AMIGO PARA O QUE DER E VIER Breve percurso histórico e características temáticas de O Amigo da Onça.
Hilton Castelo 1 Universidade Positivo Resumo Este artigo traz um breve perfil histórico do personagem humorístico em quadrinhos O Amigo da Onça, de seu primeiro autor, o cartunista Péricles Maranhão, e da revista em que foi publicado, O Cruzeiro. E mostra também as características e os temas predominantes nas histórias, com foco de pesquisa no período compreendido entre os anos 1943 e 1961. Palavras-chave: O Amigo da Onça, O Cruzeiro, Péricles, Carlos Estevão, quadrinhos brasileiros.
ABSTRACT This article brings a brief historical profile of the humoristic comic character O Amigo Da Onça, of its first author, the cartoon writer Péricles Maranhão, and the magazine in which it was published, “O Cruzeiro”. It also shows the characteristics and the main themes in the stories, focusing in the years of 1943 and 1961. Keywords: O Amigo da Onça, O Cruzeiro, Péricles, Carlos Estevão, brazilian comics.
1 Hilton Castelo, mestrando em Comunicação e Linguagens, especialista em Leituras de Múltiplas Linguagens e graduado em Publicidade e Propaganda, é professor da Universidade Positivo. Contato: hiltoncastelo@gmail. com.
AMIGO PARA O QUE DER E VIER Breve percurso histórico e características temáticas de O Amigo da Onça, o principal personagem em quadrinhos da revista O Cruzeiro
INTRODUÇÃO Em 2002, passei alguns dos dias mais prazerosos da idade adulta. Na época, aproveitava as férias do trabalho para concluir a pesquisa documental que daria suporte à monografia final do curso de especialização em Leituras de Múltiplas Linguagens da PUC do Paraná. O objeto de pesquisa era um velho conhecido de infância: O Amigo da Onça, personagem em quadrinhos publicado na revista semanal O Cruzeiro, de 1943 a 1973. Durante três semanas, folhei quarenta anos de exemplares de O Cruzeiro disponíveis na Biblioteca Pública do Paraná e fotografei oitocentas e cinqüenta e três páginas de O Amigo da Onça, principalmente os dezoito anos compreendidos entre 1943 e 1961, fase em que o personagem foi desenhado pelo cartunista pernambucano Péricles Maranhão. A sensação daqueles dias foi de reencontro carinhoso com as memórias de infância. Se o leitor já encontrou inesperadamente o retrato de um grande amigo de infância perdido em uma gaveta, de um sorriso encantador que nem lembrava mais, então sabe perfeitamente o que estou dizendo. Nas páginas seguintes proponho-me a compartilhar com você, caro leitor, um pouco de minhas memórias afetivas. Para tanto, traço um breve percurso histórico que procura explicar os motivos que levaram à criação de O Amigo da Onça na revista O Cruzeiro e de sua consolidação no mercado editorial brasileiro. Comento também sobre a história profissional e pessoal do primeiro autor do personagem, Péricles Maranhão, destacando a relação conflituosa que se estabelece entre a direção da revista e o Péricles e entre este e o próprio personagem Amigo da Onça. Tento também, ao longo do artigo, apresentar a temática e as características que percebi nas histórias publicadas em O Cruzeiro. Fiz o recorte de pesquisa entre os anos 1943 e 1961 por ser o auge do personagem e trazer todas as particularidades que o acompanharam em trinta anos de publicação em página inteira da revista O Cruzeiro.
1 NASCIDO EM BERÇO DE OURO O Amigo da Onça – ou o Onça, como será também aqui chamado – nasceu, em 1943, dentro do maior império de comunicação jamais visto na América Latina, os Diários e Emissoras Associados do jornalista Assis Chateaubriand, conglomerado de noventa empresas, composto por jornais, estações de televisão e rádio, revistas para o público adulto e infantil, agências de notícias e agências de propaganda (MORAES, 1994, p. 16). E foi publicado no carro-chefe do grupo, a revista semanal ilustrada O Cruzeiro. Apesar de surgir na fase final do Estado Novo de Getúlio Vargas, O Onça teve seu auge nos anos 50, durante o governo Juscelino Kubitschek, e refletiu o contexto comportamental dos anos JK: liberdade de expressão, porém, comparado com valores vigentes nos dias atuais, uma sociedade excessivamente machista, preconceituosa e ainda sem o pudor daquilo que, décadas depois, viria a chamar-se de “o politicamente correto”. 8 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO
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O fato determinante, dentro de O Cruzeiro, para o criação do personagem foi o processo de modernização do projeto gráfico da revista. Accioly Netto, diretor de redação da revista por quarenta e seis anos, explica bem a situação da revista naquele período: Em sua fase inicial, caracterizada por um luxo editorial jamais visto no Brasil, O Cruzeiro era impresso em cores sobre papel couchê de primeira classe (...) Também no conteúdo trazia trabalhos de colaboradores do porte de (...) Menotti Del Pichia (...) Manuel Bandeira (...) Guilherme de Almeida e Mário de Andrade. As ilustrações a cores e as excelentes reproduções tinham as assinaturas de (...) Emiliano Di Cavalcanti (...) Anita Malfatti (...) e outros de igual valor (...) Jamais houvera em toda a América do Sul uma publicação com tal apuro gráfico. (NETTO, 1998, p. 37).
Ilustração 1 2 2 Capa da edição número 30, de junho de 1929. Até a edição acima, O Cruzeiro chamava apenas Cruzeiro.
