UM JARDIM DE MARAVILHAS E PESADELOS

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Romance inspirado no conto “Kaline� de Rita Maria Felix


© Ricardo Santos, 2015 Capa Rochett Tavares Revisão Alec Silva Projeto Gráfico Ricardo Santos Rochett Tavares Diagramação Rochett Tavares Ilustrações Balanuts Foto do autor Priscila May

www.facebook.com/ricardosantos ricardoescreve.wordpress.com/ Balanuts balanuts.deviantart.com/ Todos os direitos desta edição estão reservados a Ricardo Santos Salvador - BA


Agradecimentos

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lgumas pessoas foram importantes para a realização deste livro. Primeiramente, agradeço à autora Rita Maria Félix por permitir que eu brincasse com o universo criado por ela. Agradeço também aos meus leitores beta (Luciano Sapucaia, Morgana Poiesis e Evelyn Postali) pela disponibilidade, palavras de apoio e críticas. Agradeço ao mestre das artes gráficas Rochett Tavares. Todos os elogios do visual destas páginas vão para ele. Thanks Balanuts, for letting me use your beautiful illustrations. Agradeço a Alec Silva, da EX Editora, por facilitar a impressão do livro. Finalmente, agradeço aos meus pais, dona Angélica e seu Antônio, e ao meu irmão Renato. Vocês são minha referência moral. E à minha esposa Priscila pela paciência e amor.


SumarIo /

Capítulo 1 – Olhos brancos Capítulo 2 – A raiva do lobisomem Capítulo 3 – O sorrisinho irônico Capítulo 4 – Pedra-raiz Capítulo 5 – Bolhas Capítulo 6 – Licória na grama Capítulo 7 – O sofá verde Capítulo 8 – O cabideiro voador Capítulo 9 – Melhores amigas Capítulo 10 – Os cúmplices Capítulo 11 – Azul pálido Capítulo 12 – A esfera de fogo Capítulo 13 – Alfinetada na testa Capítulo 14 – O lobo de luz Capítulo 15 – Senhor Lucius Capítulo 16 – A curandeira Capítulo 17 – Miserável! Capítulo 18 – Sacrifícios Capítulo 19 – A esfera invisível Capítulo 20 – O braço cinza Capítulo 21 – Guardas Capítulo 22 – Confiança KALINE (conto)

09 17 23 31 39 47 59 67 75 81 89 99 111 117 127 133 143 149 159 169 179 185 195

Os Autores

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Apresentacao -

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onheçam Lottar Gan Amon, um menino negro de nove anos, filho de uma feiticeira e de um devorador de almas. Lottar vive num país onde ciência e magia convivem numa relação tensa. Num período de guerra, com seu pai desaparecido no front, nosso protagonista tenta sobreviver com a mãe a tempos difíceis. Ele acaba descobrindo que o jardim mágico de sua família pode guardar a chave de um poderoso segredo. Este é um romance juvenil para todas as idades, na tradição de Philip Pullman, Terry Pratchett, Diana Wynne Jones, L. Frank Baum e Ursula K. Le Guin.


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local era uma clareira na mata, não muito distante da escola, à beira do rio. Um número razoável de colegas estava presente. Todos se atrasariam para o almoço. O adversário da vez se chamava Mok. “Vou quebrar todos os seus ossos”, disse ele. “E eu vou te transformar num monte de pedrinhas para jogar no rio. Vou praticar bastante meus arremessos para quicar na água”, disse Lottar. Mok apertou o rosto, enfurecido. Lottar mantinha-se firme. Mas, no fundo, estava morrendo de medo. Afinal, Mok era um filho de gárgula. Ele era feito de granito, tinha uma cabeça de dragão e asas de morcego, ainda curtas. E o pior, quando Mok ficava de pé, tinha o dobro do seu tamanho. Mok mudou sua expressão tensa. Agora ele sorria, cheio de malícia. “Você é um covarde. Assim como seu pai, aquele traidor.” “Ninguém chama meu pai de traidor!” Esse era o ponto fraco de Lottar. O motivo das brigas na escola e na rua. Lottar era um menino negro de nove anos. Ele vivia repetindo para si mesmo que não era um valentão. Mas não adiantava muito. Era só ser provocado para aceitar o desafio. Quando sua reação era mais explosiva, tentava resolver o problema na hora do recreio, em algum canto isolado da escola. Corria o risco de a disputa ser flagrada por um funcionário ou mesmo um professor, como já acontecera antes. Então, ele e seu desafeto acabavam indo para a diretoria, e cada um recebia um pergaminho azul, advertências mágicas que apenas as mãos de um responsável conseguiriam abrir. Caso não fossem entregues a estes no prazo de vinte e quatro horas, os pergaminhos desapareceriam no ar, para reaparecerem na mesa do diretor. Cinco destas advertências durante o ano letivo resultavam em expulsão. Mais da metade do ano tinha se passado e Lottar já somava três pergaminhos em sua conta. Não queria um quarto. Por isso, a briga daquele dia aconteceria fora da escola, depois da aula.

Era o início de uma tarde de segunda-feira abafada, calorenta.

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Lottar contava com o fato de ser neto de feiticeira, e filho de feiticeira, que agora também era uma vampira. Além de sua agilidade, em punhos, braços e pernas, ele usava feitiços mais básicos, ensinados pela mãe, para atacar e se defender. Era o máximo que ela fazia. Para segurança dele e de outros. Lottar ainda não tinha idade para aprender feitiços mais poderosos. E também era uma maneira de evitar mais problemas. Na verdade, só o fato de Kaline praticar magia já era um grande problema. Como agora era uma vampira, ela estaria proibida por lei de praticar coisas de feiticeira. Kaline fizera Lottar prometer que aquele seria o maior segredo dos dois, entre mãe e filho. Ela não foi explícita sobre as terríveis consequências do crime. Não havia outra palavra para classificar a situação, Kaline tinha consciência disso. Porém Lottar logo entendeu que podia ser afastado da mãe e deixar a casa onde morava para sempre. Ele nunca permitiria que essa catástrofe acontecesse. A avó de Lottar tinha falecido havia alguns anos. Fora os pais, ele não tinha mais ninguém no mundo. Os feitiços que Lottar sabia eram de baixo poder. Feitiços monossilábicos. E estavam ficando manjados. O adversário da briga seguinte conhecia os feitiços anteriores, conseguindo assim anulá-los ou escapar deles. A cada nova briga, Lottar tinha que ter outro feitiço escondido na manga. Estava ficando cansado disso. E sua mãe irritada. “Ok, ok. Vou te ensinar mais um. Não quero ver filho meu apanhando por aí. Já basta tudo que passamos”, ela não cansava de dizer. O feitiço de paralisar alguém era algo novo. Lottar usou primeiro sua agilidade para cansar Mok. Punhos, braços e pernas estavam fora de questão. Lottar não ia bater, agarrar ou chutar em pedra. A única arma de Mok era seu tamanho, sua força. Lottar precisava apenas ficar fora de seu alcance até o momento certo. Usar o feitiço quando a pessoa estava cansada, confusa, ou enfraquecida, prolongava seu efeito. De repente, Mok tentou abraçá-lo. Lottar fugiu. Mok quase agarrou sua canela. Lottar rolou na grama, sujando-se. Mok não aguentou o peso do próprio corpo e caiu, apoiandose com as mãos e os joelhos no chão. Ele ficou numa posição ridícula. Alguns riram.

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Ricardo Santos Quando se levantou, furioso, Mok ficou meio desorientado. Lottar já estava de pé, pronto. Só esperava por aquele contato visual. Ele balançou as mãos para frente, apontando para Mok, e com a pronúncia que mais achava correta gritou: “Fic!” Nenhuma faísca, luz ou raio de qualquer cor foi notado. Mas todos logo perceberam que o feitiço tinha dado certo. Mok apenas disse “Putz” e caiu duro na grama, de costas. Na queda, sofreu rachaduras no corpo e quebrou a ponta da asa. Muitos ficaram chocados. Inclusive Lottar. Os pais de Mok gastariam uma boa grana num feitiço que consertasse tudinho. “Eu desisto! Eu desisto!”, gritou Mok. Ele estava estirado no chão, de barriga para cima, imóvel. Apenas conseguia mexer a boca. Sentia dor, mas gárgulas não conseguiam chorar. Lottar estava fora do seu campo visual. Respirava pesadamente. O peito subia e descia. O braço tinha alguns arranhões, mas nada grave. Não escorria sangue. A plateia de meninas e meninos, ou seja, seres de todo tipo, estava parte satisfeita, parte decepcionada, parte apreensiva. O olhar de Lottar era assustador. “Quero ir para casa! Quero ir para casa!”, continuou Mok. Lottar poderia liberá-lo. Provavelmente, aquele ali não ia incomodar mais. Acontecera isso com cada um de seus desafiantes. Até agora ninguém tivera a ideia de atacá-lo em grupo. Com toda essa história de seu pai, dos boatos, só lhe sobrou um amigo. Na verdade, amiga. Beta era uma menina goblin e colega de turma. Ela se oferecera para ajudar no que pudesse. Mas Lottar não queria envolvê-la em seus problemas. Prejudicá-la ainda mais. Ela estava na plateia, torcendo, gritando. Lottar até percebia alguma simpatia no rosto de outros colegas, de meninos de sua rua, mas ninguém se aproximava dele. “Meu pai vai acabar com você! Vai sim!”, gritou Mok. Lottar apertou a mandíbula e fungou. O coração estava acelerado. Ele olhava para o vazio. Alguns na plateia seguraram a respiração. Não havia outro jeito. Ele teria que fazer de novo. Ele fechou os olhos e procurou se acalmar. Assim como o pai lhe ensinara.

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“O segredo é controlar as batidas do coração”, dizia Victor, nas primeiras tentativas do filho. “Você tem que imaginar não como o mundo é, mas como deveria ser.” Victor o havia treinado, um treinamento ainda incompleto, oferecendo-se como cobaia. Apesar da pouca idade de Lottar, o pai achava que, quanto mais cedo o filho lidasse com sua habilidade, menos doloroso seria suportá-la. Desta vez, veio à mente de Lottar a imagem dele, do pai e da mãe juntos, na praia, num domingo ensolarado, de muito vento. Não havia guerra contra a Câmbria. Sua mãe não se tornara uma vampira. Até sua avó ainda estava entre eles. Ela apareceria de surpresa, carregando uma cesta de sanduíches de atum com azeitonas, seus preferidos. Sua avó os preparava com um toque especial e secreto. Talvez ali tivesse um pouco de magia. Eram gostosos demais. O coração de Lottar estava respondendo. Diminuindo o ritmo. Voltando ao normal. Lottar sentiu que estava pronto. Respirou fundo. Gemeu baixinho. Alguém até poderia pensar que ele estava passando mal, que precisava ir ao banheiro. Mas não era nada disso. Parte da plateia sabia. Alguns já viram aquilo acontecer antes. Lottar abriu os olhos. Suas pupilas escuras tinham sumido. Havia apenas o branco leitoso. Uma menina soltou um gritinho de pavor. Mok continuava deitado e imóvel, todo dolorido. Sem ter visto nada. Lottar estava próximo aos pés dele. Começou a andar sem vacilos. A ausência das pupilas não parecia ser um problema. Deu uma meia volta até chegar ao topo da cabeça de Mok. Quando Lottar entrou em seu campo visual e o encarou com os olhos totalmente brancos, Mok quis muito fechar os seus. Mas o esforço foi inútil. As pálpebras não obedeceram à sua vontade. Lottar se agachou. Seu rosto agora estava a poucos centímetros do rosto de Mok. A este só restava dizer: “Se afaste de mim! Se afaste de mim!...” “Você nunca mais vai chamar meu pai de traidor”, disse Lottar. Sua voz era de criança. Mas a firmeza de suas palavras tinha o tom de alguém mais velho. Lottar colocou as mãos negras nas laterais da cabeça de dragão. O corpo de pedra estremeceu por inteiro. Estava livre do

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Ricardo Santos feitiço, da imobilidade. Mas Mok não teve muita chance de reagir. Ele já estava dominado por outra força. Encarar os olhos brancos de Lottar o deixou com um baita sono. As pálpebras cinza de Mok ficaram pesadas. Até fecharem completamente. Mok parecia ter caído num sono profundo. Então, ele acordou, e veio o susto para quem acompanhava tudo mais de perto. Os olhos de Mok agora estavam iguaizinhos aos de Lottar. Agora foi Lottar quem fechou os olhos. Depois, tirou as mãos da cabeça de Mok. Ao abri-los, suas pupilas escuras estavam de volta. Mas Lottar não parecia se sentir bem. O corpo pendeu para o lado. Ele colocou a mão no chão para não cair. Muitos na plateia ficaram em suspense. Até quem não o suportava. Lottar permaneceu na mesma posição por um tempo. Piscando, procurando enxergar melhor. Num pulo, ele se levantou, fez uma careta de dor e correu para o lugar onde deixara sua mochila. As pernas estavam meio bambas. Por duas vezes, parecia que ele ia tropeçar e se arrebentar no chão. Mas conseguiu se recuperar. Pegou a mochila, colocou-a nas costas com dificuldade e foi embora às pressas. Meninos e meninas voltaram sua atenção para Mok. O corpo estava imóvel, nem a boca mexia mais. Os olhos estavam totalmente brancos. Todo mundo sabia qual era o problema. Todo mundo sabia onde foi parar sua alma.

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ottar morava numa cidade que não era pequena nem grande. Chamava-se Balicam. Era famosa por suas fábricas de tecidos coloridos e resistentes, e de roupas variadas e populares. E também pela produção artesanal de certas poções, feitas com plantas raras da região. Não ficava muito longe da Capital da Gloriosa República da Nova Câmbria. Ou mais conhecida apenas como a Capital. Seis séculos antes, os pais da nação resolveram nomear o país que fundaram de Nova Câmbria, em homenagem ao lugar do qual vieram, a Câmbria, lá no Ocidente. O Primeiro Povo era formado por parte da elite da Câmbria e de seus seguidores, entre a população. Uma noite, eles tentaram dar um golpe de estado e fracassaram. Civis e a metade rebelde do exército enfrentaram nas ruas os aliados e a metade do exército fiel ao governo. Aqueles que não foram presos, julgados e executados conseguiram fugir em navios. Fazia três anos, a Nova Câmbria estava em guerra com a Câmbria. Não diretamente. A Nova Câmbria não tinha todo esse poderio bélico. Ela estava apoiando outro país, a Concórdia, antiga inimiga da Câmbria. O Presidente da Nova Câmbria assinara um tratado de colaboração militar com a rainha da Concórdia, em troca de acordos de importação e exportação muito vantajosos. Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Assim como a Câmbria, a Concórdia também ficava lá no Ocidente. As batalhas eram travadas em solo concordiano. Metade das Forças Armadas da Nova Câmbria fora enviada para a guerra. Incluindo um soldado chamado Victor Gan Amon. O pai de Lottar. Antes de deixar o país, todo soldado, marinheiro, piloto de avião e oficiais, Normais ou Especias, eram tocados por membros da Ordem dos Magos da República. O objetivo era um só: quando alguém morresse no campo de batalha, sua alma deixaria o corpo e atravessaria os céus, de volta para Nova Câmbria. A alma ficaria frente a frente com um mago especialmente treinado para vê-la e entrevistá-la. O diálogo a seguir era bastante comum em tempos de guerra: “Então, vamos começar. Onde você estava exatamente?”, perguntava um mago. “Hã?”, respondia a alma, ainda sem entender direito o que estava acontecendo. “Qual foi a última coisa que você viu?”, continuava o mago.

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“Hã?”, repetia a alma, para a fúria do entrevistador. O mago tinha um minuto para tomar nota de qualquer informação que pudesse ajudar nos esforços de guerra. Os magosentrevistadores se revezavam em turnos. O serviço funcionava dia e noite. O Comando de Guerra sempre justificou os custos da operação como uma importante vantagem estratégica. Alguns políticos da Capital discordavam. “Esta palhaçada tem que acabar!”, era um comentário que se repetia com frequência. Depois que a alma sumia para sempre, as Forças Armadas encarregavam alguns de seus homens a dar a má notícia aos familiares e lamentar a perda. Após séculos de guerras, de colaborações com a Concórdia, de tentativas e erros, as autoridades da Nova Câmbria descobriram que este era o único feitiço que funcionava em solo estrangeiro. Apesar dos estudos e especulações, nunca souberam realmente por quê. Em tempos de guerra, as Forças Armadas da Concórdia e da Câmbria tinham a tradição de não fazer prisioneiros. Era uma prática muito antiga, que ninguém sabia direito como ou quem tinha começado, nem mesmo os historiadores. Certos oficiais até insistiam para que inimigos fossem capturados para interrogatório ou uma eventual troca por gente nossa. Mas suas opiniões não eram levadas a sério. E os muito insistentes eram destituídos de seus postos, outros eram detidos, alguns sofriam corte marcial e iam para a prisão, e uns poucos eram fuzilados. As Forças Armadas da Nova Câmbria estavam subordinadas à Concórdia. Portanto, um soldado da Nova Câmbria, durante a guerra, tinha três opções: ou ele continuava vivo e recebendo ordens de seus superiores; ou ele morria e sua alma voltava para casa a fim de prestar seu último serviço à nação; ou ele desertava, fugindo a muito custo, por terra e mar. Primeiro, parava em uma das chamadas Ilhas Esquecidas, habitadas por nativos que sabiam muito bem se defender com guerreiros hábeis. Em seguida, se conseguisse sobreviver por lá, iria para locais mais distantes, perdia-se no mundo, deixando tudo para trás. Os desertores ficavam conhecidos como Traidores da Pátria. Um soldado só podia retornar antes do fim da guerra se fosse ferido em combate. Foi o que aconteceu com um homem que morava na mesma rua de Lottar, seu Costa. Ele teve a perna arrancada por tiros de uma metralhadora no tripé. Agora ele tinha uma perna mecânica e mancava.

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Ricardo Santos Foi ele quem começou a espalhar o boato de que Victor era um Traidor da Pátria. Seu Costa e Victor eram do mesmo pelotão, formado apenas por soldados da Nova Câmbria, apenas por Especiais. Ironicamente, de meros vizinhos se tornaram melhores amigos. Uma amizade estabelecida pelas necessidades da guerra. Eles eram homens de temperamentos diferentes. Victor era mais comedido. Seu Costa, mais agitado. Tinham a mesma função de batedores. Iam à frente do pelotão, camuflados e cautelosos, para avaliar o terreno adiante, apontar as melhores rotas, ou alertar sobre qualquer tipo de perigo. Seu Costa passou a contar para quem quisesse ouvir sua versão da história. Certa noite, durante uma missão de rotina, ele e Victor foram descobertos pelo exército inimigo. Houve um pesado tiroteio. “A gente não vai conseguir voltar para nossa posição!”, gritou seu Costa. Victor largou sua metralhadora e tentou se comunicar por rádio com o sargento do pelotão. “Não está funcionando. Tem muita estática. Que inferno!” Ele voltou a atirar. “Precisamos sair daqui, senão vamos morrer encurralados!”, outra vez seu Costa. “Vamos nos separar. Assim podemos dividi-los. Pelo menos, um de nós terá mais chance de escapar!” “Seu idiota, nós dois vamos sair dessa. Entendeu?!” Victor fez que sim com a cabeça. Seu Costa jogou uma granada. Ela explodiu. Os dois correram em direções diferentes. E aquela foi a última vez que seu Costa viu o amigo. Seu Costa acabou se jogando num rio, sendo levado pela correnteza. Nos meses seguintes, nem sinal de Victor, vivo ou morto. Seu Costa até descumprira ordens para procurá-lo. Sua punição acabou sendo leve: quatro dias sem comida. Afinal, precisavam de seu talento como batedor. Nas respostas às suas cartas, a esposa, dona Chanda, sempre dizia a mesma coisa: Kaline nunca recebera uma visita oficial relacionada à morte de Victor. A tristeza pela perda do amigo foi dando lugar à desconfiança e, por fim, à raiva. Para seu Costa, só havia uma explicação: Victor

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estava vivo. Mas isso não era uma boa notícia. Seu Costa agora tinha certeza de que ele desertara. Acabou alimentando esse ódio mês após mês. Até que foi ferido e retornou à Nova Câmbria. Ele passou um bom tempo no hospital. Teve de se adaptar a uma perna mecânica comum. Ele não tinha dinheiro ou prestígio suficiente para que uma poção ou um feitiço poderoso o curasse mais rápido, nem como comprar uma perna mecânica mais sofisticada, movida à magia. O que mais o irritou foi o fato de que mancaria para sempre. Era o pior que podia acontecer a um lobisomem. Ele não poderia mais correr pela mata em quatro patas, em busca de caça, nas noites de lua cheia. Em tais noites, em sua nova vida, ele tirava a perna mecânica e trancava-se numa jaula, dentro de uma casinha no quintal, de paredes reforçadas, especialmente construída com esta finalidade. Para segurança de dona Chanda e para que não destruísse toda a casa. No mundo exterior, um lobisomem perneta seria uma presa fácil. Seu Costa se tornou um veterano de guerra, com uma pensão paga pelo governo. Ele sentia muita dor e raiva. Passou a beber cada vez mais. E a falar o que desse na telha. Os boatos começaram aos poucos. No início, tinha muita gente que não dava ouvidos a eles. Muitos se lembravam de como Victor Gan Amon era um bom sujeito, apesar de ser um devorador de almas. Mas ele só devorava almas autorizadas por lei. Esse era o seu trabalho. Ele era um autônomo reconhecido. Quase um ano depois, o cenário era totalmente outro.

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ottar voltava para casa às pressas, com a mochila nas costas. Não sentia fome alguma. Sua barriga já estava cheia. Não dava para vê-la estufada. Mas o peso estava lá. Acompanhado da dor. A escola não era perto de sua casa. Teria sido melhor pegar o ônibus da escola. Só que nos últimos meses, Lottar estava indo e voltando a pé. Pela manhã, acordava mais cedo. Ao meio-dia, chegava mais tarde em casa. Era mais cansativo, porém, ele preferia assim. No caminho, não havia nenhum colega chato para estragar seu dia logo pela manhã, nem o seu apetite antes do almoço. A mochila, o calor, o suor, e, acima de tudo, o que havia em sua barriga faziam-no se arrepender profundamente de querer ser o que não era: um valentão. Ele já estava no início da rua, cheia de casas de muro baixo na frente. Aquele era um bairro até que seguro. As pessoas não se preocupavam tanto com assaltos. Ali um ladrão pensava duas vezes antes de atacar alguém na calçada ou invadir o lar alheio. Mesmo que o ladrão tivesse algum poder, havia boas chances de ele se deparar com um ser ainda mais poderoso, numa casca humana. E aí ferrou! Na Capital, era diferente. Nos jornais e no rádio, as notícias relatavam casos de violência mágica sobre violência mágica por lá. “Brutalidade por excesso de civilização”, diziam alguns comentaristas. Nas cidades mais distantes e vilas mais isoladas, a vida também não era nada fácil. “Brutalidade por falta de civilização”, diziam os mesmos comentaristas. Na hora do almoço, sempre havia certa agitação. Crianças e jovens chegavam ou saíam para a escola. Maridos davam um pulo em casa para aproveitar o almoço preparado por suas esposas; mulheres que cuidavam da família em tempo integral, ou tinham chegado do trabalho minutos antes para pôr a mesa. Assim como fazia Kaline. Mas, no caso dela, não havia nenhum marido para agradar ou encher o saco. “Espero que ela já tenha ido embora”, disse Lottar ao vento, meio sem fôlego, passando a mão na testa para limpar o suor. Os arranhões no braço arderam um pouco. A rua estava praticamente vazia. Alguns adultos passavam para lá e para cá. Nenhuma criança brincava na calçada ou no asfalto. Nenhum de seus desafetos da rua estava à vista. Depois que pais e mães voltavam para o trabalho, que os filhos ficavam em casa com alguém cuidando deles, começava

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o período mais tranquilo do dia. Quem tinha a sorte de tirar um cochilo aproveitava o momento com todo o prazer. Lottar era um desses sortudos. Mas, naquele dia, ele achava que todo o seu azar acumulado, depois de uma semana sem lhe acontecer nada de muito ruim, resolvera cair de vez em sua cabeça. E o pior: sabia que a culpa era só dele, de mais ninguém. “Nós fazemos nossa própria sorte e nosso próprio azar”, Victor costumava dizer. Uma tarde, Lottar decidiu finalmente dar sua opinião a respeito: “Mas, pai, se fosse assim, você nunca seria um devorador de almas. Já ouvi você falar para minha mãe que não queria nascer desse jeito”. Victor ficou sem resposta, meio com cara de bobo. Quem o salvou foi Kaline, chamando os dois para ajudá-la a cuidar do Jardim. Victor nunca teve a oportunidade de continuar aquela conversa com o filho. Dois dias depois, ele foi convocado para a guerra contra a Câmbria. E toda a atenção da família se voltou exclusivamente para o assunto guerra. Lottar não tinha terminado a conversa com o pai, mas ele sabia que seu sofrimento na barriga acontecera por decisão sua. Neste caso, ele fizera seu próprio azar. Ele já conseguia ver sua casa, do outro lado da rua. O muro baixo era branco, com algumas manchas escuras e partes descascadas. Colunas quadradas suportavam tábuas amarelas na horizontal, um tanto gastas. A casa também era toda branca com detalhes em amarelo. Kaline vivia dizendo que a casa e o muro precisavam de uma pintura nova. Lottar mal olhou para os lados e atravessou a rua, correndo. Ao chegar ao portãozinho de tábuas amarelas, procurou se acalmar, mesmo com a dor na barriga e o calor úmido. Tentava recuperar o fôlego. E apurar a visão e os ouvidos. O janelão frontal e a porta da rua, ambos de madeira escura, estavam fechados. Assim como as janelas laterais. Não dava para escutar nenhum som vindo de dentro da casa. Ele decidiu entrar. Sem bater o portãozinho com tudo. Geralmente fazia isso quando chegava morto de fome. O portãozinho rangeu o mínimo. Lottar atravessou o caminho de pedras, bastante coberto pela grama alta.

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Ricardo Santos “Onde está Pogo?”, perguntou para ninguém, sussurrando. À medida que avançava para a porta da rua, lembrou-se do gosto horrível da raiz que o salvaria. Lottar estava em conflito. Sua mente estava cheia de pensamentos conturbados. Mas o que ele queria mesmo era se concentrar em seu corpo. Estava determinado em enxergar bem e ouvir melhor ainda. Ele não queria dar de cara com a mãe. Ela ficaria furiosa se descobrisse o que fizera. Ela podia estar lá no quintal, cuidando do Jardim. Justamente naquela tarde. Lottar precisava se livrar daquele peso em sua barriga, sem ela ficar sabendo de nada. “Onde está Pogo? Onde está aquele cabeça de nabo?” Lottar parou em frente à porta. Pegou sua chave e a abriu, cauteloso. A fechadura apenas estalou. A porta não estava trancada. Isso não era bom. Mas, às vezes, sua mãe saía e esquecia de trancá-la. Essa era sua esperança. Ele afastou a porta lentamente. A semiescuridão, provocada pelas janelas fechadas, deu espaço à luz natural. O ar ali dentro estava abafado. Lottar quase morreu de susto! Um ser pequenino estava no chão, de pé, meio inclinado para trás, como se o encarasse. Era um nabo branco e alongado, meio sujo de terra, com bracinhos finos, dedinhos tortos e perninhas grossas. Caules verdes mais claros sustentavam um monte de folhinhas mais escuras no alto da cabeça. Aliás, uma cabeça que não tinha olhos, nariz, orelhas ou boca. “Quer me matar? Diga logo.” Lottar sentiu uma pontada na barriga. Depois, limpou novamente o suor da testa. Pogo, ainda inclinado, levantou os bracinhos abertos, com a palma das mãozinhas deformadas para cima. Logo em seguida, baixou tudo de vez. “Ah, você não está entendendo?” Pogo balançou todo o corpinho para um lado e para o outro. “Não interessa... Minha mãe está em casa?” Pogo se balançou para frente e para trás. “Droga.”

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Uma ou duas tardes por mês, durante a semana, Kaline tirava folga do trabalho. Então ela chegava depois do meio-dia, demorava pouco dentro da casa, e ia cuidar do Jardim. Não procurava arejar o ambiente. Era raro essas folgas serem programadas. Lottar sabia que a mãe gostava de usá-las quando estava realmente irritada com alguma coisa ou cheia de tudo. Lottar fechou a porta devagar. A semiescuridão voltou a prevalecer. “Ela deve estar no Jardim...” Pogo levantou o bracinho e o polegar torto, confirmando. Lottar não enxergou a reação do pequenino ou não estava nem aí. Tirou a mochila das costas, contorcendo-se, e a encostou na parede. “Você vai me ajudar.” Ele encarou Pogo. Na sequência, fez uma cara feia e tocou a barriga. O pequenino cruzou os bracinhos. Deu para Lottar perceber. “Não se preocupe. Confie em mim.” Pogo agora batia o pé achatado, acompanhado da perninha grossa. “Você gosta de uma boa aventura, certo?” Pogo logo parou de bater o pé e descruzou os bracinhos. Ele ficou agitado. Deu dois pulinhos mixurucas, as perninhas grossas mal saíram do lugar. Lottar contou seu plano. Depois de ouvi-lo, Pogo esfregou uma palma da mão rugosa na outra. Pelo menos, tentou. Era complicado vencer o atrito. “Vamos.” Lottar seguiu na frente. Começou a andar um pouco curvado. Culpa do peso na barriga. A coisa estava ficando séria. Pogo o acompanhava mais atrás, num passinho curto. Lottar avançava pelo corredor semiescuro quando sentiu um toque no ombro. Ele virou todo o corpo, apavorado. O movimento brusco o fez sentir uma pontada mais aguda na barriga. Após se recuperar de outra cara feia, constatou que não havia nada às suas costas. Quer dizer, lá estava Pogo, paralisado. Nem parecia que estava vivo. Parecia apenas um nabo com um curioso formato de corpo humano. E que estranhamente conseguia ficar de pé por conta própria.

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Ricardo Santos Lottar levou a mão ao ombro. Os dedos ficaram sujos de uma terra escura. “Eca!” Ele limpou os dedos na calça jeans, também suja por causa da briga com Mok. Pogo continuava com sua paralisia. Costumava fazer isso ao sentir que estava encrencado. Lottar conhecia bem essa mania dele. Então Lottar juntou os pontos: terra escura, Pogo paradinho. “Droga.” Ele voltou-se para a posição anterior, sem muito ânimo. Ele sabia o que o esperava. Lá estava o corpo de sua mãe, desenhado na semiescuridão. Dava para ver que o canto da boca estava esticado. Só podia ser o sorrisinho irônico que ela adorava manter em situações desconfortáveis como essa. Kaline se mostrava superior da maneira mais humilhante para Lottar. Quando estava furiosa, não fazia uma careta enfezada, nem respirava fundo, como outras mães. Ela armava aquele sorrisinho. Suas mãos estavam sujas de terra escura. E ela segurava uma pá de jardinagem. O cabelo crespo e longo estava preso num rabo de cavalo volumoso. Ela ainda estava com a roupa do trabalho. Blusa sem mangas e jeans. Estava descalça. Os pés também estavam sujos de terra. “Eu avisei para você não fazer isso de novo”, disse ela. “Fazer o quê?”, perguntou Lottar, inseguro. Kaline desarmou o sorrisinho. “Você realmente quer brincar comigo?” Assim como da última vez, ela sabia... Estava tão na cara? Ela ainda não era uma mestra para conseguir ler a mente de alguém. “Mas, mãe, os idiotas da escola não me deixam em paz.” “Então para que serviu os feitiços que te ensinei? Seu pai ficaria muito decepcionado.” Lottar não teve mais como reagir à menção do pai. A barriga doeu. Ele apertou o rosto o mínimo possível. Não queria demonstrar fraqueza. “Que arranhão é esse no braço?” “Não foi nada. Não está doendo.”

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A condição de vampira dava a Kaline uma visão apurada, mesmo na semiescuridão. Ela também conseguia sentir o cheiro de sangue seco a distância. “Você sabe o que vai acontecer agora, não sabe?” “Sim, senhora.” “E você, Pogo, continue bem quietinho”, disse ela, firme. O pequenino obedeceu, permanecendo do jeito que estava. “Vamos para o Quarto das Poções.” Os olhos cansados da mãe se fixaram nos olhos assustados do filho.

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aline atravessava o corredor semiescuro e abafado. Ela não parecia preocupada em sujar o chão de terra. Lottar a seguia. Sua expressão era de derrota. Ter uma mãe feiticeira e vampira era demais para ele. Depois que Kaline tinha sido mordida e se adaptado à nova condição, as duas coisas que Lottar mais odiava eram sua velocidade e o seu rosto quando se transformava. Agora ela conseguia mover-se no ar, sair de um lugar para outro num piscar de olhos. Durante o dia, seus poderes vampirescos ficavam mais fracos. Os caninos salientes nem apareciam, mas os olhos completamente escuros sempre estariam lá quando acionados. Eram poderes diferentes de suas habilidades de feiticeira. Tinham um tempo de resposta mais imediato. Funcionavam com a força do pensamento. Era algo sedutor demais, a própria Kaline reconhecia isso. A evolução dos poderes de um mago ou de uma feiticeira se dava por meio de seu talento em desenvolver um dom natural, de sangue. Primeiro, ainda criança, com o aprendizado de feitiços monossilábicos. Depois, mais velhos, com feitiços mais longos e elaborados. Até chegar à verdadeira maturidade, quando, curiosamente, nenhum feitiço precisava mais ser enunciado. Antes de tornar-se vampira, Kaline ainda não sabia o que era usar a força do pensamento. Ela pronunciava feitiços poderosos com uma perfeição de deixar qualquer mãe orgulhosa. Mas ela estava apenas no começo de seu caminho para a maturidade como feiticeira, para se tornar uma mestra. E agora seria mais difícil sem a avó de Lottar para guiá-la. O ar viciado passou a aborrecer o menino. Ele sabia que o ambiente continuaria do mesmo jeito. Sua mãe bem que poderia usar alguma magia para abrir as janelas da casa. Mas o problema era que Kaline achava fútil lançar feitiços em situações domésticas. Segundo ela, isso banalizava a importância de magos e feiticeiras, alimentava estereótipos. Chegaram no final do corredor, ao último cômodo. O quarto de Kaline. A porta estava aberta. Kaline a fechou com a mão suja de terra, marcando a maçaneta. Era uma porta igual às outras da casa. De madeira comum, lisa.

