ÍNTIMOS BERROS - Ricardo Lemos

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! ! ! ! ! ! ÍNTIMOS BERROS

! ! ! Ricardo Lemos

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O PRIMEIRO SILÊNCIO

! O primeiro silêncio começou com o disparar do alarme de um automóvel, ali pelas cercanias. Foi quando primeiro percebeu que se encontrava em solidão realmente voluntária, que tanto procurara, sem se dar conta; a sensação de que algo estava faltando vinha sempre acompanhada de um grande vazio, onde deveria haver resposta. Apenas isso: uma pergunta surda, reticente, redundante, dando voltas sobre si mesma, e um não silêncio com cara de permanente, que lhe obrigava sempre, por impotência ou impaciência, ou, quiçá, ambas, sendo esta conseqüência daquela, seguindo-se a linha de raciocínio: “se não pode vencê-la, irrite-

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se”, de uma inutilidade tal, mas que não convém discutirem-se esses assuntos em momentos de adrenalina, a desviar o olhar, ocupar-se de enigmas algo menores. Mas foi exatamente no momento em que disparou a tal sirene, ou buzina, aguda e repetitiva, que ele finalmente alcançou que havia algo estranho no ar. Ali, sentado de frente para um sol que teimava em retardar seu mergulho num horizonte acidentado, fim de tarde perfeito, tendo por som de fundo o marulhar sereno das ondas e, a uma certa distância, uma FM tocando um gospel numa voz melosa, quase diáfana, finalmente pôde entregar-se àquele silêncio tão ansiado.

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Inútil, dirão alguns, pois que ao silêncio das vozes exteriores sucedeu imediatamente um burburinho interior, como um daqueles vozerios de espanto e perplexidade, que hoje em dia só se ouvem nos programas humorísticos televisivos – é verdade: as pessoas de verdade há muito que já não se espantam assim, tão facilmente – todas as vozes falando ao mesmo tempo, porém sem a intenção, qualquer delas, de sobressair às outras. Apenas um falatório intenso. Nada de novo, até então! Essas vozes o perseguiam desde sempre, coexistindo com as exteriores. Não podemos dizer pacificamente, mas numa beligerância quase cordial, como a agressão do parasita que recua, ao ver seu hospedeiro no limiar do

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sucumbir, para que possa este reunir novas forças que aquele, então, tornará a sugar. A grande novidade, além do silêncio exterior, era justamente a disposição de escutar o que se passava nesse que parecia um grande parlatório íntimo. Lançava-se na empreitada de forma intempestiva (não sabemos) e arriscada (decerto), como alguém que, diante de um perigo iminente e desconhecido – que essas coisas de perigo, quanto mais desconhecidas, mais perigosas nos parecem – de grande ameaça, dê de ombros e pergunte-se “que tenho eu a perder?”. Ou, valendo-nos de uma visão mais heróica, visto ser a primeira mais derrotista ou irresponsável que corajosa, imaginemos o soldado que, empunhando já suas toscas armas, vê-se de

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todo sozinho no front (quando front ainda havia e, por mais atrozes que fossem as guerras, ainda teimassem em encontrar ,os poetas e cantadores, algo de garboso na carnificina), todos os companheiros de campanha abatidos, hoje baixas de guerra, cerrando o cenho, um brilho estranho nos olhos, a levantar-se de sua ensanguentada trincheira, de súbito, pronto para morrer em nome de sua bandeira, desde que consiga levar consigo quantos filhos da puta (claro, estamos falando do inimigo) conseguir alvejar nos seus irados estertores.

! Nenhuma pretensão de tentar organizá-las (as vozes, que para as guerras não faltará quem as organize), visto ser já uma batalha perdida no seu

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início. Nem mesmo lhe ocorreu a idéia de eliminálas, uma a uma que fosse. Não vá o leitor menos atento recorrer à imagem da qual acabamos de lançar mão, do heróico soldado que se dispõe a morrer para matar quantos conseguir; é certo que "heróico", dirão uns, "suicida estúpido", dirão outros, são opiniões, e feliz do mundo por divergirem tanto. Mas era apenas aquele desejo de ouvir e tentar entender o que diziam aquelas vozes, que lhe acompanhavam desde a mais tenra infância, ou, como diz o popular, desde que se entendia por gente.

! Quem passasse por si naquele instante decerto não compreenderia o olhar que lançava, por

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sobre o mar, como divisando o infinito. Se bem que nos dias de hoje não se perde mais muito tempo a olhar ou tentar entender o que quer que se passe na cabeça dos passantes. “Já tenho problemas demais para preocupar-me com desvendar os seus”. Ou talvez, passasse por ali naquele instante alguém menos centrado em seu próprio umbigo, e quiçá entendesse que aquele olhar lançado tão ao longe, tão perdido, atirava-se, de fato, para o precipício interior de si mesmo. E, digno de nota seria, embora acreditemos que tal observador tão atento não viesse nunca a passar por ali naquele instante, mas fitasse ele aqueles olhos e teria a certeza inabalável de que já agora era uma queda livre em que se lançava o ser olhante e olhado, mas que seus olhos já

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não traziam em si a expressão de medo tão comum nessas aventuras de incursões ao interior de si mesmo.

! Mas quem deveria olhar quem olhava não passou e, portanto, não olhou, nem viu... vimos nós apenas, aquela expressão indescritível de um olhar que olha o mundo por primeira vez e diz, resoluto: “serei teu, mas serás meu, também!” e cerra os dentes, como a selar uma ameaça que carregará consigo agora por todos os instantes de sua vida.

! E é natural que com tudo isso vá se passando o tempo, os minutos, mais precisamente, que vão tecendo horas, e aquele sol que teimava em não

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tocar o horizonte, como nos tempos bíblicos se prolongavam os dias, à mercê de Deus, para que vencessem batalhas os seus eleitos, lentamente deixouse sucumbir, abrindo espaço a uma noite límpida, clara, pontilhada de estrelas, aqui e acolá, num primeiro momento, depois bordando toda a abóbada celeste.

! O que se ouvia agora era já um silêncio que se fazia acompanhar por uma escuridão. E entre ouvir-se um silencio e ver-se uma escuridão haverá tanto sentido quanto entre ver-se um silêncio e ouvir-se uma escuridão. Escusado dizer que apenas os que já viveram tamanha experiência estarão agora assentindo, de forma meio tácita, disfarçada – não

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se revela uma coisa dessas aos quatro ventos – mas não sem um certo sorrisinho irônico nos lábios, e um leve balançar da cabeça, em sinal de concordância. À outra metade da humanidade (e dizemolo aqui em relativo, entenda-se, uma vez que dividimos a humanidade entre os que já experimentaram tal sensação e os que ainda vão experimentar, embora nenhuma pretensão tivéssemos de quantificar – 3 bilhões pra cá, 3 bilhões pra lá) , por mais que tentássemos explicar (e não o faremos, por certo, por tarefa impossível que é), não encontraríamos satisfação. Portanto, à lua.

! Deposto o sol de seu reinado de meio dia, uma voz lhe veio convidar a olhar a lua. – "É mes-

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mo, quanto tempo faz que eu não me lembro de encontrar a lua" – pensou para consigo. Importante frisar, uma vez que de tantas vozes vimos tentando dar conta, que em pouco tempo estaremos já afônicos, que não veio de si a voz que lhe convidava a olhar a lua. Não estava inserida no burburinho de suas vozes interiores.

! Claro que quando se fala LUA, pensa-se logo em quê?! Lua cheia, plenilúnio, a grande bola prateada e brilhante pendendo no céu, passeando sua beleza e sua solidão por um caminho todo de treva, mas de treva boa, que esconde tanta vida, tanta energia, tantos desejos. Mas não era o caso, naquele início de noite, visto que a lua nova, mais

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sombra do que lua mesmo, brilhava tímida, bem próxima do ponto exato onde minutos antes o sol mergulhara todo o seu esplendor.

! Quando criança imaginava que duas fases apenas bastariam para a lua : Lua Cheia e Lua Vazia. Divertiu-se ao recordar-se de seus pensamentos de quando ainda era inocente. E, não sabemos se disse mesmo, ou se pensou tão alto que daqui pudemos entreouvir, balbuciou entre um sorriso meio moleque, olhos úmidos, e um suspiro: "Lua Vazia..." naquele instante deu-se conta de que sua vida entrava também, novamente, em fase de recomeço, e aduziu: “Está, como eu: já a certa altura no céu, renascendo, após esvaziar-se por completo!” –

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essa sim, uma frase digna de ser dita aos quatro ventos, ou a quantos existam.

! Infelizmente, porém, por mais poética que soasse a frase que não sabemos se disse ou pensou, exprimia ledo engano de sua parte, uma vez que apenas iniciava seu processo de esvaziamento. Pois assim como as marés são cheias ou vazantes, nunca cessando seu movimento, e ao desavisado jamais bastará olhar para perceber em que ponto encontram-se de seu interminável ciclo, também ele agora começava a aperceber-se de que a vida é esse pêndulo incessante, ora cá, ora lá, para novamente tornar a cá e lá, mas sempre movimento.

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O que quer que lhe quisessem dizer aquelas vozes, enchia-se de coragem, como já vimos, mas para um mergulho no profundo desconhecido de si mesmo. Ciência de um regresso é certeza que não se pode ter, em empreitadas de tal vulto. Porém de certezas vivem nem os corpos estáticos, que vai que as placas tectônicas se resolvem mover de hora pra outra, e olha o próprio Everest (a comparação é exagerada, mas verídica, e visa justamente a dar uma noção clara de quão estáticos nos encontramos em nosso movimento constante), rei de todos os montes, a crescer ou a diminuir, ao sabor de elementos que sequer podemos enxergar...

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“Estou pronto!” – batia no peito e enchia-se de falso orgulho ao dizê-lo. “Que venham!”

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! A PRIMEIRA VOZ

! “Ainda posso salvar-te!”

! Foi o estrondo de mil trovões, acompanhado de um átimo, um segundo, minutos ou um século de perplexidade, medo, verdadeiro pavor.

! Tentou desviar a atenção para as duas senhoras que ensaiavam pequenos passos de dança, à beira do mar, como se sós estivessem na praia, naquele momento. Também ele se imaginara só, ainda que rodeado de tantas pessoas, com seus ruídos tantos, olhares curiosos, mas, absorto que estava em

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seu ensimesmamento, simplesmente se esquecera de que mais mundo havia do que aquele que parecia engalfinhar-se em tons de vozes serenos no oco de seu eu mesmo. Por um momento abstraiu-se de sua abstração e pôde perceber que era uma daquelas músicas baianas, inútil tentar identificar, uma vez que se parecem todas a mesma, que as duas senhoras, mais avançadas em peso que em idade, em seus grandes maiôs estampados, iniciavam em pequenos passos, e agora, já mais senhoras de si, já arriscavam levantar os braços, estampando largos sorrisos nas caras torradas de sol. Impressionante o que essa brisa, esse mar, esse fim de tarde perfeito e, sobretudo, a distância de casa não faz com as pessoas. Duas crianças sexagenárias a se exibirem ali, ao

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alcance de um olhar, quase dos dedos, como num desses programas dominicais de calouros.

! “Ainda há tempo!” – insistiu aquela voz, agora um pouco mais suavemente, como que içando-o do momento de alegre fuga que encontrara nas duas histriônicas velhinhas que seguiam sua dança improvável, caminhando em direção oposta. Não havia como ignorar; era consigo que falava aquela voz.

! Ao menos neste segundo contato já não lhe parecera mais estentórica como um trovão. Creditese a primeira impressão ao susto, ao inesperado. Sabemos que o mais leve e doce miado de gato –

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que não há outros bichos que miem é coisa que não podemos afirmar de forma assim tão categórica; tanto ainda por se descobrir “entre o céu e a terra” – pode fazer saltar da cadeira o mais valente dos guerreiros, encontre-se este absorto em seus pensamentos mais íntimos e, pior ainda, inconfessáveis. Tinha um quê de feminina essa voz que insistia, diríamos até uma tendência ao langor, o que, pelo tom talvez diminuísse o que de ameaça trazia, mas as palavras que balbuciava, essas sim, eram de arrepiar.

! “Salvar-me?!” – foi o que primeiro lhe veio à mente, que de boca já sabemos que não estaria a falar, vai que passa alguém e começa a divertir-se

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com o louco, a crer que, há segundos, eram as velhinhas dançarinas, agora já está ali o rapaz a falar sozinho, daqui a pouco vão achar que nesta praia se respira algum ar que leve à insanidade e olha a saúde pública interditando um lugar tão bonito, tão turístico.

! “Ainda posso salvá-lo!” – repetiu a voz, agora num quase sussurro que deixava transparecer um quê de cansaço, senão de tédio.

! “Primeiro me diga de que preciso ser salvo” – eram sinceras essas palavras. Uma vez que batera no peito há minutos atrás e dissera a si mesmo “que venham as vozes”, exalando uma coragem que não

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tinha, o mínimo que podia fazer neste momento era encarar seu pânico com o que ainda encontrasse de dignidade dentro de si. Sabemos que quanto maior o medo, mais ameaçador se nos torna o oponente, principalmente se no-lo consegue perceber o cheiro. Cresce aos nossos olhos, ilusão de ótica da emoção descontrolada, bem como cresce em razão e entusiasmo – oponente com medo, meia batalha vencida, assim pensará.

! Tratava, então, de simular uma coragem que de há muito já se apercebera não possuir, mas se era pra enfrentar o diabo, ou quem quer que fosse que lhe viesse com propostas de salvação – se é que de salvação alguma pode falar o diabo, são incon-

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gruências a que o medo nos leva – que se o fizesse então da forma mais rápida e indolor possível.

! “Travaremos aqui o mais insólito dos diálogos. As respostas que te trago, conhece-as todas de antemão. As perguntas que me fazes, também de antemão as conheço. Porém, se de palavras vamos brincar, façamo-lo com maestria, que nos apetece aos dois. O tempo de que dispomos é ilimitado, começa aqui nosso duelo e sabemos ambos que, dependendo de ti e de quão brava ou covardemente o enfrentares, terminará ou nunca. Portanto, quem pergunta agora sou eu, e fá-lo-ei uma única vez : estás pronto?”

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Num quase soluço de quem diz agora ou nunca : “Sim!”

! “Digo-te já que começaste bem a tua jornada, ainda que mal também te posso dizer que começaste. Cheio de uma empáfia que mal te disfarça o pavor, ousaste fazer uma pergunta que ao vulgo geral sequer tocaria, em momento de tão profunda e descontrolada emoção. Diante da urgente proposta de salvação que te lanço, agarrar-se-ia o populacho a qualquer tábua que se lhe fosse ofertada; na serpente veria corda, na rocha, boia, no escárnio, consolo. Mas provaste uma têmpera inquiridora, sinal de ventura ou grande desgraça, conforme se desenrole este nosso colóquio.”

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! Já menos perplexo, entregava-se agora de forma mais franca ao embate que se avizinhava, vez que, como já dissemos, acreditava não ter mais nada a perder. “Ainda não é a resposta que lhe peço. A salvação da sede é a água, do frio, o agasalho, do náufrago, a ilha. Não existe salvação onde não há perigo, assim como não há perigo sem salvação. A que me oferta, que desde já lhe agradeço, se é que devo, ainda não sei a que perigo se refere.”

! Em tom inabalável face ao belo jogo de palavras que se lhe lançava, com um quê de impacientes e quiçá até mesmo acusatórias – não será, em toda a história da Humanidade, o ataque a melhor

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defesa de que se dispõe?! – prosseguiu a voz: “Pois que o perigo a que me refiro, ainda que o conheças bem, desde sempre, desde que despertaste em tua consciência esse raciocínio inquiridor, inquieto e insatisfeito que ora, mais uma vez, revelas, encontra-se contido em todas as criaturas, mais ou menos na superfície de seus seres, se bem que algumas jamais sequer se aproximaram dele, como acabas de fazê-lo agora.”

! “Ainda evasivas! Busco respostas claras, que, se não me pode dar, pois que deixe-me em paz em minhas elucubrações, que mais não tenho que fazer no momento, bem o sabemos, mas que, se é pra fazer nada, que não perca meu nada fazer com

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essas inquietações que considero inúteis, uma vez que seguimos dando voltas sobre discursos vazios.”

! “Tua impaciência é minha aliada. Se quero realmente salvar-te, e até agora apenas eu creio nisto, acredito estarmos caminhando na direção desejada.”

! “Não posso crer na salvação de um perigo que ignoro, torno a dizê-lo. Mas se queres convencer-me de que dela necessito, aqui estou para ser convencido, testado; desde que se me revelem os riscos a que estou exposto.”

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“A criança teme o fogo, por trazer dentro de si, desde seus mais remotos ancestrais, esse temor incrustado no seu mais profundo ser. Porém deixase cair na tentação de tocar uma panela que esteja sobre a trempe, encontrando o fogo onde não o via. Assim o homem feito consegue perceber os perigos que vislumbra com os olhos da sua carne: a fera, a fome, o frio... olhando para fora de si, assegura sua existência material, a sobrevivência dos seus, a perpetuação de sua espécie. Vivemos porém, tu hoje, eu, desde sempre, tempos novos, em que os perigos se avolumam na esfera do não-visível. Perigos novos para novos tempos. É deles que procuro afastar-te e encontro resistência. Nada de novo,

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uma vez que certa estava de que encontraria tal reação.”

! Pausa de segundos, o ar está pesado com as palavras que, agora como a todo instante, mais confundem que esclarecem. Segundos que parecem horas, dias. Ele percebeu que a voz não mais falaria enquanto não lhe arrancasse um rebater. Assim seguia seu brinquedo de palavras, aos poucos percebia.

! “Suas figuras são belas, suas palavras recheadas de uma sabedoria um tanto superficial. Se dissermos ao menino “não toque esta panela, que está quente” e ainda assim ele decidir tocá-la, fá-lo-

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á já com a consciência do risco a que se entrega, embora quente não seja algo que se possa ver. Mas, toque-a uma vez apenas e desaparecerá, por certo, o desejo de tornar a fazê-lo. A isso chamamos aprender com os próprios erros. Continua não vendo o quente, mas traz dentro de si uma sensação condicionada ao termo, desagradável e dolorosa, por certo, que lhe balizará os próximos passos.”

! “Sábias palavras, quando se considera a possibilidade da existência de próximos passos.”

