Paisagen Sentimentais: A construção de um olhar sobre São Paulo.

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resumo

Partindo do pressuposto de que a sociedade encontra-se cega frente às metrópoles contemporâneas por conta da saturação imagética peculiar ao nosso tempo, e das intrincadas dinâmicas que constituem as cidades globais, que não nos permitem formar representações relevantes das mesmas e conseqüentemente nos situar diante destas. A questão que pretende orientar esse trabalho é: Será possível por meio da produção de imagens resignificar as paisagens urbanas, por hora opacas, e restituir-lhes o significado?

Para responder essa pergunta este trabalho rercorre a uma pesquisa conceitual e histórica sobre as relações da fotografia com a cidade, tendo com finalidade estruturar a análise do percurso da construção de um olhar sobre a cidade de São Paulo, marcado pela minha vinda para essa cidade (que coincide com o início do curso de pós-graduação que esses escritos pretendem pontuar).

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“A cidade se define pelos seus contrastes; quer sempre explodir, não suporta estéreis regras... uma cidade inesquecível é um acervo imenso de imagens”, Win Wenders

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sumário

INTRODUÇÃO 007 1

A representação das cidades através da fotografia: Da Paris capital do Século XIX às vanguardas modernas. 009

1.1

A gênese da fotografia urbana: Charles Marville, o fotógrafo do Barão Haussman.

013

1.2

A “Flanerie”: Inaugurando o olhar moderno: Atget e Baudelaire.

023

A fotografia urbana no século XX.

033

1.3

1.3.1 Straight photography.

034

1.3.2 Futurismo. 044 1.3.3 Construtivismo. 047 1.3.4 Surrealismo. 056

2 A saturação imagética e a irrepresentabilidade das cidades globais. 065

3

Possíveis caminhos de fotografia urbana contemporânea 071

3.1 Michael Wesely.

072

3.2 Cassio Vasconcelos. 078 3.3 Andreas Gursky . 080 3.4 Abellardo Morell. 084

4

A construção subjetiva de um olhar sobre São Paulo.

089

4.1 Catálogo urbano. 090

4.2 Augusta. 094 4.3 Derivas. 114 4.4 ZL. 130

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introdução

Esse trabalho pretende analisar como a linguagem fotográfica vem dan-

forço de situabilidade1. Em um espaço urbano cada vez mais genérico

do conta de representar as cidades ao longo da sua recente história,

e sem identidade, a subjetividade do ser urbano está ameaçada de

e consequentemente como a imagem fotográfica vem contribuindo

paralisia. As imagens técnicas quanto mais se sofisticam, numa ten-

para a formatação dos imaginários urbanos. Esse percurso tem com

tativa de documentação absoluta, tornam-se também cada vez mais

objetivo final uma reflexão sobre a produção pessoal do autor.

rasas e incapazes de dizer algo sobre o mundo.

A questão da representação das cidades tornou-se central diante das

Cada vez mais áreas disciplinares vem abarcando o estudo sobre as

configurações da sociedade contemporânea, predominantemente

cidades: Arquitetura, geografia, sociologia, psicologia ambiental vêm

urbana. As cidades se transformaram em estruturas impossíveis de

se debruçando sobre o deciframento dessas estruturas hoje opacas2.

serem percebidas na sua totalidade. A experiência fenomenológica de

Entre esforços de mapeamento, cartografias, fotografias aéreas, quanto

um indivíduo está longe de dar conta da complexidade das dinâmicas e da escala que as cidades globais vem assumindo. Diante de um cenário onde a humanidade pouco consegue perceber do ambiente onde vive, repensar a cidade a partir de suas representações é um es-

1 Termo empregado por Nelson Brissac Peixoto para descrever o processo de se situar no espaço urbano, não só abrangendo a situação geográfica mas também o lugar que o cidadão ocupa nas complexas dinâmicas que permeiam a vida metropolitana. 2 Atribuir às metrópoles contemporâneas o adjetivo de estruturas opacas é uma forma de comunicar o quanto o entendimento dessas está além do que se pode ver, o quanto a visualidade acessível da cidade se coloca entre o observador e o que a experiência desta realmente representa.

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mais recursos objetivos são aplicados na tentativa de varredura de

condenados às imagens uniformemente aceleradas e sem espessura,

toda a extensão dos grandes centros, mais as cidades parecem longe

típicas da mídia atual, reinventar a localização e a permanência. Quan-

de serem compreendidas.

do a fragmentação e o caos parecem avassaladores, defrontar-se com o desmedido das metrópole como uma nova experiência das escalas,

A essência das cidades não reside apenas nos fatores funcionais,

da distância e do tempo. Através dessas paisagens, redescobrir a ci-

produtivos ou tecnocráticos. Além do aspecto material, infra-estrutural

dade.” (PEIXOTO, Nelson Brissac, 1996, p.15).

as cidades são constituídas de diversos fluxos de informação, de representação, símbolos, da memória, dos desejos e sonhos. A superposição contínua de diversos níveis. A cidade é o reino da diversidade da pluralidade, fenômeno que não pode ser reduzido, é ainda cenário simultâneo de nossas vidas e de outras. Tal condição une a todos, do pobre ao rico, esplêndido fenômeno social total, babélico. Mesmo a imagem coletiva da cidade “captada” através de mapas mentais (objeto de estudo de grandes estudiosos como Kevin Lynch e Gordon Cullen), mostram-se ineficientes diante da midiatização do mundo contemporâneo, onde a massa humana não consegue mais discernir quais experiências são realmente suas e quais foram embutidas pelo mass-midia. Esses mapas elaborados a partir da sobreposição do desenho de vários indivíduos tendem a se transformar em alegorias rasas que ameaçam a integridade do sujeito. Assim a arte (e a fotografia) parecem ser de fundamental importância nessa busca por imagens realmente relevantes. “A função da arte é construir imagens da cidade que sejam novas, que passem a fazer parte da própria paisagem urbana. Quando parecíamos

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O presente trabalho pretende relacionar alguns momentos em que a linguagem fotográfica conseguiu contribuir para que a mente humana fosse capaz de “organizar perceptivelmente o espaço circundante e mapear cognitivamente sua posição no mundo.” (PEIXOTO, Nelson Brissac, 1996, p.416). A primeira etapa desse trabalho parte da idéia de se entender de que forma a representação das cidades acompanhou as mudanças no meio urbano que ocorreram à partir do século XIX, analisando a evolução da fotografia urbana nesse período.


A representação das cidades através da fotografia: Da Paris capital do Século XIX às Vanguardas modernas.

Antes do advento da fotografia o olhar renascentista dominava os horizontes das representações urbanas. A perspectiva orientava o universo pictórico, as coisas eram percebidas como distribuídas no espaço. O olhar percorria em profundidade, localizado no tempo e no espaço. Michel de Certau reflete sobre a abstrata visão cunhada no renascimento, evocando a vontade dos homens que instauram as perspectivas artificiais: “A vontade de ver a cidade precedeu os meios de satisfazê-la. As pinturas medievais ou renascentistas representavam a cidade vista em perspectiva por um olho que no entanto jamais existira até então. Elas inventavam ao mesmo tempo a visão do alto da cidade e o panorama que ela possibilitava. Essa ficção já transformava o espectador medieval em olho celeste. Fazia deuses.” (CERTAU, Michel,1996, p.170)

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No entanto o advento da perspectiva tem uma importância para a cidade que vai muito além da forma como esta era representada (o que mostra a importância do estudo da iconografia urbana). As intervenções que começam a marcar a cidade moderna são moldadas pelos princípios de organização que migraram da perspectiva. A perspectiva torna-se definidora de espaços. Foi a partir da Revolução Inglesa e, mais em especial, no século XIX, que o desenvolvimento das cidades muda de ritmo não mais para acompanhar as badaladas dos sinos nos mosteiros, mas o tic-tac do relógio mecânico. Agora, o crescimento ou refluxo obedece às normas ditadas pelas necessidades econômicas de produção de mercadorias, e não simplesmente de trocas. (MENEZES, 2004, p.60) Ordenar, disciplinar a cidade vira obsessão para os governantes saídos

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das lutas de 1848. A defesa contra a ameaça revolucionária dá o tom das intervenções que vão provocar o deslocamento de uma ordem, até

da rua medieval, é modificada e destruída. Os caminhos sinuosos e irregulares são alargados e substituídos. Velhos bairros são demolidos, e

então confusa e mal-traçada, que remonta ao período medieval.

uns poucos edifícios antigos – os mais importantes – são mantidos por serem considerados documentos históricos. Estes edifícios “isolados” tornam-se “monumentos” separados do ambiente urbano. Arte e vida já não estão entrelaçadas, o ambiente quotidiano começa a ficar mais pobre.” (MENEZES, 2004, p.66)

Essas re-estruturações do espaço urbano que “coincidiram” com as mudanças nos meios produtivos (que ficaram conhecidas como revolução industrial), foram responsáveis por mudanças profundas no estilo de vida dos citadinos. A modernidade se impõe sobre todos, trazendo uma mudança de ritmo cada vez mais frenética. “A cidade do século XIX é a Babel que prospera com a perda das conexões e a falta de referência aos valores do passado; palco para a

“Haussman revoluciona o traçado de Paris, abrindo amplas e retilíneas

atrofia progressiva da experiência relativa à tradição, à memória válida

vias sobre as ruelas tortuosas dos bairros antigos. Seu ideal urbanístico

para toda a comunidade, substituída pela vivência do choque ligada

eram as visões em perspectiva através de longas séries de ruas. Tudo

à esfera do individual. O impacto da técnica moderna mudou tudo e,

aqui é dispositivo cênico, construção ótico-mecânica. A cidade toda

especialmente, a cidade, cuja capacidade de regeneração – metamor-

convertida num panorama.” (PEIXOTO, 1996, p.110)

fose sem fim de autodestruição criativa – foi ficando cada vez mais rápida.” (MENEZES, 2004, p.154)

Aparece, então, a cidade moderna: afastada do mundo religioso dos mosteiros e das igrejas, mas condenada a se erigir à beira dos muros da fábrica, com a fumaça das chaminés a encobrir os campanários das antigas igrejas e o relógio das indústrias a regular o tempo nas ruas. A arquitetura do passado cede rapidamente terreno a formas e contornos do mundo da produção e do trabalho. (MENEZES, 2004, p.61) Ambientes públicos e privados são separados e até contrapostos por medidas legais. A via pública passa a ser o lugar onde cada um se misturará com os outros sem ser reconhecido. A rua oitocentista, filha 10

Nelson Brissac Peixoto também descreve as transformações da cidade, como mudanças intrissicamente ligadas à visualidade moderna:

É nesse contexto que a humanidade assiste a gênese da fotografia. Em 1839, na França, Daguerre consegue fixar em placas o “espelho com memória”, materializando o invento que parecia estar no ar com pesquisadores envolvidos por diversos lugares do mundo. Logo a fotografia passa a exercer uma profunda mudança no estatuto da imagem e da representação, com acaloradas discussões a cerca de seu “lugar no mundo”, e dentro desse contexto a imagem das cidade vai ganhar importância sem precedentes. A fotografia difunde-se levando as imagens da modernidade para todos os cantos do mundo. Desde muito cedo as relações entre a cidade suas representações instigavam os pensadores. Baudelaire e Walter Benjamin ainda no lim-


iar do século XIX para o XX alardeavam as implicações que as novas configurações que estavam se delineando naquele momento teriam na

como temas para as primeiras gerações de fotógrafos. O fato de a imagem fotográfica ser composta pelas duas dimensões, assim como a

sociedade.

pintura, faz com que estes também retomem a “concepção do espaço figurativo e do enquadramento como limite desse espaço” da tradição pictórica. (BAURET, Gabriel. 2006)

Em um curto espaço de tempo a fotografia se difundiu nos principais centros urbanos, em estúdios fotográficos que realizavam o sonho burguês de se ver representado, privilégio antes concedido só aos mais abastados que podiam arcar com os custos de um pintor retratista. Mas o debate sobre a forma como a fotografia era entendida pela sociedade da época, e as consecutivas mudanças nesse entendimento ao longo dos anos, é que se mostra de importância central para a discussão da influência desta no imaginário urbano. A fotografia desde sua invenção se mostrou muito bem aceita no que se refere ao seu caráter de apoio à memória e nas suas contribuições para o mundo das ciências objetivas. Mas no que se refere ao impacto sobre a arte, e sua relação com a pintura a fotografia sempre causou debates acalorados.

O entendimento dos primeiros pensadores sobre o fotográfico se baseava no seu caráter objetivo, colocando-o como algo mecânico desprovido de caráter subjetivo ou intelectual. Aproximando a fotografia das ciências e afastando do campo das artes. A própria abordagem de alguns fotógrafos que numa tentativa de valorizar a fotografia tentando se apegar ao valor de atestado do real que esta possuía, acabavam por construir discursos que dificultaram que esta pudesse ser aceita no panteão artístico. “As pranchas da presente obra foram impressas pela única ação da luz, sem qualquer ajuda do lápis do artista. São as próprias pinturas do sol e não, como alguns imaginaram, gravuras da imitação.” (TALBOT, W.

Em um primeiro momento, a fotografia traz do universo pictórico toda a gramática imagética que vai constituir seu repertório. Segundo Fabris (1998, p.42) isso se deve ao fato dos primeiros fotógrafos terem se derivado da tradição pictórica e também por uma forte questão técnica que exigia longos períodos de exposição para o processo de fixação das imagens, fazendo com que a imobilidade dos modelos restringisse

Nas discussões sobre o caráter estético da fotografia destaca-se o célebre texto de Baudelaire sobre o salão de 1859, onde pela primeira vez se expôs fotografias ao lado da produção pictórica da época. Baudelaire que já vinha questionando o caráter cada vez mais realístico e

as possibilidades, e, portanto, limitassem a produção ao universo imagético já consolidado da época.

objetivo da pintura alinhado ao gosto burguês, critica arduamente a fotografia, considerada “espelho do real” inserida nesse contexto.