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Apesar da qualidade, a revista enfrentava sérios problemas, e ao entrar para a redação, em 1931, Accioly Netto, espantou-se com a falta de recursos financeiros e ineficiência da área administrativa: Resumindo a situação, a revista encontrava-se à beira da insolvência (...) Analisando rapidamente a situação, compreendi que a linha editorial anterior, do ponto de vista literário e artístico, estava francamente superada. Em verdade, os velhos colaboradores, desenhistas, pintores e autores dos antigos textos, com seus pagamentos atrasados, pouco apareciam na redação. E o público já não se mostrava tão deslumbrado com a reprodução de belas pinturas passadistas e textos descritivos ou simplesmente poéticos (...) Por isso, a tiragem da revista (...) estava em cerca de dez mil exemplares e, mesmo assim, apresentando assustadores encalhes. (NETTO, 1998, p. 47-48).
Accioly Netto trouxe então para O Cruzeiro novidades que faziam sucesso em revistas norte-americanas e francesas: chamada de capa, texto breve, exploração de atualidades fotográficas, fotos de estrelas e galãs fornecidas gratuitamente por agências de publicidade de Hollywood, histórias colhidas do cotidiano político, social e artístico. E muitas páginas de humor. Não significa, é claro, que o humor não existisse nas revistas brasileiras. Os caricaturistas são encontrados em publicações nacionais desde 1837, quando Manoel de Araújo Porto Alegre e Rafael Mendes de Carvalho publicaram as primeiras charges políticas no periódico “A Lanterna”. Também não quer dizer que o humor não existisse em O Cruzeiro; já em sua primeira edição, em 10 de novembro de 1928, a revista trazia caricaturas originalmente publicadas em revistas estrangeiras. A novidade proposta de reforma editorial e conceitual de Netto era a criação de um personagem humorístico fixo que ocupasse uma página inteira e representasse fatos, problemas e críticas do cotidiano carioca. Apesar da intenção de uma brasilidade explícita, a inspiração veio, no entanto, de um personagem já existente. O tipo humorístico foi baseado em El Enemigo del Hombre, do cartunista argentino Guillhermo Divito, da revista “Patoruzu”, que, por sua vez, tinha sido cópia de “The enemies of man”, da revista americana Esquire. Procuravam a representação de um “cavalheiro de ar ingênuo que causava as maiores confusões, muitas vezes até tragédias, por causa de sua mania de dizer certas verdades impróprias” (NETTO, 1998, p. 126).
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O nome “Amigo da Onça” antecedeu ao próprio desenho. Já tinham até o nome, adaptado de uma anedota que fazia muito sucesso. Dois caçadores conversam em seu acampamento. - O que você faria se estivesse agora na selva e uma onça aparecesse na sua frente? - Ora, dava um tiro nela. - Mas se você não tivesse nenhuma arma de fogo? - Bom, então matava ela com meu facão. - E se você estivesse sem facão? - Apanhava um pedaço de pau! - E se não tivesse nenhum pedaço de pau? - Subiria na árvore mais próxima! - E se não tivesse nenhuma árvore? - Saía correndo! - E se você estivesse paralisado pelo medo? Então o outro, já irritado, retruca finalmente: - Mas afinal você é meu amigo ou amigo da onça? (JOTA, 1988, p. 6). 3 Charge de Guillhermo Divito, criador de El enemigo del hombre, desenho que serviu de referência para a criação de O Amigo da Onça. Fonte: disponível na internet. http://lambiek.net/artists/d/divito_guillermo.htm. Acesso em: 5 jan de 2008.
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Definidos as características desejadas e o nome, faltava agora apenas um autor. Em belo texto sobre Péricles Maranhão, Millôr Fernandes (apud JOTA, 1988, p. 2) afirma que o Amigo foi inicialmente oferecido ao caricaturista Augusto Rodrigues, primo do teatrólogo Nelson Rodrigues e desenhista de muito sucesso na época, mas que seu desenho demasiado solto, apesar da reconhecida qualidade, não serviu ao objetivo, e que, além disso, Rodrigues mostrou resistência em tocar um projeto de características delineadas. A mando de Assis Chateaubriand, veio à redação de O Cruzeiro, como candidato a autor, um rapaz de 19 anos incompletos, de nome Péricles, recém-chegado da cidade de Recife: O rapaz ouviu tudo atentamente e depois, sem hesitar, resumiu o que tinha ouvido, sem saber que naquele momento criava uma realidade imortal (...) Em seguida, pedindo lápis e papel, traçou com movimentos nervosos, diante de todos, o desenho daquele que seria em pouco tempo famoso em todo o Brasil. Foi assim que surgiu “O amigo da onça”, publicado já na semana seguinte em O Cruzeiro. (NETTO, 1998, p. 126).
O desenho foi aprovado pela direção de O Cruzeiro. E surgia ali, em outubro de 1943, um personagem destinado a fazer história na imprensa brasileira. Aliás, bastante parecido com o autor, que na época andava sempre, como se dizia na época, “nos trinques”, sempre bem vestido com seu paletó de linho branco e bigode bem tratado.
