E o que fazemos com esses cravos?

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“E O QUE FAZEMOS COM ESSES CRAVOS?” De como um anti-herói e uma senhora com flores forjaram uma revolução RICARDO VIEL

1. “Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio. E livres habitamos a substância do tempo”, escreveu a poeta Sophia de Mello Breyner sobre o dia em que pouco mais de uma centena de militares derrubou uma ditadura de meio século - caduca, mas que parecia inquebrável - e devolveu aos portugueses a liberdade. “As pessoas falavam e falavam, era como se estivessem descobrindo outra vez a sua voz”, contou Zuenir Ventura, o primeiro jornalista brasileiro a


desembarcar naquela Lisboa em festa pós-Revolução dos Cravos. Portugal, um país periférico e diminuto, enviava ao mundo sinais de esperança, de que era possível fazer uma revolução sem derramar sangue, não balas, de que era permitido sonhar. Foi um golpe praticamente sem tiros, com “apenas” quatro mortos, e com uma carga simbólica fortíssima. Um país tomado por cravos, que derrotou o breu, que deixou para trás o atraso. Uma revolução invejada e celebrada em todo o mundo. “Salgueiro Maia exigiu ser sepultado em campa rasa e sem honras de Estado. Maia comandou a coluna de tanques que saiu de Santarém e que teve a delicadeza, o civismo, o sonho de parar num semáforo antes de derrubar a mais longa ditadura da Europa. Primeira imagem do 25 de Abril: a cara de menino de Salgueiro Maia. Primeiro gesto da dimensão do irreal: respeitar o vermelho, olhos postos no verde, numa noite ainda escura”, escreveu Anabela Mota Ribeiro no artigo principal do jornal Público do dia 25 de Abril de A bravura e a grandeza de Salgueiro Maia, o principal nome do levantamento, como símbolo daquela revolução. O homem que naquela manhã do dia 25 caminhou desarmado em direção aos tanques das tropas tos depois regressou, vitorioso, a juntar-se novamente a sua guarnição. Mordia os lábios para não chorar, ciente de que o sonho tornara-se realidade, instante imortalizado graças a intuição do fotógrafo Eduardo Gagueiro. A cara de menino de Salgueiro Maia segurando o choro - segundo gesto da dimensão do irreal. lhecer, de ganhar barriga, de demonstrar debilidades, de falhar. O herói perfeito, porque morto não pode


decepcionar a ninguém, e porque morto continuará dia “inicial inteiro e limpo”, devolveu aos portugueses a voz. Maia, menino e impávido, olhar de candura congelado para sempre na dimensão do irreal. Lição de como se cria um herói e se constrói a narrativa de um triunfo. Mas uma revolução também se faz com gente de carne e osso, gente que tem medo, que vacila e que age não por um ideais, mas por instinto. Gente sem tanta grandeza, incapaz de antever a proporção de um gesto. Os que não estão nos livros de história. 2. provoca uma enxurrada de imagens, textos, canções, encenações. E quando parece que já foi tudo dito sobre aquela revolução feita pelos capitães – os Capitães de Abril, patente intermediária - que se levantaram contra o regime porque já não suportavam mais fazer guerras no ultramar, não suportavam matar e morrer, e não suportavam a falta de liberdade; dizia que quando parecia que já se sabia muito quem eram os mocinhos e os bandidos da história (de um lado Salazar, Marcello Caetano e a PIDE, a polícia repressiva; de outro os capitães, que assumiram-se representantes do povo oprimido) eis que surge uma criação coletiva, que durante décadas fora mencionado como lenda: um cabo que com um não ato teria decidido o futuro do país. veram frente a frente no Terreiro do Paço”, dizia o anúncio acompanhado de um mosaico de fotos onde miniatura que compunham o quadro. O Terreiro do Paço é a principal praça de Lisboa, à beira do Rio