Natureza morta, paisagens, retratos e o nu que se constituem nos gêneros que vão sendo tratados pela tradição pictórica são transpostos

“Em matéria de pintura, o credo atual das pessoas de sociedade, prin-

H.Fox, 1844 apud FABRIS, 1998)

cipalmente na França é o seguinte: “Acredito na natureza e só acredito

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na natureza. Acho que a arte é e só pode ser a reprodução exata da natureza (...) Assim, a indústria que nos desse um resultado idêntico à natureza seria a arte absoluta.” Um Deus vingador acolheu favoravelmente os desejos dessa multidão. Daguerre foi seu Messias. E então ela disse para si. “ Como a fotografia nos proporciona todas as garantias desejáveis de exatidão (eles acreditam nisso os insensatos), a arte é a fotografia.” A partir desse momento, a sociedade imunda precipitou-se, como um único narciso, para contemplar sua imagem trivial no metal. Uma loucura, um fanatismo extraordinário apoderou-se de todos esses novos adoradores do sol.” (BAUDELAIRE, 1859 apud ENTLER, 2007, p. 11-12)

A relutância em atribuir à fotografia qualquer valor expressivo era abastecido pelo credo do ato fotográfico como algo mecânico:

Para se entender o momento da gênese da fotografia urbana, que nesse primeiro momento surge no contexto da documentação da obra de arte/arquitetura, é importante salientar que o papel da fotografia nesse caso se relaciona com o que ela tem de mais objetivo. São valorizados critérios da pura visualidade, as tomadas devem ser frontais de edifícios e esculturas, respeitando a perspectiva renascentista, sendo descartado qualquer tentativa de visualização não ortodoxa. O fotógrafo era então entendido como um técnico reprodutor da realidade para meio de estudos. Rosalind Krauss atenta para uma questão etimológica crucial que demonstra muito bem o caráter objetivo das fotografias urbanas da época. O termo utilizado para descrever as empreitadas que se prestavam a fotografar elementos urbanos ou naturais era “vistas” diferente do termo “paisagem” utilizado no discurso estético:

“o registro das intervenções do fotógrafo e, portanto, os meios de marcar o seu estilo a nível formal, é evidentemente mais limitado do que o

“A palavra “vista” remete além disso a uma concepção de autor em que

do pintor, que pode além disso jogar com as dimensões da imagem,

o fenômeno natural, o ponto notável, apresenta-se ao espectador sem

com a matéria, com a pasta da cor, mas sobretudo intervir diretamente

a mediação aparente nem de um indivíduo específico que dele registre

pelo gesto da mão.” (BAURET, Gabriel. 2006)

o traço, nem de um artista em particular, deixando a “paternidade” das vistas a seus editores e não aos operadores (como eram chamados

Se por um lado a fotografia sofria ataques pelas suas limitações quanto às suas possibilidades expressivas, desde seu surgimento esta é muito comemorada como meio auxiliar da memória. As suas aplicações para

na época) que haviam tirado as fotografias....Nesse sentido, as carac-

a história da arte e da arquitetura e a possibilidade de reprodução real e circulação de obras de arte foram tema de vários dos primeiros escritos sobre o advento da fotografia. A responsabilidade de retratar as obras de arte fidedignamente antes centrada na figura do ilustrador, vai aos poucos passando para o fotógrafo.

jeto. Efetivamente, o objeto é um “lugar extraordinário”, uma maravilha

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terísticas perceptíveis da “vista”, sua profundidade e nitidez exagerada desembocavam sobre um segundo aspecto, o isolamento de seu obnatural, um fenômeno singular que vem ocupar essa posição central da atenção. Essa forma de apreender a natureza do singular se apóia sobre uma transferência da noção de autor da subjetividade do artista para manifestações objetivas da Natureza.” (KRAUSS, 2002)


A gênese da fotografia urbana: Charles Marville, o fotógrafo do Barão Haussman.

1.1

Foi no contexto descrito no item anterior que Charles Marville(1816-1878) produziu exemplares importantíssimos da fotografia urbana parisiense

ventário da arquitetura religiosa do oeste Europeu e principalmente em

ao longo da segunda metade do século XIX.

quatro grandes séries que documentaram as transformações urbanas. A

Atuando desde 1830 como ilustrador (principalmente de paisagens) ele passou pela rápida mudança de paradigma tecnológico, carregando consigo os conhecimentos de perspectiva e de luz ( da tradição renascentista) adquiridos ao longo dos anos como desenhista. Marville nunca chegou a utilizar o Daguerreótipo, tendo sido um dos primeiros a usar a calotipia profissionalmente no ano de 1851, e algum tempo depois migrou para o uso de placas de vidro com revestimento de colódio, que possuía uma excelente nitidez. (SILVA, 2007) Associado a Blanquart-Evrard, Marville torna-se fotógrafo do Musée

temas ligados à capital francesa. Charles Marville fotografa Paris criando primeira delas foi as promenades e plantações criadas por Haussmann para o Bois de Boulogne; a segunda série foi constituída pela arquitetura como palácios, igrejas, escolas, o Hotel de Ville reconstruído; A terceira e a quarta séries são as de maior interesse para esse trabalho. Por volta de 1865, a Comissão dos Trabalhos Históricos, já sobre o comando do Barão Haussman, encomenda a terceira destas séries que foi chamada de Album du Vieux Paris que documentou a cidade antes das transformações urbanísticas, ele foi encarregado de elaborar 425 vistas das antigas ruas da cidade, prestes a serem destruídas dentro do plano de re-urbanização. (SILVA, 2007)

Imperial du Louvre (depois Museu Nacional), trabalhando em um in13


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Charles Marville, 1868 Charles Marville, 1868

Charles Marville, 1865

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Charles Marville, ?

Charles Marville, ?

A cidade seria totalmente re-urbanizada, tornando-se um imenso can-

a classe trabalhadora do centro para as periferias, mas também para a

teiro de obras. A “velha” Paris estava sendo totalmente transformada,

circulação de mercadorias e tropas de soldados... Ao homogeneizar os

no lugar das vielas grandes boulevards, que tanto atendiam à uma de-

negócios da cidade, o prefeito de Paris abre campo desempedido para

manda de uma nova visualidade, quanto se adequavam muito bem à

a livre empresa: os grands magazins serão o signo e o instrumento da

idéia de tornar mais fácil de se reprimir insurreições. As reformar não se restringiram à redecorar a cidade. As mudanças atendiam a uma nova ordem econômica/social global. “Haussmann promovera a quebra de monopólios estatais visando lucros privados (como a quebra do monopólio da companhia de táxis e o fomento à fabricação de lâmpadas de rua para a iluminação da

substituição de uma nova forma de capital por outra, que obedeceria a lógica geral do processo de haussmanização.” (FABRIS, 2008, p.03)

A última série de Marville foi o próprio canteiro das obras gigantescas abertas por Haussmann. As duas últimas séries foram apresentadas juntas depois, na Exposição Universal de 1878, sendo colocadas lado à lado as ruas desaparecidas e aquelas que as substituíram.

“nova” Paris) e remodelara a cidade de tal modo a não apenas expulsar Charles Marville, 1870

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Charles Marville, ?

Charles Marville, ?

O trabalho de Marville carrega uma importante questão que acompanha a teoria fotográfica até os dias de hoje. Travestidas pela pretensa objetividade, as imagens produzidas pelo fotógrafo e principalmente a forma como essas são organizadas e exibidas para o público, carregam uma clara intenção de criar um discurso sobre o espaço urbano. Independente de qualquer questionamento sobre o caráter estético do conjunto de fotografias, torna-se claro a utilização de recursos formais na criação desse discurso.

acusar o caráter insalubre, o aspecto labiríntico e confuso das ruas condenadas, e para isso o fotógrafo escolhia por exemplo momentos de bruma cobrindo a cidade, que ressaltavam o caráter sombrio. O que está implícito nessas atitudes é uma subversão do caráter objetivo e imparcial atribuído à fotografia.

A intenção da Administração Municipal, não era mostrar a estética urbana anterior a Haussmann, nem exprimir a poesia e a alma da antiga cidade. O objetivo, pelo confronto ente o antigo e o novo, era a valorização da obra do prefeito. As imagens da cidade pregressa deveriam

Essa prática tornou-se cada vez mais comum, a fotografia empregada para moldar o imaginário coletivo sobre as cidades. A fotografia servindo como propaganda, legitimando uma visão específica da cidade. Pode-se dizer que surge aí a idéia de city-marketing que hoje, nas cidades contemporâneas tem sido levada à extremos, e que ameaça a humanidade de viver em espaços homogeneizados por todo o planeta. Charles Marville, ?

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O tipo de empreitada fotográfica de Charlles Marville em Paris, teve seus análogos em outras grandes cidades no século XIX. Sempre no âmbito da documentação, e da imagem da cidade institucionalizada, na retratação dos ícones arquitetônicos. Em São Paulo, nenhum dos primeiros fotógrafos viajantes a passarem pela cidade ofereciam vistas da cidade. Só em novembro 1959 o jornal Correio Paulistano traz o “reclame”: “VISTAS PHOTOGRAPHICAS da Academia em São Paulo achão-se a venda no Bazar Paulistano n.36. Aqueles srs. estudantes que dezejarem levar para seus lares uma lembrança do lugar de sua vida academica acharão nestes lindos quadros mui próprios para tal fim.” (MENDES, Ricardo, 2004)

Ainda no início da década de 1860 início da década surge o primeiro álbum de vistas anunciado por um fotógrafo: Jesus Christo Müller.

Militão Augusto de Azevedo - Faculdade de Direito (Sao Paulo), 1862 Militão Augusto de Azevedo - Igreja de Nossa Senhora dos Remédios e Pátio da Cadeia (Sao Paulo), 1862

Anúncio em Correio Paulistano, em outubro de 1860, informa sobre álbum com trintas vistas: “dos principais edifícios e ruas desta cidade... tiradas a fotografia”. “Os srs. quintanistas que têm de retirar-se desta cidade para o seio de suas famílias e que quiserem levar consigo êste álbum terão assim uma recordação agradável da cidade onde passaram, talvez a melhor época da vida e onde vieram receber um pergaminho e habilitar-se para ocupar os altos cargos sociais, o que sem dúvida seria também agradável às suas famílias que, não conhecendo a Capital de São Paulo, podem por meio dêste álbum fazer uma idéia dos principais edifícios e ruas dela - Jesus Christo Muller.” (MENDES, Ricardo, 2004) Militão Augusto de Azevedo, ?

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Nos reclames é possível perceber o caráter propagandista sobre a

mídia se apropria dessas imagens, fortalecendo visões superficiais. A

imagem da cidade. A edição de álbuns de lembranças com vistas da

cidade palco da pluralidade, é retratada de forma unívoca, atendendo

cidade continuam sendo elaboradas por diferentes artistas, entre eles

a interesses específicos.

Militão que tempos depois em 1887, reúne o material de 25 anos de fotografia e elabora um álbum comparativo. A repercussão no jornal A Província de São Paulo, mostra claramente o caráter caráter progressista, onde persiste a idéia de propagandear a evolução da cidade:

fotográfica que foge a essa visão única, alinhada com o poder e as forças extremas do capital. A busca por uma outra visualidade, permeada pela vivência dos espaços, e que carregue em si a capacidade

“A Velha e a Nova Cidade de São Paulo – Vimos um álbum comparativo

de representar as dinâmicas do meio urbano é o que orienta o recorte

da cidade de São Paulo em 1862 e em 1887, trabalho da Photograph-

feito para selecionar os momentos destacados por esse trabalho.

ia Americana, do Sr. Militão, nesta capital. Ahi figuram bairros, ruas, praças, jardins e edifícios com a sua cor local de 1862 e depois com a de 1887. É o progresso de São Paulo photographado ...traz-nos as recordações de outros tempos, da simplicidade dos costumes, do pouco luxo das edificações, mas também da falta de comodidade e de atividade industrial da velha cidade. O conforto é agradável e útil... o álbum de vistas photographicas do Sr. Militão tem um grande valor para se verificar o progresso da província, medido pela transformação da capital em 25 anos... o trabalho do Sr. Militão vale mais como fonte de estudo para formação de uma opinião favorável ao engrandecimento da província do que como obra de arte.” (MENDES, Ricardo, 2004)

A evolução da história da fotografia urbana de São Paulo, e de qualquer outra grande cidade, continua sempre permeada por esse tipo de fotografia institucional propagandista. Na sociedade contemporânea a

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Por isso esse trabalho pretende debruçar-se sobre uma produção


A “Flanerie” inaugurando o olhar moderno: Baudelaire e Atget.

1.2

No capítulo anterior foi apresentada a gênese da fotografia urbana no

dade. Uma outra forma de enxergar a cidade e suas dinâmicas. Se

que se refere à um padrão de representação que de certa forma é

Charles Marville retratava grandes perspectivas lisonjeiras da nova Paris

reproduzido até hoje, e que consiste numa fotografia pretensamente

que surgia, da cidade retratada por Atget pode-se dizer o oposto. As

objetiva, lisonjeira de uma sociedade burguesa capitalista e que se vê

imagens representavam uma visão pré-haussmaniana, uma imagem

cada vez mais orientada pelos interesses do grande capital, reforçando

fantasmagórica, nos termos de Walter Benjamin, Atget, ao contrário de

clichês sobre os quais se insiste em construir imagens de cidades

Marville, acentua a impressão de abandono e deterioração.

unívocas.

