"O Brasil não é alegre. É triste", diz escritora portuguesa

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Cultura Literatura "O Brasil não é alegre. É triste", diz escritora portuguesa "O samba não é a alegria de quem não sabe o que é a tristeza, é a de quem sabe bem o que é", diz Alexandra Lucas Coelho, autora de "Vai Brasil” por Ricardo Viel — publicado 04/04/2014 05:42, última modificação 04/04/2014 16:32

Vai, Brasil, lançado em Portugal no final do ano passado e ainda sem previsão de cruzar o Atlântico, é uma declaração de amor ao país, mas não só. Alexandra conhece bem, na teoria (por leituras e conversas) e na prática, o território que pisa e sobre o qual fala. “A ideia sobre o Brasil vai mudando constantemente, vai sendo atravessada por mil outra ideias, é feita de fragmentos.” De volta a Portugal, ela agora apronta as malas para ir ao Alentejo, no Sul, em busca de sossego para terminar seu segundo romance (o primeiro, E a Noite Roda, recebeu no ano passado um dos principais prêmios literários do país; está publicado no Brasil, assim como outros três livros de crônicas de viagem). O que tem em mente é uma história que se passa no Rio e que envolve personagens portugueses e brasileiros, alegria, favela, questões sociais e outros assuntos que viu e viveu nos últimos anos. “É uma tentativa de captar o real, tocar o real, de captar o momento atual do Rio e do Brasil.”


Carta Capital: Você ficou três anos e meio no Brasil. Arrisca dizer que agora entende o que é o país? Alexandra Lucas Coelho: No livro, digo que em algum momento nós podemos ter a ilusão de que uma ideia nossa vai caber no Brasil, mas o Brasil nunca vai caber nela. Não dá para ninguém ter a presunção de entender o Brasil, muito menos eu que não sou brasileira e morei só lá três anos e meio. A ideia sobre o Brasil vai mudando constantemente, vai sendo atravessada por mil outra ideias, é feita de fragmentos. Vai ao Rio Grande do Sul, muda a percepção. Vai a Amazônia, muda. Vai a Minas, muda. O Rio de Janeiro tem isso também, é uma cidade abrupta. Essa experiência de passar da floresta para o mar, para aquele barroco caótico do centro, é um pouco como a experiência de viver no Brasil. Você tem dez mil ideias do que é o Brasil ao mesmo tempo. Essa energia faz parte do encanto, desse feitiço, da coisa magnética que aquele território tem. Você nunca consegue fixar-se numa perspectiva porque ela está sempre a mudar. CC: Embora haja no seu livro um claro fascínio pelo Brasil, você também é muito crítica. Diz coisas como: “o Brasil está cheio de grades porque está cheio de medos”. A.L.C: Não há como respeitar totalmente o lugar onde você está e o objeto da sua escrita se você esconde uma parte. Não tem como não ser complexo. O Brasil está cheio de medo, os ricos estão cheios de medo, a nova classe média está cheia de medo. Por isso os edifícios estão cheios de grades. Claro que é um país cheio de medo, claro que é um país completamente capitalista. É o sistema capitalista agora, ao fim de doze anos da esquerda no poder. É um país altamente consumista, sem dúvida. Mas a magia está lá, o Brasil é tudo isso. CC: Como fez para fugir dos estereótipos? A.L.C: Chego ao Brasil depois dos quarenta, depois de ter morado em outros lugares, coberto conflitos, depois de uma experiência do mundo. Isso foi muito bom. Como portuguesa, isso me libertou de ficar refém de uma espécie de maniqueísmo que existe em nossa relação e que é: ou sou o português arrogante, ou sou o português a pedir desculpas todo o tempo. Ou eu me ajoelho ou estou de nariz ao ar. Nossa relação é feita assim, como se eu tivesse que dizer: eu descobri vocês, ou pedir desculpas pelo mal que fiz. Nós fizemos esse mal todo, e é bom saber. Chegar ao Brasil com o mundo pelo meio me ajuda a estar liberta desse maniqueísmo. Posso me encantar, quando devo me encantar, e ser crítica quando é para ser. Isso liberta o olhar. Ajuda-me a poder olhar para o Brasil como se fosse outro lugar, sem o peso da culpa ou da arrogância. A.L.C: Chego ao Brasil depois dos quarenta, depois de ter morado em outros lugares, coberto conflitos, depois de uma experiência do mundo. Isso foi muito bom. Como portuguesa, isso me libertou de ficar refém de uma espécie de maniqueísmo que existe em nossa relação e que é: ou sou o português arrogante, ou sou o português a pedir desculpas todo o tempo. Ou eu me ajoelho ou estou de nariz ao ar. Nossa relação é feita assim, como se eu tivesse que dizer: eu descobri vocês, ou pedir desculpas pelo mal que fiz. Nós fizemos esse mal todo, e é bom saber. Chegar ao Brasil com o mundo pelo meio me ajuda a estar liberta desse maniqueísmo. Posso me encantar, quando devo me encantar, e ser crítica quando é para ser. Isso liberta o olhar. Ajuda-me a poder olhar para o Brasil como se fosse outro lugar, sem o peso da culpa ou da arrogância. CC: Há uma dificuldade enorme de comunicação entre Brasil e Portugal, não há? A.L.C: É muito difícil a relação, é particularmente difícil porque nós estamos, o tempo todo, muito reféns dos lugares-comuns, inclusive os políticos. Ah, porque nós somos países irmãos, falamos a mesma língua. Nada disso, e tudo isso ao mesmo tempo. Chego na Amazônia e me perguntam se eu falo “americano”. Vou a uma favela do Rio e me perguntam se sou argentina. Minha experiência de três anos e meio é de que a cada frase minha as pessoas dizem: oi? Não entenderam o que eu disse. Sim, é um milagre extraordinário eu sair de um país de dez milhões de habitantes, chegar num território de 200 milhões e todo mundo poder me entender, isso não quer dizer que me entendam. Eu tive uma epifania ao chegar ao Vale do Anhangabaú e pensar: caramba, talvez Portugal só exista para isso, para estar aqui e ter a possibilidade de me entender numa das maiores cidades do mundo. Isso é milagroso, mas isso não quer dizer que todo mundo me entenda, que seja fácil, que as duas partes não tenham que fazer um trabalho e que não haja uma zona de não entendimento. É uma relação com solavancos, com zonas escuras, há desconfiança e menosprezo de parte a parte, e se não transportarmos tudo isso à relação ela nunca será verdadeira, não sai dos lugares-comuns. É uma relação feita de milagre, de desentendimento e de dificuldade. É verdade. E é verdade também que o Brasil não precisa de Portugal para nada, mas que ao mesmo tempo Portugal continua a ser o espelho do que é a história do Brasil. E isso atravessa o cotidiano do país. A herança está lá, está nos mecanismos feudais, na burocracia, no racismo, em tudo o que é a sociedade brasileira. CC: Você escreve no livro que o Rio é uma cidade que contraria a sua natureza. Como é isso? A.L.C: Em vários. Primeiro, o Rio contraria a natureza de qualquer humano, no sentido em que a natureza está sempre triunfando sobre você. Está sempre sugando o seu olhar. Os morros puxam o seu olhar, aquela natureza luxuriante, os animais, a natureza está constantemente roubando o construído. É um prodígio natural. E contraria nossa natureza também no sentido em que ela está a nos dizer, todo o tempo, que é mais forte do que nós. E quando há uma chuva, isso é mais evidente. A chuva faz o que quer. Ela expõe a incúria, o descaso. A natureza dá um espirro e coitados de nós. E num segundo sentido, eu, como portuguesa, que tenho a culpa, a melancolia, tudo isso... O carioca está o tempo todo me dizendo: culpa? Que culpa? Por que culpa? Não respondi teu e-mail? Cheguei duas horas atrasado? Me desculpa, imagina! Morar no Rio é ser confrontado o tempo todo com gente que não tem culpa. O que exaspera. É todo um processo de você perceber a lógica, como aquilo é parte da lógica boa e da lógica ruim daquela cidade. Então, você faz um trabalho que é o de descontrair para não morrer do coração. Você pode ficar no Rio pensando o tempo todo que é um deprimido, e que somos seres para a morte, que a vida não tem sentido. Mas se você ficar nessa, ninguém vai estar nem aí para você. Tem tanta coisa para fazer. Vai na praia, cara! Vai tomar um chope. Vai andar na Lagoa. Você pega o túnel Rebouças, cai na Lagoa e pensa: como que eu tive a sorte de ser vivo e estar aqui e ver essa paisagem. Mas isso pode ser uma coisa totalitária também, porque você não pode estar deprimido. É um combate o tempo todo. E a energia boa vem disso, mesmo quando você se revolta com o oba oba, porque está sempre te tirando do teu lugar. CC: Você acompanhou de perto as manifestações do ano passado. Li um artigo naquela época, publicado na Espanha, em que o analista dizia que quem estava na rua eram os filhos do Lula, que agora queriam mais. Também viu isso assim?


A.L.C: Também são, mas não acho que sejam só os filhos do Lula, nem maioritariamente. Geracionalmente sim, são os filhos do Lula, os filhos da democracia brasileira. São sobretudo jovens, jovens que não tinham experiências anteriores de ir à rua. Agora, essas manifestações tem um tom crítico, quando não hostil ao PT. E tem uma esquerda curiosa furiosamente crítica ao PT, à Dilma e ao Lula. Como tem, dentro dessas manifestações, zonas que não são politicamente fáceis de serem situadas, algumas talvez estejam mais próxima à direita, outras estão distante dos partidos, próximas aos movimentos sociais, tem a ver com pautas específicas: gays, direitos das mulheres etc. E tem tradicionalmente os anarquistas que juntam nesse bolo. São filhos do Lula geracionalmente, mas muitos deles são filhos rebeldes. CC: Mas havia grupos reclamando de coisas muito distintas, até muitas vezes incompatíveis, não? A.L.C: Sim, há um descontentamento que tem vários rostos, muitos deles contraditórios, e eventualmente rivais, e que se encontram no terreiro do protesto. Mas isso dá força depois a pautas mais específicas, como aconteceu com os garis agora, que foi muito interessante. Temos aqui uma classe profissional que se rebela numa greve, mais “clássica”, num momento de grande visibilidade, o Carnaval, e eles ganham. E provavelmente a força com que eles bateram o pé para estar em greve, sabendo que podiam ser muito afrontados pela população, vem daí. E depois foram aplaudidos. Provavelmente esses garis sentiram-se fortalecidos pelo fato de a rua estar com gente. CC: Há quem defenda que, apesar da confusão e da falta de uma pauta clara, houve ao menos uma certa politização do brasileiro. A.L.C: Eu tenho vários amigos na casa dos 20 anos, que moram em periferias e favelas, e tenho muito a sensação de que a geração de vinte e poucos, a que agora vem vindo, está especialmente politizada. Noto uma diferença desde que eu cheguei ao Brasil. Há uma politização dos discursos e das conversas, das conversas de boteco mesmo. Notei essa politização crescente. Há, claramente, esse reforço. Essa geração que está nas redes sociais é claramente mais política que a anterior. CC: Então você é otimista então em relação ao futuro do Brasil!? A.L.C: Eu não diria isso, não nessas palavras, não depois de eu ter viajado pela Amazônia, de ter visto aquelas monoculturas de soja, do gado, depois de ter visto o que é aquilo, aqueles comboios de minério de ferro, depois de ter visto o Sudeste do Pará, que é um faroeste - em tudo o que pode ser violento; depois de ter visto aquelas crateras de onde é extraído o solo brasileiro para ser levado aos portos e ser exportado para o Japão e a China. Aqueles barcos que vi serem carregados em Santarém e São Luís do Maranhão... Não tem como não olhar para o Brasil de outra forma depois de ver isso. Porque é uma grande interrogação essas escolha, esse caminho que o Brasil está fazendo, de extrair do seu solo tudo isso, de exportar esse modelo das monoculturas para a Amazônia. Eu não sou analista, não sou economista, não quero fazer prognósticos, nem é meu trabalho, mas o que estou dizendo é que isso mudou a minha percepção do Brasil. O custo do desenvolvimentismo, essa escolha, isso tem muitos custos, ambientais e sociais. E se nós temos um território gigante como o Brasil, que poderia oferecer uma terceira via ao mundo, eventualmente, será que é essa a terceira via? Com esse custo? CC: Está muito longe daquele Brasil com que o Darcy Ribeiro sonhava, não? A.L.C: Não é o Brasil que está acontecendo agora. Sim, você tem 40 milhões de pessoas que saíram da miséria. Ninguém vai questionar isso. O Brasil vive muito melhor hoje no que diz respeito a ter pão para comer, ter um teto. Há milhões de pessoas que vivem melhor, ninguém vai questionar isso. Agora, de que forma foi feito isso? Qual o custo? E que custo vai ter no futuro? E em que modelo o Brasil acredita? Que Brasil é aquele que a presidenta tem na cabeça? É um país tão pujante, é uma natureza tão prodigiosa, uma cultura tão pujante, são tantas possibilidades contraditórias se bifurcando, que só posso dizer que é um laboratório muito interessante para conseguir olhar para frente. Você pode ter várias visões do futuro no Brasil, mas algumas visões do futuro são negras no sentido de que elas apontam para um caminho de não-futuro. De um futuro à custa da morte de muitos, da repressão de muitos, de um esquecimento de muitos, de deixar muitos à margem. E nem estamos falando do Rio, onde esses grandes eventos, a Copa e as Olimpíadas, provocam uma espécie de limpeza social, racial, política etc. E o Rio hoje é uma cidade para quem tem dinheiro, e quem não tem dinheiro está a ser empurrado para as franjas. E no Rio há toda uma experiência de vida que poderia contrariar essa cultura de ostentação, essa cultura de elite, o Rio tem muitos exemplos de rebeldia vinda dos fundos, dos mais pobres, dos excluídos. CC: Depois dessa temporada no Brasil, quais estereótipos se confirmam e quais caem? Por exemplo: a felicidade, somos um povo alegre por natureza? A.L.C: Alegre, não. Triste. Tem muita canção que diz isso, muito samba dizendo isso. É uma alegria que se faz em cima da tristeza, arrancada da tristeza. É diferente da outra alegria. Por um lado, é muito mais extraordinária. Talvez seja a única alegria, é uma alegria que triunfa. A alegria do carnaval genuíno é essa, que triunfa sobre a morte, sobre a miséria, sobre o descaso. Mas samba é isso, o cara tá morrendo, com uma dor terrível, e está sambando e dizendo: ela me deixou, mas eu vou sobreviver. Não é aquela alegria de quem não sabe o que é a tristeza, é a de quem sabe muito bem o que é a tristeza. CC: E em termos pessoais, valeu a pena? A.L.C: Acho que o Brasil me tornou uma pessoa melhor. Sem qualquer arrogância nisso. Ou melhor, acho que o Brasil nos ajuda, diariamente, a poder ser melhor. Acho que, até quando queremos brigar com o Brasil, a energia que se produz desse combate é boa. O Brasil tem um bom efeito. CC: Já está com saudade? A.L.C: Sim. Cheguei há duas semanas e já estou com saudade. Mas eu não vejo como se eu tivesse morado lá e voltei. Acho que o Rio passou a ser minha casa. Isso passou a fazer parte da minha identidade. A minha vida é o Brasil também, ainda que eu estou uma temporada aqui. Até porque estou escrevendo um romance que acontece no Rio e não tem como minha cabeça não estar ocupada com tentar entender o que é essa cidade, o que ela significa em relação a esse país. Neste momento, é o centro da minha vida.


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