Arquitetura, entre arquitetos e comuns

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Arquitetura, entre arquitetos e comuns Ricardo Lopes Stanzani



Arquitetura, entre arquitetos e comuns Ricardo Lopes Stanzani



Taste is not only a part and an index of morality – it is the only morality. Tell me what you like, and I’ll tell you what you are. John Ruskin


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Considerações As pessoas frequentemente sabem se situar numa localidade, embora sejam incapazes de descrever as distâncias ou direções entre as partes diferentes dessa localidade ou entre ela e outras localidades familiares. Nosso conhecimento cotidiano da geografia de nossas ideias é um caso semelhante. Gilbert Ryle Todos possuímos, da poesia, da pintura, da música, etc., uma experiência tal que, se não somos capazes de dizer, fundamentando-nos nela, o que essas coisas são, somos ao menos capazes de reconhecer quando nos dizem que elas são algo que de fato não são. Richard Wollheim Este trabalho situa-se entre um ensaio acadêmico e um texto de escrita pessoal. Aproveitei-me grandemente da liberdade que a FAU concede a seus alunos no desenvolvimento do trabalho final de graduação para propor como produto um texto híbrido, que não tivesse lugar certo dentre as categorias mais comuns de tfgs (artístico, projetivo, teórico, etc.). Entendo que parte disto se deve à natureza de certos temas e ideias sobre os quais pretendi me debruçar, tão específicos que requereram arriscar hipóteses a partir de observações pessoais. Sendo um trabalho de conclusão de curso, tentei entender essa condição como configuradora do próprio trabalho. Não haveria de ser mais um projeto de arquitetura, como inicialmente ambicionado, que dessa forma teria o caráter de comprovação de habilidade projetiva, funcionando como justificativa ao merecimento do diploma. Pareceu mais pertinente a servir como um balanço final do curso, um

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momento para refletir sobre a própria formação e dar vazão a ideias surgidas a respeito da arquitetura que de outro modo permaneceria no âmbito pessoal. Como na citação de Ryle, o que tentei durante este ano foi tatear meu ideário a respeito da arquitetura de modo a mapeá-lo neste trabalho. É inerente a isso que essa “tradução” se dê de forma problemática. Não apenas por – obviamente – não ter ideias coerentes em absoluto, nem tão somente pela própria inabilidade e incultura daquele que escreve, mas também pela insuperável insuficiência das palavras. Feitas essas considerações, constato que obtive algum sucesso ao escrever sobre tais ideias na forma como elas aparecem para mim. 8

O trabalho pode ser resumido como uma justificativa de gosto: escrevo com a intenção de justificar porque gosto de tais arquiteturas e porque não gosto de outras arquiteturas; sobre o que gostaria de construir e sobre o que não construirei; que parâmetros considero ao avaliar e produzir arquitetura. O gosto aqui deve ser compreendido tal como coloca o filósofo britânico Roger Scruton: um tipo de apreciação que é subjetiva e objetiva ao mesmo tempo. Scruton acrescenta ainda que a perspectiva estética é inseparável da perspectiva global de mundo e, portanto, acompanha as convicções morais e religiosas. Sendo assim, ao tratar sobre o que gosto, este trabalho fala sobre o que aprendi do mundo durante meu período na FAU.


Problematização Durante uma de suas aulas o professor Jonas Malaco comentava sobre a escada de um duplex projetado por Niemeyer: “É tão estreita e de curva tão fechada que não é possível subir com um colchão para os quartos”. O comentário me incomodou. Por criticar um arquiteto de que gostava muito na época, mas mais do que isso, por fazer a crítica de um projeto a partir de um fato vulgar. Considerando existir diferenças entre arquitetura e simples construções, entendia que críticas como essa eram mais apropriadas ao segundo tipo, e que quando direcionadas ao do primeiro tipo demonstravam certa ignorância do crítico a respeito do papel e lugar da arquitetura. Minha visão era de que as preocupações e temas da arquitetura estavam muito acima desses problemas cotidianos e que, portanto, assim como os extremos de frio e calor da FAU, nós enquanto habitantes do edifício deveríamos dispor de alguma tolerância; alguma devoção. Deveríamos nos manter completamente passivos perante a arquitetura, a distinção hierárquica entre quem produzia e quem “desfrutava” era clara. Se por acaso algum incômodo na rotina diária causado pela arquitetura fosse consequência de uma atitude aparentemente arbitrária ou impensada do arquiteto, caberia ao próprio habitante considerar sua posição privilegiada e se resignar: que se esforce a compreender as causas em uma outra esfera. A arquitetura tinha tom de dádiva. Por outro lado pululavam dúvidas, pois reconhecia que os “grandes temas” que conformavam a arquitetura, foco de atenção e trabalho por parte dos arquitetos, nem sempre eram compreensíveis ou legíveis a quem vivenciava de fato a arquitetura. E então, apesar de não ter feito nenhuma consideração muito

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distante de certas abordagens a respeito da etiqueta requerida da audiência perante arquitetos e artistas em geral, a verdade era que começava a parecer que a posição privilegiada dos usuários, tal como entendia, era vista pelos arquitetos como uma posição menor, quase prescindível. Isso foi se esclarecendo com o progredir das disciplinas de projeto, na discrepância entre discurso e prática e entre prática e recepção. As divergências entre as prioridades dos arquitetos e as dos usuários pareciam cada vez mais gritantes à medida que começava a entender o habitar como questão central da arquitetura. A partir disso a relação desbalanceada entre arquiteto e público pareceu estar invertida. 10

Em uma outra aula o professor Jonas a perspectiva realmente se inverteu: segundo seu relato, em uma visita à residência Butantã do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, enquanto esta ainda era sua própria morada, ele se surpreendera ao ver uma barraca de acampar instalada no quarto do arquiteto. O usuário coincidia com o autor da obra, o que potencializava o absurdo da situação. O arquiteto admitia a contragosto a inabitabilidade de sua própria obra. Ficou evidente que existia uma grande assimetria no entendimento entre arquiteto e habitante sobre o que é e o que deveria proporcionar a arquitetura. Em um primeiro momento pareceu pertinente imaginar um entendimento comum apropriado. Um segundo passo seria imaginar se essa busca por uma relação menos hierarquizada entre arquiteto e público caracterizaria alguma linguagem de arquitetura específica, ou se ao menos delinearia preceitos de desenho.


O significado comum da arquitetura A partida da questão deve seguir à clarificação do que relaciona arquiteto e usuário e qual é a expectativa entre as duas partes. A respeito disso o combativo arquiteto italiano Giorgio Grassi explicita sua concepção de arquitetura de forma elementar (mas não tão inocente) ao afirmar que: Estamos falando sobre obra, sobre matéria concreta – não sobre ideias, imagens fantásticas, ou assuntos polêmicos. A casa Schrörder e a Villa Savoye estão lá; elas não são manifestos ou modelos ideais – elas são “casas”, projetadas para serem usadas; elas estão conectadas com a vida cotidiana. E mesmo aquilo que ainda não foi construído mas que continua apenas em projeto deve ser imaginado nos termos de sua completude, já que essa é a única raison d’être da Arquitetura. (GRASSI, 1998, p. 391, tradução do autor) Apesar de o senso comum relacionar diretamente arquitetura a uma obra concreta, é frequente que esse entendimento não coincida com as acepções do termo por parte dos arquitetos. A declaração de Grassi revela uma posição essencialmente anti-idealista não somente em relação à arquitetura per se, mas em relação às palavras e à linguagem em geral. Seu simplismo ilustra certo desinteresse em buscar um sentido erudito, pretensamente mais verdadeiro, do que seria a arquitetura. Richard Rorty, filósofo da tradição pragmatista norte-americana, pode ajuda a esclarecer tal posição anti-idealista: A história positivista da cultura vê a linguagem como algo que se molda gradativamente em volta dos contornos do mundo físico. A história romântica da cultura a vê como algo que aos poucos leva o Espírito à consciência de si. A

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história nietzschiana da cultura, assim como a filosofia davidsoniana da linguagem, vê a linguagem como hoje vemos a evolução: como novas formas de vida que liquidam constantemente as formas antigas - não para cumprir um propósito superior, mas às cegas. Enquanto o positivista vê Galileu como alguém que faz uma descoberta - que finalmente descobre as palavras de que se necessitava para enquadrar adequadamente o mundo, palavras que teriam faltado a Aristóteles , o davidsoniano o vê como alguém que esbarrou num instrumento que por acaso funcionou melhor, para alguns fins, do que qualquer instrumento anterior. Depois de descobrir o que era possível fazer com um vocabulário galileano, ninguém mais se interessou muito por as coisas que costumavam ser feitas (e que os tomistas julgavam que deviam continuar a ser feitas) com um vocabulário aristotélico. (RORTY, 2007 p. 51) E mais a frente: Abandonar a ideia das línguas como representações e ser rigorosamente wittgensteinianos em nossa abordagem da linguagem equivaleria a desdivinizar o mundo. Somente se o fizermos poderemos aceitar em sua plenitude a tese que apresentei antes - a tese de que, já que a verdade é uma propriedade das frases, já que a existência das frases depende de vocabulários e já que os vocabulários são feitos por seres humanos, o mesmo se dá com as verdades. Enquanto acharmos que “o mundo” designa algo que devemos respeitar e enfrentar, algo semelhante a uma pessoa, no sentido de ter uma descrição predileta de si mesmo, insistiremos em que qualquer descrição filosófica da verdade salve a “intuição” de que a verdade está “aí”. Essa intuição equivale ao vago sentimento de que seria arrogância de nossa parte


abandonar a linguagem tradicional do “respeito aos fatos” e da “objetividade” - de que seria arriscado e blasfemo não ver o cientista (ou o filósofo, ou o poeta, ou alguém) como detentor de uma função sacerdotal, como aquele que nos põe em contato com um reino que transcende o humano. (RORTY, 2007, p. 53) Essa perspectiva coaduna-se com o entendimento de filósofos como Gilbert Ryle, cuja tradição conhecida como “filosofia da linguagem comum” atenta para os significados das palavras no seu uso ordinário e não na forma “pura” - como certos estudos semióticos pretendiam. Valer-se disso é reconhecer a linguagem em seu horizonte social: as palavras não existem por si, mas no uso que fazemos delas. Relativiza-se assim a importância da erudição perante o senso comum sobre o que seria o apropriado para a arquitetura. Grassi afirma seu sentido sem medo do senso comum e sim o tomando para si. Ao nos afastarmos de um significado mais acadêmico para a arquitetura, desnaturalizamos o vínculo entre a ideia de arquitetura e a narrativa oficial da arquitetura, este sim o espectro que círculos de arquitetos tomam como a própria arquitetura. O círculo erudito da arquitetura, cada vez mais divergente do senso comum, ganha espaço quando a busca incessante por perspectivas que decifrassem as regras por trás das linguagens (a “linguistic turn” da segunda metade do século XX) fomentou o aparecimento de discussões que desembocariam no pós-modernismo arquitetônico. É curioso notar que muitas das pesquisas nesse sentido diziam tentar fazer a arquitetura falar novamente. Isso não apenas na forma resultante dos edifícios, concebidos como “texto” ou “linguagem” cujos elementos constitutivos seriam “palavras” em sua equivalente material, mas principalmente nos textos dos arquitetos: muitos deles preten-

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diam partir do “desvelamento de regras perenes”, que até então estariam conformando silenciosamente a arquitetura, para propor uma renovação disciplinar, ressignificando a arquitetura e seu vocabulário.

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Peter Eisenman talvez seja o mais radical nesse sentido: em sua prolífica obra escrita ele se propõe teorizar uma nova perspectiva para a arquitetura, pretendendo deslocá-la de seu sentido habitual. Apesar de seus posicionamentos polêmicos serem inconstantes e muitas vezes contraditórios, uma constante em seu trabalho foi de, apesar de toda a sua radicalidade no âmbito da disciplina, nunca ter tido interesse em se situar fora dela, forçando dessa forma os limites do que seria o ofício de um arquiteto. Eisenman enquanto símbolo do arquiteto quixotesco que busca a reinvenção da arquitetura na tentativa de substituir a arquitetura “normal” – no sentido de ter a arquitetura moderna se tornado a norma – se presta a ser o mais adequado como estudo de caso. É uma atitude de afirmação de um sentido pessoal perante o senso comum, seja do público ou dos arquitetos, na pretensão de mudar o que de fato a arquitetura significa. É esclarecedora a introdução do crítico Jeffrey Kipnis para uma de suas coletâneas de textos: Eisenman nunca esteve tão vívido em um seminário da graduação quanto na apresentação que fez de momentos chave da arquitetura não apenas como um passo criativo, mas como um ato de heresia, do Alberti sintetizando o frontão de um templo sagrado com um profano arco triunfal até a expulsão de Tony Garnier da Ecole des Beaux-Arts por deslocar intencionalmente uma coluna. Aqui o termo “heresia” é usado intencionalmente; sua característica essencial é que ocorre com o horizonte da ortodoxia e admite em princípio um propósito maior, mas desafiando um de seus dogmas.. (...) Nesses termos, Eisenman é o próprio


herético da Arquitetura, um sumo sacerdote dedicado a desafiar um dogma após o outro, mas nunca tão fortemente a ponto de negar a sua fé. (EISENMAN, 2007, p. 11, tradução do autor) Em um sentido amplo, Eisenman comete heresia ao não considerar o que a arquitetura significa em geral ao mesmo tempo em que não desacredita o termo. Ele se esforça para que suas obras sejam reconhecidas enquanto arquitetura e ele enquanto arquiteto; não quer de modo algum ser visto como artista plástico ou escultor. Da mesma forma que a vanguarda artística do início do século XX se aproveitou de mecanismos da instituição arte para promover a sua própria arte (e/ou a destruição da instituição), Eisenman tenta ressignificar a arquitetura por meio de sua autodeclarada arquitetura. A lógica é similar a dos ready-made de Duchamp: como se fossem detentores do toque de Midas moderno, o artista e a instituição envolvida têm o poder de transformar coisas ordinárias em arte. Talvez reconhecendo a necessidade de uma confirmação institucional sobre seu próprio trabalho, não é surpreendente que Eisenman tenha se empenhado enormemente como agitador cultural, criando suas próprias instituições validadoras, fundando o IAUS e suas diversas revistas. Em um de seus textos mais paradigmáticos, O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim, Eisenman empreita uma ousada tentativa de apresentar uma interpretação libertadora para a arquitetura no contexto da época. Ele explicita seus alvos: quais seriam as ficções que ao longo da história reprimiram a criação e o vocabulário arquitetônico. Para ele a criação arquitetônica teria infinitas possibilidades quando liberta de tais ficções – e aqui temos a ilustração da ideia de pesquisa eisenmaniana como uma ininterrupta derrubada de dogmas, tal como vê Kipnis.

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São três as ficções apresentadas: a representação, a razão e a história. Ao longo da história da arquitetura essas seriam as balizas constantes do que ele chama de “arquitetura clássica” e que teriam servido como parâmetros para produção e valoração dos projetos de arquitetura desde Vitrúvio até a arquitetura moderna – que, reconhece ele, apesar de pretender renovar a cultura arquitetônica acabou por ater-se às ficções, mantendo-se em um continuum histórico. Eisenman almeja uma arquitetura de fato moderna (não-clássica), que já não teria essas três exterioridades como balizas para sua valoração; antes seria uma arquitetura valorada por si, sem objetivar representar nada. Em relação à ficção da história seu próprio projeto de pesquisa levanta contradições, quando diz: 16

Dizer que uma arquitetura “não-clássica” é necessária, que é uma proposta compatível com a nova era ou com a ruptura na continuidade histórica, é criar um outro argumento do Zeitgeist. O “não-clássico” simplesmente propõe o fim do predomínio dos valores clássicos a fim de revelar outros valores. Não propõe um novo valor, ou um novo Zeitgeist, mas tão-somente uma nova condição: a de ler a arquitetura como um texto. Não há dúvida, porém, de que essa ideia de leitura da arquitetura parte de uma consideração do Zeitgeist: de que atualmente os signos clássicos já não são significativos e se tornaram não mais que repetições. Assim, não é que uma arquitetura “não-clássica” seja indiferente à percepção do caráter inerentemente fechado do mundo, mas ela não se propõe representá-lo. (NESBITT, 2006, p. 242) Apesar do texto datar de 1984, o posicionamento crítico de arquitetos em relação a ideia de Zeitgeist já estava colocada há


algum tempo. Em 1975, na introdução do livro Five Architects (agrupamento de arquitetos feito para uma exposição da qual Peter Eisenman fez parte), Collin Rowe escreve criticando a posição pró-moderna de Reyner Banham, a partir de uma citação deste: ‘Arquitetura moderna não é mais do que o resultado da época; Esta época está criando um estilo que não é um estilo, pois esse estilo está sendo moldado pela acumulação de reações objetivas a eventos exteriores; e por isso, este estilo é autêntico, válido, puro e limpo, renovador e perpetuador de si mesmo.’ É difícil entender como a paixão pôde e ainda pode girar em torno de uma afirmação como essa; até que reconheçamos que o que temos aqui é a fusão de duas tendências de pensamento poderosas do século dezenove. Em variável grau de mascaramento, temos presente “ciência” e “história. Estamos lidando com o conceito positivista de fato (sem nenhuma reserva epistemológica sobre o que constitui um fato) e com a concepção hegeliana de destino manifesto (sem nenhuma dúvida com a realidade substancial do inexorável Zeigeist) e então nós temos o entendimento implícito que quando esses dois conceitos são aliados, quando o arquiteto reconhece apenas “fatos” e daí, respaldado pela ciência, torna-se instrumento da “história”, a situação irá invariavelmente caminhará de forma que todos os problemas se resolvam. (...) Deduz-se que a arquitetura é apenas moralmente aceitável assim que o arquiteto suprima sua individualidade, seu temperamento, seu gosto e sua tradição cultural; e nesse sentido, ao menos que ele esteja disposto a “objetividade” e a um estado mental “científico”, tudo o que seu trabalho poderá fazer é obstruir o inexorá-

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vel desdobrar de mudanças e portanto, presumivelmente, retardar o progresso da humanidade. (...) No final o que é entendido como teoria da arquitetura moderna se reduz a pouco mais do que uma coleção de mitos escapistas que funcionam para aliviar o arquiteto da responsabilidade sobre suas escolhas assim como para convencê-lo de que suas decisões não são tão propriamente dele, mas imanentes do processo científico, histórico ou social. (ROWE, 1975, p. 5)

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Pode-se compreender as duras críticas à posição tardiamente moderna de Banham como uma crítica ao modernismo como um todo, em especial à ideia de Zeitgeist, ideia fundante do movimento moderno. Ainda mais profunda e radical é a crítica de David Watkin, a começar pelo título de seu livro publicado em 1977: Morality and Architecture – The Development of a theme in architectural history and theory from de the gothic revival to the modern movement. O objetivo do autor é desmontar a ideia “romântica” e “coletivamente populista” de que “o arquiteto não tem imaginação ou desejos por si próprio, mas é meramente a ‘expressão’ de um ‘inconsciente coletivo’”(WATKIN, 1977, p. 3). Para isso ataca teóricos que serviram de base para a construção do movimento moderno como Pugin, Viollet-le-Duc, Lethaby e posteriormente Pevsner, Giedion dentre outros. A crítica parte da interpretação naturalista sobre a arquitetura gótica, descrita por diversos estudiosos como uma expressão mais natural, espontânea, livre de elementos e princípios artificiais que baseariam a arquitetura clássica; enfim, era a proposta “não de um estilo, mas de um princípio” (WATKIN, 1977, p. 13). Importante e curiosa é a última sentença do livro: Nossa conclusão é que uma crença arte-histórica na ideia cada vez mais dominante do Zeitgeist, combinado com uma ênfase historicista no progresso e a necessária superio-


ridade da novidade, tornou-se perigosa ao ponto de minar, por um lado, nossa apreciação sobre o gênio imaginativo de um indivíduo, e por outro, a importância da tradição artística. (WATKIN, 1977, p. 115, tradução do autor) Aqui fica explícito o paradoxo em que se insere a pretensão de Eisenman na produção de uma arquitetura “não-clássica”, menos por sua “nova condição” ser a de “ler a arquitetura como um texto” – curiosamente tão ao gosto da época em que se insere – e mais por, em sua busca por “revelar outros valores” – sem a pretensão de construir um outro sentido para a arquitetura, mas antes de desconstruir seus sentidos – acaba por afirmar, sem querer fazê-lo, a superioridade da novidade. Já não pretendendo produzir uma arquitetura que responda a um suposto fato lógico e evidente, ou que expresse a vontade do coletivo ou da época, o arquiteto ganha autonomia para definir seus parâmetros valorativos sem conceder espaço a qualquer crítica normativa. Sai de cena a busca por uma arquitetura coletiva, padronizada, social ou anônima e entra a valorização do caráter pessoal e excepcional de cada edifício. Nessa perspectiva o arquiteto ganha poder e o gênio por trás de cada obra torna-se tão ou até mais importante que a própria obra. Precisamente sobre Eisenman, Rafael Moneo escreve: Peter Eisenman deseja que seu trabalho seja entendido como a sua biografia. Por isso, ainda que brevemente, seremos obrigados a aludir às suas marcas biográficas. Não acredito que sua obra possa ser estudada sem que sejamos atraídos pelo magnetismo exercido por sua pessoa: a personagem, o inventor da arquitetura, é, no caso de Peter Eisenman, tão importante quanto a própria arquitetura. Ambos são inseparáveis. (MONEO, 2008, p. 137)

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Apesar de Moneo se referir desse modo ao caso de Peter Eisenman, não são poucos os arquitetos (modernos e pós-modernos) que podem ser enquadrados nessa relação intrínseca entre biografia e obra. Cabe então investigar de que modo a figura do arquiteto consegue se inserir no âmbito artístico ao ponto de ser visto como “tão importante quanto a própria arquitetura”.

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A arquitetura, diferentemente das outras artes, é, por excelência, imóvel. A literatura, por exemplo, é um caso completamente distinto, já que sua dependência de um suporte físico é fundamental mas não especificamente condicionadora: sobre uma obra literária qualquer não existe uma versão original cujas outras cópias são consideradas de importância ou qualidade menor; todas as cópias são consideradas como edições de mesma qualidade. E todas são a obra. Nessa relação específica da literatura com seu suporte devemos entender que não há preponderância entre conteúdo e forma ou vice-e-versa, mas antes uma coincidência total entre “partes”, uma formatura una. Outras artes, como o teatro ou a música também existe essa relação específica, característica que permite grandemente a circulação/reprodução das obras sem nenhuma perda qualitativa.1 A pintura é, assim como a escultura e arquitetura, vinculada a um material específico. No entanto pinturas e esculturas em geral são móveis, permitindo a sua circulação entre instituições do mundo inteiro, o que amplifica seu potencial público. De qualquer modo, para além da circulação da matéria em si, a fotografia de uma pintura pode, grosso modo, ser suficiente para a experiência de seu caráter pictórico. Estando a arquitetu-

1 Richard Wollheim discute longamente essa relação entre a obra ideal e o material percorrendo as especificidades de cada arte em WOLLHEIM, 1994.


ra essencialmente vinculada ao local em que se insere, mesmo as pretensas fotografias documentais de arquitetura produzem distorções de leitura que as tornam peças especialmente autônomas em relação ao objeto fotografado. A circulação de arquitetura por meio de fotografias pode ser considerada ineficiente. A vivência da edificação in loco é intrinsicamente necessária à experiência da arquitetura, já que a arquitetura não apenas diz respeito à relação do objeto arquitetônico com seu contexto de inserção, mas também entre objeto arquitetônico e corpo. No início do século XX, a mais antiga arte de massa (ARANTES, 2000, p. 20) começa a perder voz perante o apogeu da circulação de imagens, tão mais propícia às outras artes. Nesse contexto não é de se estranhar que um arquiteto como Le Corbusier tenha sido o autor de 54 livros. A angústia do arquiteto perante a inércia e mudez de sua obra construída o pode colaborar à urgência de sua persona: é necessário estar presente onde quer que seja para se expressar, dar vazão a suas pretensões arquitetônicas, cuja apreciação se mantém restrita a um ínfimo público (se comparado com o número potencial de seus leitores ou alunos). Portanto nenhuma surpresa sobre os arquitetos estarem investindo cada vez mais tempo em publicizar suas obras. Nessa ânsia por voz e espaço, Bruce Steele em seu posfácio para Supercrítico, em que boa parte dos seus cem pontos a respeito de Koolhaas e Eisenman tratam precisamente sobre a produção escrita de ambos, chega a afirmar que: Peter Eisenman e Rem Koolhaas escolheram iniciar suas carreiras arquitetônicas por meio da escrita, não da construção. Para eles, as palavras se tornaram um sítio arquitetônico para a invenção vitalícia. (EISENMAN, 2013 p. 177)

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E de fato como muitas vezes arquitetos se referem à própria produção escrita enquanto produção de arquitetura, em total alinhamento com a atitude de Eisenman quando ele, por exemplo, insiste que suas maquetes de papelão são arquitetura (cardboard architecture). É factível vincular essa atitude ao contexto da arte conceitual nos anos sessenta, quando artistas iniciam sua empreitada contra a mercantilização da arte mirando a valorização das ideias em detrimento da matéria (associada às mercadorias). Uma tentativa de reabrir as vias para uma arte de caráter contestatório perante um panorama artístico domesticado, mercantilizado e dócil ao status quo que o formalismo modernista havia delineado (uma crítica especialmente direcionada à perspectiva formalista do crítico norte-americano Clement Greenberg). Yoko Ono, por exemplo, reduz seu trabalho a escrever instruções e descrições de obras, em vez de executá-las; também não era requisitado que a audiência se predispusesse a levá-las a cabo – a transmissão da ideia da obra era o suficiente enquanto realização da obra. Tendo o próprio Eisenman escrito um texto com o título Notes on conceptual architecture, essa vinculação entre a desmaterialização da arquitetura e as ideias da arte conceitual parece cabível. Ele claramente se filia a esse movimento quando afirma que as construções resultantes de sua série “Houses X” não eram senão uma das formas possíveis retiradas arbitrariamente de um processo sem começo nem fim. A ideia de processo generativo por trás da produção dessas casas é arquitetura. A construção em si é dispensável e sua importância minimizada. Partindo de premissas tão radicais, a arquitetura de Peter Eisenman acaba por parecer decepcionante, em especial quando são levadas em consideração a sua opinião em seu texto A arquitetura e o problema da figura retórica de que


O que define a arquitetura é o contínuo deslocamento do habitar, em outras palavras, a deslocalização do que ela, de fato, localiza. (...) É a necessidade de desalojar a habitação que sustentou a arquitetura através da história. (NESBITT, 2006 p. 194). Em suas casas executadas entre a década de sessenta e setenta é um tanto surpreendente como é possível levar um cotidiano excessivamente confortável, já que motivos exteriores como a criação de espaços interiores seguindo o padrão médio americano de conforto teria sido completamente ignorado por parte do arquiteto. Cada habitação executada forma um conveniente interior único, o que nos leva a imaginar o quão sortudos foram seus clientes ao, tendo suas casas extraídas arbitrariamente de um processo contínuo, terem coincidentemente panos de vidro senão paredes conformando uma interioridade. O deslocamento do habitar se resume a uma figuração: uma escada invertida impossível de se subir, pilares que não sustentam nada, etc. É extremamente visual. Chega a ser irônico o fato de Tadao Ando ter construído, na mesma época, sua famosa casa em Sumiyoshi em que os espaços se conectavam por um pátio aberto central. Aqui sim o deslocamento do habitar pretendido por Eisenman se consolida, interferindo radicalmente no cotidiano de seus habitantes, exigindo grande sujeição destes ao clima. Vem reforçar essa decepção sua postura dúbia em relação à ocupação dessas casas. Em episódio conhecido, Eisenman se enfureceu com um casal de clientes quando estes permitiram que fotografias de sua House VI fossem feitas com a disposição de móveis e objetos domésticos tal como no dia-a-dia da casa. As fotografias foram publicadas em uma revista de arquitetura da época e veementemente reprovadas por Eisenman. Sua obsessão com a pureza de seus “objetos” arquitetônicos fazia com

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que a própria ocupação de seus proprietários fosse vista como uma contaminação: os espaços que se pretendiam radicalmente deslocados de referenciais históricas, funcionais e sociais, ganhavam características domésticas. De repente era possível nomear os ambientes dentro das tipologias cozinhas, banheiros, quartos, etc. A dúbia postura aparece quando em uma entrevista a Charles Jencks, este insiste que suas casas não funcionam, que são anti-funcionais e que se vive nelas com dificuldade, ao que Eisenman responde:

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Não é uma negação, eu estou apenas tentando deixar claro que eu nunca fui anti-funcional. Eu acredito que há diferença entre ser anti-funcional e ser contra tomar a função como tema. (...) Meu argumento é de que a obra certamente não é anti-funcional mas contra simbolizar a função. (...) Meu trabalho ataca o conceito de ocupação como é dado. É contra a noção tradicional de como ocupar uma casa. E ter uma coluna no meio do quarto, e por isso não poder colocar uma cama lá certamente ataca a noção de como você ocupa um quarto. (EISENMAN, 1988, p. 51, tradução do autor) A casa em questão é, por acaso, a House VI, completada em 1975, ou seja, treze anos antes dessa entrevista. Essa abordagem mais “humanizada” a respeito dos usos da casa talvez seja recente, mas já estava delineada pelo menos um ano antes, em seu texto A arquitetura e o problema da figura retórica, de 1987, e demarca uma mudança de postura, já que é extremamente difícil imaginar como sequer a ideia de deslocamento do habitar se coadunaria à ideia de um processo generativo formal fechado em si, como almejava em seu início de carreira. De qualquer forma Tadao Ando já teria sido mais radical na


tarefa de “atacar o conceito de ocupação”, mesmo que com pretensão diametralmente oposta à de Eisenman, vinculada fortemente à um resgate da cultura e tradição japonesa, buscando a recuperação da relação entre casa e natureza, algo que as moradias japonesas perderam ao longo do processo de modernização. (apud FRAMPTON, 2003, p. 393) Apesar desse momento excepcionalmente atento ao habitante, no geral os textos de Eisenman se preocupam com a arquitetura enquanto linguagem, com maior ênfase quando se aproxima de Derrida. Seu empenho nos processos quase automatizados de produção de forma tinha como objetivo evitar lugares comuns na arquitetura. A poesia da arquitetura seria inventar novas palavras arquitetônicas, palavras que dessem nome ao inominável. E por isso emprega elementos de alto teor simbólico (como uma escada) de forma deslocada de seu lugar, demonstrando que uma escada não precisava significar a possibilidade de subir. O valor disso estaria em estabelecer novas relações, reconhecer novas possibilidades, e acima de tudo, dar vazão ao que esteve reprimido pelas ficções próprias da arquitetura. A sua batalha contra o logocentrismo da arquitetura, ou seja, contra a criação arquitetônica por meio de um vocabulário corrente em detrimento de uma liberdade total de não-palavras é problemático à medida que desvincula completamente a arquitetura de suas razões (para Eisenman, ficções) estruturadoras. Esse trazer à tona algo que estava reprimido acaba por ser uma repressão de todo significado construído ao longo da história da arquitetura. É paradoxal a – aparente – atitude libertadora de Eisenman em relação à ficção da história porque sua pesquisa está completamente vinculada à história da arquitetura. O logocentrismo não perde a centralidade em sua produção, pelo contrário, ganha força. Nenhum outro arquiteto se apegou tanto a ideia de

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House VI, de Peter Eisenman.


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Casa Sumiyoshi, de Tadao Ando.


uma narrativa da arquitetura como Eisenman fez. Se levarmos em conta a insuficiência das palavras – ou seja, a inevitável redução sintética que os discursos produzem, perceberemos que grandes esquemas interpretativos utilizados na construção de uma história da arquitetura enquanto um desenvolvimento com um objetivo qualquer, fica evidente o potencial repressivo destes discursos. Não é difícil ver arquitetos “destoantes” ou mesmo tradições inteiras sendo ignoradas pela história da arquitetura a favor de uma “narrativa mais coerente” – a tentativa de investir o passado de um propósito superior, como diz Rorty. Fica claro, portanto, as possibilidades de repressão que a história de arquitetura pode exercer, por meio dos livros, sobre o passado da arquitetura. 28

E exatamente nesse contexto, Peter Eisenman, o herege da arquitetura, o anti-humanista, torna-se a mais fanática das carolas da história da arquitetura, e não por acaso empenha-se na publicação de uma compilação de textos sobre o que ele próprio chama de “obras canônicas” de arquitetura: um esforço para inserir suas leituras nos rumos da narrativa arquitetural. Não à toa um texto de Manfredo Tafuri sobre Eisenman e outros “linguistas” da arquitetura tenha como título L’architecture dans le boudouir2. Entre a academia e a experiência direta, Eisenman preferiu ver a arquitetura através dos livros. Preferiu a abstração dos discursos à concretude da arquitetura, e a partir deles contra-traduziu arquitetura em linguagem. Seu engano é acreditar que isso possa dar conta da experiência da arquitetura, seja na recepção ou na produção. A crítica do historiador Ulpiano de Meneses, feita

2 A tradução corresponde a “A arquitetura do boudoir”. Boudoir era o nome do quarto de vestir das madames, característico do século XIX e que persistiu nas habitações até o início do século XX. A imagem contraposta a essa seria a de uma “arquitetura de rua”, defendida por Tafuri em seu texto.


durante uma entrevista, a respeito desse tipo de atitude “abstracionista” por parte dos linguistas semióticos é precisa: Em primeiro lugar, eu diria que a palavra e a imagem são dois sistemas diferentes de apreensão do mundo empírico. Depois, existe a noção de que imagens e coisas são linguagens, mas não são linguagem coisa nenhuma; têm potencial linguístico, o que é outra conversa. Por exemplo, o martelo não integra uma linguagem. Se o martelo fosse componente de uma linguagem, eu não poderia pregar um prego, porque não estou emitindo mensagem nenhuma. Agora, o martelo pode ser usado em um contexto linguístico. Você pega o martelo e diz: “Representa o trabalho operário”, bota a foice e se completa. Mas não é para isso que se inventou o martelo. Essa desmaterialização das coisas materiais e essa desvisualização das coisas visuais, nessa concepção, justamente, de que objetos e imagens são componentes de linguagem semelhante à articulada, como a linguagem verbal, comprometem absolutamente o entendimento do jogo social de que participam coisas e imagens. Se você vai usar a imagem como ilustração daquilo que lhe foi fornecido por fontes verbais, você não vê jogo nenhum, porque aí o que conta é a representação, é o discurso sobre a coisa e não a coisa funcionando como discurso. Em suma, as coisas e as imagens (que são coisas), não podem ser reduzidas a representações, mas devem ser consideradas na sua efetiva agência, que entendo como potência de ação.3 Parece fazer sentido que a essa altura os críticos da leitura semi-

3 http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/3738/2368 em 13/11/13)

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ótica da arquitetura convoquem o senso comum em suas considerações. Assim como Grassi, Tomás Maldonado promove esse “choque de realidade” em seu ensaio ¿Es la arquitectura un texto?: Paremos um transeunte qualquer nas ruas de Nova Iorque, Frankfurt ou Milão e façamos a seguinte pergunta: ‘Você acredita que um edifício é um texto?’ O transeunte olhará assombrado e, no melhor dos casos, procurará por uma câmera escondida que estaria documentando, frente a um divertido público televisivo, sua surpresa e embaraço.

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Por outro lado, se fizermos a mesma pergunta a um arquiteto dessas mesmas cidades, seja um feliz cultivador das modas culturais ou um leitor assíduo dos mestres prêt-à-penser, a resposta será seguramente um entusiasmado “sim”. (MALDONADO, 2004, p. 23, tradução do autor) O apelo ao senso comum não deve ser confundido com populismo. Em uma época em que as palavras foram tão incessantemente ressignificadas, o senso comum aparece como ponto de partida na tarefa de assegurar um vocabulário comum. A tarefa aqui é, numa expressão de Ulpiano, remover e não confundir a craca com o casco da embarcação. Mas mais do que isso, reconhecer o caráter social e coletivo das palavras, cujos significados e sua manipulação não estão restritos nem sujeitos à ratificação de grupos de especialistas. Numa leitura da história da arquitetura sobre o que estaria sendo de fato reprimido, poderíamos resgatar o viés do habitante da arquitetura. Por exemplo, o porquê de os clientes de Eisenman terem sido repreendidos pelo arquiteto por mostrarem como vivem em sua própria casa. Mas essa atitude no mínimo


invasiva por parte dos arquitetos sobre a vida de seus clientes não é recente. Watkin diz: Que Le Corbusier foi vítima da falácia de que a mente humana também pode servir como tabula rasa é evidente, sobretudo quando diz que sua Villa Savoye foi desenhada “para clientes desprovidos totalmente de ideias preconceituosas”. (WATKIN, 1977, p. 40, tradução do autor) Se ainda encararmos a declaração do arquiteto apenas como um ambíguo direcionamento de sua obra para um público específico, sem maiores pretensões, a dúvida é desfeita com a situação que se seguiu. Concebida como uma casa de fim de semana, o casal Savoye deu total liberdade de desenho a Le Corbusier. Com o custo estimado final ficando o dobro do previsto inicialmente, requisitaram mudanças ao arquiteto. Mesmo durante a obra diversos ajustes foram feitos mas, apesar dos esforços, o orçamento ficou muito acima do que o esperado. Logo na inauguração da casa, no ano de 1931, a estrutura já necessitava de reparos. Ano após ano, durante as chuvas do outono surgiam cada vez mais vazamentos na cobertura. Os gastos com reparos da inovadora cobertura jardim foram crescentes ao ponto de a família, após longa troca de correspondência com o arquiteto, se sentir obrigada a acionar a justiça. Madame Savoye alegava que os constantes vazamentos da cobertura levaram a um de seus filhos contrair pneumonia. O arquiteto, no entanto, respondia discorrendo sobre o privilégio que a família tinha em viver em um imóvel merecedor de reconhecimento internacional, publicado em diversas revistas da época, uma verdadeira obra de arte, etc, numa atitude que beirava o sadismo. Ao que se sabe, Le Corbusier escapou do tribunal pelo deflagrar da Segunda Guerra Mundial.

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O que o arquiteto responde aos problemas cotidianos de suas construções é completamente fora das expectativas de seus clientes. Responder aos moradores referindo-se ao sucesso conseguido junto a um público terceiro – no caso, o círculo de arquitetos – é no mínimo considerá-los não-iguais. Reivindica-se uma hierarquia em que os arquitetos têm a palavra final sobre a vida que os moradores de suas casas e edifícios deveriam levar. É sobre essa assimetria que se assenta a obra de Eisenman quando este reivindica como tarefa maior a alteração de hábitos dos habitantes e usuários de seus edifícios, independente desse enunciado e suas implicações estarem claros e serem pertinentes para eles ou não.

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Na busca por um melhor entendimento entre as partes, temos de reconhecer a ficção que seria restringir a arquitetura a um círculo de especialistas, tomando como base a arquitetura no seu sentido mais comum, o que deixa explícito o desinteresse deste trabalho no entendimento da arquitetura enquanto qualquer coisa que não seja a obra concreta propriamente dita, único objeto comum e constante ao longo da história da arquitetura na inter-relação arquiteto-público. Deve-se também entender que o habitar não é um acidente ou um acontecimento desprezível em uma obra de arquitetura, mas antes é o que define a especificidade de sua categoria perante as outras artes. É o habitar o definidor da arquitetura e por isso que apesar de a cardboard architecture de Eisenman poder ser interessante para o trabalho de especulação formal, não pode ser aceita enquanto arquitetura. Essa disparidade de importância presumida por parte dos arquitetos entre artista e público tem sua origem na supervalorização da arquitetura e da arte como um todo. Paul Kristeller afirma: A noção de que cinco “artes maiores” constituem uma área


própria, claramente separada por características em comum do artesanato, das ciências e das outras atividades humanas, tem sido defendida pela maioria daqueles escritores que se dedicam à estética, de Kant aos dias de hoje. É livremente empregada por críticos de arte e literatura (...) e é aceita com naturalidade pelo público amador em geral que atribui a “Arte” com A maiúscula aquela cada vez mais estreita área da vida moderna que não é ocupada pela ciência, religião ou assuntos práticos. (KRISTELLER, 1951 p. 498, tradução do autor) Kristeller defende ainda que essa agremiação de diferentes ofícios sob a nomenclatura Arte é recente: só em meados do século XVIII temos essa associação mais próxima da moderna definição de Belas Artes, mas ainda com algumas diferenças como, por exemplo, a inclusão de “óptica” e “mecânica” junto à pintura, arquitetura, eloquência, poesia, música e escultura. Apesar de ao longo da história estudiosos terem feito aproximações entre duas ou mais dessas disciplinas, esse conjunto não teria sido formado por uma identificação entre eles, mas antes por uma exclusão do conjunto das atividades humanas ao qual a ciência, por exemplo, pertencia. Isso porque um indiscutível progresso nas ciências naturais durante o século XVII havia separado aquilo que poderia ser cientificamente provado e aquilo que dependia do talento e do gosto, ou seja, aquelas disciplinas (artísticas) em que não se podia confirmar o progresso perante os antigos. O autor sublinha a distinção a respeito do significado de Arte dos gregos em relação aos modernos. Originalmente a palavra não denotava as Belas Artes, mas era aplicada a qualquer ofício ou ciência. Significava ainda algo que podia ser aprendido e transmitido, diferentemente da concepção moderna romantizada do talento ou dom.