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Lottar limpou o pouco suor da testa com a mão. Ele notou que a pele não estava mais morna. Estava fria. O suor não era mais fruto do calor úmido. Ele sentiu uma pontada diferente na barriga. Como se unhas a arranhassem por dentro. Apertou o rosto, sem dizer nada. Demorou de soltá-lo. Quando o fez, gemeu baixinho: “ahh...”. Foi um ato involuntário. Uma falha no seu plano de manter-se firme. Kaline permaneceu na mesma posição, de costas. Lottar sabia muito bem que sua mãe bancava a durona sempre que ficava brava. Mas a atitude dela o deixou triste. A coisa estava piorando. Lottar precisava tirar aquele troço de sua barriga de uma vez. Kaline abriu a porta do quarto e entrou. Lottar engoliu em seco. Pela primeira vez, sentiu sede. Foi logo atrás, mas num andar hesitante. Por causa da dor que sentia e também porque não queria entrar ali, naquela hora. Ele não conseguia ver quase nada dentro do quarto. Apenas sugestões de objetos. Objetos que conhecia bem. Um alívio: um vento constante refrescava sua pele e permitia que respirasse melhor. O lugar carregava uma mistura de cheiros, que oscilava entre desagradáveis e perfumados. “Lottar, feche a porta”, disse Kaline. Ele obedeceu. Ficar de olhos abertos ou fechados agora dava no mesmo. Lottar apenas ouvia o barulho dos pés descalços da mãe, pisando no chão duro. Outro arranhão no interior da barriga. Sentir a dor na escuridão era mais angustiante. O cômodo se encheu de uma luz branca sem nenhum aviso. Lottar apertou os olhos, piscou algumas vezes, até recuperar a visão. Kaline se afastava do interruptor na parede, indo em direção a uma mesa larga de madeira avermelhada, cheia de utensílios de magia. Havia ali frascos de vidro, potes de cerâmica, pedras coloridas, papéis avulsos, uma pilha de livros, alguns escancarados, e um pequeno caldeirão de ferro. Atrás da mesa, encontrava-se uma cadeira da mesma madeira avermelhada, de braços grossos.

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Ricardo Santos O garfo de jardinagem saiu da mão de Kaline e foi parar em cima da mesa. Quando era pequeno, Lottar tinha medo de permanecer um minuto sequer no Quarto das Poções. Com o passar dos anos, o medo diminuiu, mas nem tanto assim, abrindo espaço para um fascínio crescente. Para ele, todo aquele conhecimento de magia poderia, no futuro, torná-lo um mago muito poderoso. As paredes eram cobertas por pedras retangulares escuras. As prateleiras de madeira castanha guardavam mais frascos, potes, papéis e livros. As tábuas que cobriam o teto também eram de madeira castanha. A iluminação ficava por conta de lâmpadas brancas presas ao teto. Apesar de ser um lugar fechado, corria uma boa ventilação. Um mistério que Lottar nunca procurou entender. “Lottar”, disse Kaline, calmamente. Não estava olhando para ele. Procurava alguma coisa entre os utensílios da mesa. Ao ouvir a mãe, Lottar sentiu um frio na barriga que nada tinha a ver com a dor. Engoliu em seco, desta vez forçando mais a garganta. “Venha cá.” Kaline continuava a mexer na mesa. Lottar obedeceu. Mas com dificuldade. Suas pernas estavam pesadas. Cada pisada no chão era um sofrimento. Kaline parou, sem mudar o semblante duro. Tinha encontrado o que procurava. Lottar aproximava-se. A partir de certo momento, a sensação de unhas arranhando o interior da barriga não deu mais trégua. Os olhos de Lottar logo ficaram marejados. Ele passou o braço nos olhos antes que as lágrimas caíssem. Assim que Lottar parou na frente de Kaline, ela virou-se para encará-lo. Lottar se tornou um acúmulo de dores. Ele não conseguia mais manter nenhuma postura. Estava prestes a desabar. Ela manteve o olhar duro. Lottar encarava a mãe fragilmente. Ele queria que aquilo acabasse logo. Kaline estendeu a mão suja de terra, fechada. “Espero que isso não se repita”, disse ela, cada palavra carregando certo peso.

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“N-não... senhora.” A afirmação de Lottar quase não saiu. A garganta estava tão seca. A dor na barriga atrapalhava sua concentração. “Você não está pronto. Seu pai ainda precisa terminar seu treinamento.” Ela abriu a mão suja, revelando um objeto escuro e deformado. Parecia uma pedra. Mas Lottar sabia muito bem o que era aquilo. Uma pedra-raiz. Ele chegou a dar um sorrisinho cansado de alegria. “Essa é a última pedra-raiz madura do Jardim”, disse Kaline. Então seu plano envolvendo Pogo teria sido frustrado de qualquer jeito. Lottar dera uma missão ao pequenino: ir até o Jardim, e quando sua mãe não estivesse olhando, desenterrar uma pedraraiz, a de menor tamanho, a que Pogo pudesse carregar sem tanta dificuldade, e levá-la até ele. Lottar sabia que não era exatamente um bom plano. Alguns poderiam até dizer que era um plano bem idiota. Mas no que mais ele poderia pensar, numa situação de desespero?... “Não esqueça de mastigar bem”, avisou Kaline. Lottar confirmou com a cabeça. Ele pegou a pedra-raiz. Sentiu sua fina rugosidade. Por um instante, esqueceu de tudo. Ficou observando as imperfeições da superfície. Duas protuberâncias, lado a lado, lembravam torres de um castelo de contos de fada. De repente, os arranhões no interior da barriga ficaram insuportáveis. Lottar levou a pedra-raiz à boca e mordeu um pedaço generoso. Ele fez uma cara feia, em silêncio. Era a segunda vez que sentia aquele gosto amargo. Uma lembrança terrível. A cada mastigada, a sensação desagradável na boca ficava mais marcante. Kaline fiscalizava Lottar com os olhos. Pedras-raízes eram usadas para três ou quatro finalidades conhecidas, todas envolvendo preparação de poções. A depender dos ingredientes de cada receita, era possível obter algo diferente, com um efeito específico. Devoradores de almas usavam uma dessas versões para aliviar certos efeitos colaterais de almas mais difíceis de absorver. Em outras palavras, a poção era um tipo de

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Ricardo Santos digestivo mágico. Em casos extremos, urgentes, quando as coisas se complicavam ou por inexperiência do devorador de almas, ingeriase diretamente a pedra-raiz, e depois um feitiço era lançado para completar o serviço. Para alívio tanto do devorador, que podia sofrer dores inimagináveis, e até mesmo morrer, quanto da alma, ainda com um fio de consciência, presa a um redemoinho de lembranças confusas, perturbadoras. Sem muita demora, Lottar sentiu seu corpo ficar dormente, tórax, braços e pernas. As dores que sentia foram dando lugar a fortes câimbras. Ele começou a fazer uma sucessão de caretas e a gemer. Kaline deu dois passos para trás. Levantou as mãos sujas de terra, na altura do peito. Fechou os olhos e começou a pronunciar palavras estranhas, como se estivesse orando. Curiosamente, o corpo de Lottar não desabou por falta de estabilidade. Permaneceu petrificado. A expressão no rosto dele ficou congelada. A boca meio aberta e retorcida, os olhos arregalados. Quem estivesse de fora, poderia pensar que nada acontecia dentro de Lottar, dentro de sua mente. Na verdade, seu metabolismo estava acelerado. Se alguém o tocasse naquele instante, perceberia que sua temperatura estava elevada. Se o tocassem na testa, molhariam a mão de suor. E sua mente estava numa atividade intensa. Assim como da primeira vez, alguns meses antes, Lottar passou a rever imagens de todos os seus momentos com o pai, apenas os dois. Eram imagens aceleradas, fora de ordem cronológica, nenhuma realmente nítida. Mas Lottar tinha certeza do que havia nelas, do que se tratava. Eram momentos em que Lottar estava triste, alegre, com raiva, rindo, chorando, em paz, sendo cuidado, sentindo admiração, sendo injusto, amoroso, violento, altruísta, egoísta, sentindo decepção, confiança, medo. À medida que as imagens seguiam, juntamente com as câimbras, uma dor crescente passou a apertar sua cabeça mais e mais. Dor e câimbras chegaram a um ápice e sumiram rapidamente. Tudo ficou escuro. Kaline abriu os olhos, arriou os braços e suspirou. Ela não viu nada, e mesmo que estivesse de olhos abertos continuaria a não ver nada. Não conseguiria ver a alma que saiu do corpo de Lottar. Mas Kaline sabia que o feitiço tinha dado certo. Tinha

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certeza de que a alma estava a caminho do corpo a que pertencia. Da primeira vez que Lottar fizera a mesma besteira, ela enviara a alma do desafeto de volta ao corpo de origem. Por lei, ninguém sem a devida autorização podia devorar almas, fosse criança, jovem ou adulto. Menores que violassem a lei podiam ser denunciados, presos, julgados e enviados a Centros de Reabilitação Juvenil. Contudo, caso a alma voltasse ao corpo, não haveria prova de que o crime fora cometido. Lottar dera a missão a Pogo na esperança de que, ingerindo uma pedra-raiz inteira, não precisasse do feitiço para salvar-se. Outra ideia idiota. Lottar estava agachado, as mãos apoiadas no chão, lançando tosses secas e barulhentas, com os olhos cheios de lágrimas. Kaline aliviou sua expressão dura. Ela queria abraçar o filho, enxugar suas lágrimas, acariciar sua cabeça. Mas se conteve. A lição ainda não havia terminado. Lottar tentava se recuperar sem pressa. Dando ao corpo e à mente o tempo necessário para funcionar direito. Sua barriga estava vazia. Agora estava morto de fome. Já sua cabeça ainda estava cheia. Desde que voltara à consciência, uma ideia fixa não o abandonava. Seu pai valia todo aquele sofrimento, toda aquela dor? Onde ele estava afinal? Lottar conseguiu levantar-se aos poucos, ainda fraco, dolorido, enxugando as lágrimas com a palma da mão. “Está com fome?”, perguntou Kaline, numa voz mais relaxada. De olhos baixos, Lottar balançou a cabeça levemente, confirmando. “Vou lavar as mãos e os pés lá nos fundos. Você vai entrar no chuveiro, enquanto esquento seu almoço. E mais tarde, você vai me ajudar no Jardim.” Lottar apenas tinha forças para concordar, para obedecer.

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ra por volta das quatro da tarde. O céu continuava nublado. O dia, quente e úmido. Lottar saiu da porta da cozinha que dava para os fundos da casa. Usava uma camisa preta da banda Elfos Negros, short e chinelos de borracha. Logo atrás vinha Pogo, com seu passinho curto. O jardim era decadente, cercado por muros altos. Tinha uma miséria de flores. Uma ou outra árvore de tronco fino, meio desfolhadas. Bastante mato ao redor. Entre o verde sem brilho, seguiam caminhos estreitos formados pela terra escura. Kaline estava à sua frente, com os pés no chão. O cabelo preso no rabo de cavalo volumoso. Lottar estava descansado, depois de comer e tirar um cochilo. Mas ainda sentia dores leves pelo corpo. Sua cabeça estava ok. “Vamos, Lottar. Não temos muito tempo. Não vai demorar para escurecer”, disse Kaline, virando-se para trás, já dentro do jardim. Ela carregava um balde com utensílios de jardinagem e uma sacola de couro a tiracolo. Quando se agachou, quase desapareceu por trás do mato alto. Lottar não carregava nada nas mãos ou no corpo. Pogo se esforçava para acompanhá-lo. Nos três anos anteriores, desde a ida do pai à guerra, o Jardim se tornara mais do que um refúgio para a mãe. Tornara-se uma obsessão. Era o lugar onde ela mais passava o tempo livre. À medida que avançava, Lottar pensava em como fora feliz ali, apesar dos perigos. Mas agora o Jardim só lhe trazia lembranças amargas e aporrinhações da mãe. Ele chegou na fronteira entre a facha de terra escura e o começo do jardim. Sem parar de andar, deu o primeiro passo, e logo sentiu um vento frio soprar em seu rosto. Teve até que fechar os olhos. Ele nunca conseguia mantê-los abertos. Quando voltou a enxergar, tudo estava diferente. Era outro jardim. Era o Jardim. Numa explosão de cores, formas e cheiros. Mas o que tinha maravilhado Lottar tantas vezes antes, naquele dia não passava de um cenário que o irritava. Kaline continuava agachada no mesmo lugar, mas agora ela podia ser completamente vista. Onde antes estava invadido pelo mato surgiram flores exuberantes e árvores frondosas. Os caminhos

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se tornaram mais largos e estavam cobertos por uma grama verde tão bem aparada. O céu azul trazia um vento suave, e o sol queimava a pele negra de Lottar de maneira agradável. Ele caminhava em direção à mãe e não ligava muito para o que estava ao seu redor, por mais belo ou intrigante que fosse. Pogo também parecia não dar a mínima. Lottar passou por arbustos de folhas prateadas, por palmeirasduendes com formas humanoides em seus troncos, e por Carmen e Josefina, a enorme planta carnívora de duas cabeças. Aliás ela tinha crise de identidade, sendo Carmen carnívora e Josefina vegetariana. A briga entre ambas era constante. Assim como o Quarto das Poções, o Jardim era outra herança de família. Heranças que se completavam, formando um só legado. O Jardim fornecia as matérias-primas que eram manipuladas no Quarto, para criar poções aprendidas nos livros e na tradição oral, registrada em papéis antigos. Certa vez, aos cinco anos, Lottar quis matar sua curiosidade a respeito da localização do Quarto e do Jardim. Como poderiam existir no mesmo lugar de outro quarto e de outro jardim? Ele estava em casa, apenas com a avó. Kaline e Victor tinham saído para trabalhar. E Pogo não estava por perto. Sua avó o encarou um tanto séria. “Meu neto, a resposta não é tão simples.” Lottar apertou o rosto. “Que tal tentar me explicar?” Ele sorriu com uma ironia desafiadora. Sua avó deu uma gargalhada ao ver aquele arremedo de malícia. “Muito bem... A resposta curta é a boa e velha Magia... aliada à Ciência.” Lottar apertou o rosto novamente. Sem entender nada. “Quer ouvir a resposta longa?” “Manda.” Sua avó ficou realmente séria. “Ainda espero estar viva para repetir essas palavras, quando você puder entendê-las melhor...” O rosto de Lottar era pura expectativa. “Você ainda vai aprender na escola que, quatro séculos atrás, depois da Primeira Grande Mudança, Nova Câmbria deixou de ser uma terra mágica. Muitos Especiais deixaram de existir. Sumiram

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Ricardo Santos como se nunca tivessem pisado nessa terra. E aqueles que possuíam forma humana perderam suas habilidades. Então vieram as crises pessoais, a falência de muitos negócios baseados em magia e outros poderes, e a perda de posição de Especiais no governo do País. “Minha avó me contava histórias sobre magos e feiticeiras que se mataram porque não conseguiram viver como Normais, fosse uma curandeira da vila mais distante, ou o reitor da universidade mais tradicional de magia. “Foi aí que os Normais aproveitaram a oportunidade para galgar posições nas esferas de poder e dominar o mundo dos negócios. Assim, vários campos da Ciência floresceram. Ao mesmo tempo que os cientistas procuravam resolver os problemas do dia a dia, eles também especulavam sobre questões menos práticas, mas igualmente importantes. “Uma dessas questões voltava-se para o estudo de Universos Paralelos. Elaboraram teorias sobre outros Universos, uma teoria mais maluca do que a outra. Na verdade, era mais uma maneira de procurar uma explicação de por que aconteceu a Primeira Grande Mudança. Matemáticos, físicos e astrônomos faziam cálculos e experimentos, mas nada podia ser comprovado. E isso durou quase dois séculos. Até que veio a Segunda Grande Mudança. Nova Câmbria voltou a ser uma terra mágica, da mesma forma inesperada e misteriosa como tinha deixado de ser. “Uma outra Nova Câmbria começou a surgir. Os Especiais queriam voltar a ter o mesmo prestígio de antes. Deu-se uma acirrada disputa política contra os Normais. Até sangue foi derramado. O fato mais positivo desse novo mundo foi a criação de um tipo inédito de novo cambriano: Especiais que aprenderam a amar a Ciência e a usá-la junto com seus poderes. Surgiram então os magos e feiticeiras hibridistas. “Mas para muitos na comunidade científica e no mundo da magia, eles eram aberrações, uma vergonha para cada tradição. Tudo bem que já faz muito tempo que os hibridistas conquistaram espaço em nossa sociedade. Isso depois que os governantes e os homens de negócios perceberam como suas ideias, misturando Ciência e Magia, eram tão úteis e lucrativas. Além do mais, os próprios hibridistas se tornaram políticos influentes e empresários muito ricos, porém, a desconfiança e o preconceito continuaram... Eu sei que estou falando demais, não precisa fazer essa cara emburrada, Lottar. Vou contar o que você quer saber, agora mesmo...

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“Foi um hibridista que conseguiu dar uma resposta mais concreta à velha questão dos Universos Paralelos. Igor Van Costa. E não, ele não era parente do vizinho de vocês. Usando Magia e Ciência, ele conseguiu abrir passagens, buracos entre o nosso Universo e outros. Mais exatamente, Bolhas Dimensionais, que podem variar de tamanho, mas que nunca ultrapassam certo limite. O curioso é que ninguém dentro da Bolha consegue rompê-la, ir além, como se existisse um campo de força impedindo a passagem. Mas elementos desses outros Universos conseguem entrar na Bolha, como insetos, a chuva, raios do sol e o próprio ar. “Van Costa e outros hibridistas, parceiros e rivais, passaram décadas tentando aprimorar a descoberta. Com progressos muito modestos. As Bolhas são difíceis de executar, por custar muito dinheiro e exigir muito conhecimento mágico-científico. “Durante a História, as Bolhas foram usadas para diversos fins, infelizmente, mais para o mal do que para o bem. A maior esperança de muitos com a descoberta das Bolhas era encontrar finalmente a resposta que explicasse por que ocorreram a Primeira e a Segunda Grande Mudança. Essa pergunta até hoje não foi respondida. “Van Costa foi importante para o reconhecimento dos hibridistas, o que causou muita admiração, mas também inveja e ódio. E os livros registram que o próprio Van Costa era uma pessoa difícil. “O que pouca gente sabe é que nossa família, os Gan Amon, sempre foi muito amiga dos Van Costa. Quer dizer, pelo menos de um Van Costa. Graças ao meu avô, seu tataravô, Áureo Gan Amon. Um mago de origem humilde e negro que se tornou o melhor amigo do filho mais novo de Van Costa, Cálio. Ambos se tornaram promissores hibridistas. Seu tataravô foi o primeiro e único membro da família a frequentar uma universidade de magia, e logo a mais tradicional, por meio uma bolsa muito disputada. “Espero que algum dia, meu neto, você possa voltar a dar brilho ao nome Gan Amon. “Mas aí aconteceu uma tragédia. Meu avô morreu num acidente de laboratório, na Universidade. O caso foi apurado e esquecido com muita rapidez. Segundo disseram, para evitar que reputações fossem jogadas na lama. Minha avó, tão jovem, ficou viúva, e minha mãe, ainda um bebê de colo, órfã de pai. “Cálio Van Costa, como melhor amigo do meu avô, quis ajudar nossa família. Presenteou-nos com uma Bolha para o jardim, já que

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Ricardo Santos nossas plantas mágicas ficavam escondidas em meio à vegetação comum. Além disso, forneceu sementes de plantas hibridistas, fruto do trabalho conjunto dele e de meu avô. Aliás, como Cálio explicara à minha avó, a ideia de criar o Jardim não fora dele, e sim do amigo Áureo. Seria uma maneira de manter em segredo os experimentos em que trabalhavam. “Nos anos seguintes, Cálio frequentou bastante o Jardim. Mas não o laboratório. Minha avó era uma feiticeira tradicional. O laboratório voltou a ser o mesmo Quarto da Poções de gerações anteriores. Cálio também criou uma Bolha para proteger o Quarto... Entendeu agora, meu neto?” Lottar ficou encarando a avó com olhos meio vidrados. Então, soltou: “A senhora está de brincadeira, não é, vó?” “Por quê, Lottar?” “Quer dizer que o Jardim e o Quarto das Poções ficam dentro de Bolhas num Universo que não é o nosso?” “Universos.” “Ninguém na escola vai acreditar que têm Bolhas como essas bem aqui na minha casa.” “A parte chata é que você não pode contar isso para ninguém.” “Sério?” “Não, não. A segurança de nossa família e de nosso legado depende de mantermos segredo... Por isso, meu neto, você vai ter de me perdoar.” “Como assim perdoar, vó?” Então, sem dizer nada, a feiticeira segurou o topo da cabeça do menino. Ele mal percebeu a investida. Só lhe restou tremer, como se tivesse tomado um grande susto. Depois, respirou fundo e tossiu. “Pronto, pronto”, disse sua avó, puxando-o para abraçá-lo e acalmá-lo. Ele continuou a tossir. “Vó, o que foi que aconteceu?” “Nada, meu neto. Está fazendo muito calor. Você ficou tonto. Vou preparar um refresco de uva bem gelado. Vamos.” Lottar seguiu a avó, meio confuso, a cabeça doendo um pouco. Sua intuição dizia que alguma coisa tinha lhe escapado, alguma coisa que estava na ponta da língua...

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Enquanto ia para a cozinha, sua avó pensava no futuro. Quando Lottar fizesse novamente a pergunta, ela esperava estar por perto para dar a resposta. Mas ela acabou morrendo no ano seguinte, do coração, deixando para Kaline essa responsabilidade.

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ottar parou junto à mãe, seguido por Pogo. Ela estava com um joelho da calça jeans apoiado na grama, enfiando a pá de jardinagem no pé de uma flor enorme, bojuda e fechada. A cor das pétalas mudava a todo momento. Era uma Flor-Arco-Íris. A bolsa de couro estava no chão. “Pegue um pouco de Licória”, disse Kaline, olhando para o alto, para Lottar. Ele se abaixou, sem muito entusiasmo, e abriu a bolsa. Só restava a Pogo ser um mero espectador. Dentro da bolsa havia frasquinhos de vidro, saquinhos de pano amarrados e algumas pedrinhas. Lottar pegou um saquinho de pano, com uma letra L ligeiramente bordada. “Desamarre com cuidado. Não deixe cair”, avisou Kaline, concentrada em revolver a terra. A boca do saquinho estava amarrada com uma tirinha de couro. O nó que a mãe fizera estava apertado. Lottar teve dificuldade para desatá-lo. Até que conseguiu, não sem provocar alguma dor na ponta dos dedos. Agachou-se e estendeu o braço para entregar o saquinho à mãe. “Você vai me ajudar. Chegue mais perto”, ordenou Kaline. Lottar ensaiou uma cara feia. Sua vontade era de largar o saquinho, ficar de pé e voltar para dentro de casa, ou talvez sair pela rua e perder-se por aí. Mas a verdade era que não tinha muita energia para se mexer além da conta. Não estava plenamente recuperado de tudo que passara ao se livrar da alma de Mok. Portanto, não tinha muita escolha. “Você vai derramar um pouco de Licória quando eu mandar”, disse Kaline, concentrada em revolver a terra. Por intuição, ela se virou para o lado. “Lottar, ouviu o que falei?” “O quê?” Ele estava distraído. Assustou-se, desequilibrou-se e caiu para trás, soltando o saquinho. O impacto de sua bunda magra contra o chão não foi pior graças ao apoio das mãos ágeis.

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O saquinho bateu na grama e espalhou seu conteúdo, um pó fino e amarelo, uma parte levada pelo vento. “Olha só o que você fez!”, gritou Kaline, largando a pá de jardinagem. Ela ficou de pé numa velocidade impressionante. Do alto, à contra luz, ela parecia imensa e assustadora. Lottar a observava, sentado no chão. Seu medo era genuíno. Depois que a mãe se tornara uma vampira, provocá-la significava um risco em dobro. Pogo congelou-se de pavor. Kaline deslocou-se no ar e surgiu a poucos centímetros do rosto do filho, estranhamente agachada, como um animal selvagem, rosnando. Os olhos completamente escuros. Os caninos salientes não apareceram. Ainda sentado na grama, Lottar usou os braços e a bunda para recuar o corpo num desespero desajeitado. Acabou perdendo um dos chinelos de borracha. Então ele soltou um grito cheio de agonia: “Mããããee!!!” Kaline parou de avançar e desarmou a expressão de fera. O rosto imóvel processou o que acabara de acontecer. Ela se tornara uma ameaça ao próprio filho. Mais uma vez. Ela deslocou-se no ar novamente, agora para longe dele. Ficou sentada na grama, apavorada. Fechou os olhos. Ao abri-los, estavam normais. Lottar recuperava-se do susto, tomando fôlego, olhando para o chão. “Lott...”, disse ela, num tom mesclando ternura e culpa. O filho não se mexeu. “Lott...”, repetiu. Lottar respirou fundo e levantou a cabeça para encarar a mãe. Os olhos eram só fúria e decepção. Já os olhos de Kaline eram só tristeza e arrependimento. Ela procurou acalmar-se. Ficou de pé. E cautelosamente, foi em direção a Lottar. “Não chegue perto”, disse ele, todo cheio de razão, encarando-a. “Tudo bem.” Ela parou. “Você me prometeu nunca mais fazer isso.” As palavras de Lottar não estavam mais tão seguras. “Eu sei.”

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Ricardo Santos Kaline pensou em pagar na mesma moeda, também o lembrando da promessa quebrada a respeito de devorar almas. Mas deixou para lá. Seria um recurso barato, de resultado duvidoso. Ele poderia se irritar ainda mais. Mãe e filho encaravam um ao outro, em silêncio. Até que do nada os olhos de Lottar ficaram úmidos e lágrimas caíram. Desta vez, ele não passou a mão para enxugá-las. Foi a deixa de que Kaline precisava. Ela caminhou, limpou as mãos sujas de terra na calça jeans e aproximou-se do filho. Agachou-se e o abraçou bem forte. Lottar correspondeu ao abraço. Ele não sentiu nenhum calor reconfortante, e sim um corpo frio, que parecia estar oco. Mas ele não se importou. Já Kaline conseguia sentir até demais o calor do corpo do filho. Pogo voltou a se mexer. “Mãe?”, perguntou Lottar, ainda com o rosto encostado no peito de Kaline. “Sim.” Ela olhou para o topo da cabeça de Lottar. Ela queria acariciálo. Mas suas mãos ainda estavam sujas de terra. “Meu pai vai voltar para casa?” Fazia vários meses que ela não ouvia essa pergunta. Kaline parou e pensou numa resposta um pouco diferente das anteriores. “Eu quero muito que ele volte. Resta a gente continuar esperando. Por quanto tempo mais? Eu não sei.” Lottar não disse mais nada. “Me ajude com a Licória. Vamos terminar de cuidar da FlorArco-Íris.” Quando Lottar desgrudou-se de Kaline, viu o rosto dela com dois fios de sangue escorrendo pelas bochechas. “Mãe, sangue.” Kaline rapidamente passou as costas da mão nos lados do rosto, espalhando o sangue e grãos de terra em sua pele negra. “Mas que inferno!”, disse ela. “Espera. Vou pegar água. Pogo, cuide dela.” Pogo ficou em posição de sentido e bateu continência. Lottar se levantou, calçou o chinelo perdido e caminhou rápido em direção a casa.

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Entre a casa e o Jardim, havia uma barreira, como se fosse um enorme vidro turvo, que se estendia vários metros para os lados e para cima. Isso indicava a entrada da Bolha. Quem estivesse do lado de fora nunca veria essa barreira. Quem estivesse do lado de dentro a veria apenas se Kaline, Lottar ou Victor estivessem presentes. Assim como todo o Jardim. Na fronteira, Lottar sentiu a lufada de vento que o obrigou a fechar os olhos. Foi até a pia que ficava do lado de fora da casa. Kaline continuou sentada na grama, contendo as lágrimas de sangue com as costas da mão. Pogo não podia fazer nada para ajudar. Lottar encheu um balde com água da torneira e pegou um pano seco. Em seu retorno, viu o jardim descuidado que qualquer estranho observaria. Kaline estava escondida por trás do mato alto. Dava para ver parte de sua cabeça e o cabelo crespo puxado para trás. Um pensamento atingiu Lottar. No dia em que Victor fora para a guerra, ele tinha prometido ao pai e a si mesmo que cuidaria da mãe, que ninguém a machucaria. Mas onde ele estava quando ela fora mordida? Enquanto prosseguia, segurando o balde com água e o pano seco, recordava pela centésima vez os fatos daquela noite, do que Kaline contara. Tentava rever pela centésima vez sua ausência neles. E o que poderia ter feito para evitar a tragédia. Mas acontece que Lottar sabia apenas metade da história.

Deu-se numa noite fria, já tarde, um ano depois da partida de Victor para a guerra. Kaline não conseguia dormir. Então ela foi à cozinha e fez um pouco de chá de camomila. Da porta dos fundos, segurando com cuidado a caneca fumegante, ela observava a massa disforme que era o jardim, pouco iluminado pela lua entre nuvens. As luzes dos vizinhos, de um lado e do outro, já estavam apagadas. Ela pensou em ir até o Jardim, tentar esquecer suas preocupações, gastar seu resto de energia, ter um bom sono. À

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Ricardo Santos noite, o Jardim era um lugar tão belo quanto perigoso. Por isso, ela teria de se preparar para proteger-se de certas ameaças. Ir ao Quarto das Poções, pegar um ou dois fraquinhos de vidro, e ter na cabeça um ou dois feitiços para lançar sem demora. Tudo em caso de emergência. Não havia risco de morte. Pelo menos, não uma morte física. O problema era que os perigos de lá poderiam perturbar sua mente para sempre. Mas ela acabou desistindo. Não se sentia muito confiante. Resolveu terminar sua caneca de chá, voltar para cama e tentar dormir, sem tomar nenhuma poção ou lançar qualquer feitiço para ajudá-la no sono. De repente, algo chamou sua atenção no jardim. Kaline sentiu um aperto no peito quando percebeu a silhueta de um homem parado em meio ao mato. Victor!, imaginou ela. Não pensou duas vezes: baixou a caneca e deu alguns passos adiante. Estava fora da casa. Na faixa de terra antes do jardim. Esse foi seu erro. Tudo aconteceu muito rápido. Mesmo para uma feiticeira. Quando percebeu, ela já estava deitada na terra, meio inconsciente, sentindo uma forte dor no pescoço. A caneca estava no chão com sua asa quebrada e o chá derramado. “Shhh... Tudo vai ficar bem agora”, disse uma voz serena, masculina. Kaline ergueu o rosto com dificuldade e viu um jovem de pele alva, cabelo longo e moreno, em cachos, encarando-a com olhos completamente escuros, e sorrindo com caninos salientes. Para seu horror, ela entendeu quem era o estranho. O que ele era. “Seu sangue tem um gosto maravilhoso... Sangue de feiticeira... Logo reconheci o sabor. Não é bem nascido, mas tem muita qualidade.” Enquanto o vampiro falava, Kaline não entendia direito o sentido daquelas palavras. A mordida a tinha enfraquecido, deixando-a meio tonta. “Você tem sorte, minha querida... Fique sabendo que eu estava morrendo de fome. Eu fiz uma cansativa viagem da Capital até esta

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cidade. Suguei até o fim muitas pessoas e seres que encontrei pelo caminho. Quando provei seu sangue, a primeira coisa em que pensei foi secá-la completamente. Mas a razão falou mais alto. Preciso me estabelecer nesta cidade por alguns dias, melhor dizendo, por algumas noites. Estou cansado de fugir. Preciso me recuperar para seguir viagem. Por isso, resolvi me estabelecer em sua casa, tornála minha temporariamente. E você será minha serva. Caso me sirva bem, pode ser até que eu a leve comigo. Bons servos são difíceis de encontrar. O último foi um desastre.” O acúmulo de palavras só fazia crescer a irritação de Kaline. Ela agradeceu tanto ao vampiro por sua presunção. Talvez se o infeliz não falasse demais ela não encontraria forças para querer virar o jogo. Só havia uma chance de derrotá-lo. Ela precisava ser rápida. O vampiro iria atacá-la assim que notasse sua ação. Ainda deitada na terra, esticou com energia o braço na direção dele, que estava de pé. “Aliós cam.” Kaline teve calma para moldar a voz no tom correto. O vampiro apenas conseguiu abrir a boca, com seus caninos salientes, e soltar um chiado ameaçador. Algo, como uma forte gravidade, o puxou para trás, para dentro do jardim. Ele foi jogado no meio do mato alto. Kaline se levantou com dificuldade e foi arrastando o passo numa tensão sofrida. Ela queria andar mais rápido do que seu corpo permitia. Até que ela atravessou a fronteira do Jardim. Cerca de meia hora depois, saiu de lá, mancando. Toda suja de terra e de sangue. O corpo cheio de dores. A cabeça explodindo. Ela só queria esquecer o pior momento de sua vida. Apagá-lo da memória. Também queria muito tomar um banho morno. Foi pior do que o dia em que sua mãe morreu. Pior do que quando Victor seguiu para a guerra. Sua vitória contra o vampiro seria um segredo que nunca contaria para ninguém. Como o próprio vampiro dissera, Kaline fora mordida até certo ponto. Ele queria fazê-la sua serva. Naquela mesma madrugada, ela sofreu horrores com a transformação de seu corpo. Sua condição de feiticeira só dificultou as coisas. Sua mente relutou em ceder. Por fim, ela se tornou uma vampira. Fazendo com que entrasse num

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Ricardo Santos estado de rejeição a si própria, e sentindo uma fome irracional por sangue. Sua vontade era de alimentar-se com sangue humano, até a última gota. Porém isso só faria piorar a situação. O risco de atrair as autoridades era enorme. E o mais importante, sua consciência a deixou num impasse. Naquela mesma madrugada, ela sorrateiramente saiu de casa em busca de animais de sangue quente na mata mais próxima. Repetindo a caçada nas noites seguintes. Ela não podia mais sair durante o dia. Lottar ficou preocupado com a mãe. Ela ficava trancada no quarto o dia inteiro. E à noite se comportava de maneira muito estranha. Mal abria a boca. Às vezes, falava de maneira tão ríspida. O menino agora tinha liberdade para fazer o que quisesse. Mas o que ele sentia mesmo era desamparo. Uma noite, Kaline enviou uma carta mágica ao dono da Loja de Poções onde trabalhava como vendedora, pedindo demissão. Alegou problemas de saúde. Na noite seguinte, outra carta mágica apareceu na sua frente. O patrão lamentou sua partida e desejou melhoras. Além de confirmar o depósito bancário de seu último pagamento. Então Kaline se tocou que o dinheiro em sua bolsa acabaria em poucos dias. Dinheiro para pagar as contas, para comprar comida para Lottar. Mas ela não estava muito interessada nessas questões domésticas no momento. Agora ela estava tão tentada a experimentar sangue humano em suas caçadas. Um resto de consciência a prevenia de que o filho não era uma opção. Algumas noites depois, ela sentiu cheiro de sangue fresco na porta da rua. Foi até lá. Deparou-se com Lottar, todo ensanguentado. Ela se desesperou. Cuidou dele, controlando-se para não cair na tentação de provar aquele sangue. E só a muito custo, o filho contou a verdade. Tinha tentado roubar para comer. Foi pego pelo dono de uma banca de frutas e seu ajudante, arrastado para um beco e espancado. Depois foi deixado em paz. Kaline chorou muitas lágrimas de sangue. Então contou ao filho o que lhe acontecera. Foi difícil para ele assimilar. Naquela mesma noite, Kaline foi pedir ajuda à melhor amiga, outra feiticeira, chamada Priscila. Para espanto da amiga, Kaline revelou no que se tornara. Lottar ficou por alguns dias na casa de tia Priscila, enquanto Kaline tentava se recompor.