Ilustração 3 4 4 Texto: “– Foi esse aí, seu Trocador, botou só um tostão”. Primeira história do personagem. Fonte: O Cruzeiro, 23 de outubro de 1943. 12 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO
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2 O CRIADOR E A CRIATURA
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Péricles de Andrade Maranhão nasceu em Recife, Pernambuco, em 14 de agosto de 1924. Os primeiros desenhos de Péricles foram publicados na revista do Colégio Marista, onde ele estudava. A partir de então se tornou habitual colaborador de jornais recifenses. Graças a esta atividade, virou notícia pela primeira vez em artigo publicado, no dia 5 de novembro de 1940, no Diário de Pernambuco, também de propriedade dos Diários Associados, escrita pelo jornalista e diretor do jornal Aníbal Fernandes. Nas linhas de encerramento, Fernandes mostra toda a sua crença no talento de Péricles: “Guardem bem esse nome. Péricles Maranhão. Quem viver verá se ali não está um artista, sobretudo se tiver ambiente para estudar e produzir.” (apud JOTA, p. 2). A simpatia de Aníbal Fernandes rendeu a Péricles uma carta de apresentação e um emprego na matriz dos Diários Associados, no Rio de Janeiro, em 1942. Os primeiros trabalhos do jovem artista pernambucano – Cenas Cariocas; Miriato, o Gostosão; e Oliveira, o Trapalhão – foram publicados nas revistas Guri, Detective e A Cigarra, e percebem-se neles figuras pitorescas que, mais tarde, seriam a marca registrada do estilo Péricles, em especial nas histórias do Onça. 5 Semelhança física entre Péricles e O Amigo da Onça. Fonte: O Cruzeiro, 20 de janeiro de 1962.
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O Amigo da Onça, com sua cara ovóide, grandes olhos arregalados, fino bigodinho, piteira entre os dedos, terno branco e cabelos penteados com brilhantina, procurava captar e simbolizar o estado de espírito do brasileiro urbano, porém com o humor carioca. A aparência do Amigo da Onça lembrava o chamado “almofadinha” dos anos 1920, o homem urbano com cabelos engomados, terno impecável e semblante da imagem estereotipada do amante latino, viril, mas ao mesmo tempo delicado como um Rodolfo Valentino cinematográfico. Nas mãos de Péricles, O Amigo da Onça transformou-se em contundente crítico da classe média. As histórias, no estilo de comédias de costumes, retratavam a então capital federal Rio de Janeiro como espaço permanente de luta entre opressores e oprimidos, de falso moralismo, de homens e mulheres interesseiros, de gente esnobe, de maridos e mulheres adúlteros, de bêbados; de indivíduos tolos, simplórios e fáceis de serem enganados; de pobres coitados à beira da aniquilação física ou moral. E, para isto, estava ali o Onça, sempre alerta e pronto para dar o empurrãozinho derradeiro em direção ao abismo, como sujeito múltiplo e ator de inúmeros papéis: adulto e criança; médico, dentista, advogado, juiz de direito, barbeiro, enfermeiro, motorista de táxi; funcionário público, empresário, bilheteiro de cinema, toureiro, lixeiro, 6 Cenas Cariocas (fonte: revista A CIGARRA, setembro de 1952) e trecho de uma história de Oliveira, O Trapalhão (fonte: JOTA, 1988, p. 7).
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faquir, maestro, vendedor; funcionário de funerária, farmacêutico, ascensorista, bancário, banqueiro, fotógrafo, jornalista, soldado, marinheiro, aviador, bandido, policial, prisioneiro; trapezista de circo, mágico, bombeiro, coveiro, alfaiate, garçom, comerciante, jurado de programa de auditório; pobre e rico; bêbado e sóbrio. Em áreas rurais e urbanas; no trabalho e lazer; na rua, em casa, na escola, na festa, no bar, na estrada, na lua-de-mel, no manicômio. Na noite, na madrugada e de dia. No presente, no passado e futuro. Ser humano, bicho e extraterreno. Vivo e morto. Um e vários. O grupo de sujeitos risíveis ampliouse em O Amigo da Onça, passando da situação de estar – bêbado, gordo, pobre – para a condição de ser – negro, mulher, portador de necessidades especiais, idoso, nordestino. Ele ridicularizava a todos sem piedade e com igual eficiência.
Ilustração 6 1 1 Fontes dos anúncios da Coca-Cola e Sabão Platino: O Cruzeiro, respectivamente, de 30 de maio de 1953 e de 21 de janeiro de 1950.
Porém, não me parece exato classificar Péricles e O Amigo da Onça como preconceituosos. A noção de politicamente correto, no sentido proposto pelo movimento surgido entre intelectuais americanos em defesa de minorias, com seus eufemismos e expressões asseadas, a caminho de tornar-se um dogma dos tempos atuais, não era visto como valor simbólico na comunicação social. Assim, causava pouca estranheza rir da condição ou da desgraça alheia. Tudo se resumia apenas a ser ou não engraçado. Digamos assim: um ato maldosamente puro. Próprio, por exemplo, da criança pré-escolar que ri sem freio e piedade do amiguinho que levou um tombo ou que fez xixi nas calças. O ser humano inocentemente calhorda. Entretanto, parece-me correto afirmar que O Amigo da Onça foi um produto ideológico do seu tempo, apenas refletindo uma realidade que lhe era exterior, presente
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na forma de pensar e de agir dos leitores de O Cruzeiro, brasileiros urbanos e de classe média em meados do século passado. Aliás, conduta que extrapolava os quadrinhos e estava presente também em anúncios publicitários veiculados na época, como se observa na ilustração 6. Os anúncios acima, ambos publicados em O Cruzeiro, de produtos bastante respeitados no mercado, mostram uma temática comunicacional inaceitável atualmente na mensagem publicitária: o preconceito de gênero, raça e condição social. Mas que não causavam nenhum tipo de estranheza nos anos 50 do século XX, época em que foram veiculados. No primeiro, o homem, levado confortavelmente no cesto da bicicleta por uma mulher, alheio ao esforço feminino, troca um olhar de cumplicidade com leitor; e pela expressão da garota, é provável que ela não compartilhe da opinião da Coca-Cola de que isto faça bem. No segundo, a patroa branca e esbelta utiliza uma britadeira para abrir a “cabeça dura” da empregada negra e gorda para que esta tenha a “sapiência” de usar o sabão Platino. Outra característica marcante das páginas do Onça era a proximidade com a realidade política do país. O Brasil, seus generais, seus políticos e sua violência policial entram nas históricas de Péricles para serem criticados e ridicularizados. Esse estilo, sem freios ideológicos, fará a fama de O Amigo da Onça. Mas, ao mesmo tempo, transformar-se-ia em um grande problema para o artista Péricles.
