-QUITETURACRUZAMENTOSENTRESKATE,CIDADEEARQUITETURACRUZAMENTOSENTRESKATE,CIDAD
RAMPAS DE ACESSO
Fotomontagem da intervenção
RELATO:
Por volta das 9h30 do dia 01/03/23, cheguei na lateral direita do Theatro Municipal – que fica ao lado da Praça Ramos –, com as rampas que eu construí. Logo encontrei: Murilo Romão, que é skatista profissional e criador do Coletivo Flanantes; Maikon Quaresma, skatista profissional de Manaus; e Martin Arena, arquiteto e skatista amador. Convidei eles para andar sobre a intervenção “rampas de acesso”, que testaria pela primeira vez nesse dia. Então, carregamos juntos as rampas e as encaixamos na escada. Para minha satisfação, as rampas encaixaram perfeitamente nos degraus do Theatro, quase como um móvel planejado feito para uma cozinha. Peguei minha câmera na mochila, os skatistas pegaram os skates e começamos a nossa sessão. Fui para o outro lado da calçada, para conseguir achar enquadramentos mais distantes e registrar a sessão. Não tinha nem passado 5 minutos e começaram a aparecer os seguranças do Theatro Municipal em nossa direção. Nessas situações quem é skatista já sabe o que vai acontecer e era isso mesmo que estávamos imaginando: eles vieram falar que só podíamos usar a calçada, mas não podíamos colocar as rampas na escada, pois a administração do Theatro estava reclamando. Ficamos uns 10 minutos conversando educadamente com os seguranças, pedindo para deixarem a gente andar pelo menos 30 minutos. Eles não cederam de maneira nenhuma e nem deixaram a gente entrar no Theatro para conversar com um possível responsável pela “proibição” das nossas rampas.
Já que não conseguiríamos andar lá, sugeri descermos no Vale do Anhangabaú, que estava ao nosso lado e cheio de oportunidades para usarmos as rampas. Nos locomovemos usando o skate como suporte, uma vez que era uma rua bem íngreme. Demos de cara com a escadaria tombada que liga o Vale do Anhangabaú com a rua Líbero Badaró – sim, a mes-
ma escada que aparece no “Vocabulário de Elementos Urbanos”. Chegamos nela, encaixamos as rampas e recomeçamos a sessão, só que de maneira diferente do que era previsto para o Theatro. Na parte de baixo da escada, a calçada é bem movimentada, visto que há muitas pessoas e alguns carros circulando, todos ao nosso redor ficaram nos encarando e tentando entender o que estava acontecendo. Murilo e Maikon decidiram ir para a parte de cima da escada, para tentar deslizar sobre o corrimão e despencar na rampa, tentando algumas vezes até acertarem.
Após tentativas diversas de andar nessa escada, começamos a pensar em outros lugares dentro do Vale que seriam legais de andar. Sendo assim, seguimos para outra escada, a que liga o Memorial do Vale do Anhangabaú com a entrada do Metrô São Bento – mais uma que aparece
no “Vocabulário de Elementos Urbanos”. Chegando lá, encontramos alguns skatistas locais que já estavam andando pelo Memorial, cumprimentamo-os e fomos encaixar as rampas na escada. Dessa vez, encaixamos as duas juntas, uma colada na outra. Essa escada nos abriu maiores possibilidades de performance, porque ela tem espaço para dar impulso tanto de baixo quanto de cima, resultando em possibilidades de pular a escada de cima para baixo e despencar nas rampas, ou vir de baixo e conseguir subir a escada pela rampa – algo inédito ainda nesse espaço.
Murilo pegou sua filmadora na mochila, uma Panasonic P2. Eu montei a minha câmera fotográfica no tripé e assim começamos a registrar o Maikon, que estreou a rampa nessa situação. Subiu-a com algumas manobras e as pessoas em volta pararam pra ver, dado que ele estava
Murilo Romão testando as rampasem alta velocidade para conseguir realizar os movimentos. Maikon saía da descida do Metrô São Bento e pegava bastante impulso até chegar na rampa, onde executou 4 manobras diferentes – Ollie, Flip, Frontside Flip e 360o flip – registradas em foto e vídeo. No meio dessa sessão chegou o skatista profissional Daniel Marques, que se interessou pelas rampas e começou a executar alguns movimentos diferentes, sem necessariamente subir ou descer a escada usando a rampa – mas subir a rampa, mandar uma manobra, encaixar em um degrau e descer de volta para a rampa, executando: backside tailslide; no-comply tailslide; e até um combo no-comply tailslide to backside nosepick.
Depois de passarmos horas embaixo do sol registrando e ativando a intervenção, chegou um momento que ficamos satisfeitos com as novas possibilidades
que criamos em espaços que regularmente andamos de skate. Já com todos cansados e com fome, decidimos acabar com a sessão e seguir para o almoço. Antes disso, tivemos que transportar a pé as duas rampas de 1.40m x 0.80m até a minha casa, que fica em uma distância de 1,5km do Vale do Anhangabaú.
backside noseslide - Murilo Romão
BALANÇO:
Antes de buscarmos analisar os motivos pelos quais a ativação inicial não aconteceu como previsto, é importante entender a própria justificativa da proposta. Ao realizar intervenções skatáveis no espaço da cidade, criam-se novos imaginários e possibilidades para essa prática urbana, pois o skate permeia o espaço urbano de diversas maneiras. Ocupar espaços que foram planejados para outros usos está na essência de nossa prática e esse é o ponto que nos instiga a andar de skate na cidade: sair por aí achando novos lugares e usando-os de formas novas. Mas se isso é o mais legal da prática do skate, então por que eu fui planejar um “obstáculo” para andarmos, uma vez que a graça é andar nos espaços que não foram projetados para nós? Gosto de pensar que nós sempre podemos ir além do que já está dado. Não é que estou construindo uma pista de skate – ou seja, um grande espaço com foco específico e pensado para a gente, mas sigo em um raciocínio de experimentação, de experimentar dentro do que já existe.
Escolhi o Theatro Municipal porque é um espaço muito divertido para andar de skate. Sua calçada é espaçosa e os degraus da escada deslizam, como sabão, de forma primorosa o skate. Em minha opinião, a escada da lateral direita do Theatro não é usada majoritariamente para sua função prevista - como uma escada de acesso -, mas sim como um banco, se transformando em um lugar de estar e não mais um lugar de circulação. O que vejo, regularmente, são trabalhadores do centro, ou pessoas em situação de rua, descansando sobre essa escada. Além disso, a maneira que o skate se apropria e ocupa esse espaço, coloca-o na mesma condição que a de um banco, posto que realizamos manobras nos degraus de maneiras similares, pois ambos validam-se como uma borda. Geralmente deslizamos entre o primeiro e o segundo degrau da escada, às vezes até o terceiro que é mais desafiador por ser um pouco mais alto. As duas rampas são uma
pequena intervenção, um detalhe, para potencializar nossa prática nessa escada. E se pudermos andar nos degraus mais altos, nos degraus que ainda estão limpos de vela e não deslizam tanto como os degraus mais baixos? E se as escadas naturalmente tivessem rampas apoiadas sobre elas, onde pudéssemos andar de skate, crianças brincarem ou pessoas descansarem deitando nelas? Desse modo, seria reducionista de minha parte afirmar que essas potências se ativam apenas através do skate. Contudo, tendo esse objeto e a sua prática como operações para ler e fomentar interações urbanas, a criação de uma rampa surge conforme um suporte para intervir inventivamente no espaço da cidade. O objeto, projetado e construído, apenas desperta na paisagem se performado a partir de lógicas que irrompem o pré-estabelecido para determinados usos e lugares.
Não é só porque a intervenção não aconteceu como previsto, que ela de fato não funcionou. Somente com esses problemas acontecendo, temos a possibilidade de reinventar uma ideia programada. Poder ocupar outras escadas com a intervenção, nos fez mostrar que a proposta pode continuar a mesma em sua essência, possibilitando que ela venha à tona de jeitos diferentes em cada espaço que ocupamos. A prática do skate nos revela sempre algo a ser contornado. Se pensarmos nos usos pré-estabelecidos para espaços, é possível contornarmos essas regras dando nossos próprios usos; e foi exatamente isso que aconteceu no dia da intervenção. A ativação foi completamente idealizada – fui várias vezes ao Theatro medir as escadas, observar o movimento local e testar o gabarito da rampa para poder construí-la –, para então chegar o momento planejado e acontecer de outro modo. Ainda bem que o skate está aí sempre para contornarmos a situação e inventarmos novos modos de ocupar.
vale do anhangabaú em obras, 2019