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Nas semanas seguintes, Kaline procurou elaborar uma poção que amenizasse sua sede por sangue, a mantivesse acordada durante o dia, e a permitisse se expor ao sol. Ela não tinha que se preocupar com coisas como falta de reflexo em espelhos ou repulsa a alho. Tudo isso não passava de exageros de literatura barata. Então, depois de tentativas e testes, ela conseguiu produzir a Poção Inibidora. Agora poderia beber sangue de animais domesticados e selvagens e ficar saciada, apesar do gosto não muito agradável. Mas adotar a Poção Inibidora teve um preço. Ela se tornou viciada nela. Mais um fator que alterava seu temperamento. Contudo, Kaline acreditava que era preciso fazer isso por ela e por Lottar. Ela arranjou um novo emprego, como vendedora em outra Loja de Poções. As coisas foram se ajeitando na medida do possível. Por último, lançou um novo feitiço de segurança em todo o terreno da casa, para alertá-la contra intrusos Especiais. Ela ainda estava sem entender qual fora a falha no antigo feitiço, que tinha mudado sua vida para sempre.

Ali no Jardim, mãe e filho recordaram aquela noite e os meses posteriores ao ataque, cada um à sua maneira. Lottar só parou de pensar no assunto quando terminou de passar o pano úmido no rosto da mãe, retirando o sangue e os grãos de terra escura. Logo depois, foi a vez de Kaline deixar as más lembranças para trás. “Pronto”, disse Lottar, jogando o pano úmido dentro do balde com água. Pogo levantou o polegar para Kaline. Ela sorriu. Lottar encarou a mãe, encantado. “O que foi? Ainda tem alguma coisa no meu rosto?”, perguntou ela “Não, nada. É que já faz um tempo que não vejo a senhora sorrir.” Kaline tomou um susto, em seguida, ficou séria, mas logo relaxou o semblante.

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Ricardo Santos “Vamos terminar de cuidar da Flor-Arco-Íris”, disse ela, contente. “Depois vou preparar um bolo de chocolate para você.” Agora era Lottar quem estava sorrindo. A pedido da mãe, ele pegou o saquinho de pano e a tirinha de couro jogados no chão. Ela queria saber o que ainda restava da Licória. Na grama, não restou quase nada do pó amarelo. Kaline pegou a pá de jardinagem e se aproximou da Flor-ArcoÍris. Lottar se agachou e, ao sinal da mãe, virou o saquinho, derramando o que tinha sobrado da Licória no pé da Flor bojuda. Kaline misturou tudo com a pá de jardinagem. O pó amarelo era uma antiga receita de família. Dava mais resistência às plantas e tornava suas cores mais intensas. O trabalho estava quase pronto. Lottar foi até a bolsa de couro e guardou o saquinho de pano vazio e a tirinha. Enquanto Kaline terminava de aprontar a terra, Lottar ficou de pé, admirando o Jardim. Ele se sentia bem. Podia-se dizer alegre. Olhou ao seu redor. O sol queimava sua pele suavemente. As cores das flores e plantas não cansavam mais seus olhos. Os cheiros não irritavam mais seu nariz. Ele passou a observar um ponto específico. Uma borboleta-elétrica voava, não muito longe. Ele se lembrou como era fascinante o efeito das asas com bordas de luz branca, deixando um rastro luminoso, à medida que subiam e desciam. À noite, era um espetáculo ainda mais belo. De repente, Kaline deu um grito. Lottar esqueceu a borboleta e virou-se para a mãe. Ela olhava fixamente às costas dele, em direção a casa. A mão cobria a boca. Os olhos eram puro espanto. Pogo estava congelado. Lottar virou-se para trás. Ele não deu nenhum grito. Até que gostaria, mas simplesmente não saiu. Um homem negro, de barba, estava parado, dentro do Jardim, tendo ao fundo a imagem turva da casa, a entrada da Bolha. O homem usava um macacão de operário e boné.

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Ele tirou o boné de vez. Não dava para saber se as lágrimas do homem eram de tristeza ou de alegria. Então um sorriso explodiu da boca de Victor, junto com grandes gotas de saliva.

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o ouvir a voz do pai pela primeira vez em três anos, ao ouvi-lo dizer “Filho”, Lottar não correu para abraçá-lo. Nem chorou. Nem disse nada. Ficou parado, meio em choque. Victor também não saía do lugar. Chorava, sorria, respirava fundo e enxugava as lágrimas. A primeira a vencer a imobilidade foi Kaline. Fez tudo lentamente. Levantou-se da grama. Andou em direção a Victor. Ficou a poucos centímetros dele, encarando-o, espantada. Ele não avançou. Parecia querer também observá-la melhor. Ela o estudou sem pressa. Ele estava diferente. Usar barba nunca lhe caíra bem. E aquela estava horrível, maltratada, prestes a se tornar selvagem, um caso perdido. Estava mais magro. O rosto mais ossudo. Os olhos apagados. “É-é você mesmo, Vico?”, perguntou ela, temerosa. Então ele levou a mão livre ao rosto dela. “Amor, por que sua pele está tão fria?”, perguntou ele, mostrando-se preocupado. Kaline recuou, assustada. Ela estava tão concentrada na aparição de Victor, que esquecera todo o resto. Principalmente, sua condição de vampira. Victor não ia querer tocá-la nunca mais, pensou ela. “Você está doente?” “É algo mais complicado.” Ela baixou os olhos. Victor segurou o queixo de Kaline, levantou sua cabeça e a encarou, todo compreensivo. “Eu voltei para nossa família ficar junta novamente. Mais nada importa.” Ela sorriu sem muita confiança. Como era bom sentir o toque do marido, de maneira tão intensa. Desde que o tinha avistado, ela tentava não chorar. Com certeza, lágrimas de sangue seriam um choque para ele. Mesmo no mundo louco em que viviam. Talvez ele estivesse sentido falta justamente das lágrimas da esposa. Mas Kaline não queria dar muita importância a esse detalhe. Ela fechou os olhos e foi ao encontro dele.

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Marido e esposa se abraçaram forte. Ele voltou a chorar. Depois se beijaram. Ela não sentiu nada. Sua língua não sentiu nada. Na verdade, sentiu uma certa ânsia por sangue. Uma vontade danada de morder a língua dele. Ela imaginou o que ele devia ter sentido. Possivelmente nojo de sua língua morta. Ao se descolarem, ela não teve como confirmar nada. Victor era uma mistura de emoções. Então se lembraram de Lottar. Só depois que pai e mãe o convidaram, o menino se aproximou, cauteloso. Victor deu um forte abraço nele. Lottar correspondeu sem muito entusiasmo. Lottar queria entender seu próprio comportamento. “Pogo!”, disse Victor, enquanto o pequenino vinha caminhando, apressado. Em seguida, Victor agachou-se e passou a mão no topo de seu cabelo, das folhinhas verdes. Naquela noite, Kaline preparou o prato preferido de Victor: arroz agridoce, feijão branco e carne ao molho apimentado. Depois da chegada dele, ainda no final da tarde, ela teve cabeça para ir ao açougue e à mercearia mais próximos para comprar os ingredientes que faltavam. Victor, já tomado banho e de barba feita, aproveitou cada garfada, não parando de elogiar o jantar. Kaline não comeu nada. Nem podia. Victor quis saber o motivo. Ela disse que explicaria depois do jantar. Victor disse que, na verdade, era ele quem queria falar primeiro, dar explicações. Kaline se sentiu um pouco aliviada. Lottar mal tocou na comida, apesar da insistência da mãe. Certo enjoo incomodava mais do que a fome. Pogo já estava dormindo, em sua caminha de terra no canto da cozinha. Mesmo apreensiva pelo que tinha para contar, Kaline não parava de admirar Victor comendo com tanta vontade. Agora sim ela reconhecia aquele homem sem barba e tão satisfeito com sua carne ao molho apimentado. A partir de certo momento, os três ficaram silenciosos demais. A troca de olhares e sorrisos entre Kaline e Victor era constante.

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Ricardo Santos Lottar ficou a maior parte do tempo de cabeça baixa, brincando com a comida, entediado. Terminado o jantar, a ansiedade de Kaline por respostas de Victor era evidente. Ele disse que responderia a todas as perguntas que ela e Lottar quisessem fazer. Mas antes precisava dormir. Estava exausto. Kaline entendeu. Para Lottar, tanto fazia. Não demorou muito, Victor foi para a cama. Kaline aproveitou para tomar o terceiro e último vidrinho do dia da Poção Inibidora. Ela já bebera sua cota de sangue da noite. Quando saíra para comprar os ingredientes do jantar, teve a desculpa perfeita para pegar os litros de sangue de boi fresco que um funcionário do açougue mais próximo sempre lhe vendia, pela manhã, na hora do almoço e no final da tarde, sem muitas perguntas. Menos aos domingos. Então ela tinha de conseguir sangue com outra pessoa ou por conta própria. Victor não podia vê-la beber o sangue em casa. No caminho, ela procurou um beco e se arriscou a saciar sua fome na rua, tendo cuidado para não se sujar. Kaline tomava a Poção Inibidora e depois sentia cansaço suficiente para dormir. Mas, desta vez, ela só tinha conseguido pregar o olho já com o dia claro. Ficara bastante tempo olhando para Victor dormindo, mesmo no escuro. Além de ter pensado em tantas coisas durante a madrugada. Lottar também não tinha dormido direito. Assim como Kaline, teve muito em que pensar. Mas o sono o derrubou muito antes da mãe. Na manhã seguinte, ele foi acordado pelo urro de um elefante. Seu despertador era no formato do animal, de pé, cuja barriga guardava os números e ponteiros. Lottar estava com fome. Foi ao banheiro, fez xixi e lavou o rosto. Quando chegou na cozinha, flagrou os pais se beijando. Os dois ficaram sem graça. O filho, aborrecido. Victor estava preparando uma de suas especialidades, algo que Lottar adorava: sanduíche de queijo derretido, com banana cozida e canela em pó. Pogo tentava ajudar Victor, mas só fazia atrapalhar. “Pogo, saia do caminho”, advertiu Kaline.

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A família sentou-se à mesa para comer os sanduíches com café. Menos Kaline. Ela já tinha tomado o primeiro vidrinho da Poção Inibidora do dia, e foi ao açougue bem cedo, antes que Victor acordasse. “Está como você gosta?”, perguntou o pai, olhando para Lottar. O menino balançou discretamente a cabeça, confirmando. Victor sorriu. Lottar não correspondeu ao sorriso. Pogo apenas os observava. Quando terminaram de comer, Kaline virou-se para o filho: “Hoje você não vai para a escola. Já mandei uma carta mágica avisando que estava doente, nada demais. Seu pai precisa conversar sobre uma coisa muito importante.” Lottar dirigiu o olhar da mãe para o pai. Um olhar desconfiado. “Vamos para a sala. Quero explicar tudo a vocês”, disse Victor. Lottar continuava calado, mas atendeu ao pai. Pogo o seguiu. Kaline começava a ficar incomodada com o silêncio de Lottar. Victor pediu para Kaline abrir as janelas da sala. Não queria correr o risco de aparecer na janela, de ser visto. A esposa o atendeu prontamente. Ela não iria para o trabalho naquela manhã. Também enviara ao patrão uma carta mágica com uma desculpa esfarrapada. A luz natural invadiu a sala. Kaline e Lottar sentaram no sofá verde de três lugares. Victor pegou uma cadeira da mesa de estar e ficou frente a frente. “Alguma chance de alguém aparecer por aqui agora?”, perguntou ele. “Não. Já faz algum tempo que não sou exatamente uma figura muito popular”, disse Kaline, sorrindo, um misto de ironia com tristeza. Victor não fez nenhum comentário. Lottar estava distraído. Encarava o vazio. Quando o pai começou a falar, ele decidiu prestar atenção: “Nem sei por onde começo... Vocês já devem estar cansados de ouvir sobre a Guerra, mesmo que as autoridades tenham escondido muitos podres, as verdades mais terríveis. Não vou

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Ricardo Santos falar sobre minha experiência no front. É muito doloroso. E pior, tenho vergonha de certas coisas que fiz. Eu não aguentava mais. Tinha chegado ao limite. Precisava fugir de lá. Não importa que me chamem de covarde, de traidor... Eu só pensava em ver o rosto de vocês novamente, em abraçá-los. “Não sou um soldado, nunca fui alguém dado à violência, vocês sabem. Durante o treinamento, me tornei um atirador apenas razoável. Além disso, antes de irmos para o front, eu não era muito respeitado entre os recrutas, me consideravam um fraco. Como vocês já devem saber, Costa se tornou meu melhor amigo. Na verdade, o único. Mesmo assim, ele era um amigo instável. “Depois que chegamos à Concôrdia, com o passar do tempo, para surpresa geral, me tornei alguém muito valioso. Por causa da minha boa e velha intuição aguçada. Acabei descobrindo algo curioso: no dia a dia, esse dom pode ser camuflado em meio a outras sensações, operando mais discretamente, e tendo um efeito mais sutil. Já num campo de batalha, pode significar a diferença entre a vida e a morte. Entre voltar para casa em carne e osso, ou como uma alma confusa, perdida. “Por causa da minha intuição, me tornei um batedor. Você sabe o que é um batedor, Lott?... É aquele cara que vai antes do pelotão para checar a possibilidade de perigo, qual o melhor caminho a seguir. Costa se tornou meu companheiro nas missões de reconhecimento. Éramos muito bons no que fazíamos. Eu com minha intuição. Costa com seu rifle. Ele era um ótimo atirador. Afinal, ele vem de uma família de caçadores, de lobisomens. Gente que sabe usar armas de fogo, facas, presas e garras. “Mas na Concórdia, não éramos Especiais. Não podíamos contar com nossas habilidades. Nenhum de nós. Eu não era mais um devorador de almas. Nem Costa um lobisomem. Ele ficou mais abalado com isso do que eu. Claro que me senti estranho, como se tivessem arrancado meu braço, como se algo substancial estivesse faltando. Mas também senti um enorme alívio. Me tornei mais leve, mais em paz comigo mesmo. “Eu sempre quis experimentar como era ser um Normal. Kaline, você sempre soube que considero minha condição de devorador de almas mais um tormento do que uma bênção. Com certeza, entre os que já desertaram e fugiram para longe da Nova Câmbria, alguns, ou quem sabe muitos, estavam cansados não só das guerras, mas de ser um Especial. Mas eu nunca quis agir como

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aqueles que abandonaram suas famílias, deixando-as à própria sorte e ao linchamento público. Essa é a verdadeira covardia. Não me arrependo de ter desertado. Não me arrependo de ter voltado ao País, correndo o sério risco de ser fuzilado. Só me arrependo de ter precisado ir à Guerra para perceber que nós três podemos ter uma outra vida, uma vida melhor longe daqui. Voltei para buscálos.” Kaline e Lottar olhavam atônitos para Victor. Ela se perguntando quando sua vida ia parar de se complicar. Ele sentindo ainda mais raiva do pai. Restou a Pogo coçar a cabeça.

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a manhã seguinte, como passou a fazer nos últimos meses, Lottar foi para a escola sozinho e a pé, carregando sua mochila nas costas. Estava mais cansado do que no dia anterior. Pela segunda noite, não conseguira dormir direito. Tudo culpa do pai. À medida que seguia, num passo preguiçoso, Lottar tentava organizar seus pensamentos. Sua cabeça estava pesada. Não era exatamente uma dor. Mas atrapalhava seu raciocínio. Mesmo assim, ele não parava de recapitular os fatos. Quer dizer que o pai aparecera do nada e agora vinha com essa ideia idiota de fugir, de deixar tudo para trás. Como assim? Não bastou ter tornado sua vida mais difícil na escola e na rua? Fora os dias sonhando acordado, imaginando se ele estava vivo ou morto? E as noites sem dormir, derramando lágrimas pelo mesmo motivo? Na manhã anterior, depois que Victor tinha terminado de falar, Lottar e a mãe ficaram em silêncio, como se tivessem combinado aquilo juntos. Os olhos de ambos grudados em Victor. Este olhava para um e para outro, mostrando-se com uma ponta de ansiedade. Então Kaline quebrou o silêncio: “Vico, é muita coisa para absorver. Mal estou conseguindo assimilar seu retorno...” Victor fungou, fez uma expressão de derrota e baixou a cabeça. Lottar encarou a testa do pai. O menino estava possesso. Queria se levantar e correr o mais rápido que pudesse para longe, até gastar o resto de suas forças. Mas ele não podia passar da porta da rua. Seu pai lhe pedira que não saísse de casa, pelo menos, não naquele dia. Ninguém poderia saber que estava ali. A vontade de Lottar era de simplesmente desobedecer. Victor levantou a cabeça. “Esqueçam esse assunto de irmos embora, por enquanto... Com certeza, vocês dois têm muitas perguntas a me fazer...”, disse ele, tentando dar a mesma atenção a Kaline e a Lottar. À medida que caminhava para a escola, Lottar recordava as palavras da mãe. “Durante três anos, Vico, algumas perguntas ficaram martelando não só minha cabeça, mas a de nosso filho também.” Victor tentava se explicar. Havia uma pergunta que Lottar queria fazer ao pai, mas não tivera coragem: de que jeito ele tinha conseguido sair da Concórdia e voltar para Nova Câmbria... como um Traidor da Pátria?

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Lottar segurou o passo quando as palavras lhe ocorreram mais uma vez. Traidor da Pátria. Na segunda noite em claro, pensar nisso foi o que mais o perturbou. Mais do que a ideia de deixar tudo para trás. De perder a oportunidade de ser um grande mago algum dia. Então era verdade. No final, todos estavam certos e ele errado. Ele tinha enganado a si mesmo toda vez que defendia o pai... Quer dizer que gastara suor, lágrimas e sangue para defender uma mentira... Ali na rua, Lottar decidiu fazer o que não pôde quando estava em casa, preso e vigiado. Mais à frente, na calçada, ele viu sacos plásticos e caixas de papelão. Lixo ainda a ser recolhido pelo caminhão da prefeitura. Percebeu que havia, no meio daquilo tudo, um cabideiro jogado no chão. Era de madeira e tinha seis suportes em forma de gancho ao longo dele. Parecia uma árvore seca. A rua onde Lottar estava era igual à sua. Era relativamente larga. Pessoas passavam em ambas as calçadas. Outras pedalavam para lá e para cá em suas bicicletas. Ou permaneciam sentadas na parte de trás de bicicletas-táxi. Ou dentro dos poucos ônibus. Ou dos pouquíssimos carros. Lottar estava a meio caminho da escola. Distante de seu bairro, de sua rua, de qualquer vizinho. Ele precisava extravasar sua raiva. Esperou por uma brecha no trânsito. Atravessou a rua, indo para a outra calçada, para trás de um poste. De longe, fixou os olhos na parte exposta do cabideiro, do meio para o topo. As pessoas e veículos que passavam na sua frente não atrapalhavam tanto assim. Ele levantou a mão na altura da barriga, palma para cima, meio que apontando. “Erg”, disse. O cabideiro começou a vibrar e a mexer para os lados. Lottar queria levantá-lo. Mas parecia que o pé estava preso, debaixo de sacos e caixas. Ele apertou os dentes e grunhiu. Até conseguir levantar o cabideiro pelo pé; agora deu para ver que não tinha nada lá, estava faltando a base. A longa peça de madeira ficou balançando no ar, feito um pêndulo, cheio de ganchos.

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Ricardo Santos O ocorrido chamou a atenção de algumas pessoas. Uma senhora carregando compras parou assim que o cabideiro se ergueu. O mesmo fez um homem usando rabo de cavalo. Um jovem em sua bicicleta se desequilibrou e quase caiu ao passar de junto. Soltou um palavrão. Ficou olhando para trás, para o cabideiro flutuante, mas seguiu caminho. Outras pessoas pedalando acharam aquilo uma mera curiosidade. Lottar sabia que sua brincadeira teria testemunhas. E que se ele continuasse, a chance de ser desmascarado seria grande. E o risco de ser pego, real. Afinal de contas, praticar magia sem autorização era algo proibido, passível de punição, mesmo para uma criança. Ele poderia colocar tudo a perder. Quando as autoridades fossem procurar por seus pais, descobririam que seu pai voltara para casa. Que sua mãe estava abrigando um Traidor da Pátria. Então ambos seriam julgados, presos e fuzilados. E ele mandado para um Centro de Reabilitação Juvenil, depois para um orfanato. Mas quem iria adotar o filho de um Traidor da Pátria, afinal? Sua raiva, porém, era mais forte do que seu bom senso. O que ele mais queria era pegar o cabideiro e usá-lo como um taco mágico e furioso, para arrebentar sacos e caixas, espalhar todo o lixo, causar a maior confusão, assustar as pessoas. O cabideiro continuava no ar, balançando levemente, de um lado para o outro, instável, parecendo que cairia no chão a qualquer momento. Chamava cada vez mais atenção. “Ei, menino!”, gritou uma voz masculina. Quando Lottar ouviu o chamado, sua respiração parou, a barriga doeu e o braço relaxou. Do outro lado da rua, três ou quatro pessoas olhavam em sua direção. Não adiantava ele se esconder atrás do poste. Lottar estava congelado de medo. Ele sabia que precisava ir embora, rapidinho. Lottar não sabia exatamente quem tinha gritado. O mais incrível foi que, apesar do susto, ele ainda conseguia manter o cabideiro no ar, mesmo com o braço junto ao corpo. De repente, o cabideiro passou a ficar mais instável do que nunca. Balançando-se, subindo e descendo nervosamente. As pessoas voltaram-se para o cabideiro. Ficaram mais agitadas. Começaram a se afastar. Lottar assistia a tudo, sem reação.

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“Isso é arte sua, não é, seu peste?!”, gritou novamente a voz masculina. Desta vez, Lottar pôde identificar o dono da voz. Era a única pessoa que olhava para ele. Os outros estavam mais preocupados em recuar às pressas ou correr para longe do cabideiro. Era o homem usando rabo de cavalo. O homem fez intenção de atravessar a rua. Estava esperando duas bicicletas passarem e um carro. Pedestres que estavam na mesma calçada de Lottar, parados, assistindo a tudo, voltaram-se para ele. O desespero serviu de combustível para dar forças às pernas de Lottar. Ele começou a correr, rumo à escola, desviando-se de duas pessoas paradas. “Volte aqui!”, gritou o homem, já no meio da rua. Lottar não corria o tanto que gostaria. Suas pernas não correspondiam à sua vontade. O peso da mochila não ajudava. “Volte aqui!” O homem já estava na outra calçada. Lottar olhou para trás. Até teve cabeça para se perguntar se o homem seria um Normal ou um Especial. Bem, de especial ele não tinha nada. E o cabideiro? Nova olhada para trás. O cabideiro continuava lá, mais agitado do que nunca. O homem se aproximava. O infeliz estava em boa forma. Já Lottar não estava muito bem. O homem iria alcançá-lo. Bateu o pânico. Quer dizer então que uma mera travessura estava prestes a se transformar numa tragédia. Ele prometera à mãe e a si mesmo que isso nunca ia acontecer, que os dois sempre ficariam juntos. Ironia do destino: seria ele o responsável pela destruição de sua família, de uma vez por todas. Nova olhada para trás. O homem estava tão perto. Porém a cara de Lottar ficou ainda mais espantada quando ele percebeu outra coisa. O cabideiro vinha cortando o ar, a toda velocidade, girando como uma hélice, provocando gritos e criando a maior confusão entre bicicletas e um ônibus.

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Ricardo Santos O que também chamou a atenção do homem, que virouse para trás, apenas para receber bem na cabeça uma pancada do cabideiro em movimento. Homem e cabideiro caíram no chão violentamente. Lottar parou de correr, exausto. Fez uma careta estranha, misto de terror, pelo que acabara de acontecer, e de sofrimento, recuperando o fôlego. Ele ficou olhando para o homem e o cabideiro, imóveis. Quando percebeu que da cabeça do homem saía sangue, muito sangue, decidiu que estava na hora de fugir. Estava na hora de correr o máximo que pudesse.

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la é tão frágil, tão feinha”, disse uma mulher negra, meio agachada, os olhos fixos à frente. Ela observava uma florzinha azul, murcha, plantada num vaso de barro, sobre um balcão de madeira comprido, entre utensílios de laboratório. Chamava-se Atina. “Tem certeza?”, continuou ela. “Também demorei a acreditar. Mas quando testemunhei seu poder, eu sabia que tinha dado origem a um monstro. Um monstro de uma beleza incomparável”, respondeu uma mulher branca, ao mesmo tempo contemplativa e triste. Chamava-se Magna. “Então o melhor a fazer é destruí-la”, sugeriu Atina. Magna a encarou, perplexa. Era a primeira vez que ouvia aquelas palavras em voz alta, fora de seus próprios pensamentos. “Sei que isso deveria ser o certo. Mas você mataria sua filha, mesmo sabendo que ela poderia trazer imensuráveis desgraças ao mundo?” “Sua comparação é leviana, Magna Aguirre. Afinal de contas, estamos falando de uma planta.” “Você é que está sendo leviana. Menosprezando minhas prioridades. Escolhi não ter filhos, mas sei muito bem qual é o valor da vida.” “Você é uma mulher sábia, minha cara, mas sua vaidade sempre foi seu maior defeito.” Magna parou por um instante. Fungou e virou-se para o balcão. Ela ficou encarando os frascos de vidros de vários tamanhos. Em cada frasco, havia um líquido de cor diferente. Parte de seus experimentos como feiticeira-botânica. Ela era uma hibridista respeitada. “Desculpe”, disse Atina, quebrando o silêncio. “Você vai me ajudar ou não?” Magna continuava de costas para a amiga. “O que você quer que eu faça?” Magna virou-se para encarar Atina. “Me ajude a escondê-la.” “Você quer dizer colocá-la em meu Jardim.” “Seria o local perfeito.” Agora foi a vez de Atina olhar profundamente para Magna. “Se essa Flor é realmente poderosa, então muitos a cobiçarão. Alguém poderá ir atrás dela e querer tomá-la à força se necessário.”

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“Mas apenas nós duas sabemos de sua existência. Minhas irmãs da Ordem sequer imaginam que a desenvolvi.” “Você vai trair a confiança das Rosas Brancas?” “Tenho medo de algo muito pior. Que elas me traíam ao descobrir do que a Flor é capaz. Na verdade, ainda nem conheço bem o alcance de seu poder.” “Mas a confiança em qualquer Ordem é um elemento tão sagrado.” “Eu e minhas irmãs lutamos para conquistar respeito e espaço como mulheres e hibridistas nesse mundo dominado por homens, por gente de mente estreita. Inclusive no meio acadêmico. Mas não se iluda, Atina. Mulheres são seres humanos. Elas também cobiçam.” “E quanto a mim? Você não acha que posso traí-la?” “Sempre há o risco. Eu mesma fiquei tentada pela sedução da Flor. Mas eu a procurei, minha velha amiga, por dois motivos. Primeiro, você pensa como eu. Queremos mudança, não pandemônio. Segundo, você não pertence ao ambiente de intriga que domina a Capital.” “Minha garganta está seca. Preciso beber algo. Forte, de preferência.” “Boa pedida. Sente-se.” Enquanto Magna se dirigia para os fundos do laboratório, Atina foi para o lado oposto. A anfitriã abriu um armário de madeira sem fechadura ou tranca. Tirou de lá uma garrafa de cristal contendo um líquido verde. De um conjunto de pequenos cálices, pegou dois. Atina estava na parte frontal do cômodo único. Acomodou-se numa poltrona de couro sobre um enorme tapete de mosaicos. As paredes estavam cobertas de livros e quadros. Não fazia calor nem frio. Magna colocou a garrafa e os cálices numa mesinha de centro e ocupou uma segunda poltrona. Ela serviu uma dose de licor de safira para cada uma. “Vamos fazer como antigamente?”, perguntou à amiga. Atina sorriu de leve. Beberam o licor de um só gole. Tremeram o corpo, fizeram cara feia, riram. “Lembro da última vez em que você roubou o licor dos seus pais”, disse Atina, animada.

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Ricardo Santos “Fiquei quase um mês sem te ver.” “Você me contou que sua mãe tinha queimado seu cantil em chamas verdes.” “Para eu ficar impressionada. Achei aquilo ridículo.” “Nós éramos duas meninas impossíveis.” “Meninas de mundos diferentes que teimaram em ser melhores amigas.” “Depois que sua família se mudou para a Capital, demorei para ficar alegre novamente.” “Lembra quando a gente se reencontrou, depois de tanto tempo? Frequentamos a Grande Biblioteca por anos sem saber uma da outra.” “Devemos agradecer aos livros raros de magia. Era minha única motivação para vir à Capital.” “E aqui estamos nós duas. Seis anos, várias cartas e um punhado de visitas lá e cá depois.” “Magna, por que eu colocaria minha filha em perigo?” A pergunta desconcertou a hibridista. “Isso não vai acontecer. Apenas nós duas saberemos sobre a Flor.” “E quanto à sua atual aprendiz?” “Ela nem desconfia. Eu te falei que esse é meu laboratório secreto. Longe da Ordem, da universidade, de qualquer um. Você é a primeira pessoa a conhecê-lo.” “Estamos numa Bolha. Você devia manter a Flor aqui.” “Na verdade, acredito que ela ainda pode ser um instrumento para coisas boas. Para tornar nosso mundo melhor. Mas ele não está preparado para conhecê-la agora. Nem mesmo eu estou. Preciso estudá-la mais, entender como ela realmente funciona, quais são todas as suas propriedades. Não posso reproduzi-la. Tentei por meses e falhei. Fui quase à loucura. Fiquei realmente assustada com minha obsessão por essa Flor. Devo tirá-la dos meus pensamentos por enquanto. E você é a única pessoa em que confio para isso.” “Então será algo provisório?” “Até que seja seguro retirá-la de seu Jardim.” Atina endureceu seu semblante. Ela sabia que teria de tomar uma decisão difícil, qualquer que fosse ela. Mesmo sendo uma feiticeira tradicional, ela admirava os esforços de certos hibridistas em quebrar barreiras, em tentar eliminar preconceitos. Se o marido, Rútilo, estivesse vivo, ele a ajudaria a dividir o peso de sua

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resposta. Ela sempre pensava na filha em primeiro lugar. Kaline era uma menina de doze anos, que ainda estava aprendendo a ser feiticeira. “Você sabe que está colocando nossa amizade em jogo, não sabe? Se alguma coisa acontecer à minha filha, eu vou me transformar em sua inimiga mortal.” A cara de espanto de Magna confirmou a gravidade de suas palavras. Magna até pensou em voltar atrás. Em elaborar outra saída para aquela situação. Ela poderia recorrer a Jana, a irmã de sua Ordem em que mais confiava. Mas ela era tão obcecada por pesquisas quanto a própria Magna. Jana poderia convencê-la a dividir as responsabilidades em desvendar os mistérios da Flor. A busca pela glória científica poderia acabar com a amizade das duas irmãs de Ordem. Outras pessoas poderiam ficar a par da pesquisa. Jana tinha relações estreitas com o meio político da Capital. A coisa poderia fugir de controle. Atina era sua única alternativa. Magna teria de arriscar. “Eu nunca colocaria sua família em perigo”, disse ela, demonstrando firmeza. Mas no fundo, escondia uma ponta de dúvida. Algo obscuro demais. Um sentimento com gosto de traição. Atina aceitou fazer parte do plano de Magna.