3 A CRIATURA CONTRA O CRIADOR Nos anos 1950, O Cruzeiro transformou-se no maior veículo de comunicação existente até então na impressa brasileira. A tiragem, que na década de 30 não passava de 10 mil exemplares semanais, saltou, conforme Carvalho (2001, p. 7), para 720 mil exemplares, na edição de cobertura do suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. No entanto, Millôr (apud JOTA, 1988, p. 6) testemunha os problemas que Péricles passa a enfrentar: Péricles começou a lutar contra o mundo (...) A empresa O Cruzeiro, da qual eu já me afastara, tinha se transformado no que equivale à TV Globo de hoje, faturava bilhões (...) e se transformava para Péricles exatamente no cerne desse mundo hostil – nunca teve mesmo para com ele qualquer sentimento de compreensão ou solidariedade. Ao contrário, ajudou a esmagá-lo, até mesmo lhe negando a possibilidade de explorar comercialmente a sua criação.
De fato, as possibilidades de utilização comercial do personagem eram enormes. A imagem de O Amigo da Onça virou mania nacional e figura recorrente em brinquedos, logomarcas, máscara de carnaval, bonecos para geladeira, anúncios de Fiado Só Amanhã, camisetas, chocolate de natal. E sem que o autor responsável primeiro pelo sucesso tivesse qualquer ganho material.
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Ainda de acordo com Millôr (apud JOTA, 1988, p. 6), sentindo-se alienado recolheu-se “a um mundo mais simples, mais popular”, formado de donos de bares, barbeiros e choferes de táxi, no qual, completa Millôr, “se sentia mais compreendido e onde, possivelmente, ainda recebia seus melhores estímulos”. Não se deve, porém, creditar os problemas de natureza pessoal de Péricles aos conflitos profissionais com O Cruzeiro. Excessivamente tímido e solitário, na verdade Péricles era um homem atormentado pela dependência do álcool e pelo complexo de culpa em relação à morte de um irmão, a quem demorou a prestar ajuda financeira para tratamento médico e que acabou morrendo de um tumor no cérebro. O cartunista e escritor Ziraldo declarou (apud CARVALHO, 2001, p. 391.) que Péricles, alcoolizado, “tornava-se depressivo e, às vezes, agressivo e desagradável, completamente diferente de quando estava sóbrio”. Durante três vezes, entre 1950 e 1960, Péricles esteve internado para tentar curar-se do alcoolismo. Mas a dependência sempre o vencia. Em meados dos anos 50, tentou o suicídio cortando os pulsos no banheiro, mas foi levado ao hospital a tempo de salvar-se (CARVALHO, 2001, p. 390). 7 Máscara de carnaval utilizando a imagem de O Amigo da Onça. Personagem sai das páginas de O Cruzeiro e entra no cotidiano dos brasileiros. Fonte: O Cruzeiro, 28 de fevereiro de 1953.
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O temperamento instável de Péricles também afetou sua vida amorosa e o relacionamento com o filho. Em 1949, casou-se com Maria Angélica Braga Guimarães. Em 1955, Maria Angélica, não agüentando o alcoolismo e a vida boêmia do marido, pediu a separação. Da união dos dois nasceu o hoje médico Péricles de Andrade Maranhão Júnior, a quem o cartunista chamava de Pequinho. Após a separação, Péricles via o filho com freqüência e insistia com a ex-mulher para retomar o casamento. “Angélica fechou questão – sem deixar de ajudá-lo nos problemas do cotidiano, como roupas e perda de documentos. Péricles tocou a vida com outras mulheres, em relacionamentos sempre tumultuados” (CARVALHO, 2001, p. 391).
Ilustração 9 8
Sem um estudo apropriado, é difícil determinar o nível de influência dos problemas de natureza pessoal nas histórias criadas por Péricles. Houve influência, é claro. Na minha pesquisa, observei, por exemplo, aumento significativo de histórias sobre alcoolismo e suicídio nas histórias publicadas entre 1946 e 1960.
8 Texto: “– Eu não lhe disse que ele não estava no escritório?”. Fonte: O Cruzeiro, 10 de maio de 1947.
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Essa percepção é corroborada por Almeida (2002): Reza a lenda (ou fofocas, como bem entenderem) que o criador do personagem de cartum mais popular do Brasil, O Amigo da Onça, era na verdade um alterego de seu criador, instável de nascença, boêmio de experiência. Segundo as pessoas que acompanharam sua carreira e sua vida pessoal, Péricles o exemplo do homem correto e paciente quando estava sóbrio. Com o passar dos anos, no entanto, foram ficando raros esses momentos de lucidez e ele começava progressivamente a entrar em um estado de agressividade espontânea. Agressividade essa que, em linhas muito sutis, era notada no perfil de sua criação: preconceito e falta de pudor pontuavam algumas vezes as piadas publicadas pelo O Cruzeiro.
E surgem histórias metalingüísticas, expondo o próprio autor às críticas e observações do personagem.
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Há também em histórias de O Amigo da Onça um dado marcante, que me chamou bastante atenção, ainda não aprofundado em nenhuma bibliografia disponível sobre o assunto: situações produzidas no campo da ficção que reproduzem fatos reais observados no suicídio de Péricles, em 1961.