Para a real compreensão do salto que as fotografias de Atget repre-

O interesse desse trabalho é justamente examinar uma postura de re-

sentam para a visualidade moderna é preciso entender as discussões

sistência à supremacia dessa imagem. E dentro dessa linha o trabalho

estéticas que aconteciam nesse momento de transição, e que tiveram

fotográfico de Atget é de extrema importância por inaugurar um olhar

como figura central o poeta e crítico de arte Charles Baudelaire. Um

diferenciado. As misteriosas circunstâncias que cercam a produção

escritor movido pela necessidade de criar mecanismos de represen-

do fotógrafo não impedem que suas imagens tenham sido cooptadas

tação que dessem conta das profundas mudanças que ele testemun-

desde muito cedo por movimentos que buscavam uma outra visuali-

hava. 23


Baudelaire que ávido por retratar a cidade moderna não podia contar

Em 1859, Baudelaire escreve seu célebre texto criticando o Salão de

com um repertório / vocabulário que desse conta do novo cenário, já

artes daquele ano à pedido do Sr. Diretor da Revue française Morel.

que a literatura urbana ainda dava seus primeiros passos. As relações

No texto Baudelaire destila toda sua impaciência com o gosto bur-

metafóricas então são usadas na falta de um outro referencial, e a ci-

guês cada vez mais ávido pela representação verossímil, e pela com-

dade é descrita em metáforas médicas, metáforas visuais relacionadas

placência dos artistas da época entregues a satisfazer essa demanda

com a natureza, metáforas orgânicas ou, ainda, metáforas bíblicas:

abandonando o que Baudelaire defendia ser a verdadeira vocação do artista que era representar o seu tempo. Baudelaire que desde o Salão

“Na poesia de Baudelaire, estão presentes as metáforas da morte, da

de 1846 proclama por uma atitude artística que dê conta das modifi-

destruição, da degeneração, da putrefação, da caveira. São alegorias

cações que acontecem na cidade, mostra toda sua revolta na inserção

mais que apropriadas para se mostrar o que ocorria com o corpo da

da fotografia, banalizada, e até então sem expressão própria inserida

cidade. São fragmentos figurativos mostrados dispersamente, sem for-

no contexto dos salões de arte.

ma, mas nunca uma imagem completa – e isso lhe confere o caráter alegórico. A imagem é fragmento, ruína.” (MENEZES, 2004, p.154)

“todos pintam cada vez melhor, algo que nos assusta, pois nos parece desolador – no entanto em termos de invenção, de idéias, de tempera-

Se na literatura Baudelaire tentava abrir a golpes de foice o caminho

mento, não há mais do que antes”. (BAUDELAIRE, 1996)

para uma linguagem moderna condizente com as novas configurações da sociedade, nas artes visuais essa inquietação demorou para encontrar respostas. Em suas famosas críticas aos pintores contemporâneos de seu tempo, Baudelaire deixava claro a insatisfação de ver que a pintura ainda não tinha conseguido absorver as mudanças no cenário da humanidade. E através de suas críticas ele evocava uma

“ninguém está prestando atenção ao vento que há de soprar amanhã, e todavia o heroísmo da vida moderna nos rodeia e nos pressiona ... O verdadeiro pintor é aquele que saberá captar o lado épico da vida atual, fazer-nos ver e compreender como somos grandes com nossas gravatas e nossas botas lustrosas” (BAUDELAIRE, 1996)

nova postura por parte dos artistas que pareciam cada vez mais en-

Segundo Nelson Brissac (1996, p.103): “Baudelaire diz que preferiria

voltos pela vida burguesa que os afastava da realidade da cidade. Os

voltar aos dioramas cuja “magia grosseira” impõe uma “ilusão útil”, que

espaços públicos e privados vão se separando cada vez mais. E os

prefere contemplar cenários de teatro, em que encontra, expressos

intelectuais parecem também irem se distanciando da coisa pública.

com arte e trágica concisão”, seus mais caros sonhos. “Estas coisas,

24


porque falsas, estão infinitamente mais próximas da verdade, enquanto

laire aparece como criador de um paradigma da cidade moderna, ao

a maioria dos nossos paisagistas mente, justamente porque se esque-

assimilar, principalmente, o caráter brusco e inesperado que caracteriza

cem de mentir.”

a vida transitória do homem moderno.” (MENEZES, 2004, p.64)

Ao contrário da pretensão à verossimilhança - a ocultação de todo

Ele foi um desses primeiros pensadores que demonstrou, através de

artifício - o poeta defende essas imagens (os dioramas e panoramas)

uma percepção instintiva, essas alterações que passaram a caracteri-

justamente no que têm de falsidade e grosseria. Um poder de signifi-

zar a vida moderna. Para Baudelaire, o artista tem de estar vinculado

cação que deriva, paradoxalmente, da própria singeleza e artificialidade

com sua época. Esta é a condição da produção da arte moderna.

mecânica dessas paisagens.”

Assim, a obra está ligada ao tempo e à história. Existem, pois, artistas mais ou menos capazes de compreender a beleza moderna. Neste

O desafio que Baudelaire propunha era o de transformar em poesia

caso, a modernidade é mais que um período histórico, é atitude, con-

uma cidade: representar seus personagens, evocar figuras humanas

siste em procurar, por uma decisão da vontade de construir uma eter-

e situações; fazer com que em cada momento mutável a verdadeira

nidade particular.

protagonista seja a cidade. Com ele, a literatura urbana inaugura novos aspectos: sons, edifícios, tráfego, tudo isso é matéria literária por fazer

“Ser moderno, para Baudelaire, é tirar do agora o que ele tem de poé-

parte da nova consciência que envolve homens e mulheres. Pode-se

tico. É antes uma atitude. Mais uma vez ele lembra que a beleza mod-

afirmar que a literatura modernista nasceu na cidade, e com Baude-

erna é particular.... Baudelaire quer uma poesia e uma arte que um dia

laire.

se torne clássica por ter falado de seu presente.” “Baudelaire nos revela, como num quadro de fisionomias, o que está

“O espaço urbano foi eleito por Baudelaire como locus de interpretação

interno ao olhar, percepção que na metade do século XIX nos dá a

do social. A cidade natal do poeta, Paris aparece em suas poesias

idéia do Outro, do que não temos controle, que perambula desatento e

como musa e objeto. Em sua escrita, a cidade transforma-se no mate-

aflito, que foge ao olhar e ao verbo. O olhar do flâneur vai de encontro

rial mais poético dentre todos. Baudelaire revela, em sua obra, sintonia

ao olhar da bela passante na multidão, e o detém, por menos de um in-

com a época, com o país, com a cidade. Ele viveu intensamente os

stante, mas ao perdê-lo apreende que a Paris do século XIX é um mo-

anos da revolução burguesa, participou dela, viu a cidade – Paris –ser

saico de luzes, movimento, e solidão. A bela passante é esquecida e

remodelada: o solo sob seus pés parecia se mover.“ (MENEZES, 2004,

relembrada a cada instante … Nesse contexto, no século XIX, Baude-

p.78)

25


A prática dessa literatura em sintonia com as novas configurações que

A figura do Flâneur tem uma relação direta com a fotografia que se

a cidade toma no fim do século XIX, pressupõe uma postura diferen-

pretende destacar nesse trabalho. Inaugura toda uma “teoria da visão”.

ciada por parte do autor/artista. O Flâneur como figura conceitual que

Nelson Brissac Peixoto analisa muito bem essas inovações do olhar,

encarna o observador capaz de enxergar a cidade para além da su-

através dos escritos de Walter Benjamin sobre a obra de Baudelaire,

perfície:

em seu livro Paisagens Urbanas: “Se, no século XVII, a flânerie ainda não era de todo possível devido o aspecto insalubre da cidade a partir do século XIX, as reformas no

“O tema da flânerie implica uma teoria da visão. Justamente para

espaço urbano – tendo como modelo a Paris de Haussmann – propi-

mostrar que não se trata de um olhar imediato, como o daquele que

ciariam o livre passeio pela malha da cidade e com isto favorecer sua

contempla uma paisagem. Baudelaire usa o termo flâneur para definir

descrição pela literatura... O texto rápido que narra o desenrolar da vida

o tipo de observação que ele admira no pintor parisiense Constan-

no dia-a-dia da cidade é a moda que ganha as páginas dos jornais

tin Guys, recorrendo para isso a anotações feitas por Poe. Benjamin

inaugurando a reportagem.

observa Baudelaire observando, por meio de Poe, o pintor. Ele usa a figura do transeunte e a poética baudelairiana como lentes através das quais se pode ver a vida parisiense. Paris, o objeto da pintura de

“Como um ocioso que circula em Paris ... o poeta transmudado no

Guys, é trazida aos olhos do leitor através de uma série de mediações.”

flâneur tenta levar uma vida paradoxal: estar na multidão sem se en-

(PEIXOTO, 1996, p.100)

volver nela e, junto com ela, ir ao mercado contemplar as mercadorias.” (MENEZES,2004, p.62)

O olhar flâneur entra em contraponto com a perspectiva renascentista O flâneur ainda não está condicionado pelo hábito que automatiza a

adotada de imediato pela fotografia do século XIX. Ele é diferente da

percepção e impede a apropriação da cidade pelo cidadão. Seu con-

contemplação tradicional, do dispositivo perspectivo criado pela pin-

tato com a massa urbana é aquele do olhar, ele vê a cidade, e este

tura. A perspectiva implica um espaço homogêneo e potencialmente

método o faz criar em torno de si um escudo. Não sendo um autô-

mensurável. Enquanto o olhar do flâneur achata as coisas por sobre-

mato, ele é o ocioso que mapeia a urbe, fazendo referência ao labirinto

posição, uma visão múltipla, que permite mais de um acesso a um

emocional despertado pela modernidade.

objeto.

26


“Desde o renascimento, com a perspectiva, as coisas eram percebi-

e com o folhetim, fazem parte da vontade de catalogação dos tipos

das como distribuídas no espaço. O olhar percorria a extensão vendo

e lugares, característica do século XIX. A profundidade espetacular da

antes o que está em primeiro plano, depois o que vem mais atrás e

imagem e a autonomia do lugar recortado do contexto natural. Uma

só por fim o que está no fundo. O olhar avançava em profundidade,

justaposição de primeiro plano e fundo, perto e longínquo, passado e

se fazia no tempo e no espaço. Aqui, ao contrário, tudo que está em

presente... construídos através de sobreposições ou seqüências de

determinado lugar é percebido simultaneamente. O espaço perde suas

diferentes formas de espaço, de descrições, de imagens. (PEIXOTO,

coordenadas, o fundo se confunde com o primeiro plano.” (PEIXOTO,

1996)

1996, p.101)

Porém, na segunda metade do século XIX, toda essa nova visualidade Uma nova disposição da paisagem. Esse modo de andar, a arquitetura das galerias, o dispositivo ótico-mecânico dos panoramas, das feiras e dos jogos infantis inauguram uma nova visualidade. Uma superfície planar, desprovida de profundidade, em que os elementos são justaposto. Onde o olhar se desloca lateralmente, multiplicando os pontos de vista. Um espaço de agregação de várias perspectivas e linguagens. “as distâncias irrompem na paisagem”, assim como épocas passadas surgem no momento presente. As sobreposições tornam-se a experiência fundamental do caminhante. Uma outra percepção do espaço, própria de uma espaço obstruído, exatamente como as vistas congestionadas das cidades contemporâneas. As áreas separadas são apreendidas por acumulação de diferenças, uma colagem de diversos relevos. Essa nova forma de captar o espaço se relaciona com as fisionomias

descrita e que pressupunha uma nova postura na relação com a cidade, não tinha mais espaço. Na Europa industrial, o poeta já não mais podia viver à parte do mundo que, a cada dia, aceitava o mercado como regente. Baudelaire é o primeiro moderno, o primeiro a aceitar a posição desclassificada, desestabelecida do poeta – que não é mais o celebrador (retratador lisonjeiro da burguesia) da cultura a que pertence; é o primeiro a aceitar a miséria e a sordidez do novo espaço urbano. Todas as inquietações relativas à uma estética literária moderna encaradas por Baudelaire, só foram encontrar análogo na linguagem fotográfica no projeto de Eugene Atget. Francês, nascido em 1857, Atget perdeu seus pais ainda criança e foi educado por um tio. Se tornou marinheiro, viajando por rotas americanas; passou pela carreira de ator, até que em 1889 se dedica à pintura e posteriormente à fotografia. 27


No entanto apesar de sobreviver de fotografia Atget não sucumbiu ao mercado dominante da época de retratos lisonjeiros burguês. Preferiu refugiar-se em um projeto sem fim de documentação de Paris, vendendo suas fotos para ateliês de artistas como forma de ganha pão. “Atget foi um ator que retirou máscara, descontente com sua profissão, e tentou, igualmente, desmascarar a realidade. Viveu em Paris, pobre e desconhecido, desfazia-se de suas fotografias, doando-as a amadores tão excêntricos como ele, e morreu a pouco tempo, deixando uma obra de mais de quatro mil imagens. (...) Os publicistas contemporâneos ‘nada sabiam sobre aquele homem que passava a maior parte do tempo percorrendo os ateliês, com suas fotos, vendendo-as por alguns cêntimos, muitas vezes ao mesmo preço que aqueles cartões-postais que, em torno de 1900, representavam belas paisagens urbanas envoltas em numa noite azulada, com uma lua retocada. Ele atingiu o pólo da suprema maestria, mas na amarga modéstia de um grande artista, que sempre viveu na sombra, deixou de plantar ali seu pavilhão. Por isso, muitos julgam ter descoberto aquele pólo, que Atget já alcançara antes deles.’ “ (BENJAMIN, 1994)

O obra de Atget está diretamente relacionada com a idéia de corte, de amputação, de autópsia. Atget realizou uma prática analítica ao fragmentar a cidade e transformá-la em um grande mosaico. Esta representação está mais próxima daquela do colecionador que classifica e Eugene Atget, boulevarde de strasbourg 1912.

28


ordena partes ou fragmentos de acordo com proximidades temáticas ou históricas. Assim como uma coleção que jamais se completa, a obra de Atget será infinita. E baseado nesta característica de coleção infinita de fragmentos fotográficos, que a cidade passa a adquirir valor. As alterações do meio urbano se refletem de forma indireta na imagem fotográfica. (CIDADE, Daniela Mendes, 2002) A cidade e a sociedade estavam contaminados pelo orgulho burguês, e Atget parecia determinado a se opor por meio da (aparente) simplicidade com que tratava suas fotografia às formas espetaculares da modernização. Suas fotografias pareciam querer suspender a ação dramática da peça burguesa, para mostrar uma outra visão menos ilusionista sobre o meio urbano moderno. “ Foi o primeiro a sanear a atmosfera sufocante difundida pela fotografia convencional, especializada em retratos, durante a época da decadência. Ele saneia essa atmosfera, purifica-a: Começa a libertar o objeto da sua aura, nisso consistindo-o mérito mais incontestável da moderna escola fotográfica(...) ‘ Buscava as coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se voltam contra a ressonância exôtica, majestosa, romântica, dos nomes da cidade; elas sugam a aura da realidade como uma bomba suga a água de um navio que afunda(...)” (BENJAMIN, 1994)

Eugene Atget, rue 5 de mail, 1908.

29


Eugene Atget, ?

Eugene Atget, ?

30


31


Marcus Fabris conseguiu sintetizar bem em suas palavras o importante papel desempenhado por Atget, tanto no que se refere ao saneamento do fazer fotográfico transformando sua produção no embrião do olhar moderno, quanto no que se refere à sua postura em relação a cidade, quando virava as costas para as grandes perspectivas: “...à margem do mercado fotográfico que se desenvolvia em direção à representação lisonjeira da burguesia nas famosas “cartes-de-visite”, ou do crescente mercado da fotografia de paisagem, de lugares exóticos – a produção fotográfica tornara-se aliada da expansão imperialista –, Atget se tornava um trabalhador tão obsoleto quanto suas “personagens”. Um flâneur em Paris com uma velha câmera, fora do dernier cri da indústria e do mercado fotográficos, reunia evidências dos processos acima descritos cifradas em suas imagens. Terminou sua vida na tristeza e miséria.” (FABRIS, 2008, p.10)

Eugene Atget, au petit dunkerque, 1900.