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nquanto Lottar corria a caminho da escola, tirando forças não sabia de onde, ele só pensava numa coisa: o sangue saindo da cabeça do homem estirado na calçada. Lottar já tinha problemas demais. Não precisava de mais aquele. Então, sua mente deu um estalo. Agora a ideia do pai de fugir não parecia tão absurda. De repente, teve que parar de correr. Não aguentava mais. Não tinha mais fôlego nem pernas. Tirou a mochila das costas. Pensou em abandoná-la. Mas logo se assustou ao pensar que estaria deixando uma prova de sua identidade pelo caminho. Seu endereço estava escrito em livros e cadernos. Estava longe da rua onde tudo acontecera. Porém ele não se sentia seguro. Sua aflição era tão insuportável que deu vontade de gritar o mais alto possível. E de chorar. Mas fez um tremendo esforço para segurar as lágrimas. Teria mais algum sentido ir para a escola? Não seria melhor voltar para casa, contar tudo aos pais, e enfrentar de uma vez a ira deles? Isso não significaria ganhar tempo nos preparativos da fuga? Lottar não aguentou mais. Começou a chorar. Quem passava na calçada já havia percebido seu comportamento estranho, esgotado. Agora o olhavam mais detidamente. Uma mulher se aproximou dele. “O que foi, querido?”, perguntou ela, tocando em seu ombro. Lottar se assustou. Abriu os olhos úmidos e viu o rosto da mulher igualmente assustada. “Cuide de sua vida, sua velha!”, disse o menino, afastando-se da mulher. Primeiro, ela ficou sem reação. Depois, furiosa. “Seu moleque ingrato.” Então ela seguiu caminho com passos duros. Lottar enxugou as lágrimas. Em seguida, pegou a mochila no chão e voltou a correr debilmente. Resolveu ir para a escola. Sentado em sua carteira, teria mais tempo para pensar o que fazer. Foi apenas ao chegar ao portão da escola que se lembrou da briga que tivera dias antes com Mok. Ao entrar junto com os últimos alunos, minutos antes do horário de o portão fechar, Lottar se preparou para receber olhares

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hostis e ouvir o cochicho do falatório sobre a briga, assim como das outras vezes. Para sua surpresa, não foi uma manhã tão tensa. Houve tudo o que ele esperava, mas numa carga menor. Beta, sua colega goblin de turma e única amiga na escola, tentou dar-lhe apoio, aproximandose dele, falando com ele e olhando feio para quem quisesse atingilo. Mas o próprio Lottar não estava muito para conversa. Ele pediu a Beta que o deixasse sozinho. Ela entendeu, porém mal conseguiu esconder seu ressentimento. Lottar sempre sentava na mesma carteira, numa fila colada à parede, no meio da sala. Ele ficou sabendo por Beta que Mok ficaria em casa por alguns dias. Recuperava-se de uma queda violenta ao explorar a mata depois da aula. Ela não sabia quem tinha inventado a desculpa, mas era a versão oficial, foi o que o diretor transmitira para a professora da turma, que contou para os alunos. Lottar só esperava que não fosse dedurado por alguém que quisesse prejudicá-lo. Mas ele não estava muito preocupado com as repercussões da briga. Havia assuntos mais urgentes para ocupar sua cabeça. Levou a manhã inteira repassando-os. Fingiu prestar atenção à aula. Contudo, sua mente estava longe. As imagens do homem que o perseguira, do pai e da mãe ficavam se alternando. Voltou para casa por um caminho diferente, mais longo. Não queria passar pela rua do incidente, não queria dar chance ao azar de ser reconhecido, apontado e perseguido mais uma vez, talvez pela Guarda. Quando chegou em casa, mal ele abriu a porta da rua, Kaline o recebeu, aflita. “Lott, estava preocupada. Você se atrasou... Que cara é essa? Lottar, você aprontou alguma coisa na escola?” “Relaxa, mãe! Acha que eu sou retardado?” A vontade dele era de desabar. Contar o que tinha acontecido e chorar tudo que tinha direito. Porém, ao responder à mãe, pensou rápido e decidiu que ainda não era o momento de contar coisa alguma. Kaline ainda o olhou, firme, desconfiada, esperando que o filho dissesse a verdade no último segundo. Mas Lottar não cedeu. “Qual é o almoço?”, perguntou ele, para mudar de assunto. E também porque estava realmente com fome.

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Ricardo Santos Kaline e Victor estavam esperando Lottar chegar para comer. Ambos tinham preparado a mesa da cozinha, um lugar mais discreto do que a sala de estar. Kaline ficou na mesa observando seus homens comerem. Conversou com Victor e fez mais algumas perguntas para Lottar. Terminado o almoço, ela saiu de casa, de volta ao trabalho. Afinal, a família tinha de manter as aparências, não quebrar a rotina além do aceitável. Pela primeira vez, pai e filho ficaram sozinhos, sentados na mesa da cozinha, frente a frente. A presença de Pogo era praticamente ignorada pelos dois. O pequenino estava debaixo da mesa. De pé, tentava riscar o chão com um lápis perdido de Lottar. “Vou para o meu quarto fazer o deve de casa”, disse o menino, levantando-se. “Eu sei.” Lottar já estava de pé quando ouviu a afirmativa do pai. Ele encarou Victor, assustado. Tentou esconder seu temor. Algo em seu íntimo dizia que o pai se referia a... “Como assim?” “Eu sei o que aconteceu hoje de manhã.” Pogo parou de riscar o chão. Levantou a cabeça. As pernas de Lottar vacilaram um pouco. Mas ele se recuperou logo. “Do que você está falando?” Ele tentou dar uma de durão. Victor deu um sorriso, querendo se mostrar amistoso, compreensivo. “Me conte tudo, vamos... Sua mãe não vai ficar sabendo de nada. Eu prometo.” Sua mãe não vai ficar sabendo de nada. Eu prometo. Lottar já tinha ouvido o pai dizer aquelas palavras. Havia segredos partilhados apenas entre os dois. Mas fazia tanto tempo que Lottar não ouvia o pai dizer aquilo. Pela primeira vez, desde a volta de Victor, Lottar olhou o pai com outros olhos, mais afáveis. Como o pai poderia saber? Na verdade, ele tinha suspeitas. O pai era conhecido por ter uma intuição aguçada. Lottar já se vira naquela situação antes. Sentou-se novamente.

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Pogo largou o lápis e foi para perto dele. Lottar se assustou com o baque seco do lápis no chão. Ele encarou Pogo, furioso. O pequenino levantou a cabeça e os braços, desculpando-se. Então, o menino se voltou para Victor. Ele não encarava mais o pai com um olhar desconfiado. Tinha baixado a guarda. “Pode me contar, vamos...”, disse Victor, numa voz suave. Lottar agora reconhecia o pai. Um homem paciente, disposto a ouvir e a ajudar. Lottar baixou a cabeça. Não conseguia encará-lo. Estava envergonhado pelo o que fizera. E também ele não sabia qual seria reação do pai quando abrisse a boca. “Acho que matei alguém.” As palavras quase não saíram. Pogo ficou espantado, colocou a mãozinha deformada na boca. Lottar contou como se dera o incidente. Enquanto falava, mal conseguia encarar o pai. Pogo ouvia tudo, mexendo-se para lá e para cá, para cima e para baixo à medida que o relato avançava. Assim que terminou sua história, Lottar cravou os olhos na mesa, aguardando o veredito. O silêncio do pai após sua última palavra o perturbou profundamente. Não aguentava mais esperar. Levantou a cabeça e se deparou com um semblante pensativo, meio aéreo. “Pai.” Rapidamente, Victor acordou do transe e encarou Lottar. Apesar da situação adversa, mostrou-se contente. Sorriu. Lottar fez uma cara feia. “Qual é a graça, pai?” “Isso. Quer dizer, você me chamar de pai... Foi a primeira vez desde que voltei.” Lottar também ficou surpreso com a observação. De repente, Victor ficou muito sério. “Filho, o que você disse é tão grave que me fez ter dor de cabeça.” Lottar ficou envergonhado e baixou os olhos. “Desculpe.” “Lottar, olhe para mim.”

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Ricardo Santos O menino obedeceu. “Deixe tudo comigo.” “Mas, pai. O que você vai fazer? Vai sair de casa?” “Não se preocupe. Vou usar o macacão que cheguei vestido e colocar o boné. Mesmo sem a barba, dá para disfarçar bem. Só espero que sua mãe não tenha colocado tudo para lavar... Ou talvez tenha queimado. O cheiro de suor estava terrível.” Victor sorriu. Lottar correspondeu ao sorriso. Mas o menino sabia que não tinha muito motivo para alegria. Victor levantou da mesa. Lottar continuou sentado. “Pai. Não quero que se machuque.” “Precisamos ter certeza de como está aquele homem. Vou fazer isso por você, por sua mãe, pela família... Então, quando eu voltar, você vai me contar por que tudo isso começou afinal...” Lottar não disse nada. Apenas balançou a cabeça, confirmando. Ele estava queimando por dentro. Contaria ao pai que fora motivado por pura raiva, pelo fato de defender um Traidor da Pátria todo esse tempo? Victor saiu para os fundos da casa. Sem demora, voltou, mostrando para Lottar o macacão cinza amassado, além do boné. Tudo estava no cesto de roupas sujas, debaixo da pia lá fora. Victor foi para o seu quarto e, quando voltou à cozinha, estava transformado num operário precisando de um banho. “Vá para a sala e o ligue o rádio. Talvez tenha alguma notícia sobre a confusão, o estado do homem. Também abra a janela da frente para ficar de olho na rua”, disse Victor. Quando ele saiu, Lottar já estava ao pé do rádio um tanto antigo, sentado numa cadeira da mesa de estar. O rádio ficava em cima de um balcão de madeira clara junto com fotografias da família e outros enfeites. Pogo ficou ao pé da cadeira, disposto a ajudar no que fosse preciso. Lottar alternava sua atenção entre as três ou quatro estações mais populares da cidade e nacionais. Não dava muita importância para as músicas, os comerciais e os radiodramas. Ficava ligado mesmo no que os locutores falavam. Ele não sabia dizer se era melhor ouvir alguma coisa sobre o incidente ou nem uma palavra a respeito. Passou toda a tarde dessa maneira, deixando seu posto poucas vezes para ir ao banheiro, beber água, pegar um lanche e

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observar o movimento na rua, da janela frontal. Ele começou a ficar preocupado. Estava cada vez mais próximo da hora de Kaline chegar do trabalho. Caso ela não encontrasse o marido em casa, teria um ataque. Qualquer tentativa de manter o segredo longe dela iria por água abaixo. Lottar também começava a ficar preocupado com o pai. E se alguém tiver o reconhecido na rua, o denunciado como Traidor da Pátria e ele estivesse agora num posto da Guarda preso? Quando sua mãe entendesse que o pai saíra por sua causa, ela nunca o perdoaria. O próprio Lottar nunca se perdoaria. Lottar estava distraído ouvindo o mais novo sucesso de uma fada cantora quando ouviu o ranger do portãozinho da entrada. Deu um pulo da cadeira para ver quem era, da janela frontal. Pogo ficou paralisado de medo. “Pai”, disse Lottar, cheio de satisfação. Pogo relaxou o corpinho, alarme falso. Lottar gostou da expressão do pai. Era um cara de alívio, de coisa boa. Victor entrou, fechou a janela frontal, tirou o boné e acendeu a luz da sala. “Está tudo bem agora.” “Sério?” “Como se nunca tivesse acontecido.” “O homem está bem?” “Sim.” Lottar suspirou aliviado. “Pai, o que você fez?” “Você confia em mim, não confia, Lott?” Lottar balançou a cabeça, confirmando, com energia. “Não há mais perigo. Pelo menos, em relação a esse assunto.” Depois de olhar profundamente nos olhos do pai, Lottar o abraçou com toda a força. Victor correspondeu. Fazia muito tempo que o menino não se sentia tão feliz. Pogo não se aproximou. Deixou pai e filho curtirem o momento.

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noite, a família teve uma nova reunião. O assunto era um só: a fuga para longe da Nova Câmbria. Agora Victor tinha um aliado tão decidido quanto ele. Tiveram uma conversa exaustiva. Victor e Kaline falaram e falaram, cada um colocando seu ponto de vista. Lottar falou muito menos, concordando ou discordando dos pais. E Pogo era apenas um espectador agitado. Por fim, tomaram uma decisão: eles fugiriam. Era a única solução para que a família pudesse viver unida e em paz outra vez. Passaram então o resto da semana tomando providências, elaborando a melhor maneira de o plano dar certo. Claro que tudo era feito dentro da maior normalidade. Kaline e Lottar precisavam manter suas rotinas, as aparências. Lottar estava ao mesmo tempo morrendo de medo e em êxtase. Seu futuro estava mais incerto do que nunca. Por outro lado, se tudo corresse bem, a possibilidade de conhecer novos lugares seria espantosa. Talvez houvesse outras terras mágicas onde ele ainda pudesse se tornar um mago poderoso... Kaline também sentia grande incerteza pelo futuro, mas uma possibilidade a animava. Em terras onde não houvesse magia, poderia deixar de ser vampira. Ela não precisaria mais tomar a Poção Inibidora para amenizar a sede de sangue e evitar que seu corpo fosse queimado pelo sol. E poderia voltar a comer pudim de leite. Seu maior temor era atravessar as fronteiras de lugares em que Especiais fossem destruídos, num piscar de olhos, como afirmavam certas lendas. Ela não sabia o que esperar. Por precaução, prepararia um bom estoque da Poção Inibidora para viagem.

Durante a semana, Victor e Kaline também conversaram sobre os maiores legados da família: o Quarto das Poções e o Jardim. Para espanto de Lottar, ele ficou sabendo que era totalmente viável levar ambos a tiracolo. A avó de Lottar passara a informação à sua mãe, quando era mais jovem. Por sua vez, Kaline a passou a Victor poucos meses depois da festa de casamento. Em relação ao Quarto, só Kaline poderia agir. Por meio de um prolongado feitiço, o cômodo seria reduzido de tal forma que caberia

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na palma da mão, com todos os utensílios de feiticeira dentro. O Quarto seria colocado em uma caixa de madeira especialmente feita para a ocasião. Quanto ao Jardim, seria necessário retirar as sementes das plantas mágicas para serem germinadas em outro lugar. Victor e Lottar poderiam ajudá-la na coleta das sementes em flores, arbustos e árvores mais baixas. As árvores altas ficariam por conta de Kaline, que lançaria feitiços mais simples para colher frutos e flores lá em cima. Depois, cada fruto e cada flor seria secado, também por meio de um feitiço. As sementes seriam retiradas e devidamente guardadas em frasquinhos de vidro e saquinhos de pano. Infelizmente, haveria duas grandes perdas. Assim que o Quarto fosse encolhido e tudo no Jardim coletado, as Bolhas rasgariam seu tecido espaço-temporal até desaparecer, voltando o que existia aqui e ali a pertencer ao nosso universo. As Bolhas se desmanchariam, como se tivessem consciência de que o propósito delas havia terminado. Pelos menos, esperava-se isso. O quarto de Kaline e Victor voltaria a ser apenas um quarto. E o Jardim voltaria a ser apenas o jardim, uma vez que a flora mágica estava plantada no solo do outro universo. O que apertava o coração era saber que os insetos tão belos e raros que se alimentavam daquela flora ficariam do outro lado, junto ao Jardim. As Bolhas só poderiam ser reestabelecidas em outro lugar caso algum hibridista interviesse. Contar com o antigo amigo da família, Cálio Van Costa, estava fora de questão. Afinal, ele estava morto havia décadas. E dificilmente os Gan Amon teriam dinheiro ou influência suficiente para convencer outro hibridista a favorecêlos. Além do mais, uma pergunta não queria calar: valeria a pena levar o Quarto em miniatura e as sementes do Jardim com eles? Em terras onde não houvesse magia, não serviriam de nada. Depois de pensar muito, Kaline decidiu levá-los mesmo assim. Primeiro, as possibilidades estavam abertas. Eles poderiam se deparar com um lugar semelhante à Nova Câmbria, ou até bem diferente, com novos tipos de magia; mesmo ela não querendo mais saber de lugares como esses. Em terras que não houvesse magia, o Quarto poderia se tornar uma relíquia de família, guardada na sala de estar. E das sementes da flora mágica, nasceria um belo e inofensivo jardim, tudo bem que não tão exuberante. Sua decisão teve o apoio de Victor, Lottar e Pogo.

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Uma tarde, na antevéspera ao Grande Dia, ao dia da fuga, Victor foi ao quarto de Lottar. O menino estava concentrado, arrumando suas coisas, em mais uma etapa. “Eu e você vamos começar a limpar o Jardim”, disse Victor. “Sério?” Victor balançou a cabeça, confirmando. “Quando sua mãe chegar, nós três terminaremos a tarefa.” “Pensei que a gente só ia fazer isso amanhã de tarde.” “Eu e sua mãe conversamos antes de ela sair. Mudamos de ideia. Hoje a gente vai coletar o que for de nosso alcance. Amanhã sua mãe faz o resto. Melhor não deixar tudo para última hora.” Lottar reconheceu que o raciocínio tinha sentido. Apesar de saber como a mãe era ciumenta em relação ao Jardim. Dificilmente, ela permitia fazer qualquer coisa nele em sua ausência. Pai e filho foram para os fundos da casa. Pegaram os equipamentos de jardinagem debaixo da pia do lado de fora. Pogo ia mais atrás em seus passinhos curtos. Lottar, ao lado de Victor, atravessou a fronteira do Jardim e o vento forte soprou em seu rosto, obrigando-o a fechar os olhos. Enquanto caminhava, Lottar observou tudo que havia no Jardim já com um sentimento de saudade. Depois de partirem, havia grandes chances da vibrante beleza de plantas, árvores, flores e insetos se tornar apenas uma boa lembrança. Victor segurou o passo, em seguida Lottar e mais atrás Pogo. O sol queimava a pele de Lottar na medida certa. Um calor gostoso de sentir. “Vamos começar pelas flores e plantas menores. Depois as flores maiores. E finalmente, as árvores baixas”, disse Victor, encarando o filho. “Ok”, concordou Lottar, todo alegre. Pogo levantou o polegar torto. “Comece por ali.” Victor apontou para um lado. Depois seguiu na direção oposta. Minutos depois, Lottar fazia sua parte com afinco. Arrancava flores direto do solo ou em arbustos e as colocava no balde. Pogo ficava apenas observando seu trabalho.

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Victor estava mais afastado. Lottar virou-se para trás duas vezes e viu o pai trabalhando lentamente, mexendo na terra com o garfo de jardinagem. Não dava para ver o que havia dentro do balde dele. Lottar voltou ao trabalho, incomodado com a lentidão do pai, sua dispersão. A cabeça dele estava tão cheia de pensamentos, de preocupações que não conseguia se concentrar na coleta? A sua também estava assim, mas não era desculpa para ficar enrolando. O tempo era precioso. Ainda tinha tanta coisa para arrumar. O incômodo se transformou em irritação. Lottar estava tão atento em sua tarefa, e chateado, que trocou poucas palavras com o pai durante, mais ou menos, a meia hora seguinte. Até que se deparou com uma florzinha murcha, escondida entre dois arbustos de flores muito mais coloridas. O azul da florzinha era tão pálido. Ele nunca tinha visto aquela coisinha mirrada. Foi um espanto. Por menor que fosse a planta ou a flor do Jardim, a exuberância era uma marca registrada. Seria aquela florzinha uma invasora, vindo do jardim sempre à mostra? “Pai”, chamou Lottar. Victor virou-se para trás. “Sim, filho.” “Quero te mostrar uma coisa estranha.” Victor sorriu. “Aqui tem várias coisas estranhas, Lott. Afinal, estamos num jardim mágico.” “Mas isso aqui é realmente estranho. Encontrei uma florzinha que de mágica não tem nada.” Victor sorriu novamente. “Deixa eu ver.” Ele se levantou e atravessou o caminho gramado. “Olha só”, disse Lottar, afastando os arbustos com as mãos para que a florzinha murcha ficasse visível. Do alto, Victor observava a tal florzinha. “Ah, não é nada. É apenas uma falha no mecanismo da Bolha.” “Nunca ouvi falar disso.”

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Ricardo Santos “Essa é mais uma das tantas coisas que sua mãe só contaria para você quando estivesse pronto, ou seja, maduro suficiente.” “Como assim maduro suficiente?” “Quando estivesse mais crescido.” “Mas eu já sou crescido.” “Concordo.” “Tá bom... Essa falha não é perigosa?” “Para falar a verdade, eu não sei. Nem mesmo sua mãe sabe direito. Mas até hoje, nada de grave aconteceu. Apenas alguns vazamentos. Plantas do lado de fora, do nosso universo, foram parar aqui dentro da Bolha.” “Não tem como resolver esse problema?” “Talvez um hibridista consiga.” “Que chato.” “Só nos resta arrancar a planta invasora pela raiz. É o único jeito de evitar que apareça novamente.” “A gente não pode simplesmente deixá-la aí, em paz?” “O lugar dela não é aqui, Lott.” “Tudo bem...” Lottar pegou a pá de jardinagem e começou a cavar em torno da florzinha. Pogo continuava observando. Lottar puxou a florzinha da terra, com raiz e tudo. “Me entregue. O seu balde está cheio. Vamos colocar no meu.” Victor estendeu a mão. Ainda agachado, Lottar entregou a florzinha. Victor sorriu, mostrando os dentes. “Velha idiota.” “Quem é idiota, pai?” “Todos vocês.” Então Victor virou-se abruptamente, lançando a mão livre e aberta em direção a Pogo, num gesto de ameaça. O corpinho do pequenino estremeceu e rasgou-se. A cabeça com os caules e folhinhas verdes pendeu para um lado, um bracinho para o outro, e o resto tombou ali mesmo. Ainda agachado e segurando a pá de jardinagem, Lottar testemunhou tudo sem acreditar no que via, mudo, em choque. “Desculpe, eu precisava extravasar. Além do mais, aquela coisinha é bem perigosa. Sabia disso, garoto? Sabia que você vive com uma aberração?”

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Victor não esperou uma resposta. Deu as costas a Lottar com intenção de sair do Jardim. A florzinha murcha e azul continuou em sua mão, em concha, servindo de vaso, junto à barriga. Lottar não sabia se olhava para os pedaços de Pogo espalhados no gramado, ou se para o pai, indo embora sem dar qualquer explicação do que acabara de acontecer. Em segundos, seu corpo encheu-se de dores, no estômago, no peito, na garganta, na cabeça. O menino estava atordoado. Estava prestes a desabar completamente. Então, lembrou-se de algo que sua mãe havia dito, quase um ano antes, quando suas brigas começaram em defesa do pai: “A dor leva à raiva. E a gente só faz coisas estúpidas quando estamos com raiva.” Mas Lottar não podia evitar, a única coisa que lhe restava naquele momento era a raiva, que foi crescendo dentro dele, na mesma medida em que as dores avançavam. “Aquele cara não é meu pai”, disse ele para si mesmo, furioso. Lottar se levantou, com certa dificuldade, mas determinado. Voltou-se para quem ele chamaria agora de o Impostor. “Onde está meu pai?!”, gritou. O Impostor parou. E virou-se lentamente. Mesmo a distância, Lottar podia ver bem seus olhos. Era só do que precisava. Superando qualquer dor, Lottar recuou o corpo e esticou o braço, com a palma da mão voltada para cima, apontando os dedos para o alvo. “Fic!” O corpo do Impostor tremeu, seu rosto ficou duro e os olhos arregalados. A florzinha continuou apoiada na mão. Mal acreditando no que fizera, Lottar aguardou para vê-lo tombar no gramado com tudo. Mas, para sua surpresa, o Impostor relaxou o corpo, o rosto e os olhos, num tom brincalhão. Depois sorriu, mostrando todos os dentes. “Você realmente pensou que esse truque de criança podia me atingir?”, perguntou ele, à medida que se aproximava com passos lentos. Lottar começou a recuar. “Por que você simplesmente não me deixou ir embora? Por quê, garoto?”

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Ricardo Santos Lottar não estava preparado para aquilo. Deparar-se com a figura do pai, ouvir sua voz de maneira tão ameaçadora. Nunca tinha acontecido isso antes. Lottar nunca vira o pai agir assim. Talvez se fosse outra pessoa, o poder de reação seria mais imediato. Mas aquilo era demais para suportar. “Eu sei que sua cabeça deve estar cheia de perguntas. Mas, infelizmente, não tenho tempo nem vontade de explicar nada...” O Impostor ergueu a mão livre, jogando Lottar para trás, para longe. Lottar bateu o corpo com tudo no gramado. Doeu tanto. Acabou perdendo os chinelos de borracha. Tentava se recuperar, sentar-se, quando viu o Impostor avançar, tranquilo. Lottar recuou, fazendo dos braços pernas, arrastando a bunda na grama. O Impostor segurou o passo. “Fiquei sabendo que esse Jardim é muito interessante à noite. Um espetáculo ainda mais belo do que de dia. Mas um espetáculo que cobra seu preço. E bem caro. Parece que coisas terríveis podem acontecer com pessoas desavisadas, que ficam por aqui sem a devida proteção mágica.” O Impostor olhou para um lado e para o outro. Apontou e dobrou os dedos indicador e médio da mão livre, como se chamasse alguém, lá e cá. Para desespero do menino, cinco palmeiras-duendes criaram vida. Espreguiçaram-se, bocejaram, desprenderam-se da terra e começaram a andar em sua direção. Ele queria se levantar e correr, porém mal tinha forças para ficar sentado. Não demorou para cada uma das palmeiras-duendes agarrar seus braços e pernas. Eram incrivelmente fortes. Não adiantava gritar. Não adiantava resistir. O Impostor assistia a tudo. Lottar fez o que pôde para não chorar, mas fios de lágrimas começaram a escorrer pelas têmporas. Do alto, o Impostor entrou em seu campo visual, o rosto sério. E num piscar de olhos, transformou-se em outra pessoa. Um homem de pele clara. O longo cabelo crespo cobria os ombros. As roupas continuavam as mesmas de antes.

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O choque fez todas as dores de Lottar ficarem piores. Não tanto pela transformação. Mas pelo seu resultado. Ele conhecia o outro homem, o que tinha surgido. Era o infeliz que o perseguira durante o incidente com o cabideiro voador. O homem que foi atingido na cabeça. Que ficou imóvel na calçada, sangrando. Que afinal não estava morto.

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ra uma noite de lua crescente. Seu Costa estava num bar no centro de Balicam. Como em tantas outras vezes, estava embriagado e contando suas histórias de guerra para todos ouvirem. Apesar do respeito a um veterano de guerra, cada vez menos os frequentadores tinham paciência para ouvi-lo contar as mesmas histórias. Mas ninguém tinha coragem de mandá-lo calar a boca. Esperavam que ele se cansasse e fosse embora. Até alguns meses antes, deixavam-no beber até cair, tivesse ou não dinheiro no bolso. Agora, seu crédito era quase nenhum. O que gerava atrito entre ele e quem estivesse atrás do balcão. Havia poucos conhecidos que lhe pagavam uma bebida ultimamente. Além de alguns novos frequentadores. Para estes últimos, ele reservava um tratamento especial. Contava alguma história mais intrigante, mais escabrosa, ou tirava uma lição de vida mais profunda de sua experiência no campo de batalha. Geralmente, seu Costa levava o novo amigo para sentar a sós. Sua esperança era de que quem não o conhecesse direito tivesse mais paciência para ouvi-lo, e mais disposição para pagar bebidas. Naquela noite, alguém tinha pagado pela garrafa de uísque sobre a mesa. O melhor uísque que havia na casa. O que elevou bastante o ânimo de seu Costa. Mesmo em seu estado lamentável, com os sentidos comprometidos, seu Costa pôde observar melhor a figura à sua frente. Os dois estavam num canto do bar, em lados opostos da mesa. O homem tinha um rabo de cavalo, usava gravata, colete e um terno bem cortado, e apoiava a mão numa elegante bengala de jacarandá. O estranho era que o homem parecia relativamente jovem para precisar daquele auxílio. E ele não demonstrava ter defeito físico nenhum. Ao contrário de seu Costa, que tinha mais dificuldade para domar a perna mecânica quando estava bêbado. Seu Costa concluiu que a bengala fazia parte do figurino de habitante da Capital, de membro de sua elite. O veterano não tinha muito apreço por aquele tipo de gente, por considerá-los causadores de guerras, aproveitadores que ganhavam dinheiro enquanto soldados perdiam suas vidas.

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Ele também não entedia o que um cavalheiro fazia num lugar frequentado por trabalhadores. Mas o trataria muito bem. Estava adorando o fato de um desses desgraçados lhe pagar um bom uísque. “Vou te contar uma história que nunca contei antes, nem para minha mulher”, disse seu Costa, sorrindo para o seu benfeitor. Em seguida, esvaziou o copo num só gole. O homem correspondeu ao sorriso, porém mantendo distância do bafo forte de álcool. Ele não estava bebendo. “Acontece que eu não tenho interesse em ouvir apenas uma história. Eu quero ouvir todas as histórias”, disse o homem. Seu Costa assustou-se e fez uma cara confusa. Depois se recostou na cadeira e pôs o copo vazio na mesa, sem soltá-lo. “Como assim todas?” “Cada uma delas, em detalhes.” Seu Costa soltou uma gargalhada. Chamou a atenção de algumas pessoas ao redor, mas todos ali já estavam acostumados aos seus excessos. “Isso levaria dias, meu amigo. E custaria a você muitas garrafas de uísque.” O homem apertou o rosto, numa expressão irônica. “Infelizmente, tempo é uma coisa muito valiosa para mim neste momento. Por isso, meu caro, eu tenho uma maneira mais rápida de resolvermos essa questão.” “É mesmo?” O homem apenas balançou a cabeça, levemente. A confirmação de um cavalheiro. Em seguida, segurou sua bengala pelo cabo, deixando à mostra a ponta prateada e redonda. Apenas assim seu Costa pôde perceber que havia figuras gravadas, lado a lado, em sua superfície. Na verdade, era sempre a mesma figura: um sol com o rosto sério, cercado por raios de luz. De repente, a ponta redonda abriu-se em bandas, lembrando uma flor de prata. E logo o seu conteúdo chamou a atenção, gerando o espanto de seu Costa e de outros frequentadores. Uma esfera de fogo saiu de dentro da flor, elevou-se e permaneceu no ar. Agora todos a observavam, fazendo silêncio. À exceção do homem, que não tirava os olhos de seu Costa.

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Ricardo Santos “Mas que bruxaria é essa?”, perguntou o veterano, encarando a esfera. “Bruxaria não, meu caro, Magia e Ciência.” Então o homem bateu com a bengala no piso duro. A esfera de fogo vibrou intensamente e emitiu uma onda sonora que deixou todos ali de olhos arregalados e corpos imóveis. Alguns copos de vidro, duas garrafas e uma bandeja de metal caíram no chão, fazendo barulho. Apenas o homem não sofrera os efeitos da onda. Ainda sentado, ele ergueu a mão livre e estalou os dedos. Quem estivesse do lado de fora do bar, estranharia ver portas e janelas fechadas e as luzes apagadas naquela hora, naquele dia. Era apenas uma ilusão de ótica que não duraria muito. O homem precisava agir rápido. Ele soltou a bengala, que permaneceu de pé, como se estivesse colada ao chão. A esfera de fogo vibrava no ar, emitindo um leve zumbido. O homem levantou da cadeira, deu a volta na mesa e foi até seu Costa. Colocou as mãos nas têmporas do veterano de guerra, fechou os olhos e apertou os lábios... Seu Costa acordou do transe, tossindo muito, como se fosse morrer engasgado. Sentia-se como se alguém tivesse lhe dado uma surra. Os outros frequentadores também não estavam muito bem. Seu Costa levou um susto quando percebeu que estava naquela mesa, e que havia uma garrafa de uísque à sua disposição. “Como eu vim parar aqui?”

Na manhã seguinte, numa Loja de Poções, Kaline estava atrás do balcão, atendendo uma cliente. Apesar de demonstrar simpatia, ela queria se livrar logo daquela mulher. De cabeça baixa, Kaline terminou de embrulhar três frascos de vidros numa folha de papel grosso. Em seguida, colocou o pacote numa caixa de madeira e a tampou. Levantou a cabeça para receber o dinheiro das mãos da cliente. Esta a encarava com um olhar duro, de censura. Kaline se controlou para não jogar tudo para o alto. Sua vontade era de lançar um feitiço para cobrir toda a cara da mulher de pelos.

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Mas ela pensou no que era melhor para Lottar. “Obrigado, senhora”, disse Kaline. Já com a caixa de madeira e o troco nas mãos, a mulher entortou a boca numa expressão de desprezo, e saiu. Kaline não sabia até quando aguentaria aquilo. A mulher não foi o primeiro cliente a aborrecê-la. Kaline preferia quando alguém se recusava a ser atendido por ela, a esposa do Traidor da Pátria. Mas muitos faziam questão. Para encher o saco, mesmo sem dar uma palavra. Apenas a encaravam como se ela fosse a pessoa mais desprezível do mundo. Ninguém até hoje lhe disse qualquer coisa diretamente. Ela esperava que não se atrevessem. Tinha receio do que poderia acontecer. Qual seria sua reação. Para piorar, Kaline também estava tendo problemas com as outras vendedoras, pelo mesmo motivo. Sentia-se cada vez mais isolada. Assim como ela, as outras eram feiticeiras que nunca tiveram chance de entrar nas tradicionais e caras universidades de magia. Só então elas conseguiriam um diploma, ou seja, autorização para fabricarem suas próprias poções. A partir daí, uma das possibilidades de futuro seria levantar capital para comprar uma licença e montar a própria loja. Nesse ramo, havia quem se arriscasse a negociar sua produção no mercado clandestino, visando bons lucros. Kaline nunca se dispôs a isso. Morria de medo de que colocasse tudo a perder, com sua vida dando uma guinada sem volta. E ainda havia outro problema para contornar: sua condição de vampira. Algumas vendedoras faziam comentários maldosos sobre sua saúde. Ora Kaline fingia que não estava ouvindo. Ora respondia às provocações com algum comentário irônico. Mas, muitas vezes, o que queria mesmo era chamar cada uma para um duelo de magia e acabar com todas elas... Porém esse desejo ficava bem guardado em sua mente. Quando ia trabalhar, Kaline sempre usava um pouco mais de maquiagem para dar brilho à sua pele. Ela estaria mentindo se dissesse que seu patrão era uma má pessoa, quer dizer, um mau troll. Dono e gerente da loja, Seu Mumbo tinha mais de dois séculos de idade. Já contaram que, quando jovem, ele era corpulento e temperamental. Agora não passava de uma figura mirrada com um enorme nariz e orelhas caídas. Além de ser bastante paciente. Muitos se perguntavam que tipo de provações conseguira transformar uma figura rude em um mago diplomado.

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Ricardo Santos Seu Mumbo tinha paciência com Kaline por considerá-la sua melhor vendedora. Para ele, o conhecimento dela sobre as poções exibidas na loja superava o de todas as outras vendedoras juntas. E também Kaline era quem melhor atendia os clientes. Ela sempre sabia exatamente do que precisavam, qual poção seria mais eficaz para acabar com determinado problema, ou como tornar algo que, aos olhos do cliente, seria bom em algo especial. Porém, desde que os boatos sobre Victor ganharam força, seu Mumbo acabou ficando, mês após mês, numa posição cada vez mais difícil. Ele não tinha como negar: a presença de Kaline passou a prejudicar os negócios, afugentava os clientes. Alguns mais fiéis o censuravam por ele dar a vaga a alguém que não merecia. Fazia algumas semanas, Kaline sentia no ar que perderia o emprego a qualquer momento. Estava atrás do balcão, distraída com seus temores, quando um cliente se aproximou. Ela logo se recuperou para atendê-lo devidamente. “Pois não, senhor?” O homem sorriu. “Procuro alguma coisa para melhorar minha memória.” “Temos alguns produtos que podem ajudá-lo.” Kaline saiu de trás do balcão e foi até uma prateleira ao lado. Só aí ela percebeu que aquele homem elegante usava uma bengala. Ela ficou apreensiva. Seria ele um veterano de guerra, ferido em combate? Ele estaria ali para humilhar a esposa do Traidor da Pátria? Ela teve de recuperar a calma. Ofereceu duas ou três poções de potências diferentes. O homem mudou sua expressão, abrindo um sorriso malicioso. “Estou precisando de algo mais forte. Meu problema é muito sério.” Kaline não gostou da mudança de tom. “Infelizmente, senhor, isso é o máximo que podemos oferecer.” “Na verdade, tenho o que preciso bem aqui na minha frente.” Então o homem levantou e soltou a bengala, agarrando-a pelo cabo.

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Kaline se assustou. Mas sua apreensão não a impediu de observar atentamente a ponta redonda e prata da bengala, com as gravuras representando o sol. A ponta se abriu em bandas e a esfera de fogo surgiu, cegando Kaline. Ela fechou os olhos e abaixou a cabeça. Não viu que os demais clientes e vendedoras se voltaram para a esfera erguida no ar, numa mistura de sensações, do fascínio ao medo. Houve murmúrios e um gritinho. Seu Mumbo não se encontrava na loja. O homem bateu com a bengala no chão de madeira. A esfera vibrou. E a onda sonora imobilizou os corpos. Kaline não teve chance de lançar qualquer feitiço para se proteger. Ainda de pé, ela agora estava com os olhos arregalados e os braços arriados. O homem soltou a bengala, que permaneceu ereta. Ele estalou os dedos... Quando Kaline acordou do transe, sentiu-se tonta e apoiouse nas prateleiras. Ao redor, todos tentavam se apoiar em alguma coisa. Depois de se recuperar do mal-estar esquisito, ela passou o resto do expediente pensando no assunto que mais a preocupava: o que faria caso fosse demitida?

Horas depois, no início da tarde, Lottar voltava da escola, acompanhado de Beta. A menina goblin estava indo visitar os avós. Ela ficaria no meio do caminho. “Você podia passar lá depois que fizesse o dever de casa”, disse ela. “Não sei se minha mãe vai deixar.” “O que você aprontou dessa vez?” “Nada.” “Me conte a verdade, Lott.” “Juro... É que minha mãe quer evitar mais problemas... As pessoas estão cada vez mais estranhas com a gente...” “Babacas.” “Minha mãe anda muito calada ultimamente. E passa cada vez mais tempo cuidando do nosso jardim. Isso não é bom sinal.”

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Ricardo Santos “Lott?...” “Diga.” “Você quer namorar comigo?” A vontade de Lottar era de segurar o passo, mas achou melhor continuar caminhando. Quando se virou para o lado, para encarar Beta bem nos olhos, a menina estava de cabeça baixa, encarando os sapatos. “Você está maluca?” “Como assim maluca?” Agora foi a vez dela se virar, aborrecida. Lottar teve de segurar o passo. “A gente é amigo, Bê!” “Você me acha feia, é isso?” “Eu não acho nada, que coisa...” “Eu sei que você gosta de Lena, aquela fada idiota.” “Quem está sendo idiota agora é você.” Beta apertou a cara para Lottar, entre a raiva e o choro, fungou e começou a correr, com mochila e tudo. “Beta!” Lottar foi atrás dela, também com a mochila nas costas. Ele a viu dobrar uma esquina. Logo depois ele fez o mesmo. Estava se aproximando. Então veio o grito de Beta, e o susto dele. Alguém a puxou para dentro de um beco. Lottar chegou quase sem fôlego na entrada. Para seu espanto, deparou-se com um homem que tinha uma cara de rato. Ele realmente tinha uma cara de rato, com focinho pontudo, bigodes longos e dentuço. Ele segurava uma faca no pescoço de Beta. A mochila dela estava no chão. “Ah, um amiguinho.” Lottar recuperava o fôlego, a barriga doía de medo. Ao mesmo tempo, observava a expressão da amiga, apavorada. O fato de o beco estar completamente coberto pelas sombras tornava tudo mais sinistro. “Eu estava esperando a primeira coisinha leve passar para poder puxar aqui para dentro... Estou com sorte. Consegui duas coisinhas leves.” Lottar achou o sorriso do Cara de Rato grotesco.

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“Se eu estivesse com fome, comeria vocês dois aqui mesmo. São tão magrinhos. Seria mais um lanche... Para sorte de vocês preciso de dinheiro para jogar. Me deem tudo de valor que tiverem.” Lottar logo se lembrou de que a única coisa valiosa que carregava eram seus sapatos novos. Sua mãe tivera de comprá-los. Os antigos estavam com as solas tão arrebentadas que não tinha mais como remendar. Sua mochila era velha. Mas Lottar imaginou que o Cara de Rato quisesse levá-la também. O menino sentia medo e raiva. Enquanto tirava um dos sapatos, ficou dividido entre entregálos rapidamente ou tentar alguma reação. Quem sabe jogar um deles bem no focinho do Cara de Rato e depois lançar um feitiço monossilábico. Ele hesitava por causa de Beta. Nunca se perdoaria se algo lhe acontecesse. De repente, o menino viu uma luz se acender no fundo do beco. O Cara de Rato também percebeu que havia algo estranho atrás dele. Ficou na dúvida entre virar-se ou não. Decidiu que o mistério às suas costas tinha mais chance de ser uma ameaça real. Girou o corpo, apressado, apertando o braço de Beta, segurando a faca no pescoço da menina. Ela gemeu. Lottar teve receio de que a amiga se ferisse nessa movimentação. O Cara de Rato agora estava de costas para ele. Lottar ficou confuso. Não sabia se aquela era uma oportunidade para atacar, ou se também devia dar atenção à luz inusitada. Com um pé calçado, o outro apenas de meia e o sapato na mão, deu dois passos para o lado, para ter uma visão melhor, sem o Cara de Rato atrapalhando. Não demorou, o menino percebeu que a luz vinha de uma bolinha de fogo suspensa no ar, e que alguém a acompanhava. Um homem alto e magro, com o rosto iluminado nas sombras. O homem segurava uma tocha? Ou era uma bengala? Ele estava sorrindo. Então segurou o passo. “Solte a menina, coisa.” O Cara de Rato mexeu o corpo.

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Ricardo Santos Lottar não tinha como ver se este estava assustado ou mantendo-se firme. “V-vá embora! Eles são meus!” A voz do Cara de Rato estava trêmula. Agora Lottar tinha certeza de sua insegurança. “Desculpe, meu caro, mas o menino é meu.” Lottar mal teve tempo de assimilar essa afirmativa. O homem bateu com a bengala no chão de pedra. A esfera de fogo vibrou. A onda sonora espalhou-se. Lottar soltou o sapato. O Cara de Rato soltou a faca. Beta não sentia mais medo. Os três ficaram com caras de bobo. E Lottar parecia ainda mais bobo por calçar apenas um sapato. A expressão do homem era de contentamento. Enquanto andava, estalou os dedos. Agora quem estivesse na rua, de um lado ou de outro do beco, o veria vazio. Ele passou pelo Cara de Rato e Beta, indo diretamente ao encontro de Lottar. Mas, no meio do caminho, parou. Torceu a boca. E virou-se para trás. “Menina, venha até mim.” Beta foi até ele, lentamente. “Pegue sua mochila e se junte ao seu amigo.” Beta obedeceu. Pegou a mochila no chão, colocou-a nas costas e ficou ao lado de Lottar. “Vire-se, coisa.” O Cara de Rato girou o corpo até seus olhos arregalados encontrarem os olhos vívidos do homem. “Você me serviu bem.” O homem colocou a mão à frente do corpo. Fechou os dedos e depois os abriu, como se lançasse um pó invisível na direção do Cara de Rato. A pele e as roupas do infeliz começaram a queimar. Chamas mágicas que mudavam de cor a cada instante. Amarelo, verde, violeta... O Cara de Rato não gritava de dor, não se mexia, não tentava se salvar. Um cheiro de carne queimada ficava mais intenso. Lottar e Beta assistiam ao horror, impassíveis. Não demorou muito, tudo se transformou em cinzas. Parte delas caiu no chão de pedra. Parte foi levada pelo vento. Ao final, restavam poucos sinais de que ali existira um ser de qualquer tipo.

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Quando Lottar e Beta despertaram do transe, estavam sentados na calçada em frente ao beco, sentindo-se tontos. Apoiaram-se um no outro. E logo uma lembrança voltou à mente dos dois. O pedido de namoro de Beta. Lottar lançou um olhar de espanto. Beta um olhar de lamento. Sem dizer uma palavra, Beta se levantou e seguiu seu caminho, a mochila balançando nas costas. Lottar pensou em ir atrás dela, mas continuou sentado na calçada, sentido o peso de sua mochila. Então ele percebeu que o sapato estava desamarrado.

Quatro dias depois, o homem chegou à casa de Kaline e Lottar na forma de Victor, pronto para representar seu papel.

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aline atendia a primeira cliente simpática em semanas. Era uma mulher que falava pouco, mas sempre se expressava de maneira agradável. Kaline chegou a especular se aquele tratamento era acidental. Talvez a cliente não soubesse quem ela era, qual era sua fama. De repente, Kaline sentiu uma pontada na cabeça, como se um alfinete espetasse sua testa. Apertou o frasquinho de vidro em suas mãos e abaixou a cabeça. “Tudo bem, querida?”, perguntou a cliente. Kaline balançou a cabeça arriada, confirmando. Em seguida, levantou-a. “A senhora me dá licença.” “Mas é claro, querida.” Ainda segurando o frasquinho de vidro, Kaline se virou, passou pelo balcão, abriu e fechou uma cortina de pano fino, que cobria a entrada dos fundos da loja. Parou no meio de um pequeno corredor. Só depois ela se tocou que não apresentara outra vendedora à cliente. Aquela boa mulher não merecia essa indelicadeza. Os fundos da loja eram divididos em três cômodos apertados: o banheiro de um lado, o escritório de seu Mumbo do outro, e à frente o depósito. O melhor lugar para se esconder, o mais arejado e limpo, seria o escritório, mas Kaline raramente tinha acesso. Quando seu Mumbo estava presente, ficava trancado por lá durante horas. Em sua ausência, a porta continuava trancada. Ele não deixava a chave com ninguém. O banheiro não era uma opção. Lá ela também teria sossego. Era só passar o ferrolho na porta e pronto; não poderiam incomodála, mesmo que batessem à vontade. Mas o problema era o fedor. Por mais que limpassem, e muitas vezes a própria Kaline cuidava disso, um cheiro nauseante pairava no ar daquele cubículo. Caberia o uso de algum feitiço para resolver o problema? Sem dúvida. Mas Kaline achava que era se rebaixar demais. Restava então o depósito. O cômodo não tinha porta. Sua entrada era coberta por uma segunda cortina de pano fino. Kaline foi até lá. Sentou num banquinho, com as mãos ocupadas no colo do avental, entre prateleiras cheias de frasquinhos de vidro com poções de todas as cores, além de baldes, vassouras, esfregões e

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caixas de madeira e de papelão de vários tamanhos, cobertas por uma leve camada de poeira. Outra pessoa poderia dizer que ali estava abafado. Mas não Kaline. Vampiros não sentem calor ou frio, não suam, não tossem. Possuem, na verdade, um sentido aguçado para prever ameaças à sua pele, ao seu corpo. Kaline colocou o frasquinho que segurava numa prateleira, à altura dos olhos. Ela não deixara a simpática cliente sozinha porque ainda sentia mal-estar ou tontura. Tinha se recuperado até que rápido, na presença da cliente. A questão era outra. Ela se isolara para poder pensar melhor. Nada tirava de sua cabeça que a dor que sentira na testa estava relacionada a Lottar. Desde que o encontrara ensanguentado e faminto na porta de casa, no episódio do roubo da fruta, ela lançou um feitiço para alertá-la, caso alguma coisa acontecesse com Lottar. Não tinha como transformar esse feitiço em algo portátil, que acompanhasse o filho a qualquer lugar. Alguém mais poderoso seria capaz de consegui-lo. Mas ela não sabia como. Então sua intervenção se restringia aos domínios da casa, do terreno e do Jardim. Fora a melhor solução para lhe dar certa tranquilidade. Em tempos difíceis como aqueles, ela temia pelo o que o filho poderia fazer quando estivesse sozinho e pelo o que outros pudessem fazer a ele. Quando Victor estava presente, ele tinha horários mais flexíveis e passava bastante tempo com Lottar, raramente o deixavam sozinho. E também havia Pogo para protegê-lo. Mas ela nunca realmente soube, mesmo em sua época de menina, qual era de fato o tempo de resposta do pequenino. Se ele seria ágil suficiente. Se ele daria conta do recado. Além do mais, quem melhor poderia socorrer o filho se não a própria mãe? O feitiço funcionava como uma espécie de alarme. A qualquer sinal de maior tensão na casa e ao redor, um bilhete mágico surgiria para Kaline em algum bolso da calça jeans, do vestido ou do avental. O bilhete seria aberto e lá estaria, escrita com sua própria letra, a palavra que a faria sair correndo: PERIGO. Tinha testado o feitiço nos primeiros dias com sucesso. O bilhete fora parar em seu bolso sem problema. A espetada na testa seria algum tipo de falha... de interferência? Afinal, estaria realmente relacionada a qualquer ameaça a Lottar? Kaline não queria pagar para ver. Era hora de partir.

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Ricardo Santos Levantou do banquinho apoiando-se nas prateleiras. Arrumou o avental e caminhou apressada. Quando fechou a cortina da entrada para os fundos, voltouse para o lado. Uma vendedora chamada Matina estava no caixa, atendendo um cliente. Matina sentiu sua presença e a encarou. “Preciso ir em casa”, disse Kaline, comedida. Matina deu um sorriso irônico, fungou e voltou a ocupar-se do cliente. Kaline apertou a mandíbula de raiva e engoliu seu orgulho. Ela não podia perder mais tempo. Conferiu as horas no relógio de parede. Quatro e meia da tarde. A mulher simpática não estava mais na loja. Kaline passou por dois ou três clientes e foi embora. Minutos depois, enquanto caminhava às pressas, com a cabeça cheia de especulações, percebeu que ainda usava o avental. Tirou-o. Ficou na dúvida se o manteria com ela ou se jogaria fora. Decidiu dobrá-lo e amarrar na cintura. Por lei, Kaline não podia usar magia em vias públicas sem autorização. Mas também ela não esperaria por um ônibus que pudesse atrasá-la. Não tinha outro jeito, teria de praticamente correr, usar sua velocidade de vampira, com discrição, e numa potência restrita, pelo fato de ser dia. Finalmente, chegou à sua rua. Gastara vinte, trinta minutos. Ela não tinha certeza. Crianças brincavam no asfalto, adultos seguiam pela calçada. Kaline observava à distância a frente de sua casa. O janelão frontal estava fechado. Nenhum sinal de Victor ou Lottar. Não vê-los foi mais um alívio do que uma preocupação. Afinal, quanto mais longe os dois ficassem de outras pessoas melhor. Ela atravessou a rua sem ligar para um ou outro olhar de reprovação dos vizinhos que passavam. Parou no portãozinho amarelo da entrada. Ao avançar o caminho de pedras coberto pelo mato, redobrou sua atenção, deixou um feitiço na ponta da língua para qualquer emergência.

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coração de Lottar batia acelerado. O menino sentia sede e fome. E dores nos braços, nas pernas e no pescoço. As palmeiras-duendes estavam segurando-o bem firme. Lottar também estava com frio. Sempre fazia frio à noite no Jardim. A única coisa que ele podia ver eram as estrelas lá no alto, os pontinhos luminosos no escuro. Era um céu estrelado tão perfeito. Parecia até de mentira. O mecanismo da Bolha apenas permitia que uma parte mínima do outro universo, do outro mundo pudesse ser ocupado. Mas o que havia depois da Bolha podia ser visto muito além. O Impostor o tinha deixado lá. Ele fora embora em silêncio, carregando a florzinha azul na mão. Afinal, o que ele pretendia com aquela flor sem graça? Por que ela era tão importante? Lottar torcia para que o Impostor não tivesse encontrado sua mãe pelo caminho. Torcia para que ela viesse salvá-lo. De repente, o menino não sentiu mais nenhuma pressão sobre o corpo. As palmeiras-duendes não o seguravam mais. Ainda deitado e sentindo dores, olhou para lá e para cá, e pôde ver as palmeiras-duendes se afastando. Ele podia ver também a flora iluminada em vários tons. Notou a vontade de acelerar o passo de cada palmeiraduende, de voltar para o lugar de onde saíram. Ele sabia bem por quê. Uma lição crucial que a mãe lhe ensinara: nunca ir ao Jardim sem sua companhia após às cinco da tarde. A razão era simples. O fuso horário do universo de cá era diferente do fuso do outro universo, dentro da Bolha. Enquanto que, no primeiro, a luz desaparecia mais lentamente a partir das cinco da tarde; no segundo, a noite, cheia de belezas, mas também de perigos, caía numa rapidez perturbadora. Foi o que o próprio Lottar tinha visto minutos antes. Num piscar de olhos, o dia tinha se tornado noite. Era a segunda vez na vida que testemunhara o evento. Procurou se levantar. Decidiu permanecer descalço. Ficou abalado ao ver novamente os pedaços de Pogo espalhados pela grama. Preocupou-se com sua mãe. Olhou em direção à casa. Fora do Jardim ainda era dia. A imagem turva na fronteira não indicava qualquer movimentação.

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O coração de Lottar tentava voltar ao normal. A sede e a fome continuavam apertando. Assim como as dores no corpo. A situação era tão difícil que ele mal tinha cabeça para admirar tanta beleza ao redor. Fazia mais de um ano que ele fora ao Jardim à noite. E estava acompanhado da mãe, devidamente preparada para enfrentar qualquer perigo. Ficaram pouco tempo, como sempre. Mas valera cada minuto. Mesmo tendo um contato mínimo com um ou dois perigos, Lottar aprendera a temê-los. Ele estava distante da fronteira do Jardim. Podia simplesmente correr, dar impulso ao seu corpo e se jogar para fora, até cair de cara na faixa de terra. Mas ele sabia que esse seria um plano idiota. Nas duas vezes em que estivera ali, à noite, ele ficou a alguns passos da saída. Era uma maneira de Kaline mantê-lo seguro. Se acontecesse um problema mais sério, ela lançaria um feitiço e o jogaria para fora. Assim como antes, agora Lottar sabia que precisava tomar cuidado com cada passo. Ele sentiu o frio apertar. Em seguida, ouviu o vento soprar mais forte, como um assovio. Ele engoliu em seco. Nas duas vezes anteriores, Kaline o levou ao Jardim para mostrar por que ele nunca deveria entrar ali sozinho à noite. A beleza hipnótica ao redor era a camuflagem perfeita para qualquer ameaça. Lottar vira com os próprios olhos duas delas. Depois, sua mãe contou que havia mais. E talvez existissem outras que ela própria desconhecesse. Lottar estava parado na grama. À sua frente, ele podia ver a imagem turva da casa. Passou a sentir uma sensação incômoda. Como se fosse observado, como se houvesse mais alguém às suas costas. Virou-se para trás. Não havia nada no caminho gramado do Jardim. Então o menino começou a ouvir chiados entre a vegetação luminosa, que balançava. Chiados que surgiam de vários pontos. Até que enormes aranhas despontaram, ágeis, tomando a grama. Ficaram todas do mesmo lado, voltadas para Lottar. Em sua maioria, aranhas do tamanho de um cachorro pequeno.

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Ricardo Santos Lottar nunca as tinha visto antes. Mas sabia de sua existência. Seu medo era maior do que sua curiosidade. As aranhas eram feitas de plantas, assim como sua mãe dissera. Mas ficar cara a cara com essas infelizes transformava uma ideia vaga numa realidade bem concreta. Eram seres deformados, de cores e tonalidades semelhantes. Umas tinham oito patas mais finas, outras oito patas mais grossas, e havia até aquelas com dez patas. Na verdade, eram conhecidas como aracnofilas. Não vê-las direito, com partes escondidas em zonas de sombra, deixava Lottar ainda mais nervoso. E ele sabia por que elas não o cercaram logo de cara. Por que deixaram o caminho livre até a casa. Ele teria alguma chance se corresse bem rápido? Seu corpo realmente iria obedecer sua vontade de sair em disparada? “As aracnofilas gostam de perseguir as pessoas. É o joguinho perverso delas.” As palavras da mãe grudaram em sua mente. Lottar também sabia de uma coisa muito importante: as aracnofilas não podiam matá-lo. Depois de vários experimentos e testes com animais de laboratório, Cálio Van Costa, o hibridista amigo da família, garantiu à Zena, esposa do seu grande amigo Áureo, tataravó de Lottar, de que os perigos noturnos do Jardim eram bem peculiares. No caso das aracnofilas, elas podiam ter contato com qualquer um, mas não podiam fazer mal ao corpo de ninguém. Não tinham a capacidade de arrancar nenhuma cabeça, braço ou perna. Não podiam devorar nenhuma matéria. Por outro lado, podiam mexer com a mente alheia, de uma forma terrível. Lottar quase mijou nas calças quando elas avançaram tomando o gramado em passos ligeiros. Mesmo com medo, Lottar sabia que precisava pensar rápido. Defender-se com uma sequência de feitiços monossilábicos? Mas quais feitiços? Em que ordem? Conseguiria lembrar das palavras, entonações e gestos corretos? Sua habilidade de devorador de almas não serviria de nada. Sua cabeça estava confusa demais para se acalmar. As aracnofilas se aproximavam unidas como se fossem um único ser.

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Os chiados que emitiam em conjunto aumentavam a irritação de Lottar. “As aracnofilas subiriam em seu corpo até derrubá-lo, cobrindo-o completamente. E com picadas, que não deixariam nenhuma ferida ou marca em sua pele, entrariam em sua cabeça, o envolveriam com imagens alucinadas e pesadelos loucos, até acabar com sua sanidade, até torná-lo outra pessoa, uma casca praticamente vazia.” Foi o que Kaline dissera ao filho, mais de um ano antes, sem precisar exagerar no tom de voz. Lottar lembrou-se do que tinha pensado naquela ocasião: aquilo era pior do que morrer. Então quer dizer que ele não seria mais um grande mago. Não veria mais sua mãe. Não saberia quem afinal era aquele sujeito se fazendo passar por seu pai. Medo e raiva se misturaram. O coração voltou a acelerar. Lágrimas desceram pelo rosto. A sede e a fome se tornaram incômodos menores. O mais estranho era que ele estava ouvindo um rosnado às suas costas, como se uma fera o espreitasse. Estava ouvindo coisas? Por impulso, virou a cabeça para trás. Para completar seu desespero, não era que tinha mesmo uma fera ali. Acabou virando o corpo de vez. Era uma espécie de lobo. Um lobo de luz, dourado. O bicho não parava de rosnar, impondo-se como uma ameaça constante. Lottar já tinha ouvido falar das aracnofilas e de outros perigos. Mas ele nunca soubera da existência de nenhum lobo de luz. Que dizer agora ele poderia escolher como morreria? O menino soltou um riso nervoso. E passou a mão nos olhos para enxugar as lágrimas. Para surpresa do próprio Lottar, a certeza do fim lhe deu um estalo, provocou nele alguma serenidade, apesar dos suores e do coração acelerado. Sua mente ganhou uma firmeza inesperada. Seus inimigos poderiam vencer, mas não sem briga. Lembrou-se das palavras do pai, na véspera de Victor ir para a guerra:

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Ricardo Santos “Um homem deve cair lutando. Manter a dignidade é a coisa mais importante, até o fim.” As aranhas estavam a caminho. O lobo de luz começou a correr em sua direção. Lottar posicionou-se de lado para ambas as ameaças. Ora olhava para um lado, ora para outro. Agora ele sabia o que iria fazer. As aracnofilas eram rápidas. Mas o lobo de luz empregava uma velocidade vertiginosa. A cada metro vencido, ficava mais claro quem seria o campeão. E o prêmio seria sua alma. “Dignidade até o fim”, sussurrou Lottar. Então ele virou-se totalmente na direção do lobo de luz. Lottar lançaria dois ou três feitiços monossilábicos. Resistiria quanto pudesse. Repassou às pressas a sequência dos feitiços. A hora do enfretamento se aproximava. Assim como o lobo de luz. Lottar esperava o momento certo para o ataque. “Mas o quê...” Lottar foi pego totalmente de surpresa quando o lobo de luz tomou impulso e saltou no ar. Na visão do menino, a fera pulou tão alto, cortando o céu noturno, que parecia um cometa. O lobo passou por sua cabeça em movimento. Lottar quase se desequilibrou, quase caiu de bunda no chão ao olhar para cima, ao acompanhar a fera. E quando o lobo aterrissou no gramado, entre Lottar e as aracnofilas, uma onda de luz dourada se espalhou, jogando as aracnofilas barulhentas e ligeiras para o alto e para trás. Elas caíram em pilhas, umas sobre as outras. Mas Lottar não viu nada disso. A onda de luz fez com que fechasse os olhos e levantasse as mãos, à altura da barriga. Ele continuou no mesmo lugar. Sentiu uma forte onda de calor atravessando seu corpo. Quando abriu os olhos, as aracnofilas estavam empilhadas e confusas. O que estava acontecendo? O lobo de luz estava ali para protegê-lo?... Ou queria Lottar só para ele? Queria deixar isso bem claro?

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O menino engoliu em seco ao pensar na última possibilidade. Quer dizer então que ele teria de resistir, de qualquer jeito. Lançar sua sequência de feitiços. O lobo, que estava de costas para Lottar, voltou-se para ele. Lottar preparou-se para se defender, com o coração acelerado de medo. O lobo avançou alguns passos, num ritmo mais tranquilo, sem rosnar. Lottar estava ficando maluco ou o bicho estava um pouco menos dourado, menos luminoso, como se tivesse perdido parte de sua carga, de sua energia? Então o lobo disse, em sua voz rouca de fera: “Calma, sou eu. Pogo.” Lottar mal teve tempo de assimilar aquela revelação. Ele ouviu um forte estrondo vindo da casa. Olhou naquela direção, esquecendo tudo ao redor. Do outro lado da imagem turva na fronteira do Jardim, fim de tarde, algo incerto saía pelas janelas laterais da casa. Não dava para saber direito se era fumaça ou poeira. Lottar logo pensou na mãe. Se ela já tinha chegado em casa, se tinha se deparado com o Impostor, se ainda estava viva. “Lottar!” O grito da fera fez com o menino o encarasse, furioso. Em seguida, ouviu-se o chiado já notório. As aracnofilas já estavam a postos, mais ariscas do que antes. O lobo de luz voltou-se para o menino. “Suba em mim e vamos embora.” Lottar permaneceu parado, os olhos mortos. Parecia que não estava mais ali. O lobo virou-se para trás. As aracnofilas avançavam, alucinadas. O lobo voltou-se de novo para o menino. “Lottar!” Ele acordou do transe. E na mesma hora, lançou os braços para frente. “Fic!” Depois começou a correr para o lado contrário de toda aquela confusão. Rumo à fronteira do Jardim, para casa, para sua mãe. Ela tinha que estar lá. O lobo recebeu o feitiço monossilábico como se tivessem jogado algo inofensivo em seus olhos. Incomodou, mas

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Ricardo Santos não feriu de verdade. Quando recuperou a visão, Lottar estava um tanto distante, correndo com dificuldade. “Menino idiota.” O lobo foi atrás dele. E as aracnofilas atrás dos dois. Enquanto corria, Lottar sentiu um segundo estrondo vindo da casa, ainda maior. Ele segurou o passo com o olhar meio louco. Parte do teto tinha desmoronado. E uma grande nuvem, agora ele tinha certeza, de poeira elevou-se no ar.

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s dois homens estavam na selva fazia dois dias e duas noites. Já bem cedo estava quente e abafado. O homem que ia à frente estava acostumado ao clima úmido. O outro que o acompanhava era orgulhoso demais para mostrar qualquer sinal de fraqueza. O homem à frente estava a dois ou três metros de distância do outro. Tinha a pele morena e o cabelo liso e escuro. Usava uma blusa fina, calças que terminavam nos joelhos, e sandálias de couro curtido, presas aos calcanhares. Carregava uma mochila magra de lona às costas. Segurava um facão que cortava a mata fechada, abrindo caminho. Seu nome era Terê. Já o homem que o seguia estava naquela região pela primeira vez. Oficialmente era chamada de Manto Verde. Na Capital, era conhecida como Terra dos Selvagens. Quase não se via a pele clara do forasteiro, debaixo da calça fina, da camisa de mangas compridas empapada de suor, e das botas longas de couro caro. Parte do pescoço estava coberta por um lenço de seda. A cabeça com um rabo de cavalo por um chapéu elegante, de aba curta. Proteções, principalmente, contra os insetos. O homem carregava nas costas uma mochila ainda menor de couro, da mesma cor das botas. Além de uma bengala, servindo de apoio no terreno sinuoso. Para as pessoas da região, apresentou-se como Senhor Lucius. Terê praticamente não falava, apenas o necessário. Guardava todos os pensamentos para si. Por conhecer muito bem a região e pelo seu jeito discreto, ele era muito requisitado como guia. Principalmente por forasteiros. Ainda mais quando não era sensato fazer perguntas. Mas ele não conseguia parar de se perguntar quem seria aquele homem, que obviamente nunca estivera numa selva antes. Na verdade, o que o intrigava mesmo era o fato de o homem se parecer branco e ao mesmo tempo, não. Ele nunca tinha visto um homem branco com lábios tão grossos e cabelos tão crespos. Ainda mais alguém claramente refinado. Sem dúvida, um habitante da Capital. Um frequentador dos melhores ambientes. Terê ficou impressionado com a longa cabeleira crespa e escura do forasteiro na primeira vez em que ele tinha desfeito o rabo de cavalo. Na ocasião, na primeira tarde da jornada, Senhor

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Lucius, de pé, arregaçou as mangas da camisa, curvou-se para frente, cobrindo o rosto com tanto cabelo, e despejou toda a água de rio que havia em seu cantil metálico. Depois jogou o cantil no chão e pegou uma tolha fina, presa a uma árvore, enrolando-a na cabeça. Então esperou o cabelo secar para penteá-lo e refazer o rabo de cavalo. Para Terê, já no primeiro dia de viagem, ele tivera uma certeza. O tal Senhor Lucius tinha o comportamento de um Especial. Mas que tipo de Especial? O forasteiro seria um metamorfo, assim como ele? Ou ele seria um mago... com o poder de ler a mente das pessoas? Com o passar dos dias e das noites, apesar de não testemunhar nada fora do comum, Terê não tirava da cabeça que aquele homem era mais do que se mostrava. Até mesmo duvidava de que Senhor Lucius fosse seu nome verdadeiro. Terê estava certo. Ele não se chamava Senhor Lucius. E ele poderia não só ler sua mente como fazer tantas outras coisas para favorecê-lo ou prejudicá-lo. Mas acontece que Senhor Lucius não poderia fazer nada no momento. Por precaução. Qualquer feitiço que lançasse, por menor que fosse, correria o risco de ser sentido por Ela. Mesmo a distância. Terê segurou o passo. Senhor Lucius fez o mesmo. Terê estava ouvindo um som de riacho não muito longe. Ele virou para o lado e voltou a desferir golpes de facão na mata. Não demorou muito, os dois homens estavam descendo um barranco cheio de vegetação. Eles se apoiavam em caules e cipós para não escorregar e cair na terra escura e úmida. O barranco chegou ao final. Terê usou o facão para atravessar o resto de mata, seguindo para a luz. Quando Senhor Lucius conseguiu sair, deparou-se com algo inusitado. Ele e Terê estavam num trecho aberto da selva. O forasteiro olhou para cima, apoiando-se na bengala. Pela primeira vez, em dias, vislumbrava o céu por inteiro, que teimava em permanecer nublado. Provavelmente, a chuva forte cairia de novo a qualquer momento. Só então Senhor Lucius voltou-se para adiante.