9 Texto da primeira história: “– A página hoje saiu em preto e branco porque este ‘cara’ fez uma piada tão ruim que não mereceu nem colorir”. Fonte: O Cruzeiro, 27 de agosto de 1955. Segunda história: “– Desculpe”. Fonte: O Cruzeiro, 4 de julho de 1953.
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4 A MORTE DE PÉRICLES Em dezembro de 1961, Péricles ficou sozinho no Rio de Janeiro para as festas de fim de ano. A mãe dele, que morava no Nordeste e estava doente, não pôde visitá-lo, e a ex-esposa levou o menino Pequinho para passar o réveillon em Recife. Sem amigos e longe da família, no dia 31 de dezembro de 1961, Vestiu o melhor terno branco, calçou sapatos de verniz, caprichou no laço da gravata cinza-escuro, vedou com fita durex todas as fendas do apartamento. Estendeu um lençol no chão da cozinha e pôs nele um travesseiro. Abriu o gás do forno, deitou-se e morreu. (CARVALHO, 2001, p. 392).
E deixou duas cartas e um aviso na porta da cozinha. A primeira carta não era endereçada a ninguém em particular: A quem interessar possa: São precisamente 14h30 do dia 31 de dezembro de 1961. Estou completamente sóbrio e não desejo culpar ninguém pelo meu gesto. Apenas estou me sentindo profundamente só. Os amigos, se assim posso chamá-los, estão em suas casas, junto a suas famílias, o que não acontece comigo, pois a única família que possuo - minha querida mãe e irmã - está em Recife. Aqui, no Rio, não possuo um único parente, a não ser meu filho que se encontra com a mãe, pois sou desquitado e a mesma falou-me que iria passar o ano-novo com a família dela, em Recife, pois são também pernambucanos. Conclusão: sou profundamente sentimental e nunca passei essa época sem palavra de carinho. Apenas a solidão me levou a este gesto extremo. Talvez assim as coisas melhorem para todos. [E ASSINAVA] Péricles Maranhão. (apud CARVALHO, 2001, p. 392)
Na carta endereçada à mãe, falava da angústia daqueles dias e de uma decepção amorosa. E, escrito num papel de embrulho, um recado a lápis, cuidadosamente colado do lado de fora da porta da cozinha: “Cuidado. Não risquem fósforo. É gás”. Entre 1956 e 1960, Péricles criou quatro charges que, talvez, possam representar a preparação inconsciente do suicídio.
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Na primeira história, publicada em 1956, um homem está pronto para saltar de um edifício, mas é detido pelo Amigo da Onça. Não que o personagem quisesse evitar a morte, ao contrário, apenas para oferecer outra maneira de se matar: “– Não, Jorginho, não! Vamos lá em casa que eu tenho gás!” Péricles se matou por ingestão de gás de cozinha. 10 Fonte: O Cruzeiro. História 1: 9 de agosto de 1956. História 2: 25 de outubro de 1958. História 3: 7 de maio de 1960. História 4: 17 de dezembro de 1960. COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO | 21
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Na segunda história, de 1958, O Amigo da Onça está diante de um suicida, auscultando o coração e escolhendo o lugar certo para o tiro: “– Aqui!”, diz o personagem. Próximo ao suicida, dois bilhetes: um para a mamãe e outro à polícia. Antes de morrer, Péricles escreveu dois bilhetes: um dirigido à mãe e outro “a quem interessar possa”. Na terceira história, do primeiro semestre de 1960, o personagem está deitado na cama com uma máscara de oxigênio. Ao lado dele, uma mulher, conforme nos mostra o desenho, tonta por causa do gás supostamente esquecido aberto: “– Querido, não esqueceste o gás do banheiro aberto??” Péricles morreria deitado sobre um lençol e com a cabeça sobre um travesseiro. E, ironicamente, por decisão da diretoria de O Cruzeiro, O Amigo da Onça sobreviveria à morte de Péricles. A quarta história é de um ano antes do suicídio, dezembro de 1960. Representa uma reversão na expectativa dos leitores do Amigo da Onça. Em 17 anos, era a primeira vez em que o personagem corria risco de morte. O Onça aparece pulando de cima de um prédio, com um bilhete nas mãos. Ele está gritando para um espectador assustado: “– Escuta, só de brincadeira eu escrevi, neste bilhete, que você foi o único culpado deste meu gesto.” Na carta do suicídio, Péricles repetiria quase as mesmas palavras: “– Não desejo culpar ninguém pelo meu gesto”.
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Na edição de 20 de janeiro de 1962, na seção Conversa Com O Leitor, a direção de O Cruzeiro escreveu: 11 Reportagem sobre a morte de Péricles. Fonte: O Cruzeiro, 20 de janeiro de 1962.
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A família de “O Cruzeiro” está de luto. Péricles morreu (...) A figura do homenzinho das falsetas, símbolo do que temos de mais malicioso e mordaz, de toda a verve brasileira e especialmente carioca, havia-se tornado conhecida em todos os quadrantes do nosso território, nas grandes cidades como nos mais longínquos lugarejos. Havia quem fizesse coleção das suas piadas. Pára-choques de caminhões levavam o seu nome ao longo do pó das estradas. Chaveiros e bibelôs o reproduziam. O seu desenho emoldurava avisos de “fiado só amanhã” e outros que tais. A denominação de “amigo da onça” entrara definitivamente para a língua brasileira, na conversa diária de todas as classes. Há dezoito anos que, semanalmente, Péricles desenhava uma nova “charge”. O seu traço fez escola. E ele se identificara totalmente com o tipo que “O Cruzeiro” lhe incumbira de criar. Artista de talento, boêmio e angustiado, à velha moda, desorganizado e insatisfeito, o rapaz que viera ainda menino do Recife, entretanto, nunca faltara com a entrega pontual do desenho. Aos poucos, foi formando uma equipe de colaboradores, que sugeriam piadas, que lhe seguiam os passos. E isso é o que salvará o “Amigo da Onça” de desaparecer com o seu criador (...) A grande maioria de nossos leitores o conhecia apenas pela assinatura, ou através da criação que o tornou famoso: o “Amigo da Onça”. Poucas vezes foi publicada a sua fotografia e, freqüentemente, quando os nossos repórteres viajavam pelo Brasil, ouviam a pergunta: - Como é esse Péricles? É parecido com o “Amigo da Onça” que desenha?
5 UMA PÁGINA EMBLEMÁTICA
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Quero, para finalizar a fase do período de O Amigo da Onça desenhado por Péricles, mostrar uma página emblemática do estilo e características do personagem. Na história mostrada, a ação acontece dentro de um auditório, possivelmente 12 Fonte: O Cruzeiro, 14 de novembro de 1953.
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numa solenidade envolvendo funcionários e diretores uma mesma empresa. Os trabalhadores e os diretores estão separados. Estes, em cima de um tablado; aqueles, lotando a platéia. Os empregados estão todos uniformizados com macacão azul e camiseta branca. Os dois senhores, elegantes, vestem paletó preto, colete branco e usam gravatas borboleta também da cor preta. Os diretores estão sentados atrás de uma mesa coberta com uma toalha branca, de frente para a platéia. A mesa está devidamente decorada para uma solenidade formal: plantas ornamentais, fita e laço decorativos. O Amigo da Onça está em pé, ao lado dos diretores, apontando para os homens e falando algo sobre eles. Ao lado de O Amigo, um balão com a palavra “censurado”, em letras pesadas, riscada com um “X” em vermelho. A platéia de trabalhadores está em delírio, expressando alegria, vibração e muita satisfação pela fala do Amigo da Onça. Os diretores, ao contrário, estão surpresos, bravos e envergonhados. A forma como Péricles elaborou o desenho, colocando a platéia em primeiríssimo plano, conduz o olhar do leitor diretamente para o Amigo da Onça, dando dinamismo à história. Não há ninguém imóvel na charge. Todos – os trabalhadores, o Onça e os diretores - estão, de alguma forma, com o corpo em movimento, o que estabelece uma qualidade ímpar à história. Além disso, a sobreposição de figuras maiores e menores dá profundidade à cena. Mas afinal o que o Amigo da Onça está dizendo? Ele poderia estar dizendo que todos terão um aumento significativo no final do mês ou que aqueles senhores tiveram uma falha de caráter ou que a esposa de um deles é amante do outro. Situações que estiveram presentes, de forma direta ou indireta, em outras charges de O Amigo da Onça. Porém, em nenhuma das charges houve a necessidade de esconder a fala do personagem atrás da palavra “censurado”. Devemos lembrar que se trata de um desenho veiculado no início dos anos 50. Uma época de consolidação de leis trabalhistas, de rígida educação familiar, de tabus sexuais. Devemos lembrar também que O Cruzeiro era uma revista conservadora e voltada à família de classe média. Diante disso, o que justificaria não explicitar a palavra do Onça? A explicitação da mensagem,a meu ver, está no comportamento da platéia, cujas atitudes refletem e retiram a palavra “CENSURADO” do balão, desvendando a fala do Onça. O único operário que está em pé comporta-se como uma bailarina: braços levantados, dançando na ponta dos pés, com os pulsos dobrados, os olhos COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO | 25
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virados para o céu e com expressão meiga. Agindo dessa maneira e estando onde está, seria lógico que todos estivessem olhando para ele e rindo da sua atitude – o que não acontece. Ou seja, seus gestos não causam estranhamento e apenas reforçam o que foi dito pelo Amigo da Onça. É importante destacar também o comportamento de quatro outras pessoas.
As quatro se abraçam, como se formassem dois casais. Porém em explícito tom de brincadeira e com a atenção voltada ao palco. Dessa maneira, fica claro que há uma óbvia referência à homossexualidade entre os dois senhores. De que lado está o Amigo da Onça? Da platéia ou dos senhores? De quem a Onça está sendo amiga?
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A resposta imediata seria, provavelmente, que ele estaria do lado da platéia. Ele teria, por exemplo, entrado no auditório, subido ao palco e, para alegria dos trabalhadores e desgraça dos senhores, afirmado que os dois têm um caso de amor. Nas entrelinhas há, no entanto, um confronto de classes acirrado pela fala de O Amigo da Onça que leva a leitura para outro viés. Obviamente os dois senhores não eram pessoas benquistas pelos trabalhadores. Se fossem simpáticos à platéia, haveria uma reação contra o Onça. Não rimos de amigos em contexto de humilhação. Além disso, a atitude da platéia, por sua vez, causará uma reação futura. Se aqueles senhores, de alguma forma, detêm o poder (tudo sugere que sim), esta força será usada em toda sua plenitude para punir a reação dos trabalhadores e, de algum modo, compensar a humilhação da elite. Há uma total imparcialidade do Onça. Não está a favor de nenhum dos lados. Seu poder, sua palavra, está a serviço de si mesmo, de sua satisfação e do prazer do leitor em rir da desgraça alheia. Não é por acaso que, na história, todos têm nariz de palhaço. “Sua função é intimidar humilhando” (SILVA, 1989, p. 147).
Em sentido horário, a partir da história no canto superior esquerdo: 13 Fala da história 1: “– Por que você não usa um de pulso?” Fala da história 2: “– Pronto! Tirei a minha máscara. Agora tire a sua...”
13 Fonte: O Cruzeiro (história 1: 14 de outubro de 1950; história 2: 12 de março de 1960; história 3: 8 de fevereiro de 1958; história 4: 10 de abril de 1954)
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História 3: Sem fala. Fala da história 4: “– Queimadinha, heim?!”
Em sentido horário, a partir da história no canto superior esquerdo: 14 Fala da história 5: “– Carlinhos, enquanto tu namoras, posso mandar engraxar tua perninha mecânica?” 14 Fonte: O Cruzeiro (história 5: 2 de abril de 1955; história 6: 18 de novembro de 1961; história 7: 11 de fevereiro de 1961; história 8: 3 de janeiro de 1953)
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Fala da história 6: “– E agora, pra encerrar o programa com chave de ouro, o rei da sanfona tocará a ‘Suíte Quebra-Nozes’, de Tchaikovsky.”
Fala da história 7: “Francamente, Plácido! “Eu achava que um palhaço te caía melhor...” Fala da história 8: “– Enfim... sós!...”
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Em sentido horário, a partir da história no canto superior esquerdo: 15 Fala da história 9: “– Pela gravidade da tua falta, serás deportado para o Brasil”. História 10: sem fala. Fala da história 11: “– Doutor, veja se esta voltagem já está boa pra ele confessar o delito!” 15 Fonte: O Cruzeiro. História 9: 2 de maio de 1959.; história 10: 7 de janeiro de 1961; história 11: 30 de julho de 1960; história 12: 29 de junho de 1947.
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Fala da história 12: “–David Nasser e Jean Manzon querem falar contigo”. Fonte: O Cruzeiro. Em 1947, em reportagem de dez páginas, David Nasser e o fotógrafo Jean Mazon mostraram o deputado constituinte Edmundo Barreto Pinto de cueca samba-canção e fraque, tomando champanhe. A matéria foi um escândalo e motivou a primeira cassação de um deputado na história do País.
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Em sentido horário, a partir da história no canto superior esquerdo: 16 Fala da história 13: “– Desculpe!” História 14: fem fala. Fala da história 15: “Isso vai também?” História 16: fem fala. A última charge feita por Péricles de Andrade Maranhão foi publicada em O Cruzeiro, na página 35 da edição do dia 3 de fevereiro de 1962. O Amigo da Onça e um banhista estão numa ilhota.
Ilustração 14 17 16 Fonte: O Cruzeiro. História 13: 3 de abril de 1948; história 14: 30 de agosto de 1952; história 15: 17 de setembro de 1955; história 16: 3 de julho de 1954. 17 Fonte: O Cruzeiro, 3 de fevereiro de 1962.
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O Onça está com um binóculo, supostamente observando tubarões, e aconselhando o outro homem: “Se quiser atravessar, aproveite agora que eu já o perdi de vista”. O leitor “toma conhecimento da mentira dita e de suas conseqüências para quem acreditou nela, transformando-se em cúmplice da ação que determina a virtual morte de quem dependeu daquele aconselhamento e seguiu alegremente para o banho”.
6 O AMIGO DA ONÇA APÓS A MORTE DE PÉRICLES Uma reportagem de quatro páginas na edição de 20 de janeiro de 1962, de tom sensacionalista, adequada à linha editorial da revista, traz a despedida pública entre o criador e a criatura: “Péricles disse adeus ao ‘Amigo da Onça’: o criador do tipo humorístico mais famoso do Brasil não sabia rir da própria vida”. O texto faz um resumo da biografia de Péricles, enaltece o talento do cartunista e comenta o sucesso e o forte apelo popular do Onça. A separação definitiva acontecerá, no entanto, a partir das edições de abril de 1962. Até 3 de fevereiro de 1962, O Cruzeiro veiculou originais inéditos entregues antecipadamente por Péricles. Nas outras edições de fevereiro e durante o mês de março, foram republicadas histórias criadas por Péricles na década de 1940. A continuação do personagem era idéia consumada entre os diretores da revista. A lógica empresarial dos Diários Associados não abria espaço para o fim prematuro do principal personagem em quadrinhos criado até aquele momento na imprensa brasileira. A questão, apenas, era definir o novo responsável pelas histórias do Onça. E um chargista, ilustrador e cartunista – pelo talento, estilo de desenho e de temática abordada – surgia como sucessor natural de Péricles Maranhão: o também recifense Carlos Estevão. Carlos Estevão de Souza, nascido em Recife, Pernambuco, em 16 de setembro de 1921, estava em O Cruzeiro desde 1947. No mesmo nível dos outros grandes nomes do humor impresso da revista, Péricles, Millôr Fernandes, Alceu Penna, Borjalo e Apple, Estevão já havia criado, antes de assumir o Onça, personagens e séries inesquecíveis: Dr. Macarra, um tipo sempre a contar vantagens; As aparências enganam, nas quais as cenas em silhuetas sugerem situações terríveis que são logo desmentidas no quadro seguinte; Ser Mulher, que apresentava de modo caricatural o papel feminino na relação conjugal. O estilo marcante de Estevão preferia os desenhos de traços firmes, grossos e com muitas sombras. Durante três anos, de 1962 a 1965, Estevão trabalhou principalmente como coordenador da página do Onça, sendo as histórias e os desenhos elaborados por uma equipe de cartunistas de O Cruzeiro. Nessa época, as páginas passaram a ser creditadas da seguinte forma: “O Amigo da Onça, criação imortal de Péricles – original da equipe de O Cruzeiro”. A partir 26 de julho de 1965, Estevão assumiu definitivamente o personagem e passou a desenhá-lo sozinho. Melhor desenhista, Estevão conseguiu dar ao Onça, em minha opinião, COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO | 33