! “Que me diz, então?! Que o perigo ao qual me acerco é de tal monta que será irreversível?! Um tanto dramática exposição e um tanto questio-

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nável preocupação, uma vez que tergiversa, enquanto minha ignorância parece me atirar ainda com mais velocidade a semelhante precipício.”

! “Falas de maneira sábia, enquanto procuras provocar-me a ira e a impaciência, para que, no descontrole de minhas emoções, se as tivesse, eu lhe possa atirar a resposta a que já anseias, podemos percebê-lo, por mais que te negues. Mas enganas-te ao supores que a ignorância te acerca do perigo; antes, doce ignorância, bálsamo infalível contra todas as dores humanas, quando não te afasta, uma vez que permaneces teimosamente inarredável, mantém-te a uma distância ainda segura. Lançasse eu agora, num grito de cólera, a resposta aos teus

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questionamentos, por mais que saibamos que já as tenhas, e estarias irremediavelmente corrompido. Não mais a criança que teme tocar o quente, porque um dia o quente já se lhe fez queimar. Essas sensações plausíveis, já to disse, podes pressenti-las com teus olhos de carne, com teus nervos, com teu faro, bicho ainda que és, pelejando por alçar voos a que ainda não te comportam as asas.”

! “Tanta prosopopeia, tanta metáfora e me atiras cada vez mais num vazio!”

! “E eis que te aproximas da resposta, caminhando em direção oposta. Pois se é justamente de onde almejo te alijar.”

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! Beirando a exaustão, uma vez que a impassibilidade daquela voz e as figuras confusas que se lançavam a todo instante se lhe assemelhavam a um tropel de letras soltas, atiradas a esmo a um vento que lhe embaralhava os próprios pensamentos, ele que os tinha presos em tão organizada fieira minutos ou horas atrás, que já perdera toda a noção de tempo, suspirou profundamente: “Diga-me, então, eu lhe peço, eu lhe imploro, se é isso que deseja, me prostro e me humilho: como posso me salvar de tão iminente perigo?”

! Acreditava, desta forma, poder fazer o caminho inverso dessa equação que lhe parecia cada

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vez mais absurda : dadas as variáveis, muitas, que possuía à sua frente, talvez o conhecimento da resposta que se lhe queria lançar lhe pudesse fazer adivinhar a pergunta que se lhe tornava cada vez mais urgente compreender : “que perigo estarei correndo, se correndo estou?”

! “Recua!”

! Sabemos o quão pesadas podem ser as respostas lacônicas, principalmente se pronunciadas no imperativo, como um “Recua!”, lançado fora de contexto. E era justamente o chão que lhe faltava neste momento : o contexto onde apoiar-se. Jogos de palavras sempre foram sua especialidade. So-

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fismava com talento e maestria, fazendo questão de confundir a quantos pudesse lançar as redes da prosa fácil, sedutora. Mas detinha sempre as rédeas, a fim de que não se perdessem no vazio as ideias que lhe aprazia manobrar. Quando muito, não obtinha o resultado esperado, nas manobras intricadas que imprimia às idéias, por ignorância do pobre interlocutor, as mais das vezes. O contexto era, na maioria das vezes o piso seguro pelo qual caminhava e tentava conduzir seus pares, visasse a rechaçar ou acolher uma ideia.

! Mas agora o que via era muito maior do que um enigma. Uma ordem tão expressa e ao mesmo tempo tão vaga lhe soava muito mais como nova

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variável na equação que se estendia do que na tão esperada igualdade, que pretendia com seu ato desesperado de contrição.

! Ao ouvir a inesperada ordem “Recua!” dá dois meios passos atrás, automaticamente, como alguém que se depara diante de um grande perigo que sempre estivera à sua frente, sem que se apercebesse até o momento. Coisa de automatismos, de criança que recua diante do quente, do fogo ou de qualquer ameaça que lhe tenha sido apresentada. A voz, se rosto tivesse, imaginava ele, estaria agora dando um meio sorriso de contentamento, ao ver o parcial êxito de sua argumentação, ao ver recuar, debaixo de uma ordem tão simples, tão

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lacônica, aquele homenzarrão que já trazia nos olhos, diante da impotência de seus argumentos, o desespero da criança que se vê perdida de seus pais em praia em dia de domingo: todas as sombrinhas rigorosamente iguais, todas as mães, pais, avós, rigorosamente os mesmos, todos os baldinhos, pazinhas, boias da mesmíssima cor. E quando dá por si, ao afastar-se alguns metros mais do que deveria, atrás de um siri, um tatuí, uma concha, ou qualquer coisa que se mova ou não, que à beira do mar tudo ganha uma vida diferente, percebe que talvez esteja seu porto seguro – claro que dos pais falamos, ou da mãe, ou apenas do pai, que essas coisas de famílias carecem cada vez mais de apostos, definições, parênteses e explicações nos dias de hoje – esteja

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na verdade em outra praia, e como sabê-lo, se todas as praias são iguais em areia e mar e gente e esse sol, que jorra uma luz que a tudo transforma, criando miragens e ilusões.

! Perdido estava o pobre e deixava transparecer todo o seu desolamento. Vítima de um jogo que tanto lhe apetecera durante toda a vida. Pior ainda, haver ouvido já daquela voz, que em toda a discussão nada perdera de sua mansidão quase irônica, que as respostas e perguntas que se estariam lançando eram todas de presciência mútua. Pior ainda que ouvir, era sentir-se na obrigação de concordar, posto que algo dentro de si, e falamos agora não de uma voz, que seria já outra, e ao encaixar vozes

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dentro de vozes, que suscitam outras vozes, estaríamos pisando um terreno perigoso, que conduz ao infinito, mas falamos agora, sim, de uma sensação interior que lhe indicava que desde o início de tal colóquio, melhor debate, seria chamá-lo, tudo o que até o presente ocorrera já era de seu total conhecimento.

! Eis que se desenha, então, diante de si, o quadro sombrio a mostrar, qual espectro projetado sobre a áspera parede de uma caverna, os contornos nítidos daquele perigo que tanto se debatera por ignorar e conhecer. Seu antes apenas temor agora beira o desespero incontido e lágrimas tão visíveis quanto a voz que se lhe fazia interlocutora lhe ro-

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lam copiosas pelas faces. Frente à inevitável constatação, desaba o homem sobre seus joelhos, num implorar que seria patético, não fosse tão sincero e comovido:

! “Diga-me, por tudo o que há de mais sagrado! Preciso ouvir, preciso das palavras a me ecoarem no íntimo por toda a eternidade! Sei o risco que corro, se assim se sente melhor; admito-o, a contragosto, pois que a ninguém conforta admitir que se enganava, ou que ocultava de si e de outrem uma verdade de tal modo eloqüente que bastaria um breve olhar para que se a perceba; verdade que grita, que berra, que esbraveja diante de minha pretensa indiferença.”

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! “Nada mais te poderia perguntar, visto que ao principiar essa nossa conversa, que agora começa a assumir ares de produtividade, prometi que apenas uma pergunta faria. De qualquer sorte, tampouco me interessaria a resposta que me desses, uma vez que a ti apenas compete modificar o destino a que te atiras. Consciente estou, todavia, de que se te perguntasse, novamente te enredarias na trama de teus questionamentos e dúvidas. E tenta-me tal possibilidade, mas não posso quebrar a promessa ainda há pouco feita. Creio ser chegado o momento, entretanto, de revelar o que já conheces.”

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Não sabia se suspirava aliviado ou desesperado. Angústia irreprimível lhe torcia o ventre, como uma tenaz a lhe apertar por dentro. Após o suspiro, era como se lhe faltasse a respiração, por mais longos fossem os haustos que tentava sorver. Olhos muito abertos, já não traziam o brilho de antes, mas a umidade de lágrimas imaginárias, que serão essas as mais amargas, aquelas que não choramos quando foi hora de fazê-lo; lágrimas tardias são como ácido a penetrar nos olhos, num chorar pra dentro.

! “Então?!” – e sua voz já não era mais que um sussurro, seguido de um segundo de quase um século.

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! “Ainda podes salvar-te!” – silêncio, e podia adivinhar-lhe a expressão da face que não possuía, agora grave, olhos apertados, meio perdidos num horizonte que não fita, mas que sabemos lá estar, a boca cerrada com certa energia, ar sisudo de quem oferece uma última oportunidade ao condenado à fogueira.

! “Já mo disseste! – e o sussurro tímido cede espaço a um daqueles gritos de quem já não agüenta mais. “Aliás, oxalá nunca mo tivesse dito e estaria eu ainda gozando de minha paz e tranqüilidade, que me roubou assim de forma tão cruel e abrupta!”

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“Enganas-te, porque não mais te disse que “ainda posso salvar-te” e me deste ouvidos. Entre uma e outra frase existe grande diferença, um abismo, qual o que existe entre nós e que vem a ser o objeto mesmo de nossa discussão desde o princípio. E eis que te respondo, agora, pelo que tanto ansiavas revelado: o abismo. E dou por cumprida minha tarefa. Doravante estás novamente só, até que consigas novamente formular as perguntas corretas. De momento, conserva-te onde estás.”