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Ricardo Santos A mata à frente continuava com sua vegetação fechada, de cima até embaixo, entre árvores altíssimas. Aquele trecho parecia uma divisão da selva, como uma fronteira bem definida. O estreito riacho rasgava a terra escura sem vegetação nas margens. Por um breve instante, Senhor Lucius encarou as costas de Terê. O guia estava imóvel, encarando o outro lado da selva. Senhor Lucius estava na dúvida se deveria matá-lo ou deixálo em paz. Ele não tinha apenas poderosos feitiços escondidos na manga. Possuía também uma adaga escondida na bota. Além de ser um perito em mansur, uma arte marcial que utilizava armas brancas curtas. Afinal, o nativo poderia traí-lo. Poderia avisá-la de sua presença de alguma forma. Por temor ou por admiração a Ela. Ele sabia que Terê era muito habilidoso com aquele facão. E sabia também que ele era um metamorfo. Alguém que podia se transformar num arisco gato do mato ou num ágil tubarão de água doce. Numa conversa de final de tarde, na melhor suíte do Grande Hotel de Viços, cidade portuária e centro comercial e político da região, o prefeito lhe contara algumas histórias sobre seu guia. Talvez Senhor Lucius quisesse correr o risco de enfrentá-lo, sem o uso de feitiços. A disputa pela lâmina dava-lhe um êxtase diferente. A vitória dependia das limitações do corpo, de outro tipo de criatividade. Era um prazer que nenhuma disputa mágica proporcionava. Precisava sentir isso vez ou outra, quando surgia a oportunidade. Terê voltou-se para trás e encarou Senhor Lucius. “Vou esperar o senhor aqui.” “Como combinado.” “O senhor tem até o início da tarde para voltar.” “Voltarei antes disso... Você estará aqui não é mesmo?” Terê balançou a cabeça, confirmando. Os dois homens se encararam por um instante, em silêncio. Cerca de um metro os separava. Havia respeito mútuo naquela troca de olhares. Mas também desconfiança. Mais do que nunca, Terê manteve-se alerta. Esperava qualquer coisa daquele forasteiro. Dificilmente, alguma coisa boa. No fim, Senhor Lucius decidiu que não valia a pena matar o nativo. Não era momento de sentir prazer. Precisava guardar suas forças para o encontro com Ela.

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De qualquer maneira, pressentia que, ao atravessar aquele riacho, Ela ficaria sabendo de sua chegada. Ele já captava em sua pele a eletricidade emanada da magia do outro lado da selva. De qualquer maneira, sua presença seria uma surpresa para Ela, que teria pouco tempo para se preparar. “Onde está a trilha?”, perguntou. “Bem ali”, respondeu Terê, apontando em diagonal para o outro lado. Senhor Lucius forçou a vista, até perceber o começo de uma trilha dentro da mata. Depois se voltou para Terê. “Então eu só preciso seguir aquele caminho para encontrar a casa?” “Isso mesmo.” “Fácil assim?” Terê ensaiou um sorriso. O primeiro em toda a viagem. Senhor Lucius não gostou da reação. “Senhor, seguir a trilha é a coisa mais fácil de fazer. O problema é voltar.” Senhor Lucius fungou, e agora foi sua vez de sorrir. “Muito bem”, disse ele. Virou-se para o riacho. Dava para ver como era raso pela água limpa. Atravessou sem dificuldade, com a ajuda da bengala, molhando suas botas ao mínimo. Logo sentiu o ar ficar diferente. Isso o fez segurar o passo. Fechou os olhos e respirou fundo. Um frescor ardente invadiu seus pulmões. Então soltou o ar e abriu os olhos. Agora sentia-se completamente à vontade para usar toda sua magia. Ouviu a movimentação de Terê às suas costas, preparando seu cachimbo de osso de hipopótamo, para enchê-lo de fumo. Já estava familiarizado com o hábito do guia. Seguiu sem virar-se para trás, em direção à trilha. Estava ansioso. Achou isso bom, o manteria em alerta.

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mata do outro lado da selva não tinha nada de diferente em seus insetos, árvores e arbustos. Só havia uma novidade. A trilha nunca ficava confusa. Mesmo à distância, dava para perceber aonde ela

seguia. Mas isso não significava que Senhor Lucius podia dispensar o auxílio da bengala. O suor por baixo da roupa, do lenço preso ao pescoço e do rabo de cavalo não enfraqueciam sua determinação. Por duas vezes, parou, tirou o chapéu elegante e enxugou a testa úmida com a manga comprida da camisa. Caminhando, Senhor Lucius olhou para o alto. As frondosas árvores gigantes ainda o impediam de observar melhor o céu. Ele torcia para que não chovesse. Não queria ficar ensopado justo naquele momento. Quando se voltou para frente, segurou o passo. Estava na borda de uma clareira. E lá se encontrava a casa, bem no meio dela. Alguém que não fosse acostumado aos caprichos da magia perderia tempo se perguntando como aquele cenário aparecera do nada. Senhor Lucius apenas agradeceu, pois não teria mais que andar pela mata. O céu agora poderia ser completamente visto. Mas Senhor Lucius preferiu não olhar para o alto de novo. Quando baixasse os olhos desta vez, talvez fosse surpreendido por algo bastante desagradável, até mortal. Ele guardou a bengala nas costas, enfiando-a entre duas tiras de couro na parte de trás da mochila. A bengala ficou presa, como a espada de um guerreiro de histórias de aventura. A informação que tinha sobre a casa era de que não passava de uma construção velha, circular, com as paredes feitas de troncos de árvores e barro. O telhado em forma de cone, coberto por palha seca de coqueiro. Nada muito diferente da moradia dos nativos que viviam na mata. A casa era como a descreveram. Parecia que havia apenas uma entrada, com uma proteção de couro servindo de porta. Uma abertura um tanto larga com cerca de um metro e meio de altura.

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Senhor Lucius ficou imóvel, praticamente congelado. Fixou os olhos na casa, como se estivesse em transe. Queria perceber, usando além da visão e da audição, que tipos de armadilhas mágicas, ou hibridistas, poderiam existir na clareira. Para sua surpresa, não havia nada, perigo nenhum. Ele tinha convicção. Era bom em captar essas coisas. Saiu do transe e fungou, relaxando o corpo. Agora tinha mais confiança para seguir adiante. Mesmo assim, estava preparado para lançar qualquer feitiço ao menor sinal de ameaça. Então a chuva caiu, sem prenúncio. Não havia nada de mágico naquilo. Senhor Lucius se aborreceu. Mas teve de se conformar. Tirou o chapéu e o jogou na terra se fazendo lama. Dali em diante, o chapéu só atrapalharia. O pegaria na volta. O pensamento sobre seu retorno fez Senhor Lucius ficar apreensivo por um instante. Ele avançou, alerta. À medida que se aproximava, os detalhes da casa ficavam mais visíveis, mesmo com a chuva atrapalhando sua visão. Como alguém tão exigente poderia viver num lugar arruinado daquele? Quando estava a alguns passos da entrada, uma luz lá dentro se acendeu. Ele parou. Preparou-se para desferir qualquer ataque. “Entre, Félix”, disse uma voz feminina e gasta, competindo com o barulho da chuva. “Eu estava à sua espera.” Ele reconheceu a voz. Fazia alguns anos que não a ouvia. Aceitaria o convite. Estava mais tenso do que nunca. Abaixou-se para entrar na casa, a mão afastando a proteção de couro. Sempre de cabeça erguida. Os olhos embaçados pela chuva bem abertos. Não queria ser pego de surpresa. Teve cuidado em preservar o cabo da bengala às costas. Mal ergueu o corpo, limpou a vista com a mão. O que viu não o deixou perplexo, apenas curioso. Senhor Lucius, na verdade, Félix Gustanis, deparou-se com um bem iluminado ambiente. De um lado, havia espaço para uma cama estreita e um armário idem, uma pequena cozinha e uma modesta biblioteca, com direito a duas poltronas confortáveis. Do

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Ricardo Santos outro, ficava um laboratório bem equipado, com uma porta fechada ao fundo, provavelmente o banheiro. Tinha certeza de que se encontrava dentro de uma Bolha. Ele não ouvia mais o barulho da chuva. Sentia-se ridículo todo molhado. Ela, Magna Aguirre, estava de pé, de perfil para ele, dobrada sobre um comprido balcão de madeira, cheio de utensílios de laboratório, livros abertos e papéis espalhados. Estava concentrada em observar, com uma lupa na mão, uma flor branca, do tamanho de um punho fechado, salpicada de manchas vermelhas, plantada num vaso de barro. Ela vestia uma calça e uma blusa sem mangas. Roupas justas. Para Félix, ela estava magra demais, e o cabelo grisalho, longo demais. “Sabe o que é mais fascinante em brincar de deus, Félix?”, perguntou a mulher, ainda concentrada na flor. “A beleza imprevisível do que criamos, Mestra”, respondeu o homem, não como um discípulo obediente. Suas palavras carregavam uma amarga ironia. Então a hibridista endireitou o corpo, descansou a lupa e virou-se para Félix. Ela sorriu, estava intrigada e surpresa. “Essa não foi a resposta que você me deu da última vez.” Ele sorriu de volta, agora com uma ironia mais confiante. “Agora eu tenho como criar meus próprios milagres, Mestra.” Magna Aguirre o olhou fixamente. Respirou fundo. “Entendo... Mas você está encharcado, homem! Posso oferecer alguma coisa? Outras roupas, um chá quente, um feitiço?” “Não, obrigado.” Prudente, Félix levantou o braço e passou a mão rente ao corpo, da cabeça à cintura. Em segundos, roupas, botas, acessórios, cabelo e pele ficaram secos. “Que tal sentarmos?” Magna Aguirre começou a caminhar. “Acho melhor ficar onde estamos.” Magna Aguirre segurou o passo. “Muito bem”, disse ela. Então continuou: “Lembro de nosso último encontro. Você estava bastante agitado.” “Fruto da minha inexperiência.”

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“Não confunda mais experiência com mais arrogância.” Félix apertou os olhos e sorriu. “Fale por si mesma, velha.” Agora foi a vez de Magna Aguirre apertar não só os olhos como todo o rosto. “Seu moleque ingrato! Sabe por que permiti que você entrasse na minha casa hoje?” “Porque não terminamos nossa conversa da última vez.” “Exato.” “Mas você permitindo ou não, eu entraria. Meus recursos são muito maiores agora.” “Eu sei. Você se tornou membro dos Cavalheiros Escarlate, aquele bando de radicais.” “Nós pensamos no futuro.” “Vocês só pensam em si mesmos.” “Velhos hibridistas como você não tiveram coragem de assumir o País. Vocês sempre se contentaram com os privilégios acadêmicos. Nunca se interessaram de fato pelo mundo além das paredes dos laboratórios e dos muros das universidades. Já está mais do que na hora de os hibridistas assumirem o poder.” “A ambição de sua Ordem vai levar esse país à ruína.” “Pelo contrário, mais do que tudo, desejamos a glória da Nova Câmbria. Desejamos que ela seja maior do que a própria Câmbria, maior do que qualquer outra república ou reino.” “Eu sei muito bem que vocês têm um papel importante na Guerra. Novas soluções hibridistas estão trazendo riqueza e status político não só para a Ordem. Até me questiono se não foram vocês que provocaram essa matança toda, por meio de algum plano obscuro.” Magna Aguirre fez uma careta de desgoto. Félix gargalhou. “Você não pode mais ler minha mente. Nem mesmo captar imagens indefinidas.” A expressão de Magna Aguirre murchou de tristeza. Ela não conseguia mais sentir raiva. “Você foi o maior erro que cometi. Traí a confiança de minhas irmãs para treiná-lo em segredo. Não importava se você era menino ou menina. E sim seu potencial, sua bondade.” “Eu era um ingênuo naquela época. Ainda não tinha consciência das tantas possibilidades que havia no mundo.”

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Ricardo Santos Magna Aguirre o encarou. “Você nunca se apossará da Flor.” “Eu não gastaria anos e anos procurando você, virando o País pelo avesso, aprimorando feitiços e experimentos em meu laboratório, fortalecendo alianças se não tivesse certeza de que ela seria minha. A Flor será minha contribuição decisiva à Ordem. Meu legado para esta nação.” “Vou derrotá-lo novamente. E depois irei embora da Nova Câmbria. Conheço pouco deste vasto mundo. Minha partida será algo muito caro para mim, mas será melhor para todos.” Félix torceu a boca, numa expressão de fúria. Numa manobra ágil, ele puxou a bengala presa à mochila para soltá-la no ar, vê-la girar, pegar de volta e bater com força no piso de madeira. Ao mesmo tempo, Magna Aguirre encheu os pulmões com vontade e jogou para frente os braços, como se empurrasse uma bola invisível, soltando o ar ruidosamente. Uma massa de energia foi ao encontro da outra, quebrando, esmagando, pulverizando todo tipo de objetos pelo caminho. O acúmulo de barulhos era estridente. Quando as duas massas colidiram, o impacto provocou, numa zona intermediária, rachaduras no piso de madeira e nas paredes de pedra. Além de provocar uma surdez momentânea nos dois hibridistas, que conseguiram ficar de pé. Mesmo sem ouvir direito, meio atordoados, ambos sabiam que não podiam baixar a guarda. Talvez por ser mais jovem, talvez pela maior determinação, Félix recuperou-se primeiro. E bateu novamente a bengala no piso duro. Uma nova massa de energia expandiu-se por todo o ambiente, fazendo novos estragos, e desta vez lançando a desorientada Magna Aguirre contra a parede. Félix praticamente se tornou a única coisa inteira por ali. Ele procurou acalmar sua respiração alterada. Sua audição ainda estava comprometida. À distância, observava o corpo inerte de Magna Aguirre, de bruços, em meio a cacos de vidro, páginas de livros, papéis espalhados, partículas de pó, e pétalas e folhas de várias cores. Ele se arrependeu do que fizera. Precisava da mulher viva.

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Então ele foi até ela. Precavido. Aquilo poderia ser um truque. Ele a observou de perto, a tocou. Estava mesmo inconsciente. O que também não o ajudava. Mas não tinha importância. Agora ele poderia colocar seu plano em ação.

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Cerca de meia hora depois, Magna Aguirre estava na mata, próxima à clareira, colhendo ervas para preparar um chá quentinho e relaxante. Apesar do leve corte na testa, ela não se mostrava abalada. Pelo contrário. Expressava uma tranquilidade que não lhe era comum. Félix a observava de longe, escondido atrás de um arbusto. Num instante, mas não de maneira indolor, transformouse em outra pessoa. Um ancião com uma fisionomia comum aos nativos dali. Agora ele era um bonóru, pertencente a um dos povos de maior população do Manto Verde. A bengala se tornou um cajado. Félix sabia, por meio do prefeito de Viços, que os bonóru tinham passagem livre pelos domínios de Magna Aguirre. Quando o ancião se aproximou com seu cajado e deu bom dia, ela respondeu de volta, simpática, mas achou estranho ele estar sozinho. Os bonóru sempre andavam em grupo, mesmo que fosse de duas ou três pessoas. Mas ela deixou isso de lado. Ela gostava de conversar com anciões bonóru. Eles tinham grande conhecimento prático das propriedades de muitas plantas da mata. E ela sempre gostava de aprimorar seus conhecimentos botânicos. Conversaram por alguns minutos. A atitude e o semblante do ancião mostravam a calma de um homem sábio. Porém, em seu interior, a mente de Félix maquinava com certa ansiedade. Vez ou outra, essa ansiedade se tornava visível no comportamento do ancião. O problema era que Magna Aguirre não conseguia raciocinar direito. Ora percebia alguma coisa, para logo esquecer. Ora nada percebia. Afinal, sua memória recente tinha sido apagada. Félix a considerou pronta para a segunda parte de seu plano.

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Ricardo Santos Durante a conversa, enquanto Magna Aguirre falava e o ancião escutava, ela foi surpreendida por uma esfera de fogo elevando-se no ar. Ela jurava que a coisa saíra do cajado. Em seguida, o ancião ergueu o braço, com uma inesperada vitalidade, e atingiu com o cajado o chão lavado pela chuva. Uma onda sonora invadiu os ouvidos de Magna Aguirre. Ela arregalou os olhos e relaxou os braços, deixando cair da mão um punhado de ervas. O ancião largou o cajado, que permaneceu fincado na terra úmida. Sua expressão agora era tensa, decidida. À medida que se aproximava de Magna Aguirre, Félix voltou à sua forma e roupas anteriores. A bengala já estava visível. A esfera de fogo pairava, vibrando. Aprendiz e mestra ficaram cara a cara. Ele plenamente consciente, ela não. Sem demora, Félix colocou as mãos nas têmporas de Magna Aguirre. Ele tinha medo de falhar. Mas sua vontade de vencer era maior. Já fizera aquilo antes. Tanto em mentes fracas como em mentes robustas. O princípio era sempre o mesmo. A chave para conhecer os pensamentos mais profundos de alguém, as memórias mais íntimas, era tornar o doador vulnerável. Nem a Magia, nem a Ciência poderiam, de início, forçar o acesso, com sérios riscos de comprometer a integridade daquilo que se buscava. Primeiro, o doador precisava estar em desvantagem. Fosse um homem em certo estado de embriaguez, ou uma mulher num ambiente hostil de trabalho, ou um menino temendo pela vida de sua melhor amiga, ou uma mulher calejada se comportando quase como uma criança boba. Então a esfera de fogo faria o resto. De repente, todo o corpo de Félix estremeceu. As mãos, coladas à cabeça de Magna Aguirre, os braços e todo o resto se tornaram receptores de um contínuo fluxo de energia, com sua potência aumentando mais e mais, até acabar num ápice atordoante. Félix se desprendeu da mulher e recuou alguns passos. Estava enfraquecido. A poderosa mente da antiga mestra exigira muito dele.

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Magna Aguirre continuava de pé, ainda sob o efeito da onda sonora. À medida que recuperava os sentidos, Félix pôde perceber que sua mente estava povoada de novas ideias, imagens e lembranças. Mesmo cansado, ele sorriu. Agora sabia tantas coisas desconhecidas a respeito da Flor de Fênix, inclusive onde ela estava. Mas a satisfação logo deu lugar à frustração, e em seguida, à fúria. A informação surgiu sem esforço: a velha colocara na Flor um mecanismo para mantê-la segura. Em último caso, se caísse em mãos indesejadas, ela se autodestruiria, incendiando-se, virando cinzas. Havia uma única maneira de alguém possuí-la. Um membro da família que a protegia deveria dá-la de coração. O possesso Félix virou-se para a estática Magna Aguirre. Ele estava em dúvida do que faria com ela. Matá-la? Ou fazer coisa pior? Então veio a ideia de deixá-la em transe, sob o efeito da esfera de fogo e da bengala cravada na terra, e ir até a casa, para destruir a Bolha. Tudo que restasse lá dentro, em pedaços ou ainda inteiro, ficaria perdido em algum outro universo. A casa ficaria vazia. Em seguida, ele voltaria ao encontro dela para colocar as mãos em suas têmporas mais uma vez, e distorcer sua mente em definitivo. Ela esqueceria para sempre sua verdadeira identidade. Tornaria-se outra pessoa. Não seria nem mesmo a sombra da antiga mestra, da hibridista notável. Passaria o resto de sua vida como uma mera curandeira.

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M iseravel! /

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aline girou a maçaneta da porta da sala. Não estava trancada. Abriu-a com cuidado. Lá dentro, havia uma boa luz para um final de tarde e o ar estava fresco. As janelas laterais estavam abertas. Kaline conferiu o relógio antigo e circular, embutido numa peça de madeira, em cima da estante. Os ponteiros marcavam cinco e três. O maior medo de Kaline era de que Lottar estivesse no Jardim. Ela desamarrou o avental da cintura e o jogou no chão. Em outros tempos, sua ansiedade se transformaria numa queimação no estômago. Mas agora ela era uma vampira. O que tinha perdido em sensibilidade corporal, ganhara em intensidade de sentimentos. Ela não tinha mais sede ou fome como as outras pessoas, não sofria dores nas costas ou nas pernas. Por outro lado, a força de sua raiva ou de seu amor se tornara além do razoável. Em parte, a culpa era dos efeitos da Poção Inibidora. No final da tarde, Kaline sempre chegava em casa e ia ao Quarto das Poções para pegar em seu estoque um frasquinho com o líquido rubro. Era nessa hora que a urgência em tomar a Poção Inibidora se tornava maior. Era um período de transição. O dia estava prestes a terminar e a noite prestes a surgir. Suas habilidades vampirescas começavam a aflorar, pediam para que fossem libertadas, para fazerem o que sabiam melhor: caçar seres de sangue quente; especialmente, humanos. Kaline logo pensava em Lottar. O humano mais ao seu alcance. Por isso, apressava-se para tomar a terceira dose do dia da Poção Inibidora. Kaline voltou a se concentrar no ambiente ao redor. A vantagem de precisar de uma nova dose da Poção Inibidora, de ainda não tê-la bebido, era que seus sentidos estavam aguçados, funcionando cada vez melhor. Ela avançou pelo corredor vazio, sem pressa. Não existia nenhum problema. Ela não ouvia qualquer som estranho ou cheiros inusitados nos outros cômodos. A porta de cada um estava aberta. Onde estavam Lottar, Victor e Pogo? Não era admissível que estivessem no Jardim! De repente, Kaline sentiu uma presença às suas costas. Esse era um velho truque praticado por um Especial.

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Caso ela se virasse, poderia se deparar com alguém, ou não. Ou, ao voltar-se para frente, poderia ter uma surpresa desagradável. Ela não tinha muitas opções. Virar-se ou não virar-se tinha sua carga de perigo. Ela precisava decidir rápido. Moveu-se com sua velocidade de vampira para o fundo do corredor, fechou a porta do seu quarto e virou-se para trás. Então veio o espanto. Victor estava do outro lado do corredor, de pé, apoiando-se numa bengala. E que expressão irônica era aquela? Ela nunca vira o marido com um sorriso tão malicioso. Isso sem falar nas roupas e acessórios. O colete fechado, a gravata com um nó perfeito, o paletó e a calça bem cortados, as botas de couro lustrosas. Foi aí que ela logo entendeu. O espanto deu lugar à raiva. Kaline endureceu o rosto. “Onde está meu marido?”, perguntou ela, decidida. “Não faço ideia.” Ouvir a voz de Victor sem a personalidade dele abalou Kaline. “Mas eu sei onde está seu filho.” Kaline fechou os olhos e apertou os lábios. Logo em seguida, seus olhos estavam completamente escuros e os caninos salientes. “Se eu fosse você, saia correndo para o Jardim”, continuou o Estranho. A cabeça de Kaline explodiu em especulações sobre o estado de Lottar. Ela também estava louca para saber mais sobre os mistérios relacionados àquele Estranho, que a enganou descaradamente. Quer dizer que todo o amor dele, quando Kaline revelou na cama que se tornara uma vampira, era pura farsa! Mas agora não tinha tempo para isso. Só Lottar importava. “Você veio atrás da Flor, não é verdade?”, perguntou ela. O Estranho sorriu. “Eu poderia ser um veterano de guerra frustrado em busca de um acerto de contas com seu marido traidor.” “Não. Você não parece ser um soldado nem um oficial. Você é um civil. Talvez um político.”

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Ricardo Santos “Eu poderia falar mais sobre mim, mas acho melhor não. Para sua própria segurança.” “Meu filho está vivo ou morto?” “Já disse, mulher! Ele te espera lá no Jardim para ser salvo.” “E por que eu acreditaria nisso?” “Não importa se acredita ou não. Apenas vá ao Jardim.” “E deixar você escapar?” O Estranho gargalhou. “Eu já estava de saída mesmo. Além do mais, você não tem como me deter, vampira.” “Quer dizer que conseguiu o que pretendia.” “Sim. Ela está comigo.” Para espanto de Kaline, só agora ela percebeu as alças de uma mochila de couro presas aos ombros do Estranho. “E por que eu deixaria você levá-la?” O Estranho endureceu o semblante. “Não se meta em meu caminho. Apenas vá salvar Lottar.” “No fundo, você sabe que eu não tenho muita escolha. Eu nunca me perdoaria se deixasse o assassino do meu filho ir embora tão facilmente.” O Estranho respirou fundo. “Esta conversa está ficando irritante.” Num ágil movimento do braço, ele levantou a bengala para batê-la com vontade no chão. Kaline teve de pensar rápido. “Ole zo granus”, disse ela, colocando os braços estirados à frente do corpo, com as palmas para baixo, e logo os abrindo com toda a força. Sem demora, o piso sob o Estranho rachou e cedeu, fazendo um buraco fundo suficiente para engoli-lo. Ele desequilibrou-se, gritou e sumiu. Uma nuvem de poeira se elevou e tomou o corredor e os cômodos. Kaline apertou os olhos completamente escuros. Não conseguia enxergar direito, mesmo com sua visão apurada. As janelas laterais estavam abertas, mas era difícil a nuvem se dissipar. Kaline não havia terminado. “Dilium trovam.” Suas palavras foram seguidas pelo movimento dos braços erguidos e distantes um do outro, as palmas da mão em paralelo, até que tudo foi baixado em direção à barriga da feiticeira.

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Pedaços das paredes e do teto ao redor do buraco ruíram. A intenção de Kaline não era matar o sujeito. Apenas aprisionálo, enquanto ela conferia se Lottar estava de fato no Jardim, vivo. Uma preocupação séria era com a estrutura da casa. Ela não queria que o resto do teto e das paredes caísse sobre sua cabeça. A ação de fechar o buraco só piorou a condição do ar. O ambiente ficou mais turvo. Kaline precisava sair dali o quanto antes. Então o chão trepidou. E no momento seguinte, houve uma explosão de poeira e pedras. Kaline apenas fechou os olhos para protegê-los dos fragmentos, já que o impacto da explosão não conseguiu derrubá-la. Ela ouviu o urro do Estranho, mas não o viu sair do buraco, agora na forma de Félix, em um impulso alto suficiente para, na descida, bater sua bengala com toda a fúria no chão. A massa de energia foi de tal magnitude que a casa inteira encheu-se de rachaduras e os pedaços começaram a deslocar-se numa explosão muito maior. Desta vez, Kaline foi jogada para trás com tanta violência que a ela apenas restou abandonar o corpo, sem qualquer vontade própria, olhos fechados, cabeça erguida, braços e pernas largados no ar.

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or. Tontura. Vento frio no rosto. Lottar sentia tudo isso, ao mesmo tempo que se agarrava como podia ao pelo do lobo de luz. Ele estava montado nas costas do animal. Era um pelo longo, mais fácil de envolver entre os dedos fechados. Mas Lottar tinha dificuldade em manter-se firme, sofrendo com os solavancos provocados pela corrida da fera. O pelo dourado também provocava em sua pele uma coceira estranha, parecendo choquezinhos elétricos. Como fora parar ali em cima? Um minuto antes, ele tentava chegar à fronteira do Jardim, sem coragem de olhar para trás, para ver qual era sua chance de êxito, a que distância se encontrava das aracnofilas, da fera. Até que o lobo o alcançou. E num só golpe, tinha abocanhado sua camisa por trás, levantando-o a certa altura, deixando que aterrissasse em suas costas. “Agarre meu pelo”, dissera o lobo, em sua voz rouca e mandona. Lottar o fez mais por instinto, por autopreservação, do que por obediência. Agora o menino sentia a base do pescoço arder. Ele não tinha como verificar o motivo. Suas mãos estavam bem ocupadas, segurando o pelo dourado. Não tinha como ter certeza de que, ao abocanhar sua camisa, o lobo arranhara sua pele, causando um ferimento superficial. Mas essa era a suspeita dele. Era tão difícil de acreditar que aquela fera era Pogo, o pequenino cabeça de nabo. Lottar queria muito sobreviver também para ouvir explicações. O lobo de luz dava tudo de si, ainda com o peso extra, para salvar a sanidade de ambos. As aracnofilas avançavam cada vez mais furiosas e barulhentas. O corpo negro e magro de Lottar, subindo e descendo, retesado, estava no limite de sua resistência. No calor do desespero, o menino ainda teve cabeça para pensar na mãe. Observou a imagem turva da casa adiante, a nuvem de poeira se expandindo, em busca de alguma novidade. Fora do Jardim era quase noite. A pouca iluminação vinha das luzes dos vizinhos e de dois postes na rua. O barulho das aracnofilas impedia de ouvir qualquer coisa vinda de lá. Lottar esboçou um sorriso nervoso. A fronteira do Jardim estava perto.

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De repente, algumas aracnofilas menores, na dianteira, saltaram no ar, deixando a maioria para trás. Um Lottar boquiaberto torceu o pescoço e as viu passar por cima de sua cabeça. E o lobo de luz as viu pousarem no gramado, atrapalhando a fuga. “Droga!”, berrou o lobo. Então teve de parar de correr, freando com tudo. O corpo de Lottar foi projetado para frente. O susto foi grande. O grito alto. A queda dolorosa. Sofrendo com as dores pelo corpo, ainda no chão, Lottar reuniu forças e permaneceu atento, olhando para lá e para cá, avaliando o cerco, a aproximação das aracnofilas. Ele não queria morrer tão jovem, foi o único pensamento que conseguiu formular. Fechou os olhos, de medo. O lobo de luz não tinha como lançar outra onda dourada para atordoar aquelas pestes. Estava fraco, seu pelo menos luminoso. Mesmo mantendo o rosnado e a expressão de fúria, também sentiu que era o fim. Quando o batalhão de aracnofilas estava a poucos metros de alcançá-los, deu-se uma grande explosão na casa. O batalhão ficou tão confuso que parou de avançar. Do outro lado, as aracnofilas menores estavam encolhidas, praticamente imóveis. Lottar e o lobo de luz olharam na mesma direção. O menino viu, na imagem turva, a casa em que crescera transformada em destroços voadores. Destroços que atravessaram a fronteira do Jardim. Pedaços de parede de vários tamanhos, telhas quebradas e grandes lascas de madeira se aproximaram numa velocidade assustadora. Ainda sentado, Lottar recuou o corpo com braços e pernas, arrastando a bunda no chão. O lobo de luz se preparou para saltar para o lado a qualquer momento. Então tudo caiu na grama e começou a quicar. A maioria do entulho ficou pelo caminho, chegando até Lottar e o lobo de luz os fragmentos mais leves. O susto do menino logo deu lugar ao espanto. A maioria das aracnofilas menores estava morta ou ferida, atingida pelos pedaços de parede mais robustos. Lottar ainda viu

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Ricardo Santos três ou quatro delas correrem para dentro da vegetação, entre arbustos e flores. Lottar aproveitou a oportunidade. “Pogo!” O lobo de luz se virou para encará-lo com um misto de surpresa e fúria. O próprio Lottar reconheceu que o grito fora desnecessário. A fera estava tão próxima dele. Mas a adrenalina corria em suas veias. “Vamos embora”, completou, levantando-se do chão. O lobo de luz ficou bastante satisfeito com a determinação do menino. Quase sorriu. A fera dobrou as patas para facilitar a subida de Lottar em suas costas. Enquanto acelerava o passo, Lottar notou que o batalhão de aracnofilas estava pronto para continuar a investida. Montou em Pogo com certa dificuldade, sentindo a coceirinha elétrica provocada pela pelagem dourada. Pogo partiu com tudo. Lottar estava apreensivo não só por causa das aracnofilas. Ele não tinha visto apenas pedaços da casa voando para todos os lados. Ele também tinha visto alguém ser arremessado para longe. Não deu para ver direito quem era por causa da imagem turva. Ele não queria acreditar que o corpo jogado na faixa de terra fosse de sua mãe. Que ela podia estar morta! “Mais rápido, Pogo!” Lottar segurava o pelo dourado com mais vigor, sem ligar muito para os choquezinhos elétricos pinicando sua pele negra, as palmas das mãos, as solas dos pés. Pogo o atendeu. Com suas forças renovadas, o pelo dourado mais intenso, correr mais rápido se tornou possível. Lottar olhou para trás. As aracnofilas ainda eram uma ameaça, avançando furiosas e barulhentas. A beleza luminosa das flores, folhas e insetos ao redor não tinha nenhum apelo, nenhuma importância para Lottar naquela hora. Faltavam poucos metros. Lottar não estava exatamente aliviado. Ele não sabia direito o que encontraria ao atravessar a fronteira do Jardim.

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Então ele percebeu uma movimentação na imagem turva. A pessoa que estava deitada na faixa de terra se levantava lentamente, pondo-se sentada. E para alegria de Lottar, ele logo viu que se tratava da mãe. Ele reconhecera o cabelo volumoso e crespo. Mas, no instante seguinte, o sorriso de Lottar se desfez. Alguém surgiu de dentro da nuvem de poeira, onde antes havia a casa. Só podia ser o Impostor. Para piorar as coisas, Lottar ouviu chiados tão medonhos, tão próximos, que o obrigou a olhar para trás. Três ou quatro aracnofilas menores cortavam o ar prestes a dar o bote. “Pogo!” O lobo de luz virou rapidamente a cabeça para confirmar o perigo. “Segure firme”, disse a voz rouca. Sem demora, a fera jogou o corpo para o lado, pouco antes de as aracnofilas aterrissarem no local onde os dois estavam. Lottar sentiu um calafrio na espinha com a manobra. Pensou que fosse cair. Em seguida, virou-se para conferir o destino das aracnofilas. As malditas ficaram lá atrás, paradas e confusas, apenas o suficiente para serem atropeladas e esmagadas pelo batalhão de irmãs. A fronteira estava tão perto. De repente, Pogo começou a desacelerar a corrida, mostrandose cansado. O pelo dourado perdeu intensidade. Lottar arregalou os olhos. O que estava acontecendo? “Não, não, não, não...”, lamentou o menino, quase choroso. O lobo de luz avançava, numa velocidade nada satisfatória. “Pogo, o que houve?! Pogo!” Lottar puxava o pelo dourado como se fosse rédeas, numa tentativa desesperada de reanimar a fera. Mas era um esforço inútil. O pelo dourado ficou ainda menos luminoso. Lottar virou-se para trás. O batalhão de aracnofilas se aproximava, alucinado. Por intuição, Lottar baixou a cabeça. Para seu espanto, entendeu o que se passara com Pogo. Uma aracnofila menor, toda feita de arbusto, num tom verde esmaecido, escalava a coxa do lobo de luz. Agora ela queria tocar em Lottar.

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Ricardo Santos O menino gritou. Pogo, disperso, não lhe deu atenção. Ofegante, tentava correr mais rápido. Lottar estava nervoso demais para lembrar de qualquer feitiço para livrar-se da aracnofila. Não lhe restou outra opção. Sem pensar muito, ele pulou, rolando no gramado. Encheu-se de gemidos e dores. Pogo sentiu a falta do peso extra, de Lottar. Ele freou o corpo, virando-se por completo. O movimento brusco jogou a aracnofila para longe. Só então Pogo olhou para o lado e percebeu a causa de sua debilidade. A aracnofila agora estava lá no chão, de pernas para o ar, agitada e desprotegida. Pogo rosnou de raiva. Correu em direção à aracnofila e deu um salto, esmagando-a com as patas dianteiras. A aracnofila chiou e morreu. Na mesma hora, a confusão na mente de Pogo aumentou. Mas não ao ponto de desligá-lo do que acontecia ao redor. O pelo dourado apagou mais um pouco. Não muito distante, viu Lottar deitado na grama, tentando se levantar. Correu o máximo que pôde para encontrá-lo. O medo provocado pela aproximação das aracnofilas barulhentas fez com que Lottar tentasse esquecer suas dores. Ele queria continuar sua fuga de qualquer maneira. Mas o corpo não o obedecia. Braços e pernas estavam arranhados. Ele sentia uma dor latejante no joelho. Além da ardência na base do pescoço. Levou a mão às costas. Os dedos voltaram com um pouco de sangue. Naquele momento de aflição, teve o pensamento mais improvável. Semanas antes, ele perdera a oportunidade de beijar Beta. Então quer dizer morreria sem nunca ter beijado uma garota? A visão das aracnofilas indo atacá-lo seria sua última imagem na vida, sua última imagem ainda consciente de quem ele era? “Lottar.” O menino ouviu a voz rouca de Pogo. A aparição do lobo de luz ao seu lado o fez abrir um sorriso. Afinal, havia esperança. Mas um detalhe o entristeceu: a luminosidade do pelo dourado estava tão fraquinha.

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“Você ainda pode correr?” “Acho que não. Meu joelho está doendo.” “E quanto a andar rápido?” “Talvez.” “Falta tão pouco para chegar à fronteira do Jardim... Agarra-se ao meu pelo. Tente se levantar.” “Ok.” Sentado na grama, Lottar agarrou com as mãos o pelo da barriga de Pogo, puxando com força. Teve receio de machucar o amigo. Mas sua vontade de ficar de pé superou qualquer prudência. Mal sentiu a coceirinha elétrica. Com dificuldade, ele conseguiu se erguer. “Agora ande rápido até a fronteira, e não olhe para trás.” “Como assim? Você vem comigo, não vem?” “Preciso retardar essas infelizes.” “Não!” “Não há tempo para discutir, garoto. Fui criado por sua avó para proteger sua mãe, quando ela era criança. Agora, você. A qualquer custo. Vá embora!” Os olhos de Lottar ficaram marejados. Mas o pior era que ele se sentia um covarde. Virou-se e começou a andar o mais rápido que o joelho dolorido permitia. Sem despedidas. Passou a mão nos olhos para secá-los. Enquanto caminhava apressado, percebeu que a nuvem de poeira além da imagem turva se expandira de tal forma que não dava para ver nada. Pensou na mãe. No que o Impostor podia fazer com ela. Talvez estivesse ferida, sem condições de se proteger. Lottar respirou fundo para não desistir, não desabar na grama. Dores, gente querida em perigo, risco de morte. Era muito para suportar. Ah, como queria que seu pai estivesse ali com ele... De repente, ouviu o rugido de Pogo às suas costas, como um grito de guerra. Lottar parou e se virou para trás, justo no momento em que Pogo terminava um salto, mergulhando em meio às aracnofilas. Lottar sentiu um aperto no peito. As aracnofilas não avançaram mais. Preferiram encobrir o corpo do lobo de luz numa disputa ferrenha por espaço. O estômago vazio de Lottar revirou. A bile subiu e desceu pela garganta.

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Ricardo Santos Até que ele se obrigou a abandonar aquele horror. Precisava seguir adiante. Em respeito ao sacrifício de Pogo. Então se virou para continuar sua caminhada às pressas. Mas a surpresa à sua frente o obrigou a ficar parado. Kaline estava dentro do Jardim, de pé, encarando-o, séria. Mas, para Lottar, não importava a cara fechada da mãe. Ele sorriu assim mesmo. Ela estava ao seu alcance e num estado melhor do que imaginava. Kaline foi ao encontro de Lottar, num passo urgente e duro. Por sua vez, Lottar apressou-se, puxando a perna, sentindo dor. A expressão de felicidade dele se desfez quando percebeu, ao fundo, o Impostor saindo de dentro da nuvem de poeira, atravessando a fronteira do Jardim, muito tranquilo. Estava com uma roupa diferente e segurava uma bengala. “Mãe, é ele!”, gritou Lottar, segurando o passo. Kaline não parou, não se virou para trás, não disse uma palavra, inabalável em sua marcha até o filho. Parecia que não tinha ouvido o alerta. Ou que não dava a mínima. Lottar se espantou com a indiferença da mãe. Tinha certeza de que ela sabia muito bem do que se tratava. Finalmente ela chegou até Lottar. “Mas, mãe, a gente precisa...” “Espero que algum dia você me perdoe.” Lottar ficou em silêncio, sem entender nada. Kaline fechou os olhos. Quando os abriu, estavam completamente escuros. Em seguida, surgiram os caninos salientes, ameaçadores. Lottar tentou se afastar, mas já era tarde. Kaline se abaixou, numa velocidade sobre-humana, cravando os caninos salientes no pescoço do filho.

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aline queria se sentir culpada, com ódio de si mesma. Mas ela não podia evitar. Era mais forte do que sua consciência. Na verdade, ela nunca tinha se sentido tão bem. Era a primeira vez que provava sangue humano. O efeito do sangue de Lottar correndo pelo corpo dela deu-se rapidamente. O melhor revigorante que alguém poderia conseguir. Ela não entendia direito como a coisa funcionava. Nunca procurou entender realmente. Considerava sua condição de vampira como algum tipo de magia. E por ser uma feiticeira, sabia muito bem que nenhuma magia precisava ser explicada. Só precisava acontecer. A confusão em sua mente, gerada pela explosão da casa, pela queda na faixa de terra, ia embora tão rápido quanto tinha surgido. Uma euforia a dominava. A vontade era de beber todo aquele sangue até a última gota e depois procurar por mais. Até que um fiapo de consciência a atacou. A presa era seu filho, mulher! Kaline se afastou dele tão apavorada que o deixou cair no chão com tudo. Ele ficou deitado lá, de olhos fechados, imóvel. Ela apertou e abriu os olhos. As pupilas voltaram ao normal e os caninos se retraíram. Pingava sangue do seu queixo. Queria se aproximar de novo para verificar se Lottar estava bem, se estava vivo. Mas teve medo de uma recaída. Ela percebeu que gotas de sangue caíam em sua blusa. Passou o antebraço na boca. O antebraço ficou todo sujo de vermelho. Então Kaline olhou para o lado. O Estranho se aproximava, tranquilo, sorridente. Porém não era mais a cópia de Victor! As roupas eram as mesmas. Assim como a bengala. Mas ele era outra pessoa. Um sujeito de pele clara com um cabelo longo e crespo. Mais longo do que o dela. A calma dele a assustava. Logo em seguida, chiados irritantes a obrigou a olhar para o outro lado. Ela se deu conta do batalhão de aracnofilas, barulhentas e inquietas. Já as tinha visto assim que entrou no Jardim. Mas tivera de decidir qual problema resolver primeiro. Um monte delas continuava empilhado num determinado ponto do Jardim, e o resto disputando espaço.

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Nenhuma aracnofila parecia ligar para a presença de Kaline, Lottar ou do Estranho. Aliás, onde estava Pogo? Kaline voltou-se para Lottar. O filho continuava deitado na grama. Minutos antes, quando ela estava deitada na faixa de terra, ficara sem ação. Sentia-se fraca e confusa. Tinha medo de morrer. Principalmente, tinha medo de nunca mais ver Lottar. No instante seguinte, parou de ter pena de si mesma. Respirou fundo, ergueu o corpo com dificuldade e se sentou na terra. Precisava de uma saída. Virou a cabeça para trás em busca de uma rota de fuga. E para sua surpresa, lá estava Lottar, de pé, de costas para ela, em meio ao jardim malcuidado, sozinho. Primeiro, ela sorriu e quase chorou lágrimas de sangue. Depois, veio um estalo. Ela ficou muito séria. Sabia o que tinha de fazer. Não tinha muito tempo para pensar sobre a terrível consequência. Era a única alternativa para ela e Lottar terem uma chance de sair daquela loucura. Reuniu o que sobrou de suas forças para lançar um feitiço. Ainda sentada no chão, levantou bem alto o braço sujo de terra. Mexeu os lábios, na entonação correta. Ao final, fez um círculo no ar com a ponta dos dedos. A nuvem de poeira abandonou sua expansão dispersa. Começou a se concentrar à sua volta, formando uma camuflagem densa. A própria Kaline não conseguia enxergar direito. Mas sabia para que lado ficava o Jardim. Kaline estava tão arrependida. Ela tinha pensado que podia ganhar todas as apostas: proteger o filho, não deixar a Flor de Fênix cair em mãos erradas e dar uma lição naquele Estranho. Agora ela só queria sair dali com Lottar, vivo e bem. Quer dizer bem, na medida do possível. Ela foi até o menino, ajoelhou-se e colocou a mão sobre seu peito. Sorriu. Ele estava apenas desacordado. O coração se recuperava, voltando ao ritmo normal. Na hora em que se alimentou de seu sangue, Kaline percebera as batidas aceleradas. Sem dúvida, ele tinha sentido a mesma dor lancinante que ela ao ser mordida. “Você matou seu filho?” Era a voz do Estranho às suas costas. Ainda encarando Lottar, uma raiva crescente tomou conta de Kaline. Ela decidiu que não iria atacar o Estranho sem um plano. Precisava manter o foco.

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Ricardo Santos “Ele está vivo.” O Estranho riu. “Quer dizer que ainda posso matá-lo.” Ela se segurou para não escurecer os olhos e fazer surgir os caninos. “E se eu pegasse Lottar e fosse embora?” “Sinto muito. Você já teve sua chance.” Kaline permaneceu em silêncio. Então bolou o melhor plano que as circunstâncias permitiam. “Ignio bam”, disse ela, ao mesmo tempo que virava o corpo agachado para o Estranho e apontava o braço estendido. Um jato de chamas saiu de seus dedos, rasgando a noite. Félix tomou um susto, mas se recuperou rápido, segurando a bengala com as duas mãos, em posição horizontal, à altura da barriga. O jato de chamas não chegou até ele. Foi bloqueado por um escudo invisível. Mantendo o braço estendido, os dedos lançando as chamas, Kaline se levantou e terminou de virar o corpo. Seu rosto era uma máscara dura, com olhos injetados. A expressão de Félix era de resistência, de fúria. As chamas começaram a se espalhar em torno dele, envolvendo o escudo invisível, formando uma enorme esfera de fogo, deixando o Jardim mais iluminado. A grama ao redor começou a queimar, a gerar fumaça. Félix sentiu o interior da esfera ficar meio abafado, mas a temperatura não se elevou tanto. Quando Kaline pressentiu que a esfera estava completamente tomada pelas chamas, fez um tremendo esforço com o braço estendido, jogando-o para o lado, como um arremesso. O jato de chamas dobrou, tornou-se um arco. A enorme esfera de fogo foi puxada, deslocou-se da grama e ganhou o ar, deixando para trás pequenos focos de incêndio. Parecia um corpo celeste. A esfera de fogo estava indo em direção às aracnofilas. Em seguida, o jato de chamas cessou e Kaline arriou não só o braço, mas todo o corpo, ficando de joelhos na grama. O seu cansaço não era físico, e sim mental. No ar, deslocando-se pesadamente, a esfera de fogo começou a se desfazer. Para horror de Félix, que gritou de raiva e soltou palavrões, as mãos tensas segurando a bengala na horizontal,

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tentando manter o escudo invisível. Até que ele caiu entre as aracnofilas. Mesmo cansada, Kaline riu com a cena. Era a primeira que vez lançara aquele feitiço. Além do mais, ela teve de improvisar com o surgimento do escudo. Mas sua satisfação durou pouco. Ela sabia que ainda não tinha terminado. Levantou-se. Dentro da esfera invisível, Félix atingiu o solo com força, esmagando as aracnofilas que encontrou pelo caminho, obrigando as restantes a se espalhar, enquanto a esfera rolava. Na verdade, não havia nenhuma esfera, nenhum contorno, reflexo ou distorção ótica, e sim o corpo de Félix girando, os braços à frente, segurando a bengala. Ele tinha dificuldade em se equilibrar no interior do escudo invisível. O mundo não parava de dar voltas. O fato de ser noite o deixava mais confuso. E também estava difícil respirar. Kaline acompanhou a queda da esfera e a dispersão das aracnofilas. E para seu espanto, ela pôde ver o que tinha por baixo do monte daquelas criaturas, acumulado numa parte da grama. Era o corpo de uma fera, deitado de lado, imóvel. Estava morta? Não era possível. As aracnofilas perturbavam a mente de quem elas tocassem. Não matavam nada nem ninguém. Foi isso o que sua mãe sempre dissera... Ela também dissera que Pogo... Ah, não!... “Pogo!” A esfera invisível parou de rolar. Félix não estava mais girando, nem de ponta cabeça, nem tonto. Precisou manter a bengala na posição horizontal o tempo todo. Recuperadas do ataque da esfera, as aracnofilas começaram a se aproximar de Félix, barulhentas e furiosas. Ele desativou o escudo invisível rápido suficiente para conseguir bater a bengala no chão, mesmo desorientado. A onda de energia se expandiu, jogando todas as aracnofilas para o alto e para trás, para longe dele. O ar ficou poluído de partículas de grama e de terra. O efeito da onda fez o corpo de Pogo rolar alguns metros no chão. A fera despertou, mole. Ela levantou o pescoço, mexeu a cabeça. A chuva de aracnofilas, batendo em seu corpo, a obrigou a tentar ficar de quatro patas, até conseguir.

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Ricardo Santos Seu pelo estava completamente apagado. A luminosidade da vegetação permitia ver agora um pelo castanho em duas tonalidades. Quando a onda chegou até Kaline, estava fraca demais para surtir qualquer efeito. O que mais chamou sua atenção, usando sua visão apurada para ver a distancia, à noite, foram os olhos perdidos da fera. Aracnofilas caíam, e ela era tão lenta em sua tentativa de escapar de cada golpe. Num primeiro instante, Kaline pensou em salvar Pogo. Mas, em seguida, racionou com mais clareza. A segurança de Lottar era sua prioridade. Pogo não conseguiu mais se sustentar em quatros patas, e caiu com tudo na grama. Para logo depois ser coberto por aracnofilas desorientadas ou mortas. Com um aperto não em seu coração, e sim na mente, Kaline sabia que estava na hora de pegar Lottar e fugir dali. Mas, antes, ela precisava ajudar Pogo. Não poderia cuidar dele. Então deveria terminar com seu tormento. Kaline levantou a mão, à altura da barriga, com a palma para cima, como se segurasse uma bola de bom tamanho. “Ignio aros”, disse ela. Um acúmulo disforme de chamas azuis surgiu em sua mão. Sem demora, Kaline lançou as chamas para o alto, em direção a Pogo. O acúmulo disforme atravessou o ar da noite, deixando um curto rastro luminoso. As chamas azuis atingiram o corpo de Pogo coberto pelas aracnofilas, consumindo tudo em segundos. Nenhuma aracnofila chiou nem Pogo urrou de dor. Kaline se sentiu um monstro. Então ela percebeu o Estranho a encarando, sério. Ela também o encarou, menos confiante. Em seguida, foi até Lottar, abaixou-se e carregou o menino nos braços. Ele permanecia desacordado. Mas agora gemia. Kaline sabia o que estava para acontecer. Ela tentava andar depressa, usando sua força de vampira, para fora do Jardim. Minutos antes, Félix estava com um joelho no chão, a cabeça baixa e os olhos fechados. Segurava o topo da bengala, cravada

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na terra, como um cavaleiro de conto de fadas, prestes a receber alguma graça de um rei ou rainha. Estava se sentindo melhor. As chamas azuis consumindo o corpo de Pogo o despertaram de algum transe. Quando ele abriu os olhos e levantou o rosto, acompanhou as últimas chamas se extinguirem. As aracnofilas ao seu redor estavam mortas, ou de patas para cima, ou fugindo para dentro da vegetação luminosa. Os focos de incêndio na grama tinham se apagado espontaneamente. Nada disso interessava a Félix. Ele viu Kaline fugir com Lottar nos braços, a cabeça e as pernas do menino pendendo no ar, atravessando a semiescuridão. A expressão de Félix se tornou mais dura. Ele ficou de pé, num instante. Rosnou e se pôs a correr no caminho aberto, entre as aracnofilas mortas ou vulneráveis. Com sua audição sobre-humana, Kaline ouviu o rosnado e a correria do Estranho. Olhou para trás, seguindo seu rumo. Ela tinha certeza de que o infeliz lançaria um feitiço poderoso a qualquer momento. Voltou-se para frente. A fronteira do Jardim estava próxima. Então ela teve de mudar seu plano, improvisar mais uma vez. Os gemidos de Lottar começavam a ficar tão intensos que seu corpo tremia. Kaline conhecia bem aquele processo. Lottar estava se transformando num vampiro. Mesmo sem ver com nitidez, Kaline percebeu pela imagem turva que a nuvem de poeira praticamente se fora. Que a única coisa que tinha ficado em pé na casa era o Quarto das Poções, uma enorme esfera terrosa. E que três pessoas estavam na faixa de terra, paradas, olhando para dentro do Jardim! Kaline ficou apreensiva. Quem seriam aquelas figuras? Mais encrenca? Ela não mudaria o plano de novo. Os três estranhos não poderiam ser piores adversários do que o infeliz que claramente queria acabar com ela e Lottar. Ela esperava que não fossem piores... Com Lottar nos braços, atravessou a fronteira do Jardim. Fechou os olhos, por causa do vento soprado em seu rosto. Tinha um feitiço na ponta da língua para qualquer emergência.

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Ricardo Santos Quando abriu os olhos, antes de qualquer intenção em largar Lottar com tudo na faixa de terra para defender ambos com o feitiço, ela riu, aliviada, ao constatar que eram apenas seus vizinhos, curiosos e assustados. Kaline não suportava aquela gente, mas estava tão feliz em vê-los. O ar estava poluído com partículas de poeira. A iluminação vinha das casas vizinhas com seus muros altos, de um lado e de outro, de dois postes na rua, e da lua cheia. Não era grande coisa. “O que está acontecendo aqui?”, perguntou um homem alto e careca, conhecido como seu Vicente. Sua família morava na casa ao lado; eles eram Normais. Assim como os outros dois vizinhos. Um segurava uma lanterna e o outro um martelo. Dois idiotas que Kaline nem lembrava os nomes. “Não tenho tempo para explicar nada agora”, respondeu ela, abaixando-se e colocando Lottar no chão, com cuidado. A tremedeira e os gemidos dele ficavam cada vez mais fortes. “Mas como não tem tempo? Meu terreno está coberto por pedaços de sua casa. Meu telhado está cheio de buracos. Minha esposa quase foi atingida na cozinha por um pedaço de parede... Eu telefonei para a Guarda, isso sim.” Ainda agachada, Kaline lançou um olhar de fúria. E se aproximou do homem tão rápido que ele nem a viu chegar. Agora os dois estavam cara a cara. Os olhos de Kaline completamente escuros. Os caninos salientes. “Aliás, caro vizinho, o senhor vai me fazer um favor.” Seu Vicente balançou a cabeça, confirmando, muito solícito, muito nervoso. Os outros dois vizinhos, mais atrás, mal se mexiam. “O senhor vai levar o meu filho até o seguinte endereço: número quatro, da rua do Bosque Amarelo. Uma amiga mora lá. Chama-se Priscila. Ela vai cuidar dele... Agora repita para mim o endereço, por favor.” O homem hesitou, fechou os olhos, consultou a memória e repetiu o que Kaline queria ouvir. “Ótimo. Agora meu filho é responsabilidade sua. Leve-o para a casa da minha amiga logo. Se mais tarde eu não encontrá-lo lá, eu vou matar toda sua família. E nenhuma Guarda vai me impedir. Ande, homem, vamos!” Kaline se afastou, abrindo caminho. Os olhos continuaram escuros. Os caninos expostos. Seu Vicente entendeu o recado.

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Às pressas, foi até Lottar. Teve dificuldade para carregá-lo no colo. O menino se debatia muito. Kaline deu uma última olhada no filho. Colocou a mão em sua cabeça inquieta. “Diga a minha amiga que fui obrigada a mordê-lo. Os detalhes contarei depois”, disse ela, sem olhar para seu Vicente. Ele apenas ouviu, tenso. De súbito, Kaline deu as costas a todos. Antes de entrar no Jardim, ela pôde ouvir um dos vizinhos mais ao fundo reclamar baixinho com o outro: “Está vendo? Eu disse. A gente devia ter esperado a Guarda”.

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uando Kaline voltou ao Jardim, estava em sua plena forma de vampira. A vampira ajudando à feiticeira. E determinada a morrer por Lottar se fosse preciso. A sensação de que o filho estava seguro a fortalecia. Era uma segurança frágil. Afinal, ela não sabia se de fato seu Vicente cumpriria sua ordem. Mas era o que ela tinha para se apegar. Depois do vento no rosto na fronteira, assim que abriu os olhos, Kaline viu o Estranho parado a certa distância, como se estivesse à sua espera. As aracnofilas que sobraram, distantes, mortas, não representavam nenhuma ameaça. Imediatamente, criou-se um dilema. Segurar o passo ou continuar correndo? Ela precisava tomar cuidado, mas também estava cheia daquilo tudo. Queria que aquele horror acabasse de uma vez. Então ela decidiu. O que poderia parecer imprudência, na verdade, era a opção mais racional, porque exigia mais foco. Ela continuou, acelerando o passo, usando sua agilidade de vampira para confundir a mente do Estranho e ganhar terreno numa rapidez incomum. À medida que se aproximava, aproveitando a luminosidade da lua cheia e da vegetação colorida e acesa, Kaline tentava usar sua visão apurada para perceber as nuances no semblante do Estranho. Ela estava temerosa. O infeliz não iria atacar ou se defender? O que ele estava tramando? A expressão dele não era de desânimo, muito pelo contrário. E quando chegasse realmente perto dele, o que ela faria? Iria matá-lo? Os questionamentos acabaram quando o Estranho levantou a bengala bem alto. Era óbvio o que vinha a seguir. Ainda correndo, Kaline levou o braço à frente do corpo, a palma da mão virada para cima e os dedos fechados. Sem demora, os abriu. A bengala estava prestes a atingir a grama quando surgiu um pequeno buraco, engolindo metade do cabo castanho. Félix tomou um susto, desequilibrou-se, apoiou-se com o joelho na grama. A zona de sombra no nível do solo tornou tudo mais dramático. Ele logo percebeu que a bengala estava em perigo. Puxou-a para cima, desesperado.

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A bengala quase escapou de sua mão, quase se perdeu naquele buraco infame. Kaline desperdiçou a oportunidade de prender, talvez de partir, o cabo da bengala se fechasse a mão, se fechasse o buraco a tempo. Ela se distraiu porque percebeu que o feitiço tinha sido lançado sem que precisasse dizer nenhuma palavra. Sua magia obedecera à força do pensamento. Ela lamentou muito pela oportunidade perdida de colocar Félix em desvantagem. Mas também estava feliz por finalmente conseguir dar o primeiro passo para se tornar uma feiticeira experimentada, uma mestra. Mesmo desajeitado, Félix procurou se levantar logo. Antes do feitiço de Kaline, por trás de sua malícia calculada, ele se mostrava cheio de si, conseguindo acompanhar os movimentos ágeis dela, mesmo naquela luz insuficiente. Agora ele estava mais tenso, atrasando-se em perceber onde ela despontava a cada avanço. De repente, Félix girou o corpo, levantou a bengala e virou as costas para Kaline. Ela ficou surpresa, mas repetiu o feitiço sem demora. Outro buraco estreito e profundo surgiu na grama. Kaline percebeu que desta vez a bengala tinha descido pouco. O desequilíbrio do Estranho foi mínimo. Ele continuava de pé. Félix virou-se novamente. Não queria perder Kaline de vista. Teve dificuldade para localizá-la, olhando para lá e para cá. Mas, enfim, conseguiu acompanhar sua corrida. Kaline considerava aquela uma vitória importante. Ela ainda tinha energia para abrir mais alguns buracos na grama até se aproximar. A ideia do feitiço era essa. Algo eficiente que não a esgotasse ao ponto de colocá-la numa situação difícil, sem forças para reagir quando chegasse perto. Ver o rosto contrariado do Estranho a satisfez tanto. Mas, no momento seguinte, o prazer acabou. Félix colocou o braço livre à frente do corpo, com a palma da mão virada para baixo. Em seguida, girou a mão e levantou o braço acima da cabeça. Na mesma hora, um pedaço do chão por onde Kaline passava se desprendeu com violência. O susto foi grande, mas ela conseguiu pular para o lado, meio desajeitada, e continuar correndo.

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Ricardo Santos Kaline deu uma olhada para trás para conferir a trajetória do monte de terra. O troço parecia uma mesinha de centro deformada. O pedaço do chão subiu a certa altura para cair próximo ao buraco que se abrira. Quando ela voltou a prestar atenção no Estranho, ele estava prendendo a bengala nas costas. Agora ele teria as duas mãos livres. Félix deu um sorriso de canto de boca. Mesmo com sua visão apurada, Kaline não percebeu isso. Ele começou a levantar as mãos, com a palma para cima, sempre uma de cada vez. À medida que Kaline corria, pedaços de grama e terra eram arrancados do chão e iam às alturas. Kaline fazia um grande esforço para usar seus sentidos apurados e sua agilidade de vampira, desviando-se dos pedaços do chão jogados para o alto. E assim foi duas, três, quatro, cinco vezes... Ela também tinha que tomar cuidado quando a terra caía com tudo do céu. A maioria dos pedaços despencava para trás ou para o lado, mas dois deles caíram bem na sua frente, obrigando-a a um esforço adicional. E justamente após desviar-se de um pedaço do chão caindo quase em sua cabeça, ela pisou na grama, a terra tremeu, uma parte desprendeu-se e ganhou o ar, levando-a junto. Kaline gritou, mas nada de frio na barriga. Ela sentiu uma vertigem. Ao atingir alguns metros de altura, ela e o pedaço do chão se separaram. Em seguida, ascenderam, viraram ao contrário e começaram a descer. Kaline viu o céu estrelado girar, assim como o Jardim luminoso. Durante a queda, logo percebeu que cairia em meio a flores e arbustos. Ela não sofria as consequências físicas do seu corpo sendo sacudido, mas a desorientação era um problema. Sua cabeça estava pesada. Ela sabia que não morreria do impacto contra o solo. Afinal, era uma vampira. Para tanto, era preciso que enfiassem uma estaca de madeira em seu coração, ou cortassem sua cabeça, ou destruíssem completamente seu corpo.

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A queda quebraria muitos ossos, provavelmente abriria seu crânio. Kaline ficaria totalmente paralisada, a mercê do Estranho, já que demoraria a se regenerar por completo. De ponta cabeça, caindo velozmente, com o queixo erguido, olhando para a flora luminosa, Kaline se esforçou para se concentrar, para deixar a confusão em sua cabeça em segundo plano. Então ela cruzou os braços junto ao pescoço, para depois abri-los o máximo possível. Também desta vez o feitiço não precisou ser enunciado. Flores de vários tamanhos lá embaixo misturavam tons luminosos em branco e amarelo com outras cores aveludadas e igualmente luminosas, como púrpura e carmim. As flores começaram a se mexer, como se tivessem vontade própria. Seus caules ficaram mais longos, permitindo que se agrupassem, formando um amplo manto, reforçado por arbustos que se expandiram em segundos. Kaline não tinha certeza se aquilo iria realmente funcionar. Mas ela não podia fazer mais nada. Não tinha conhecimentos de magia para algo mais garantido. O pedaço de chão caía não muito distante dela. Kaline fechou os olhos. Tudo poderia acabar ali. A derrota final. Ela pensou em Lottar. Seu corpo atingiu o manto de flores. Ela abriu logo os olhos. Sua intenção era mexer os braços, tocar a cabeça para verificar se estava tudo bem. As pétalas luminosas e coloridas bailando no ar, com o céu estrelado ao fundo, a distraíram. Então as pétalas se apagaram. Kaline estava meio enterrada entre os arbustos. Viu os arranhões fresquinhos nos braços desaparecerem. De repente, uma onda de energia a atingiu com tudo. Arbustos e flores foram arrancados do chão. Pétalas luminosas com as já apagadas se agitaram no ar. Kaline foi jogada alguns metros para o lado. Seu corpo não se elevou tanto. Com sua agilidade de vampira, ela conseguiu cair de pé. O ar nortuno ficou poluído de pétalas agora todas esmaecidas, partículas de terra e pedacinhos de raízes. Agora um trecho irregular de terra nua separava uma Kaline alerta de um Félix cheio de si. Um fitava o outro. Félix, irônico. Kaline, com cara de poucos amigos.

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Ricardo Santos Deu-se um momento de silêncio, apenas quebrado pelo barulho regular de algumas cigarras-de-fogo. O canto delas era como o crepitar de uma boa fogueira. Num movimento ágil, Kaline abriu os braços, com as mãos abertas, para depois cruzá-las em frente ao rosto. Félix parou de sorrir. E apertou com força a esfera de prata da bengala, apoiada no chão. Estava pronto para qualquer investida. Em velocidade, dois longos braços de planta saíram entre arbustos e flores, um de cada lado. Envolveram-se nos pulsos de Félix, forçando-os. A bengala caiu na terra. Foi aí que, tão veloz como os anteriores, um terceiro braço de planta avançou para agarrar a bengala e a puxou para tirá-la do alcance de Félix. Ele lançou um olhar de fúria para Kaline. Em seguida, fechou os olhos, levantou a cabeça e estufou o peito. Não demorou muito, os três braços de planta começaram a apodrecer. O verde escuro se tornou cor de palha. Os braços secaram e partiram, os pedaços caíram no chão. Assim como a bengala. Kaline não acreditou no que acabara de ver. Félix baixou a cabeça e relaxou os braços. Quando abriu os olhos, sua expressão irônica estava de volta. Sem perder tempo, esticou a mão aberta, em direção à bengala, não muito distante. A bengala tremeu e desprendeu-se da terra. Atravessou o ar. Félix a agarrou pelo meio do cabo. A decepção de Kaline ficou estampada em seu rosto. Mas não ao ponto de desanimá-la por completo. No instante seguinte, ela percebeu outra oportunidade. Algo tão inesperado que era difícil de acreditar. Aquilo saindo da bota do miserável era a pontinha do cabo de uma faca? Kaline não parava de olhar para a bota de cano longo sobre a calça de tecido fino. A falta de uma melhor iluminação era compensada por sua visão apurada de vampira. E pela curta distância entre os dois. Talvez fosse sua última chance de dar um basta àquele terror, de sair do Jardim inteira, para enfim encontrar-se com Lottar. Precisava agir antes que o miserável usasse a bengala novamente. À altura da barriga, ela girou a mão como se estivesse abrindo a maçaneta arredondada de uma porta. Em seguida, puxou a

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maçaneta para cima, em diagonal. A bota de Félix sacudiu. A única reação dele foi olhar para baixo. A lâmina lutou e lutou até rasgar a bota e sair rodopiando, atingindo o ombro de Félix. Por pouco não acertou seu rosto. Ele gemeu. Com a mão livre, tocou na adaga, virando a cabeça para verificar o estrago. Para Kaline, aquilo continuou sendo uma faca de caça ou coisa do tipo. Kaline estava tão concentrada no desenrolar de seu plano, tão focada na figura do Estranho, pensando no que faria a seguir. Por isso, ela demorou para perceber a chegada de Lottar! Ele estava atrás do Estranho, a poucos metros. O menino estava de pé, imóvel, com os olhos completamente escuros, fixos no adversário. A boca suja de sangue. O desvio de atenção de Kaline deixou Félix curioso. Mesmo não se sentindo bem, ele se virou, com dificuldade. Mal terminou de completar a meia-volta, Lottar já estava em cima dele. Lottar deu um grito de ameaça, mostrando os caninos salientes. Félix deu um grito de espanto, mostrando os dentes perfeitos. Lottar prendeu as pernas na cintura de Félix e cravou os caninos em seu pescoço. Félix deu outro grito. Agora de uma dor profunda. Ele largou a bengala no chão. Kaline assistia a tudo sem saber direito o que fazer. Enquanto Lottar se mantinha grudado a Félix, a pele do pescoço deste e sua roupa começaram a ganhar um tom cinza. A mancha se espalhava rápido. Kaline resolveu intervir. Aquilo não podia continuar. Félix não gritava mais, porém seu corpo se contorcia, estava perdendo o equilíbrio. Então ele reuniu o resto de suas forças, levantou o braço e tocou em Lottar. O menino levou algum tipo de choque de magia, jogando-o no chão, não muito distante. Kaline corria, pensando em atacar Félix, mas optou por socorrer o filho. Ela passou por Félix e foi até Lottar. O menino estava sentado na grama, meio curvado, a cabeça baixa, zonzo.

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Ricardo Santos Kaline se agachou. “Lott...”, disse ela, segurando a cabeça dele. Os olhos de Kaline tinham voltado ao normal. Os caninos tinham se retraído. Lottar se virou para encará-la, cheio de fúria nos olhos completamente escuros e nos caninos salientes. Pela primeira vez, Kaline sentia-se na pele do filho quando ela o ameaçava com sua sanha de vampira. “O que eu fiz com você, Lott?...” Ela queria tanto ver novamente os olhinhos de jabuticaba de Lottar. Mas ele parecia estar embriagado com sua condição de vampiro. Parecia ser difícil para ele se desvencilhar da vontade animalesca de beber sangue, de se render aos instintos mais primitivos. Kaline sentiu algo estranho. Virou-se para trás. Ela não fazia ideia como o Estranho conseguia se manter de pé. E com a faca na mão ensanguentada! Do ferimento, escorria sangue. O cheiro do sangue perturbava Kaline e deixava Lottar inquieto. “Seus infelizes. Vocês não podem me destruir. Quanta audácia!” Félix tentou uma gargalhada, mas vieram duas tosses. O rosto estava molhado de suor. O cabelo longo e crespo desalinhado. Ele não parecia estar nada bem. A mancha cinza tinha tomado quase todo o pescoço e boa parte do tórax, e estava prestes a subir pelo rosto e descer pela barriga. Félix parecia estar ciente desse avanço. Ele não conferia com os olhos ou com a mão livre as partes do corpo comprometidas. Estava enfraquecido, não em pânico. Mais uma vez, Félix fechou os olhos, ergueu a cabeça e estufou o peito. Ele começou a tremer e suar ainda mais, como se fizesse um enorme esforço. Então Kaline assistiu à mancha cinza parar seu avanço, regredir, e deslocar-se toda para o braço que segurava a faca. Agora apenas o braço estava cinza. Félix abriu os olhos, normalizou a cabeça e respirou fundo. Recuperava o fôlego com os olhos vidrados, voltados para frente, acima de Kaline e Lottar. Kaline pensou no pior. Que Félix estava de alguma maneira revigorando-se.

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Mas, no instante seguinte, o braço cinza desprendeu-se do corpo dele. Félix urrou de dor. Foi um grito mais profundo do que quando Lottar o mordera. Uma parte do braço se tornou poeira escura, levada pelo vento noturno. Outra parte caiu em pedaços no chão, junto com a adaga, intacta. Félix virou a cabeça para onde antes havia o braço. Não saía sangue de lá. O ombro parecia calcinado. A ferida provocada pela adaga estava estancada. A mochila ainda continuava em suas costas. Uma das alças escurecida, como se agora fizesse parte do ombro atingido. Lottar fez menção de se levantar, de partir para cima do Impostor. Kaline o segurou com força. “Lottar!” O menino vampiro virou-se para ela, inquieto, chateado. “Não”, disse ela, balançando a cabeça. Mãe e filho encararam um ao outro. Ele, furioso. Ela, triste. Até que ele parou de mostrar os caninos salientes, e o rosto relaxou. “Estou com fome”, disse Lottar, para logo se aninhar ao peito da mãe. Ela não sabia se chorava ou sorria. Em seguida, lembrou-se da existência do Estranho. Félix mal conseguia se manter de pé. Kaline ainda poderia acabar com ele? Agora seria muito mais fácil? Ela o olhou bem nos olhos. Eram olhos enfraquecidos, mas longe de ser dignos de pena. O mundo estaria menos insano se aquele homem estivesse morto. Mas a verdade era que Kaline estava cansada de tanta coisa. Estava cansada de enfrentá-lo, de esperar por Victor, do desprezo das pessoas, de resguardar a Flor de Fênix, de viver na Nova Câmbria. Kaline afastou Lottar do seu peito para que os dois se levantassem. O menino continuava transformado em vampiro. Ela disse algo para ele. Em seguida, fechou os olhos. Quando os abriu, estavam completamente escuros. Os caninos voltaram a crescer. Kaline e Lottar correram, numa agilidade desconcertante, a fim de deixar o Jardim para trás.

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ottar passou pela fronteira do Jardim. O vento soprou em seus olhos completamente escuros. Ele sabia o que estava à sua espera e da mãe. Já os notara ainda dentro do Jardim, mesmo com a imagem turva e a luminosidade mais fraca, onde estava a casa em ruínas. Deparou-se com quatro guardas, em seus uniformes vermelhos com detalhes pretos, e capacetes presos ao queixo, igualmente vermelhos. Apontavam, segurando com as duas mãos, armas de atordoamento. Mais conhecidas como bacamartes. Eram espingardas de um só cano. Tecnologia hibridista não letal. “Parados aí!”, gritou o guarda mais à frente. Lottar e Kaline estavam lado a lado. Era visível que os guardas estavam incomodados pelo fato de encararem duas pessoas negras, dois vampiros de olhos completamente escuros e caninos salientes. Além dos mais, suas bocas estavam sujas de sangue. Lottar estava até surpreso. Por que ainda não atiraram? Kaline virou a cabeça para ele. Um olhou para o outro. Lottar sabia que ambos tinham de sair dali o mais rápido possível. Voltar para o Jardim não era uma opção. Lottar ficou tentado a olhar para trás para ver como estava o Impostor. Ele e Kaline teriam de improvisar. Ele sabia que a mãe começaria o ataque e ele tinha apenas que acompanhá-la. O problema era que a mãe estava enfraquecida pela batalha contra o Impostor. E ele ainda estava se acostumando com o fato de agora ser um vampiro. Não queria pensar muito a respeito para não entrar em pânico. Não ficar travado, sem ação. Sua cabeça doía. O fato de enxergar demais, mesmo à noite, ouvir com tanta nitidez e sentir os cheiros de forma tão acentuada o deixava mais irritado. “Quero você o tempo todo junto de mim”, disse Kaline, baixinho, já observando os guardas. Lottar não se virou para encará-la. Ele entendeu o recado, mas não sabia exatamente o que a mãe pretendia. Ficou em alerta. Sentiu medo. Era comum que membros da Guarda, responsáveis pela ordem, fossem Normais. E membros da Polícia, responsáveis em investigar crimes, fossem Especiais. Questões da administração pública que Kaline nunca dera a mínima. Dividir as duas forças de segurança dessa maneira era algo idiota ou eficiente? Para ela, não importava.

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Kaline aproveitou que sua mão, junto à coxa, estava coberta por uma sombra. Virou a palma para cima, apertou o rosto e mexeu os dedos. Pequenos pedaços de parede atrás dos guardas tremeram no solo, e logo depois voaram velozmente contra a enorme esfera terrosa que era a superfície do Quarto das Poções. O barulho fez com que os quatro guardas se virassem na mesma direção. Dois deles atiraram. De cada um dos bacamartes, chamas verdes se expandiram. E uma carga luminosa, lembrando um cometa, num verde mais intenso, saiu do cano largo e espalhou-se em parte da superfície da enorme esfera terrosa. Ali, mais chamas verdes se apagaram, restando uma espécie de gelatina transparente, rígida, em duas áreas distintas. Quando os guardas se distraíram, Kaline agiu, e Lottar a acompanhou logo atrás. Ela correu até o guarda mais próximo. Cruzou as mãos em frente ao peito, depois abriu um pouco os braços. Um buraco surgiu no chão e engoliu a perna do guarda até o joelho. Ele se desequilibrou, apontando seu bacamarte para o alto. Kaline usou sua agilidade de vampira para chegar até o guarda, agachar-se, colar às suas costas, segurar o braço que estava com o bacamarte, e mirar no segundo guarda mais próximo. Ela usou sua força sobre-humana para manter o bacamarte firme sem usar as duas mãos. E atirou, esmagando o dedo do guarda que também estava no gatilho. Ele gritou de dor. O segundo guarda mais próximo não foi rápido suficiente para revidar, sendo atingido pela carga luminosa em chamas verdes. Todo o seu corpo ficou coberto pela gelatina transparente rígida. Ficou parecendo uma bizarra estátua de gelo. O terceiro guarda mais próximo tinha plenas condições de acertar o guarda dominado e, por consequência, Kaline. Mas Lottar saiu de trás da mãe, balançou os braços e lançou as mãos abertas para o terceiro guarda. “Fic!”, completou o menino. O terceiro guarda arregalou os olhos, respirou fundo e caiu paralisado para frente. Kaline aproveitou a hesitação do quarto guarda, o mais distante, para abandonar o guarda dominado, que agora gemia. Ele tinha de se preocupar com seu dedo indicador esmagado e manter-

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Ricardo Santos se ereto com o apoio da perna dobrada, para evitar que a perna presa na terra quebrasse. O bacamarte caiu no chão. Kaline ficou de pé, novamente cruzou as mãos em frente ao peito, e abriu os braços, desta vez num movimento mais amplo. Surgiu um buraco bem embaixo do quarto guarda, suficiente para engoli-lo por inteiro. Ele foi obrigado a largar seu bacamarte e se segurar nas bordas do buraco. Do lado de fora, restaram os braços, parte do tórax e a cabeça, com seu rosto em pânico. O primeiro guarda ficou claramente revoltado com a incompetência de seus colegas. Soltou palavrões para os outros três, mas apenas o que tinha quase todo o corpo dentro do buraco podia ouvi-lo. Este não disse nada, mas, pela expressão de fúria, não estava gostando da reprimenda. O primeiro guarda se calou e voltou a gemer, apertando a mão com o dedo esmagado. Kaline o encarou com seus olhos completamente escuros. Lottar seguiu a mãe. O primeiro guarda não se abalou com o olhar duro de Kaline, na iluminação fraca. Mas apenas por uns alguns segundos. Até que ele baixou olhos, voltando sua atenção à mão ferida. Talvez pensasse que não era nada inteligente desafiar um Especial com aquela vantagem toda. Kaline continuou concentrada nele, vendo-o sofrer. “Lott, o que aconteceu com seu Vicente?”, perguntou Kaline, sem tirar os olhos do guarda. Lottar virou-se para a mãe. “Eu o mordi. Não consegui me segurar. Eu estava com tanta fome.” “O erro foi meu. Parece que, com gente mais jovem, a transformação é mais rápida. Eu não estava pensando direito na hora.” “Mas eu não o matei. Quando percebi o que estava fazendo, liberei ele. Foi aí que reconheci seu Vicente. Também reconheci os outros dois vizinhos. Então virei para trás e vi que você estava em perigo. Entrei no Jardim. Eu vi os dois vizinhos carregarem seu Vicente e o levarem.” “Agora seu Vicente é um problema deles... Vamos embora.” Kaline se virou para o filho. “Mas o Impostor...”, disse Lottar.

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O menino observou o jardim, a vegetação descuidada e praticamente às escuras. Ele não tinha como ter certeza se o Impostor ainda estava ali, mesmo com sua nova visão tão apurada. “Lottar!”, gritou Kaline. O menino virou-se para a mãe. “Isso não importa mais. Vamos”, ela disse, procurando se acalmar. Lottar ficou contrariado. “Para onde a gente vai?” “A casa de sua tia Priscila.” “E nossas coisas? As plantas do Jardim, o Quarto das Poções?” “Não temos tempo para nada disso agora. Vamos!” Lottar já estava cheio de ficar contrariado.

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Lottar abriu os olhos, assustado. Estava escuro. Porém ele conseguia enxergar, com seus olhos normais. Era mais uma penumbra. Havia uma fonte de luz fraca lateral. Era o primeiro minuto da noite. Lottar não precisava de relógio para saber disso. Ele olhava para um teto que não era familiar. Sentia um formigamento em todo o seu corpo. Sentia também uma fome danada. Fome por sangue. Levantou-se, ficou sentado. Então percebeu que estava numa cama de solteiro desconhecida, num quarto desconhecido. De quem seria aquela casa? Como fora parar ali? A porta do quarto estava entreaberta, quase fechada. A fonte de luz vinha do outro lado da porta. A única janela do quarto estava coberta por uma grossa cortina de pano, tão colada à parede. Numa observação mais atenta, Lottar percebeu que alguém tinha prendido a cortina na parede com pregos. O menino não sentia calor nem frio. Estava apenas de short. Só agora pôde perceber que seus braços e pernas não possuíam mais nenhum arranhão. Ouviu um zumbido que o irritou, fazendo-o fechar os olhos e apertar o rosto. Quando abriu os olhos novamente, conseguiu ver um besouro voando no canto do quarto. Num instante, o besouro era uma coisinha comum, apagada, sem nenhum mistério. No instante seguinte, o besouro ampliou-se na visão de Lottar. A pouca luz dispersa do ambiente pareceu ganhar vida. Concentrou-se no inseto. Agora era possível captar detalhes de sua carapaça, lembrando uma casca de manga brilhosa. Quase ao mesmo tempo, o cheiro da madeira úmida e velha das toras que sustentavam o teto atacou suas narinas. O menino pensou que fosse espirrar. Alarme falso. De qualquer maneira, o cheiro era desagradável. O besouro não podia ser mais ouvido ou visto. O formigamento continuava em sua pele. Lottar também podia ouvir claramente vozes atrás da porta quase fechada. Voltou-se para a conversa em andamento. Mas sua atenção ficou dividida com o incômodo na pele e a fome crescente.

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“Essa é a melhor chance que vocês têm.” Era a voz de um homem. Lottar não a reconheceu. “Na verdade, essa é nossa única chance.” Lottar ficou surpreso e feliz ao ouvir a voz da mãe. O homem continuou: “Posso levá-los até o porto de Danah.” “Mas como a gente vai fazer para fugir da Guarda, da Polícia?” “Vamos evitar as estradas. Seguiremos pelo mato. Não será menos perigoso, mas com certeza não enfrentaremos Porco nenhum.” Porco era como muitos criminosos chamavam aos homens da Lei. O que estava acontecendo? Lottar achava muito estranho que sua mãe estivesse de papo com um criminoso. Pior, pedindo ajuda. Ele ficou em dúvida se permanecia onde estava ou se ia até Kaline. A fome apertou seu estômago de um jeito que o fez encolher o corpo. A mão encostou no peito, o pressionou. Ele percebeu que o peito estava vazio. Seu coração não batia. Mas como dava para sentir fome, e cheirar, e ver e ouvir e sentir a pele com tanta precisão se seu coração havia parado? Então isso era ser um vampiro... Pelo comportamento da mãe, pelos altos e baixos de seu temperamento, depois que fora mordida, Lottar sempre se perguntou como o corpo dela funcionava. Tudo bem que ele procurou se informar no começo. Ele fora atrás de livros sobre vampiros na Biblioteca Central de Balicam. E a própria Kaline tinha matado algumas de suas curiosidades. Certas perguntas a deixaram constrangida... De repente, o homem e Kaline pararam de falar. Lottar ouviu os passos de alguém se aproximando da porta do quarto. Ele não sabia se continuaria sentado na cama ou se voltaria a deitar, fingindo que dormia. A fome não o deixava em paz. Assim como o formigamento na pele. O som dos passos cessou. Lottar percebeu a sombra de alguém atrás da porta.

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Ricardo Santos Era a mãe. Ele conseguia sentir sua presença. Assustou-se com essa habilidade. Ela abriu devagar a porta quase fechada. A luminosidade do outro cômodo invadiu o quarto. Lottar permaneceu sentado na cama. Percebeu que o cômodo iluminado era uma sala de estar. Percebeu também algo que o animou. Kaline carregava na mão um grande copo de vidro com um líquido escuro. Sangue! Mas ele sentiu um cheiro diferente. Não era o mesmo cheiro do sangue de seu Vicente ou do Impostor. Era um aroma mais intenso, menos agradável. Sangue de algum animal. “Lott”, disse Kaline, o mais gentil possível. Ela fechou a porta. O breu dominou o quarto. Mãe e filho não precisavam de luz para enxergar um ao outro. Tudo agora para eles estava em preto e branco. Kaline se aproximou e sentou na cama, ao lado de Lottar. O cheiro do sangue atacou as narinas dele como nunca. “Estou com fome, mãe.” “Beba isso.” Kaline entregou-lhe o copo de vidro. Ele o pegou no meio do caminho, com certa avidez. A vontade de se transformar foi incontrolável. Quando virou o copo, segurando-o com as duas mãos, os caninos salientes atrapalharam um pouco o sangue de chegar à boca. Kaline percebeu dois filetes de sangue descendo pelo queixo do filho. Os olhos de Lottar estavam completamente escuros, fixos no teto. O copo ficou vazio rápido, todo sujo de sangue. Lottar arriou o copo e a cabeça. O formigamento na pele diminuiu. O gosto daquele sangue não era muito bom. Mas ele ainda estava com fome. “Quero mais.” Os olhos completamente escuros de Lottar encaravam as pupilas dilatadas de Kaline.

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Lottar estava sentado numa cadeira, no canto da sala, devidamente vestido e calçado. Ele observava. Com uma mochila de pano entre os pés. Ela continha alguns utensílios para a viagem. Duas mudas de roupa, um par de chinelos, um par de tênis, um sabonete e uma toalha de banho; vampiros também precisam limpar as impurezas acumuladas sobre a pele e o cabelo, e debaixo das unhas. Havia também oito frasquinhos de vidro, oito doses da Poção Inibidora. À exceção dos fraquinhos, todo o resto fora gentileza de Bosco. Lottar nunca foi com a cara dele. O cabelo longo e loiro e o rosto de anjo não o enganavam. Afinal, não fazia tanto tempo, o cara queria tomar a mãe dele de seu pai. Tudo bem que Bosco, a mãe e tia Priscila eram amigos desde a juventude. Tudo bem que ele estava tentando ajudar. Mas não importava. Ele era um criminoso. E seu pai era alguém muito mais legal. Era um homem bom. Depois que seu pai tinha partido para a guerra, Bosco apareceu em sua casa, algumas vezes, todo prestativo. Mas a insistência dele não deu certo. Então o cara sumiu. Lottar nunca mais sequer ouviu falar do sujeito. Lottar acompanhava a movimentação de sua mãe e tia Priscila, arrumando as mochilas delas. Tia Priscila iria com eles. Ela meio que não tinha escolha. Muita gente sabia que ela era a melhor amiga da mãe. Era questão de tempo até que as autoridades os procurassem em sua casa. Ela teve de ir com eles. Se ficasse, corria o sério risco de ser presa, torturada, ser obrigada a falar e depois condenada à morte, acusada como cúmplice de criminosos, dentre outros delitos. Bosco estava ausente. Pela segunda vez naquele dia. Mais cedo, tinha levado quase toda a tarde fora. E agora à noite, prometera que não ia demorar. Assim que ele chegasse, todos partiriam. O plano era de Bosco levá-los até o porto de Danah, numa região afastada de Balicam. Depois Lottar, Kaline e Priscila pegariam um barco clandestino com partida para a Lamúria, a ilha estrangeira mais próxima da Nova Câmbria. Os dois governos eram inimigos. Se eles conseguissem embarcar e passassem pela guarda costeira da Nova Câmbria, estariam salvos. Pelo menos, os perigos de então ficariam para trás. Isso se Bosco não os traísse.

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Ricardo Santos Lottar tinha chegado a captar com sua audição apurada um comentário baixinho de tia Priscila a esse respeito. Sua mãe respondera que, apesar do risco, procurar Bosco era a melhor alternativa para sair daquela situação. Além do mais, ele passara no primeiro teste, quando retornou à tarde com boas notícias. Porém todo cuidado era pouco. Bosco era um Normal. E um velho amigo. Mas também era alguém com certa reputação no submundo. Ele não deixaria que nada o prejudicasse nesse sentido. Ele não tinha procurado problemas com as autoridades. Os problemas que bateram à sua porta. Além do mais, ele sempre tentava tirar algum proveito de qualquer situação, segundo sua mãe. Por isso, Kaline tinha dito a Priscila para que ficassem preparadas para qualquer surpresa, com poções e feitiços. Kaline tinha decidido que ela e Lottar não tomariam a Poção Inibidora naquela noite. Eles precisariam de todas as suas habilidades de vampiro para a fuga. Tomariam a Poção apenas quando necessário. Mesmo que isso perturbasse o temperamento de Kaline, causando certa crise de abstinência. Na noite anterior, eles tinham chegado à casa de Priscila, depois de toda a confusão com o Impostor e os guardas. Suas mentes estavam exaustas. E a fome por sangue era absurda. Priscila os recebeu, toda espantada. Ela cuidou deles. Mãe e filho tomaram banho e trocaram de roupa. Priscila encontrou em seu armário uma camisa e um short limpos para Lottar. Kaline explicou rapidamente o ocorrido à amiga. A fome de Lottar era tanta que ele pensou em atacar a própria tia. Teve medo de, em alguma hora, não conseguir mais se conter. Ainda sem assimilar direito o que estava acontecendo, Priscila teve de tomar uma decisão definitiva. Partiria com Kaline e Lottar. Deixaria tudo para trás. As amigas pegaram na despensa todos os ingredientes e materiais necessários para preparar doses da Poção Inibidora. Não havia estoque para muitas doses. Era uma reserva que Kaline deixara ali por precaução, como aprendera com a mãe. A partir de certo momento, ainda na casa de Priscila, a cabeça de Lottar começou a não funcionar direito. A fome insuportável prejudicava sua memória recente, sua percepção da realidade. Os fatos passaram a dar saltos no tempo.

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Muitas horas depois, já na casa de Bosco, Lottar não conseguiu se lembrar de muita coisa de sua jornada noturna. Lembrou-se de ter calçado um par de tênis femininos. Da correria dele, da mãe e de tia Priscila tão tarde da noite, em ruas praticamente desertas. A procura pelas sombras dos becos a um maior sinal de ameaça. A invasão a uma pequena granja. O gosto horrível de sangue de galinha. A quantidade de sangue que mal deu para enganar a fome. Mais correria. Mais sombras. Mais silêncio. Até conseguirem chegar ao seu destino. Lottar não se lembrava de ter encontrado Bosco, quando ele os recebeu. Sua última recordação foi a imagem do rosto da mãe. Um semblante de carinho misturado à preocupação. Agora Lottar tinha certeza de que a imagem se deu pouco antes de deitar na cama do quarto de hóspedes, devidamente preparado para acomodá-lo, cerca de duas horas depois de chegarem à casa de Bosco, e minutos antes do dia amanhecer. Um sono mais intenso do que a fome que o atacava venceu a batalha sobre seu corpo, sua mente. Ao final do dia, ele acordou assustado. Em seguida, sua mãe apareceu no quarto com o grande copo de sangue na mão, sangue de carneiro. Ele bebeu e pediu por mais. Porém antes de saciar completamente sua fome, os dois tiveram uma longa conversa a respeito de vários assuntos: a nova condição de Lottar como vampiro; a necessidade de a mãe ter preparado algumas de doses da Poção Inibidora às pressas, naquela mesma madrugada, para ela tomar, e ficar alerta, e poder convencer Bosco a ajudá-los; o plano de fugir para a Lamúria; a esperança de deixar de ser vampiros em terra estrangeira, mas também o fim da vida como mago e feiticeira; o revezamento de turno com tia Priscila para que as duas pudessem descansar um pouco, sem pôr em risco a segurança dos três; o segredo e o sacrifício de Pogo; a sensação de que estavam abandonando Victor; de como a Flor de Fênix fora parar no Jardim, as especulações sobre seus poderes, e o espanto de Lottar por nunca tê-la notado antes; as especulações sobre a real identidade do Impostor e o seu possível destino; que diabos tinha acontecido com o braço dele, por que ficou cinza, se isso tinha a ver com o fato de Lottar ser um devorador de almas; e tudo o que havia no Jardim e no Quarto das Poções que fora abandonado...

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Ricardo Santos Sentado no canto da sala, Lottar se espantou ao se lembrar de Beta. Ele não pôde se despedir da amiga. Estava perdido em seus pensamentos quando percebeu que a mãe e tia Priscila tinham terminado de arrumar suas mochilas. Kaline seguiu casa adentro. Parecia não se importar muito com ele. Priscila ficou um tempo parada, olhando o vazio, com um semblante carregado de preocupação. Depois voltou-se para Lottar. Ele ficou envergonhado por ter sido pego encarando-a. Ele baixou a cabeça. Priscila foi até o sobrinho. Encostou-se na parede, de pé, ao lado da cadeira, com os braços para trás. Agora os dois estavam de cabeça baixa. “Você está pensando em quê, Lott?” “No meu pai.” “Hmm.” “Será que nunca mais vou vê-lo?” “Victor nunca vai desistir de vocês.” “Ele nunca vai encontrar a gente.” “Seu pai é um cara bem esperto.” “Nem sei se ele está vivo. Nem sei se ele ainda gosta de mim.” Priscila se calou. Não sabia o que responder. De repente, ambos foram surpreendidos por baques na grossa porta de madeira da sala. Três baques curtos, dois longos, dois curtos. Era o código que Bosco estipulara como senha para ele entrar. Lottar e Priscila ficaram encarando a porta, sem reação. Kaline apareceu na sala, indo na direção da porta. Priscila se descolou da parede e soltou os braços. Estava com um feitiço na ponta da língua. Lottar consertou o corpo curvado. Kaline verificou o olho mágico. Depois abriu as quatro travas e a porta. Também estava com um feitiço pronto em seu pensamento. De fato, era Bosco. Sozinho. Kaline fechou a porta e as quatro travas. Em seguida, deu alguns passos para o lado. Todos agora estavam voltados para Bosco. “Está tudo pronto. Vamos sair em dez minutos. Precisamos repassar o plano pela última vez. Principalmente as duas alternativas

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que elaboramos para chegar ao porto. E também o que vamos fazer se encontrarmos qualquer Porco antes de chegarmos à mata.” Bosco puxou uma cadeira da mesa da sala e sentou. Kaline fez o mesmo. Priscila foi a próxima. Um relutante Lottar saiu do canto da sala para se juntar aos outros. Durante a conversa, cada um repetiu sua participação no plano. Até Lottar precisava saber o seu papel de cor. O que não saía da cabeça de Lottar era quanto ouro Bosco tinha ganhado para traí-los. Se tudo desse errado, ele seria o primeiro a subir no pescoço do Cara de Anjo e cravar seus caninos nele. Talvez sua mãe estivesse pensando a mesma coisa. A conversa não demorou muito. Kaline olhou para Lottar. O primeiro olhar terno dela, o primeiro gesto de carinho nas últimas horas. Lottar correspondeu. Ela tentou sorrir. Mas seu sorriso saiu falso, triste. Lottar pôde ver isso tão claramente. “Não se preocupe, mãe. Eu vou cuidar de você”, disse ele. O sorriso de Kaline agora estava mais leve. Pouco tempo depois, todos, Bosco inclusive, pegaram suas mochilas e fugiram pela madrugada.

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aline Gan Amon levantou cedo, adiantou as tarefas de casa, mandou Lottar à escola e foi à vila, onde trabalhava na loja de encantamentos e poções. Outro dia comum. Nesta época do ano, freguês entrar naquele estabelecimento era raro. Com muitas horas extras acumuladas, convenceu o gerente, um troll resmungão chamado Crakafint, a liberá-la mais cedo. Correu ansiosa para casa. Queria trabalhar no jardim. De sua mãe, Kaline quase nada herdara, exceto o gosto por cuidar da terra. O jardim era a parte da casa de que mais gostava. Era o começo de uma manhã. Fazia exatamente cinco anos que começara as primeiras mudas, vasos e canteiros, enquanto seu marido, Victor, costumava observá-la com admiração. Fizeram amor ali mesmo. Sentia muita falta dele. Fazia três anos seu esposo partira para uma daquelas guerras estúpidas lá no Ocidente. E, agora, enquanto o conflito piorava, mais difícil era se comunicar ou conseguir notícias. De um arbusto com folhas prateadas, colheu uma rosa que mudava de cor o tempo todo, iniciando-se num cinza triste e terminando num vermelho exuberante, apenas para recomeçar o ciclo. Iria colocá-la num vaso na sala. Era o tipo de rosa que Victor gostava de trazer para ela, às vezes, quando voltava do trabalho. Havia problemas no jardim. A planta carnívora desenvolvera uma segunda personalidade, a qual era vegetariana, e as duas duelavam entre si, pelo domínio da hospedeira. Dava pena de olhar o vegetal tremendo e gemendo enquanto prosseguia aquela guerra de “eus”. Kaline despejou algumas gotas de uma porção calmante e a planta adormeceu. Resolveria por enquanto, mas talvez fosse preciso chamar um botânico-bruxo, o que não havia na vila, e trazer um de alguma cidade grande poderia custar mais do que o orçamento mensal permitiria… A palmeira-duende revertera à forma humanóide e fugira na noite anterior. Kaline lamentou essa perda. Afinal, aquele tipo de planta era dificílimo de se conseguir. Ao menos, a palmeira havia sido educada o bastante para deixar um bilhete de despedida. Infelizmente, em linguagem de elfo. Coisa difícil de traduzir para língua humana. Também sentia falta de ter com quem conversar. Lottar era ainda criança, e três de suas melhores amigas haviam partido nestes últimos meses. Anami fora devorada por um dragão, enquanto

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pescava no rio do outro lado da colina. Brígida, caçando coelhosfalantes-três-olhos, para um almoço de domingo com a família, acabou topando com o covil de um boitatá. Os parentes daquela desafortunada repartiram as cinzas entre si. E Coralina… Bem, algumas pessoas realmente não têm sorte. Ela voltava do mercado na vila, trazendo na cesta leite, pão e carne, quando passou por uma velha extremamente feia. Não resistiu e disse algo sobre a aparência daquela anciã. Acontece que a idosa era, na verdade, uma cuca (uma daquelas feiticeiras reptilianas que têm preferência por andar disfarçada entre as pessoas). Com um olhar ultrajado e um grunhido, a bruxa transformou Coralina em pedra. Azar terrível! Há tão poucas cucas atualmente e a possibilidade de se encontrar uma é mínima. Ninguém quis acolhê-la naquele estado e Kaline guardou para si a estátua que um dia fora sua amiga (e que serviu como um ótimo enfeite para o jardim). Escutou um ruído atrás dela e virou-se. Era Lottar. Kaline tinha muito orgulho de seu filho, uma criança de nove anos, esperta, adorável, bem comportado, porém, um pouco triste e com a mania de ensimesmar-se. Algo que herdara de Victor. - Por que voltou tão cedo da escola, Lottar? – ela indagou. Ele parecia preocupado. Tirou da bolsa (que a própria Kaline confeccionara a partir de couro de unicórnio, no verão anterior) um pergaminho azulado. - A professora mandou isso pra senhora. Ela abriu e leu o texto. Depois, voltou os olhos para o menino. - Brigando na escola de novo, Lottar?!! Me conta! Ele se retraiu, e depois respondeu com muito ódio na voz: - A culpa foi daquela peste do Heredia!! - Quem é Heredia? – ela indagou. - Heredia é um zumbi, um morto-vivo (mas a professora não quer que a gente chame assim. Diz que é pre-conceito. Ela fala que tem de chamar de re-vivido). Ele ficava mexendo comigo o tempo todo! - Ficava? E o que aconteceu? Não apanhou na escola, não foi? – Kaline questionou, preocupada – Seu pai não ia querer saber que nosso filho voltou para casa apanhado! Lottar sorriu, um risinho muito inocente, o mesmo quando jogou uma fadinha (daquele tipo que não tem mais que um palmo de altura) na fogueira no último inverno.

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Ricardo Santos - Ah, não, mãe! Eu fiz aquele truque que a senhora me ensinou! - E funcionou? – quis saber ela, a intuição de mãe fazendo-a sentir-se orgulhosa dele. - Funcionou! Ele nunca mais vai me provocar. Mas, mãe, zumbis têm um gosto tão horrível!!! Após dizer isso, ele cuspiu três vezes no chão do jardim. - Muito bem – Kaline elogiou. – Olha, quer comer mais alguma coisa? - Quero não, mãe, vou pro quarto. Tô enjoado! - Tá certo. Não se preocupe. É só efeito do Heredia. Deve passar logo. Daqui a pouquinho vou dar uma olhadinha em você. Tô orgulhosa, viu? Amanhã vou falar com sua professora e vai ficar tudo bem. – Lottar abraçou a mãe. Trocaram beijinhos e ele entrou. Ela permaneceu no jardim por um pouco mais de tempo. Esse instante com Lottar trouxe-lhe Victor de volta à memória. Apesar de amá-lo, sempre criticou nele essa obsessão com o “velho mundo”. Se algum dia, este planeta já foi, como contam os anciões, um lugar “normal”, sem magia e completamente diferente de agora; se é verdade que algo provocou “A Grande Mudança”e fez da realidade o que é hoje, tudo isso foi há muito tempo e não importa mais. Victor, porém, ficava atormentado com essas coisas e lamentava o quanto a humanidade já havia mudado para sobreviver. Apesar disso, ele nunca conseguiu resistir a fome e continuava devorando almas. Ela ria do marido: sobrevivência é necessidade. Faz-se o que for preciso. E só. Para que lamúrias e meditações profundas sobre o que é tão simples? O sol continuava a pino. Kaline agradeceu pela poção que usava havia dez anos, a qual lhe permitia ignorar as radiações solares (lembrava de sua irmã mais velha queimando até a morte nas primeiras luzes de uma manhã). Passou a língua pelos dentes caninos. Começavam a coçar e aumentar de tamanho. A fome se aproximando. Antes de ver como estava Lottar, decidiu ir ao porão, onde guardara, devidamente sedado por encantamento, um centauro, que ela capturara domingo passado. Dizia-se que o sangue deles é delicioso. Seria uma ótima refeição.

* Todos os direitos reservados à autora.

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Autores

Ricardo Santos

Ricardo Santos Ricardo Santos é um soteropolitano que adora confundir a cabeça das pessoas com suas mentiras. Curte ficção científica, fantasia e terror porque são os sonhos e os pesadelos que o mantêm acordado. O trabalho do autor pode ser conhecido pelo blog ricardoescreve.wordpress.com.

Rita Maria Félix Rita Maria Félix é pernambucana, escritora, roteirista de quadrinhos, poeta e tradutora por paixão. Autora do e-book de poesia Vejo um Universo em Teus Olhos... Seus contos já foram publicados em revistas no Brasil e no exterior. Divulga seu trabalho pelo blog riteando.wordpress.com.

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Essa obra foi composta no inverno de 2015 com as fontes AR Blanca, Decadentia, Cry Uncial, Calibri, Cambria, Institution, Ring Bearer e ZallmanCaps.

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