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O agrupamento dos ofícios artísticos sob a nomenclatura Arte teve como consequência a percepção de que elas fossem extremamente próximas entre si e em pouco tempo esse foi o principal fator para empregos errôneos de certas ideias. Termos específicos de uma arte começaram a ser transplantados para as outras artes sem as devidas ponderações. Kant ao tratar de Arte como um todo acabou induzindo interpretações em que se teorizava sobre arte sem o reconhecimento das especificidades de cada campo. Para o campo da arquitetura – talvez a arte mais distinta até mesmo pela especificidade de seu requisito funcional – essa generalização foi especialmente prejudicial. Grassi reconhece a confusão já durante o movimento moderno:

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Quanto às vanguardas do movimento moderno, elas invariavelmente seguem os passos das artes figurativas (...) Cubismo, suprematismo, neoplasticismo etc. são formas de pesquisa que nasceram e se desenvolveram no domínio das artes figurativas, e somente depois de repensadas foram transpostas para a arquitetura. É realmente patético assistir aos arquitetos daquele período “heróico”, e os melhores deles, tentando a duras penas se adaptar a todos aqueles “ismos”: fazendo experiências confusas por conta de um fascínio pelas novas doutrinas, avaliando-as, só para depois darem conta de sua ineficácia. (GRASSI, 1998, p. 393) O texto sobre o que seria uma “arquitetura conceitual” de Eisenman segue a mesma lógica de transposição indevida. Apesar de termos do aumento de complexidade de todas as atividades humanas ao longo da história, a concepção grega de arte ainda é útil para a construção de um discurso estético. O filósofo italiano Luigi Pareyson intenta reconciliar o recorte das “belas artes” às demais atividades humanas. Diz:


Como em toda a operosidade humana a arte está presente, no sentido de que nenhuma atividade atinge seu próprio fim se não é exercitada com arte, não se deverá reconhecer que também as outras atividades estão presentes na arte, de modo que esta não pode alcançar o próprio fim sem a sua intervenção e seu sustento? Eis o problema das relações da arte com as outras atividades, que é um dos mais importantes da estética, e também dos mais complexos, dada a variedade dos liames que, mais ou menos estreita e inextricavelmente, instituem-se entre as atividades do homem. (PAREYSON, 2001, p. 34) E mais a frente: Ora, esta concepção de autonomia (absoluta) da arte conduz a uma nova negação do valor artístico, ainda mais dramática e definitiva do que a concepção da sua heteronomia. Se de um lado a arte é negada quando se torna propaganda, ou pregação, ou lenocínio, de outro lado a arte é não menos negada quando, privada e sentidos, ou referências, ou finalidades éticas, teóricas, espirituais, reduz-se a um puro jogo técnico, ou é vista num valor artístico exclusivo absoluto. (...) Se, pelo contrário, autonomia da arte é entendida como a própria especificação da arte, isto é, o ato com o qual ela se afirma como atividade diversa das outras, dando-se a própria lei e recusando subordinar-se a fins diversos, satisfazem-se as exigências opostas, isto é, entende-se como a arte se afirma na própria suficiência sem, por isso, reivindicar uma independência impossível ou cair num absurdo isolamento, e como pode desenvolver a mais variada e multíplice funcionalidade sem, por isso, rebaixar-se à subordinação ou negar-se na heteronomia. (...) Seria absurdo dizer que a Divina Comédia consegue

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ser poesia apesar da intenção explícita de Dante de exercer, através dela, uma missão moral. Seria muito menos absurdo dizer que ela é poesia justamente por isso, porque essa intenção moral não é fim extrínseco, mas sim imanente da obra, enquanto tendo sido ponto de partida, esteio impregnado de poesia, assim é também seu significado, sua função, seu êxito. E o Paraíso é poesia não apesar da filosofia ou da teologia, mas precisamente na medida em que a filosofia e a teologia, permanecendo tais na sua natureza específica, são estímulo e ocasião de arte ou fazem-se, elas próprias, poesia. (PAREYSON, 2001, p. 44-45)

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Seu discurso nega frontalmente a reivindicação de autonomia da arquitetura tal como promovida por Eisenman, em que o objeto arquitetônico negaria sua função e seria tão mais valioso quanto fosse seu descolamento da vida prática. Por outro lado parece completamente razoável reconhecer a artisticidade das demais atividades e ainda a funcionalidade da arte, em especial na arquitetura, em que sua funcionalidade é distintiva sobre as outras artes. O filósofo britânico Roger Scruton faz sugestões a respeito da grande particularidade que a arquitetura representa ante as outras artes: Quero sugerir que a existência e predominância de um vernáculo arquitetural é uma consequência inevitável da distância que separa a arquitetura das outras artes, da relativa ausência por parte da arte de um edifício de qualquer autêntica autonomia artística, e do fato de que, na maior parte das vezes, um construtor tem de adaptar a obra a qualquer arranjo pré-existente de formas imutáveis, sendo constrangido em qualquer questão por influências que lhe proíbem o luxo de um objeto “artístico” autoconsciente. A arquitetura é simplesmente uma aplicação daquele sentido


do que se “ajusta”, que governa todos os aspectos da existência diária. Pode dizer-se que, propondo uma estética da arquitetura, o mínimo que se deve propor é uma estética da vida de todos os dias. Afastamo-nos do reino da arte superior para o da sabedoria prática comum. (SCRUTON, 1983 p. 25) Posições como a de Eisenman poderiam ser encaradas como excentricidade de um arquiteto qualquer, sem maiores consequências ao “homem comum”. No entanto a questão não se extingue de forma tão simples quando consideramos outra característica intrínseca da arquitetura: seu caráter público.

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O caráter público do objeto arquitetônico Diferentemente das outras artes, cuja apreciação em geral se dá em um espaço interior, em âmbito privado, a arquitetura se apresenta inevitavelmente no espaço público, aberto. Ela é propriamente a produção de interioridades e portanto não poderia ser de outra forma. Sobre a inevitabilidade da arquitetura, Paul Goldberg diz: Pelo fato de a arquitetura estar presente no nosso entorno, revelando-se mesmo quando não a buscamos, ou até quando preferimos não tomar consciência dela, devemos pensá-la de modo ligeiramente diferente de como pensamos, por exemplo, a música barroca ou a escultura renascentista, isto é, não apenas em termos de suas grandes obras-primas, mas também do ponto de vista da experiência cotidiana. Queiramos ou não, a arquitetura faz parte do dia a dia de todo mundo. (...) É perfeitamente aceitável debater literatura sem falar sobre Danielle Steel, mas será possível lidar com o impacto da arquitetura sem observar as ruas principais das cidades pequenas? (GOLDBERG, 2011, p. 11) Essa analogia entre literatura e arquitetura levanta uma questão que o autor deixa em aberto e não desenvolve ao longo do texto: enquanto na literatura ele estabelece uma diferença qualitativa categórica (reconhecendo Danielle Steel enquanto algo de baixo valor dentro da literatura, desprezível ao ponto de ser “perfeitamente aceitável debater literatura” sem citá-la), a arquitetura é entendida como um corpo massivo e inevitável, presente inclusive nas “cidades pequenas” e na “experiência cotidiana”. Aparentemente não houve a intenção de diferenciar na arquitetura obra de qualidade de obra sem qualidade.

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Isso é especialmente significativo sobre a percepção da arquitetura e da cidade. A percepção inevitável referida não é a de uma ou outra obra excepcional, que comumente é o que os arquitetos entendem enquanto arquitetura, já que essa seria evitável: para evitá-la bastaria dobrar a rua, mudar de caminho. O que realmente é inevitável é o ambiente construído como um todo, as massas de casas ou as séries de prédios, formando um conjunto indiferenciado de “arquitetura” e “simples construção”. Dessa forma o autor associa arquitetura ao sentido de ambiente construído, diferentemente da maioria dos arquitetos, que ainda têm a imagem de uma urbanidade salpicada de arquiteturas, ou seja, obras excepcionais dentre uma massa mais ou menos uniformidade de construções banais. Scruton escreve sobre que consequências pode ter esse entendimento: 40

Um traço distintivo importante da arquitetura é dado pelo caráter de objeto público. Uma obra de arquitetura impõe-se, aconteça o que acontecer, e suprime de cada membro do público a livre escolha de saber se deve observá-la ou ignorá-la. Portanto, não há um verdadeiro sentido em que o arquiteto crie o seu público; o caso é completamente diferente dos da música, literatura e pintura, que são, ou se tornaram, objetos de livre escolha crítica. A poesia e a música, por exemplo, tornaram-se autoconscientemente modernas, precisamente porque foram capazes de criar audiências afinadas com a inovação e ativas na procura dela. É claro que o arquiteto pode mudar o gosto do público, mas só o pode fazer dirigindo-se a todo o público e não apenas a uma parte educada ou meio-educada dele. O modernismo na arquitetura levanta, portanto, um problema especial, que não é levantado pelo modernismo nas outras formas de arte. (...) As artes privadas adquirem muito do seu caráter expressivo pela maneira “pessoal” como nos aproxima-


mos delas, pela capacidade dessas artes para se dirigirem a uma audiência específica e talvez altamente especializada. (SCRUTON, 1983, p. 22) Assim como Goldberg, Scruton não estabelece uma distinção clara entre arquitetura e simples construção a priori e leva o argumento a frente: diferentemente de outras artes cuja audiência é sempre voluntária, a arquitetura se impõe. Portanto não há, na arquitetura, algum controle temporal sobre sua recepção, e mais do que isso, nenhum controle social; não é possível estabelecer comunicação apenas com um grupo social específico. Desejada ou não, a audiência será formada por qualquer grupo que se apresente àquela localidade. Scruton ainda identifica a capacidade de “criar audiências afinadas”, ou de se comunicar mais especificamente com um determinado grupo social, com a própria possibilidade de modernização. Seria essa “cisão” de público e os choques provindos dessas diferenças entre audiências e suas expectativas em relação à arte – embates possíveis nas outras artes – que seria próprio motor da modernidade. Por outro lado, segundo Thierry de Duve, é exatamente a possibilidade cada vez menor de se direcionar a um público específico que acabaria por fomentar o surgimento das vanguardas. Vale abrir expor sua perspectiva: O Salão era, em seus primórdios, mera ocasião de uma exposição em que os membros da Academia mostravam seus trabalhos uns para os outros em espírito de emulação. Logo, porém, foi aberto ao público – na realidade, desde 1763 – e a partir de então uma verdadeira bomba de efeito retardado foi plantada na paisagem artística francesa. Na sequência, a produção dos artistas vivos, filtrada – isso também é importante – por um júri de pares indicados pela Acade-

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mia, foi regularmente exposta ao julgamento da multidão, do povo, do recém-chegado. O povo foi ao Salão, aí está a bomba, em número crescente de forma exponencial. Diderot refere 20 mil visitantes no Salão de 1765. Para 1783, a estimativa oscila, segundo as fontes, entre 100 mil e 600 mil. Estima-se em um milhão o número de visitantes de 1831, total que ultrapassa o da população inteira de Paris. Desde o início, a mistura de classes sociais era espantosa, e por volta de meados do século 19, quando surge a vanguarda em pintura, o acesso de todos ao Salão, todas as classes misturadas, é fato. (DUVE, 2010, p. 188) Isso é particularmente problemático em relação às convenções de cada arte, já que 42

Não há arte sem convenção. Em qualquer civilização que seja, o ofício dos artistas obedece a convenções: o ofício dos pintores às convenções da pintura, o ofício dos escultores às convenções da escultura, e assim por diante, ofício por ofício, corporação por corporação. Essas convenções são regras técnicas e estéticas que dão corpo ao savoir-faire profissional de sua corporação e que os artistas negociam com a parte da sociedade que os sustenta e lhes faz encomendas. Uma tradição artística é estável quando os artistas se submetem de bom grado ao gosto da clientela e quando esta cultiva o respeito ao artista, ou seja, quando as convenções artísticas são o que deve ser toda convenção: um pacto, um acordo assinado tácita ou explicitamente entre duas partes que se conhecem e sabem o que são e o que desejam. A vanguarda nasce – pode nascer, deve nascer – quando essas condições não mais existem. (DUVE, 2010, p. 187)


Ou seja, a audiência cada vez maior que os salões angariavam acabou por conduzir artistas a uma crise a respeito de qual seria, nessa multidão multifacetada, o seu público alvo, e o pacto aí envolvido. Essa diluição dos pactos cada vez mais intensa conduziu em dado momento a certa perda de poder do júri dos salões: já não eram capazes de cobrir as expectativas do público, nem dos artistas. A partir disso ocorre o surgimento do Salão dos Recusados, em 1863, e mais adiante o Salão dos Independentes, em 1884, cujo ingresso era livre a qualquer um que pagasse a taxa de inscrição de seis dólares. Nesse momento já estava clara a ideia de que Não só não sabemos mais a quem a arte se endereça, como também não sabemos mais quem é e quem não é legitimamente artista. A autoridade capaz de dizê-lo desmoronou. (DUVE, 2010, p. 190) E Bürger mesmo eleva essa perda de autoridade a principal feito das vanguardas: O significado da cesura que os movimentos históricos de vanguarda provocaram na história da arte consiste, na verdade, não na destruição da instituição arte, mas, sim, na destruição da possibilidade de atribuir validade a normas estéticas. (BÜRGER, 2012, p. 155) Nesse momento Duchamp proporia o novo pacto: ao inscrever um mictório como obra de arte no Salão dos Independentes, ele estava não só enterrando a ideia de belas artes como a substituindo pela ideia de arte em geral. O novo pacto consistia em o público aceitar qualquer coisa como arte. Ainda segundo Bürger, contraditoriamente Beuys viu nesse momento a possibilidade de que, sendo qualquer coisa arte, haveria de se afirmar que

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qualquer um pode ser artista (missão na qual Duchamp teria se omitido). Mas o que teria acontecido era exatamente o contrário, foi por qualquer um poder ser artista que a mensagem de Duchamp era de que qualquer coisa poderia ser arte.

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Retornando ao argumento de Scruton de que certas artes só conseguiram o seu desenvolvimento moderno pela sua forma de apreciação por uma audiência específica, então estamos falando dos próprios artistas da vanguarda enquanto um afunilamento e não uma abertura do circuito das artes. Se por um lado é indiscutível que no fim do século XIX e começo do século XX a autoridade de quem pode dizer o que é ou não arte é questionado, por outro é discutível que a maior parte do público tenha ratificado o pacto de que qualquer coisa pudesse ser arte – e não são raras as vezes em que ainda hoje flagramos o público de arte categoricamente negando o seu mérito: “isto não é arte!”. O que a perspectiva de Scruton sugere é que antes dos salões e da ampliação do acesso às artes, estas tinham uma maior autoridade para se reafirmar enquanto tal. Isto porque as convenções, tal como indica Duve, eram mais estreitas, com limitações mais rígidas. Em uma situação em que a audiência ampliada acidentalmente tivesse acesso a obras de arte, apesar desta não fazer parte do pacto envolvido, conseguiria ao menos situar a produção dentro do que então se considerava arte: o senso estético dos mecenas e as convenções dos artistas não faziam parte da arte, mas era a própria arte. Não era pressuposto que participasse das convenções e por isso não haveria de existir vozes dissonantes dentro da instituição. A arte de vanguarda teria então aberto espaço para que as mais diversas concepções de arte fossem acolhidas pelo termo. Por um lado dificulta-se uma “desapegada” fruição da obra de arte,


visto que aumenta a responsabilidade da audiência sobre o significado do que é arte, já que lhe compete o ato de ratificar o que é ou não arte, aliviando, por outro lado, a responsabilidade das instituições e artistas. Por outro o sentido da arte torna-se múltiplo, uma vez que já não há uma legitimação ou júri a priori. A partir daí podemos entender Scruton sobre a capacidade dessas artes para se dirigirem a uma audiência específica e talvez altamente especializada enquanto promovedora de sua própria modernização. Os artistas rejeitariam a ideia de se comunicar com uma multidão multifacetada e decidiriam por responder a parte desta audiência. Contentam-se com um círculo de iniciados enquanto público, ignorando a dimensão ampliada de sua audiência. As legendas e textos sobre as obras tornam-se, para a parte do público “não especializado”, a principal “fonte de apreciação” da obra, já que a obra em si não é propriamente acessível. Não é difícil verificar a importância que essa formação de círculo de iniciados tem no circuito artístico: basta relacionarmos o peso que as vanguardas têm para a história da arte e a rejeição com que a maioria absoluta da audiência lhes recebia. Interessante e curiosa é a forma como Duve termina o seu texto: A única definição de arte contemporânea suscetível de mostrar que o futuro permanece totalmente aberto me parece ser esta: uma obra de arte só será contemporânea enquanto permanecer exposta ao risco de não ser percebida como arte. (DUVE, 2010, p. 192) Esse panorama traçado trata essencialmente das artes “privadas”, como nomeia Scruton, já que praticamente nenhuma das considerações de Duve sobre a audiência específica ou ampliada pode ser associada à arquitetura. Se uma obra de arte qualquer

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correr o risco de não ser percebida ou não enquanto obra de arte, isso se deve à ambiguidade de sua “moldura”, ao fundo em que está inserida. A perspectiva de que todos podem ser artistas e tudo pode ser não afirma que tudo é arte. A arte no entendimento de Thierry de Duve não está nos objetos em si, mas nas ideias transmitidas a partir deles. E por isso não andamos por aí esbarrando a qualquer momento em arte. É necessário um autor e um espectador. Da parte da audiência é necessário atenção e da parte do artista, intenção. E por isso o ambiente privado é tão importante para a arte: ao adentrar no espaço a audiência estará atenta. Pelo lado do artista, o espaço em que está disposto (e suas implicações) é o que diferencia a Fountain de Duchamp de um simples mictório, é o que a legitima enquanto arte. 46

No âmbito público a figura muda completamente. Em 1981 a obra Tilted Arc de Richard Serra foi instalada na Foley Federal Plaza, em Nova Iorque. A obra se constituía de uma chapa de aço corten de quase 40 metros de comprimento e quase 4 metros de altura. Situava-se no meio da praça, dividindo-a em duas e obstruindo a passagem de pedestres. Essa obra faz parte de um episódio polêmico que culminou com a sua retirada em 1989, face aos protestos dos frequentadores da praça e até mesmo da polícia local, reclamando sobre a barreira que ela representava à vigilância da praça. Podemos entender como mérito da obra o próprio enfrentamento e questionamento do espaço público em que está situada. A obra enquanto tal remete-se à linguagem Arte enquanto uma narrativa e disciplina própria. Dentro disso as obras de Richard Serra, incluindo o Tilted Arc, são reconhecidamente importantes dentro do que podemos considerar a “grande narrativa” da história da Arte, mais especificamente dentro da história da escultura. No entanto, a obra em questão é uma obra pública e


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Tilted Arc, de Richard Serra.


por isso não se reporta somente à narrativa Arte, mas prioritariamente à vida cotidiana, ou seja, não somente a um voluntário apreciador de Arte, mas ao cidadão. Trata-se de um objeto permanente que interfere de modo permanente na vida de pessoas comuns que não requisitaram tal intervenção. Se em um primeiro momento a alteração na percepção do espaço da praça possa ser algo revelador para todos, e então uma possível justificativa, a permanência do objeto no contexto público faz com que o dia-a-dia o desgaste (como referência a isso consideremos a experiência do choque e o indivíduo blasé de Georg Simmel).

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É inegável a importância que a novidade exerce em obras de arte do tipo. E em algum tempo, ao frequentador habitual do espaço, ela já não significará muito mais do que uma grande chapa de metal que altera o trajeto de muitos todos os dias, e por mais que retóricas sejam empreendidas para contornar as críticas, a concretude da obra permanece presente, cotidianamente. Nesse caso o espaço público, e o homem comum deveriam ter prioridade, e apesar de artistas reivindicarem interferências nessas escalas, devem entender que reações a elas são lógicas. Definitivamente a narrativa Arte não deve sobrepujar a vida cotidiana, e nesse sentido sua autonomia é relativa. A primeira tem início historicamente e socialmente determinado, existe a partir da segunda e não o contrário. A humanidade passa bem sem essa Arte. A diferença essencial entre a arquitetura e as outras artes é sua presença pública. Nunca uma provável apreciação por audiência especializada excluiu a audiência ampliada. Independente do conhecimento de certos códigos, a apreciação da arquitetura sempre esteve aberta a qualquer pessoa. Otília se referencia à arquitetura como a mais antiga arte de massas para expor essa especificidade. Isso pode dar a impressão de uma arte mais “de-


mocratizada”, que desde sempre teve sua audiência em aberto, nunca restrita a uma elite. No entanto, o fato é que a diferenciação entre arquitetura e “simples construção” é a forma mais sutil de institucionalização da arte. A exaltação da Arte como algo distinto (e mais elevado) das outras atividades humanas, como apontado por Kristeller e Pareyson, foi e é particularmente problemática para o campo da arquitetura. Isso porque pretende distanciar o fazer arquitetônico do âmbito do artífice e aproximá-lo do âmbito do artista; a contradição está na existência e predominância de um vernáculo arquitetural (SCRUTON, 1983, p.25). A instituição arte ainda mantém algum controle sobre a arte em si, e não basta acreditar que o seu sentido está agora livre para ser apropriado por cada um. A instituição arte passa a poder englobar novas esferas mas jamais chega a negar aquilo que anteriormente já fazia parte de seu corpo: o que constar nas galerias e museus é, a priori, arte. Não há uma dissolução da instituição, mas antes a ampliação de seus limites. No entanto, pela sua própria natureza, inexiste na arquitetura esse instrumento espacial de legitimação, o que torna muito menos efetivo os julgamentos da instituição arquitetura sobre que construções lhes dizem respeito. Os julgamentos são produzidos pelo restrito círculo de iniciados, acadêmicos ou não, e se propagam quase que exclusivamente por publicações, institutos específicos e pela academia. Por isso é extremamente contraditória a exaltação da arquitetura enquanto arte no sentido moderno, autônoma e distinta das outras atividades. O limite do que é e o que não é arquitetura permanece ambíguo. Interpretações como a de Eisenman, em que a história da arquitetura se resume a uma narrativa que relaciona obras-primas,

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são consequência direta do destacamento espaço-temporal de obras que inevitavelmente estão ligadas a sua localidade. As simples construções são vistas como o necessário fundo banal requerido para que as verdadeiras grandes obras se destaquem. Eisenman, assim como outros artistas, aproveita-se da valorização da arte perante as outras atividades humanas para promover sua genialidade e erudição, como se fosse, nas palavras de Rorty, detentor de uma função sacerdotal, como aquele que nos põe em contato com um reino que transcende o humano. O que é especialmente crítico em sua disciplina, pois no espaço público o cidadão comum não necessariamente ratificou esse pacto, não necessariamente é simpático às questões da narrativa da arquitetura, o que traz problemas não somente ao arquiteto, que teria sua obra “incompreendida”, mas antes ao próprio cidadão comum, envolvido literalmente em uma discussão que não necessariamente lhe interessa. Enquanto o maior risco de um artista que produza arte pública é, como Tilted Arc, sofrer um rechaço público, o risco do público é ser excluído da possibilidade de compreensão da obra e a partir disso, excluir todas as obras de sua compreensão. A obra de Eisenman requer certa iniciação para que seja apreciada; aos olhos do cidadão comum pode parecer não mais do que uma casa mal construída já que, em sua ânsia pelo deslocamento do habitar, Eisenman muitas vezes dificulta tarefas do dia-a-dia. Scruton trabalha extensivamente sobre a apreciação da arquitetura, inicialmente distinguido o prazer arquitetônico do puro prazer sensual: Especificamente devemos distinguir as relações causais entre prazer e pensamento, das que são intrínsecas ou essenciais. Um pensamento pode extinguir o meu prazer no que como ou bebo; contudo, não tenho que estar a pensar no


que como ou bebo, para experimentar o prazer; nesse caso devemos dizer que a relação entre prazer e pensamento é “externa”. (...) No caso do agrado arquitetônico, um ato de atenção, uma apreensão intelectual do objeto, é uma parte necessária do prazer: a relação com o pensamento é interna e, qualquer mudança no pensamento, levará automaticamente a uma redescrição do prazer. Pois ela vai mudar o objeto do prazer, tendo aqui o prazer um objeto adicional à sua causa. É meu modo de pensar (de prestar atenção a) num edifício em especial, que define o que me agrada: portanto, o edifício não é meramente a causa de sensações de prazer (como quando corro a mão sobre uma magnífica parede de mármore), mas o objeto de atenção que dê prazer. (SCRUTON, 1983, p. 79) E logo mais à frente: Os amantes da arquitetura retiram prazer dos edifícios e não das experiências obtidas de edifícios. O prazer deles é um prazer fundado na compreensão, prazer que tem um objeto e não apenas uma causa. E aqui o prazer é dirigido para fora, para o mundo, e não para dentro, para o estado de espírito da pessoa. O prazer da experiência estética é inseparável do ato de atenção em relação ao seu objeto; não é o tipo de prazer característico de mera sensação, como o prazer de um banho quente ou de um bom charuto. Por outras palavras, os prazeres estéticos não são apenas acompanhados pela atenção a um objeto. Estão essencialmente ligados a essa atenção e, quando a atenção para, qualquer prazer que continue já não pode ser um exercício de gosto. Isto é parte do que pode levar alguém a dizer, que aqui o prazer não é tanto um efeito do objeto, como um modo de compreender. (SCRUTON, 1983, p. 114)

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A obra de Eisenman é radicalmente intelectual, a ponto de o próprio arquiteto afirmar que arquitetura seria o processo e não o objeto arquitetônico em si. A dependência entre objeto e raciocínio fica invertida: o objeto se torna apenas um índice do pensamento do arquiteto e não podemos nos ater a ele. Isso se torna problemático quando nesse exercício de abstração a apreciação do objeto e sua percepção imaginativa não são capazes de dar parâmetros ao próprio objeto. Tal obra sempre dependerá da legenda, inexistente na disciplina arquitetônica. O conhecimento prévio da teoria de Eisenman é requisito para a apreciação de sua obra, o que delineia a divisão da audiência entre o círculo de iniciados e o cidadão comum, incapaz de compreender a obra independente da atenção dispendida e dos seus conhecimentos práticos. Essa compreensão impossível tem como prejuízo a exacerbação das diferenças entre os graus de instrução, numa perspectiva que Jacques Rancière dá à própria ideia de compreensão como habitualmente entendida: Compreender: infelizmente é essa pequena palavra, exatamente essa palavra de ordem dos esclarecidos a causadora de todo o mal. É ela que interrompe o movimento da razão, destrói sua confiança em si, expulsa-a de sua via própria, ao quebrar em dois o mundo da inteligência, ao instaurar a ruptura entre o animal que tateia e o pequeno cavalheiro instruído, entre o senso-comum e a ciência. A partir do momento em que se pronuncia essa palavra de ordem da dualidade, todo aperfeiçoamento na maneira de fazer compreender – essa grande preocupação dos metodistas e dos progressistas – se torna um progresso no embrutecimento. A criança que balbucia sob a ameaça das pancadas obedece à férula, eis tudo: ela aplicará sua inteligência em outra coisa. Aquele, contudo, que foi explicado investirá sua inteligência em um trabalho do luto: compreender significa,


para ele, compreender que nada compreenderá, a menos que lhe expliquem. (RANCIÈRE, 2012, p. 25) E mais adiante indica um outro entendimento do compreender: É preciso entender compreender em seu verdadeiro sentido: não o derrisório poder de suspender os véus das coisas, mas a potência de tradução que confronta um falante a outro falante. É essa mesma potência que permite ao “ignorante” arrancar o segredo do livro “mudo” (...) Toda palavra, dita ou escrita, é uma tradução que só ganha seu sentido na contra-tradução, na invenção das causas possíveis para o som que ouviu ou para o traço escrito: vontade de adivinhar que se apega a todos os indícios, para saber o que tem a lhe dizer um animal racional que a considera como a alma de um outro animal racional. (RANCIÈRE, 2012, p. 95) Nessa perspectiva uma obra pretender dialogar com toda a audiência e não se destinar a um circuito fechado deixa de ser uma qualidade que poderia indicar modéstia do artista: é antes requisito mínimo para que a obra seu significado de fato se efetive. A contra-tradução é intrínseca na produção do seu significado. E se hoje instituições conseguem ter autoridade para investir a qualidade de arte a algo que não necessariamente é publicamente reconhecido enquanto tal é porque tem o respaldo de uma elite. Sabemos que é precisamente isso que define a visão embrutecedora de mundo: acreditar na realidade da desigualdade, imaginar que os superiores na sociedade são efetivamente superiores e que a sociedade estaria em perigo se fosse difundida, sobretudo nas classes mais baixas, a ideia de que essas superioridade é tão somente uma ficção convencionada. (RANCIÈRE, 2012, p. 151)

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Podemos assim verificar a ficção da instituição arte trabalhar a favor do status quo, de uma imposição do significado de arte, de cima para baixo, numa circular autolegitimação completamente ligada a uma elite financeira que se alimenta do que a instituição faz de melhor: decretar valor. Interessa a essas partes a diferenciação de trabalhos, de atividades humanas. Isso não somente exclui o comum da construção do sentido da arte, mas exclui a elite de apreciar a arte em outras atividades.

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O que embrutece o povo não é a falta de instrução, mas a crença na inferioridade de sua inteligência. E o que embrutece os “inferiores” embrutece, ao mesmo tempo, os “superiores”. Pois só verifica sua inteligência aquele que fala a um semelhante, capaz de verificar a igualdade das duas inteligências. Ora, o espírito superior se condena a jamais ser compreendido pelos inferiores. Ele só se assegura de sua inteligência desqualificando aqueles que lhe poderiam recusar esse reconhecimento. (RANCIÈRE, 2012, p. 65) Se pretendemos não nos associar a essa lógica, investindo nosso próprio trabalho em um horizonte de igualdade, em que a relação entre as pessoas e as coisas possa se dar de forma direta e não mediada por instituições, devemos partir da premissa da igualdade das atividades: A fabricação de nuvens é uma obra da arte humana que exige, nem menos, nem mais, tanto trabalho, tanta atenção intelectual quanto a fabricação de calçados e de maçanetas. (RANCIÈRE, 2012, p. 61) Pois qual é a diferença entre arquitetura e simples construção senão o quebrar em dois o mundo da inteligência, dividir o mundo entre inferiores, que construiriam como animais, como abelhas


que constroem colmeias, limitando-se às necessidades animais, e os superiores, autoconscientes de sua condição, e que não se limitam às simples construções, mas antes a buscarem suprir as necessidades espirituais. Superiores e inferiores, comuns e arquitetos, a verdade é que o ambiente construído não distingue aquele que o construiu, nem suas intenções. O que fica são a pertinência da obra, o sentimento de ser apropriado ou não ao lugar, de serem legíveis ou não as razões que levaram a tal desenho e, acima de tudo, a qualidade da vida que se ela comporta e induz. Todas as partes envolvidas com construção só têm a enriquecer sua visão de mundo quando se propõem resgatar o significado de arte enquanto o fazer com excelência, no sentido de Pareyson em que toda a operosidade humana a arte está presente, no sentido de que nenhuma atividade atinge seu próprio fim se não é exercitada com arte. Os parâmetros de valoração de uma construção já não estão ancorados a uma narrativa qualquer, mas antes à si mesma e, por ser uma obra vivida, por consequência lógica, a vida de todos os dias, ao verificável por qualquer um. Grassi e Scruton interpelam por isso: Em primeiro lugar a Arquitetura deve ser coerente consigo mesma, isto é, com suas características específicas; mas ao mesmo tempo deve ser coerente com sua responsabilidade social particular. E neste ponto a questão de sua relação com o público torna-se impossível de ignorar. Por essa razão a linguagem da Arquitetura é – ou deveria ser – uma linguagem acessível! Além disso, a partir do momento em que a Arquitetura entra diretamente na vida cotidiana (por exemplo, pelas funcionalidades extra-artísticas), cria um vínculo permanente a partir do qual é possível formar uma base crítica para julgar as “boas intenções”. (GRASSI, 1998, p. 398)

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A tarefa moral, que deduzimos da nossa “estética da vida de todos os dias”, não pode ser realizada por qualquer lapso na originalidade, na procura da “experiência envolvente” que é tantas vezes proposta como o único ideal sério da arte. A autoexpressão mais não é do que a tentativa do individualismo para se perpetuar na esfera estética. É claro, ninguém duvida que a compreensão estética requer um tipo especial de liberdade; mas a liberdade tem o sentido que lhe é dado nas adequadas palavras de Spinoza: a “consciência da necessidade”. O arquiteto tem de ser limitado por uma regra de obediência. Tem de traduzir a sua intuição em termos que sejam publicamente inteligíveis, tem de unir o edifício a uma ordem que seja reconhecível não só pelo perito, mas também pelo homem vulgar não instruído. (SCRUTON, 1983, p. 245) Parte da glória e da desgraça da arquitetura moderna deve-se a uma estridente busca pela linguagem acessível, que descambou para a pura retórica. A tabula rasa de valores que os arquitetos pregavam na época reduziu a arquitetura àquilo que era possível de se discutir a partir dos fatos, como se estes existissem por si, sem nenhum juízo de valor. Assim como na arquitetura de Eisenman, o problema foi a completa fé no logocentrismo, agora sob a crença da suficiência dos argumentos científicos. E contra isso críticos demoraram ao menos até a metade do século, durante o CIAM IX para decantar um vocabulário que desse conta de entrar nas discussões resgatando valores que estiveram implícitos nas cidades tradicionais e que, ausentes no urbanismo moderno, foram uma das causas de seus fracassos. Mas em que propriamente consistiria a linguagem acessível?


Tópicos da produção arquitetônica A arquitetura se nos apresenta como uma resposta significativa, ou seja, poética, ao problema do habitar, projetando e construindo todo o ambiente físico de acordo com este objetivo. Não é verdade que o nosso modelo de cultura atribua grande importância, na escala de seus valores, a esta operação de formação do sentido geral do próprio ambiente físico mediante a figura; antes, quase todos os indícios que podemos recolher nos induzem a crer no contrário; mas se queremos ser arquitetos, este é o nosso âmbito e esta a nossa tarefa. Vittorio Gregotti No meu outono, tornei-me mais esperançoso quanto ao animal humano no trabalho. O conteúdo da caixa de Pandora pode efetivamente tornar-se muito menos assustador; podemos alcançar uma vida material mais humana, se pelo menos entendermos como são feitas as coisas. Richard Sennet Temos de reconhecer que os conhecimentos arquitetônicos não constam propriamente na história da arquitetura, mas antes correm em paralelo, pela linguagem não-verbal das formas. Este trecho do trabalho não diz respeito a “temas” que poderiam servir como inspiração ao fazer arquitetônico, mas antes a tópicos sobre os quais a arquitetura, pela sua própria natureza (concreta e pública), pode ser avaliada. Independem, portanto, da intenção do arquiteto em expressá-los, já que a arquitetura acontece, bem ou mal, por estes tópicos. É uma exposição esquemática da minha forma pessoal de avaliar a arquitetura e que não tem

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caráter de receituário projetivo, e sim de instrumento avaliativo. Estão estruturados em três eixos: o corpo do edifício (tectônica), o corpo humano (os sentidos, incluindo o sentido espacial) e a vida de todos os dias (anti-Gemstkunstwerk).

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A expressão coerência em si mesma de Grassi não deve ser entendida como referência a um formalismo compositivo, mas antes como uma das implicações da concretude da arquitetura. Talvez nunca estivemos tão alienados a respeito da cultura materialidade do mundo como hoje em dia. Não apenas a imaterialidade do mundo virtual nos induz a sermos menos atentos à materialidade do mundo concreto, mas o crescimento exponencial da divisão do trabalho e a revolução eletrônica nos afastaram cada vez mais de experienciar e compreender os objetos. Em maior ou menor grau, uma casa rural inglesa, tal como apresentada por Bill Bryson em seu livro Uma breve história da vida doméstica, era praticamente autossuficiente em seus insumos básicos. Todos os ofícios tinham alguma correspondência na casa, de modo que se os moradores não possuíam todas as habilidades e conhecimentos para exercê-los, a verdade é que não havia nada que fosse um mistério. Nos centros urbanos, em que as corporações de ofício organizavam o meio produtivo, era mais ou menos clara a competência de cada um e portanto um cidadão comum de uma cidade qualquer possuía um mínimo conhecimento de como as coisas eram feitas, ou ao menos a quem competia fazê-las. Porém, com a revolução tecnológica e o crescimento da especialização, tornou-se cada vez mais difícil entender a lógica por trás de cada objeto. A tecnologia invisível ou microscópica dos circuitos eletroeletrônicos nos afastou da manipulação direta do objeto mecânico, do verificar com as mãos. Nessa complexidade cada vez maior que as coisas tinham, a nossa percepção sobre os objetos foi se ficando cada vez mais superficial, e a imagem parece ter tomado lugar a matéria.


Neste brevíssimo resumo podemos colocar em perspectiva a ideia que a coerência em si mesma de Grassi pode contemplar. Por mais que avanços tecnológicos tenham possibilitado cada vez mais formas novas e fomentado o surgimento de tipologias, a verdade é que a arquitetura mantém, inevitavelmente, a sua materialidade. Sua natureza intrinsecamente vinculada ao lugar, no contínuo do ambiente construído, tende a dificultar sua redução à imagem, já que diferentemente dos objetos, cada vez mais autônomos, a arquitetura muitas vezes sequer é percebida: como nota Walter Benjamin, o fruir arquitetônico acontece por distração. No entendimento de Scruton, no entanto, esse viver distraidamente uma construção não deve ser confundido com o prazer arquitetônico propriamente dito, que requer uma percepção ativa, imaginativa. É verdade que mesmo distraidamente estamos condicionados pela construção envolvente, mas nos atermos a esse efeito físico é nos enxergarmos como animais, numa prática fisiológica a que dificilmente poderíamos atribuir a ideia de arte. Não estaríamos levando em consideração o lugar da arquitetura na cultura. Aqui é útil a diferenciação entre percepção vulgar e percepção imaginativa feita por Scruton. A percepção vulgar diz respeito a como, enquanto animais, percebemos os estímulos: não é possível dizer que um pássaro aprecie música mesmo não tendo dúvidas de que ele ouve os seus sons. A percepção imaginativa remete à contra-tradução de Rancière, que acontece quando, por exemplo, enxergamos uma massa de alvenaria como catedral, identificamos manchas de tinta sobre uma tela enquanto rostos humanos, ou, de forma mais complexa, vemos ritmo em uma linha de colunas. Isto explica a natureza ativa da experiência arquitetural, mesmo no que tem de mais involuntário. A vulgar expe-

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riência perceptiva – a experiência dos animais e a nossa própria experiência no dia-a-dia (quando não é sujeita a autorreflexão) – é determinada pelo seu objeto. Somos passivos em relação a essa experiência como somos passivos no que toca às nossas crenças. Mas não somos passivos em relação à experiência da arquitetura que nasce apenas como o resultado de uma certa espécie de atenção. As nossas crenças não se mudam quando mudamos o “agrupamento” de uma sequência de colunas, nem precisam de ser mudadas por qualquer dos atos de atenção que dirigimos à arquitetura. O nosso objetivo não é o conhecimento mas o gozo da aparência de uma coisa já conhecida. (SCRUTON, 1983, p. 99) 60

Não raro arquitetos, não contentes com a possibilidade da percepção atenta por parte do público, buscam a garantia desta a qualquer custo. Na ânsia de serem ouvidos, produzem objetos que necessariamente teriam que ser vistos enquanto arquitetura, que pretendem se autodeclarar arquitetura destacando-se estridentemente do seu contexto. Acreditam que desta forma estariam obrigando o público a perceber a arquitetura. Neil Leach escreve longamente sobre como essa arquitetura espetacular se torna anestesia (an-estética em seu trocadilho em castelhano). A longo prazo é, portanto, a anti-propaganda da arquitetura, a promoção do ignorar a arquitetura. Não é difícil ouvir do público de uma obra espetacular qualquer que tal edificação seria coisa de arquiteto, em tom jocoso, como se já não lhes dissesse respeito e pouco interessasse compreender. Uma arquitetura serena, desejável e coerente em si mesma, passa por saber aproveitar a experiência desatenta do público de certa forma a induzir, mas jamais obrigar, uma experiência atenta. Para isso trabalham pequenos deslocamentos daquilo


que intrinsecamente lhe constitui, sem nos tentarmos a adições arbitrárias ao corpo constituído. Scruton indica sutilmente isso quando declara que: O nosso agrado por uma fachada é afetado quando ficamos a saber que, tal como a fachada das Escolas Antigas em Cambridge, é uma peça separada de cenário. A mudança no agrado é, aqui, uma reação à ideia: a ideia de que o que vemos não tem um significado real como arquitetura. (SCRUTON, 1983, p. 77, tradução do autor) A ideia de tectônica de Kenneth Frampton vai ao encontro dessa ideia de poesia da arquitetura enquanto própria arquitetura. Em seu livro Studies in Tectonic Culture o crítico britânico produz uma espécie de história da arquitetura paralela, já que seu viés é essencialmente sobre a forma com que as concepções construtivas e estruturais estão ligadas a uma concepção de mundo. Em textos em que defende a ideia de regionalismo crítico transparece a ideia de uma arquitetura que faça poesia em suas juntas (joints): na relação entre materiais, na transferência de esforços, no modo como a construção encontra o solo, na forma como a estrutura se mantém perante as intempéries e perante o tempo, enfim, tectônica no sentido amplo. Levando em conta a arquitetura enquanto obra concreta, o apelo de Frampton parece razoável: se há fatores imutáveis a que a arquitetura tenha que responder, estes são a gravidade e as intempéries. Nada mais lógico que ao menos parte da poesia da arquitetura se dê pelo seu modo de lidar com esses dois fatores, e de tornar expressivo o seu funcionamento, enfatizando sua realidade material e feitura, de modo que minimamente consiga nos resgatar da inebriante atmosfera virtual e nos revelar o material inevitável. Na expressão de Sennett, alcançar uma

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vida material mais humana. A arquitetura pode funcionar como campo de resistência perante a redução da cultura material à imagem e, em certo sentido, reverter seus efeitos sobre nós, trazendo à tona a concretude das construções. Para além da lógica do corpo arquitetônico, o corpo humano, ou seja, seus sentidos, é fator fundamental para arquitetura. Podemos vinculá-lo à apreciação distraída da arquitetura, em que a percepção vulgar tal como coloca Scruton, é a dominante. Juhani Pallasmaa escreve sobre as relações entre corpo e espaço em seu livro Los ojos de la piel:

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A arquitetura é o instrumento principal de nossa relação com o tempo e o espaço e de nossa forma de dar uma medida humana a essas dimensões; domestica o espaço eterno e o tempo infinito para que a humanidade o tolere, o habite e o compreenda. (PALLASMAA, 2006, p. 18, tradução do autor) Seu texto se desenvolve como uma denúncia do ocularcentrismo do mundo, da preponderância da visão sobre os outros sentidos ao longo da história da humanidade, inclusive da arquitetura. Bastaria capitularmos que boa parte dos livros e tratados de arquitetura diz respeito a regras compositivas ligadas estritamente à visualidade para confirmar a centralidade da visão na história da arquitetura. Pallasmaa contrapõe a isso uma arquitetura que estimule todos os sentidos, que explore a relação arquitetura-corpo integralmente, reivindicando a riqueza das superfícies, dos cheiros, temperaturas, etc. Fala ainda sobre autores diversos que listavam não apenas cinco, mas dezenas de sentidos do corpo humano, extrapolando o tato, visão, olfato, gustativo e audição. É possível incluir entre esses outros sentidos um sentido espacial, ligado diretamente à vivência dos espaços propriamen-


te ditos, algo tão fundamental para a arquitetura quanto pouco explorado pela teoria arquitetônica. A fenomenologia teve um papel especialmente importante no avanço da arquitetura, no sentindo de entendê-la como um todo percebido, escapando do espaço cartesiano moderno e abrindo espaço para o aparecimento de uma série de sentidos reprimidos. Por volta da década de sessenta Gaston Bachelard, Otto Bollnow entre outros começam a escrever sobre o espaço propriamente dito. É extremamente curioso que os autores tenham sofrido com restrição de vocabulário, muitas vezes tendo que recorrer a metáforas para conseguir explicar sobre o que ou que sensação específica estão descrevendo. Parece ser algo que só recentemente se desenvolveu enquanto tema a ser pensado. Se de lá pra cá uma “poética do espaço” tenha se tornado uma questão cada vez mais central para uma série de arquitetos, as palavras disponíveis ainda parecem insuficientes. Bollnow em seu O homem e o espaço descreve curiosas experiências espaciais e busca a partir delas forjar algum vocabulário: É natural que sobrevenham acontecimentos que tornem a habitação limítrofe repentinamente muito mais próxima. Por exemplo, quando os moradores da habitação estranha, com martelos ou outros ruídos incômodos, penetram o círculo de minha atenção. Constato quem é o causador disso, e isso se embasa, novamente, na distância concreta. A habitação estranha se mostrou mais próxima ao penetrar meu âmbito vital por meio do incômodo. Mudança revolucionária, de todo, seria então abrir um furo na parede, ou instalar uma porta entre os espaços antes incomunicáveis, pois isso basicamente mudaria todo o esquema de distâncias. (...) Algo equivalente ocorre ainda com as relações en-

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tre os andares de uma casa. Eu lembro de minha infância com que consternada indignação eu (numa temporada de férias) despertara pelo ruído de meu avô, que dormia no quarto acima de mim. Eu não tinha sequer pensado que aquilo fosse possível, pois para mim os outros quartos estavam muito longe um do outro para que o ruído pudesse ser transmitido, atravessando vários recintos, então as escadas e até o dormitório do meu avô. Foi somente um estalo, uma real descoberta, quando repentinamente se me tornou claro que o ruído tinha um caminho muito mais curto através do teto que aquele que minha distância vivenciada definia. (BOLLNOW, 2008, p. 208) Mais a frente: 64

Neste aspecto, mostra-se muito esclarecedor e frutífero o conceito do espaço hodológico e da distância hodológica, introduzido por Lewin e desde então adotado por Sartre. Derivado do grego, denota o espaço aberto pelo caminho, assim como nós anteriormente dizíamos no tratamento do caminho, que este conquista o espaço, e as distâncias a percorrer no caminho. Esse espaço, já por princípio hodológico, é contraposto ao espaço matemático abstrato. Neste, a distância entre dois pontos é determinada somente pelas coordenadas de ambos; é logo, uma grandeza independente da estrutura do espaço existente entre ambos. O espaço hodológico significa, em contraposição, a mudança que ocorre no espaço concretamente vivido e vivenciado por meio daquilo que nós até aqui já denominamos a acessibilidade diferenciada dos objetivos espaciais. (BOLLNOW, 2008, p.209) A partir disso o filósofo alemão desenvolve as relações entre espaço (hodológico) e som, dia e noite, humor e várias outras


variáveis na percepção do espaço. Apesar de uma ou outra vez as relações parecerem abstratas, o autor tenta sempre clarificar sobre o que fala a partir de experiências concretas. Não temos dúvida, por exemplo, que exista em um salão de um restaurante qualquer um lugar melhor para se sentar; não é acaso sentirmos um maior conforto em uma sala de estar em remanso, fora de qualquer trajeto habitual da casa; ou ainda termos certo contentamento, em vivenciarmos um espaço percorrível em três dimensões, como na FAU. Em diversas obras o arquiteto Álvaro Siza, por exemplo, deixa claro sua intenção em explorar as possibilidades de criação espacial. É somente com muito esforço que conseguimos desenhar o percurso das rampas e corredores suspensos da Fundação Iberê Camargo: as inclinações, as reentrâncias das passagens exteriores se sobrepondo às interiores e as inclinações criam um circuito complexo de se compreender, mas fácil de circular. As passarelas suspensas exteriores são quase completamente enclausuradas, o que dá a ideia de penetrar um maciço, como se a partir do edifício penetrássemos a encosta de pedra vizinha ao edifício. A circulação por elas dá uma dimensão do edifício maior do que realmente é, já que foi apropriada pelo edifício ao abraçar o vazio. Essas são experiências conformadas por um desenho específico, que intencionalmente estimulam esse sentido espacial. Estímulos que dificilmente podem ser concebidos em uma prática projetiva baseada somente em desenho de corte e planta. Surgem quando arquitetos se preocupam menos em formatar um modelo fechado do objeto arquitetônico e mais em imaginar a perspectiva de um transeunte, sua circulação, seu contexto, seu estar. Apesar de podermos nos crer capazes de compartilhar nossas

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Fundação Iberê Camargo, de Álvaro Siza.


sensações de uma forma como antes simplesmente não era possível, temos que ter claro quais são os limites de tal pesquisa. É um tanto inocente por parte de Pallasmaa acreditar que, por exemplo, uma arquitetura integral poderia aproximar a importância do paladar na apreciação da arquitetura da importância que, por exemplo, a visão tem. Se por um lado podemos reconhecer que a exacerbação da visão e visualidade da arquitetura tenha induzido a certa ignorância sobre os outros sentidos, por outro temos que reconhecer a especificidade de cada sentido: assim como Kristeller desconstroi a ideia de arte enquanto unidade formada por partes iguais, devemos enxergar que a própria abertura do número de sentidos nos mostra como modos completamente diversos de se sentir estão incluídos sob mesmo termo. Temos que reconhecer a especificidade de cada um e suas possibilidades. A escrita e a fala, consideradas as tecnologias da comunicação humana, se dão pela visão e audição. Na arquitetura obviamente a visão será central na hora de projetar, pois é instrumento não apenas de percepção, mas de comunicação. A visão será a via pela qual nossa percepção imaginativa recolherá a maior parte da informação. É por ela que mantemos uma comunicação pública e intermitente, é por ela que a arquitetura melhor comunica. Em seu livro História Crítica da Arquitetura Moderna, Kenneth Frampton traz dentre diversos temas, uma discussão entre Adolf Loos e Henry Van de Velde que talvez não tenha se repetido de forma tão clara e direta como então. O cúmulo do embate se dá na publicação por parte de Loos de sua fábula A história de um pobre homem rico, em que relata o destino de um próspero negociante que havia contratado um arquiteto secessionista para projetar-lhe uma casa “total”, o que significava que além da casa, o arquiteto desenharia mobiliário e as roupas:

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Certa vez, ele estava comemorando seu aniversário. A mulher e os filhos haviam lhe dado muitos presentes. Ele apreciou muito a escolha deles e estava desfrutando-os ao máximo. Logo, porém, chegou o arquiteto para pôr as coisas em seu lugar e tomar todas as decisões sobre os problemas mais difíceis. Entrou na sala. O proprietário recebeu-o com grande prazer, pois tinha a cabeça cheia de ideias, mas o arquiteto nem pareceu tomar conhecimento dessa alegria. Tinha descoberto algo muito diferente e ficou lívido. “Que chinelos são esses que você está usando?”, perguntou como se a dúvida o enchesse de dor. O dono da casa olhou para os seus chinelos bordados, mas em seguida respirou aliviado. Desta vez, sentiu-se sem culpa alguma. Os chinelos haviam sido confeccionados segundo a concepção original do arquiteto. Ele então respondeu, assumindo ares superiores: “Ora, senhor Arquiteto! Já se esqueceu de que foi o senhor mesmo quem os desenhou?” “Claro que não me esqueci”, trovejou o arquiteto, “só que foram feitos para serem usados no quarto! Aqui, não dá para perceber que essas duas manchas impossíveis de cor acabam completamente com a harmonia da sala?” (LOOS, 1908 apud FRAMPTON, 2003, p. 103) Frampton assinala que o senhor Arquiteto a quem se referia Loos era Henry Van de Velde, que de fato havia desenhado para sua esposa vestidos específicos que harmonizariam com as formas e desenhos de cada cômodo da casa. Enquanto Loos enfatizava nos seus projetos a liberdade dos clientes em decidirem por preferências pessoais que mobiliários deveriam comprar, Van de Velde fazia questão de levar os seus desenhos até as últimas consequências. Ele tinha fé absoluta no poder do design enquanto disseminador de valores; funcionariam quase como mensagens que homeopaticamente seriam absorvidas pelos moradores de


seus edifícios, promovendo uma mudança social a partir das formas. A feiura corrompe não apenas os olhos, mas também o coração e a mente, dizia, e como contraposição lógica, a beleza poderia produzir a bondade, no coração e na mente. Van de Velde foi fortemente influenciado pelas teorias de Alois Riegl e Theodor Lipps, que se complementavam na construção de uma visão romântica em que o “desejo da forma” do gênio tinha primazia enquanto objeto da arte. E a partir dessa ideia se enxergava com a missão da disseminação da beleza. Sua visão totalizante se traduzia muitas vezes em uma posição totalitária. Não sem demora o próprio arquiteto começou a se questionar: Até que ponto tenho esse direito de impor ao mundo um gosto e um desejo que são tão pessoais? De repente, não mais vejo as ligações entre meu ideal e o mundo. (FRAMPTON, 2003, p. 114) A ideia de obra de obra de arte total (Gesamtkunstwerk) não é, no entanto, uma ideia circunscrita ao início do século XX. Tal concepção suscitou debates no campo de teoria da arte em especial no teatro. Na arquitetura a ideia de obra total teve algum apelo desde Michelangelo, que em seus projetos não distinguia os ofícios: arquitetura, escultura, pintura e engenharia, todos trabalhavam de maneira continuada por um único propósito. O surgimento do termo no sentido moderno está associado ao romantismo alemão, especificamente na figura de Richard Wagner, que pretendia conjugar todas as artes (plásticas, música, teatro, arquitetura, canto e dança) em uma só performance. Era completamente crítico em relação às óperas de sua época, em que toda a ênfase era dada à música em si. Ele buscava uma relação mais orgânica entre as artes. Wagner idealizou uma construção específica para suas óperas, executada em Bayeruth e inaugurada em 1876. A distinção mais

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radical do edifício em relação a outras casas de ópera da época era o fosso em que a orquestra se instalava, completamente escondida da plateia. A intenção era que a atenção do público não focasse nos músicos, mas apenas nas músicas. Os olhos deveriam estar direcionados à encenação.

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Henry Van de Velde seria um dos primeiros arquitetos modernos a ansiar transpor a ideia da performance wagneriana para a disciplina arquitetural. Os problemas de tal transposição são evidentes de partida: enquanto a ideia de experiência imersiva de Wagner acabaria por se restringir temporalmente, na disciplina arquitetônica o tempo não é limitado. Arquitetos como Van de Velde acabariam promovendo uma total teatralização da vida, incluindo a inserção de novos “rituais” cotidianos como, por exemplo, a troca de “figurino” a cada ambiente. Essa teatralização significa a estetização do cotidiano, o repensar o dia-a-dia a partir de um ponto de vista primordialmente estético, imposto de fora. A arquitetura se torna uma espécie de etiqueta a que seu habitante estaria obrigado a seguir. A caricatura de Loos não parece afinal tão distante da realidade. É surpreendente, portanto, o grande número de arquitetos que ainda hoje têm como horizonte a criação de uma obra arquitetônica total no mesmo sentido de Van de Velde – e apesar de seus motivos serem completamente distintos, não é difícil imaginar que a atitude de Eisenman se aproxima disso. Na perspectiva de um gênio com vontade expressiva que perpassa todos os âmbitos da cultura material indiferentemente, parece possível resolver todas as demandas de projeto a partir de um único princípio: o visual. Boa parte dos star architects criam alguma “identidade” nesse sentido, de modo que o traço de sua arquitetura remeta à assinatura do arquiteto envolvido.


A arquiteta Zaha Hadid é um desses casos. De joias a cidades inteiras, a lógica do desenho é uma só: são linhas orgânicas e sensuais, modelagens tridimensionais somente possíveis graças à computação gráfica de última geração aliada a um canteiro de obras altamente automatizado. Seus projetos em geral se desenvolvem por meio de um desenho expressionista que parece pretender engolir tudo, praticamente todas as peças fixas, incluindo sistema de iluminação, sinalizações, etc, dando a impressão de se tratar de uma massa contínua que aqui e ali teria tomado uma forma mais apropriada para isto ou aquilo. Esse excesso de desenho cria situações próximas ao do conto de Loos. A imagem torna-se tão forte a ponto de repelir presenças que não sigam o seu traço. Elementos mais normatizados, como vasos sanitários, sprinklers, escadas rolantes, e etc. acabam sendo redesenhados ou disfarçados pela arquiteta. Apesar de Hadid nunca ter demonstrado incômodo pela ocupação de suas obras por parte dos clientes, os próprios ambientes parecem rejeitar os hábitos e resquícios do dia-a-dia, como se tratasse de uma contaminação. Esse desenho obsessivo ocupa as formas que a vivência diária deveria ocupar, expele a cultura material da vida cotidiana. Em seu livro O Artífice, Sennet relata um encontro ocorrido em Viena entre Wittgenstein e Loos e especula sobre o que um teria falado para o outro. Aconteceu logo antes de Wittgenstein decidir projetar e construir sua famosa casa para a própria irmã. Sua irmã deu total liberdade quanto à criação arquitetônica, e a riqueza da família garantia também uma total liberdade orçamentária. Dispondo de tantos meios, Wittgenstein foi, ao longo do processo, se tornando obcecado pela criação de uma edificação absoluta, em suas próprias palavras: Não estou interessado em construir um prédio, mas em apresentar a mim mesmo os alicerces de todos os prédios possíveis. (WITTGENSTEIN apud SENNET, 2012, p. 284). Suas decisões chegaram ao ponto de, estando a

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casa pronta para ser limpa e ocupada, ordenou que levantassem o teto em três centímetros, o que obviamente envolvia um movimento de reconstrução enorme. E apesar de toda a dedicação e meios dispendidos, ao fim da vida declarou que apesar da casa exibir “boas maneiras”, casa carecia de uma “vida primordial”. Não é difícil associar a atitude obsessiva de Hadid e Wittgenstein a um trecho do livro de Scruton:

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Um edifício é essencialmente um objeto público, para ser olhado, viver-se nele e caminhar para lá em qualquer altura, em todas as condições e com todas as disposições. O observador não se coloca normalmente a si mesmo num estado de espírito, nem o olha, como o pode fazer a um livro, uma pintura ou uma escultura, como um objeto de atenção privada e pessoal. Há, de certo, portanto, qualquer coisa de inerentemente anti-arquitetural na perspectiva – conhecida por vezes como expressionismo – que vê a arquitetura como um termo médio num processo de comunicação pessoal, o processo de passar a emoção (ou seja, emoção imaginada) do artista para o público. Encontrar um edifício expressionista na vida do dia-a-dia é como ser constantemente incomodado por um maçador gabarola, que deseja urgentemente que se saiba que o que ele sente e que sente exatamente o mesmo todos os dias. (SCRUTON, 1983, p. 188) O autor contrapõe o relativo fracasso de Wittgenstein ao sucesso de Loos: seriam exatamente as limitações diversas e imprevistos incontornáveis em uma obra que lhe permitiram soluções ótimas, afastando-o de soluções abstratas e enfatizando as vinculadas diretamente a razões práticas, ao diálogo essencial entre acerto e erro, inerente a todo ofício. E aqui estariam expostos os dois lados da obsessão: a obsessão desvairada de Wittgenstein e


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Hotel SAS, de Arne Jacobsen.


a obsessão produtiva e sadia de Loos. As limitações tornavam as obras mais de rua e menos cosa mentale do arquiteto, dificilmente apropriada para comportar os imprevistos do dia-a-dia. De certa forma alguma abertura deve ser mantida.

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Outro exemplo é o projeto de Arne Jacobsen para a Scandinavian Airlines System Royal Hotel, em meados da década de cinquenta. O arquiteto teve a chance de desenhar praticamente tudo: o edifício, os quartos, os móveis, talheres, tecidos, etc. É um projeto único, já que nos dias de hoje a fabricação sob medida de todos esses itens seria inviável em qualquer escala de projeto. De qualquer forma é impressionante o equilíbrio que as peças mantêm: os ambientes são coerentes de uma forma sutil, em que uma peça exterior não aparenta ser uma intrusão. Atendem a uma lógica comum, mas não a um traço comum. Ao contrário da arquitetura de Hadid, os ambientes criam a sensação de pertencimento e não de exclusão.


Considerações finais Este trabalho parte da igualdade entre os homens e seus ofícios para deslocar o arquiteto de seu posto privilegiado enquanto artífice de uma arte maior e trazê-lo de volta junto ao homem comum. Duas características da arquitetura foram tidas como intrínsecas: sua concretude e seu caráter público. Foram distinguidos dois tipos de apreciação arquitetônica: a distraída, baseada na percepção vulgar, e a atenta, baseada na percepção imaginativa. Em seguida foram levantados como hipótese avaliativa da arquitetura três tópicos: a tectônica (ou a potência da arquitetura de explicitar a lógica constitutiva da cultura material), o estímulo sensível e a abertura da obra (enquanto o inverso do Gesamtkunstwerk). Isso indica certa objetividade na discussão estética da arquitetura. Para admitirmos essa possibilidade, vale refazer o trajeto de Scruton em seu texto conclusivo “Arquitetura e moralidade”. Haveria um certo e errado em arquitetura? Este tipo de questionamento frequentemente está condenado à negativa, acompanhada da confiança de que o gosto é subjetivo. E em certo sentido é, já que parte essencialmente de uma experiência individual. Mas por outro é objetivo, pois ao contrário do ditado popular, a verdade é que em geral acreditamos ser possível defender o nosso gosto com argumentos, ao menos até certo ponto. É comum deixarmos de gostar de uma fachada ao descobrir que é meramente cenográfica. A causa disso não se dá de forma sensitiva, já que nesse caso os sentidos enganam, mas de forma estritamente racional Na afirmação de que a apreciação estética (da arquitetura) é objetiva temos uma história rica em arquitetos pretendendo estabelecer ou descobrir regras e leis universais da prática ar-

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Casa Z, de Peter Zumthor.


quitetônica. Por outro lado, a facilidade com que essas leis são derrubadas nos sugere o oposto, de que a apreciação estética é subjetiva e portanto limita-se ao âmbito da experiência individual. Essa sugestão deve ser deixada de lado se quisermos escapar ao binarismo objetividade e subjetividade, já que, como vimos, ambos empenham papéis na conformação do gosto. Para situar melhor esse entre, Scruton faz um paralelo com as apreciações morais: Em algumas perspectivas, a moralidade consiste num conjunto de regras de conduta e o problema filosófico é simplesmente como se podem justificar essas regras. Esta abordagem legalista da moralidade não registra muito exatamente as reflexões reais dos homens morais, a maioria dos quais teria relutância em especificar regras absolutas de conduta, mesmo que não encontrem dificuldade em reconhecer atos que merecem louvor ou censura. E a capacidade de reconhecer as ações corretas provém em parte de uma capacidade para reconhecer os bons homens – para reconhecer a virtude moral em ação, para reconhecer que uma determinada ação exprime disposições que se devem imitar ou elogiar, disposições pelas quais nos “entusiasmamos” à maneira característica unicamente de seres morais. Se este pensamento é verdadeiro – e há certamente desde Aristóteles uma longa tradição de filósofos morais que com ele concordaram – podemos então compreender o que está certo ou errado não porque possuímos um catálogo de regras, mas porque compreendemos os motivos e os sentimentos do homem de virtude. Ao compreendermos o homem virtuoso, podemos, quando surge a ocasião, imaginar o que ele faria. Mas o preceito subsequente, mesmo alcançado assim indiretamente e em desafio de qualquer lei universal, pode ser ainda objetivo. Será tão objetivo como a noção de virtude

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Escrit贸rio Novartis, de Peter M盲rkli.


de que provém e, se se pode mostrar (como Aristóteles tentou mostrar) que o nosso ideal de virtude não é arbitrário, mas, pelo contrário, nos é imposto pela própria natureza da escolha racional, todas as apreciações morais são, então, em certa medida, objetivas. Todas as apreciações morais derivam a sua validade do raciocínio que nenhum homem pode razoavelmente rejeitar. (SCRUTON, 1983, p. 234) No trecho citado de Scruton fica exposto o ponto crítico da relação binária entre objetividade e subjetividade: sua falta de relação com a verdade. Os arquitetos modernos podem, na nossa história da arquitetura, serem associados àqueles que buscaram desvelar ou instituir leis e regras universais do fazer arquitetônico. Cometeram assim uma pequena confusão: não buscavam objetividade, mas sim verdade. Ao construir eles ignoraram o possível diálogo com os outros homens, negando as tradições e preferindo pela busca de deus – e não há dúvidas de que muitos arquitetos se viam em uma verdadeira missão sacerdotal. No outro extremo, os arquitetos pós-modernos tentaram, a partir do desfacelamento das “verdades” modernas, intuir a subjetividade total à qual a arquitetura estaria condenada. Surge a figura do herege, aquele gênio que não fará mais do que dar a vida para provar que não há autoridade senão a do indivíduo. A única pesquisa se dá no âmbito pessoal, com motivações estritamente pessoais. A vida do autor começa a fazer parte da obra e logo não temos sacerdotes, mas celebridades.. Seja na afirmação ou na negação da verdade, boa parte dos arquitetos deixou de dialogar com o outro. Não entenderam que as tradições não existem por alguma pretensão à verdade, mas graças à possibilidade de consenso entre os homens. Ante a riqueza de uma construção coletiva ao longo do tempo acumulada en-

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Renovação Millbank para Tate, de Caruso St John.


quanto tradição, aquilo que os arquitetos ofecerecem enquanto uma nova arquitetura é muito pouco - e basta lembrarmos de Pruitt-Igoe para vermos que às vezes pode ser pouco o suficiente para sequer se sustentar. Tão mais interessante se torna a arquitetura quanto reconhecemos seu potencial didático: o de retirar a percepção da vulgaridade e torná-la atenta. Por outro lado, sua perenidade torna qualquer “chamada” mais pretensiosa em sinais de uma arquitetura estridente. Se, no entanto, negarmos uma diferença de partida entre arquitetura e simples construção, é possível alcançar uma arquitetura que em vez de se isolar de seu contexto pela excepcionalidade, torna-se contagiosa pela banalidade. Uma construção aparentemente banal que consiga se apresentar enquanto poesia não estará se relegando à exceção, mas antes promovendo todas as construções banais enquanto possibilidade de apreciação estética. Reconhecendo a arte em todos os ofícios humanos, reconhece-se qualquer ofício enquanto possível de apreciação estética: a arquitetura não necessariamente se limita a estimular a percepção atenta à sua disciplina específica, mas amplia a atenção perante a cultura material como um todo. Considerando o caráter habitável da arquitetura, deve-se compreender que para além de nos induzir a uma percepção atenta sobre a matéria, a arquitetura pode conformar a vida de diferentes modos, tornando a percepção atenta à própria existência. O século XX foi excepcionalmente prolífico em experimentação sobre modos de viver - situação em que quase sempre a mudança para um novo estilo de vida se deu de modo involuntário. Foi muitas vezes devastador, já que o positivismo era causa maior do que qualquer tradição ou costume. As soluções “lógicas” e funcionais deveriam ser impostas.

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Habitação social em Gavá, de López-Rivera.


Não há dúvidas sobre o quão nociva pode ser as conformações da arquitetura no cotidiano, mas talvez consigamos, depois de percorrido o trajeto deste trabalho, vislumbrar uma outra relação: a de reafirmação. A reafirmação da igualdade, a reafirmação da possibilidade de consenso entre os homens, a reafirmação de nosso pertencimento ao mundo, o habitar. Enquanto suporte de identidade e memória a arquitetura pode ser capaz de promover para nós mesmos o nosso melhor. Sua resistência ao tempo, seu caráter público, sua vivência cotidiana: tudo indica como apropriado uma arquitetura serena, da vida de todos os dias. No entanto, se uma estética supõe uma moral, o contrário não é válido. Não há tradução possível a partir das considerações feitas. Cabe então, como sempre foi, negociarmos o comum desejável.

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ResidĂŞncia Scharans, de Corinna Menn.


Of course there remains the excitement, the desire for change, the intensity of experimentation, and so on, the concern for lifestyle, the conflict of polemics, factions or “tendencies�; but all of this exists only in the pages of books. Giorgio Grassi

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TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO Banca: Prof. Dr. Luiz Recamán (orientador) Prof. Dr. Jorge Bassani Profa. Dra. Vera Pallamin Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Novembro de 2013




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