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! O SEGUNDO SILÊNCIO

! ! Dentro de si apenas estupefação. Uma vontade louca de sair dali correndo, sem olhar para trás, fugir em desabalada carreira sabe-se lá pra onde, mas não havia fugir. A luta estava apenas no princípio, embora as forças já lhe faltassem, mas claro que não se dera por satisfeito.

! “Alto lá, que ainda não demos por encerrada nossa conversa! As respostas que crê me haver dado me suscitam ainda mais perguntas, e cada nova pergunta, se respondida está, me enche cada

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vez mais de dúvidas, com as quais não poderei conviver. Sabe muito bem que tenho uma alma inquiridora, que não me satisfaço com tão pouco.” E tamanho era já o seu desespero, que pronunciava em voz alta, alterada, até, diga-se de passagem, tais palavras, chamando a atenção dos poucos passantes que por ali ainda se encontravam.

! Como resposta, um silêncio que, de tão profundo, era como se muitos silêncios se houvessem vindo juntar, formando uma coluna espessa a pesar sobre sua cabeça, oprimindo-lhe todo o corpo. Não podia acreditar no que não ouvia. Acelerava-se-lhe já o coração, descompasso total, parecia-lhe querer saltar pela boca.

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! “Responda-me, covarde! Eu exijo! Covarde! Covarde!”

! Inútil. No fundo sabia que aquela voz proferira suas últimas palavras, desaparecendo de forma tão sutil quanto minutos, horas, dias atrás - que horas seria aquilo? - perdera completamente a noção de tempo, espaço - tomara de roldão sua vida, como se lhe violentasse e lhe arrancasse o pouco de dignidade que ainda queria acreditar possuir . Quando apercebeu-se de si encontrava-se já em seu quarto de hotel, nu e molhado sobre a cama, lá fora noite, estrelas. Foi quando lembrou-se de consultar o celular, que estivera silencioso até então, e finalmente

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um alívio, entre tantas aflições : ainda estávamos no mesmo sábado, coisa de 40 minutos após haver soado a maldita sirene do maldito automóvel.

! Quis acreditar que tudo não passara de um sonho, mas a sensação de vazio que lhe constringia o peito, que lhe fazia girar a inteligência numa velocidade inimaginável, não deixavam qualquer margem de dúvida. Estivera realmente duelando com aquela voz num diálogo de tal forma absurdo que jamais se recordara haver presenciado outro, em toda a sua vida.

! Persistia a vontade de fugir, desaparecer, tomar o carro e largar-se pelas estradas, rumo norte,

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rumo sul, rumo nenhum, de que importa, mas tinha a plena consciência de que daria novamente com a cara no muro intransponível de suas dúvidas. A certeza absoluta de que jamais tornaria a escutar aquela voz, isso era certo, sem que conseguisse decidir se era, no entanto, bom ou ruim.

! Olhou-se no espelho e pôde ainda perceber a expressão de espanto, que trazia congelada nos olhos. Novas rugas pareciam haver surgido. Estava exausto, tomado de intensa fadiga. Um banho. Nada como um banho nessas horas. Quem sabe a água não lhe levava também esses pensamentos, insólitos todos, ralo abaixo, deixando-lhe novamente a sensação de leveza que, puxando bem pela

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memória, não se lembrava haver sentido em toda a sua vida. A paz era para si uma quimera, algo almejado em todo o seu sempre, de que tivera ínfimas demonstrações em diversas ocasiões, nem tantas assim, talvez, mas que nunca sentara raiz em seu espírito, cada vez mais sequioso dela. Um banho. Decididamente, era disso apenas que precisava. E nessa ilusão vã, e soltamos aqui involuntariamente um pleonasmo, que serão vãs todas as ilusões, não obstante as alimentarmos com tanto entusiasmo, na esperança de que nunca cheguemos a tal conclusão por experiência própria, embora a vida insista em nos desapontar, dirigiu-se ao banheiro, banheira, hidromassagem, imersão, água morna, a cura pra todos os males superficiais do corpo, pequeno con-

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forto; não deixa de ser um alívio, pra alguns males da alma.

! Daqui a pouco, sair para comer alguma coisa, não que fome sentisse, mas fraco estava depois de tanto engalfinhar-se com um(a) desconhecido(a) tão mais poderoso(a) e, abusando de tal poder de forma impiedosa, sabemos todos o quão mais poderosas que pontapés podem ser as palavras, lhe conseguira sugar todas as energias. Definitivamente, sair para comer algo, sob a luz quase nenhuma daquela lua nova em folha, era a desculpa perfeita de que precisava para simplesmente mudar de ares, sentir um pouco mais de maresia a lhe entrar pelas narinas, ver gente, como aquele casal que da sacada

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via passando, com sete crianças espalhadas pela rua de terra, a mais velha quiçá contando seis anos, se muito, eram coisas interessantes de ver e dar um pouco de espaço à sua mente tão cansada.

! Estava feliz, claro que exageramos, mas um pouco mais senhor de seus pensamentos, podendo já distraí-los com tudo o que se lhe ocorrera nas últimas três semanas. E não queria chegar a conclusão nenhuma, somente mais uma cerveja, uma moqueca, muita pimenta. Deixar pra pensar depois que tudo o que aconteceu nas últimas três semanas da vida de todo mundo é apenas a repetição em versão compacta de tudo o que aconteceu nos últimos trinta e dois ou sessenta e nove ou cento e quatro anos.

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! Uma moqueca, duas cervejas e cama.

! Naquela noite dormiu cedo como hĂĄ muito nĂŁo fazia e foi o sono mais pesado do mundo, sem sonhos, sem pressentimentos, sem o mais leve tremor de pĂĄlpebras. Vazio completo.

!

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! O PRIMEIRO AMANHÃ

! Acordar é mais ou menos como reencarnar. Aquela crença besta de que tudo é novo, diferente, como se aqui não houvéssemos estado na noite anterior, como se aquelas paredes que ora barram a luz do sol, que insiste em penetrar em todos os ambientes, às vezes até mesmo em nossas almas, mesmo que de um pouco de sombra precisemos, não houvessem sido testemunhas da discussão daquele casal, ou dos pensamentos pecaminosos daquele pervertido solitário, até mesmo das últimas dores daquele ancião que acaba de partir.

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Depois de uma noite daquelas, mover de lado as cortinas e perceber um sol que banhava de luz aconchegante a areia e o mar, o céu, o prédio, até mesmo seus olhos, ainda sensíveis do sono que vagarosamente espantava, foi o ópio de que necessitava para novamente se deixar cair na ilusão de que tudo não passara do sonho mais estranho que já tivera na vida.

! Da conversa falamos, naturalmente, que a coisa das últimas três semanas fora conclusão a que ainda não se permitira chegar; deixemos que os fatos transcorram de forma natural e gradativa, pois que seria muito exigir de alguém que acaba de acordar e que ainda se esforça por despertar.

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! Lá fora o sol e cá dentro a certeza confortadora de que não há nada que um bom dia de praia não resolva. Um bom café da manhã, sem exageros gastronômicos, que a vida não anda pra essas coisas, mas substância suficiente para engatar uma caminhada pela areia ainda não muito quente, mal passava das oito. Coisa boa ter na mente uma única preocupação diante daquela praia quase vazia: se deveria sair para a direita ou para a esquerda. Era a única pergunta que se fazia naquele instante e, sem se interessar muito por quê, decidiu tomar o rumo da direita, que parecia ser mais longo. Por um instante lhe ocorreu que a Terra era redonda, e que pouco importaria sair para a direita ou para a es-

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querda, desde que dispusesse de tempo bastante para seguir sempre em linha reta, na direção escolhida. Muitos passos depois estaria, seguramente, retornando pelo caminho que negligenciara. É claro que eram comparações dignas de desenho animado, mas animado mesmo estava, ao sentir os beijos e abraços calorosos daquele dia que apenas começava, sem grandes surpresas, assim esperava.

! Mais uma vez lhe ocorreu a ideia de que despertava não para um novo dia, unicamente, mas para uma vida nova, enquanto seus pés afundavam naquela areia grossa e úmida, deixando atrás de si pegadas fundas, de quem anda decidido, embora sem saber para onde. Sentiu que a vida era um

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constante ir, e que ao caminhar deixaria, sim, atrás de si, muitos lugares não visitados, apenas passados, sonhos partidos, corações despedaçados, desejos não vividos, sorrisos não dados, que, não saiba o querido leitor, sorriso não é algo que se empreste e depois se tome de volta, uma vez partido do coração, que é de lá que vem o comando, o sorriso passa a ser de quem o recebe, não mais nos pertencendo; e eram filosofias a que se entregava, como quem caminha na areia ou se debulha em lágrimas, ou, ainda, afunda-se até o pescoço na biblioteca de Alexandria, a beber da fonte dos grandes nomes do pensamento humano. Ou então, apenas o cismar de um pessimista cada vez mais convicto. Ou de um cada vez mais pessimista, convicto de que no fim

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tudo se acerta, todas as peças se encaixam desse imenso quebra-cabeças que é a vida da gente. E, no seu pessimismo invertido, ou subversivo, pode-se dizer, começou a refazer o caminho a que o fio de seus pensamentos conduzia, e pôde visualizar seu caminhar deixando atrás de si tantos sorrisos dados e compartilhados, tantos sonhos vividos, lágrimas de alegria e emoção, abraços, beijos, despedidas, reencontros, partires e chegares, e mais uma vez chegava à conclusão de que a vida era um interminável ir, mas agora um ir sem gosto de deixar para trás, mas com um sabor reconfortante de trazer para dentro de si, cada vez mais, a recordação das experiências vividas, das boas e das não tão boas, trazendo em si, cada uma delas, a semente de um

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crescimento que se experimentava lenta e gradualmente, nunca aos estirões, posto não dar saltos a natureza, já o ouvira e repetira tantas vezes. E fossem lágrimas ou sorrisos a regarem tal semente, o suor cálido do amor que se acaba de fazer ou gelado, dos momentos de angústia e tensão, de medo e incerteza, todos os momentos traziam em seu bojo a maravilhosa dor de crescer, que agora podia sentir ainda incipiente, deixando escapar um leve sorriso dos lábios. Que não o vissem os transeuntes, se transeuntes houvesse naquela porção já deserta de praia a que suas elucubrações o levaram sem perceber. Olhou para trás e já via o hotel como um pequenino ponto, muito distante, ponto de partida naquela manhã ensolarada de domingo, e agora, dan-

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do meia volta, prestes a retornar sobre seus próprios passos impressos na areia, ponto de chegada, destino, regresso.