Tejo, e foi ali, em duas ruas, num espaço de menos de um quilómetro, que se jogou a principal partida da história recente de Portugal. Uns dias depois, a editora voltou a divulgar a publicidade, mas dessa vez esclarecia que se tratava da promoção de um novo liAbril. Estava também o mosaico, mas agora era possícabo atirador? Tive ainda que esperar uma semana para sanar miPúblico do dia seguinte. A foto de um homem seco, cabelos grisalhos, e um olhar meio enigmático preenchia quase toda a página. Ele apontava com o dedo a uma foto de um tanque. A manchete dizia: “Livro revela identidade de cabo apontador que recusou disparar contra Salgueiro Maia.” Haviam encontrado o homem que eu um dia sonhei com achar. Para mim, essa história começa um ano antes, quando visito pela primeira vez a Associação 25 de Abril e me contam a história de um militar que teria descumprido uma ordem superior para abrir fogo condaquela revolta como o momento em que o antigo regime caiu. Segundo os Capitães de Abril com quem conversei, não se sabia quem era aquele homem. Havia sido procurado, tentaram encontra-lo porque o queriam em atos, celebrações e reencontros, mas ninguém nunca conseguira descobrir sua identidade. Um la revolução que encantou o mundo não tinha nome, nem rosto. Se era mesmo verdade aquela história, tratava-se a grande caça. Era, como dizia um professor meu de jornalismo, aquela história que todo jornalista procura durante a vida – e que poucos encontram. Para


dar com ela, a grande caça, é preciso destreza e faro, mas também sorte, ensinava meu professor. Esse homem deve ter morrido ou imigrado, pensei. E pensei também que se eu tivesse tempo, e dinheiro, e contatos em Portugal, eu apostaria em tentar encontrar esse homem. Eu havia chegado fazia poucos tempo e me restavam só uns meses em terras portuguesas – o que não se concretizou. Portanto, eu não era, por vários motivos, a pessoa indicada para perseguir essa história, mas esperava que alguém o De maneira que quando abro o Público do dia 25 e leio a reportagem sobre o livro que seria apresentado no mesmo dia sou tomado por uma série de sentimentos. Alegria por terem encontrado o herói. Uma pintada de inveja, por não ter sido eu. E curiosidade. Muita. Tanta que fui ao lançamento de Os Rapazes dos tanques, o tal livro, porque sabia que lá estaria o homem procurado durante quatro décadas. 3. Ali estavam os “rapazes dos tanques” vestidos com suas melhores roupas folheando o livro com as fotos de Alfredo Cunha feitas naquele distante, mas presente, 25 de abril. Deixaram, há décadas, de ser rapazes, e por isso o título do livro é poético e melancólico ao mesmo tempo. Reconhecem-se nas imagens. Quarenta anos antes estiveram naquela mesma praça, quilos a menos, sem barriga, sem um cabevezes na vida voltariam a estar. Estiveram a ponto de enfrentar-se no dia em que Portugal recuperou dispostos a derrubar a ditadura. Do outro lado, tropara frear a revolta, sem saber exatamente quem a


fazia e com que propósito. E então algumas dezenas de militares, a grande maioria com idade inferior a 25 anos, encontram-se frente a frente no Terreiro do Paço. Como revela o livro, a diferença dos aliados de Maia, os que estiveram na praça para defender o retumam reunir-se. Muitos não se haviam visto desde não haviam criado um relato coletivo, as lembranças eram muito menos nítidas do que a dos Capitães de Abril. Em resumo, não haviam repetido aquela história diversas vezes, nem haviam se colocado de acordo entre si para forjar uma narrativa coerente do que aconteceu na manhã do dia 25 de Abril do lado dos em Lisboa, a história do país esteve literalmente nos gatilhos de uma centenas de homens (jovens adultos, na sua quase totalidade). O espaço é exíguo (...), o tempo será breve (...) e no entanto são quase tantas as versões quanto os protagonistas”, explica Adelino res e derrotados, porque muitos dos militares que se (quase) se enfrentaram no Terreiro do Paço estavam de acordo que o regime tinha que acabar, estavam fartos de ir fazer a guerra nas colônias, de voltar de lá mutilados ou ruins da cabeça. Quando preciso de resguardo, o regime viu-se abandonado. 4. