de orientação de 1960 e 1962 davam toda a prioridade à instalação de jovens rurais, na tentativa de reverter a paralisante estrutura demográfica de então, os candidatos a possuir uma terra - seja por compra ou por herança - deveriam, é claro, provar sua capacidade de explorá-la de maneira adequada, ou por sua experiência profissional passada ou por um diploma correspondente, no mínimo ao nível técnico colegial. Nestas condições, os jovens receberiam ajudas especiais que lhes permitissem passar do módulo inicial de um jovem casal para um módulo de referência correspondente ao desenvolvimento da unidade produtiva, sem, entretanto, atingir a extensão que ultrapassasse o módulo definido por lei como máximo, caso em que a intervenção da SAFER poderia interromper a concentração. Esta preocupação com a ocupação do território na França é tal que, pelo Statut du Fermage, caso um proprietário não utilize suas terras um arrendatário pode ser-lhe imposto pelo poder público. O importante para nós é assinalar a preocupação desta política de cogestão em trabalhar com o piso e o teto correspondentes à exploração familiar.

procedimento legítimo passível de punições inteiramente circunscritas a um âmbito que não atinge o


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Ainda no plano produtivo, as Leis de Orientação de 1960 e 1962 estimularam a formação de cooperativas de comercialização, de uso em comum de máquinas, e ampliaram a organização de mercados até então restrita ao setor de açúcar e cereais a vários outros produtos, com a criação do fond d'orientation et de régularisation des marchés agricoles (FORMA). Correlativamente foram implantados mecanismos de "administração social do êxodo rural" (Coulomb, 1983): indenizações que estimulavam os agricultores idosos a cessar suas atividades antecipando-lhes a aposentadoria, pagamento das despesas de deslocamento e benefícios materiais àqueles agricultores com pouca terra que vendiam suas unidades para que a a estrutura fundiária local pudesse ser melhorada, investimento em formação para reintegração de jovens filhos de agricultores em outras profissões – eis alguns exemplos de como a tentativa de imprimir eficiência econômica à agricultura não significava a crença de que o mercado poderia sozinho moldar a estrutura agrária socialmente mais adequada.

Esta heterogeneidade nas estruturas sociais, no lugar da agricultura em cada sociedade nacional e nas tradições de política agrícola seria ainda maior se examinássemos os outros países componentes da União Européia, hoje formada por quinze nações e cujo crescimento é iminente. O limitado quadro aqui exposto é suficiente para mostrar que mesmo entre os pioneiros as diferenças eram enormes, o que justificava interesses bem diversos quanto ao significado da PAC (e, no fundo, da própria adesão à Comunidade) para cada um.

3. A formação da PAC 3.1. Preços e estruturas: a convergência frustrada O ponto de partida para a formação da PAC é a consciência dos dirigentes europeus de que há uma bomba de efeito retardado cuja explosão o desenvolvimento agrícola só tende a acelerar. Não era difícil escamotear as profundas contradições e divergências num texto tão genérico quanto o famoso artigo 39 do Tratado de Roma, assinado em 1957: aumentar a produtividade, melhorar a alocação dos fatores e, por desfrute da propriedade. No Brasil, compra e venda de terras é um negócio entre particulares com o qual o Estado não tem absolutamente nada a ver.


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aí, elevar a renda rural, ao mesmo tempo em que se amplia a produção sem pressionar os preços ao consumidor e em condições de estabilização do mercado. Caberia à Conferência convocada para o mês de julho de 1958 na cidade italiana de Stresa dar forma um pouco mais precisa e operacional ao que poderia ser comparado à quadratura do círculo. Trata-se de um encontro fundamental não só pelo seu objetivo e pelo teor do documento que daí saiu, como também porque, pela primeira vez, estiveram presentes discutindo o tema, as organizações profissionais de trabalhadores agrícolas, o setor agroindustrial (não de todos os países, mas somente da Alemanha, da França e da Holanda) os assalariados (da França e da Itália) representantes do comércio atacadista (Alemanha, Holanda e Itália). Neville-Rolfe (1984:195) nota que a única representação que poderia ser dita dos "consumidores" era a da Federação das Mulheres Alemãs. Além dos funcionários ligados diretamente à agricultura estavam presentes os representes dos Ministérios das Relações Exteriores e das Finanças/Economia de cada país. Entre a intenção explícita do documento (de fazer da intervenção nos preços uma fase transitória da política agrícola e menos importante que a correção das estruturas fundiárias) e as práticas implantadas a partir dele a distância não poderia ser maior. As discussões realizadas durante a conferência já prenunciam os conflitos em torno dos quais a PAC vai se mover. Logo na abertura, os holandeses sustentam que a Europa é composta de seis janelas abertas para o mundo, e de seis portas de entrada e saída livre de mercadorias. A França insiste na importância das exportações, sem mencionar a abertura às importações. Abordando a questão dos excedentes (sobre a qual a delegação francesa não diz nada) o representante do ministro belga da agricultura lembra que "embora os agricultores tenham direito de reivindicar da Comunidade uma justa remuneração pelo produto com o qual a abastecem, não seria razoável esperar que a Comunidade assuma os custos de excedentes para os quais não há demanda residual nem dentro nem fora dela" (apud Neville-Rolfe, 1984:196). Comentando a determinação do artigo 40, parágrafo 3 do Tratado de Roma, segundo o qual "a política de preços deve ser baseada em métodos comuns e critérios uniformes de cálculo", o ministro da agricultura da Alemanha, interessado em


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postergar ao máximo qualquer decisão que implicasse redução em seus preços internos - os mais altos da Comunidade (ver tabela 2) - nota que "a comparação entre custos de produção e preços apresenta especiais dificuldades, tanto mais que as taxas oficiais de câmbio refletem de maneira imperfeita o poder de compra e o valor de cada moeda nacional" (NevilleRolfe, 1984:197). Não é a toa então que somente três anos e meio após a conferência de Stresa foram alcançados princípios práticos para o funcionamento comum da política de mercados e de financiamento sendo necessário mais outro tanto para chegar a preços comuns de cereais (que entraram em vigor somente na safra 1967/68). Entre o grupo de técnicos que compõem a Comissão (e que são responsáveis pelas propostas de preços nas rodadas anuais de negociações) e os ministros que compõem o Conselho (e que detêm a prerrogativa de adotar ou rejeitar o pacote de preços proposto pela Comissão), o conflito foi permanente, a Comissão não estando submetida ao mesmo tipo de pressão política e eleitoral que o Conselho. Mas ambos trabalharam sempre na perspectiva de que caberia a uma política homogênea de preços - que procurasse ao máximo evitar cotas e contingenciamentos - a responsabilidade básica pela alocação dos fatores. Não era próprio a uma política de preços comuns (um dos pilares básicos da Comunidade) encarar as diferenças sociais entre as diversas categorias de produtores, o que levaria à seguinte alternativa: ou se transformava radicalmente a estrutura agrária da Comunidade de maneira a eliminar a presença das milhões de unidades consideradas não viáveis economicamente (foi a proposta do famoso comissário Mansholt, em 1968 e é o espírito do documento de Stresa), ou então seria irresistível a pressão de que os preços comunitários fossem situados em patamares que viabilizassem as pequenas explorações, mas em conseqüência dos quais seriam inevitáveis os excedentes, a concentração da renda e a má alocação dos fatores. A crise da PAC não é conseqüência do desrepeito aos princípios que a fundaram, mas ao contrário o resultado de sua aplicação unilateral: a verdade é que não foram reunidas as condições políticas para levar adiante as medidas socialmente "saneadoras" que deveriam acompanhá-la.


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A eficiência da política de preços dependeria antes de tudo de uma política estrutural que levasse à rápida eliminação das unidades não competitivas: mas as condições para levar tal política adiante já não estavam mais reunidas no início da década de 1970, quando a PAC começa a apresentar os primeiros sintomas das doenças que vão exigir sua reforma quase vinte anos depois. A Comunidade foi lançada no pior dos dois mundos: impossibilitada pelos princípios que a fundavam de recorrer a mecanismos diferenciados de sustentação da renda (pelos quais ela pudesse atenuar as diferenças sociais e regionais que se aprofundavam), ela foi incapaz, ao mesmo tempo, de levar adiante as transformações estruturais que permitiriam que o mercado, de fato. pudesse se encarregar da melhor alocação dos recursos. É verdade que, conforme os excedentes e os gastos iam aumentando, cotas, contingenciamentos e

estabilizadores

foram

gradualmente

introduzidos.

Longe

entretanto

de

corresponderem à evolução prevista de sua filosofia, tratava-se antes de remédios que corrompiam sua integridade e iam tornando inevitáveis as mudanças radicais que só em 1992 (aí já sob fortíssima pressão internacional, inclusive referente à rodada Uruguai do GATT) seriam adotadas. Vejamos então em que consiste a filosofia inicial da Política Agrícola Comum. O diagnóstico do documento de Stresa sobre a situação da agricultura na Europa Ocidental em 1958 não será muito diferente do exposto por Sicco Mansholt em seu célebre Memorando de dez anos depois. A produção agropecuária na Europa cresce mais que o consumo; a população trabalhando na agricultura está em queda e, apesar disso, sua renda não está subindo, ao contrário do que ocorre com outros setores sociais. A dinâmica do aumento da produtividade do trabalho na agricultura já é tal que qualquer tentativa de compensar a queda na renda dos agricultores através de melhores preços só vai fazer com que a produção suba ainda mais, derrubando mais violentamente as cotações e impedindo a elevação da renda agrícola. A tentativa de resolver o problema da renda rural através de medidas protetoras compromete a almejada emancipação do setor agrícola com relação à proteção de que desfrutava e que só poderia ser encarada como transitória. Diante deste quadro, a Resolução de Stresa postula que não adianta preconizar uma agricultura fechada ao comércio internacional. As trocas com outros países devem ser estimuladas e medidas protetoras somente aceitas quando houvesse "concorrência


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desleal". Por outro lado, é fundamental derrubar imediatamente as barreiras tarifárias internas aos seis países pois esta é a única maneira de que os recursos produtivos sejam alocados a partir das vantagens comparativas de cada país e região. A especialização, portanto, deveria ser a base da política regional da Comunidade: a construção comunitária não queria valorizar a diversificação, mas o aprofundamento da divisão do trabalho. "O esforço feito para aumentar a produtividade deveria permitir a aplicação de uma política de preços que simultaneamente evitaria a superprodução e abrisse campo para a competição presente ou futura" (item 5 da parte III do documento de Stresa). Ao mesmo tempo, as unidades produtivas ou as regiões em desvantagem deveriam ser objeto de ajuda que tornassem "...possíveis as adaptações necessárias" (idem). Portanto, no que se refere àqueles que permanecem na agricultura, não se tratava de uma ajuda de caráter social, mas de uma política que permitisse a entrada na na corrida competitiva de estabelecimentos que tinham potencial para tanto. Quanto aos outros, classificados sem hesitação como unidades marginais, o documento de Stresa fica muito aquém do que será estabelecido nas leis de orientação francesas a partir de 1960 e se limita a propor formação profissional para adaptação a outros setores e a contar com a industrialização do meio rural para sua absorção econômica. Por fim, é fundamental sublinhar que os participantes da reunião concebem a unidade familiar de produção como a base do desenvolvimento da agricultura européia (29). Estes princípios foram traduzidos nos três pilares fundadores da Política Agrícola Comum e que, aliás, permanecem até hoje - apesar dos remendos que receberam com o tempo: preços comuns, financiamento comum e preferência comunitária. A gestão destes três pilares deveria ficar a cargo de um fundo conhecido pelas iniciais de sua tradução francesa, o FEOGA (Fundo Europeu de Orientação e Garantia Agrícola), ou na versão em inglês EAGGF (European Agricultural Guidance and Guarantee Fund) que atua por meio de duas organizações básicas. • A primeira é o FEOGA-garantia cujas agência executivas são as organizações comuns de mercado (OCMs), que executam a sustentação dos preços; além disso, o


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FEOGA-garantia fixa as taxações de produtos importados em níveis tais que não inviabilizem a produção interna (é o que os franceses chamam de prélèvement) e, para as exportações, subsidia a diferença entre os preços europeus e aqueles obtidos no mercado internacional (são as restituições, um dos itens que mais onerava os cofres comunitários). Em 1962, as organizações comuns de mercado cobrem 50% da produção comunitária, chegando a 70% quando os cereais passam a ser objeto de preços comuns em 1968. Hoje quase toda a agricultura comunitária beneficia-se da existência de organizações comuns de mercado (Jacquet, 1993). As OCMs não têm a mesma eficiência para todos os produtos. No caso dos cereais, até 1988 os preços eram estáveis e as quantidades compradas pelos organismos de intervenção ilimitadas. A partir de então foram introduzidos os chamados "estabilizadores orçamentários" pelos quais, uma vez atingido um certo nível de produção, o preço de garantia sofria automaticamente uma redução. O leite tampouco conhecia qualquer tipo de limitação à oferta até o momento em que, em 1984 foram introduzidas não apenas cotas, mas uma política bastante bem sucedida de subsídios à cessação da atividade. Quanto ao açúcar, ele conhece o regime de cotas desde 1967. No setor de pequenos animais não existe sustentação de preços, mas apenas a proibição de entrada de produtos estrangeiros. Porcos, vinhos, legumes e frutas sofrem intervenção apenas quando há problemas de mercado. No início dos anos 1990, as organizações comuns de mercado cobrem mais ou menos 90% da produção agrícola final comunitária (as principais exceções são a batata, os vinhos de qualidade e a lã), mas elas dão sustentações sob modalidades diferentes: os cereais, as oleaginosas e as carnes são bem mais contemplados que os produtos tipicamente mediterrâneos. • A outra vertente é o FEOGA-orientação. Ele responde pela política de estruturas, por meio da qual se busca adequar a posse e o uso dos fatores a sua melhor utilização, permitindo o funcionamento da política de preços e procurando compensar as deficiências das regiões cujas situações produtivas, de comercialização e de transformação são menos avantajadas. Diferentemente da sustentação de preços, coberta inteiramente pelo FEOGA, o orçamento da Comunidade só entra com 25% do montante das despesas com estrutura, o restante cabendo aos Estados nacionais. Este foi certamente um dos fatores que limitou o interesse dos diversos países nos 29 "Dada a importância das unidades familiares na agricultura européia e o desejo unânime de salvaguardar esta característica, todo esforço deveria ser feito para aumentar o potencial econômico e


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investimentos em política estrutural. Pelos objetivos iniciais da Comunidade, a política de estruturas deveria ser contemplada com 25% dos gastos totais do FEOGA. De fato, os gastos nunca chegaram nem perto disso, conforme se pode ver pela tabela 5, embora nos últimos anos tenham aumentado significativamente.

Tabela 5 Evolução nominal dos gastos orçamentários da Política Agrícola Comum - 1970-1993 milhões de ECU seção garantia seção orientação % orient/gar gastos agr. tot. % agr./orç. tot. custo líquido da Pac em % do PIB a.

1970 a 4.088 194 4,7 4.282,4 94,6

1975 a 4.327 262 6 4.591 73,4 0,38

1980 a 11.292 471 4,2 11.771 73,4 0,47

1985 b 19.728 692 3,5 20.472 73,3 0,59

1990 b 26.431 1.648 6,2 28.209 62,7 0,58

1991 b 32.385 2.127 6,6 34.640,5 64,4 0,63

1992 b 32.934 2.895 8,7 36.128,4 59,1 0,62

1993 b 34.062 3.366 9,9 37.557,6 56,6 0,62

em u.c. b. em ecu Fontes: até o ano de 1990, Bonnet, Delorme e Perraud, 1993:5. Para os anos subseqüentes, Commission des Communautés Européennes, 1993.

3.2. O pecado original e a tentativa de Mansholt de corrigí-lo O exame dos preços agrícolas desde que foram unificados e submetidos às organizações comuns de mercado mostra tendência claramente declinante embora esta redução não tenha sido tão grande quanto o desejaria a Comissão européia (30). Para a França, Delord e Lacombe (1993) falam de uma redução de 2% reais ao ano nos últimos vinte anos. Entre 1985 e 1992/93 o índice geral dos preços institucionalmente garantidos dos produtos agrícolas da Comunidade aponta uma redução superior a vinte por cento (Commission des Communautés Européennes, 1993). Esta queda nos preços não impediu entretanto que a produção continuasse a subir. Este foi um dos aspectos mais dramáticos da situação agrícola da União Européia até a reforma de 1992.

competitivo destes estabelecimentos" (Documento de Stresa, parágrafo 9 do item III). 30 As maratonas em que eram fixados os preços envolviam além da proposta da Comissão (órgão técnico que sugere os preços de sustentação) e seu exame pelo Conselho (órgão deliberativo formado pelos Ministros e muito mais sujeito às influências nacionais) a pressão do Comitê das Organizações Profissionais Agrícolas (COPA) que, evidentemente, reivindicavam preços sempre superiores aos propostas pela Comissão.


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A verdade é que partir de um certo patamar de desenvolvimento técnico, a produção agrícola é pouco sensível a uma queda nos preços. Primeiramente, porque preços menores podem induzir os agricultores a um uso mais racional e econômico de seus fatores e portanto a reduzirem seus custos. Este aliás é um dos importantes aspectos que se encontra por trás da queda nos investimentos agrícolas na França, que passam de uma taxa anual de 4,4% entre 1959 e 1973 a uma regressão (menos 1,3% a. a.) entre 1974 e 1987. Bonny (1993) mostra de maneira muito convincente que longe de representar simplesmente estagnação, esta queda exprime em grande parte a melhoria das estruturas e um uso mais adequado dos fatores produtivos, o que implica então em redução de seus custos. Além disso, dado o peso em suas despesas dos custos fixos, os agricultores continuam, no curto prazo, a produzir, a menos que a redução nos preços não cubra sequer seus custos variáveis (Marsh, 1993:24). A experiência histórica da União Européia mostra bem que, a partir de um certo nível de desenvolvimento, preços agrícolas em queda não significam necessariamente o caminho certo para a redução das safras (31) . É bem verdade que o consumidor até um determinado momento beneficia-se com esta redução mas tão logo sua renda global aumenta a ponto de os alimentos serem uma parcela cada vez mais reduzida de seus gastos e assim que os excedentes acumulam-se além de um certo nível, este benefício torna-se e é visto pela sociedade como irracionalidade que precisa ser eliminada. Antes entretanto de examinarmos, no item 4 logo abaixo, esta que foi a evolução da Europa Ocidental, é preciso reconhecer que esta tendência declinante dos preços agrícolas não pode escamotear um fato da maior importância: os níveis iniciais dos preços comunitários foram fixados muito acima do que seria representativo do custo médio da empresa eficiente no setor. Este "pecado original", para usar a expressão de Baudin (1993) longe de um mero acidente apontava para um "sistema que continha já os elementos de sua destruição" (Baudin, 1993:6). A comparação dos dados da tabela 6 com os da tabela 2 mostra que os três pilares comunitários seriam cumpridos, mas em condições muito diferentes das estipuladas em Stresa. Com este nível de preços, a Comunidade isolava seus principais produtos não só da concorrência internacional, 31 São algumas das dimensões do fenômeno que Cochrane (1979) batizou de treadmill, que Veiga (1991) utilizou em seu estudo histórico e de que me servi também no capítulo VIII de Abramovay 1992.


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como impedia que a própria concorrência interna desempenhasse o papel de selecionar os mais eficientes entre os produtores.

Tabela 6 Preços fixados para as safras 1967/68 e 1968/69 - Eur/t.

Trigo Sorgo Milho Beterraba (açúcar) Carne bovina Bezerro Suínos Leite a. Cota A Fonte: Insee, 1987:6

Preços indicativos 106,25 91,25 90,63 17,00 a 680 ,00 915,00 735,00 103,00

Imediatamente após a fixação destes preços o Comissário Mansholt publica seu célebre memorando (32), retomando os pontos essenciais daquilo que já havia sido estabelecido em Stresa em termos de grandes tendências da renda, da produção, da produtividade, da oferta e da demanda comunitárias. Mais do que reformar a política agrícola, Mansholt quer agora uma reforma da própria agricultura européia: diante da situação criada pelos altos preços estabelecidos em 1967/68 e pela ausência de uma política de estruturas, os estoques e os gastos públicos iriam aumentar, sem que se resolvesse a questão crucial da queda da renda agrícola. Para enfrentar o problema Mansholt estabelecia uma série de metas que a política deveria perseguir: redução de cinco milhões de pessoas na população economicamente ativa durante a década de 1970 (note-se que durante a década de 1960 o êxodo rural já atingira 5,9 milhões de pessoas). Ele insiste e fornece inúmeros exemplos de como a pulverização das propriedades e dos rebanhos impede qualquer perspectiva de tornar eficiente a agricultura européia sem o apoio permanente de fundos públicos. Quanto à área de cultivo, ele preconizava sua redução igualmente em cinco milhões de hectares. Os gastos do FEOGA/garantia (encarregado da sustentação dos preços), caso suas propostas fossem aceitas, deveriam também ser diminuídos: em vez das 4 bilhões de 32 "A agricultura 1980: notas sobre as reformas da agricultura na Comunidade européia"


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unidades monetárias previstas para 1969, o objetivo era chegar a 1980 com uma sustentação de preços na faixa de 750 milhões de unidades monetárias, incluindo 250 milhões para a sustentação dos preços do leite. Como conseqüência de seu diagnóstico e do impasse em que se encontrava, na sua opinião, a agricultura européia, Mansholt propõe que os incentivos econômicos fornecidos pela Comunidade na forma de empréstimos limitem-se àquilo que ele chama de unidades produtivas (33). Uma unidade produtiva poderia consistir numa propriedade individual ou no agrupamento de várias unidades (ao qual ele dava então o nome de empresa agrícola moderna) desde que possuísse dimensões que lhe dessem competitividade econômica e Mansholt fixa claramente os limites em que isso é possível: 80 a 120 hectares de cultivo de grãos ou equivalentes, 40 a 60 cabeças de gado leiteiro, 150 a 200 cabeças de gado de corte, 100.000 aves por ano, 450 a 600 porcos. Mesmo que no início a ajuda pudesse dirigir-se a empreendimentos com condições de se viabilizar economicamente, a proposta era que, em 1975, somente as verdadeiras unidades produtivas ou as empresas agrícolas modernas recebessem qualquer tipo de financiamento dos fundos comunitários. Além disso, para completar e imprimir durabilidade à reforma estrutural assim proposta, Mansholt concebia uma verba especialmente destinada a que os filhos destes agricultores profissionais recebessem uma formação que os capacitasse a trabalhar fora da agricultura na idade adulta. Ao mesmo tempo, avançava mais que Stresa no que se refere à reinserção da população não assimilada ao trabalho em meio rural e propunha o pagamento de ajudas àqueles que, deixando suas terras, não encontrassem trabalho. É importante observar a concepção que se tem neste período das unidades produtivas em tempo parcial: tanto no memorando Mansholt como também na OCDE (34) o part-

33 O objetivo do Plano Mansholt é "a criação e o desenvolvimento de explorações dotadas de estruturas e de dimensões que permitam o funcionamento racional de fatores de produção e a adaptação ao desenvolvimento econômico futuro, garantindo às pessoas que estão aí ocupadas uma renda equitativa assim como condições de trabalho satisfatórias". 34 Em 1964 a OCDE (OECD, 1964) publica um importante volume analisando o problema da baixa renda na agricultura de seus países membros e propõe "reformas de estruturas" num sentido bem próximo ao desejado por Mansholt. É imensa a distância com relação ao período atual em que as atividades part-time são vistas tanto pela OCDE como pela União Européia como um fator de revitalização do meio rural.


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time farm é sinônimo de precariedade, destinado à supressão pelo desenvolvimento econômico. "Embora a pluriatividade fosse na época reconhecida, ela era percebida como um refúgio para os que abandonavam a agricultura, mais que como um caminho podendo contribuir positivamente à manutenção das famílias agrícolas" (Bandarra e Bryden, 1991:11). Não é de espantar que o documento de Mansholt tenha despertado enorme oposição, tanto mais que, na qualidade de comissário europeu, ele procurava corrigir o "pecado original" da Comunidade propondo sistematicamente uma correção de preços anuais que não acompanhava a inflação. Em 1971 dezenas de milhares de agricultores vão a Bruxelas manifestar-se diretamente contra o comissário Mansholt. E entre os governos dos Estados nacionais, era grande o ceticismo com relação às propostas de Mansholt. É interessante registrar o teor destas críticas pois serão, em parte, retomadas agora, vinte e cinco anos depois, no quadro da Reforma da PAC. Na Alemanha, considerava-se irrealista a expectativa de criação de oitenta mil postos de trabalho industriais e semi-industriais em meio rural, previstos por Mansholt. Além disso, se a própria Comissão acreditava nesta perspectiva por que propunha ela então a criação de esquemas de ajudas para saída antecipada e rendas mínimas para os casos em que não se encontrasse trabalho, argumentava o ministério alemão da agricultura ? (Neville-Rolfe, 1984:302). O mesmo tipo de crítica foi feita pelo governo holandês. Outra crítica vinda do Ministério da Agricultura da Alemanha (Neville-Rolfe, 1984:305) refere-se ao fato de que Mansholt não levava em conta os diferentes custos de oportunidade do trabalho conforme as regiões. "Em algumas regiões é perfeitamente possível que os fatores de produção alcancem seu uso ótimo em empresas que não atingem o tamanho estipulado como mínimo no relatório". Além disso, insistem as autoridades agrícolas alemãs (antecipando profeticamente um dos dramas da situação que conduziu à reforma da PAC), seria arriscado incentivar um plano de aumento dos investimentos por parte dos agricultores sem ter garantia de estabilidade de preços compensadores, sobretudo levando-se em conta a situação de altos estoques em que já começava a entrar a comunidade.


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A reforma esbarrou também no fato de o Conselho de Ministros considerar excessivos os gastos que Mansholt previa para as reformas estruturais (que levariam à eliminação dos estabelecimentos excessivamente pequenos). A carga adicional de gastos sobre a seção orientação do FEOGA era de um bilhão de unidades monetárias por ano e os governo da França, da Alemanha e da Holanda não estavam dispostos a gastar mais que 285 milhões nesta seção. Na prática as proposições de Mansholt levaram 3 anos a serem regulamentadas e sua aplicação, a partir de 1975, foi tão tímida e contraditória que não pôde alcançar nenhum dos resultados desejados. A "deportação", o "genocídio" não ocorreram: o êxodo que, durante os anos 1970, Mansholt queria ver atingir 5 milhões de agricultores não ultrapassou 2,6 milhões, cifra considerável, mas que não abalava a profunda heterogeneidade social que a Política Agrícola Comum deveria suprimir para que o mecanismo de preços pudesse funcionar sem as distorções que levaram à reforma da PAC em 1992.

4. O preço de um grande sucesso Os sucessos dos primeiros anos de execução da Política Agrícola Comum são impressionantes. É verdade que o contexto corresponde ao que os franceses chamam de trinta gloriosos anos, período que se encerra em meados da década de 1970. De qualquer maneira, é importante assinalar que a renda agrícola cresce de maneira permanente até 1974 e desde 1973 a auto-suficiência já está atingida na Europa (You, 1991). Já em meados da década começam a se manifestas problemas que acabarão levando à reforma da política em 1992: a acumulação dos excedentes, o aumento dos gastos públicos e a concentração da renda agropecuária. Estes problemas contribuirão a retirar qualquer legitimidade aos danos cada vez mais importantes que, em nome do abastecimento e da geração de divisas, a agricultura vinha provocando ao meio ambiente.

4.1. A saturação dos mercados Produção demais ou consumo insuficiente ? Embora qualquer situação de superprodução suscite inevitavelmente esta pergunta, a menos que se considere o problema da oferta de alimentos sob o ângulo mundial, é inevitável a conclusão de que os países capitalistas avançados reuniram a inquietante capacidade de produzir


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uma quantidade de alimentos muito superior à que são capazes de consumir. Durante a década de 1970, por mais que o sentido social do que faziam entrasse em crise, os agricultores e suas organizações profissionais poderiam argumentar que mesmo que não fosse para alimentar os mercados internos, sua produção seria útil para aliviar a fome no mundo. Os impactos desarticuldores das exportações subsidiadas de alimentos em diversos países do Terceiro Mundo são denunciados há vários anos e hoje já não é mais possível respaldar-se no pretexto benemérito de que enquanto houver fome no mundo, produzir mais e mais será uma obrigação inevitável (35). A previsão do documento de Stresa, de 1958, de que a produção subiria mais que o consumo foi, evidentemente, confirmada. Num país como a França, por exemplo, em 1957, gastava-se 40,4% do orçamento doméstico com produtos alimentares e bebidas consumidos no domicílio. Esta proporção passa a 36,4% em 1964, atingindo 24,1% em 1974, caindo para 20,6% em 1980 e apenas 16,9% em 1989. Mais interessante do que estes dados - bastante conhecidos - é observar que a taxa de aumento do consumo de produtos alimentares é francamente declinante, conforme se pode ver pela tabela 7. A estrutura da despesa alimentar evoluiu também conforme previsto: aumento do peso da alimentação fora do domicílio - que na França passa de 11,1% do orçamento alimentar em 1969 chegando a 19,3% em 1989 - elevação do peso dos queijos, dos pequenos animais, dos peixes, dos congelados e das bebidas não alcóolicas e, ao mesmo tempo, redução do pão, da batata, do vinho, dos ovos, do leite, dos legumes e frutas frescas e mais recentemente da carne bovina (Le Cacheux, 1993).

35 Além do já citado trabalho de Hervieux (1993), ver, neste sentido, a atividade desenvolvida pelo grupo Solagral. Ver também Tubiana (1993).


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Tabela 7 Taxa de crescimento do consumo de produtos alimentares e bebidas. França. Média anual. Em %

Alemanha França Itália Holanda Bélgica Luxemburgo Reino Unido Irlanda Dinamarca Grécia

1957-64 4,1 3,7 3,2 4,5 2,5

1964-70 3,0 3,2 4,6 3,3 3,3 0,7 1,0 2,2

1971-74 1,9 3,2 2,1 2,4 2,2 2,1 1,2 4,0 0,6 3,6

1974-81 2,4 1,5 1,4 1,4 0,6 0,8 1,9 1,3 2,6

Fonte: Insee, 1987:39

Sustentada pelos preços de garantia, a produção agrícola não acompanhou esta redução na taxa de evolução da demanda. O índice de produção de leite na Europa passa de 65,6 no ano de 1963 ( em que a Comunidade já era auto-suficiente) a 107,7 em 1983. É verdade que neste período, Irlanda, Inglaterra, Dinamarca e Grécia já entraram na Comunidade. Mas o rendimento médio por animal evolui também de maneira impressionante, passando de 3.010 kilos em 1963 a 4.256 em 1982 por animal (Neville-Rolfe, 1984:358) A evolução da taxa de auto-suficiência em cereais da CEE indica também uma capacidade produtiva que, de longe, supera o consumo. A evolução durante a década de 1980, neste sentido, é impressionante. Vimos na tabela 1 que a Comunidade dos dez países tinha uma taxa de auto-suficiência em cereais de 109% em 1981. Na safra de 1990/91, a auto-suficiência chega a 132% para o trigo e 124% para o sorgo (Baudin, 1993:103). Aí também, os rendimentos elevam-se de maneira espetacular. Em 1955, eram produzidos na Europa dos seis 2.200 quilos por hectare (exclusão feita do arroz). O rendimento global dos cereais em 1982 mais que dobra, passando a 4.600 quilos por hectare. (Insee, 1987:104). Os rendimentos da beterraba açucareira aumentam, entre 1957 e 1983, na Europa dos seis, em 47% (Insee, 1987:58).


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Assim, a superprodução começa a aprecer para o leite já em 1975, para o açúcar em 1977, para o vinho em 1979, para a carne bovina em 1979 e para os cereais em 1980 (Réseau AFIP, 1993, ficha 4).

4.2. Os preços caem, e os gastos aumentam Uma das características mais importantes da economia agrícola do capitalismo avançado é a dificuldade de que o mecanismo de preços funcione como fator determinante da alocação de recursos. Esta é uma das razões pelas quais muitos economistas encaram as politicas de sustentação da renda agrícola não como distorção "estatizante", mas como necessidade social inevitável. O raciocínio do professor de econometria e presidente da Société Française d ’Économie Rurale Jean-Marc Boussard (1993), por exemplo, é que os consumidores perderiam caso se submetesse o setor agrícola às oscilações na oferta que seu funcionamento independentemente dos mecanismos de intervenção estatal traria. Um ano de preços baixos acabaria sendo seguido fatalmente por crises sérias no abastecimento de um gênero estratégico. Em 1980, ao invés das 750 milhões de unidades monetárias previstas/preconizadas pelo memorando Mansholt, no quadro do que seria a reforma por ele proposta, a Europa gastava quinze vezes mais (tabela 5). Até 1993, as despesas gerais com sustentação de preços deveriam atingir 34 bilhões de ECU, ou seja, quarenta e cinco vezes o que parecia salutar para Mansholt vinte e cinco anos antes. É bem verdade que estas cifras são nominais e que se deflacionadas cairiam quase pela metade: mas mesmo assim os gastos são extremamente elevados. Ao mesmo tempo, como já foi mencionado (tabela 5), é importante lembrar que apesar do aumento dos gastos com a política de estruturas (que em 1993 chegam a quase 10% do setor garantia, uma cifra nunca atingida anteriormente) o essencial das despesas ainda era, no momento da reforma da PAC, em 1992, com a sustentação de preços. A estes custos diretos da sustentação de preços devem ser acrescentados dois outros: o da manutenção dos estoques e o que esta política traz para as relações internacionais da Comunidade. A situação dos armazéns e frigoríficos comunitários já esteve pior do que em 1992, quando foi implantada a reforma da PAC. Os estoques públicos de leite em pó e manteiga chegaram, em 1987 a respectivamente a 772 mil e 1.283 mil toneladas, tendo recuado significativamente a partir de então (Baudin, 1993:58). A cifra de 1987, como lembra Baudin (1993:48) significa que a CEE possuía em seus


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frigoríficos o suficiente para fornecer 300 gramas de manteiga a cada habitante da Terra ! Entre 1989 e 1992, os estoques caem, mas, mesmo assim, a Comunidade gastou, só com escoamento e deterioração dos estoques de manteiga 4,4 bilhões de ECU, uma média de mais de um bilhão por ano. Em 1991, os estoques públicos comunitários de cereais, leite e carnes valiam 2,6 bilhões de ECU. Até 1991, apesar de todas as tentativas de controle a pressão sobre estes estoques é imensa: entre 1989 e 1991 seu valor multiplica-se por 2,5 (Commission des Communautés Européennes, 1993). Não há dúvida de que os mecanismos implantados pela PAC foram cruciais para a transformação da Europa dos Doze na segunda potência exportadora do mundo hoje. A França sozinha, com exportações agrícolas na faixa de US$ 35 bilhões em 1990 detém 10% das vendas internacionais, vindo, como país isolado, logo atrás dos Estados Unidos, que com US$ 50 bilhões é responsável por 13% do mercado mundial (Le Cacheux, 1993). Mas quando se fala da potência exportadora da França, é necessário distinguir duas situações: por um lado, a dos produtos cujas vendas externas não exigem quase (ou nenhuma) restituição (36): vinhos finos, conhaque, champagne, queijos, patês, etc. Estes produtos correspondem a cerca de 40% das vendas do setor agroalimentar francês. O restante é composto de vendas que não se realizariam sem o apoio do orçamento comunitário. Como bem mostra Delorme (1994), esta fragilidade da potência agrícola da França vem do fato de que seu projeto inicial de transformar-se no celeiro da Europa foi em grande parte frustrado pelo fato de que os mecanismos de preço único na sustentação dos cereais - que permitiram o desenvolvimento da produção de grãos nos países do Norte da Europa - e a abertura do mercado europeu a substitutivos de cereais (soja, mandioca) limitaram o mercado europeu para a cerealicultura francesa. O mercado comunitário só absorve 40% das vendas francesas de cereais, os outros 60% dependendo das restituições comunitárias para seu escoamento.

36 Como vimos trata-se da diferença que a autoridade comunitária paga entre o preço que deve receber o produtos europeu e aquele vigente no mercado internacional: restitution em francês, refund em inglês.


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A política comercial que estabeleceu, na rodada Dillon do GATT, em 1961 (Boussard, 1998) a aceitação da PAC em troca da entrada da soja norte-americana na Europa (37) - e seu aprofundamento na rodada Tokio (1973) permitindo que a Europa recebesse quase livremente mandioca e corn gluten feed - fez com que as indústrias da alimentação animal preferissem "...os alimentos baseados em produtos importados por baixos preços do que os caros cereais europeus. Este 'desequilíbrio' era um dos principais motores do crescimento das exportações de cereais fora da CEE até o momento da reforma em 1992. Prova disso é a equivalência entre as 17,6 milhões de toneladas de trigo tendre exportados pela CEE e os 18 milhões de toneladas de Produtos Substitutivos de Cereais (PSC) importados pela CEE em 1991" (Delorme, 1994:4). Em suma, o mecanismo de sustentação de preços comuns como modalidade básica de formação da renda agrícola trouxe dois problemas básicos: os gastos aumentam conforme sobe uma produção que dificilmente pode ser contida pelo simples rebaixamento dos preços e, além disso, as relações internacionais tanto entre os países da Comunidade como entre a Europa e o resto do mundo ficam distorcidas em função da pressão de que os excedentes sejam escoados com subsídios para o mercado mundial. Internamente, o fato de os preços dos cereais serem superiores aos de seus substitutivos importados gerava o paradoxo de que um produtor de cereais que possuísse também um rebanho em sua propriedade teria interesse em vender seus grãos para o organismo representante do FEOGA e comprar no mercado alimentos de fontes importadas. Do ponto de vista externo, esta produção exportada representava não só imensos gastos para os cofres europeus, mas contribuía para desorganizar a produção de vários países sobretudo do Terceiro Mundo (38).

4.3. Subsídios para quem e para quê ? Se é verdade que, no plano internacional, as pressões exercidas no quadro do GATT foram fundamentais para acelerar a reforma da PAC, não se pode subestimar o peso 37 Em meados dos anos 1960 os EUA detèm 80% das vendas mundiais de soja. Mas a produção era pouco importante e os europeus não imaginavam que a brecha aberta nas negociações do GATT contribuiria ao aumento de suas importações e à necessidade de subsídios a suas exportações. 38 Em 1990 dos 3,9 milhões de ECU gastos com sustentação aos cereais, nada menos que 65% correspondiam a restituições. No caso do açúcar, este montante chega a 67% (Commission des Communautés Européennes, 1993).


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de uma opinião pública que associava cada vez mais o incessante aumento dos gastos do FEOGA com privilégios intoleráveis concedidos a apenas alguns no interior da pequena minoria que hoje é a população agrícola. A fórmula 80% dos recursos para 20% dos agricultores popularizou-se. Exagero ? Se considerarmos, na França, apenas os agricultores cujas explorações ocupam ao menos o equivalente a uma unidade de trabalho em tempo integral durante o ano, veremos que das 1.017 mil explorações recenseadas em 1988, somente 646 mil (63% do total) são unidades com alguma expressão econômica (39). Um quarto destas unidades (= 161,5 mil) realizavam 71% do valor total das vendas do setor, concentração não tão grande quanto a da famosa fórmula. Se entretanto tomarmos apenas os produtores de cereais, veremos que a camada superior de 25% detém 83% do valor da produção. Ora, os cereais sozinhos são o item isolado que mais recursos consome das organizações comuns de mercado, ficando com um quinto do total do bolo. Como os subsídios na antiga PAC eram proporcionais aos volumes produzidos, é claro que os maiores produtores eram – e continuam sendo após a reforma como veremos adiante os mais aquinhoados pelos cofres comunitários. Na pecuária a concentração é igualmente importante: 60% dos bovinos europeus estão nos rebanhos com mais de 60 animais e pertencem a apenas 17% dos criadores. Os rebanhos com mais de 200 animais detêm quase 15% do total e pertencem a apenas 1,5% dos pecuaristas (Commission des Communautés Européennes, 1993). Na criação de porcos a concentração é igualmente grande, sobretudo na Holanda, o que acabou provocando sérios problemas de contaminação do lençol freático. É verdade que a esmagadora maioria dos agricultores tem acesso aos bens de consumo que caracterizam a sociedade européia ocidental hoje: na França, 78% deles possuem, além da previdência social oficial um seguro de saúde complementar (tanto quanto os habitantes urbanos) e a prática de consulta e gastos médicos também equivale hoje à média da população. O automóvel particular faz parte da vida cotidiana de 97% das famílias de agricultores (contra 75% do conjunto francês fora da agricultura), embora só 20% tivessem, em 1989, um carro do ano, contra 35% dos franceses que não vivem da agricultura. Freezer e máquina de lavar estão presentes 39 Segundo a definição do censo francês trata-se aí das "explorações que empregam ao menos uma unidade-trabalho-ano (1 UTA), isto é, o equivalente a um ativo agrícola a tempo completo".


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em quase todos os lares de agricultores e quanto aos outros equipamentos de consumo corrente os agricultores estão mais ou menos conforme a média nacional. Estes dados de consumo não podem ser relacionados estritamente à renda agrícola já que, como veremos, a pluriatividade no meio rural é cada vez mais importante. É importante assinalar também que a pobreza não está ausente do meio rural já que 190.000 lares de agricultores (provavelmente os mais velhos e os aposentados) recebem uma renda global correspondente a aproximadamente US$ 500 mensais (INSEE, 1993). De qualquer maneira, mesmo que a pobreza atinja uma minoria e que os padrões correntes de vida entre os agricultores sejam os que predominam nas sociedades ocidentais desenvolvidas, a concentração dos recursos produtivos e dos subsídios é real. Além da concentração social que promoveu, a Política Agrícola Comum acabou ampliando as disparidades regionais em seu interior. Já no início da década de 1980 este fenômeno ficava claro. Segundo um documento publicado pela Comissão européia em 1981 (Commission des Communautés Européennes, 1981), a sustentação da renda agrícola pelo mecanismo dos preços comuns não só acentuava as vocações regionais em torno de determinados produtos, como contribuía para que a especialização se desenvolvesse ainda mais. A política de preços da Comunidade está na raiz da migração dos cereais europeus do Sul para o Norte do Continente, sobretudo onde havia as maiores extensões de terra: Bassin Parisien, o Leste da Inglaterra e o Norte da Alemanha que, ao final da década de 1970, respondiam por 50% da oferta européia de cereais. A tal ponto que nestas regiões, os agricultores foram estimulados a abandonar sistemas de policultura em benefício do cultivo especializado de cereais, prática que agora eles são convidados a alterar, no quadro da reforma da PAC. A Alemanha foi ainda mais beneficiada pois devido a mecanismos cambiais, os preços recebidos por seus agricultores não sofreram, em moeda nacional, o declínio sentido naqueles países de "moeda fraca" (40).

40 Em virtude do mecanismo chamado de montantes compensatórios monetários, adotados desde 1969 quando o dólar não mais pôde ser tomado como âncora para as moedas européias, os países passaram a compensar internamente as variações nas relações entre suas moedas. Este mecanismo beneficiou os países de moeda forte e foi um dos fatores decisivos para que a Alemanha se transformasse na terceira produtora européia de cereais.


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De qualquer maneira, quem produzia mais recebia mais; concentração social e regional eram dois lados da mesma moeda.: as produções passíveis de absorver mais fundos comunitários voltaram-se para as regiões de estrutura fundiária mais concentrada e contribuíram, evidentemente, a concentrá-la ainda mais. O que é notável nesta evolução é que os gastos públicos não são proporcionais à contribuição de cada produto à formação do valor agropecuário da Comunidade: os pequenos animais, por exemplo, recebem muito menos fundos que os cereais, embora seu peso no valor da produção seja superior. A conseqüência da "...lógica de uma política de sustentação dos preços agrícolas que conduz a ajudar mais os que produzem mais" (Commission des Communautés Européennes, 1981:75) foi que o Norte da Europa acabou recebendo apoio governamental muito maior que as regiões situadas ao Sul do Continente. Até que ponto esta dupla concentração poderia ou deveria ter sido atenuada pela política de estruturas da Comunidade ? Embora, como vimos, o documento de Stresa fizesse menção à adaptação de regiões e explorações em desvantagem, a politica de estruturas, na verdade, só contribuiu para reforçar a concentração a que levava a política de preços e não a atenuá-la. Em primeiro lugar, como já vimos, porque os gastos com estrutura ficaram muito aquém do que foi inicialmente concebido. Mas não há qualquer evidência de que uma ampliação dos montantes destinados à seção orientação do FEOGA contribuísse a atenuar este movimento concentracionista. Na verdade, a análise pormenorizada da seção orientação feita pelo documento já citado da Comissão européia mostra que os gastos aí também se concentram nos países do Norte da Europa: por exemplo, dos 78 mil projetos de desenvolvimento executados entre 1973 e 1978 no quadro da ajuda à modernização às explorações agrícolas (correspondentes às diretrizes do plano Mansholt) apenas 10 mil corresponderam a regiões caracterizadas como menos favorecidas. A Itália não teve nenhum projeto contemplado e 62% dos projetos distribuíram-se entre Alemanha, Holanda e Reino Unido. Nem vinte por cento dos projetos chegaram às áreas com menos de 20 hectares (Commission des Communautés Européennes, 1981:41-50). O trabalho de Bonnet, Delorme e Perraud (1993:15) confirma esta situação que vai reverter-se a partir de 1988 com a entrada de Portugal e Espanha na Comunidade.


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É verdade que durante os anos 1980, os países do mediterrâneo e a Irlanda vão recebendo parcelas cada vez mais importantes do FEOGA-orientação. Em contrapartida os países do Norte do Continente obtêm parcelas crescentes dos fundos destinados à garantia de preços (FEOGA-garantia). Por esta razão Bonnet, Delorme, Perraud (1996:13) concluem que “a concentração progressiva da intervenção sócio-estrutural em direção ao Sul nem de longe compensa o avanço das agriculturas do Norte na obtenção de ajudas de mercado...as agriculturas do Norte, mais produtivas e orientadas em direção a produtos que contam com forte sustentação (cereais, leite) consomem uma proporção maior de créditos vindos do FEOGA/garantia; as do Sul, que conhecem problemas estruturais mais difíceis, sobretudo a existência de um grande número de pequenos estabelecimentos, utilizam uma parte relativa maior do FEOGA-orientação ”. Só que neste período, a intenção explícita da política de estruturas adquire um caráter nitidamente social e não se volta mais a patrocinar a seleção dos agricultores melhores e mais aptos a permanecer no mercado. Ao contrário, já em meados dos anos 1970, as ajudas estruturais assumem natureza compensatória. É assim que, em 1975, as zonas desfavorecidas e de montanha passam a receber uma indenização compensatória. Durante os anos 1980, multiplicam-se os programas específicos destinados a ajudar as regiões menos desenvolvidas (sobretudo os países mediterrâneos); em 1988 a Comunidade organiza um zoneamento segundo o qual as regiões desfavorecidas receberão compensações. E entre 1985 e 1991, a política de estruturas adqui um caráter francamente anti-mansholtiano: “em 1985, um novo regulamento modifica os princípios da modernização agrícola (flexibilização a favor das agriculturas menos desenvolvidas) e ...consagra a vontade de reorientar o aparelho produtivo para sistemas mais extensivos, justificados pelos imperativos do controle da oferta: prêmios à extensificação, medidas agro-ambientais ” (Bonnet, Delorme e Perraud, 1996). Pode-se então falar de uma distorção da política de estruturas pelo fato de ela não ter atenuado, mas antes reforçado o movimento concentracionista embutido na política de preços ? Tal como concebida inicialmente no documento de Stresa, a política de estruturas da Comunidade (através de sua seção orientação) deveria articular-se organicamente com a política de preços (seção garantia): a idéia era que os preços deveriam gradualmente cair aos níveis do mercado mundial ao mesmo tempo em que a intervenção nas estruturas agrárias desenvolvesse aqueles estabelecimentos que pudessem adaptar-se, no futuro, a uma política não ou pouco intervencionista de


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sustentação das cotações. É neste sentido aliás que Bonnet, Delorme e Perraud (1993:3) caracterizam as intervenções sócio-estruturais na CEE até meados dos anos 1980 como uma política de convergência, isto é, a busca de unificação "...em torno de uma norma de produção". Segundo os autores, a política de estruturas enquadrava-se no objetivo de fazer com que a fixação de preços institucionais únicos contribuísse para a "...uniformização progressiva das condições da produção agrícola na Comunidade". A legitimidade desta política de convergência baseava-se em dois postulados básicos: em primeiro lugar, na utilidade social de uma agricultura eficiente e em segundo no fato de que, mesmo reduzida a um número muito menor de unidades, a agricultura deveria conservar na família o eixo básico de seu desenvolvimento. Note-se que a utilidade social de uma agricultura eficiente tanto no texto de Stresa quanto na concepção de Mansholt não está absolutamente ligada à capacidade de criar emprego ou de ocupar espaço mas, ao contrário, antes, de liberar mão-de-obra e aumentar os rendimentos por área. A eficiência seria medida pela capacidade em adaptar-se ao mercado e oferecer produtos de boa qualidade e baixos preços. E no fundo, esta é a concepção também predominante entre os jovens agricultores franceses do início da década de 1960, para os quais resolver o problema da baixa renda agrícola supõe que se reduza a população trabalhadora no campo e não que se distribuam os instrumentos do progresso técnico entre todos os que ali vivem e trabalham. Neste sentido, é preciso cuidado quando se examinam os dados referentes à concentração da renda, da terra, dos recursos produtivos e dos subsídios no quadro da Política Agrícola Comum: ao menos em parte, era exatamente isso que se pretendia quando a política foi concebida e implantada. Não se tratava de generalizar o acesso ao progresso técnico, mas, ao contrário, de administrar a necessária concentração de terras - e o correlativo êxodo rural - que poderia imprimir eficiência ao uso dos recursos oferecidos pela agricultura moderna. Foi a cogestão desta política que marcou uma das mais importantes associações entre um grupo social e o Estado, na França com as leis de orientação do início dos anos 1960. O problema é que os evidentes traumas e custos sociais desta concentração legitimavam-se por duas asserções que lhe eram complementares: a) os excluídos do campo seriam os futuros incluídos em situações econômicas mais propícias e b) a concentração da produção numa camada relativamente estreita de agricultores era a


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base para o equilíbrio dos mercados e a redução dos gastos públicos com a sustentação da renda. Uma vez que estes dois postulados não se verificam, fica claro o impasse a que conduziu o desenvolvimento da agricultura comunitária. A distância entre os objetivos da política agrícola comum e seus resultados não se mede pela concentração atingida e sim pela incapacidade de as intervenções sócio-estruturais patrocinarem a unidade social que delas se esperava.

5. Uma minoria como outra qualquer Quem entrasse na sede da poderosa Federation Nationale des Syndicats des Exploitants Agricoles no mês de novembro de 1993 talvez ficasse chocado com a capa de sua principal revista que mostrava ao fundo de uma bela paisagem campestre, um grupo de jovens praticantes de mountain bike e o título: "Turismo verde, a estratégia qualidade". As organizações profissionais agrícolas estão perfeitamente conscientes de que seus problemas atuais não se referem simplesmente aos preços de produtos, ou às modalidades de uso dos fundos públicos, mas tocam num ponto muito mais crucial: qual a função dos agricultores numa sociedade abarrotada de produtos agrícolas, preocupada com os gastos e os problemas ambientais de uma produção excessiva e cada vez mais consciente das perturbações que os excedentes trazem para o Terceiro Mundo ? Os anos 1960 marcam aquilo que Henry Mendras chamou, com razão, de O Fim dos Camponeses, e, ao mesmo tempo, o nascimento de uma nova categoria que foi capaz de identificar seus interesses particulares com aspirações sociais amplas e, por aí, legitimou-se como parceira da cogestão da Política Agrícola Comum. Alimentar os europeus, propiciar o crescimento das exportações, e sobretudo, constituir a base daqueles que iriam emancipar o campo de seu secular atraso, no respeito à propriedade privada e à valorização da atividade familiar, tudo indicava que, em torno dos agricultores e de suas atividades econômicas se reorganizaria uma nova forma de coesão do mundo rural e de seu relacionamento com o restante da sociedade. Assim, os camponeses e o tipo de sociedade que representavam seriam não simplesmente eliminados, mas substituídos por um projeto do qual uma importante camada de agricultores familiares detinha o controle.


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Desgastada desde o final dos anos 1970, esta coesão desapareceu. Hoje, sob o ângulo estritamente econômico, seria possível produzir na França com cerca de 200 mil agricultores ocupando apenas 20% do território nacional, segundo os cálculos do XIº Plano do Governo (Commissariat Général du Plan, 1993). O próprio ex-comissário Sicco Mansholt, vinte e cinco anos após seu célebre memorando de 1968, assina recentemente um texto crítico às propostas de reforma da PAC onde assinala claramente que embora o "saneamento do setor" (sic !) - através da eliminação das explorações marginais - fosse a solução econômica mais viável para resolver os problemas da agricultura ele se choca contra o desejo da Europa de que os espaços rurais não sejam abandonados (de Veer, Mansholt, Veermann e van Dijk, 1993:53). O que está em crise portanto é muito mais que uma política, é uma forma de organização social até recentemente incorporada por um grupo que podia clara e distintamente ser identificado como seu portador. Tanto quanto as políticas que o mantiveram e que ele contribuiu a desenvolver, é este grupo e seu projeto - que associava a ocupação do espaço às funções econômicas e produtivas que ele era capaz de preencher - que está em crise. Serão expostos a seguir três aspectos importantes que ajudam a caracterizar os agricultores europeus do início dos anos 1990.

5.1. A situação demográfica Não só cai pela metade a população ocupada na agricultura entre 1970 e 1991, como o envelhecimento dos que permanecem ligados às atividades agrícolas é muito maior que em qualquer outro setor social: na França, 30% dos que trabalham na agricultura têm mais de 55 anos, proporção que, na indústria atinge apenas 9% dos efetivos. Na Europa dos doze, apenas 7% dos chefs d'exploitation (aquilo que nosso Censo Agropecuário chama de responsáveis) têm menos de 35 anos (Insee, 1993:132). Além disso, são muito sérios os problemas ligados à sucessão dos agricultores: 58% dos chefs d'exploitation franceses têm mais de 50 anos, num total de 596.000 exploitants. Três quartos deles não têm sucessores ou qualquer idéia de quem poderá sucedê-los na unidade de produção. Até aqui a tendência tem sido de que estas explorações sem sucessores acabem incoporadas a outras: entre 1979 e 1989 desapareceram 19% das explorações, mas a superfície agrícola útil recuou apenas 3% (Insee, 1993:112-113).


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Outro aspecto demográfico essencial é que, minoria na sociedade há muito tempo, os agricultores o são também hoje no próprio meio rural. Em 1990, apenas 13,1% da população rural (isto é das comunas com menos de 2.000 habitantes) era composta de pessoas que viviam ao menos em parte da agricultura (Insee, 1993:14-15). E esta proporção deve cair ainda mais, uma vez que o êxodo agrícola foi particularmente forte durante os anos 1990. Este êxodo agrícola, entretanto, nem de longe corresponde a um esvaziamento generalizado do meio rural e a um esvaziamento de seu sentido para a sociedade. “Os campos cessaram de se despovoar ”, anuncia um estudo francês recente (DétangDessendre e Hilal, 1998:25). “O tempo da grande ceifadeira (la grande faucheuse) que foi o êxodo rural deve ser recolocado no museu da história ” (Hervieu e Viard, 1996:8). O mesmo não pode ser dito com relação aos agricultores: entre 1992 e 1993, o abandono do setor atingiu quase 50 mil estabelecimentos por ano (Gagey e Ruas, 1998). Um dos objetivos mais importantes das Organizações Profissionais Agrícolas em toda a Europa (e da própria União Européia, segundo sua Agenda 2.000) é senão reverter ao menos atenuar este quadro por meio de políticas voltadas especificamente à instalação de jovens agricultores. De qualquer maneira, o trabalho de Gagey e Ruas (1998) julga que, numa perspectiva não muito pessimista quanto ao futuro da agricultura, pode-se prever que um montante de 16 mil partidas e 8 mil novas instalações anuais para a França. As organizações profissionais agrícolas têm uma visão menos catastrofista deste quadro. Em 1994, François Jacob, presidente do CNJA (Centro Nacional dos Jovens Agricultores) procura demonstrar que o declínio no número de estabelecimentos agrícolas é concentra-se entre os velhos que vão deixando a profissão e “não a falências ” (Jacob, 1994:44). Num horizonte em que fossem instalados 12 mil agricultores por ano, em 2010 a França teria 600 mil estabelecimentos e poderia estancar a redução que vem desde a Revolução de 1789. Mas adverte: “é o grande tema da política agrícola de amanhã, pois se nada for feito, seremos não mais que 300 mil. Serão desempregados a mais e vamos perder esta tessitura econômica essencial sobre o conjunto do território ” (Jacob, 1994:45).


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Examinaremos na segunda parte do trabalho as justificativas fornecidas por diferentes segmentos profissionais à manutenção de ajudas ao setor agrícola. O importante aqui é assinalar que este é um dos aspectos mais delicados para os agricultores no quadro social atual: não se pode mais identificar mundo rural e mundo agrícola. O espaço rural é partilhado por um conjunto heterogêneo de habitantes que vão desde operários (três vezes mais numerosos no espaço rural francês que os ativos agrícolas, como mostra o estudo do INRA/INSEE, 1998:7) até possuidores de residências secundárias com aspirações freqüentemente conflitantes com as dos agricultores quanto ao uso deste espaço. Se existe um certo repovoamento dos campos como mostram inúmeros trabalhos do geógrafo Bernard Kayser, os agricultores e sobretudo aqueles cuja renda vem estritamente deste exercício profissional serão parcela cada vez mais reduzida no meio rural.

5.2. A importância da pluriatividade Se até meados dos anos 1970 o próprio movimento sindical adotava a visão de que as unidades não inteiramente consagradas à agricultura deveriam ser consideradas marginais e estavam, de qualquer maneira, condenadas ao desaparecimento, esta visão muda consideravelmente a partir de então. Menos de um quarto dos estabelecimentos agrícolas na França ocupam dois ativos ou mais. 53% dos responsáveis por estabelecimentos agrícolas na Europa dos 12 dedicam menos de metade de seu tempo de trabalho a sua própria exploração (Commission des Communautés Européennes, 1993). É um sinal da distância que existe hoje entre a situação social no campo europeu e o que dela esperavam os administradores de Bruxelas no início dos anos 1970. A própria legislação comunitária teve que adaptar-se a esta realidade, abandonando a rigidez dos critérios estritamente econômicos de valorização das unidades produtivas "não marginais": um regulamento do Conselho da Comunidade de 15/07/1993 permite que recebam créditos comunitários explorações que se dedicam a atividades de valorização do meio rural, desde que ao menos 25% de sua renda seja formada por vendas de produtos agrícolas (Senotier, 1993). Na verdade, desde 1985, com o artigo 19, a preservação do meio ambiente e da paisagem é reconhecida como atividade


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merecedora de apoio comunitário (41). Ainda com relação à pluriatividade, é importante assinalar que desde 1970 diminui a parte agrícola na composição da renda das famílias de agricultores, passando, na França, de 72% naquele ano a 62% em 1979 e a 58% em 1988 (Insee, 1993:54). As rendas salariais dos agricultores (obtidas, na maior parte das vezes fora da agricultura) dobraram entre 1970 e 1988 e 19% da renda agrícola vem de prestações sociais.

5.3. Novas funções para o meio rural Os prognósticos são unânimes: seja qual for a evolução da política agrícola, parte cada vez menor do espaço rural será dedicada à produção. Estudo do Conselho Científico para a Política Governamental, da Holanda (WRR, 1992) elabora quatro cenários de política em torno dos quais aplica um modelo com as probabilidades de desenvolvimento com relação ao uso do espaço até o ano 2.025. Se a superfície agrícola útil européia gira hoje em torno de 130 milhões de hectares, ela deverá ser reduzida, dependendo da política aplicada, a uma faixa que vai de 30 a 80 milhões de hectares até o primeiro quarto do próximo século. O emprego agrícola, traduzido em unidades anuais de trabalho também deverá cair das 6 milhões atuais para uma faixa que vai de 1,5 a 2,5 milhões. Ao mesmo tempo, vão surgindo novas dimensões de uso do espaço no quadro da crise da política agrícola, e das transições sociais e demográficas rapidamente mencionadas. Três pontos chamam a atenção: a)

A produção agrícola vem-se desenvolvendo de maneira significativa em áreas não alimentares: 10% da produção européia de leite já é utilizada para fins não alimentares (plásticos, colas, cremes de beleza, etc.). Os biocarburantes vêm adquirindo também um peso significativo, sobretudo os derivados da colza. O então presidente do Centro Nacional de Jovens Agricultores calcula – numa crítica à forma que assumiu o controle da oferta na reforma da PAC – que se o milhão e meio de

41 Desde 1975, "...a Holanda conhece um termo (relatienotagebied) para designar uma região na qual os agricultores recebem uma indenização para não recorrer a certas práticas prejudiciais à manutenção de um certo número de valores naturais e de um certo tipo de paisagem agrária ou, ao contrário, para efeetuar trabalhos de manutenção" (WWR, 1992:36).


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hectares colocados em pousio em 1993 fossem dedicados à produção de biocarburantes (42), isso representaria 7,5% do consumo francês (Jacob, 1994:60). No anos de 1994, agricultores franceses plantaram, em 30 mil hectares de pousio obrigatório, produtos destinados a uma cobertura favorável à atração da pequena caça, em contrato com associações de caçadores (43). Há uma diretoria da União Européia (a Direção Geral XI) voltada especialmente para temas ambientais e que anima programas onde a agricultura tem como objetivo a manutenção da vida selvagem. Não se trata apenas da preservação de florestas, mas da valorização de formas de ocupação do espaço norteadas não por critérios de produtividade, mas de integração entre atividades humanas e habitat natural. b)

Os agricultores poderão ser os agentes do desenvolvimento de uma série de serviços no meio rural: serviços privados particularmente no que se refere ao turismo, mas também serviços públicos em que os agricultores poderão ter funções importantes como "jardineiros" da natureza. Em claro contraste com a orientação dos primeiros anos da PAC, hoje a União Européia insiste que “a diversificação rural pode ser explorada de maneira flexível como complemento necessário à agricultura. Atividades até então marginais – o desenvolvimento de produtos de qualidade superior, o turismo rural, os projetos de investimentos ligados ao meio ambiente ou ao patrimônio cultural da região, as pequenas e médias empresas – desenvolveram-se e abriram novas perspectivas ” (Commission européenne, 1997:28) Neste sentido, a pesquisa de Hervieu e Viard (1996:142) mostra que “o campo hoje é uma paisagem, antes de ser um lugar de produção ” para 69% dos franceses. Que 72% dos habitantes urbanos se pronunciem neste sentido é menos surpreendente que a constatação dos 61% de habitantes rurais para os quais a idéia de campo evoca mais uma paisagem que um local de produção. A importância destes serviços é tal que alguns pesquisadores da OCDE (Muheim e Huillet, 1993) propõem o conceito de valores de não uso, correlativo ao de beneficiador pagador (em clara alusão ao do poluidor pagador), pelo qual aquele que 42 Segundo a Comissão Européia, a área de cultivo de biocarburantes (grãos oleaginosos), que era de 264 mil hectares na safra 1993/94 aumenta quase quatro vezes nos dois anos seguintes, chegando a um milhão de hectares na safra 195/96. 43 Le Monde, 8/09/1994


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usa uma paisagem preservada deveria pagar por este benefício e aquele que deixa de empregá-la para fins produtivos deveria ser por isso indenizado, conforme será visto com mais detalhe na parte II deste trabalho. c)

A valorização das marcas de origem, que foi recentemente objeto de regulamentação comunitária (Cartou, 1992), é uma das mais significativas alternativas econômicas ao esgotamento do modelo de produção intensiva e massificada. Como vimos acima, 40% das exportações agroalimentares francesas dependem destes produtos "de origem" e seu peso no orçamento alimentar do próprio mercado interno tende a crescer. A busca da qualidade, como bem mostram Valceschini (1993) e os autores ligados à teoria das convenções (Allaire e Sylvander, 1997) a busca de qualidade é uma tendência nova que se opõe à corrida produtivista, marca do desenvolvimento agrícola desde o final dos anos 1930 nos EUA e característica central da PAC. Segundo estes autores, a idade do mercado “de massas ” na agricultura começa a ser superada pela do mercado de clientela em que a questão da qualidade e da confiança torna-se mais importante que a dos preços. Estas novas funções não se agregam simplesmente às atividades convencionais dos agricultores. Elas representam na verdade o “fim da agricultura profissional, ao menos a hegemonia de um certo sistema profissional sobre a gestão local do espaço ” (Allaire e Boyer, 1995:15). Mais que isso, elas representam a perda da superposição entre um espaço e um grupo social (Mormon, 1996).

6. A reforma da PAC Por mais incompletos que sejam os elementos expostos até aqui e precária a articulação entre eles parecem entretanto suficientes ao menos para que se perceba que a reforma da PAC não foi um raio em céu azul. Na verdade, durante os anos 1970, enquanto o Comissário Mansholt insistia na urgência de se acelerar o êxodo rural como forma de imprimir unidade ao setor agrícola e, por aí, coerência e racionalidade à sua política de sustentação, outros administradores em Bruxelas procuravam adaptar-se à situação de fato: já que não se reuniriam as condições políticas para o desejado "saneamento do setor" (para empregarmos a infeliz expressão de Mansholt e seus colegas) era necessário conviver, ao menos durante um


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tempo, com uma situação dual em que a minoria de agricultores produtivos estaria cercada pela imensa maioria de estabelecimentos marginais. Desde o início dos anos 1970 há estudos técnicos indicando para a Comissão européia propostas que vão exatamente na direção do que acabou sendo a reforma da PAC: cortar os preços e compensar os agricultores com mecanismos de ajuda direta. Neville-Rolfe (1984:10-17) cita quase uma dezenas destes estudos, elaborados por pesquisadores de alta reputação acadêmica, alguns dos quais propostos para a Comissão européia e discutidos nos parlamentos nacionais. Um dos fatores básicos para a reação contrária a este tipo de proposta na Comissão européia - e muito mais no Conselho de ministros - são seus altos custos iniciais de implementação: curiosamente, os gastos públicos com a sustentação da renda agropecuária por meio de pagamentos diretos (e não de preços de garantia) não seriam - e, de fato não foram - reduzidos, ao menos imediatamente, com a reforma da PAC. Dois dos mais importantes especialistas franceses no assunto e que tiveram inclusive responsabilidades governamentais explicam: "um dos paradoxos mais chocantes da reforma é que ela é, em grande parte, uma resposta à explosão dos custos orçamentários, e ao mesmo tempo, ela vai conduzir, ao menos a curto prazo, a um aumento dos gastos. Este paradoxo, reforçado pela dificuldade política da transferência do peso da sustentação do 'insensível' (consumidor) ao 'visível' (contribuinte), só se pode compreender pela profundidade da crise da PAC, crise ao mesmo tempo interna pelo restrição dos mercados e externa pela ameaça de guerra comercial" (Guyomard e Mahé, 1993:225). Mais importante porém que os custos desta proposta de separação entre os preços dos produtos e a formação da renda dos produtores (no fundo é este o aspecto mais relevante das propostas elaboradas nos anos 1970 e que foi introduzido em 1992) era a oposição que a ela faziam as organizações profissionais agrícolas. Quando propostas próximas ao que está sendo hoje realizado na reforma da PAC eram formuladas, tanto a Comissão das Organizações Profissionais Agrícolas (COPA) como suas entidades filiadas nacionais alegavam que não poderiam tolerar que seus membros fossem transformados em "assistés sociaux". A Câmara de Agricultura da França (Chambre d'Agriculture organização profissional que responde por toda a assistência técnica altamente capilarizada e com grande influência no país) recusava-


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se a considerar qualquer proposta de redução nos preços agrícolas compensada por ajudas, a menos que fosse para áreas desfavorecidas e agricultores idosos. A razão desta oposição não está apenas nas eventuais perdas econômicas decorrentes do sistema batizado pelos franceses de découplé, que poderíamos traduzir por "descasado", onde a sustentação da renda não passa pelo caminho exclusivo dos preços. O problema é que o sistema anterior de sustentação da renda embute o subsídio num instrumento que guarda uma importante semelhança formal com o mecanismo de mercado: o agricultor produz e vende "no mercado" seu produto. É verdade que este "mercado" é a autoridade comunitária. Mas ele pode associar a renda que percebe ao resultado de seu trabalho e dos gastos que teve para produzir e neste sentido legitimar seu ganho como se fosse um ganho obtido poor meio do mercado. O découplement (delinkage em inglês) impede esta ilusão e faz com que o subsídio apareça em toda a sua nitidez no cheque que o agricultor recebe do tesouro comunitário. Por isso, as organizações profissionais, quando colocadas diante da necessidade de algum tipo de restrição à elevação das safras sempre preferiram um sistema que preservasse os altos preços e estabelecesse taxações que comprimissem a posteriori a renda, a um outro que reduzisse os preços nominais e compensasse a queda com ajuda direta. Mais que um problema de renda o que está aí em jogo é a própria função social da profissão de agricultor: receber um cheque significa transformar-se de certa forma em funcionário o que vai exigir uma revisão completa do contrato estabelecido com o Estado na qualidade anterior de agricultor. A desvinculação agora alcançada pela reforma da PAC é a expressão mais clara da perda de hegemonia da profissão agrícola na própria ocupação do espaço rural. A reforma não pode ser compreendida sem que se leve em conta o esgotamento das diversas tentativas parciais e tópicas de controlar a evolução da oferta mantendo - ou reduzindo apenas suavemente - os preços. A década de 1980 foi pródiga no estabelecimento de cotas (no caso do leite, inclusive, de maneira relativamente bem sucedida) e de mecanismos que visavam a redução da oferta. Até propostas de gel de terres ou set-aside (colocação de áreas em pousio) foram levadas à prática, a partir de 1986, entretanto sem sucesso, já que não eram obrigatórias para os agricultores e estes só a adotariam caso os preços pagos pelo imobilização de seus ativos fossem superiores aos que receberiam pelo seu uso (Coulomb, 1993).


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Dois aspectos da política comum, a partir de meados da década de 1980, devem ser entretanto destacados por sua convergência com o que será estabelecido na reforma. Por um lado, a adoção, em 1985, com o Livro Verde da Comunidade de uma série de medidas estimulando práticas produtivas que levassem em conta a preservação do meio ambiente e da paisagem rural e que se consolidaram no chamado “artigo 19 ”, que instituiu ajudas aos agricultores situados em zonas ditas 'particularmente sensíveis sob o ponto de vista do meio ambiente' e que adotam voluntariamente, por cinco anos, práticas favorecendo uma agricultura mais respeitosa do meio ambiente (Baudry e Laurent, 1993). Por outro, é importante assinalar que desde meados da década de 1980, não só a seção orientação do FEOGA é contemplada com mais fundos, como, a partir de 1988, os países do Sul, pela primeira vez passam a receber mais verbas que os do Norte do Continente nos gastos sócio-estruturais (Bonnet, 1993). Vejamos então, de maneira resumida, os principais pontos da reforma. Segundo a Comissão européia, ela visa os seguintes objetivos: - melhorar o equilíbrio dos mercados agrícolas - aumentar a competitividade da agricultura européia tanto internacionalmente, quanto no mercado interno - extensificar os métodos de produção, contribuindo a assegurar a salvaguarda do meio ambiente e a redução dos excedentes agrícolas - redistribuir os subsídios em direção a explorações mais frágeis - manter em atividade um número “suficientemente elevado de agricultores, favorecendo ao mesmo tempo uma certa mobilidade dos fatores de produção, nomeadamente da terra, afim de estimular a racionalização das estruturas produtivas" (Commission des Communautés Européennes, 1993:10). Trata-se portanto de romper com a lógica que dominou o desenvolvimento a implantação e o desenvolvimento da política agrícola moderna e cuja palavra de ordem central era intensificar a produção (isto é, elevar os rendimentos por área e por unidade de trabalho), como meio de reduzir os preços e, ao mesmo tempo, estimular a


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concentração dos recursos produtivos e o êxodo rural como meio de elevar a renda rural e atingir o equilíbrio dos mercados. O âmbito da reforma, no que se refere às organizações comuns de mercado, atinge os cereais, as oleaginosas e a pecuária bovina, num conjunto correspondente a 75% do valor da produção comunitária. Os preços dos cereais e das oleaginosas, objeto de uma redução drástica, deveriam atingir, até a safra 95/96 os níveis do mercado internacional. Os preços garantidos da carne bovina também caem, já que se supõe que os custos de produção devem declinar com a redução do que o agricultor paga pelos cereais. Esta queda de preços deveria permitir a eliminação de uma das mais sérias distorções econômicas na relação entre agricultura e pecuária na União Européia: a que fazia com que fosse interessante para o produtor vender seu cereal às agências públicas (que lhe asseguravam preços substancialmente superiores aos do mercado mundial) para importar oleaginosas vindas dos Estados Unidos, do Brasil ou da Argentina destinados à alimentação de seu gado. Com isso, as autoridades comunitárias só podiam escoar o produto armazenado com pesadas subvenções, ao mesmo tempo em que o agricultor europeu não alimentava seu gado com os cereais que produzia, mas sim com as oleaginosas vindas do outro lado do Atlântico. Estas importações, a partir da reforma, deveriam cair e o aumento do consumo de cereais pelo gado europeu reduziria a pressão sobre os cofres públicos representada pela obrigatoriedade de a União Européia comprar o que lhe apresentavam seus agricultores. Ao mesmo tempo, os estoques deveriam diminuir e, portanto, as restituições às exportações, aliviando-se assim o principal foco de tensão entre os Estados Unidos e a Europa no comércio agrícola internacional que se aproximaria de um ponto de equilíbrio já que os produtos que por ele transitariam não mais conteriam as pesadas subvenções governamentais de que até então dependeram. Esta redução de preços é compensada por uma ajuda direta ou um pagamento direto que, no caso dos cereais e das oleaginosas tem por base a extensão de terras cultivadas pelo agricultor e no caso dos bovinos, a quantidade de cabeças possuídas. O que sai de um dos bolsos do agricultor com a baixa dos preços de garantia, entre pelo outro (em proporção bem variável e é em torno disso que se estabelece boa parte das discussões entre as várias correntes políticas ligadas ao tema, como será visto na parte


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II deste trabalho) sob a forma de um cheque vindo diretamente do Tesouro público e destinado a garantir sua renda (44). Então é apenas uma troca de seis por meia dúzia ? Evidentemente, não. Em primeiro lugar, a contrapartida a esta compensação na queda dos preços, para as lavouras, é que o agricultor se compromete a colocar em pousio uma superfície igual a 15% de sua área de cultivo anterior porcentagem que vai variar em função das necessidades do mercado. Portanto, em tese, isso deveria provocar uma redução nas safras e um alívio nos estoques comunitários. Quanto à pecuária, foi pago um prêmio para contrabalançar a redução nos preços, mas condicionado a uma lotação máxima de cabeças por área, para que o pecuarista seja efetivamente estimulado a extensificar a produção. Talvez o elemento mais importante na diferença entre o sistema de pagamentos diretos e o anterior é que a repartição social dos fundos públicos entre as diferentes categorias de agricultores fica absolutamente transparente, o que não ocorria antes de 1992. É justamente em torno deste tema (a distribuição social dos fundos públicos de sustentação da renda agrícola) que se concentram os mais importantes debates em torno dos quais vão-se dividir as forças sociais ligadas ao setor, como será visto na parte II deste trabalho. Além disso, o pagamento da ajuda tem por base a estimativa de rendimento regional médio multiplicada pela quantidade de hectares que o agricultor possui. Na opinião de Sourie e Blanchet (1993) este é um fator de desconcentração, já que os agricultores que não alcançam estes rendimentos médios serão beneficiados em detrimento dos que os superam. É importante sublinhar que a ajuda por hectare não se confunde com o deficiency payment, já que ela não se vincula a um produto determinado mas visa remunerar a impossibilidade de colocar em uso os fatores de produção disponíveis e baseia-se na área como indicador destes fatores. Os agricultores com produção inferior ao correspondente a 92 toneladas de trigo (na prática, são os que possuem menos de 20 hectares - que correspondem a praticamente

44 Uma boa e minuciosa descrição desta política é feita no excelente trabalho de Fonseca (1994).


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80% das unidades produtivas, segundo os dados da Comissão Européia) não precisam entrar com a contrapartida do pousio para receber a ajuda. Juntamente com a reforma foi reforçada a política sócio-estrutural voltada agora diferentemente do que ocorria até meados da década de 1980 - a problemas ambientais e a evitar a “desertificação ” do meio rural. As linhas da seção orientação do FEOGA que procuram promover as aposentadorias antecipadas e o reagrupamento de áreas para melhorar evitar a excessiva pulverização dos lotes vão também receber mais verbas. São reforçadas as linhas de financiamento que visam “contribuir à limitação da produção favorecendo o recursos a práticas extensivas e prescrevendo a corrida aos rendimentos elevados..." (Commission des Communautés Européennes, 1993:16), como a ajuda às unidade que reduzem seu uso de adubo e pesticidas ou ao reflorestamento. Um ponto essencial que se deve ter em mente, quando se fala da reforma da PAC, é que nem nos seus resultados prováveis, nem mesmo no discurso que a justifica, em nenhum momento se fala em reduzir o peso da intervenção estatal no setor. Por um lado, todos sabem que, ao menos no curto prazo os gastos com a sustentação da renda agrícola vão aumentar. Mais importante, porém, é que justamente por não se apoiar apenas no mecanismo unificado da sustentação de preços, a intervenção tornase ao mesmo tempo mais complexa e diversificada. É interessante que enquanto alguns enxergam aí, antes de tudo, o risco de corrupção e fraude (Marsh, 1993), outros encaram estas mudanças como anunciadoras talvez de novas formas na relação entre os agricultores e o Estado. É o caso de Gilibert (1993:13), quando diz: "A nova PAC substituiu a ação sobre os produtos, em número limitado, pela ação sobre os fatores de produção, múltiplos e numerosos. A intervenção administrativa no setor agrícola vai tornar-se sem comum medida com tudo o que se viu até aqui. Ela será mais complexa, mas também mais visível e vai dirigir-se diretamente aos agricultores e não mais aos organismos econômicos". Para que se tenha uma idéia desta complexidade, a revista da FNSEA Information Agricole (novembro de 1993) informa que a França pagou em dia as ajudas


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compensatórias (que serão depois reembolsadas pelo FEOGA ao Tesouro francês) de nada menos que 544 mil processos. A segunda parte deste trabalho dedica-se à análise das correntes de pensamento em torno da PAC.


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Parte II – Subsídios: em busca de nova legitimidade social


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1. Apresentação: correntes de opinião O objetivo desta seção é examinar as correntes de opinião em torno das quais se estabelece o debate sobre a política agrícola na União Européia logo após a reforma da Política Agrícola Comum. O que está em jogo neste debate – sob o ângulo material – é, antes de tudo, o destino dos fundos públicos voltados à sustentação da renda agrícola. Um dos objetivos explícitos da Reforma da PAC era evitar a concentração destas ajudas entre os maiores agricultores. Como será visto abaixo, esta meta, nem de longe, foi atingida.

1.1. Os interlocutores A equipe holandesa que preparou um dos mais importantes documentos prospectivos sobre os rumos da agricultura européia (WRR, 1992) fundamentou seus cenários na existência de quatro correntes de opinião e fontes de pressão sobre a política agrícola. Em primeiro lugar, os adeptos do livre comércio que se exprimem não só na OCDE, mas sobretudo no GATT. Se a OCDE tem uma influência intelectual decisiva, o GATT vai muito além: na verdade, a própria reforma da Política Agrícola Comum consistiu, em grande parte, na adaptação das regras de sustentação da renda praticada na Europa a padrões internacionalmente aceitos e consagrados pelo GATT e, posteriormente, pela Organização Internacional do Comércio. O segundo grupo é constituído por aqueles para quem o desenvolvimento do emprego e da ocupação humana do espaço deve ser o critério básico nas orientações políticas da Comunidade. As organizações sindicais agrícolas que participaram do processo de cogestão da PAC são os mais importantes representantes deste segmento. O terceiro grupo são os adeptos de que a maior parte do espaço agrícola europeu deve ser ocupado por atividades não produtivas, de reservas de biosfera: o trabalho dos experts holandes os denomina de natureza e paisagem já que se trata da corrente que vai procurar uma separação espacial entre agricultura e zonas especialmente reservadas à preservação da natureza. Existem hoje em toda a Europa importantes entidades de proteção da natureza que acabam tendo influência na própria política agrícola. É o que ocorre, por exemplo, com a Liga da Proteção dos Pássaros que foi


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uma das primeiras a propor ações correspondentes ao “artigo 19 ” da Comunidade. Para No quadro da nova PAC, uma das reivindicações fundamentais deste setor é que o pousio não seja um abandono puro e simples das superfícies anteriormente cultivadas, mas que se organize levando em conta as necessidades da fauna selvagem. As perspectivas de redução na área de cultivo no Continente, como foi visto na primeira parte do trabalho, ampliam a força desta corrente de pensamento, bem como do quarto grupo, cuja preocupação central está em alcançar uma agricultura mais integrada com a preservação do meio ambiente. A classificação proposta por Delorme (1994) é mais próxima do quadro existente na França. Ela se assemelha à do WRR (1992), com duas diferenças importantes. Em primeiro lugar, não inclui um grupo, de fato, com expressão limitada na França, os que se voltam para a ampliação dos espaços naturais e sem ocupação humana. No Reino Unido, onde a noção de paisagem rural não se associa historicamente à ocupação humana do campo - como vimos na primeira parte do trabalho - este grupo é muito forte, mas não na França, onde as principais expressões políticas da preocupação em manter amplos segmentos do território livre de qualquer ocupação humana vem dos caçadores (Chasse-Pêche-Nature-Tradition), grupo que nas eleições européias de 1989 atingiu 4,13% dos votos e 15% em alguns departamentos franceses (Fralon, 1994) e dos que lutam pela proteção dos animais (Fundação Brigitte Bardot, por exemplo). Por mais que possa parecer anedótico é importante lembrar que os caçadores sustentam uma agremiação política que anima um programa de televisão onde eles se apresentam como os grandes defensores dos equilíbrios dos espaços naturais e protetores das espécies em extinção (45). Na Délégation à l'aménagement du territoire et à l'action régionale (DATAR), organismo governamental responsável pelos estudos e pela orientação referente à organização do território, existem os que defendem a idéia de que a formação de bosques e florestas é "...incontestavelmente a utilização alternativa mais evidente e mais promissora", frente à tendência, para 45 No início de 1998, os caçadores realizaram manifestação com mais de 100 mil pessoas, em Paris, contra as restrições que a Ministra do Meio Ambiente do Governo socialista, Dominique Voynet queria impor às atividades dos caçadores. Sua principal bandeira é que eles são os verdadeiros protetores da natureza. Na reforma da política agrícola comum isso é ao menos em parte reconhecido, uma vez que parte das terras pode ser subtraída ao pousio compulsório, caso estejam voltadas ao cultivo de produtos


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alguns inelutável, de esvaziamento dos espaços rurais (46). Razão pela qual Kayser et al. (1994:39) não hesitam em chamar esta corrente de "integristas do reflorestamento". As resoluções do congresso de 1994 da FNSEA dedicam três páginas às relações entre agricultores e caçadores (FNSEA, 1994:48-50). Apesar disso, trata-se de uma corrente cuja expressão na França é minoritária. Como bem lembra Mathieu (1992/1994:5), a França, no interior da União Européia, é o país de menor sensibilidade para os problemas do meio ambiente e não fornece um quadro especialmente favorável para a popularização de teses naturalistas, como as da deep ecology norte-americana, por exemplo. Outra diferença entre a classificação de Delorme e a do WRR é que este organiza o raciocínio em torno da visão que se tem da ocupação do território, enquanto que Delorme se norteia pelas diferentes posições quanto à política agrícola, localizando assim três grupos: a)os liberais (corrente predominante nos países da Europa do Norte e, até certo ponto, entre os grandes cerealicultores franceses); b) os adeptos do controle da oferta (onde se pode localizar o sindicalismo profissional agrícola oficial: FNSEA) c) e o que ela chama de alternativos (Confédération Paysanne, entre outras entidades que, contrariamente à FNSEA, tem maiores ligações com a esquerda e com os movimentos ambientalistas, na França). Se é verdade que se pode compreender as correntes de opinião como tipos ideais weberianos, então é importante deixar o mais explícito possível o critério que rege a classificação que se faz. Minha impressão é que as mais importantes correntes de opinião sobre os destinos da agricultura e do meio rural - ao menos na França organizam-se a partir das diferentes respostas a uma questão básica: como se deve formar a renda agrícola e qual o sentido da atividade que a ela dá lugar nos países capitalistas avançados ? Existem basicamente três respostas a esta questão:

que atraem animais selvagens e façam objeto de um contrato pelo qual poderão ser aproveitadas por caçadores. 46 Gadant, J. (1992) - La Forêt - relatório inédito - DATAR, apud Kayser et al. (1994).


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a) A daqueles para quem cabe ao mercado estipular o uso dos recursos e as estruturas sociais daí decorrente. O essencial para os liberais é que todas as preocupações que eles chamam de sociais (meio ambiente, território, trabalho e amenidades rurais) sejam enfrentadas, sem que, no entanto, a atividade agrícola faça parte do batalhão de combate - em todo caso não da linha de frente. A atividade agrícola, para eles, deve ao máximo converter-se numa esfera da vida social que obedeça fundamentalmente a leis econômicas, sem portanto responder, na sua organização, a qualquer interferência que não venha do mercado. Uma política de desenvolvimento rural pode auxiliar nas questões sociais de maneira muito mais eficiente que a tentativa de estruturar voluntariamente a agricultura para fazê-lo. b) A segunda escola é a do controle corporativista da oferta e sua mais importante expressão é a FNSEA. Como mostra Delorme (1994) são os que exigem que a oferta seja controlada e recusam a idéia de que cabe ao mercado mundial decidir a renda dos agricultores. Mas este controle deve ser feito ao máximo por eles mesmos ou ao menos com sua ativa participação. É difícil qualquer outra caracterização sintética do conteúdo das propostas desta corrente de opinião, já que a própria crise da política agrícola de cuja gestão ela participou durante trinta anos compromete seriamente sua identidade: não são mais os que possuem a idéia modular de que a propriedade modelo deve ter duas unidades de trabalho em tempo integral, que deve procurar permanentemente a busca da maior produtividade e especialização e que deve crescer tanto quanto conseguir, dentro dos limites que não comprometam o caráter fundamentalmente familiar da gestão e do trabalho agrícola. A coesão desta corrente era dada por um modelo que terminou: não é em vão portanto que a coerência de pensamento fica seriamente abalada pelo momento de transição que a política agrícola européia atravessa desde meados dos anos 1980. c) A característica central daqueles que Delorme chama de alternativos pode ser resumida, ao que me parece, na expressão controle distributivista da oferta. É óbvio que a corrente sindical representativa desta escola - a Confédération


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Paysanne (47) também reivindica participação em todas as decisões que interferem na formação da renda agrícola. Mas o seu traço mais importante é que a intervenção na oferta deve ter um objetivo de natureza distributiva: o de promover o que chamam de partilha da produção e dos direitos de produzir. Uma política organizada neste sentido é capaz de propiciar uma agricultura ao mesmo tempo: - menos consumidora de recursos públicos, já que os preços de garantia seriam assegurados apenas até uma certa quantidade de vendas por produtor. Quem quisesse produzir mais poderia fazê-lo, mas vendendo o que ultrapassar o quantum garantido, no mercado mundial; - em melhores condições de ocupar o território rural e evitar a ameaça de sua desertificação; - mais intensiva em trabalho; - menos poluidora, porque a produção deixaria de ser o que foi até aqui: uma estrutura cada vez mais padronizada, organizada para elevar os rendimentos da terra e a produtividade do trabalho ao máximo num mercado que assegurava a compra por um preço compensador de todo o produto oferecido. O plafonnement de l'offre (a limitação da oferta garantida a um teto) restringe o interesse que o agricultor tem de participar da corrida produtivista e por aí estimula uma agricultura que pode ser a grande responsável pela organização do espaço rural e da ocupação humana que aí deve existir. Correntes de opinião, grupos de interesses e representações sindicais não se confundem necessariamente: assim, se é fácil encontrar posições liberais entre os grandes cerealicultores franceses, isto não significa que eles sejam adeptos incondicionais da regulação pelo mercado da alocação dos recursos. Da mesma 47 Além de sua representação própria – local, regional e nacional – as organizações profissionais agrícolas compõem, em cada Departamento francês, uma organização de imensa capilaridade e poder de intervenção, as Câmaras de Agricultura, que guardam uma certa semelhança, entre nós, com as Associações Comerciais. As Chambes d ’Agriculture têm uma função não só de estudo, assessoria e representação, mas também são elas que abrigam quase toda a assistência técnica. Em cada Departamento, as Chambres d ’Agriculture são eleitas com base em chapas organizadas pelas representações sindicais. Foi o primeiro governo socialista que, em 1982, abriu a possibilidade de que a FNSEA não detivesse mais a representação exclusiva nas Chambres d ’Agricuture. Em 1995, em média, a Confédération Paysanne detinha 20% da representação nacional.


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maneira, a divisão entre corporativistas e distributivistas não corresponde claramente a uma expressão sindical distinta: Le Guen (1994) mostra, com base em sua própria experiência de assessor sindical (48), como no interior da FNSEA, posições próximas à dos distributivistas têm um peso considerável. Minha preocupação aqui é muito mais a de expor a lógica de raciocínio subjacente às correntes de opinião do que a sociologia de sua formação e expressão políticosindical, que foge inteiramente aos objetivos deste trabalho.

1.2. Os temas centrais do debate O debate pode ser resumido - ao que me parece - em três temas interdependentes e em torno dos quais se estabelecem as visões de cada uma das correntes acima apontadas. O primeiro consiste em saber qual a visão que cada uma das correntes tem a respeito do que foi a Política Agrícola Comum anterior a sua reforma, ou seja, durante os trinta anos em que a sustentação da renda agrícola passou fundamentalmente por preços de garantia muito superiores aos do mercado mundial. Todos a criticam, ninguém mais preconiza seu retorno puro e simples, mas é claro que os princípios e o conteúdo destas críticas são muito diferentes de uma corrente para outra. O segundo tema é a posição em torno das medidas adotadas em 1992 e que tocam diretamente na renda do agricultor: preços agrícolas, ajudas diretas e sobretudo modalidades de controle da oferta são tópicos que dividem também os especialistas e os grupos de interesse. Por fim o terceiro tema, a ser estudado na parte III deste trabalho refere-se às conseqüências ambientais e agronômicas das medidas embutidas na reforma da PAC.

2. O que havia de errado com a PAC ? Acumulação de excedentes, explosão de gastos, concentração social e regional dos subsídios, distorção do mercado mundial, comprometimento do meio ambiente e em parte da saúde da população são problemas citados como parte das conseqüências nefastas da PAC pelas três correntes. Isso não significa que o diagnóstico a respeito 48 Trabalho apresentado na reunião sobre ajudas diretas, promovida pelo grupo de trabalho dirigido por Hélène Delorme e Daniel Perrault em junho de 1994.


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dos problemas que atingiram a agricultura e sua política de sustentação sejam idênticos. Vejamos a questão mais de perto.

2.1.Os liberais Um resumo do Memorandum Mansholt de 1968 traduziria bem o tipo de crítica que esta corrente de opinião dirige à política agrícola comum. O objetivo fundamental da PAC, na visão de Mansholt, era acabar com as práticas nacionais do protecionismo que ameaçavam o desenvolvimento do conjunto da agricultura européia. De fato, como foi visto na parte I, a inspiração histórica tanto do Tratado de Roma, quanto do documento de Stresa vão exatamente nesta direção, embora é óbvio que a interpretação que a estes textos dava cada representante nacional variava consideravelmente. A idéia era expor a agricultura à ação do mercado mundial e patrocinar a formação de uma estrutura social baseada em "unidades produtivas" e "empresas agrícolas modernas", organizando a eliminação social dos que não conseguissem atingir este patamar que lhes permitisse fazer parte da corrida competitiva internacional. Se o resultado prático desta intenção livre cambista foi a exacerbação continental do protecionismo isso se deve basicamente a dois fatores: por um lado ao estabelecimento de preços de garantia num nível tal que permitia a reprodução de unidades que, se baseadas em critérios de mercado, deveriam desaparecer. É o que, na primeira parte deste texto foi chamado de pecado original. Por outro, à inconseqüência da política de estruturas, que não foi capaz de reorganizar o aparato produtivo visando a abertura da agricultura européia à competição internacional. Uma importante conseqüência não antecipada do fracasso da política de estruturas da Comunidade foi o surgimento de novos temas para a própria política agrícola: desenvolvimento local, reforço do tecido econômico e cultural dos territórios, caráter multifuncional dos estabelecimentos agropecuários, valorização da pluriatividade cada uma a sua maneira, as forças sociais que influenciam a formação da política agrícola européia vão incorporar estas questões a suas propostas e seus argumentos. Um dos aspectos mais importantes da crítica que faz esta corrente à PAC é a ligação estabelecida entre problemas ambientais e sustentação da renda agrícola. Numa exposição feita em reunião da Société Française d'Économie Rurale, Gérard Bonny,


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da OCDE, vinculou claramente efeitos ambientais nefastos da atividade agrícola com o nível de subvenções recebidos (Bonny, 1994). Um documento recente exprime bem este ponto de vista: "políticas que garantem as rendas e os preços dos produtos, além de correrem o risco de isolar os produtores dos sinais emitidos pelo mercado, podem também repercutir-se sobre o meio ambiente, por exemplo, favorecendo uma utilização mais intensiva das terras e outros insumos agrícolas, destruindo o equilíbrio ecológico e ameaçando certos bens de interesse público como uma paisagem rural agradável" (OCDE, 1993:7). A manutenção da renda do produtor por meio de garantia institucional de preços vai fomentar a corrida tecnológica independentemente das necessidades reais da demanda e sem incorporar os danos ambientais aos custos de produção. “Mais recursos, nomeadamente a mão-de-obra, foram retidos no setor agrícola que teria sido o caso se a adoção de programas de reforma estrutural não tivesse sido adiada ” (OCDE, 1994:9).

2.2. A escola do controle corporativista da oferta "Pela primeira vez em dois séculos as sociedades industrais colocam em dúvida o benefício dos progressos técnicos, para a indústria e a fortiori para a agricultura" A frase, de aparente inspiração "frankfurtiana", escrita por Michel Debatisse num livro publicado em 1983, longe de convidar a uma crítica dos modos de organização da vida social então existente, ao contrário, procurava mostrar que o desespero não se justificava. Ao menos no que se referia à agricultura, a Europa e a França em particular, tinham ainda muito a ensinar ao restante do mundo acreditava, vinte anos depois, o autor da Revolução Silenciosa. A crítica deste ex-presidente do CNJA, da FNSEA e ex-ministro não é propriamente à PAC, mas às tentativas permanentes de moderar o ritmo de crescimento da oferta. A Europa começa a fraquejar quando em vez de se preocupar em produzir cada vez mais volta-se ao controle da oferta. Não que os excedentes sejam desejáveis: mas a Europa pode ocupar um lugar no mercado internacional tão importante que deveria obrigar seus dirigentes a encarar palavras como cotas, surplus e excedentes como vindas do passado. Existe no Continente uma "produção e uma produtividade que podem ainda crescer em proporções impressionantes" (Debatisse, 1983:15). Produzir


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mais e mais é o verdadeiro grito de guerra deste setor. Qualquer tentativa de limitar a produção é expressão de capitulacionismo (Debatisse, 1983:15). Em pleno início dos anos 1980, num momento portanto em que os excedentes já eram enormes e apenas um ano antes de ser adotada a política de cotas leiteiras, Debatisse, (1983:175) não hesita em decretar: "surplus ? Le mot est à bannir" (49) Até recentemente, a PAC só era criticada por este setor naquilo em que feria os interesses da agricultura francesa: •

por um lado, pela incapacidade de a Comunidade Européia dotar-se de moeda única capaz de suprimir as distorções que as taxas nacionais de câmbio imprimiam à concorrência. Os montantes compensatórios monetários permitiram que os países de moeda forte tornassem seus produtos agrícolas competitivos basicamente em virtude de um mecanismo de natureza cambial, como foi visto na parte I deste trabalho;

por outro lado, pelas ajudas nacionais (50) que, igualmente, distorciam a concorrência intra-européia e que, juntamente com as distorções cambiais, fizeram da Alemanha a terceira potência cerealífera da Europa, em detrimento das aspirações francesas. Se em 1993, contrariamente ao que sustentava dez anos antes, Debatisse já reconhecia a existência de excedentes, sua causa estava no fato de "desenvolveram-se artificialmente agriculturas pouco competitivas" (Debatisse, 1993:16).

Esta reticência de Debatisse em criticar o modelo de política agrícola que ele mesmo contribuiu a gerar não é partilhada por todos seus companheiros. Nas Resoluções do 48º Congresso da FNSEA existe o claro reconhecimento de que "...uma página da história da agricultura, de uma forma de produzir e de vender está definitivamente virada...", que "a 'revolução' agrícola e agro-alimentar que se anuncia ultrapassará amplamente aquela conhecida como 'silenciosa' dos anos 1950-1960" e que o "modelo de agricultura de produção intensiva, estandartizada e protegida" deverá mudar. 49

“Excedentes ? Vamos banir esta palavra ” 50 Convém lembrar que o FEOGA possui duas seções, uma das quais responsáveis pela política de preços (a seção garantia) a outra pela de estruturas. É sobretudo na política de estruturas que os Estados nacionais têm maior espaço de atuação, os mais ricos não somente introduzindo ajudas totalmente fora do orçamento europeu, mas sendo capazes de aproveitar todas as parcerias que a Comunidade oferece neste sentido.


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Por mais que os autores das resoluções do 48º Congresso reúnam uma série de citações que indicam uma certa distância da FNSEA com o produtivismo desde 1986, são ao mesmo tempo obrigados a reconhecer que "demoraram muito a admitir praticamente que era preciso mudar esta lógica cada vez mais inadaptada" (FNSEA, 1994:8). Em resumo, a crítica dirigida à antiga PAC por esta corrente é ambígua: por um lado, reconhece que houve uma "euforia mal controlada", uma "frenesia" que provocou "abusos prejudiciais no plano ecológico" (Jacob, 1994:46). Neste sentido, seria importante reformar a PAC, ajustá-la sem entretanto "destruí-la e colocá-la em dúvida quanto ao fundo e a seus princípios" (Lacombe, 1994:13). O prefácio ao livro de Christian Jacob, escrito por um dos mais importantes dirigentes da FNSEA, mostra bem a natureza da crítica que este setor faz a antiga PAC: "Era útil moderar a intensificação para uma melhor coerência agronômica: era preciso desenvolver 'uma agricultura mais autônoma e econômica'...Mas não havia nenhuma -razão de se colocar em questão a política de preços, a organização dos mercados e a preferência comunitária" (Lacombe, 1994:1314).

2.3. A escola do controle distributivista da oferta Não poderia ser maior o entusiasmo com que a Confédération Paysanne recebeu as propostas de reforma da Política Agrícola Comum vindas do Comissário Mac Sharry em fevereiro de 1991. A matéria publicada em Campagnes Solidaires, jornal da organização sindical, retrata bem este clima: “parece que estamos sonhando ”, quando ouvem da boca do Comissário Agrícola da época as constatações críticas sobre as quais têm longamente insistido: sistema desigual das sustentações (80% das ajudas destinam-se a 20% dos agricultores), forte aumento do orçamento do FEOGA no momento em que a população agrícola ativa da CEE diminuiu 35% entre 1975 e 1989 e que seu poder de compra não aumentou (Berhocoïrigoin, 1991:5) A orientação da proposta do comissário europeu em 1991 é um verdadeiro manifesto anti-Mansholt: Mac Sharry começa falando da necessidade de se manter um número suficiente de agricultores no campo. Manifesta a importância de ajudas que sejam


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limitadas por um teto (51). O entusiasmo da Confédération Paysanne (que chegou a ser recebida por Mac Sharry durou pouco. Lançadas em 31 de janeiro, as propostas do comissário europeu foram rejeitadas Conselho de ministros nos dias 4 e 5 de fevereiro de 1991. Em entrevista que me foi concedida em 1995 por Gabriel Dewalle, dirigente da Confédération Paysanne, ele explica que, apesar de algumas divergências as idéias de Mac Sharry (por exemplo, sobre a exigência de pousio, contra a qual todas organizações agrícolas se insurgem, ao menos na França), o fundamental era que, pela primeira vez, a questão das desigualdades na distribuição dos recursos públicos era reconhecida pelos responsáveis agrícolas em Bruxelas. E, em última análise, aí se encontra o eixo da crítica deste setor ao que foi a PAC até o momento de sua reforma. A tão propalada capacidade de inovação da agricultura francesa apoiava-se num sistema prejudicial tanto para a maioria dos agricultores como para a sociedade. Do ponto de vista dos agricultores, por mais que o desempenho produtivo da agricultura parecesse notável, o fato é que os ganhos de produtividade tornavam-se cada vez mais caros. O relatório do Congresso de 1990 (Confédération Paysanne, 1990:4) constata: "a parte da renda líquida no produto bruto diminui incessantemente (52% em 1960, 43% em 1970, 26% em 1980) enquanto que a parte do capital necessária para o produto bruto tem aumento constante (32% em 1960, 41% em 1970 e 54% em 1980). Os próprios ganhos de produtividade tornam-se assim cada vez mais custosos e inacessíveis". Pago por recursos públicos, este aumento de produtividade embute dois graves problemas. Primeiramente, ele concentra-se em apenas algumas regiões e num setor minoritário de agricultores e o relatório do Congresso de 1991 (Confédération Paysanne, 1991:8) não hesita em utilizar as informações fornecidas neste sentido pelo comissário Mac Sharry que "reconhece que os agricultores em melhor posição dispõem de uma renda por pessoa três vezes mais elevada que a dos camponeses menos favorecidos. Na França, no período de 1982 a 1984, o Resultado Bruto do Estabelecimento médio por Unidade-Trabalho-Ano familiar dos 15 departamentos com renda mais elevada representava 3,8 vezes o dos 15 departamentos mais desfavorecidos. Entre 1986 e 1988, esta distância aumenta ainda mais, de 1 para 4". 51

Contrariamente ao que acabou sendo adotado: os pagamentos diretos não têm um limite prédefinido.


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Neste mesmo sentido, Bourgeois (1994:31) mostra que enquanto 19% da renda agrícola global fica com 580 mil estabelecimentos, metade da renda vai para apenas 17% deles (em 1980 eram 21% os estabelecimentos que detinham metade da renda). Mais grave: em termos absolutos, estes maiores estabelecimentos que detinham 50% da renda setorial eram 158 mil em 1980 e apenas 100 mil em 1989. Além disso, do ponto de vista da sociedade como um todo, por mais que o consumidor pudesse beneficiar-se, num primeiro momento, destes progressos nos rendimentos da terra e na produtividade do trabalho - sob a forma de redução nos preços alimentares - ele ia acabar pagando ainda mais caro pelas formas como este suposto benefício era alcançado. Com efeito, afirma o relatório do Congresso de 1991 (Confédération Paysanne, 1991:8): "Os modos atuais de cálculo de rentabilidade econômica dos investimentos não levam em consideração os custos sociais e ecológicos induzidos pela atual política agrícola. O consumidor vê o preço dos gêneros alimentícios de base diminuir, mas ao mesmo tempo ele percebe que o preço da água que bebe vai dobrar ou triplicar, que o teor das águas dos lençóis em nitratos e pesticidas torna obrigatórios tratamentos de purificação muito custosos" Todas as medidas empregadas para controlar tanto os excedentes como os gastos públicos tiveram efeitos contrários aos desejados. Entre elas as duas mais importantes foram as referentes aos cereais e ao leite. A partir de 1985, para controlar a produção e os gastos com a sustentação dos preços dos cereais, a Política Agrícola Comum introduziu os estabilizadores monetários, ou seja, um sistema pelo qual os produtores seriam responsabilizados por ultrapassarem uma certa quantidade garantida. Assim, se a safra européia superasse 160 milhões de toneladas, os preços garantidos cairiam 3% para cada ponto percentual de aumento da produção (Roger, 1993:85). Para a Confédération Paysanne (1991:4) este sistema era injusto porque não havia qualquer “responsabilização individual dos produtores ”: todos eram atingidos da mesma maneira pelo esforço de contenção da produção, independentemente da escala produtiva. Da mesma forma, as cotas de produção de leite não são adequadas pois "...congelam de forma arbitrária os direitos a produzir sem levar em conta a dimensão social da produção".


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Se para os liberais o equívoco foi a excessiva intervenção do Estado, se para os corporativistas o erro veio do capitulacionismo diante das possibilidades de expansão da agricultura francesa, para a corrente distributivista a PAC foi condenada pela natureza concentradora do apoio à produção e do estímulo incessante à busca de rendimentos e de produtividade cada vez maiores.

3. Rendas, preços e ajudas: em direção a outro modelo Os franceses costumam ser bem mais discretos que os norte-americanos quando se trata da vida pessoal de figuras públicas ou mesmo do homem comum. Apesar disso, é impossível que dentro de algum tempo a imprensa não comece a divulgar - como acontece com freqüência nos Estados Unidos - casos de indivíduos que receberam cheques na faixa de US$ 500 a 600 mil a título de ajuda no quadro da nova política agrícola comum. Para um país que se aproxima da faixa de 3,5 milhões de desempregados, não será fácil explicar que um proprietário de terras receba tal soma (como ocorre na região cerealífera perto de Paris) como prêmio pela não utilização de parte de seus recursos produtivos. É

claro

que, teoricamente,

os pagamentos

diretos

podem

associar-se a

“condicionalidades ” que os justifiquem socialmente e não os façam aparecer como a simples contrapartida do relevante serviço prestado que consiste em não produzir. O próprio documento da OCDE (1994:9) sobre o tema insiste neste aspecto: as ajudas diretas são um meio de realizar o ajustamento estrutural da agricultura com “o mínimo de reviravolta (bouleversement) social ” e embora o essencial seja a “ligação direta entre a compensação e as atividades de ajustamento estrutural dos beneficiários ” são admitidos também o cumprimento de exigências (o que os franceses chamam de cahier de charges) que liguem esta renda a serviços de natureza ambiental (ecocondicionalidades). Ocorre que as unidades mais aptas a receber uma remuneração pelo atendimento a serviços de natureza ambiental não são aquelas em que os pagamentos diretos têm se concentrado. Bertrand Hervieu – professor e pesquisador da Fondation Nationale des Sciences Politiques e que desempenhou papel decisivo na adoção dos Contratos Territoriais de Exploração, citados na introdução a este trabalho – realizou, com Jean Viard uma


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pesquisa de opinião sobre a imagem que têm os franceses a respeito dos campos e das províncias. Constatam que “é por seu sentimento positivo sobre a paisagem que os franceses são favoráveis às políticas agrícolas, porque para eles, o camponês é antes de tudo, aquele que torna atraente as paisagens que eles amam ” (Hervieu e Viard, 1996:31). Por outro lado, os autores mostram igualmente que menos de um quarto da população francesa acredita que sua agricultura seja excessivamente ajudada pelos poderes públicos europeus. Como conciliar estas informações, perguntam-se Hervieu e Viard (1996:31, 32) ? “postas lado a lado, elas nos dizem que nós aceitamos as ajudas à agricultura porque as concebemos como um prêmio aos que valorizam os espaços e não como um prêmio à produção. É provável que amanhã, nas sociedades que se dirigem para a redução generalizada das intervenções públicas, seja essencialmente por este caminho que os agricultores poderão conservar a legitimidade dos fundos públicos consideráveis que recebem...é para isso que a opinião pública está hoje preparada, enquanto que as políticas agrícolas comuns (52), geralmente orientadas em termos de prêmio à quantidade ou de compensação por quantidades não produzidas, não estão nesta lógica ”. Estas observações ajudam a entender que os grandes produtores de grãos foram os primeiros a recusar a prática do “congelamento ” (gel) de terras compensado por ajudas, sob o argumento de que não queriam transformar-se em assistés sociaux (53). O que não deixa de ser irônico, quando se trata de um setor que, até então, só pode se desenvolver graças aos generosos subsídios públicos com que contou. Até 1992, entretanto, como vimos na primeira parte, estes subsídios podiam não aparecer enquanto tal, já que se escamoteavam nos preços garantidos que, embora inteiramente subvencionados, transmitiam a sensação de que os produtores viviam exclusivamente do que lhes pagava o mercado. Agora não: a ajuda foi "descasada" (découplée, delinked) dos preços. É claro que não se trata apenas de mudança na técnica, mas na própria natureza da sustentação da renda agrícola e portanto de sua legitimação social. As ajudas diretas

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Os autores empregam a expressão no plural. 53 Além disso, os cerealicultores já vinham sofrendo queda de renda acentuada há alguns anos e sabiam que a nova política agrícola não iria permitir a inversão desta situação declinante (Bourgeois, 1994:30).


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passam a desempenhar um papel decisivo na renda agrícola. Segundo o cálculo de dois pesquisadores do Ministério da Agricultura, as ajudas diretas que representavam 10% do excédent brut d'exploitation em 1991, chegariam a 38% deste total em 1996 na França (Blogowski e Boyer, 1994:125). Em 1994/95, segundo ano de vigência da Reforma, as subvenções públicas representaram em média 10% do faturamento e nada menos que 35% da renda agrícola do Continente (Commission Européenne, 1997:49). Na França, em 1996, nas unidades produtivas de “grandes culturas ” (cereais, oleaginosas, e proteoleaginosas) as ajudas diretas representaram nada menos que 57% do “excédent brut d ’exploitation ” cifra que no caso da carne vai a 66%. Estas porcentagens podem ultrapassar 100% quando relacionadas à renda líquida dos produtores (Chambres d ’Agriculture, 1997, 1:8). E a concentração destes recursos é também impressionante: em 1995, os 4.474 produtores franceses de grãos com área superior a 200 hectares receberam do orçamento europeu, um cheque, em média, de 725.723 francos, o que corresponde a pouco mais de 120 mil dólares para cada (54). Enquanto isso, aos produtores com área entre 20 e 30 hectares foi dado um cheque em média mais de dez vezes menor, de 61.163 francos ou 10 mil dólares, bem menos de um salário mínimo mensal. Estas cifras são ainda maiores na Grã Bretanha, onde se localiza a família que mais se beneficia com os pagamentos diretos vindos de Bruxelas: a da Rainha Elizabeth I... Qual a natureza destas ajudas diretas ? Que não se trata de um auxílio social (como o seguro desemprego ou os programas de renda mínima) é claramente demonstrado pelos seus montantes e pela sua concentração. Em comum com os programas de renda mínima, elas têm o fato de dissociarem explicitamente produção e renda. Mas ao contrário da renda mínima, elas compensam as perdas pela não utilização do capital e da terra e é por esta razão que foram batizadas, como foi visto na parte I, por Pierre Coulomb (1991) como rendas fundiárias orçamentárias. Na verdade, a engrenagem produtiva da agricultura européia tem nas ajudas diretas uma peça decisiva, sem a qual é difícil imaginá-la funcionando. Ao mesmo tempo, estas ajudas beneficiam quantidades cada vez menores de agricultores e elas terão que se justificar por razões que não se referem estritamente à produção agrícola – ou, pior, 54

Cálculo feito com base na tabela da p. 45 da publicação do Ministère de l ’Agriculture, de la Pêche et de l ’Alimentation, 1996.


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à não-produção agrícola ! - sem o que serão vistas como satisfação a interesses corporativistas e particulares. Se em 1994, um dos maiores especialistas franceses em contabilidade nacional afirmava não ser fácil compreender a natureza precisa das ajudas diretas (Muller, 1994:114), nos documentos mais recentes da Comissão européia a segurança a respeito não parece muito maior. A própria Comissão européia o reconhece na Agenda 21, quando, num tom quase de desolação, pouco freqüente em documentos oficiais, reconhece: “No conjunto, como conseqüência de suas diversas evoluções, a política rural na União aparece ainda como uma justaposição de uma política agrícola de mercado, da política estrutural e da política ambiental, dotadas de instrumentos bastante complexos e desprovidas de toda coerência geral ” (Communautés européennes, 1997:28) Vejamos a seguir a posição das principais correntes de pensamento ligadas ao tema nos primeiros anos subseqüentes à Reforma.

3.1. Os liberais Não existe, no interior da agricultura, na França, qualquer corrente organizada que possa ser definida rigorosamente como liberal. Nos meios profissionais e sindicais agrícolas ninguém levantou-se para defender o GATT ou mesmo a idéia de alinhar os preços europeus com os internacionais (55). Apesar disso, podemos encontrar, sobretudo entre os representantes dos cerealicultores, um modo de encarar a política agrícola que se aproxima, sob vários aspectos, do liberalismo econômico. Assim a exposição desta corrente de pensamento será dividida em três partes. Em primeiro lugar (item 3.1.1., logo abaixo) vamos examinar a posição da OCDE e de um grupo de intelectuais holandeses que trabalham com o antigo comissário Sicco Mansholt e cuja filosofia liberal não é atenuada pela necessidade de defender um segmento específico. Veremos também, a posição das correntes liberais quanto à relação agricultura-meio ambiente (item 3.1.2.). Em seguida (item 3.1.3.) veremos em que consiste o “liberalismo ” dos cerealicultores na França.

55 Um dos poucos artigos que encontrei com posições francamente favoráveis ao GATT foi de um dirigente sindical da União dos Quadros e Engenheiros de Force Ouvrière que lançou a palavra de ordem: "ajuda-te e o GATT te ajudará" e que se insurge contra o que chama de "particularismo camponês" (Bouchet, 1993)


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3.1.1. O liberalismo "puro e duro" A Austrália e a Nova Zelândia são as meninas dos olhos dos especialistas agrícolas da OCDE. Em dois estudos de meados da década (OCDE 1994a e OCDE 1994b) elas aparecem como o grande exemplo de política de ajustamento bem sucedida. O relatório de 1994 da instituição precisa os motivos da preferência: diferentemente dos países signatários do Tratado de Roma, da Suécia, ou do Japão que procuram - ao menos teoricamente - organizar suas agriculturas para atingir o objetivo de paridade de renda do setor com outros segmentos profissionais, na Austrália e na Nova Zelândia "o objetivo é a eficiência e não a repartição da renda" (OCDE, 1994a:219). E é claro que, tratando-se de eficiência, não há melhor juiz do que o mercado. Neste sentido, do ponto de vista da OCDE, mais grave que o montante de gastos públicos com a sustentação da renda agrícola - que mesmo em ligeira queda desde 1990 atingem ainda, segundo os métodos de cálculo da instituição, US$ 163 bilhões em 1993 (OCDE, 1994a:124) - é a distorção do poder alocativo do mercado. Assim, as agriculturas de todos os países capitalistas avançados (com a exceção da Austrália e da Nova Zelândia) devem submeter-se a políticas de ajustamento estrutural que permitam ao mercado recuperar capacidade de nortear o uso dos recursos no setor. Para isso, o essencial é que atinjam os patamares de preços estabelecidos no mercado internacional. Trata-se sem dúvida de solução traumática e de pesadas conseqüências sociais. O fundamental, entretanto - e este é o aspecto mais importante do liberalismo - é que conseqüências sociais desta opção pelo mercado não sejam enfrentadas com métodos fundamentalmente econômicos. Promover a retenção de mão-de-obra no setor agrícola para evitar o desemprego acaba tendo um custo superior – em termos de produtividade e eficiência - ao que seria gasto com medidas de ajuda aos desempregados. Por mais custosos que sejam os programas sociais, ambientais e territoriais destinados a atenuar os efeitos nefastos de uma opção pelo mercado, eles são menos danosos que a tentativa de fazer da agricultura um meio de se atingir objetivos que não têm natureza propriamente econômica, ou seja, onde os critérios de eficiência alocativa não sejam os parâmetros fundamentais no uso dos recursos.


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Por esta razão os liberais são inteiramente favoráveis aos programas de sustentação direta da renda e sem vinculação com o processo produtivo. A contrapartida é que se abandone inteiramente qualquer forma de sustentação ou de intervenção sobre os preços agrícolas. Um grupo de especialistas dirigido por Sicco Mansholt (apud Jacquet, 1993:65-66) fez a seguinte contra proposta ao plano do comissário Mac Sharry: "A sustentação da agricultura poderia ser feita sobre o princípio de uma ajuda fixa por hectare de toda produção ligada ao solo. "As principais conseqüências seriam as seguintes: •

"o abandono da sustentação de preços

"a separação entre a produção e a renda dos produtores

"a formação livre dos preços sem entraves à importação nem cotas de produção, suprimindo os excedentes de mercado (isso não se refere aos estoques de segurança). É preciso observar aqui uma certa reserva quanto à aplicação livre do mecanismo dos preços e quanto à influência das grandes multinacionais sobre a formação dos preços e a gestão da produção

"a ajuda aos agricultores reveste um sentido econômico pela compensação parcial das despesas fixas, garantindo a estabilidade e a continuidade do setor

"a ajuda por hectare permite à produção agrícola adaptar-se às novas exigências que a sociedade impõe ao setor. A atribuição das terras a fins não agrícolas, por exemplo, silvicultura, contratos de gestão, uso para fins recreativos torna-se possível pelo fato de que o agricultor é colocado diante da escolha seguinte: cultivar os produtos tradicionais a preços muito baixos ou encontrar outras destinações para suas terras ou ainda cultivar novos produtos (matérias-primas de base para a indústria)

"o caráter global e simples deste sistema torna-o facilmente aplicável e não coloca problema de controle

"um último argumento - mas não o menos importante: um sistema de preços mundiais livres não influenciado por subvenções à produção e o 'dumping' pode desembocar em preços mundiais estáveis e mais elevados. E isso é favorável a todos, sem esquecer os produtores dos países em vias de desenvolvimento. Isso lhes permitiria desenvolver as estruturas de suas próprias agriculturas".

O sistema proposto por Mansholt é bem diferente não só do aventado por Mac Sharry, mas também do que acabou sendo adotado na reforma de 1992: para Mansholt e seus


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colaboradores não se trata de fixar a obrigatoriedade do pousio para certa proporção de terras (como acabou sendo decidido e como já propunha Mac Sharry), mas de estabelecer uma ajuda fixa por hectare e de abrir inteiramente a agricultura européia ao mercado mundial. A ajuda condicionada obrigatoriamente ao pousio coloca, na opinião de Mansholt e seus colaboradores (apud Jacquet, 1993:67), problemas de controle incontornáveis: "Um exemplo: quem controlará se um agricultor português ou italiano coloca em pousio 15% de sua superfície cerealífera quando sua produção ultrapassou 92 toneladas (56) de cereais durante os anos de referência de 1989, 1990 e 1991? Imaginemos 100 mil agricultores que não possuem nenhuma contabilidade e mal figurando nos registros, tendo que preencher honestamente numerosos formulários sobre a base dos quais serão efetuados controles, etc." Já a ajuda generalizada por hectare não traz qualquer problema de controle e tem a vantagem de poder associar-se à inteira desregulamentação do mercado de produtos agrícolas. Os produtores capazes de enfrentar a concorrência internacional poderiam fazê-lo sobre a base dos preços mundiais. Aos outros restariam as alternativas de encontrar produtos energéticos ou certos nichos de mercado agrícola ou ainda atividades que a OCDE classifica como de amenidades rurais: agroturismo, por exemplo, cuidados com o meio ambiente. Trata-se portanto de reconhecer e assumir a dualização da estrutura agrícola. Esta dualização aliás deve ser despojada de qualquer caracterização moral negativa: ela corresponde à realidade sociológica da agricultura européia hoje. Segundo a OCDE (1994b, 21) existem hoje, nos países capitalistas avançados, duas categorias de agricultores: "A primeira reúne os numerosos agricultores que retiram uma grande parte, senão a quase-totalidade de suas receitas de fontes não agrícolas e representam uma parte relativamente fraca da produção e da renda agrícolas. Estes agricultores, confrontados a necessidades cada vez maiores em capital (impostas pela agricultura moderna) transferiram o essencial de suas atividades para outros setores ou - quando ficam na terra - obtêm rendas relativamente vbaixas. Uma segunda categoria de agricultores reúne as grandes unidades com vocação comercial". A dualização da agricultura longe de ser uma distorção indesejada, pode trazer efeitos econômicos e ambientais positivos. Sob o ângulo econômico trata-se de renunciar a


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qualquer tentativa de imprimir existência significativa às unidades que hoje têm um peso reduzido na oferta global. Sob o ângulo ambiental, o importante é que estas unidades se convertam ao oferecimento de produtos e serviços onde a preservação ambiental terá um peso significativo. Não se trata de condenar ao desaparecimento os que têm expressão agrícola insignificante. Aliás, para este setor, a OCDE (1994b) apoia-se em uma série de estudos nacionais para mostrar que os efeitos do ajuste lhes são menos prejudiciais do que se poderia imaginar à primeira vista: exatamente pela pouca importância que a agricultura possui no interior destes estabelecimentos, a aplicação da política de ajuste não deve trazer grandes problemas em torno de abandono da atividade e de êxodo rural. 3.1.2. A visão liberal da sustentabilidade

Mas será que esta estrutura dual - ambientalmente benéfica nas áreas detidas pelos menores agricultores - não será fatalmente poluidora ali onde as grandes unidades produtivas de cereais, oleaginosas, carnes e leite vão concentrar-se ? (57Em 1987 um deputado ecologista belga manifestava o temor de que se desenvolvesse na Europa agrícola

"...uma agricultura com duas ou três velocidades: com corredores ecológicos e terras agrícolas ecologicamente bem geridas, mas mergulhadas num oceano de terras agrícolas industrializadas" (Roelants du Vivir, 1987:171) Pode-se dizer que boa parte da pesquisa agronômica hoje na Europa dedicase à tentativa de vencer este desafio. A idéia de que a reversão dos danos ambientais provocados pela agricultura altamente intensiva teria que passar 56 Os agricultores que produzem até 92 toneladas equivalentes de cereais estão livres da obrigação de pousio, como foi visto na primeira parte. 57 Retomo aqui, alguns trechos publicados em Abramovay, 1994. 58 Parece-me um pouco forçada a idéia de Spiertz e Vereijken (1994:116) - dois importantes pesquisadores do Centro de pesquisas em agrobiologia de Wageningen, Holanda - de que a linha de desenvolvimento agrícola "orientada para o mercado mundial" enfatiza exclusivamente o lucro e julga que "os outros interesses e os outros valores da sociedade têm apenas um lugar secundário..." O que esta maneira de colocar as coisas escamoteia é que existe uma visão liberal da sustentabilidade e uma proposta dualista de sustentabilidade. 59 Tous gros céréaliers.


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necessariamente pela adoção da agricultura biológica, da rotação de culturas, da complementaridade entre agricultura e pecuária, em suma, pela ruptura com as técnicas e as bases econômicas do sistema até aqui vigente parece pouco verossímil. Isso não significa que a poluição seja a contrapartida inevitável da opção por basear a oferta agrícola nas grandes unidades produtivas (58). Significa que estas unidades possuem uma imensa capacidade de adaptação às exigências sociais e econômicas da integridade ambiental. Pesticidas melhor dirigidos a finalidades específicas e de maior biodegradabilidade, utilização de variedades mais resistentes a certas doenças (ainda que de rendimento um pouco menor que as mais produtivas), desenvolvimento da engenharia genética e, portanto, possibilidade de introduzir nas plantas formas de resistência a certas doenças e ataques, adaptação da fertilização sintética às necessidades precisas das plantas (Bonny, 1993), modificação do teor alimentar das rações com o objetivo de reduzir a carga de minerais despejada no ambiente, utilização da informática que permite ao agricultor organizar sua atividade em função do conjunto da gleba em produção e não mais sob a ótica do produto (Wahl e Nicaud, 1991), estas transformações são inteiramente compatíveis com o funcionamento das grandes unidades produtivas e seu emprego tende a se generalizar. A pesquisa agronômica recente tem procurado antes de tudo alternativas que permitam aos sistemas produtivos altamente especializados reduzirem seu impacto ambiental: são técnicas bastante sofisticadas, que exigem uma gestão muito precisa por parte do agricultor e, em muitos casos importantes investimentos. Na Holanda, um relatório do ministério da Agricultura previa a desaparição de um quarto dos agricultores até o final do século em virtude de sua incapacidade em fazer investimentos de natureza ambiental" (Alphandéry et al. 1991:34).

O estudo prospectivo dos especialistas holandeses do Conselho Científico para a Política Governamental prevê uma sensível redução no consumo de nitrogênio e de produtos fitossanitários na agricultura européia até o ano


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2015. As estimativas deste trabalho baseiam-se em cenários que levam em conta diferentes fontes de pressão social sobre a formação da política agrícola. Seja qual for a política adotada no quadro dos cenários propostos pelo estudo – e rapidamente descritos no início da parte II deste texto, acima - o uso global de nitrogênio cai das 11 milhões de toneladas anuais usadas hoje para um patamar situado entre 2 e 2,5 milhões de toneladas, sem prejuízo sensível da produção. O consumo de nitrogênio por hectare também tende a sofrer uma redução importante (WRR, 1992:92). Quanto aos produtos fitossanitários, o estudo prevê uma redução de 400 mil toneladas (de matéria ativa) para um leque que vai de 10 a 80 mil toneladas, dependendo do tipo de política adotada (WRR, 1992:17-18). Aqui igualmente, a queda no consumo de produtos fitossanitários por hectare deve ser muito significativa.

A principal conclusão do estudo do WRR é uma síntese da ótica dualistas de construção da agricultura sustentável:

"Os resultados do presente relatório oferecem ao menos pontos de referência para o futuro de uma agricultura que se desenvolveria na Comunidade Européia segundo um modelo duplo (grifos meus, R. A.). Primeiramente uma agricultura altamente produtiva que satisfaz o grosso da demanda alimentar sobre uma pequena superfície, com os melhores meios técnicos. Para tanto, usam-se os mais avançados princípios ecotecnológicos e recorre-se ao máximo à ajuda biológica (graças às espécies persistentes, aos nurientes vegetais, à luta biológica, às boas rotações, às produções de segurança para reduzir ao mínimo as perdas de minerais...)...Em segundo lugar uma agricultura muita extensiva pode ser praticada sobre uma grande superfície, com eixo na gestão da paisagem e das formas de agricultura que mantenham ou estimulem os valores naturais e os valores paisagísticos" (WRR, 1992:138). 3.1.3. O liberalismo temperado “Que se desmantelem todas as subvenções ”: pode parecer estranho que com tal palavra de ordem, a principal entidade representativa da cerealicultura na França tenha montado ferrenha oposição à assinatura dos acordos do GATT em sua parte agrícola. Embora os cerealicultores façam parte da FNSEA - e com peso não deprezível - eles representam um setor com interesses próprios, relativamente bem


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localizados e com uma elaboração que não se confunde necessariamente com a da entidade sindical. Situada basicamente em torno da região parisiense, a produção especializada de cereais repousa sobre terras de excelente qualidade agronômica e numa estrutura de consideráveis extensões territoriais. Em torno desta região que Neveu (s/d:36) chama de "cereais e grandes culturas" são obtidas as maiores rendas agrícolas, segundo as estatísticas agrícolas do Ministério da Agricultura. E, contrariamente à imagem que se tem deles habitualmente, os cerealicultores não dependem do Estado para prosperar economicamente: ao menos esta é a opinião da Association Générale des Producteurs de Blé et autres céréales Céréaliers de France, AGPB, a mais importante entidade representativa do setor. Mas que liberalismo é este que repudia os acordos do GATT (consolidados posteriormente na OMC) e o mercado mundial como parâmetro para a fixação dos preços ? Com relação ao mercado mundial, o argumento dos cerealicultores franceses é importante pois será retomado por praticamente todas as outras correntes da opinião agrícola francesa. Os preços internacionais sofrem uma dupla distorção. Em primeiro lugar, eles não podem servir de base verossímil para comparações em virtude de sua própria instabilidade. Se a taxa de câmbio refletisse as realidades econômicas nacionais de maneira adequada, a cerealicultura francesa nada teria a temer da competição mundial. Os textos da AGPB lembram sempre que, em termos de paridade de poder de compra, o dólar deveria ser cotado a F 6,53 e não a 5,80, segundo cálculos da OCDE feitos em 1991 (AGPB, 1992). Sobre a base desta taxa de câmbio, os custos de produção franceses permitiriam aos cerealicultores disputar tranqüilamente seu lugar ao sol frente a seus concorrentes norte-americanos. Em segundo lugar, os preços internacionais longe de refletirem realidades econômicas ligadas aos custos da produção e a situações de mercado, são, antes de tudo, o resultado das próprias subvenções. Nem os europeus nem os norte-americanos seriam capazes de produzir aos preços vigentes hoje sem o apoio de seus respectivos Tesouros. No caso dos norte-americanos, a Farm Bill fixou a US$ 147 a tonelada de trigo no período 1991-1995: "o preço obtido no mercado, inferior ao custo de produção, é complementado por uma ajuda ao produtor o 'deficiency payment'..." (AGPB, 1992:4).


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A um câmbio de F 6,53 os US$ 147 representam F 960, soma equivalente ao que o produtor francês de trigo recebe. Portanto, é falacioso o argumento de que os norteamericanos produzem pelo preço mundial e não os europeus. Estas são as razões pelas quais os cerealicultores franceses pedem o desmantelamento de todas as subvenções: não apenas as praticadas até 1992 na Comunidade Européia (as restituições às exportações, como visto na parte I), mas também as que existem sob a forma de ajudas diretas, isto é o deficiency payment norte-americano. E é exatamente por isso que se opõem aos acordos assinados no quadro do GATT e também às ajudas instituídas no interior da Comunidade Européia pela reforma da PAC. Tanto quanto o deficiency payment, a ajuda por hectare consolida os preços “de liquidação ” que hoje prevalecem no mercado mundial. Neste sentido - mas por razões diferentes das de Mansholt e seus colaboradores - a AGPB não aprovou as medidas tomadas no quadro da reforma da PAC. Vale a pena examinar seus argumentos: •

A redução dos preços agrícolas é errônea, pois toma como realidade econômica de mercado o resultado de uma intervenção cuja forma beneficia os Estados Unidos e prejudica a Europa e particularmente a França. Em outras palavras ninguém poderia vender pelos preços mundiais e sem subsídio. Quem o faz é porque encontrou formas de subsídios que não foram controladas pelo GATT.

A redução dos preços agrícolas fere os interesses dos países do Terceiro Mundo, já que impede que eles também entrem na corrida competitiva. É interessante notar que todas as correntes preocupam-se em justificar suas posições levando em conta supostos interesses do Terceiro Mundo.

Se os preços agrícolas fossem estabelecidos em níveis que evitassem as atuais distorções do mercado, não seriam necessárias quaisquer outras formas de ajuda. Aqui reside um ponto essencial de diferença com relação à posição de Mansholt e seus colaboradores que preconizam alinhamento em torno dos preços internacionais vigentes hoje e compensação por ajudas por hectare.

As ajudas por hectare - desnecessárias caso um preço economicamente significativo (isto é refletindo os custos de produção) fosse adotado - são


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inadmissíveis já que se vinculam à colocação obrigatória em pousio de áreas de cultivo. •

O pousio é outro ponto sobre o qual é unânime a condenação de todas as correntes da opinião agrícola. Na opinião dos cerealicultores, ao adotar esta forma de controle da oferta agropecuária, a Europa colocou-se indevidamente no "terreno do adversário" (AGPB, 1991). Trata-se de uma solução cara e que prejudica particularmente a França que com 25% da superfície cerealífera da Europa, teve que arcar com 33% da área comunitária de pousio. Além disso, há o grande risco agronômico de que os agricultores não mantenham de maneira adequada as áreas em repouso (dados os preços considerados baixos da ajuda por hectare) e que ervas adventícias prejudiciais às culturas se desenvolvam nos terrenos em pousio.

Mas é sobretudo na política de estruturas que se manifesta mais claramente o liberalismo dos cerealicultores franceses. O aparelho produtivo da cerealicultura francesa, apesar da competitividade de seus setores mais avançados, é ainda muito heterogêneo. É preciso então "tirar partido da demografia agrícola" (Benoist, 1993) para reduzir ao mínimo o peso dos estabelecimentos não competitivos. O número de agricultores próximos à aposentadoria e sem sucessores permite que se formulem políticas pelas quais as terras por aí liberadas sejam consagradas à melhoria das estruturas dos atuais estabelecimentos, isto é, ao aumento de sua extensão territorial. É somente com grandes estabelecimentos que se poderá enfrentar a competição internacional sem o recurso aos subsídios. Num artigo publicado após o encerramento das negociações do GATT ao final de 1993 , o presidente da AGPB lembra que "...todos os exemplos o mostram - da siderurgia, há alguns anos, à Air France hoje - que só se agravam os problemas sociais quando se esquecem as leis da economia e da empresa" (Benoist, 1993). Em suma, o controle da oferta agrícola não deve ser obra do Estado, mas do mercado. Como, entretanto, o mercado não funciona de maneira neutra e reflete a posição de força que nele conquistaram os norte-americanos, não se pode confiar nos preços internacionais vigentes como sinalizadores adequados para a alocação dos recursos. Caso todas as ajudas fossem suprimidas, os preços acabariam por refletir os custos de produção dos cerealicultores mais eficientes. Para que, entretanto, os produtores marginais não prejudiquem esta adequação, é necessário que se aposte na


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reestruturação produtiva que só deve permitir o desenvolvimento de estabelecimentos economicamente viáveis e que sejam capazes de respeitar as "leis da economia e da empresa". A França que, juntamente com os países do Europa do Norte, é dotada, no setor cerealífero, de estrutura fundiária já bastante concentrada, tem condições particularmente favoráveis de ocupar um lugar de destaque no mercado internacional, competindo - desde que seja de maneira leal, isto é com um câmbio adequado e com preços que reflitam custos produtivos - até com os norte-americanos. Não é por outra razão que, contra o argumento de Bruxelas de que a nova PAC só provocava perdas para os grandes produtores, a AGPB lançou - parodiando os jovens franceses que, em 1968, se opuseram à expulsão de Cohn Bendit do território nacional, sob o pretexto de que nascera na Alemanha, gritando: nous sommes tous des juifs allemands - o slogan: “somos todos grandes cerealicultores ” 59 (AGPB, 1993). Eis então outro ponto central na posição dos liberais: o ideal seria que não houvesse ajudas diretas e prêmios, que a Comissão não tivesse escolhido "o terreno do adversário" - como dizem os cerealicultores - para levar a batalha pela conquista do mercado mundial. Mas dada a escolha feita, o pior que poderia acontecer é que as ajudas diretas fossem empregadas como mecanismo de redistriuição de rendas no interior do setor agrícola. Razão pela qual a AGPB se insurge particularmanente contra a modalidade de ajuda adotada, na qual a remuneração por hectare se apóia não no cálculo individual das produtividades passadas atingidas por cada produtor - como reivindicam os cerealicultores - mas numa proporção em que 1/3 do prêmio devido é calculado sobre a base dos rendimentos nacionais e 2/3 sobre a base dos rendimentos departamentais. É claro que foi posto em ação aí um mecanismo em que a queda dos preços é menos compensada para os agricultores mais produtivos e para as regiões de melhor desempenho. Segundo cálculos que me foram fornecidos pelo senhor Etienne Lapèze, vice-presidente da FNSEA, 22 departamentos franceses tiveram suas rendas agrícolas médias reduzidas - exatamente os que tinham nas grandes culturas um peso econômico maior - enquanto que outros 67 ganharam com as medidas adotadas em 1992. Em suma, pode parecer estranho classificar como adepta do liberalismo uma força social tão fortemente apoiada na sustentação pública de sua renda. Os cerealicultores


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franceses são, em última análise, o segmento mais vulnerável no quadro da atual política. São eles que têm recebido as somas mais importantes como pagamentos compensatórios às quedas nos preços dos grãos. Portanto não é de se estranhar que evoquem o mercado como sua salvação. Não o mercado corrompido tal como existe hoje, mas um mercado utópico em que uma taxa de câmbio justa lhes permitisse fazer frente à concorrência internacional sem qualquer subvenção. Enquanto este mercado não se organiza, eles são seguramente o setor que mais vem abocanhando verbas públicas no quadro da Reforma da PAC e – exatamente por isso – o mais ameaçado de ver secar a fonte de onde tira seus ganhos.

3.2. A escola do controle corporativista da oferta "A única coisa que não teve no nosso Congresso é: 'se não for como eu quero, então eu vou embora'. Entre nós, isso não existe. A imprensa sempre espera a divisão na FNSEA e ela nunca acontece". Foi com uma ponta de orgulho que o senhor Etienne Lapèze, vice-presidente da FNSEA respondeu à questão que lhe coloquei muito diretamente: "é nítido que as divisões entre vocês são imensas, os cerealicultores têm posições muito diferentes dos setores que preconizam não só que as ajudas comunitárias permaneçam, mas que elas sejam limitadas a uma certa quantidade. Como é possível que todos se mantenham na mesma instituição" ? De fato - e o senhor Lapèze concordou inteiramente com esta observação - foi-se o tempo em que a unidade do sindicalismo dito majoritário podia ser expressa em análises e proposições claras. A crise do modelo que a FNSEA ajudou a criar explica que sua coesão tenha mudado de natureza. Por mais antipático que seja o termo corporativismo, é muito mais pelo papel que ocupam nas instituições públicas responsáveis pelos rumos da agricultura, que em torno de propostas específicas, que se une o “sindicalismo majoritário ”. É bem mais difícil, então, expor a posição da FNSEA que a das outras correntes do debate. Primeiramente, pelo fato, como bem lembrou o senhor Lapèze, de que, contrariamente à AGPB, a FNSEA não cuida só de um setor, mas, supostamente ao menos, de todos os agricultores e de toda a agricultura. Portanto, o leque de temas que ela aborda é imenso e não seria possível tratar de todos neste texto. Em segundo lugar,


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o fato de que em seu interior haja posições muito diferentes dificulta a tarefa de tentar imprimir um mínimo de coerência a seu ponto de vista. A exposição aqui será organizada em torno de três questões. Em primeiro lugar tratase de saber quais os meios e dentro de que limites deve-se desenvolver uma política de controle da oferta. Vimos que, para a escola liberal, cabe ao mercado desempenhar este papel. Embora se possa encontrar esta opinião no interior da FNSEA, não é neste sentido que apontam os documentos dos Congressos imediatamente posteriores à Reforma da PAC, como veremos abaixo. A segunda questão refere-se às ajudas: é o tema de exposição mais difícil tanto por sua própria complexidade técnica quanto pelo fato de que as divergências internas desembocam em formulações por vezes quase incompreensíveis. O terceiro tema refere-se à concepção que se tem do potencial de crescimento que pode ser reservado à agricultura: contrariamente à questão das ajudas, neste aspecto é grande tanto a convergência com os liberais como a unidade interna desta corrente no sentido de que à agricultura francesa cabe um papel decisivo no mercado internacional. E é aí que se manifesta talvez a mais séria divergência com as correntes que, como a Confédération Paysanne, não associam a prosperidade agrícola à ampliação do lugar da Europa nos mercados internacionais. 5.2.1. Interprofissão versus agências públicas Talvez o único ponto em torno do qual se possa encontrar uma clara unidade de pensamento entre os diferentes setores desta corrente seja a unânime rejeição das cotas como forma de regulação da oferta agrícola. No livro de Debatise de 1983, as agências públicas, implantadas para o trigo em 1936 pelo Front Populaire - e que os socialistas queriam generalizar para os mercados de produtos e de terras - são apresentadas como verdadeiras antecâmaras do coletivismo. A argumentação de Christian Jacob, em 1994, é mais moderada e sustenta que a tentativa de limitar a oferta pelo caminho administrativo das cotas tolheria a iniciativa dos agricultores e impediria a modernização e portanto a capacidade competitiva do setor. No relatório ao 48º Congresso (FNSEA, 1994:21) a mesma idéia é retomada:


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"A existência de cotas de fornecimento 'bloqueadas' (sublinhado no original), como qualquer procedimento que procura congelar de maneira durável esquemas produtivos, é portadora de uma lógica perigosa para a agricultura" Ao mesmo tempo, não se trata de entregar ao mercado aquilo que não se quer ver em mãos do Estado: quem então deve exercer este papel de, ao mesmo tempo, permitir a ampliação das vendas e controlar os mercados ? Como reencontrar coesão e coerência num contexto em que os instrumentos e os próprios objetivos que marcaram o desenvolvimento da agricultura nos últimos trinta anos se esgotaram ? O documento do 48º Congresso responde a esta questão por meio de "cinco princípios". a) Em primeiro lugar, ele recusa que os preços europeus se alinhem com os preços mundiais, já que não se pode querer que os agricultores franceses sejam competitivos com os de países que não garantem a seus produtores quaisquer direitos sociais (60). b) Em seguida pleiteia que o "mercado permita assegurar a cada produtor uma parte determinante de sua renda". O fundo desta preocupação vai exatamente no sentido contrário daquilo que propõem os cerealicultores: não se trata de permitir que só os produtores mais competitivos obtenham seus ganhos no mercado e que os outros recebam ajudas, mas de criar mecanismos para que o mercado responda por uma parte dos ganhos de todos os que praticam a agricultura. Em outras palavras, diferentemente da AGPB, uma das preocupações básicas da FNSEA hoje é que o êxodo rural seja reduzido ou até eliminado. O tema é sensível e a linguagem aí adotada será sempre obscura pois o que está em jogo, para se atingir este objetivo, são mecanismos de distribuição dos direitos de produzir e das ajudas daí decorrentes. Ora, faz parte da unidade corporativa deste setor a recusa visceral da idéia de que existam na agricultura "grandes e pequenos". Mito socialista, acusa Debatisse em 1983. Preconceito que deve "desaparecer das mentalidades", insiste 60 "Existe concorrência sã e concorrência desleal...Como o tomate francês pode resistir ao tomate marroquino se, entre os custos da mão-de-obra, existe um diferencial de um para vinte. Não se trata de impedir a importação do tomate marroquino, mas de evitar que volumes muitas vezes pequenos venham afundar todo um mercado, de tão baixo que são os preços. Paguemos os tomates marroquinos pelos preços europeus..." (Jacob, 1994:57).


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Christian Jacob (1994:51). Ora, enquanto a política agrícola baseava-se na sustentação de preços, o mito da unidade podia ser mantido. Quanto se trata de administrar direitos de entrada no mercado e de obtenção de parte dos impostos pagos pela coletividade, é inevitável que as diferenças sociais no interior do setor agrícola venham à tona como tema decisivo, mas que, ao mesmo tempo, dificilmente será exposto enquanto tal. c) E é justamente aí que a questão territorial adquire importância decisiva. Debout (em pé) sur tout le territoire é a palavra de ordem central da FNSEA. O terceiro dos princípios a partir dos quais se deve promover o controle da oferta, as délocalisations serão evitadas. Aliás, na exposição dos problemas que tem pela frente hoje a agricultura, este é o primeiro tema: como contornar “os riscos de délocalisation de certas produções vegetais (frutas e legumes) e animais (criações estabuladas) que levariam ao enfraquecimento de regiões agrícolas inteiras ” (FNSEA, 1994:11). Se os grandes produtores de trigo, insatisfeitos com os rumos da política atual, começarem a cultivar cenouras ou quaisquer outros produtos, os mercados correm o risco de se desorganizar inteiramente fazendo com que o jogo da competição acelere a eliminação social dos menores produtores. Por isso é necessário “ligar, de maneira flexível e adaptada aos diferentes casos, as produções ao território ” (FNSEA,

1994:22).

Devem

existir

mecanismos

que

possibilitem

o

desenvolvimento de unidades produtivas onde a “preocupação com a existência de pessoas, empresas e filières sobre o território [sejam] consideradas ” (FNSEA, 1994:22). Estas preocupações da FNSEA acabaram tendo um peso importante na elaboração da lei agrícola do governo socialista francês e foram incorporadas, em grande parte aos Contratos Territoriais de Exploração, em que o agricultor recebe não só pelo que produz ou deixou de produzir, mas pelas funções socialmente valorizadas de ocupação e gestão do espaço e do território. d) O quarto ponto refere-se à extensificação, definida como " “a procura da otimização no emprego dos fatores de produção, mais que a produtividade máxima por hectare ou por animal" (FNSEA, 1994:22).


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Isso já se faz hoje com as "medidas agroambientais" que acompanharam a reforma de 1992. Na França por exemplo 6 milhões de hectares recebem prêmio por pastagem (prime à l'herbe), com a contrapartida de que o agricultor reduza o rebanho e se comprometa com uma série de técnicas - em termos de lotação por hectare, por exemplo - nos cuidados com os terrenos em questão. Só na França, este programa custou em torno de US$ 230 milhões no anos agrícola de 1993/1994. e) O quinto “princípio ” fornece as pistas para que se compreenda a posição da FNSEA com relação ao que deve ser o controle da oferta agrícola. Primeiramente, é necessário estimular a contratualização agrícola. Mas nada seria mais nefasto que entregar às grandes firmas comerciais e industriais a responsabilidade de definir a política de oferta agrícola. O que propõe o documento do Congresso da FNSEA e que é exposto também no livro de Christian Jacob (1994:147-149) é que haveria uma distinção entre dois tipos de oferta. Até um certo patamar de produção o mecanismo de sustentação de preços anterior à reforma seria conservado. Qual seria este patamar ? O que permitisse o abastecimento interno comunitário e cujo escoamento não se faria nos mercados mundiais e portanto não feriria o que foi estabelecido nas negociações do GATT, que aboliram formalmente qualquer forma de “restituição às exportações ”. Neste sentido, os três pilares que formaram a PAC (preços comuns, preferência comunitária e financiamento comum) seriam ao menos parcialmente preservados. Portanto, uma parte da produção seria vendida por preço garantido e haveria um limite quantitativo, uma distribuição de direitos a produzir entre os agricultores no que se refere a esta parte. O que excedesse este limite quantitativo não deveria ser vendido de maneira anárquica no mercado mundial. O GATT proíbe que os governos subsidiem as exportações. Mas ele não proíbe que os produtores se organizem para exportar. E é exatamente nesta direção que parecem se encaminhar os setores majoritários da profissão agrícola na França. Aqueles produtores com capacidade de produzir além do patamar garantido e a preços menores que este patamar venderiam sua produção a um organismo profissional agrícola que lhes cobraria uma taxa chamada de corresponsabilidade em função do valor que pudesse ser obtido no mercado internacional. A preocupação é que a necessidade de vender aos preços mundiais não acabe por desorganizar os


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mercados europeus. O fato de se vender o trigo a US$ 100 no mercado mundial não pode credenciar o criador europeu de porcos a adquirir rações a preço de liquidação no exterior, sacrificando a oferta européia. E é neste sentido que um dos princípios básicos da política agrícola comum - a preferência comunitária deve ser mantido mesmo após os acordos do GATT. Por esta proposta, os próprios produtores organizados (e por mecanismos que não ferem as normas do GATT, já que não envolvem qualquer modalidade de subsídio governamental às exportações) organizam sua capacidade de participar no mercado mundial sem quebrar o frágil cordão de isolamento que protege o setor em termos nacionais (ou melhor, em termos europeus), garante ocupação do território e portanto uma certa base social para a atividade agrícola. Note-se que, ao menos em tese, não se pode assimilar esta proposta à agricultura dual dos liberais, já que, aqui, existem claramente dois preços e uma explícita proteção aos agricultores incapazes, em virtude das dimensões econômicas de seus estabelecimentos, de participar do mercado mundial. Com isso seria reestabelecida a tão procurada coerência do setor, fortemente abalada pela reforma de 1992. Outro aspecto importante nesta modalidade de controle da oferta é que ela permitiria que se extinguisse a exigência de pousio de uma parte das terras para a obtenção de ajudas comunitárias, já que os próprios agricultores se encarregariam da gestão do controle da oferta que ultrapassasse as necessidades do consumo interno à comunidade. Os desdobramentos recentes da reforma da PAC não apontam na direção do que propõe a FNSEA. A era em que agências públicas definiam preços, adquiriam produtos e responsabilizavam-se por sua distribuição parece definitivamente encerrada. Mas a preocupação de fundo da FNSEA (debout sur tout le territoire) esta sim – mesmo que sob modalidades bem diversas das que eram propostas em meados dos anos 1990 – incorporam-se aos documentos mais recentes da Comissão européia e já vão-se tornando realidade na França. O que até hoje não está claro é a capacidade que estas políticas voltadas à valorização do território terão de absorver recursos que hoje destinam-se, majoritariamente, à preservação do aparato produtivo com o qual a Europa pretende manter-se no mercado mundial de produtos agrícolas.


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3.2.2. Ajudas diretas Antes da reforma de 1992, as ajudas diretas faziam parte da seção orientação do FEOGA ou então de intervenções da alçada e sob financiamento de cada país. Na Alemanha, restrições ao uso da terra por razões ambientais eram freqüentemente indenizadas como se fossem expropriações (Haen et al., 1991:17). Na Baixa Saxônia, por exemplo, os agricultores recebiam indenizações de 1.000 a 1.800 marcos por hectare, caso deixassem fora de uso 20% da área de cultivo (idem, p. 20). Mas estes montantes eram pouco expressivos. Foi a partir de 1986 que a Comunidade instituiu formas de ajuda direta como meio de controle da oferta, com a condição de que os produtores retirassem de uso 20% de suas superfícies em cultivo. Até então, as ajudas diretas eram concedidas basicamente no quadro de medidas ambientais ou de compensação para regiões com desvantagens naturais. Mas a remuneração oferecida não compensava o que os agricultores deixariam de ganhar caso persistissem no cultivo das terras, o que provocou uma derrota flagrante da medida. A partir de 1992 o pousio torna-se praticamente obrigatório, já que é a contrapartida necessária para que se receba a ajuda que vai compensar a queda nos preços. Com isso, o montante das ajudas diretas aos agricultores sobe vertiginosamente e as decisões centrais da política agrícola não estarão mais nas maratonas de Bruxelas que decidiam os preços, mas nas modalidades de obtenção destas ajudas. Na proposição original do comissário Mac Sharry, elas teriam um teto que as faria funcionar como mecanismo de redistribuição de renda dentro do setor, o que despertou a imediata simpatia da Confédération Paysanne. A fórmula que acabou sendo adotada não impõe qualquer limitação à área sobre a base da qual a ajuda é calculada mas estabelece uma modalidade de cálculo que tem um importante aspecto redistributivo: a ajuda é calculada sobre a base de uma estimação do que seria a produtividade por hectare caso a terra recebesse o plantio normalmente. Só que, para este cálculo, é atribuída uma ponderação em que 1/3 desta produtividade é estimada sobre uma base nacional e 2/3 sobre uma base departamental. Com este critério, os produtores e as regiões menos produtivos acabam por beneficiar-se. Se até aqui, a sustentação pelos preços beneficiou quem mais produzia, a situação agora sofre uma importante alteração.


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A tabela 8 resume esta situação. Os preços de sustentação sofrem forte queda nos três anos de aplicação da reforma e aproximam-se dos patamares em que hoje funciona o mercado mundial. Ao mesmo tempo, o montante das ajudas sobe. É claro que a tabela não pode expor esta dupla forma de cálculo (o terço nacional e os dois terços departamentais), pois neste caso seria preciso citar todos os departamentos franceses. Mas, para tomarmos o exemplo do primeiro ano, o pagamento compensatório não será exatamente igual a 138 ECU. Esta soma (138 ECU) corresponde à multiplicação da produtividade nacional francesa (4,6 t./ha) por 30 ECU. Num departamento onde a produtividade média é de 7 toneladas por hectare, o cálculo será: [(4,6 t./ha x 30) x 1/3] +[(7 t/ha x 30) x 2/3] = 186. É claro que o agricultor que tem uma produtividade de 7 toneladas por hectare só estará plenamente compensado se receber 7 vezes 30 ECU = 210 ECU. Em pior situação estará o que produz acima de sua média departamental.

Tabela 8 Evolução prevista dos preços garantidos e das ajudas diretas (cereais) entre 1993/94 e 1996/97 na União Européia

Preço indicativo Pagamento compensatório

1º ano (93/94) 125 Ecu/t 138 ECU (=4,6 t/ha x 30 ECU/t)

2ºano (94/95) 110 Ecu/t 207 ECU (= 4,6 t/ha x 45 ECU/t)

3ºano (95/96) 100 Ecu/t 253 ECU (= 4,6 t/ha x 55 ECU)

Fonte: Guyomard e Mahé (1993:224)

Portanto, mesmo que não tenha atendido à orientação inicial do Comissário Mac Sharry, a reforma introduziu mecanismos com algum conteúdo redistributivo. Deve-se persistir e eventualmente aprofundar este caminho, em que a ajuda direta é um meio simultâneo de controle da oferta e de redistribuição de renda, ou ao contrário, o mais adequado é que não se confundam as coisas e que as ajudas diretas procurem compensar o mais fielmente possível (e de preferência sobre a base das produtividades individuais passadas) as capacidades produtivas de cada um? Para as teses do 48º Congresso da FNSEA, o importante é “Utilizar uma parte dos prêmios (primes) PAC para remunerar a gestão do espaço ”. Por esta proposta, uma parte da ajuda direta não se vincularia a qualquer parâmetro de produção, produtividade ou valor da terra, mas teria por função estimular a fixação do


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agricultor à terra de maneira ao menos parcialmente independente de seu desempenho econômico no mercado. Qualquer agricultor receberia um prêmio, independente da produção que tivesse, pelo fato de consagrar-se a manter uma parte do território. Diferentemente do que propunha a equipe de Sicco Mansholt, estes recursos seriam condicionados a um contrato, que envolveria um chaier de charges (obrigações) voltadas à manutenção do território, ao aumento do emprego local, e à preservação do meio ambiente. Uma parte da ajuda deveria refletir variáveis de natureza econômica ligadas particularmente à produtividade, mas uma outra teria uma função estritamente territorial. Esta posição acabou exercendo imensa influência, é claro, sobre a elaboração dos Contratos Territoriais de Exploração do Governo socialista francês. Em suma, muito mais que um meio de expor a agricultura - até então protegida - aos sinais do mercado, as ajudas diretas representam novas formas de sustentação da renda. Enquanto tal elas são um elemento decisivo de seu funcionamento. Uma vez entretanto que se originam nos cofres públicos, é praticamente impossível desligar seu uso de considerações de natureza distributiva, territorial e ambiental. Antes de examinarmos a posição dos que mais explicitamente defendem este ponto de vista (a Confédération Paysanne), vejamos rapidamente os horizontes que, na opinião da FNSEA, a reforma da PAC abrem para a agricultura européia no mercado mundial. 5.2.3. Produzir para quem ? A Europa é o segundo exportador mundial de produtos agrícolas e a necessidade de controlar a oferta não deve comprometer de nenhuma forma sua posição no mercado internacional. Esta idéia é bem menos complexa que as duas anteriores e será apenas aqui mencionada. Mas é importante ter em mente que mesmo os setores da FNSEA com fortes preocupações redistributivistas não renunciam a que a agricultura francesa continue desenvolvendo seu potencial de crescimento econômico. A visão que se tem do mercado internacional é de crescimento a longo prazo, o que explica em grande parte a polêmica com os norte-americanos no quadro do GATT. O mercado europeu deve continuar fundamentalmente protegido e é por aí que se poderá, como vimos no item acima, levar adiante uma política que concilie as necessidades do abastecimento interno com a exigência de manutenção de um tecido social e territorial vivo.


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Portanto, nada seria pior para a agricultura francesa que condicionar suas exportações à abertura de seus mercados aos norte-americanos. Além disso, da mesma forma que os cerealicultores, os textos da FNSEA insistem na reconquista para a França das partes do mercado europeu onde as produções nacionais só existem em função de distorções cambiais na concorrência ou de ajudas dos Estados que deveriam ser abolidas.

3.3. A escola do controle distributivista da oferta A própria maneira como se reorganiza a política agrícola européia a partir de 1992 faz com que as teses defendidas pela Confédération Paysanne deixem de ser encaradas como utopia radical de grupos minoritários. Enquanto a sustentação da renda agrícola passava fundamentalmente pelo caminho dos preços de garantia, a idéia de partilhar as riquezas produzidas no campo parecia incompatível com o próprio funcionamento de uma economia de mercado. Uma vez porém que as ajudas diretas passam a ser o mais importante componente da sustentação da renda, o problema de sua distribuição e do sentido da atividade que a ela dá lugar coloca-se com toda a força. Na situação anterior, em que as OCMs cumpriam o papel de mercado, estes dois temas (distribuição e sentido da atividade) podiam ser escamoteados do debate da política agrícola. É o mercado que deveria decidir o sentido ou não da atividade econômica e a distribuição de seus resultados entre os vários agentes refletiria antes de tudo a eficiência respectiva de cada um. O trauma provocado pela reforma da PAC consiste no fato de que a renda agrícola não se forma mais a partir de critérios que possam encontrar justificativa exclusivamente econômica (61). E portanto, se a política agrícola consiste antes de

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Pode-se dizer que esta não é uma particularidade da agricultura, mas uma tendência geral das sociedades contemporâneas. As “transferências sociais ” que participavam com 19% da renda domiciliar, na França, em 1959, aumentam sua proporção para 31,2% em 1982 e 33,9% no início dos anos 1990 (Lavagne e Naud, 1992:95/96). Recentemente, um economista ligado ao partido do governo, na Alemanha, propos a generalização de uma renda de cidadania (Bürgergeld) como forma de reduzir as inflexibilidades do mercado de trabalho. A proposta recebeu a adesão de setores da socialdemocracia e de alguns importantes intelectuais entre os quais o conhecido cientista político Carl Off, que a justifica nos seguintes termos: "quem se retira do mercado de trabalho presta serviço a todos os que almejam participar da competição econômica com melhores chances de sucesso. Ele tem então, conseqüentemente, direito a uma compensação que deveria ter a forma de uma renda de cidadania" (apud Gorz, 1994:63). Os pagamentos diretos, na agricultura, encontram-se, neste sentido em situação ambígua. Eles são hoje, a contrapartida pela imobilização da terra e do capital. Nesta condição, porém,


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tudo num conjunto de decisões sobre a distribuição de fundos públicos e de direitos a produzir, os parâmetros que devem reger estas decisões perdem o aparente automatismo e a pretendida neutralidade que o mercado oferece aos agentes econômicos. Isso, por si só, faz com que as teses de natureza distributivista adquiram uma audiência que, anteriormente não podiam ter, pois apareciam como impraticáveis e incompatíveis com as práticas correntes de uma economia de mercado. Talvez o ponto mais importante para compreender a posição da Confédération Paysanne seja sua visão sobre as funções da agricultura na sociedade contemporânea. Diferentemente do que acontece quando empregado por Debatisse (1983), o termo camponês nos textos da Confédération Paysanne tem alguma proximidade com seu sentido sociológico clássico (62): a relação com o mercado deve ser mediatizada por objetivos cuja definição não tem natureza exclusivamente econômica. No seu próprio nome, há uma crítica da Confédération Paysanne à FNSEA e à CNJA. Mais que uma profissão, a noção de camponês (paysan) remete a um modo de vida e a uma ética nas relações sociais e sobretudo na relação entre sociedade e natureza. Não se trata simplesmente de responder a desafios produtivos, mas de fazê-lo de maneira a não prejudicar as chances de desenvolvimento de outros povos e sobretudo garantindo a ocupação do espaço, a criação de mais postos de trabalho e a preservação ambiental. A agricultura não pode servir simplesmente para ampliar a potência de um país, para produzir ou vender cada vez mais. "A função primeira da agricultura européia não é alimentar o mundo", sustenta o senhor Gabriel Dewalle, porta-voz da Confédération Paysanne, na entrevista que me concedeu. "O importante, prossegue ele, é a agricultura vivrière de cada país. Produzir excedentes cada vez maiores não pode ser um objetivo válido de política agrícola". É esta concepção que deveria nortear inclusive as negociações internacionais sobre o comércio agrícola, onde ao invés de todo mundo alinhar-se por baixo nos preços internacionais de dumping, seriam estabelecidos necessidades e direitos a produzir. Neste sentido, a Confédération Paysanne opos-se ao GATT não em nome dos "interesses nacionais franceses", mas preconizando "o direito dos povos a eles próprios produzirem sua alimentação" e uma negociação onde em vez de se eles tendem a perder legitimidade social. Razão pela qual ganham força as iniciativas que procuram vinculá-los a serviços de natureza territorial e ambiental.


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legitimar a queda generalizada nos preços internacionais, se procuraria fazer com que cada país adotasse formas de controle onde a produção se limitasse - dentro de margens de segurança aceitáveis e nos limites das possibilidades agroecológicas de cada um - às necessidades dos respectivos mercados internos. O tão propalado saldo comercial que a agricultura francesa oferece orgulhosamente ao país, o chamado petróleo verde, na verdade é bem menor do que se imagina, se forem levados em consideração seus custos, inclusive seus custos em importações. "A missão da agricultura é não apenas produzir uma alimentação sã, abundante, variada e de qualidade, mas também preservar os equilíbrios ecológicos e participar da manutenção da vida rural. Para que o conjunto destas missões possa realizar-se a sociedade precisa de muitos camponeses" (Confédération Paysanne, 1990:6). Ora, o GATT não leva em conta e não é o fórum adequado para levar em conta o conjunto destas funções. Se a prática das exportações subsidiadas que vigoraram até a reforma de 1992 é condenável, tampouco se pode aceitar que o mercado interno europeu abra-se para produtos cuja entrada desorganizaria a produção no Continente. Sem este esclarecimento inicial é difícil entender a palavra de ordem central da Confédération Paysanne: "partilhemos as riquezas para remunerar os camponeses e instalá-los numerosamente". Da mesma forma que a FNSEA e a CNJA, a Confédération Paysanne não vê com bons olhos as profecias apocalípticas sobre a desertificação social do meio rural e a possibilidade de satisfazer as necessidades do País com menos de um quarto dos agricultores atualmente existentes. Só que sua ênfase será colocada na necessidade e na possibilidade de que o poder produtivo seja distribuído entre um grande número de agricultores, sem que haja, por esta razão, perda de eficiência econômica. O argumento é que a ineficiência está exatamente do lado das grandes unidades de produção cujo tamanho e cuja especialização excessiva as expõem a flutuações de tal intensidade no mercado internacional que sua renda se torna dependente da sustentação pública seja por meio dos preços (como se fazia antes da Reforma) seja por meio dos pagamentos diretos.

62

Ver, neste sentido, Abramovay, 1992, capítulos 3 e 4.


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O controle da oferta agrícola só terá resultados sociais, ambientais e territoriais positivos caso se apoie na partilha dos direitos de produzir e num uso dos fundos públicos inversamente proporcional às capacidades produtivas de cada um. A agricultura camponesa deve permitir que os agricultores sejam remunerados mesmo que produzam menos que atualmente, mas desde que se comprometam a preencher necessidades ambientais bem específicas. Diferentemente da posição da OCDE que também encara com simpatia a associação de pagamentos diretos a serviços prestados no plano territorial e ambiental, a Confédération Paysanne preconiza uma profunda modificação na própria estrutura da oferta agropecuária. É contra a própria idéia de um meio rural funcionando em duas velocidades (os altamente especializados que respondem pela oferta de grãos e carnes, por um lado, os pluriativos que garantem a manutenção do território, por outro) que se insurge a Confédération Paysanne. O mecanismo proposto pela Confédération Paysanne é o de um preço de garantia dentro do qual cada agricultor poderia vender uma quantidade limitada de produtos. Como, mesmo por este preço, os pequenos agricultores não poderiam ter uma renda suficiente, haveria um complemento, uma ajuda direta. Diferentemente porém do que vigora a partir da reforma de 1992 e do que propõe a FNSEA, esta ajuda não seria por hectare ou por cabeça de gado: seria uma ajuda por unidade de trabalho disponível nos estabelecimentos agropecuários. Jean Christophe Kroll, diretor da Société Française d ’Économie Rurale e muito próximo à Confédération Paysanne explica: “O modelo de crescimento agrícola que nós conhecemos nas últimas décadas (e que se perpetua ainda hoje) está fundado em uma substituição perpétua de do capital ao trabalho...Isso tinha uma certa coerência no período de forte crescimento quantitativo, pois o consumo alimentar europeu aumentava, enquanto que o emprego industrial, puxado por um forte consumo de massa, permitia reciclar, no crescimento industrial global, os empregos liberados pela agricultura. Isso hoje não mais qualquer coerência. Hoje, o fator problemático, tanto em matéria de organização (aménagement) do espaço quanto em matéria social, é o emprego. Convém então, logicamente, que as ajudas públicas apoiem, de agora em diante, prioritariamente o fator trabalho, mais que o fator capital ” (Kroll, 1994:67/68). Esta ajuda baseada no fator trabalho foi batizada de quantum financeiro: com base na venda de seu produto (portanto não se trata de ligar a ajuda à terra, mas a algum tipo de atividade produtiva agropecuária) o agricultor teria direito a um complemento


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de preço no limite de um orçamento definido a partir de cada unidade produtiva ou melhor dos trabalhadores aí existentes. Seria constituído um registro da agricultura com as informações necessárias a este fim e a remuneração seria variável em função do tipo de atividade agrícola e da região em que se encontra o agricultor (tempo integral ou parcial, região ameaçadas de desertificação, etc.). É claro que, com isso, o agricultor perderia o interesse em participar da frenética corrida competitiva responsável pelos excedentes e pelos danos ambientais provocados pela agricultura. É neste sentido que esta corrente de pensamento insiste na importância de se inventar o “extensivo moderno ”, isto é métodos tecnicamente avançados sobretudo para reduzir a penosidade do trabalho, o sofrimento dos animais e os danos ao meio ambiente. Com isso, seria possível orientar o processo de desconcentração da produção, pois as ajudas deixariam de ser uma simples compensação por ganhos não realizados e se transformariam na remuneração pública pelo cumprimento de determinadas funções sociais ligadas ao território. O importante é que, diferentemente do que vigorou no início da PAC, os preços de garantia seriam fixados num patamar correspondente aos produtores mais eficientes e seria função da política de ajuda oferecer os complementos de renda norteados por objetivos de natureza social e ambiental. Com isso atingem-se dois objetivos: primeiramente, os preços seriam tais que os produtores perderiam interesse em continuar a corrida competitiva e assim se encaminhariam para a “desintensificação do processo produtivo ”. Em segundo lugar, seria enfim interrompido o processo de concentração de fundos públicos a que deu lugar a execução da PAC e que sua reforma parece acentuar. Mesmo que os cálculos das produtividades em que se baseia a ajuda por hectare na atual política agrícola prejudiquem os agricultores mais eficientes (como foi visto acima), o fato é que isso não reverte fundamentalmente a concentração dos recursos produtivos e dos subsídios. Na verdade, o risco é que a concentração se acentue: chasse à la prime (caça ao prêmio) é o termo pelo qual se designa a prática que vem se tornando corrente de comprar ou alugar a baixos preços lotes de terras que preenchem a função de ficar em repouso, credenciando seu novo titular a produzir nas terras que já possui e a receber os prêmios vinculados à obrigatoriedade do pousio.


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Esta política de preços e ajudas proposta pela Confédération Paysanne deveria conduzir a agricultura francesa e européia à melhor repartição social e territorial de suas capacidades produtivas. Como seu complemento necessário, além da limitação das ajudas, seriam estabelecidas, gradualmente, limitações no próprio tamanho das unidades produtivas, sobretudo na pecuária. Assim como praticamente todo o meio rural francês opos-se à instalação na Bretanha de uma granja avícola com capacidade para oito milhões de animais, a Confédération Paysanne julga que se deve encaminhar para a limitação do tamanho dos rebanhos estabulados. Haveria uma limitação para novas unidades estabelecendo-se o tamanho ótimo por unidade de trabalho e um máximo a não ser ultrapassado. No caso da criação de porcos, por exemplo, este máximo seria de 200 matrizes por unidade de trabalho. Também no momento de cessação das atividades de produtores leiteiros, suas cotas não deveriam ser vendidas, nem simplesmente repassadas a outros produtores, mas entregues ao poder público para que este fizesse sua distribuição de maneira a garantir que a produção seja partilhada por muitos produtores e por todo o território. Muito ligada à Confédération Paysanne, Dominique Voynet, atual ministra do Meio Ambiente na França mostrava, num livro-manifesto de 1994, que, tendo ganho a batalha da quantidade, a Europa estava agora diante de um desafio ainda mais crucial: “a batalha da qualidade e da ocupação harmoniosa do espaço rural: retomemos o controle da locomotiva que parte a toda velocidade para um futuro já traçado: algumas regiões cobertas de grandes unidades produtivas de cereais e beterraba funcionando às custas de adubos químicos, de pesticidas (e de subvenções !) nas melhores terras, outras zonas especializadas em criações intensivas e a maior parte do território deixada ao abandono ou a uma agricultura de subsistência ” (Voynet, 1994:41). A sustentabilidade da agricultura para esta corrente não está apenas em utilizar métodos “respeitosos do meio ambiente ”, mas consiste em transformar o agricultor em “parceiro da natureza ” (Ambroise et al., 1998:6). Distribuir a produção por todo o território

(em

vez

de

concentrá-la

de

maneira

especializada

nos locais

agronomicamente mais propícios) exige uma agricultura diversificada, com uma intensa rotação de culturas e onde o aumento do tamanho das unidades produtivas não seja a base para a eficiência. A própria limitação dos direitos a produzir (e portanto dos direitos a obter subvenções) deveria estimular a diversificação tanto de culturas, como de atividades.


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No caso, por exemplo, da produção animal, são, como já vimos, inteiramente contra a idéia de que se pode concentrar a produção e implantar métodos para reduzir os impactos. Além das razões de natureza distributiva, evocam a relação entre os homens e os animais, que não podem ser concebidos e tratados como máquinas. A criação de galinhas engaioladas deve ser pura e simplesmente proibida: evitar o sofrimento animal será um componente cada vez mais importante dos métodos estabulados de criação na Europa. Em suma, o fundamental para a Confédération Paysanne não está apenas no estímulo à diversidade do meio rural, no apoio ao caráter multifuncional das unidades produtivas, na distribuição eqüitativa das ajudas ou no respeito ao meio ambiente, mas, sobretudo, na integração de todos estes objetivos: contra a idéia de um meio rural dividido entre uma agricultura produtiva e um conjunto de unidades polivalentes e pouco expressivas na oferta, esta corrente preconiza a redistribuição das ajudas diretas e sua vinculação à manutenção do território como um meio de promover aquilo que para os liberais soa sempre como um contra-senso: integrar produção e renda, economia e sociedade.

Conclusões A formação da potência agrícola dos países capitalistas centrais durante a segunda metade do Século XX repousou sobre três pilares básicos. Em primeiro lugar, na existência e no fortalecimento de uma estrutura social organizada fundamentalmente em torno de unidades familiares de produção. Foi sobre esta base - segundo pilar que estas nações conheceram um progresso técnico permanente, que permitiu a elevação dos rendimentos do solo, da produtividade do trabalho, o barateamento dos preços, e sua dominação completa do mercado mundial de produtos agrícolas. Estas duas características apoiaram-se numa terceira que é a intervenção constante do Estado na organização do setor, por meio tanto da pesquisa e da extensão, como de uma política ativa de sustentação dos preços e, conseqüentemente, da renda agrícola (Abramovay, 1992). A partir de meados dos anos 1970, cada um destes pilares foi dando mostras de fragilidade. Embora a agricultura no capitalismo avançado continue sendo familiar (Gasson e Errington, 1993), são cada vez mais flagrantes os sinais de uma


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diferenciação social que permite colocar em dúvida a própria existência de uma estrutura de caráter “unimodal ” nestes países. Se o crescimento das safras permitiu segurança alimentar, hoje seu sentido é francamente colocado em dúvida pelos custos econômicos da sustentação da renda, pelos problemas ambientais que provoca, pela sua inadequação a novas necessidades do próprio mercado consumidor e pela desorganização do comércio mundial a que está associada a vocação agrícola exportadora dos países ricos. Como não poderia deixar de ser, a repercussão destes fatores nas próprias políticas públicas não se fez esperar: a intervenção direta na sustentação da renda agrícola vai perdendo legitimidade durante os anos 1980 e um novo modelo de relação entre Estado e agricultura começa a tomar forma na atual década. O atual processo de transição da Política Agrícola Comum caracteriza-se por uma contradição fundamental. Por um lado, o entusiasmo com que a literatura científica, as organizações profissionais e as agências públicas falam hoje do desenvolvimento rural, das novas funções econômicas que crescem no campo e de suas repercussões positivas sobre a agricultura (por meio da expansão de mercados de clientela e da valorização de produtos locais e regionais), sobre as atividades rurais não-agrícolas (turismo, indústria, comércio e um conjunto variado de serviços) e sobre as pequenas e médias aglomerações urbanas: “o desenvolvimento rural sustentável, afirma o comissário europeu Franz Fischler, num comunidado de imprensa da União Européia do início de 1997, precisa ser colocado no topo da agenda da União européia, com o objetivo de reverter a migração rural, combater a pobreza, estimular o emprego e a igualdade de oportunidades, melhorar a qualidade do meio ambiente rural e responder ao crescente desejo de alimentos de melhor qualidade, mais saudáveis e seguros, e também de desenvolvimento pessoal e lazer ”. Que este objetivo ultrapassa a retórica oficial mostram-no não apenas um movimento social importante de associações locais (que acabou resultando na França nos Contratos Territoriais de Exploração) e a significativa rede de valorização de produtos e atributos regionais, como também o esforço recente em torno da própria definição do que significa meio rural. A OCDE possui atualmente um “serviço de desenvolvimento territorial ” que trabalha em torno da formulação de indicadores de


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desempenho do meio rural que pouco têm a ver com a agricultura strictu sensu. Os resultados dos primeiros trabalhos mostram que “algumas regiões rurais fazem parte das zonas mais dinâmicas no interior dos países membros da OCDE. Criaram até mais possibilidades novas de emprego que o conjunto da economia...A ruralidade não é por si só um obstáculo à criação de empregos. A fraca densidade populacional e a distância são freqüentemente considerados como handicaps para o desenvolvimento rural...O sucesso das regiões rurais dinâmicas não se deve à existência de uma composição setorial favorável [e sim] a uma dinâmica territorial específica que não está ainda bem compreendida, mas que comporta provavelmente aspectos importantes como a identidade regional, um clima favorável ao espírito de empresa, a existência de redes públicas e privadas ou a atração do ambiente cultural e natural ” (OCDE, 1996:10). Vão no mesmo sentido as observações do recente estudo do INRA/INSEE (1998) cujo título já mostra a ênfase no desenvolvimento rural: La campagne et leurs villes (63): 90% dos domicílios situados no espaço predominantemente rural não contam com nenhum trabalhador agrícola e menos que 20% dos empregos rurais são agrícolas. Se o êxodo agrícola continua muito significativo em todo o Continente (com uma previsão de queda de 2 a 3% ao ano, segundo a previsão da Comissão européia) o desenvolvimento rural, a integração com os pequenos e médios núcleos urbanos chamam a atenção como novos focos de geração de emprego e renda. Mas há um outro lado nesta moeda, quase uma floresta escondida por trás da viçosa e promissora árvore do desenvolvimento rural: o exame do orçamento da União Européia (64) e das transferências públicas ao meio rural mostram um quadro bem menos edificante, onde a maior parte dos recursos concentram-se em algumas regiões, alguns produtos e numa minoria de agricultores. “As ajudas atuais dirigem-se para as grandes planícies vazias de homens, arações profundas ou em direção às criações intensivas com suas conseqüências preocupantes para a saúde humana ou para a preservação dos equilíbrios ecológicos. Ora nenhuma nem outra destas agriculturas criam as paisagens que nos atraem. No momento o que salva as políticas agrícolas é a mistura de palavras, quando alguns pensam campos, visualizam, sem dúvida, os lugares das pequenas explorações pouco ajudadas, enqunto que, nos escritórios dos ministérios e dos sindicatos profissionais, quando se pensa campo e subvenção olha-se para outro lugar. Um dia, sem dúvida, esta 63

O campo e suas cidades Seu estudo é o que permite - para usar a feliz expressão de Bonnet, Delorme e Perraud (1996:10) - “avaliar a ‘forma-discurso ’ através da ‘forma-gasto ”. 64


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divergência vai acentuar-se e retirar a legitimidade das políticas agrícolas ” (Hervieu e Viard, 1996:33). A própria Comissão européia vai na mesma direção quando observa: “Se a generalização das ajudas diretas aos agricultores depois da reforma da PAC de 1992 tornou a ajuda financeira à agricultura mais transparente, ela acentuou igualmente a necessidade de que esta ajuda seja ecnoomicamente são e socialmente aceitável ” (Commission européenne, 1997:30). Se esta concentração das ajudas públicas em segmentos que não correspondem àquilo com o que mais a sociedade se identifica (a paisagem, o turismo, a pluriatividade, a montanha, a qualidade, a conservação ambiental, o desenvolvimento local e regional) fosse apenas a expressão provisória de uma eventual força corporativa dos agricultores, não seria difícil prever sua rápida eliminação, uma vez que estes são minoria inclusive no próprio meio rural. A solução seria simples e se traduziria numa consigna de efeito: foi-se a era das políticas agrícolas, viva a idade do desenvolvimento rural. O que, entretanto torna as coisas mais difíceis é que os documentos oficiais da União européia anunciam o melhor dos dois mundos: por um lado, a valorização das funções territoriais, sociais e culturais da agricultura, o povoamento do espaço rural, o desenvolvimento local; por outro, o reforço da capacidade produtiva e a ampliação do quinhão europeu no que os técnicos de Bruxelas julgam ser a expansão provável do mercado mundial (Commission européenne, 1997). Se os exemplos referentes à vitalidade e ao potencial de formas variadas de desenvolvimento rural são inúmeros, nada indica entretanto que o setor agrícola possa dispensar o habitual combustível de seu crescimento histórico, as subvenções públicas. É verdade que os preços de sustentação caíram significativamente com a reforma da Política Agrícola Comum iniciada em 1992. Não é menos certo entretanto que esta queda foi compensada por “ajudas diretas ”, um mecanismo que garante ao agricultor um cheque vindo diretamente do poder público como compensação à queda nos preços agrícolas. Como estas ajudas são calculadas pela extensão de terras que cada agricultor coloca em cultivo, é óbvio que recebe mais do Estado quem mais produz e quem tem mais terra.


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Na versão do Commissário europeu, Franz Fischler, as coisas adquirem outra fisionomia: “a maior separação entre as políticas de mercado e de renda e nossos pagamentos descasados à renda (our decoupled direct income payments) são elementos chave que caracterizam nossa moderna política agrícola: além de ajudar-nos a exportar mais, ela vai também ajudar-nos a garantir que a atividade agrícola seja mantida, especialmente nas áreas menos favorecidas e montanhosas ”. O problema é que as ajudas diretas não beneficiam as áreas menos favorecidas ou montanhosas e sim aquelas que maior participação possuem na oferta, nas exportações, mas cujas funções sociais, territoriais e ambientais são pouco valorizadas pela sociedade. A encruzilhada está na concentração do grosso da oferta nos maiores produtores: nada indica que eles podem dispensar os pesados subsídios de que depende hoje seu desempenho econômico. Num Continente que se aproxima dos 20 milhões de desempregados muitos dos quais quase inteiramente desassistidos, será cada vez mais difícil explicar por que motivo a competitividade da agricultura depende de injeções de recursos tão pesadas. Foi-se o tempo em que os subsídios agrícolas ganhavam legitimidade pela função nutridora preenchida pelos produtores num Continente que havia conhecido a penúria. A recente experiência do governo socialista francês com o Contrato Territorial de Exploração, pelo qual o apoio do Estado ao setor agrícola estará relacionado com funções que ultrapassam a esfera puramente produtiva e se relacionam com a preservação da paisagem, do patrimônio natural e da própria vitalidade do tecido social rural é, de certa forma, a materialização da utopia exposta por um grupo de personalidades políticas e representativas do meio rural francês: uma agricultura marchande et ménagère (Pisani, 1994) onde o atendimento às necessidades produtivas integre-se organicamente à manutenção do tecido social do meio rural. O grande desafio das políticas agrícolas do Século XXI estará na articulação entre o apoio à agricultura e ao desenvolvimento rural. Estas duas expressões deixaram de identificar-se socialmente ao final do que os franceses costumam chamar os “Trinta Gloriosos Anos ”, que terminam no primeiro choque do petróleo em 1973. O crescimento agrícola, em muitas circunstâncias comprometeu o tecido social,


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demográfico e ecológico do meio rural. Recompor este tecido, explorar as chances de valorização das oportunidades de criação de emprego e renda cada vez menos se confunde com o que até hoje se entendeu por política agrícola. A entidade que reúne as principais organizações profissionais agrícolas da França - a Assembléia Permanente das Câmaras da Agricultura da França - resume bem o problema - e ao mesmo tempo seus próprios temores - num comentário a respeito dos planos da Comissão Européia para a primeira década do próximo milênio, evocando o risco de que haja limitação nos “...meios diretos disponíveis para a agricultura (ajudas diretas, sustentação de mercados)...Coloca-se, aliás, a questão sobre a articulação entre a política rural e a política agrícola: a agricultura não deve perder sua autonomia e não deve ser confundida numa vasta ‘política orçamentária rural ’ de contornos fluidos ” (Chambes d ’Agriculture, 1997:12). Esta é a questão: a dependência em que se encontram setores fundamentais da agricultura de subsídios públicos choca-se com as novas orientações do próprio desenvolvimento do meio rural. Nada seria pior para os produtores europeus de grãos e carne que a transformação da política agrícola num item de um conjunto mais vasto que seria o desenvolvimento rural. Em última análise o que está em jogo é a relação dos agricultores a um amplo processo de “publicização ” do meio rural (Bertrand e Viard, 1996:114): base da dominação do campo pela produção agrícola, o espaço rural vê hoje sua dimensão ampliada, o que interfere diretamente nos seus modos de uso. Vai surgindo um novo modo de relação entre o homem e o território onde as necessidades da produção agrícola são apenas um componente – e cada vez menos importante – na utilização do espaço. As unidades produtivas multifuncionais e polivalentes consideradas até vinte anos atrás como marginais terão, neste sentido, um papel cada vez mais importante. O grande dilema da União Européia está na adaptação de sua política agrícola às novas exigências que a sociedade coloca ao meio rural.


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