32


A fotografia urbana no século XX

1.3

Já bem no final do século XIX todas as mudanças na sociedade que

Produzindo imagens desfocadas, ou borradas, muitas vezes se aproxi-

vinham se intensificando, finalmente encontram seu análogo nas artes.

mando de impressões de luz e movimento que geram uma ligação

Um grupo de pintores imbuídos da vontade de criar uma visualidade

instantânea com os contemporâneos pintores impressionistas. Esse

moderna e bastante impactados pela inserção da fotografia no univer-

“movimento” artístico dentro da história da fotografia é conhecido como

so das representações, começam um movimento que vai se tornar na

pictorialismo. (BAURET, Gabriel. 2006)

visão tradicional da história da arte o maior rompimento artístico desde o renascimento: o impressionismo. Na fotografia, a busca pela aceitação no campo das artes, vai levar vários fotógrafos- artistas, como David Octavius Hill, Robert Adamson, Gustave Lê Gray, Nadar, Antoine Samuel, Adam Salomon, Julia Cameron à procurar desenvolver as possibilidades plásticas do meio, tentando elevar a fotografia à categoria de uma arte inspirando-se no modelo da pintura. Desenvolvem técnicas que buscam se desvencilhar da verossimilhança com o real que é intrínseca ao registro fotográfico.

Com a entrada do século XX, essas mudanças que vinham acontecendo no campo das artes (com o impressionismo e o pictorialismo) se difundem e consolidam. A sociedade vai se adaptando às novas dinâmicas no espaço urbano já descritas, e pode-se dizer que a abertura do século é marcada pelo: sensível e pelo individualismo. No campo da política na Europa, os partidos começam a se organizar com mais eficácia e os temperamentos são contagiados pela anarquia.

33


Grandes revoluções epistemológicas tomam contornos nesse mo-

ainda foi palco para diversos outros movimentos. Da fotografia humani-

mento: a psicanálise, a teoria da relatividade, teoria do átomo. Os am-

sta francesa do pós guerra, à “subjektive Fotografie” alemã dos anos

bientes culturais da época são impregnados por essas novas desco-

50, passando pela produção de vários grandes nomes que em muito

bertas além de respirarem a angústia do pré-guerra. No mundo literário:

“enriqueceram e desenolveram o patrimônio fotográfico”(referencias

o culto do eu, a solidão a descoberta da vida interior. (PERSICHETTI,

Gabriel Bauret) inclusive no que se refere à fotografia de cidades. No

Simonetta. Notas de aula, 2008)

entanto o recorte proposto por esse trabalho é o de alinhavar os mo-

É nesse contexto, de um início de século cheio de transformações radicais na sociedade, que surgem, na Europa, os primeiros movimen-

mentos de gênese de certas posturas, e sendo assim esse primeiro momento do século XX reúne os principais passos.

tos das vanguardas artísticas. Antes da primeira guerra surgem o fauvismo, cubismo, expressionismo e futurismo; depois até o começo dos anos 30 surgem: o dadaísmo, surrealismo, abstracionismo, e o

1.3.1

Straight photography.

construtivismo. A fotografia ganha uma nova dimensão sendo incorporada pela maior parte desses movimentos, ganhando, por conta de sua gramática, uma importância fundamental em alguns deles como no Surrealismo. Nesse trabalho interessa destrinchar de que forma as vanguardas tentavam resolver a questão da imagem da cidade.

O movimento que culmina na straight photography pode ser analisado como uma reação ao movimento precedente: o pictorialismo. A partir do momento em que a fotografia começa a encontrar reconhecimento no mundo das artes, através do pictorialismo, surge também o

Nos Estados Unidos a straight-photography, apesar de ter sido um

questionamento sobre o desvirtuamento da fotografia como linguagem

movimento restrito à fotografia e deslocado espacialmente, também

autônoma. Abastecido pelo contexto efervescente, onde manifestos

pode ser considerado como um dos movimentos de vanguarda, ex-

artísticos e salões independentes tomam conta do cenário cultural, um

atamente porque as revoluções de linguagem proposta para a fotogra-

homem, Alfred Stieglitz, começa a agregar pessoas em torno da idéia

fia também se alinhavam com as novas formas de pensar.

de que o pictorialismo seria cada vez mais uma estilo pertencente ao

Diante da extensa produção fotográfica do século XX, um recorte é proposto nessa monografia. Além dos momentos abordados, o século XX

século passado, e de que o academicismo em que a fotografia tinha mergulhado deveria ser derrubado. (PERSICHETTI, Simonetta. Notas de aula, 2008) Alfred Stieglitz, terminal,1892. (ainda no pictorialismo)

34


35


Alfred Stieglitz, old and new in new york, 1910.

36

Alfred Stieglitz, two towers new york, 1911.


Stieglitz organizou exposições, abriu uma galeria e fundou a revista Camera Work, organizando aos poucos em torno dessas inciativas a idéia da Straight Photography. O preceito era de que a fotografia deveria construir um caminho pela modernidade, assim como a pintura começava a fazer, sem no entanto copiar os mesmos mecanismos. A straight photography não se apresenta como uma simples alteração nas formas da imagem, à maneira daqueles que se sucedem no âmbito dos diversos movimentos da abstração pictórica. Trata-se antes da afirmação de uma nova concepção do ato fotográfico. “Procura, de fato, algo de essencial, de necessário, esvaziando-a de tudo o que essa arte tinha até ali de superficial e de fictício... Nada de truques com as objectivas especiais no acto fotográfico, excluídos igualmente os retoques no acto de impressão.” (BURET, 2006)

Alfred Stieglitz encara a fotografia como um ato espontâneo, como uma relação “direta com a realidade”. Desenvolve uma linguagem que pretende se despir de tudo o que não fosse necessário, procurando o que há de essencial. Abolidos os truques, o uso de objetivas especiais assim como retoques no ato de impressão. Acredita que a arte está fora da manipulação, visando produzir efeitos. Stieglitz pratica uma fotografia com equipamentos leves o que lhe permite fáceis deslocamentos e acesso aos exteriores. (BAURET, 2006) As idéias de Stieglitz sobre a straight photography vão revolucionar o entendimento do olhar fotográfico, inaugurando a fotografia moderna. Esse movimento vai influenciar tanto os fotógrafos repórteres como Henri Cartier-Bresson e Robert Frank, como por outro lado fotógrafos mais formalistas como Edward Weston, Walker Evans e André Kertesz. Alfred Stieglitz, the city of ambition, 1910.)

37


Mas se as idéias foram evoluindo gradualmente, foi na fotografia de Paul Strand que Stieglitz viu a materialização da straight photography:

“uma fotografia sem chiste, sem batota […]: o trabalho é brutalmente directo, desprovido de qualquer tentação de mistificar um público ignorante, incluindo os próprios fotógrafos... Estas fotografias são a expressão directa da actualidade... A objectividade é a verdadeira essência da fotografia, a sua contribuição e ao mesmo tempo a sua limitação.” (STIEGLITZ, 1916 apud BAURET, 2006)

Paul Strand (1890-1976), conheceu Alfred Stieglitz através de Lewis Hine (com quem estudava) quando tinha 17 anos, começou a fotografar pessoas nas ruas de Nova York, oito anos mais tarde ele volta ao estúdio de Alfred Stieglitz com uma pasta cheia de fotografias, e impressiona o mestre. No período entre as duas Guerras Mundiais, os fotógrafos americanos realizaram estudos através de formas e elementos arquitetônicos, inspirados nas imagens de Stieglitz, no construtivismo russo e na nova visão gráfica desenvolvida na Alemanha, pelo grupo Bauhaus. Paul Strand, 1907.

38

Paul Strand, geometric backyards, 1917.


39


As experiências de Paul Strand eram mais formalistas. Sua fotografia ícone, de 1916 chamada “White Fence” é unanimamente considerada pelos historiadores como a imagem que marca a ruptura definitiva com a paisagem pictorialista. Nela são sintetizadas as novas posturas estéticas: “consiste em captar no mundo real formas a maior parte das vezes de tendência geométrica, e que são, em seguida, valorizadas e arranjadas na imagem de tal maneira que acabam por parecer abstractas e totalmente desligadas do seu contexto.” Paul Strand só mostra aquilo que vê. É exclusivamente pela sua forma de olhar, de isolar, de enquadrar, de compor, quer dizer pelo tratamento fotográfico da realidade, que ele consegue revelar todas estas formas espantosas, estas linhas, estes valores insuspeitos. Com ele, a concepção da fotografia como olhar singular sobre o mundo ganha verdadeiramente todo o seu sentido, diferindo assim do picturialismo.” (BAURET, 2006)

As fotografias urbanas de Paul Strand são marcadas por grande formalismo, utilizando para isso somente o que podia enquadrar pela sua camera, angulos inusitados (sejam de cima de janelas ou de baixo), detalhes arquitetônicos em composições geométricas abstratas, e pessoas nas ruas formam o repertório de fotografia urbana que mudou a forma como se entendia fotografia até então.

Paul Strand, The Court New York, 1924.

40

Paul Strand, White Fence, 1916.


41


Paul Strand, From the viaduct 125th Street, 1915.

42

Paul Strand, fifth avenue. Paul Strand, wall street, 1915.


43


Os futuristas foram se inspirar em fotografias científicas como as de

1.3.2

FUTURISMO na fotografia urbana.

Marey para embasar o fotodinamismo, no entanto era clara que as motivações nas experimentações dos futuristas eram diferentes dos predecessores:

O Futurismo foi um dos primeiros desses movimentos de vanguarda

As pesquisas do fotodinamismo datam desde 1910, mas só entre

lançando seu manifesto em 1909, a princípio na Itália. Os conceitos

1911-13, Arturo e Anton tentam encontrar uma equivalência fotográfica

chave são o dinamismo, a velocidade, a simultaneidade, a onipresença

da pintura futurista, porém indo além de seus predecessores (Marey e

das coisas: tudo se move, tudo corre, tudo está em desenvolvimento.

Muybridge), tinham como ambição materializar o invisível de um gesto,

Uma figura não é estável, aparece e desaparece incessantemente.

o desenvolvimento do tempo de uma ação, onde a fotografia parece

(PERSICHETTI, Simonetta. Notas de aula, 2008)

querer colher a pulsão psíquica que está na origem da ação; diferente-

A fotografia futurista, ou o conceito desta linguagem nasce no início do movimento com os irmãos Bragaglia que “criam” o fotodinamismo futurista. Assim como os participantes do Photo-secession, os futuristas acreditavam numa fotografia com uma linguagem autônoma e não simplesmente uma técnica de reprodução ou interpretação do “real”.

mente da análise cronofotográfica, preocupada com a captação da mecânica fisiológica, eles desejavam alcançar a figuração do gesto repentino e súbito, a sua síntese dinâmica, sem no entanto efetivá-la através de etapas sucessivas em um movimento linear e contínuo. (NINO, Maria do Carmo, 2007)

Marey

44


Do ponto de vista técnico o fotodinamismo nasce como fotografia com altos tempos de exposição, colocando uma nítida recusa em relação à instantaneidade. A cidade como não poderia deixar de ser estava presente nas experimentações:

Mario Bellusi - Dinamismo de uma cidade moderna, 1930

irmãos Bragaglia

45


46


A Bauhaus foi uma escola criada por Walter Gropius como novo cen-

1.3.3

CONSTRUTIVISMO na fotografia urbana.

tro de idéias. A arquitetura e o design eram as principais vertentes. Mas a fotografia também encontrava sua representação. Dentre os fotógrafos que podem se dizer construtivistas, o húngaro Laszlo Moholy-Nagy (1895- 1946) discutia o lugar da imagem na cul-

O Construtivismo foi uma das mais importantes vanguardas do início

tura moderna e as transformações necessárias e as funções desta

do século, o movimento estético-político iniciou-se na Rússia. O movi-

nova imagem. A fotografia aparecia como suporte de suas investiga-

mento negava uma “arte pura” e abolia a idéia da arte como elemento

ções. Seus trabalhos estão de acordo com a filosofia da Bauhaus que

especial da criação humana, separada do mundo cotidiano. A arte, in-

se propunha a encontrar novos materiais e novas utilizações para o

spirada pelas novas conquistas do novo Estado Operário, se inspirava

já conhecido.

nas novas perspectivas abertas pela máquina e pela industrialização servindo a objetivos sociais e a construção de um mundo socialista.

Ele afirmava que a fotografia é uma das grandes opções para a imagem moderna. Além de suas experimentações em utilizar todas as

Surge como uma decorrência do futurismo italiano e do cubismo

alternativas possíveis para compor uma imagem, Moholy-Nagy, tam-

francês. Adquire características próprias perseguindo o ideal de abst-

bém escreveu bastante sobre o assunto. Em 1929 ele escreveu o

ração: despoja-se de qualquer alusão à natureza. Rompe radicalmente

livro “A nova visão”, onde ele explica suas descobertas em relação

com a arte do passado (da representação do real) e propõe uma nova

à fotografia: graduação da luz, novos ângulos e uma nova forma de

linguagem plástico-pictórica: “O mundo da não-representação” (Male-

olhar.

vitch). De forma genérica configurou-se como a utilização constante de elementos geométricos, cores primárias, fotomontagem e a tipografia

László Moholy-Nagy (American, b. Hungary, 1895–1946)

sem serifa. O Construtivismo teve influência profunda na arte moderna,

As fotografias de Moholy-Nagy vão influenciar toda uma geração de

contando com várias manifestações: o suprematismo, o De stijl e o

fotógrafos, que partem para o abstracionismo. Entre ele André Kertezs

que mais nos interessa no contexto deste trabalho que foi a Bauhaus.

que também possui uma extensa produção sobre a cidade.

(PERSICHETTI, Simonetta. Notas de aula, 2008) Filippo Masoero - Veduta aerea do foro romano, 1930

47


48


Laszlo Moholy-Nagy, House painter in Switzerland. 1925.

Laszlo Moholy-Nagy.

Laszlo Moholy-Nagy.

Laszlo Moholy-Nagy, Radio Tower Berlin, 1928.

49


Kertezs saiu de uma área rural da Hungria para a metropolitana Paris para morar com um tio que tinha a fotografia como ofício. Autodidata tornou-se fotógrafo de rua, levando ao extremo a mobilidade que máquinas de pequeno formato começavam a propiciar. O contraste da paisagem rural de sua origem com a metropolitana Paris o impulsionou a produzir largamente pelas ruas. Em Paris Kertezs chegou a alcançar o sucesso, trabalhando como free-lancer para revistas como Vu, Art et Medecine, the London Sunday Times, Berliner Illustrirte Zeitung, e UHU. Além disso fazia experimentações como sua famosa série distorções onde trabalha o nu distorcido por espelhos côncavos e convexos. Em 1936 Kertesz realiza uma viagem para Nova York planejando ficar pouco tempo, mas com a eclosão da guerra na Europa, ele acaba por permanecer o resto de sua via na américa. Em Nova York Kertesz é relegado a trabalhar como fotógrafo de interiores e moda para revistas da época, alcançando pouca visibilidade na cidade, frustrado Kertesz passa por um longo período de depressão. Seu trabalho autoral de rua em Nova York talvez seja o que melhor traduz a sensação de eterno estrangeiro ao qual ele mesmo se impôs. Com forte dose de experimentalismo formal, Kertesz acumula uma extensa produção, que só no final de sua vida quando passa a se dedicar novamente a séries autorais alcança o devido reconhecimento. (PERSICHETTI, Simonetta. Notas de aula, 2008)

André Kertesz, Shadows, 1931.

50

André Kertezs.


51


André Kertezs.

André Kertész, on the boulvards, 1934.

André Kertész, Lost cloud, 1937..

André Kertesz, fireworks at longchamps, 1930..

52


53


André Kertesz, new york, 1970.

André Kertesz, white horse, 1962.

André Kertesz, roof..

André Kertesz, Torre Eiffel, 1940.

54


55


1.3.4

Surrealismo na fotografia Urbana.

O Surrealismo foi uma corrente que evoluiu do movimento dadaísta. Os Surrealistas criticavam a negação de tudo proposta pelo Dadaísmo e se baseavam fortemente na psicanálise e no marxismo. André Breton que se dedicava a literatura foi um dos fundadores do movimento, e autor do seu manifesto. Como médico Breton era um estudioso de Freud, cuja teoria do inconsciente abria à pesquisa uma vastíssima região da psique.: “No inconsciente pensa-se por imagens, e, como a arte formula imagens, é o meio mais adequado para trazer à superfície os conteúdos profundos do inconsciente.”(ARGAN, 1992, p.360)

O manifesto surrealista foi criado em Paris, em 1924. Nele são lançados as bases da estética surrealista, que segundo a análise de Argan: “O inconsciente não é apenas uma dimensão psíquica explorada com maior facilidade pela arte, devido à sua própria dimensão da arte. Se a consciência é a região do distinto, o inconsciente é a região do indistinto: onde o ser humano não objetiva a realidade, mas constitui uma

André Kertesz, Place Gambetta, Paris, 1928-29.

56


unidade com ela. A arte, pois, não é representação, e sim comunica-

pregos, a xícara de chá forrada de pele) Todavia, também se utilizam

ção vital, biopsíquica, do indivíduo por meio de símbolos. Tal como na

as técnicas tradicionais, principalmente entre os artistas mais interes-

teoria e na terapia psicanalíticas, na arte é de extrema importância a

sados no conteúdo onírico das figurações, seja porque, sendo de uso

experiência onírica, na qual coisas que se afiguram distintas e não rela-

corrente, prestam-se muito bem à “escrita automática”, seja porque

cionadas para a consciência revelam-se interligadas por relações tanto

a normalidade ou mesmo a banalidade da imagem isolada ressalta a

mais sólidas quanto ilógicas e incriticáveis.” (ARGAN, 1992, p.360)

incongruência ou o absurdo do conjunto (como quem narra as coisas

A livre associação e a análise dos sonhos, ambos métodos da psicanálise freudiana, transformaram-se nos procedimentos básicos do

mais incríveis da maneira mais normal e aparentemente objetiva).” (ARGAN, 1992, p.361)

surrealismo, embora aplicados a seu modo. Dessa forma o movimento

Os surrealistas talvez tenham sido os que melhor percebem o para-

surrealista era polarizado: “o automatismo abstrato por uma parte; o

doxo da fotografia. Ela é índice, ela é rastro, ela é pista. Paradoxal-

academicismo ilusionista por outra parte [...]” (KRAUSS, 2002, p.109).

mente também é realidade construída por um signo, a presença trans-

Eram imagens ligadas ao universo dos sonhos e da livre associação,

formada em ausência, em representação, em espaços, em escritura.

unidas “em torno do conceito da imagem metafórica concebida irracionalmente” (KRAUSS, 2002, p.109).

Os surrealistas se apropriaram da idéia “da fotografia como documento”, como um fragmento da realidade. André Breton afirmou que a ima-

Por meio do automatismo, ou seja, qualquer forma de expressão em

gem e a palavra em estado selvagem não representavam o real, mas

que a mente não exercesse nenhum tipo de controle, os surrealistas

o apresentavam. A ação de fotografar seria a de tornar visível a escrita

tentavam plasmar, seja por meio de formas abstratas ou figurativas

automática do mundo, aumentando a quantidade de imagens pelas

simbólicas, as imagens da realidade mais profunda do ser humano: o

quais o mundo se apresenta. Esse “tornar visível” o mundo estaria me-

subconsciente.

diado pelo aparelho fotográfico, que modelaria a realidade conforme

“...quer no emprego de procedimentos fotográficos e cinematográficos, quer na produção de objetos “de funcionamento simbólico”, afastados de seus significados habituais, deslocados (o ferro de passar cheio de

seus próprios termos. Dentro desse contexto fica fácil entender o interesse dos Surrealistas pela obra de Eugene Atget, o ato de tornar visíveis objetos familiares deslocados de seu contexto e função.

57


Segundo Benjamin, as fotografias de Atget são precursoras da fotografia surrealista: “ (...) Esse lugares não são solitários, e sim privados de toda atmosfera; nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como uma casa que ainda não encontrou moradores. Nessa obras a fotografia surrealista prepara uma saudável alienação do homem com relação a seu ambiente. Ela liberta para o olhar politicamente educado o espaço em que toda intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores.” pelo registro de lugares solitários, alienados do homem, “em que toda intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores” (BENJAMIN, 1994).

E foi na própria Paris que se deram as experiências do grupo de surrealistas pela cidade. As experiências visavam transformar qualquer elemento da paisagem em objeto de valor, através de analogias e entrecruzamentos de idéias. Para o pensamento analógico, qualquer elemento poderá ser um sinal para revelar o desconhecido e desencadear idéias e projetos. Segundo Breton: “os objetos da realidade não existem apenas como tal: a observação dos traços constitutivos do mais banal de todos eles oferece-nos – num abrir e fechar de olhos – uma admirável imagem-adivinha, a qual, incorporada nesse mesmo objeto, nos fala, com toda a veracidade, do único objeto real e atual, do nosso desejo”. (BRETON apud MENDES, 2002, p.96) Eugene, Atget.

58

Eugene, Atget..


59


Existiam determinados lugares que os surrealistas costumavam fre-

cas, pois só o espanto consegue excitar a lógica, sempre tão fria, e

quentar. A partir de três pontos, marcados no mapa formando um triân-

obrigá-la a estabelecer novas associações”” (MENDES, 2002, p.97)

gulo, as possibilidades de percursos eram múltiplas. Qualquer imagem dentro deste percurso podia ser utilizada, mesmo que a paisagem real seja medíocre, o flâneur a transforma em um outro sentido. Assim, uma outra cidade passa a ser revelada, resgatando o que é deixado à margem, como as colagens onde os objetos revelam os desejos inconscientes através do encontro de imagens. O procedimento de tirar a fotografia do contexto inicial e reagrupar imagens segundo o hásard faz a imagem narrar outras histórias, distintas daquelas que representavam originalmente, passando a adquirir novos significados. O eterno percorrer possibilita todo o tipo de encontro. E é neste sentido que os surrealistas em Paris deixaram-se levar por caminhos não anteriormente estabelecidos. “As collages, assim como a hipnose, a escrita automática, os textos coletivos e os “cadáveres deliciosos” são processos onde o “acaso” cos-

pelos surrealistas, segue a série fotográfica “autópsia da cidade” de Daniela Mendes, realizada na cidade de Paris em 2000, inspirada justamente nas práticas dos surrealistas. Daniela leva à cabo a ideia de fragmentar e recombinar. “Esses fragmentos de tempo e de espaço, captados pela câmara fotográfica, estão relacionados com a percepção da cidade. A reunião dos fragmentos nos mostra uma outra cidade, aquela que não coincide com a cidade real, mas que coincide com a que temos em nossa mente, no nosso inconsciente.” (MENDES, 2002, p.134)

A relação entre os diversos fragmentos que compõe o trabalho de Daniela Mendes não é estabelecida por questões plásticas, formais nem por associação temática.

tuma manifestar-se. Estes procedimentos foram adotados pelos sur-

“O corte, e consequentemente a fragmentação, por si próprios não

realistas como um meio de conhecimento da realidade e do psiquismo,

permitem que exista uma ligação desta maneira. Na sequência aqui

da beleza que poderia resultar de uma atividade inconsciente ocultada

apresentada como representação de um percurso, apesar da imagem

pelo racionalismo... pelo fato de não racionalizarmos aquilo que preten-

conter elementos que podem ser identificados com o espaço físico, o

demos, o resultado é muito superior porque não conduzimos o nosso

que se mostra é justamente esta aparente falta de ligação, produzindo

pensamento a idéias objetivamente fechadas e “a surpresa provocada

uma sensação de inquietante estranheza.” (MENDES, 2002, p.138)

por uma nova imagem ou por uma nova associação de imagens deve ser encarada como elemento primordial do progresso das ciências físi-

60

Para ilustrar os procedimentos de fruição da cidade experimentados

Outro grande representante do universo onírico dos surrealista, na


Aut贸psia da cidade, Daniela Mendes Cidades, 2000.

61


fotografia urbana, é Brassai. Nascido na Hungria em 1899, encontrou em Paris seu grande tema. Revelou a cidade nos mais variados aspectos, dos desenhos anônimos rabiscados em paredes às grandes personalidades da vida cultural da capital francesa. Embora não fosse oficialmente alinhado ao surrealismo, Brassaï manteve uma relação próxima com os integrantes do movimento, e uma contribuição reincidente expondo vários de seus trabalhos na revista Minotaure, editada pelo grupo na década de 30, além de incluir suas imagens em algumas das principais obras do escritor-agitador André Breton, como Nadja e L’amour fou. Sua série fotográfica Paris de nuit, que foi publicada em 1932, inaugura toda uma nova visualidade sobre Paris, revelando aspectos até então ocultos da cidade. As imagens parecem possuir a crueza reveladora dos sonhos. “No mundo de Brassai à noite, as sombras revelam mais do que escondem, antropomorfizadas pelas fontes de luz que as criam. As grades Art Nouveau que decoram as estações de metro da cidade assumem personagens sobrenaturais, isolado pela lente do fotógrafo contra a escuridão. Prostitutas e dândis emergem como espectros luminosos nas entradas de bordéis e na lâmpada acesa nas esquinas.” (SAND, Michael. 1994)

Ao comentar esse trabalho, Graham Clarke assinala a capacidade de Brassaï.

62

Brassaï.


63


Brassaï.

Brassaï.

Brassaï perceber a metrópole francesa como um “território de ligações ilícitas e prazeres privados”. “Tudo está em fluxo, um espaço psicológico da imaginação que tem pouco a ver com a arquitetura da cidade”. (LOUZAS, 2003)

Brassaï.

“O efeito surreal de minhas imagens nada mais é do que a realidade tornada fantástica por meio de uma visão particular. Tudo o que eu quis expressar foi a realidade, porque nada é mais surreal... Meu objetivo constante é fazer as pessoas verem um aspecto da vida diária como

A posição de Brassaï em relação ao movimento Surrealista, próxima

se elas tivessem descoberto isso pela primeira vez.” (BRASSAI, 1932

mas ao mesmo tempo independente, reflete-se numa frase publicada

apud SAND, 1994)

na apresentação de Paris de nuit:

64


Desafios potencializados:

As novas configurações do meio urbano.

2 1

Como dito anteriormente, vários outros movimentos culturais se se-

formaram completamente as cidades, o que se viu no século XX foram

guiram às vanguardas modernas do século XX. O recorte proposto no

todas as questões que estavam sendo elaboradas naquele momento

trabalho visa a identificação de momentos de gênese de certas práti-

alcançarem patamares inimagináveis mesmo para os mais eloquentes

cas que ainda serão desenvolvidas ao longo do século XX por diversos

críticos daquela época como Baudelaire.

grandes nomes da fotografia.

Após o final da segunda grande guerra poderosas forças econômicas

Para que esse trabalho possa refletir melhor quais foram as mudan-

dominaram a Europa e criaram uma reação que teve seu auge nas

ças no meio urbano que vêem desafiando a fotografia urbana contem-

manifestações de maio de 68. O texto que serviu de base para es-

porânea a dar um passo à frente na representação das cidades, nesse

sas manifestações são de autoria de Gui Debord, no livro Sociedade

subcapítulo serão elencados alguns importantes conceitos trabalha-

do Espetáculo de 1967, que por sua vez tem como base as teorias

dos por autores que se debruçaram sobre o estudo dessas condições

marxistas. A questão central é o espetáculo como forma de alienação

urbanas a partir da segunda metade do século XX.

visando a dominação do proletariado pela burguesia e assim a questão

Se as mudanças vividas pela sociedade no final do século XIX trans-

da imagem torna-se o foco dessas discussões.

65


“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social

nomia “informacional/global” e uma cultura da “virtualidade real”.

entre pessoas, mediatizada por imagens... Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação. (DEBORD, Guy apud JAQUES, 2003)

“O surgimento de uma economia poderosa e competitiva na região do Pacífico e os novos processos de industrialização e expansão de mercado em várias regiões do mundo ampliaram o escopo e a escala da economia global, estabelecendo uma base multicultural de interdependência econômica. Por intermédio da tecnologia, redes de capi-

A relação real com a “vida” parece não poder mais ser restabelecida,

tal, de trabalho, de informação e de mercados conectaram funções,

as imagens se desligam do seu referente e passam a fazer parte de

pessoas e locais valiosos ao redor do mundo ao mesmo tempo em

um sistema próprio. O espetáculo movimenta-se autonomamente,

que desconectaram as populações e territórios desprovidos de valor

tornando-se a inversão da realidade. A cidade como palco da vida

e interesse para a dinâmica do capitalismo global.” (CASTELLS, 2003)

moderna torna-se o grande espaço do espetáculo.

Castells chama atenção para o quanto esse novo cenário global/vir-

“Tornando-se cada vez mais idêntico a si mesmo, e aproximando-se o

tual, dirigido pelo paradigma informacional é diferente de todo o con-

máximo possível da monotonia imóvel, o espaço livre da mercadoria é

texto onde a humanidade já produziu cultura historicamente. O com-

a cada instante modificado e reconstruído. A história econômica, que

partilhamento do espaço e do tempo, sob determinadas condições:

se desenvolveu intensamente em torno da oposição cidade-campo,

produtivas; de poder; e a “experiência modificada por seus projetos”;

chegou a um tal grau de sucesso que anula ao mesmo tempo os dois

sempre foram importantíssimas ao significado de cada cultura e na

termos.” (DEBORD, Guy apud JAQUES, 2003)

diferenciação da evolução, que inclui a produção de artefatos culturais

O espaço espetacular também era o cenário das discussões propos-

como as cidades.

tas por Manuel Castells. A partir da década de 1980 ele começa a se

“No paradigma informacional surgiu uma nova cultura a partir da supe-

concentrar no papel das novas tecnologias de informação e comunica-

ração dos lugares e da invalidação do tempo pelo espaço de fluxos e

ção na restruturação econômica no final do século. Segundo Castells

pelo tempo intemporal: a cultura da virtualidade real, chamo de virtu-

essas novas tecnologias conjugadas com o contexto de restruturação

alidade real um sistema em que a realidade em si (ou seja, a existên-

da ordem mundial criaram uma nova sociedade “em rede”, uma eco-

cia material/simbólica das pessoas) está imersa por completo em um

66


ambiente de imagens virtuais, no mundo do faz-de-conta, em que os

cionais.

símbolos não são apenas metáforas, mas abarcam a experiência real.” “A grande originalidade desta cidade gerada simplesmente abandonar

(CASTELLS, 2003)

o que não funciona - que já sobreviveu a sua utilização em quebrar

Dentro deste contexto onde toda a humanidade está destinada à imer-

o asfalto-idealismo com martelos neuméticos realismo e aceitar qual-

gir, é possível prever que as cidades tendem a se tornar cada vez

quer coisa que cresce no lugar. Nesse sentido, a cidade gerada abriga

mais genéricas. As imagens das cidades, a princípio fruto de culturas

tanto o primitivo e o futurista: na verdade, apenas estas duas coisas.

distintas, acabam se parecendo cada vez mais. Dentro da lógica da

A cidade genérica é tudo o que resta do que a cidade costumava ser.

economia global as cidades precisam seguir um modelo internacional

A cidade genérica é a pós-cidade a ser desenvolvida no local do ex-

extremamente homogeneizador, imposto pelos financiadores multina-

cidade.” (KOOLHAAS, 1995)

cionais dos grandes projetos de revitalização urbana.

Este modelo visa basicamente o turista internacional (e não o habitante

Além disso as cidades incharam e se tornaram megalópoles com áreas

local) e exige um certo padrão mundial, um espaço urbano tipo, pa-

corporativas conectadas por fluxos de informações que aproximam

dronizado. Como já ocorre com espaços padronizados das cadeias de

áreas desenvolvidas das grandes metrópoles espalhadas por todos os

grandes hotéis internacionais, ou ainda dos aeroportos, das redes de

continentes, enquanto periferias destas mesmas tornam-se cada vez

fast food, dos shopping centers, dos parques temáticos ou dos con-

mais miscigenadas e excluídas. A dicotomia entre campo e cidade se

domínios fechados,que também fazem com que as grandes cidades

esmaeceu formando grandes áreas com ocupações híbridas sujeitas

mundiais se pareçam cada vez mais, como se formassem todas uma

à lógica da velocidade.

única imagem: paisagens urbanas idênticas, ou talvez mesmo como

A memória da cultura local (que deveria ser preservada) se perde, e

diz Rem Koolhas, genéricas.

em seu lugar são criados grandes cenários para turistas. Condomínios

Marc Augé é outro autor que se debruça sobre esses espaços pa-

fechados, praças de alimentação e corredores de shopping-centers.

dronizados. No seu conceito de “não-lugar” ele sintetiza as característi-

O processo dito de revitalização é indissociável dessas estratégias de

cas dessa nova espacialidade ao qual a humanidade parece destinada

marketing urbano que buscam construir uma nova imagem para a ci-

a habitar.

dade que lhe garanta um lugar na nova geopolítica das redes interna“Se um lugar pode definir-se como lugar de identidade, relacional e

67


histórico, um espaço que não pode se definir como espaço de identi-

A questão da identidade é uma questão central na discussão da ci-

dade nem como relacional nem como histórico, definirá um não lugar. A

dade genérica. O marketing urbano reduz o que antes era cultural-

hipótese aqui defendida é que a sobremodernidade é produtora de não

mente peculiar e único nas cidades à simplificações rasas, que se

lugares, quer dizer, de espaços que não são em si lugares antropológi-

aproximam de logotipos da cidade. A imagem da cidade culturalmente

cos e que, contrariamente a modernidade baudelairiana, não integram

diferenciada passa por um processo de repetição e midiatização que

os lugares antigos: estes, catalogados, classificados e promovidos à

a esgota.

categoria de “lugares de memória”, ocupam ali um lugar circunscrito e específico.” (AUGÉ, 1994, p.73)

“Há uma redundância calculada na iconografia que a Cidade Genérica adota. Se linda como a água, os símbolos inspirados nela se espalham

Diante desse cenário que parece inevitável Rem Kolhaas no seu livro

por todo o seu território. Se tem uma montanha cada folheto menu,

de 1998 S, M, L, XL, deixa de lado a crítica pela crítica e desenvolve

bilhete ou cartaz insistir em uma colina, como se o único que conven-

reflexões muito pertinentes sobre esses espaços genéricos exploran-

cesse fosse uma tautologia ininterrupta. Sua identidade é como um

do questões até então intocadas.

mantra.” (KOOLHAAS, 1995)

“Estas são as cidades contemporâneas, como os aeroportos contem-

Conhecer novas cidades praticando turismo deixou de ser um exercí-

porâneos, ou seja, “todos iguais”? É possível teorizar esta convergên-

cio de entrar em contato com uma nova cultura para se transformar em

cia? E em caso afirmativo, qual configuração finalmente aspirar? A

consumo de imagens já saturadas. A experiência midiatizada antecede

convergência é possível apenas com o custo de desfazer-se da iden-

a experiência real esvaziando-a e tirando seu sentido.

tidade. Isto é geralmente visto como uma perda. Mas a escala que ocorre, deve significar algo. Quais são as desvantagens da identidade e, inversamente, quais são as vantagens de vazio? E se essa homogeneização acidental - e habitualmente deplorada - fosse um processo intencional, um movimento consciente de distanciamento da diferença e aproximação com a semelhança? E se estamos sendo testemunhas de um movimento libertação global: “abaixo o caráter!”? O que resta se se remove a identidade? O genérico?” (KOOLHAAS, 1995)

68

“Os turistas, por exemplo, fazem viagens quase imóveis, sendo depositados nos mesmos tipos de cabine de avião, de pullman, de quarto de hotel e vendo desfilar diante de seus olhos paisagens que já encontraram cem vezes em suas telas de televisão, ou em prospectos turísticos. Assim a subjetividade se encontra ameaçada de paralisia.” (GUATARRI, 1992, p.169) “Subproduto da circulação das mercadorias, a circulação humana


considerada como consumo, o turismo, reduz-se fundamentalmente

relação com o tempo e espaço não obedecem mais a lógica historica-

à distração de ir ver o que já se tornou banal. A ordenação econômica

mente estabelecida.

dos frequentadores de lugares diferentes é por si só a garantia da sua pasteurização. A mesma modernização que retirou da viagem o tempo, retirou-lhe também a realidade do espaço.” (PEIXOTO, 1996)

“O ser humano contemporâneo é fundamentalmente desterritorializado. Com isso quero dizer que seus territórios etológicos originários – corpo, clã, aldeia, culto, corporação... - não estão mais dispostos em um

Diante deste cenário onde a vida é permeada por tecnologias da in-

ponto preciso da terra, mas se incrustam, no essencial, em universos

formação e as cidades se tornaram cada vez mais parecidas entre si,

incorporais. A subjetividade entrou no reino de um nomadismo gen-

uma mudança profunda na sociedade se configurou. A velocidade

eralizado. Os jovens que perambulam nos boulevards, com um walk-

dos fluxos de informação fazem com que tudo circule com mais facili-

man colado no ouvido, estão ligados a ritornelos que foram produzidos

dade, um paradoxo se coloca:

longe, muito longe de suas terras natais. Aliás, o que poderia significar

“Tudo circula: as músicas, os slogans publicitários, os turistas, os chips da informática, as filiais industriais e, ao mesmo tempo, tudo parece petrificar-se, permanecer no lugar, tanto as diferenças se esbatem entre as coisas, entre os homens e os estados das coisas. No seio

“suas terras natais”? Certamente não o lugar onde repousam seus ancestrais, onde eles nasceram e onde terão que morrer! Não têm mais ancestrais; surgiram sem saber porque e desaparecerão do mesmo modo!” (GUATARRI, 1992, p.169)

de espaços padronizados, tudo se torna intercambiável, equivalente.”

No que se refere à representação das cidades, todas essas mudan-

(GUATARRI, 1992, p.169)

ças descritas impedem a humanidade de formar uma imagem clara do

Guatarri no seu livro caosmose alarda sobre a necessidade de se pensar a subjetividade dentro desse novo contexto. Os novos recursos técnicos desorientam a experiência da vida urbana moderna afetando

ambiente em que está imersa. O espaço é sobrecarregado por dimensões mais abstratas. As cidades tornam-se tão extensas e complexas que não é mais possível formar representações mentais destas.

a subjetividade do homem. É a própria metrópole que passa a ditar

“A legibilidade da paisagem das cidades era relacionada à imaginabili-

comportamentos, modo de vida e sensibilidade, impondo e alterando

dade, à capacidade de evocar uma imagem forte no observador. Pres-

os modos de vida. Segundo seus escritos, o ser humano contemporâ-

supunha referências visuais, um domínio sensorial do espaço, através

neo é “fundamentalmente desterritorializado” justamente porque sua

da experiência e da observação ocular. Mas a configuração atual im-

69


pede o mapeamento mental das paisagens urbanas. As cidades não

uma superície que não se deixa perspassar. Cidades sem janelas, um

permitem mais que as pessoas tenham, em sua imaginação, uma lo-

horizonte cada vez mais espesso e concreto. Superfície que enruga,

calização, correta e contínua com relação ao resto do tecido urbano.”

fende, descasca. Sobreposições de inúmeras camadas de material,

(PEIXOTO, 1996, p.417)

acúmulo de coisas que se recusam a partir. Tudo é textura: o skyline

A experiência fenomenológica do sujeito individual não coincide mais com o lugar onde ela se dá. Essas coordenadas estruturais não são

confunde-se com a calçada; olhar para cima equivale a voltar-se para o chão. A paisagem é um muro.” (PEIXOTO, 1996, p.13)

mais acessíveis à experiência imediata do vivido e, em geral, nem con-

Ao mesmo tempo não se pode pretender numa atitude romântica voltar

ceituadas pelas pessoas. Dá-se um colapso da experiência... Hoje

ao tempo das cidades pré-modernas, é preciso enfrentar a “nova” re-

têm-se sujeitos individuais inseridos em um conjunto multidimensional

alidade urbana, e dentro dessa perspectiva resgatar a subjetividade.

de realidades radicalmente descontínuas. Um espaço abstrato, ho-

Como disse Martin Barbero:

mogêneo e fragmentário. O espaço urbano perdeu situabilidade _ uma inscrição precisa em dimensões geográficas, acessíveis à experiência individual. (PEIXOTO, 1996, p.417)

“... seguir desejando nostalgicamente o tempo de uma cidade sem deterioração e caos não é só escapar por uma brecha metafísica aos desafios da história mas nos impedir de assumir ativamente os materiais

As imagens técnicas que desde meados do século XX já pareciam

dos quais está feita – e com os quais construir – a cidade de hoje: suas

ter saturado a humanidade, provocando movimentos como a pop art,

territorialidades e sua desterritorialização, seus medos e suas narrativas,

ainda ganharam novo fôlego com as tecnologias digitais no final do

seus jogos e seu caos, seus trajetos a pé e de ônibus, seus centros e

século XX. A facilidade na produção de imagens digitais por um lado

sua marginalidade, seus tempos e seus calendários.” (MARTÍN-BAR-

favorece a democratização, e por outro massifica e dificulta a leitura

BERO, 2004, p.275)

crítica das imagens, a impressão que se tem é de que quanto mais se retrata, mais as coisas nos escapam.

70

O cenário descrito levanta questões centrais para esse trabalho: Estará a humanidade destinada à habitar o meio absorto que inventou

“Horizonte saturado de inscrições, depósito em que se acumulam

pra si mesma?Ainda será possível por meio da produção de imagens

vestígios arqueológicos, antigos monumentos, traços de memória e o

resignificar as paisagens urbanas, por hora opacas, e restituir-lhes o

imaginário criado pela arte contemporânea. O olhar é um embate com

significado?


Possíveis caminhos na fotografia urbana contemporânea

3 1

Nesse contexto explicitado no item anterior, a linguagem fotográfica

pacidade da pretensão documental e seguem um olhar interpretativo.

(claro que estamos falando das imagens de exceção e não da grande

Afastam-se do real, aproximando-se do imaginário. Utilizam-se de sua

massa fotográfica que vem sendo produzida) se voltou cada vez mais

iconosfera, de seus repertórios urbano/imagéticos, apegando-se às

à esfera intimista, de caráter subjetivo e experimental. Uma subversão

poucas experiências que lhes pareçam realmente suas, numa tentativa

da ideia da fotografia como representante fiel da realidade.

heróica de resignificar as opacas paisagens contemporâneas.

Apesar do cenário amedrontador traçado pela reunião de escritos do

A seguir segue uma análise crítica de séries isoladas de quatro fotógra-

item anterior, alguns fotógrafos ainda tentam lançar luz sobre essas

fos contemporâneos.

paisagens, e conscientes da opacidade do meio, vão contribuindo para que tentemos vislumbrar o cenário no qual uma desbaratinada humanidade vai escrevendo as primeiras páginas do recém iniciado século XXI. São artistas que parecem mergulhar bem fundo dentro de si mesmos para resgatar imagens. Deslocam seus sentidos, provocam estranhamentos que permitem novas leituras. Assumem a inca71


dessa interrupção temporal, trabalhada tradicionalmente na fotografia,

3.1

Michael Wesely – Potzdamer Platz

em diversos de seus trabalhos autorais. Seja no retrato, seja na fotografia urbana, a idéia de condensar em uma imagem uma seqüência de instantes permanece.

Michael Wesely nascido em 1963 em Munique é um fotógrafo que

Lochkamera Portraits, 1988.

vem perseguindo a idéia de dilatar os tempos de exposição de suas fotografias . Para esta monografia a séria mais significativa é o conjunto realizado na Potzdamer Platz, entre o ano de 1997 e 1999. Em um primeiro contato com essas imagem prevalece um certo estranhamento, uma massa confusa de elementos urbanos sobrepostos em camadas, parece tratar-se de uma fotografia com múltiplas exposições, juntando em uma só imagem o registro de mais de um lugar . Ao mergulharmos na análise mais detalhada da fotografia é possível perceber indícios que permitem a reconstrução da lógica constitutiva desta imagem, que remete diretamente à técnica utilizada. Para entender como as fotos foram realizadas tecnicamente, é importante conhecer um pouco do histórico da produção de Wesely, e das questões conceituais que perpassam o trabalho. Segundo Boris Kossoy, o ato fotográfico “pressupõe um inevitável recorte espacial e uma interrupção temporal em relação ao objeto do registro em seu continum no real (Fragmento-congelamento)”. Michael Wesely demonstrava vir perseguindo a idéia de mexer com a relação

72

8 min. Dorothee von Windheim 12 min. Kengiro Azuma 6 min. Josef Paul Kleihues

Madrid, 1991.


Na série sobre a praça alemã Michael Wesely já tinha reunido a experiência necessária para adaptar um dispositivo com filtros, calculados de forma que o seu negativo de médio formato pudesse ficar exposto pelo período de aproximadamente dois anos, possibilitando o registro de “ um número infinito de momentos individuais sobrepostos formando uma complexa estrutura de fragmentos da realidade”1 realidade que no caso remetia ao processo de reconstrução da icônica praça de Berlim. Para compreender as motivações do fotógrafo ao registrar a praça levando ao extremo a idéia de dilatação do momento, faz-se necessário entender também o contexto do lugar na reestruturação urbana ocorrida em Berlim após a queda do muro. A cidade como um todo vinha passando por um grande processo de transformação, a questão sobre a nova imagem que a cidade deveria formar tornou-se central. O momento propiciava uma grande discussão pública entre defensores da imagem da tradição, da cidade histórica, e os de uma cidade capital do novo mundo corporativo. A reconstrução da Potsdamer Platz, por sua importância histórica, representava um ícone desse processo. A quantidade de propostas arquitetônicas para a ocupação da praça representava o interesse por trás da discussão que ultrapassava a relevância apenas do lugar.

Michael Wesely, Potzdamer Platz, 1997-99 Michael Wesely, Potzdamer Platz, 1997-99

1 livre.

Palavras do próprio autor no seu site oficial (http://www.wesely.org), em tradução

73


Uma afirmação do fotógrafo extraída de uma entrevista2 com o arquiteto Paulo Tavares torna-se imprescindível para compreensão das suas motivações: “eu teria fotografado o processo de construção da praça independente do que estivesse sendo construído”. Essa informação é importante para entender que o interesse do fotógrafo estava no processo de transformação vivido pela cidade e não exatamente na imagem que se pretendia construir. Em meio a todas as discussões que permeavam a construção dessa nova imagem de Berlim, ele na sua perspectiva de artista talvez tenha sido quem melhor conseguiu sintetizá-la, “todos buscando uma imagem de Berlim e você estava fotografando esta busca” resumiu o entrevistador Paulo Tavares. A análise das fotografias nos permite reconstruir através de indícios a realidade à qual esta se remete e através desse processo gerar algumas reflexões. A invisibilidade de alguns elementos é uma delas.

Boulevar Parisiense, 1839, Daguerre.

Como disse o próprio autor da fotografia: “Tudo está lá, mas nem tudo é visível.” A abertura do diafragma durante dois anos, nos permite supor que em algum grau, tudo está representado naquele negativo: as figuras humanas, o movimento dos trabalhadores, as luzes da cidade

em 1839. As fotografias que na época prescindiam de um tempo de

no período da noite. É como se tudo estivesse sobreposto em cama-

exposição bastante elevado (entre 15 e 30 minutos) para fixação da

das, sendo que a perenidade e a intensidade de luz incidida ditam o

imagem, mostram um espaço urbano vazio, as figuras humanas, as-

quão visível os elementos se tornam na imagem final.

sim como na obra de Wesely tornam-se invisíveis causando estranheza. O interessante nesse paralelo é que o que antes aparecia como

Nesse aspecto a fotografia de Michael Wesely se relaciona com as

uma limitação da recém nascida técnica fotográfica, na obra de Wesely

hitóricas primeiras imagens de paisagens urbanas feitas por Daguerre

reaparece como um recurso extremamente sofisticado.

2 http://www.vitruvius.com.br/entrevista/wesely/wesely.asp

Michael Wesely, Potzdamer Platz, 1997-99.

74


75


Na obra do fotógrafo alemão até mesmo a permanência da arquitetura

Outra característica marcante da fotografia resultante é a ausência de

é relativa no espaço de tempo trabalhado. A imagem dos edifícios

sombras. As variações de luminosidade provocadas pela longa ex-

geralmente associada ao perene, nas fotos de potsdamer aparecem

posição fazem com que a iluminação da cena torne-se difusa, dando

em transformação. O skyline ao fundo é sobreposto pelo fantasma

uma imaterialidade a cena urbana.

de um novo prédio que surge no primeiro plano durante o período da exposição. O sol torna-se o elemento que nos remete ao eterno, apesar do seu movimento registrado, é como se este fosse o único testemunho permanente das constantes modificações que ocorrem no horizonte da humanidade.

A análise das fotografias nos faz perceber que os esforços de Michael Wesely na tentativa de diluir a sensação de interrupção do momento, como se quisesse estender o instante fotográfico aos limites da continuidade do real, na verdade nos coloca de frente com a inevitabilidade dessa sensação, que se mostra inerente ao processo fotográ-

Os caminhos do sol registrados na fotografia são um dos poucos el-

fico. Levando ao extremo esse raciocínio, a análise das fotografias nos

ementos que dão materialidade para essa imagem. A observação

faz perceber que os dois anos de exposição do negativo, analisados

atenta do seu registro nos permite pressupor algumas interessantes

sobre o prisma da história, pouco se diferem do instante de um click.

questões, a variação do percurso solar evidencia o decorrer das estações no passar do ano, e sua sobreposição com a figura fantasmagórica do prédio que surge em primeiro plano nos permite resgatar a informação de que durante todo o primeiro ano da exposição a parte superior do prédio ainda não existia, mostrando um pedaço a mais do céu, e o antigo skyline da paisagem. Outra possível observação é em relação as interrupções que surgem nesses caminhos, que sugerem o passar de nuvens interrompendo as linhas dos percursos. Linhas que tornam-se tracejados formando um interessante grafismo que contém informações que podem ser utilizadas para resgatar informações “meteorológicas” sobre o céu de Berlim durante aqueles dois anos. Michael Wesely, Potzdamer Platz, 1997-99.

76


77


O breu da noite torna-se imprescindível para configurar a atmosfera na

3.2

Cassio Vasconcelos – Série Noturnos

qual Cassio ambienta sua São Paulo. “O fato de o trabalho ter sido realizado à noite não foi por acaso. Fui envolvido pelo lirismo noturno, que é quando os sonhos se fazem. A

Cassio Vasconcelos nascido em São Paulo em 1965, iniciou sua tra-

poesia e atmosfera única captadas nas imagens não são encontradas,

jetória na fotografia em 1981, na escola imagem-ação. Suas fotos tem

na mesma proporção, à luz do dia.”

uma forte ligação com a cidade, tendo desenvolvido vários trabalhos que representam a metrópole através de um exercício que se afasta do

“como marca registrada procuro a singularidade, o limite entre o real e

documental e que recorre a imaginação.

o imaginário. Nessas fotos, particularmente, busquei formas de retratar uma visão pessoal e distinta. Tentei resgatar o que está invisível ou o

A série destacada nesse trabalho chama-se “noturnos” e foi produzida

que não é tão explícito. Encontrar na fotografia a beleza escondida no

durante 14 anos, de 1988 à 2002 quando foi publicado o livro que

comum, no caos, no feio...” (VASCONCELOS, 2002)

leva o mesmo nome. As fotografias foram realizadas com uma Polaroid SX-70, evidenciando o caráter analógico do processo, e a ausência

Dessa forma ele constrói uma São Paulo que não existe. Ao sobrepor

de manipulações. Para aumentar o caráter surreal das fotos o fotó-

elementos díspares como tapumes de contrução, estruturas em ruínas

grafo em diversas fotos jogava uma iluminação colorida improvisada

com o skyline da cidade ele faz aflorar um estranhamento desses el-

nos elementos do primeiro plano, aumentando a sensação de estra-

ementos banais. “Ele retira as coisas do tempo e do lugar: tudo parece

nhamento. Nelson Brissac Peixoto no prefácio do livro Noturnos-São

em suspensão.” (ref nelson)

Paulo, atenta para a estranheza do processo: “O que salva então a aventura solitária deste fotógrafo? Cassio Vascon“Atentem para o inusitado desta cena: em plena São Paulo do século

cellos não pretende mostrar onde estão as coisas, mapear. A luz in-

XXI – megacidade caótica, desfigurada, assolada pela crise social e

tensa que joga sobre as coisas, na verdade cega. Ela lhe permite andar

pela violência -, alguém vagando à noite por ruas desertas e terrenos

pela cidade como se estivesse de olhos bem fechados. Sua empresa

baldios, com um holofote, cuja bateria vem num carrinho de feira. O

é essencialmente tátil. É o que lhe possibilita descobrir a presença,

personagem já expressa tudo o que, a princípio, teria de quixotesco

palpável, de tudo aquilo que, a princípio, não pode ver.” (PEIXOTO no

nessa empreitada. Tudo parece conspirar para que seja uma aventura malograda.” (PEIXOTO no prefácio de VASCONCELOS, 2002)

78

prefácio de VASCONCELOS, 2002)


Cassio Vasconcelos, Noturnos, 1988 Ă 2002.

79


3.3

Andreas Gursky

Andreas Gursky, nascido na alemanha em 1955, estudou fotografia na Academia de Artes de Düsseldorf, que criou o primeiro curso de fotografia da Alemanha, instituído no início dos anos 70. Ali foi aluno de Bernd (1931-2007) e Hilla Becher (1934), cuja obra revolucionou a fotografia na Alemanha. A proximidade com os dois mestres que fotografavam edificações industriais da paisagem alemã com câmeras de grande formato, obtendo o status de fotógrafos conceituais, sem dúvida influenciou a obra de Gursky.

“Water towers” | Bernd e Hilla Becher

Andreas Gursky.

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O principal foco das fotografias de Gursky são justamente a cidade genérica descrita por koolhas, com seus espaços desmedidos, e a derrocada da escala do homem. Nas fotografias de grandes formatos de Gursky (chegam a ter 7 metros quadrados) aparecem supermercados, shoppings centers, a bolsa de valores, espaços da vida do homem contemporâneo em registros que conjugam panorâmicas enormes, detalhismo absoluto e o processamento da imagem digital. “...retém da imagem fotográfica mais do que a sua função narrativa ou simbólica, pois o seu trabalho opera numa dimensão mais vasta, onde se cruzam, de modo sutil, ilusão e realidade, experiência simultaneamente visual e reflexiva, marcas essenciais de uma certa especificidade da criatividade artística. Recorrendo a excepcionais condições técnicas, partindo sobretudo das possibilidades oferecidas pelo processamento fotográfico electrónico.” (SANTOS, 2005)

Muitas fotografias de Gursky levantam a questão de como foram feitas. A única coisa evidente é que se trata de imagens artificiais, que Gursky começa a diluir o limite existente até então entre fotografia e pintura. Em sua obra, a fotografia tende a se tornar pintura digital. O observador nota que há algo de errado, as fotos são montadas para aumentar o impacto da imagem. Gursky sempre escolhe perspectivas incomuns. Procura sua imagem à distância. Ele busca o panorama, nunca se coloca como parte do acontecimento, mantendo-se de fora como observador. Guindastes, Andreas Gursky.

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telhados, sacadas e outros subterfúgios que o permita se posicionar

Com esses recursos o fotógrafo consegue criar representações que

em pontos não humanos fazem parte do dia a dia da produção do

exatamente por mentir aproximam-se da realidade. Em suas imagens,

fotógrafo.

ele condensa tempo e ocorrência espacial. Não nos revela o mundo

O foco também é uma questão interessante no trabalho de Gursky, suas grandes panorâmicas possuem foco em toda sua extensão, resultado obtido com a utilização de objetivas de altíssima resolução, com uma grande preocupação com o aumento do campo de profundidade da foto.

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como ele é, mas sim como ele o vê, no entanto de uma forma muito diferente da fotografia subjetiva, como o que conhecemos da história da fotografia. Ele constrói imagens como ficções baseadas em fatos. Em sua obra, a realidade é resultado de uma construção imagética. Fotos da incomensurabilidade dos espaços ao qual o ser humano/ urbano está submetido nas cidades globais.

Andreas Gursky. Andreas Gursky.


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3.4

Camera Escura - Abelardo Morell

Nascido em Cuba, o artista se mudou para os estados unidos aos 14 anos, fugido da revolução de Fidel Castro. Abelardo Morell começou, a partir da década de 90 do século XX, a se rebelar contra a ideia da fotografia como algo culturalmente superdeterminada, e da ideia da inevitabilidade da programação imposta pela mediação do aparelho fotográfico. Como que atendendo à instigante “filosofia da caixa preta” de Villém Flusser que pregava a necessidade do fotógrafo se libertar da função de funcionário do aparelho, Morell começou a experimentar em cima dos conceitos básicos do processo fotográfico. Em sua fotografia mais conhecida, Light Bulb, de 1991, ele simplesmente ilustra o funcionamento de uma camera obscura, utilizando uma precária caixa de papelão com uma lente fixada com fita adesiva, o resultado é de uma simplicidade genial.

Abelardo Morell.

Segundo as palavras de Andy Grundberg em um artigo publicado no próprio site do fotógrafo: “Pode-se dizer que Morell redescobriu e revivificou o paradoxo central da fotografia: ao representar a realidade com grande fatualismo, apresenta o mundo de forma irreal. Um grande fotógrafo da geração anterior, Garry Winogrand, descreveu de forma bastante apropriada quando disse: “Não há nada tão misterioso quanto um fato claramente exposto.” (GRUNDBERG, 2006) Abelardo Morell.

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Abelardo Morell.

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Abelardo Morell.