! As ondas lambiam-lhe os pés mansamente. A doce sensação da água salgada revigorava-lhe, enchia-lhe de ânimo. A certeza de dias difíceis pela frente agora não mais lhe atemorizava como outrora. Disposto que estava a enfrentá-los todos, um a um, com paciência e serenidade, olhava para diante de si e via não mais um campo de batalha, não mais o velho front sedento de sangue e lágrimas, mas somente uma praia ensolarada, onde a vida se revela e se esconde, na superfície como nas profundezas, na areia como na água, tudo a se agitar, fervi-

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lhar, movimentar. O suor que lhe escorria pelas faces afugentava agora as últimas toxinas de pensamentos sombrios, que se deixavam absorver pela areia que repisava e deixava para trás.

! Dia lindo. Recomeçar era uma palavra que queria agora riscar de seu vocabulário. Nada de “re” lhe apetecia neste momento. Dia lindo! Dia de começar!

!

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! O PRIMEIRO ECO

! ! Seguia o domingo em sua tranqüilidade morna. Já a caminhada chegara ao fim, um banho de mar para reconfortar as pernas cansadas do trabalho exaustivo de pisar a areia macia, exaustão santa, que lhe fizera o favor incomensurável de limpar os poros e as idéias, clarear a mente e escurecer a pele. Desrespeitando todas as recomendações médicas e o próprio senso comum, esquecerase do protetor solar. Entre tantas memórias por carregar junto de si, preocupações, temores, desejos, esperanças e sonhos, simplesmente não se lembrara

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de juntar à bagagem física o frasco que comprara uma semana antes, ainda quando não tinha a menor idéia de quando viria a dele necessitar. Diante de tal ausência, única que lhe importava naquele instante, simplesmente deu de ombros, com aquele pensar tão comum: “um dia só não faz diferença!”- assim pensando se vive menos, mas assim pensando se vive mais e mais tranqüilo. Decidiu que uma prosaica sombra de castanheira seria o remédio perfeito para o seu perdoável lapso de memória e não se falaria mais no assunto.

! Notamos aqui que nosso amigo começa a permitir-se, como todos fazemos, diga-se de passagem, enveredar por assuntos banais, corriqueiros,

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muitas vezes como forma de fugir do que realmente nos preocupa. Mas, sem que nos permitamos uma cobrança excessiva de respostas racionais a todas as situações delicadas da vida, visto sabermos que se morre muito mais de expectativa que de erros efetivamente cometidos, relaxemos um pouco nosso ângulo de análise para encontrarmos em tais considerações, quer seja sobre o uso ou não do protetor solar, quer sejam as manobras que aquele navio faz ao longe, neste momento, quer seja o simples resultado do Fla X Flu de ontem à tarde, tais banalidades conferem aos assuntos realmente importantes, e respeitemos a inalienável relatividade inerente à importância dos assuntos, um aspecto de maior solenidade. Perder algum tempo a pensar asneiras, ou

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simplesmente divagar sobre aquilo que nunca nos importará, é como aquela paradinha para fazer xixi à beira da estrada: não se aproveita nada, mas seria impossível prosseguir viagem sem ela.

! É certo, porém, que aquele dia que começara tão cheio de luz e de vida, trazia oculto em cada passada na areia, em cada gota de suor, em cada pessoa que passava totalmente desapercebida por si na praia, que àquela hora já relativamente cheia se encontrava, nada que se assemelhasse a um dia de alta temporada, mas o movimento agradável que têm os balneários nos fins de semana comuns, tudo teimava em ecoar as palavras do dia anterior.

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“Ainda podes salvar-te!” e uma pontada de perplexidade lhe percorria a espinha. “Recua!” e um espasmo.

! Estranho que não mais a indignação ou o medo lhe assaltavam. Não há nada como alguns instantes, a algumas pessoas serão dias, ou meses, ou anos, esses instantes, mas seria óbvio demais dizer “nada como o tempo”, que este, sabemos, é o grande santo remédio para todos os males incuráveis da Humanidade e com a devida licença do amigo leitor, que ora imploramos, abriremos mais um parêntese na nossa modesta história, diante da importância das coisas óbvias, de como nos parece que, cada vez mais, o homem moderno parece de-

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senvolver um asco, verdadeira ojeriza por elas, como se lhes pudessem contaminar o intelecto, o real ou o pseudo, que para o observador desavisado em nada diferem, ao passo que, em nossa modestíssima e despretensiosíssima análise, a beleza do óbvio está justamente no que de acessibilidade ele nos apresenta, estando aí, pra quem quiser ver, tocar, cheirar ou provar; mais uma vez é o mundo moderno, ou o homem do mundo moderno, ou o pseudo moderno homem, visto que ainda estamos muito mais próximos das amebas que dos anjos menos graduados da hierarquia celestial, somos, antes, bestas mais equipadas do que nossos ancestrais préhistóricos, mas nem por isso menos bestas, mas bestas que se afastam do óbvio na necessidade que

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temos todos de demonstrar para a tribo nossa capacidade de inovar, de criar, de descobrir a pólvora ou o caminho para as Índias, não nos permitindo a contemplação de tanto que o Universo nos oferece a cada dia, em lições e paisagens e caminhos – fecha parêntese e pede perdão o narrador por tão pretensiosas digressões filosóficas – mas, dizíamos, nada como o tempo para nos mostrar o que antes não quiséramos ver, subentendendo-se entender.

! Aquela voz que lhe tocara o fundo do ser, de onde com certeza também saíra, que tanta irritação lhe provocara, com seus mistérios e enigmas, suas perguntas meio feitas e nunca respondidas, agora lhe soava menos ameaçadora que ontem. Passada

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uma noite e uma manhã, podia contemplar a mensagem, ainda demasiado hermética, com a serenidade de quem repete instruções ainda não compreendidas, analisando com mais calma e frieza. A curiosidade que cedera espaço ao temor tornava a ser curiosidade, despida agora do furor dialético, da vaidade de vencer o debate a qualquer custo, fazendo-lhe ver cajado onde antes vira espada e caminho onde antes vira campo de batalha.

! Salvar-se era uma necessidade que até então desconhecera por completo, mas que a cada pensamento tornava-se-lhe mais importante, essencial mesmo. Recuar, por outro lado, estava totalmente fora de seus planos. Não se vence um perigo des-

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conhecido; nunca se explorará uma terra jamais pisada. Fosse o temor - ainda presente, é certo, uma vez que não se escuta uma voz interior assim, impunemente, e se sai a assobiar o Guarani, como se nada se houvesse passado - não um tipo daqueles, que vivia gabando-se, ainda que silenciosa e dissimuladamente de sua inteligência e profunda capacidade de observação, mas fosse o temor a bússola e o astrolábio a lhe guiar os passos e, mais importante, ditar a velocidade, se caminho havia pela frente, caminho havia que se percorrer. Resignava-se de antemão a aceitar as conseqüências, quaisquer que fossem. Não seria ele a lamentar-se depois, novamente – quantas vezes já o fizemos – de não haver cometido os erros que lhe

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foram oferecidos e que, no princípio, todos eles, se lhe afiguravam caminhos tão retos e suaves. Quem tem medo de errar o gol não bate pênalti. E quem não bate pênalti não acerta nunca o gol.

! Com essa frase, que lhe massageava a vaidade como se um Albert Einstein fosse, embora evocasse o futebol como material de comparação, que mal há nisso?! tantos grandes nomes da nossa cultura, das nossas ciências, são fãs incondicionais do esporte bretão, enxergando nele ciência, poesia, arte, magia; certo estava de que não seria execrado por ela, enchia-se de uma súbita coragem, ainda não sabia ao certo para quê, mas lançava-se na jor-

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nada da qual jamais se afastaria em toda a sua vida e mesmo após aquilo que, para muitos, é o fim dela.

! “Ao mar!”

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! SEGUNDA VOZ – OU O ÚLTIMO AMANHÃ

! Sentia agora em seu coração uma paz inquietante, como o silêncio que precede os grandes acontecimentos, ou a melhora súbita do moribundo, que por instantes recobra uma lucidez que talvez nunca tivera, para então expirar. Sentia medo de não sentir mais medo diante do que não se lhe apresentava à frente, mas por cujos desafios sabia estar obrigando-se a singrar. Fosse o mar de suas venturas ou desventuras que se lhe descortinasse, não mais importava. O primeiro passo julgava já dado, num caminho que ainda não divisava, sequer ima-

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ginava-lhe o fim, mas que ao caminhante não há caminho, este se faz ao caminhar, era uma frase que se recordava haver lido há muito, em sua adolescência talvez, disso tinha certeza.

! Uns como que passos se foram aproximando, do nada, de lugar algum. Julgou ter sido vítima de uma alucinação auditiva, se tal existisse, não era hora de cientificismos, e em vão buscou com os olhos alguém que dele se acercasse. Não eram passos de quem pisasse a areia, era certo, mas o movimento que fizera fora completamente a manifestação de um instinto, já certos estamos de nossa condição de mais bestas que anjos. Sentia-se encrispar por dentro, como diante da iminência de um

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grande perigo, ao mesmo tempo em que tratava de controlar a respiração e organizar os pensamentos. Precisava deles todos no lugar, fosse já o inimigo, ou muitos, a se aproximar, poderia então, diante dos riscos que lhe oferecesse, dos ataques que lhe desferisse, delinear sua estratégia de defesa.

! De súbito uma sensação desagradabilíssima o assaltou: a de que a primeira voz estivesse regressando, anunciando-se de forma mais ostensiva desta vez. Por mais que conseguisse racionalizar o medo e todas as sensações desencontradas de que fora sujeito e objeto na noite anterior, enchendo-se da coragem do guerreiro que não teme encontrar a morte, por muito que tampouco o deseje, a simples

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idéia de que voltasse a girar sem rumo naquele redemoinho de interrogações e sensações desconexas lhe fez arrefecer por um instante.

! Não era gente que se aproximava, isto já estava decidido, assimilado e acomodado. Murmurou novamente consigo “ao mar” e procurou tranqüilizar-se como podia. Eram passos que ouvia, não uma proposição absurda de esfinge. Passos também eu os dou, pensou, como se medisse o inimigo ainda silencioso pelas suas próprias habilidades. Nada de novo, tentava reconfortar-se. Cessaram os passos ao que parecia ser uma distância já demasiado curta. Quem quer que se aproximara, estava já ao alcance de suas mãos.

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! “Diga o que quer e ao que vem! Não percamos nosso tempo com jogos pueris de esconder e assustar, que aqui não estamos pra isso!” – num tom de voz que era mais de quase pânico que de coragem propriamente dita, ainda assim tivera a capacidade de tomar a iniciativa da disparatada conversa. Aqui reiteramos ao amigo leitor que não pronunciou palavra, que esses diálogos (e até aqui monólogo, enquanto não responda; não se dialoga com passos) passavam-se todos no mais absoluto silêncio exterior, sem que se agitasse uma única molécula de ar atmosférico à sua volta, pelas vibrações sonoras que não expedia, mais que aquelas

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que a sua respiração, ora ofegante, ora um pouco mais, impulsionava.

! “Tempo?! Que tem a ver com tempo a batalha a que nos propomos?!” – era uma resposta que era antes uma pergunta, mas que já lhe trazia um grande alívio, pela simples manifestação daquele que, segundos antes, era apenas passos. Não estava louco a imaginar passos ou pancadelas ritmadas em código, para lhe confundirem ou esclarecerem. Ali estava realmente alguém que, interessante o bastante, lhe permitira iniciar o colóquio, ainda que não lhe tocasse qualquer esperança de que pudesse ser sua iniciativa de modo algum maior do que o simples movimento inicial. Pelo teor da pergunta que

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recebera por resposta, ou melhor, por denúncia de presença, antevia que estaria novamente à mercê de um novo interlocutor.

! Segundo alívio: essa voz que ora lhe rebatia era de um timbre masculino, mais jovial e descontraída que a primeira. Para apreender-lhe o tom de gravidade parecia-lhe demasiado prematuro, mal começavam a discutir. Mas sentia-se mais confortável diante dela, da voz falamos, é certo. Deixou escapar um leve suspiro, como conclusão de suas análises que provocaram um segundo de silêncio, não mais que isso. Após suspirar, que responder?! Sabia-se diante de uma pergunta retórica, vez que desconhecia por completo a batalha ou caminho

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que se lhe estendiam. Se de tempo falavam, este foi o mote que captou, de tempo prossigamos, então.

! “Não há nada a que não toque o tempo, assim o sabemos e cremos.”

! “Não há tempo. E sempre o há.”

! Íamos bem nessa conversa, ainda mais desencontrada que a primeira começara. Coçou a cabeça, como que a tentar organizar seus pensamentos uma vez mais e partiu para uma ofensiva moderada, tentando desviar o assunto.

! “Diga-me que é!”

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! “Não o sabemos. Soubéssemo-lo e cá não estaríamos neste instante. Soubéssemo-lo e quiçá mesmo nossa existência se nos fizesse desnecessária, obsoleta.”

! “Ao menos nome terá?”

! “O teu...”

! Íamos decididamente mal em nossos propósitos. O interlocutor retrucava-lhe sem titubear, embora nenhuma agressividade se notasse em sua voz, e dizermos em sua voz acaba de parecer-nos um contra-senso, uma vez que todo o seu ser era

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sua voz, não era, sabemos, um ser que tivesse uma voz e nos permitisse dissociar uma da outra coisa... era uma voz que tinha um ser. Conservava o tom jovial, de quem conversa sem maiores pretensões que matar o tempo que jurava não existir. E falava sempre em primeira pessoa do plural, por que diabos seria. Mero recurso de oratória ou deveria ele incluir-se mais uma vez nas conclusões a que chegava o outro. Apenas concordar, agora. Vai que o tempo, existindo ou não, nos logre compreender amanhã o que hoje se nos mostra velado. Isso eram pensamentos que deixava transitarem em sua mente, quando foi interrompido.

! “Amanhã?!”

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! “Foi apenas um modo de dizer, ou, antes de pensar, uma figura.”

! “Assim é o amanhã, a mais abstrata das figuras, a mais inatingível das quimeras. Esqueçamolo por completo, a fim de que não nos venha a impedir a marcha. Pressa é certo que não a temos, mas desejamos com ardor divisar os primeiros metros de nossa caminhada, olhando para trás e percebendo algum avanço.”

! “Por que tamanha ojeriza, temor, sabe-se lá o quê, pela simples figura do amanhã, tão corri-

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queiramente utilizada aqui e amiúde?! Que risco pode nos ofertar?”

! “Nenhum! E todos! Não existe perigo maior do que a crença no inexistente. Muita cautela!” – e essa frase já soava um pouco mais ríspida que o tom geral que vinha sendo utilizado até o momento, o que ele encarou como sendo natural, diante de um perigo tão iminente. Nessas horas é natural que mesmo a mais fleumática das pessoas permita-se soltar um grito, não por impaciência, mas pelo sentido de urgência de que certas frases necessitam despertar em quem as deve ouvir. E nem sequer se assemelhara a um grito a última recomendação de cautela, que recebera da sua segunda voz.

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! “Confunde-me dessa maneira. Na hora em que começo a crer que tratamos de perigos reais - e é claro que neste momento está ele a vislumbrar um claro entrelaçamento entre a voz de hoje e de ontem, se bem que em momento algum isso lhe tenha sido mostrado de forma explícita. Mas, ora bolas, se louco estivesse ficando, que fosse apenas de uma loucura só, não fossem as vozes se aproveitar da primeira brecha para dele se apossarem de forma irremissível, conduzindo cada uma para um lado, ao seu total bel prazer, os destinos das desvairadas conversações. Isso não, jamais permitiria – se por tormentos tivesse que passar, e já chegara a conclusão de que teria, mesmo, que conduzissem todos a

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um lugar só! E passo a vislumbrar tais perigos com mais serenidade, ou, não sei, com um pouco mais de racionalidade, se me é permitido utilizar esse termo para descrever qualquer dos episódios pelos quais venho passando desde ontem, já me aparece você a me propor uma discussão filosoficamente absurda, ou absurdamente filosófica, já estou tergiversando, absurda e pronto! sobre a existência ou não do amanhã. Tenha a santa paciência, que a minha já se esgota!”

! “Abstenhamo-nos da utilização de termos como AMANHÃ ou LÁ e certamente estaremos mais empenhados na consecução de nossos objetivos. São abstrações a que ainda não estamos autori-

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zados, por mais que nossa teimosia nos impulsione a elas. E se nos pusermos a discutir sobre tais assuntos, estaremos comprometendo seriamente, mas não direi irreversivelmente, que isso já é um outro assunto, nosso AQUI e AGORA, que são tudo o que existe.”

! “Compreendo e acredito mesmo que poderíamos estar discorrendo por dias, ou, se assim o quiser, pelo menos até amanhã – foi uma pequena provocação verbal de sua parte, com um certo sarcasmo na voz – sobre esses assuntos. Mas não vejo em quê eles poderiam representar risco tão grande, uma vez que são apenas idéias.”

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“Não subestimemos o perigo a que as ideias nos submetem. Todas as grandes guerras, os grandes assassínios, as grandes tragédias, às geradas pelo Homem, nos referimos, naturalmente, bem como todas as grandes conquistas da Humanidade, não passaram um dia de simples ideias, cultivadas com zelo por sua mente geradora. Pensamento que cria, pensamento que destrói, pensamento que mata e que cura, tudo isso são perigos mais do que reais, por serem a fonte de tudo o que houve e de tudo o que é. Quanto ao que será, perigo...”

! “Parece ter medo de simplesmente pronunciar qualquer coisa que se relacione a futuro.”

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“Só falo do que existe!” – e era a primeira vez que soltava uma sentença em primeira pessoa do singular, o que, claro, foi registrado pela mente arguta de seu interlocutor, que agora entendia um pouco mais esse jogo de palavras. Até o momento, conclamações, sugestões, ordens, até, em frases em que ele figurava como sujeito e objeto, a maioria delas no imperativo. Era objeto de tais ordens. “Só falo do que existe” representava uma conquista já efetivada por aquele que lhe falava, mas que lhe faltava compreender e colocar em prática em sua própria vida, ainda.

! “Sejamos um pouco mais claros. – propôs, demonstrando um certo interesse na voz que agora

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já lhe saía um pouco mais descontraída – Quero concordar consigo, mas preciso de elementos mais precisos. Entende que estamos falando de provocar uma ruptura em um condicionamento de muitos anos, arraigado em mim como em todas as pessoas, poderia dizer.”

! “Pois bem, não nos contentaríamos mesmo com uma simples ordem: faz isso, não faz aquilo, que o tempo para tanta obediência há muito que já passou. Esperávamos realmente tal reação de nossa parte e para tantos nos preparamos. Portanto, aí vai uma pergunta: A quantas anda a nossa vida hoje?”

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Era uma pergunta demasiado difícil para ser respondida assim, em algumas poucas palavras. Tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, tantos pensamentos difusos, sim, confusos não. Se bem que, se não pudermos chamar confuso um homem que, sem mais nem mas começa a conversar deliberadamente com suas vozes interiores, que, como sabemos, o acompanhavam desde que o mundo era mundo para si, não poderemos chamar confuso a mais ninguém, ou, antes, chamaremos confusos a todos, que o mundo anda em tal estado que já ninguém consegue ter certeza mais de coisa alguma. Mas era uma pergunta que se recusara fazer a si, principalmente naquele momento, em que se vira obrigado a tomar tantas decisões e aguardar tantas

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outras. Tentou esquivar-se, como sempre fazemos, com um sorriso leve nos lábios, ar amistoso e disse:

! “Tudo indo...” – longas reticências. Não ousava dizer “tudo bem”, como é de bom tom entre as conversas. Verdade que ninguém pergunta “como vai” esperando obter o último relatório pormenorizado do seu bico de papagaio, nervo ciático ou tumor na próstata. É apenas uma muleta em que nos apoiamos como forma de dar o primeiro passo em uma conversa que muitas vezes desejamos até evitar. “Como vai?” – “Bem, obrigado!” e assim podemos passar ao assunto que realmente nos interessa naquela conversa, que, quase sempre, somos nós mesmos.

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! Tudo indo era uma resposta em si já reticente. Está tudo sempre indo. Para o céu ou para o inferno, para os píncaros da glória, para o buraco, para a sarjeta, para a felicidade ou para a ruína total. E, ir dos ires, para a morte, sempre.

! “Vês bem, agora, onde queríamos chegar? Ainda longe estamos de nosso destino, é certo, mas já começamos a comprovar nossa assertiva, com uma simples pergunta, das mais corriqueiras, digase de passagem.”

! “Não compreendo.” – mentira, claro que começava a divisar dentro de si a grande proposi-

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ção daquela voz que lhe queria enterrar o futuro, esse verme maldito, cuja expectativa nos corrói o presente.

! “Não consegues dizer-nos, a mim e a ti mesmo, note-se bem, a quantas anda o nosso presente. O dia de hoje, em si, já se nos afigura uma grande incógnita. E isso, ainda por muito que exista, assim será por um largo espaço de tempo, enquanto dele não tomarmos a devida consciência. Imagine, agora, AGORA, um amanhã que sequer se deu ao trabalho de existir. Quando te perguntamos “a quantas anda a vida hoje” provocamos em tua mente um turbilhão de pensamentos automáticos, reflexos, sondando o ontem, o anteontem, dez anos

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atrás, o dia em que deixaste de ser amamentado, o útero materno, o amanhã, depois de amanhã, 2020. E a mente não consegue digerir tanto tempo ao mesmo tempo. Só se vive o agora, que é a matériaprima que a mente consegue assimilar. Passado ruim é veneno que embota a digestão do presente, com seus remorsos, ressentimentos, ódios, desejos de vingança, de si mesmo e de outrem.”

! “Dissabores antigos...” respondeu ele, pela primeira vez ousando interromper uma daquelas vozes. Ao contrário da primeira, que lhe infundira grande medo, pavor, mesmo, essa segunda voz lhe falava de maneira mais próxima, sem grandes aconchegos, é verdade, uma vez que o assunto não

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deixava de ser intrigante, mas, não sabia por quê, sentia-se mais à vontade, mais conversando, mesmo. “Mas não haverá ninguém neste mundo, por mais pessimista e rancoroso, que haja vivido apenas momentos de angústia e tristeza. Há que lembrar-se também dos dias de ventura, de alegria, de leveza.”

! “Outra poção altamente maléfica. Passado bom é igual a nostalgia. Essa incrível predisposição que os velhos têm a dizerem: “No meu tempo a coisa era diferente”, como se diferente quisesse, de qualquer maneira, parecer melhor. Quando não é. Óbvio que “no meu tempo”, as coisas tinham que ser diferentes. E, nas “coisas” inferimos toda a

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vida, mas querem convencer-nos de que os jovens eram mais respeitadores, mentira!, de que a vida era mais fácil, mentira!, de que havia mais moral e mais “bons costumes”, mais uma mentira deslavada!” – e a voz começava a tornar-se emocional, o que lhe parecia, de certa forma, muito bom. Mais humana, mais acessível. Bom. “A única conclusão a que devemos chegar, despindo-nos de todo sentimentalismo idiota, execrável, tolo, é a que “no meu tempo” havia muito mais hipocrisia!” – e se tivesse rosto aquela voz, ele poderia jurar que estaria espumando de ira pelos cantos da boca, ainda que uma voz assim tão incorpórea nem boca apresentasse. Mas definitivamente sentia-se muito mais à vontade para o debate que se lhe apresentava. Podia

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conversar por horas a fio com uma voz, ainda que tão abstrata, que tão inexistente, mas que apresentasse emoções e até mesmo um certo descontrole. Não que tivesse, em hipótese alguma, o intuito de tomar o controle da situação, da conversa, em si – e agora até podia chamar conversa o que estava acontecendo -, nem lhe passou pela cabeça. Ouvir, sim, era seu grande interesse. Era a primeira vez que tais vozes lhe chegavam tão próximas, a soltarem palavras no mínimo inteligíveis; havia que aproveitar a situação e, das duas uma, ou enlouquecer de vez, perante a dor de tantas revelações, ou, pior ainda, para alguns, crescer e aparecer, diante daquilo que lhe parecia inexorável, mas ainda assim tão surpreendente.

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! Surpreendente porque nenhuma das idéias que lhe eram ali lançadas trazia em si o cheiro de novas. Sabia-as todas extraídas de algum arquivo inconsciente de sua psique. Nada de novo, mas simplesmente uma maneira nova de encarar o óbvio, o gritante, aquilo que, de tão aparente, por muitas vezes, passa despercebido, uma vez que nossas inteligências se voltam tão desesperadamente ao oculto, ao subliminar, sub-reptício (que palavra linda, já encantou, uma vez, pode encantar sempre). Porque simplesmente temos a necessidade, sempre, de parecer mais inteligentes e perspicazes do que realmente somos, deixamos passar incólumes tantas belezas que nos tornariam a vida no mínimo tão

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mais agradável. Mas assim seguimos, muita ciência, pouca humildade. - No meu tempo, os velhos diziam “no meu tempo”… aduziu, assim mesmo, quase sem aspas, por acredita sua, mesmo, a frase. Não deixava de ser uma “cutucada" verbal, bem dentro do contexto. Não houve resposta. Ou não ouviu… Já estava patente para si que o passado, por ruim ou bom que houvesse sido, envenenava a alma, ou a mente, ou a psique, ou o simples desejo de continuar vivendo num mundo diferente do “meu tempo”. Que aquele “meu tempo” que já passou não voltaria jamais, que era preciso sugar de

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tudo aquilo o que de ensinamento houvesse e simplesmente mover-se adiante, chegar novamente no hoje, de onde jamais deveríamos nos haver afastado.

! Ontem já era, dessa forma, uma palavra, ou antes um conceito, banível de seu repertório. E não fora assim tão difícil. Impressionante notar como as pessoas estão ávidas por assimilar novos conceitos, desde que para tal sejam dirigidas pelo pensamento racional, às vezes até emocional, não desprezemos aqui, de forma alguma, o valor das emoções nas grandes conquistas da humanidade, em todos os níveis, mas convença-me do que preciso ser convencido, pelo amor de Deus.

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! Conceitualizar tal mudança já não lhe parecia mais uma quimera. Vivenciá-la, sim, ainda estava distante de ser uma realidade automática em sua vida. Desvencilhar-se de todos os “ontens” que construíra durante toda a sua vida. Mas sentia-se animado a fazê-lo, o que, em si, já representava um grande avanço.

! A voz permanecera calada por alguns segundos, claro que levamos muito mais tempo a tecer estas considerações, mas considerando-se o diálogo entre nosso amigo e sua voz que já lhe soava quase amiga, falamos de uma pausa de segundos, apenas, para tomar fôlego ou apenas enfatizar al-

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guma frase de maior efeito. Truques da oratória, bem o sabemos.

! Animado, nosso amigo redargue: “Uma vez que fartos do ontem estamos, falemos agora, com a licença da má palavra” – estava entrando no jogo muito mais confiante, agora – “do amanhã e de seus grandes riscos.”

! Um suspiro e um pensamento, ambos profundos: “quão contraditórios serão esses vozerios interiores.”

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DOIS ANOS DEPOIS – ONTENS

! ! Já que amanhãs não existirão jamais, e são realmente um conceito de que vem nos tentando desvencilhar a Ciência, simulemos uma “conversa” de nosso pobre amigo, vítima de tão atrozes vozes (perdão pela rima) interiores, com essas mesmas vozes, alguns anos antes.

! Claro fique que já se passaram dois anos desde que o insólito episódio tomou lugar. Claro fique, ainda, que tais vozes não irromperam do nada, naquela bonita tarde à beira do mar. Sempre estiveram ali, como burburinhos ininteligíveis. En-

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tendemos hoje que o que se fez presente, naquele momento, foram os ouvidos de nosso pobre personagem. Que inebriado demais estivera durante muito tempo, a preocupar-se com outras vozes, outros sons, odores, cores, sensações. E que agora, só pela primeira vez, emprestava um pouco mais de sua audição àqueles alertas temerários.

! Portanto, quando digo simulemos uma “conversa” anos antes, refiro-me aqui à incapacidade de nosso amigo de ouvir quaisquer que fossem as perguntas atiradas.

! Voltemos, então, no tempo (que este é um poder do qual podemos lançar mão, verdadeiro pri-

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vilégio de quem cria, na ficção. Ou de quem Cria, na realidade.) não dois, mas três anos:

! - Ganhaste o mundo?

! - Sim... - E que fizeste com ele?

! - Perdi...

! - Agora quê?!

! - Ganhar de novo...

! - Humpf! Como?!

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! - Pergunta-me amanhã.

! Ah, a palavra maldita. Mas ainda não o sabemos, visto estarmos situando este colóquio cerca de um ano antes de chegarmos (será?!) à conclusão de que tal palavra refere-se a um nada absoluto.

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! DOIS ANOS DEPOIS – HOJE E ADIANTE

! ! - Ganhaste o mundo?

! - Ganhei...

! - E que fizeste com ele?

! - Perdi...

! - Agora quê?!

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- Ganhá-lo novamente...

! - “Pois, que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma?”

! - Estamos bíblicos, hoje!...

! - Estamos irônicos, hoje...

! - Algo de mau haveria o tempo de nos ensinar: é preciso aprender a empunhar as armas do inimigo. E, mais sensato ainda, as do amigo.

! - Pois...

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- Que passa, que te vejo (é uma forma de se expressar – ainda a visão nos é o sentido mais prezado e confiado – visto que de uma voz apenas falamos.) tão reticente?

! - Muito tempo se passou. Ouviste-nos. Nunca calado, relutante às vezes; descrente (poucas, temos de admiti-lo), temeroso.

! - Tanto tempo assim?

! - Precisas mesmo abusar da ironia? É claro que não nos referimos aos segundos que os homens contam incessantemente, em seu inexorável caminho para a morte, sem saber que cada instante con-

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tado representa um a menos de vida. Sem dar por si que contar o tempo é deixar de vivê-lo. Mas em digressões demasiadas já começamos a nos meter. A verdade é que muito tempo se passou, desde o primeiro sobressalto de um menino que fitava o horizonte à beira do mar, completamente perdido em seus rumos e desvarios; desde que uma primeira voz conseguiu tomá-lo de assalto, quase que rasgarlhe as entranhas para se fazer ouvida (sentida, se diria em espanhol, e seria um termo muito mais apropriado).

! Uma pausa curta, que parece uma eternidade (e olha o tempo mais uma vez a brincar com nossas percepções) se faz. Segue a voz:

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! - Aquele menino cresceu. As sementes germinaram, floresceram e é chegada a hora da colheita. Se de princípio lhe fazíamos perguntas para que chegasses tu mesmo às respostas de que necessitavas, uma vez que as temias mortalmente e jamais as formularias sozinho, hoje (hoje mesmo, doravante, etc. – que de tempo não ousaremos falar mais) mudamos de tom, de estratégia. Não penses que nossa missão se dá por cumprida. É bela a visão de um campo farto de frutos, a antecipação da colheita abundante. Mas ainda representa meio caminho andado. A ciência de colher é tão preciosa quanto a de plantar. A de armazenar, tanto mais.

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Não calaremos, para que não te deixes levar pelo engodo vaidoso de que já tens as respostas de que precisas. Para perguntas velhas, respostas velhas. É de respostas novas que precisamos e, para tanto, esforçar-nos-emos, agora juntos, para que novas perguntas se lancem e se satisfaçam; não para que se dê lugar a uma estúpida satisfação da mediocridade. Sim para que cedam terreno a questionamentos novos. Por mais que se enfie no mar o navegador, por mais que sua bússola aponte sempre o norte, nunca lhe mostrará os perigos que se escondem após aquela linha que se faz de horizonte. Já tens, pois, a direção. O rumo a seguir. O caminho, entretanto, vais fazê-lo a cada passo, em cada momento. E cada pedra de tropeço (que delas não

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estaremos livres jamais), cada curva, cada encruzilhada, bifurcação, lhe soarão como perguntas novas. Ainda que não mais dela necessites, consulta sempre a tua bússola, fia-te nela como em uma conquista viva, como o campo que deixaste que semeássemos e do qual cuidaste: teus olhos serão a chuva que alimenta e o sol que faz brotar um norte cada vez mais robusto.

! - Estou pronto!

! - Permita-nos então repetir a pergunta (e entendamos aqui que perguntas repetidas não serão perguntas velhas. Jamais. Apenas aos que permanecem estáticos. Se perguntamos, porventura, ao ho-

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mem que caminha, neste momento: “que vês?”, ele nos há de responder com as impressões que lhe tocam os olhos naquele momento único. Alguns minutos depois, mais uma légua consumada, e nova pergunta faremos: “que vês?” – e um novo momento se nos descortina com a descrição de um cenário completamente diferente do primeiro. Donde podemos concluir, portanto, que a novidade da pergunta está intimamente ligada ao movimento perfeito por quem nos há de fornecer a resposta. E neste mundo que se move frenética e incessantemente, do micro ao macrocosmo, nem as pedras hão de se avocar o direito à imobilidade.): Agora quê?!

! - Agora, ganhar o mundo!

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! - Como?!

! - Tempo de colher.

! - Por quê?!

! - Porque estão maduros os frutos. E, mais importante, existe um motivo: alguém a quem desejo ofertar a flor da minha vitória.

! - De frutos ou flores falamos?!

! - E não será a rosa o fruto da roseira?...

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- Decerto...

! - Pois! Agora, tempo de colher, de prover. E, se colher é ceifar, se necessário é que morra o trigo para que nos possa alimentar, tempo de colher e replantar. Não mais uma necessidade, apenas. Hoje, um prazer.

! - O tempo urge...

! - O tempo urge sempre. Mas hoje o vejo não mais como maldito carrasco, a nos decepar a cada instante; mas como o aliado santo e útil, que nos amadurece o trigo e as rosas, uma vez que com ele sigamos trabalhando.

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! - Lembra-te sempre do fil贸sofo: s贸 sabes do que n茫o sabes.

!

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! AINDA HOJE, MAS MUITO TEMPO DEPOIS

! ! - Concordes que estamos em que a falsa modéstia é pecado muito mais grave do que a imodéstia (vai o imbecil dizer que a virtude de que mais se orgulha é a sua humildade), bem certo seria dizer que querias mais, que desejavas um romance. E o que hoje tens diante dos olhos mal dá para um conto.

! - Um conto de réis?

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- Às vezes são insuportáveis tuas “piadinhas”.

! - Não me hei de desculpar por elas. O tempo passou para o homem, deu-lhe um campo a semear e a colher. Deu-lhe uma mulher a amar e acolher, venerar e proteger. Ambos a serem cultivados cada dia, com cuidado, carinho, paciência, amor. Mas não há de passar para o menino, que há de acompanhar o homem, lado a lado, por todos os dias de sua vida.

! - Mas mudaste de assunto. De romance e conto falávamos...

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- Pois! Com formato te preocupas. A mim cabe o conteúdo desta história que acaba de novamente começar. Que se escreve a cada instante, em linhas e entrelinhas. Prosa, verso, canção; são apenas artifícios com que vamos adiando o ponto final.

! Portanto, com uma vírgula me hei de despedir...

! - Mas, então?! Conto ou romance?!

! - Pergunta-me amanhã...

! ,

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