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acabamento gráfico muito superior ao trabalho feito por Péricles. Mas infelizmente sem novidades significativas de conteúdo. O melhor de Estevão continuaria nas outras seções assinadas por ele em O Cruzeiro. Vitimado por ataque cardíaco, Carlos Estevão faleceu em 1972. Nessa época, o império jornalístico criado por Assis Chateaubriand, os Diários Associados, já vivia seu ocaso. A crise, que se instalara mesmo antes da morte de Chateaubriand em 1968, aumentava rápida e drasticamente. Afundada em dívidas com a Previdência Social, pessimamente administrada, com poucas falta verbas publicitárias e muitas ações trabalhistas, só a revista O Cruzeiro acumulava a cada ano um prejuízo perto de um milhão de dólares em moeda atual. Depois de Estevão, o Amigo da Onça continuou uma sobrevida no trabalho do cartunista mineiro Fritz Granado. Mas os traços do personagem, totalmente modificados, não agradaram os fãs e, em 1973, a página deixou de ser publicada. Um pouco antes do fim de O Cruzeiro, em julho de 1975, o Onça voltaria a ser publicado pelos cartunistas Willy e Joarez Odilon, em cópias medíocres dos traços e das histórias de Péricles. O Onça é publicado hoje em tiras de jornais no interior do País e boletins de sindicatos pelo cartunista Jota, que detém o direito de publicação do personagem. Final de amigo da onça para um dos mais importantes personagens do humor brasileiro.
Ilustração 14 18 18 Fala do personagem: “– Nada disso, dona... Essa carona agora é aqui do nosso chapa que está esperando há mais tempo!”. Primeira história assinada por Carlos Estevão.
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Ilustração 15 19
CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo de quase três décadas, o Amigo da Onça refletiu o imaginário popular. Um estilo de humor que ridicularizava, sem piedade, quem cruzasse seu caminho, mas que refletia e dialogava com o cotidiano direta ou metaforicamente. No período em que Péricles Maranhão publicou as páginas do Onça, de 1943 a 1961, a tiragem da revista aumentou quarenta vezes. Creditar tal sucesso apenas ao personagem Amigo da Onça seria obviamente equivocado. Ao lado de Péricles e seu Amigo estavam as reportagens e entrevistas de David Nasser, os ensaios fotográficos de Jean Manzon, as garotas ilustradas de Alceu Penna, a última página de Rachel de Queiroz, o humor corrosivo de Millôr Fernandes e Carlos Estevão, editores que compreendiam o desejo de seus leitores e, principalmente, leitoras. Mas que o Onça teve muitos méritos na popularização de O Cruzeiro, lá isso teve! No plano ficcional, o Onça era mestre em criar um estado de permanente tensão com seus oponentes. E ganhava todas. Eram sempre dele os louros da vitória no desmantelamento psicológico, moral ou físico do opositor. Conforme Silva, “Definir o outro do Amigo da Onça, portanto, passa por uma relação fortemente contida 19 Fala da mulher: “ – É, mas foi pescando esse peixe esquisito que eu te conheci, não foi, meu bem?” . Fonte: O Cruzeiro, junho de 1972.
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em regras, como que num jogo – que também é beco sem saída –, cujo desfecho é previamente estabelecido: o personagem vencerá”. No plano real, Péricles foi quem estabeleceu o confronto entre o que ele era e o que desejava ser. Perderam ambos, o homem e os seus sonhos. Péricles criou um tipo tão engraçado e carismático que acabou sendo engolido pela popularidade do próprio personagem. Ironicamente foi graças a um dos últimos atos em vida que Péricles conseguiu distanciar-se totalmente do Onça diante dos olhos do público (JOTA, 1988). Preocupado com a segurança de quem o encontraria morto, fez questão de deixar o aviso colado na porta: “Cuidado. Não risquem fósforo. É gás”. O Amigo da Onça diria outra coisa. Seria o gran finale se o personagem tivesse acabado naquele momento. Mas a lógica comercial do empresário falou mais alto. E os fãs foram vítimas de um outro tipo de amigo-da-onça, o substantivo masculino do dicionário, “o amigo-urso, o amigo falso, o infiel”. De qualquer maneira, e acima de tudo, ficou a satisfação de visitar um personagem que conheci na infância, tão caro à minha memória afetiva, o Onça feito Carlos Estevão, e de ser apresentado a outro, o Onça de Péricles Maranhão, de quem me tornei fã incondicional. A quem agradeço pelas boas gargalhadas e pelo retorno de ótimas lembranças do tempo em que morava em uma cidade pequena do interior do Paraná. De voltar no tempo, ser criança novamente e ter o prazer de sair de mãos dadas com o pai, à procura de uma banca de revista para ler um personagem muito engraçado. No final das contas, acho que esse cara não é tão amigo-da-onça como dizem ser.
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REFERÊNCIAS CARVALHO, Luiz Maklouf Carvalho. Cobras Criadas: David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo: Editora SENAC, 2001. JOTA. O Amigo da Onça: a obra imortal de Péricles. 3 ed. São Paulo: Editora Busca Vida, 1988. MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. NETTO, Accioly. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulinas, 1998. RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Dois, 1985 SILVA, Marcos Antonio da. Prazer e poder do Amigo da Onça. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
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