No entanto no contexto desta monografia o trabalho mais interessante de Abellardo Morell é a série intitulada “Câmara Obscura”, que também começou em 1991, com uma experiência que ele realizou para demonstrar o funcionamento do mecanismo de uma camara obscura em sala de aula. A série consiste justamente na transformação de diferente ambientes que são transformados em cameras escuras através da vedação e da aplicação de películas opacas nas janelas, com um pequeno furo. Como em um passe de mágica a imagem do mundo externo, a “vista” que se pode observar das tais janelas, se projetam na superfície oposta recriando a magia das primitivas camaras obscuras, que finalmente são fotografadas. A sobreposição do interior dos ambientes ocupados normalmente pela imagem do exterior cria uma leitura profusa. Essa série evoca muitas questões. A forma como Morell dá vida aos inanimados ambientes, fornecendo-lhes um “olho” capaz de manifestar vistas causam um interessante estranhamento. O artista repete esse procedimento em diferentes imóveis, em diferentes localidades. “A capacidade de Morell de ver o mundo como novo e surpreendente evoca não somente a perspectiva de um criança, mas também a de um completo estranho as tradições pictóricas do ocidente. Suas imagens transmitem o senso de que o ato da representação é algo recentemente descoberto e levemente alheio.” (GRUNDBERG, 2006)

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88


A construção subjetiva de um olhar sobre São Paulo

4

O objetivo final deste trabalho, que consiste numa reflexão sobre o ato de fotografar a cidade hoje, é alimentar a minha produção autoral sobre a cidade de São Paulo. Essa monografia sinaliza o final de um processo de aproximação com a cidade que começou com a mudança para a principal metrópole da América Latina objetivando a conclusão de um curso de pós-graduação em fotografia. O período de quase dois anos funcionou como um auto-exílio, um período de fuga de uma estável e confortável situação na tão diferente cidade de origem: Brasília; da insatisfação com o dia-a-dia da profissão de arquiteto, apesar da afinidade com o pensar o urbano; e de uma grande apatia emocional. O mergulho no universo da teoria fotográfica, e a compulsão pelo ato fotográfico nos vazios dias de ócio pela cidade ajudaram à acumular uma extensa produção fotográfica nesse período. Escolher uma única série para ser o objeto deste trabalho, num esforço de pensar a cidade em um processo de síntese, me pareceu menos rico do que apresentar vários momentos vividos no período. Dessa forma serão apresentadas 4 séries. 89


Os viadutos que irrompem a paisagem nos percursos rodoviários são

4.1

Catálogo urbano.

o foco da segunda montagem. As estruturas que apontam para a velocidade e para o deslocamento são uma marca na Mega-cidade. Múltiplas visões de um mesmo princípio rearranjadas conforme uma outra ordem, dessa vez plástica.

A primeira série apresentada é composta por 3 fotomontagens digitais supercontrastadas, preto e branco, as três com tamanho aproximado

Por último diversas coberturas dos edifícios de diferentes pontos da

de 100 x 100 centímetros.

cidade, saturadas de elementos funcionais como antenas, para-raios, parabólicas, transmissores, são reagrupadas inventando um outro

Cada uma das montagens é constituída por vários fragmentos de el-

skyline, que altera a lógica das coisas, colocando lado à lado chami-

ementos urbanos fotografados ao longo dos dois anos de residência

nés (comuns na áreas industriais) e heliportos (signos dos edifício das

em São Paulo. Os elementos trabalhados são parte da infraestrutura

sofisticadas áreas corporativas) destituindo esses elementos de sig-

metropolitana que possuem impacto direto na paisagem urbana, mas

nificado.

que passam desapercebidos no cotidiano. Esse trabalho consiste em ir coletando “espécies” com a câmera para uma tipologia urbana. Os

Nessa série a pretensão é olhar para as coisas como se elas não tives-

elementos que vão se repetindo são catalogados como se fosse pos-

sem significados funcionais, encarando a cidade como uma floresta

sível fazer “botânica no asfalto”: antenas, postes, placas, chaminés,

de símbolos cuja sintaxe ainda é desconhecida, como se fizessem

heliportos são sistematicamente capturados para depois serem reuni-

parte de uma topografia natural de uma virgem floresta de concreto,

dos em uma mesma imagem que mostra múltiplas visões.

com suas espécimes prontas para serem registradas e catalogadas.

Na primeira montagem a rede de fiações elétricas que está presente

“Com seu jeito de passear, como se recolhesse espécies para uma

como coadjuvante em praticamente qualquer vista da cidade, torna-se

verdadeira tipologia urbana, ele está “a fazer botânica no asfalto”. Ele

o foco principal sendo fotografada incessantemente. Na composição

faz “um inventário das coisas”:o trabalho de classificação característico

cem fotografias dos mais variados cantos da cidade são recombina-

da época.” (PEIXOTO, 1996, p.99)

dos tentando sugerir outros significados ainda não contaminados pelo funcionalismo do dia-a-dia. 90


Ricardo Theodoro, rede, 2009.

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Ricardo Theodoro, viadutos, 2009.

92


Ricardo Theodoro, reinventando o horizonte, 2009.

93


paços genéricos” ou “não lugares” descritos por Rem Koolhas e Marc

4.2

Augusta.

Augé tratados no capítulo 2 deste trabalho. Assim o desafio de retratar o dia-a-dia da vizinhança tomou outro sentido, como se com esse ato fosse possível preservar a peculiaridade

A segunda série: Augusta, é composta por 16 fotografias, organiza-

daquela trecho da cidade. Lendo sobre a Paris de Baudelaire que de-

das duas à duas totalizando 8 painéis de 90 x 30 cm. Tratam-se de

saparecia sob os projetos de modernização do Barão Haussman me

imagens noturnas, com grandes áreas de breu, contrastando com as

identifiquei com a figura de Atget que fotografava uma cidade que es-

fortes cores das luzes do néon dos “bordéis” da baixa augusta.

tava prestes a desaparecer. É claro que na São Paulo do século XXI

Nesse período de imersão na cidade de São Paulo fiquei morando na

esse processo é apenas mais um dentre muitos outros que fazem com

região do baixo augusta. O trecho da famosa rua próxima ao centro

que a cidade seja descrita com uma “cidade que se constrói sobre

da cidade, passou por um período de decadência, reunindo bordéis,

suas próprias ruínas”6.

casas noturnas, e a vida boêmia. O caráter mau cuidado que dá o tom

A escolha por fazer uma abordagem mais plástica da região, em contra-

das fachadas da região durante o dia contrastam com o colorido das

posição à possibilidade de fazer algo mais documental que expusesse

luzes de néon que tomam contam do lugar à noite, evidenciando a

a questão da prostituição ou das mazelas associadas à esse tipo de

vocação do lugar para a vida noturna.

atividade, foi consciente. Para um olhar desapercebido as cores e às

Se em um primeiro momento esse cenário me parecia decadente

meia-luzes não revelam muito sobre o mundo oculto naqueles breus.

e amedrontador, depois de uma certa aproximação, freqüentando a

A abordagem surge de um olhar que se deixou encantar e não de um

região, aquela fantasia que recai sobre a rua todas noites me encan-

crítico externo à situação.

tou fazendo com que eu começasse um processo de documentação.

Nas minhas várias saídas para fotografar a augusta à noite, Brassai

Nesse período foi possível perceber claramente que recentemente

também sempre foi um referência, em seu livro Paris de nuit, ele in-

a região tem se tornado alvo de interesse do mercado imobiliário e

augurava um novo modo de olhar para a metrópole. Seu projeto as-

de estabelecimentos mais sofisticados, e que vários dos peculiares

sociado ao surrealismo se utilizava do breu, das sombras para revelar

botecos e bórdeis estavam sendo substituídos gradualmente por es-

muito mais do que esconder e foi esse o caminho que eu tentei per-

tabelecimentos “hypes” inseridos no contexto de uma cidade global,

correr nesse ensaio.

podendo-se prever a transformação da região em mais um dos “es94


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Os grandes ícones da cidade surgiam de forma inesperada, sempre

4.3

Derivas

sobrepostos por outras camadas da cidade. Nas fotografias pontos como a Igreja da Sé, o prédio do Banespa ou o Mercado Municipal foram destituídos de sentido e reaparecem deslocados em planos secundários em pé de igualdade com as outras camada das sobre-

A terceira série de fotografias apresentada chama-se Derivas e é um

posições.

conjunto de imagens realizadas em caminhadas aleatórias pela cidade, o montante de fotografias produzido é imenso, e para esse trabalho

“Os monumentos são como mapas: traçam inexoravelmente o perfil

foram selecionadas 21 fotografias. Durante os quase dois anos mo-

da cidade. São marcos que estabelecem sem apelação a história e

rando em São Paulo para realizar a pós-graduação, a atividade de

os caminhos do lugar, que reduzem suas espessas camadas de vida

freelancer possibilitou bastante tempo de ócio. Caminhar pela cidade,

a signos exteriores erguidos sobre a grama. Eles excluem o não dito

sem rumo predeterminado, tornou-se parte do cotidiano. A posição de

o invisível, da cidade. É por isso que o estrangeiro, incapaz de recon-

estrangeiro, afastado dos condicionantes funcionais (percursos prede-

hecer o que as estátuas significam, pode ter acesso ao rosto interior da

terminados com fins pragmáticos) e de vivências pregressas (uma vez

cidade, não estampado nos mapas nem esculpido nos monumentos.

que os espaços estavam sendo percorridos pela primeira vez) fazia

Sensível aos acenos sutis - luzes, nomes, barulhos - que as cidades

com que a cidade se apresentasse sem pré-concepções.

fazem para nós, ele pode desvendar os seus segredos, o seu mistério.” (PEIXOTO, 1996, p.29)

“A inesgotável imaginação do recém chegado, atraído por tudo aquilo que nunca havia visto, lança mão de todos os recursos possíveis para

Os percursos são determinados por condicionantes não conscientes.

construir sua cenografia.” (PEIXOTO, 1996, p.99)

Michel de Certau, no livro “a invenção do cotidiano” analisou vária das questões do espaço urbano que influenciam os percursos na cidade.

Dessa forma São Paulo mostrou-se muito mais rica do que mais uma

Desde os nomes de ruas e logradouros, à semelhança com outros

cidade genérica. A possibilidade de percorre-la sem estar inserido em

lugares, segundo ele orientam os percursos que a princípio parecem

uma rotina de utilização funcionalista propiciou uma apreensão que

aleatórios. Certau promove uma “teoria das práticas cotidianas, do es-

foge do controle proposto pelos espaços anódinos que os extremos

paço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade.”

do sistema capitalista impõem. 104


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“Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, temos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquitadas na dor ou no prazer do corpo.” (PEIXOTO, 1996, p.29)

Por fim as fotografias formam um corpus imagético que foge das paisagens ícones da metrópole e mostram alguns de seus importantes marcos vistos sobre outros pontos de vista impregnados pela subjetividade. A série pretende revelar outras possibilidades de percepção da cidade associadas tanto ao acumulo de experiências do fotógrafo como do observador da imagem. Fotografias realizadas com a consciência de que uma imagem resoluta e fechada não é mais possível. No fim a vontade é que o conjunto de imagens seja aberto à interpretações. Passíveis de diversas apropriações. Fragmentos à espera de sujeitos que as reagrupem sobre diversas perspectivas.

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4.4

Zona Leste

A última série apresentada chama-se ZL, e consiste em um apanhado de fotografias da Zona Leste de São Paulo, que diferem dos princípios que orientaram o restante da produção. Essas fotografias foram realizadas em incursões pela Zona Leste, na companhia de Nelson Brissac Peixoto (Coordenador do grupo de intervenções Arte/Cidade), motivados pela elaboração do catálogo/livro do Arte/Cidade 4 ZL. No contexto da formação da minha relação com a cidade de São Paulo é preciso contextualizar o envolvimento na confecção dessas fotos para o catálogo do Arte/Cidade. Desde o curso de graduação em arquitetura, quando surgiram questionamentos sobre a atuação do arquiteto na cidade contemporânea, que o contato com os textos de Nelson Brissac Peixoto e com as idéias trabalhadas no evento Arte/Cidade, foram de fundamental importância na formulação do meu pensamento sobre a cidade, tendo sido alvo de estudos do meu trabalho final de graduação. Durante o período em São Paulo eu tive a oportunidade de conhece-lo pessoalmente, e de participar de algumas atividades do arte/cidade, incluindo essas incursões pela Zona Leste, com intuito de fotografar cenas que fossem sintéticas dos conceitos trabalhados no evento. As fotografias realizadas foram de extrema importância para a formatação do meu imaginário sobre a cidade de São Paulo como espaço de diversidade. 118


Essas imagens são muito diferentes das outras séries justamente porque foram elaboradas a partir de uma reflexão crítica sobre o espaço que antecedeu a experiência do lugar. As fotografias abordam o embate entre a informalidade e a especulação imobiliária na região tema do livro e das intervenções que ocorreram no evento que agora é alvo do catálogo. Para entender o conceito parte-se da idéia de que as cidades têm sido estruturadas por duas linhas de atuação: a da classe dominante (cidade formal que em última instância tem o arquiteto instrumentalizado agindo em prol dos interesses das classes dominantes); e a da classe dominada (cidade informal: uma gama de diferentes atores, atuando pela sobrevivência nas brechas da cidade formal, uma atuação tática, modificando, invadindo e adaptando estruturas, caracterizada pelo movimento e fluidez.). “Se a classe dominante atua por seu poderio econômico e político, com seus capitais e seu estado à frente, as classes, camadas e setores oprimidos também atuam na produção do espaço, mesmo quando lutam simplesmente pela própria sobrevivência e a melhoria das suas condições de vida.” (CARIELO, 1995)

É a partir dessa idéia que o filósofo Nelson Brissac utiliza-se de figuras de linguagem cunhadas por Deleuze e Guatari, para ilustrar essas duas linhas de atuação na cidade:

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“A cidade torna-se o campo de batalha das máquinas de guerra contra os aparelhos de captura... De um lado, populações de rua instrumentalizando tudo que está ao alcance, criando máquinas de guerra, redirecionando a infra-estrutura urbana para atender usos diversos, usando as torneiras de jardins públicos, ocupando calçadas com camelôs, favelas se infiltrando entre os interstícios, uma infinidade de recursos de sobrevivência que permite a ocupação de um território pelo deslocamento, por trajetos que distribuem indivíduos e coisas num espaço aberto indefinido.” (PEIXOTO, 2002) “De outro lado: “Aparelhos de captura constituídos para se apropriarem das máquinas de guerra. Sua função é estriar o espaço, controlar o nomadismo. Instaurar um processo de captura dos fluxos. Trajetos fixos, em direções bem determinadas, que limitem a velocidade, que mensurem nos seus detalhes os movimentos.” (PEIXOTO, 2002)

121


Pode-se atribuir a esse modelo as grandes desigualdades na apropriação do espaço das cidades, o crescimento caótico, a ocupação e utilização predatória do meio ambiente natural, a segregação dos pobres em áreas distantes e desprovidas de equipamentos urbanos, o fracasso de planos urbanísticos de intenções igualitárias, o desenfreado mercado imobiliário, a violência urbana. As cidades expressam as contradições sociais. As ocupações irregulares, invasões, favelas, o contingente de sem tetos, a expansão do mercado informal, o crescente número de feiras se dão como soluções diretas à necessidade de sobrevivência e melhoria das condições de vida dessa parcela da população. As fotografias refletem justamente esse embate. A escala monumental da infraestrutura urbana da megalópole São Paulo, em contraste com os “primitivos” abrigos por debaixo de viadutos espalhados pela Zona Leste.

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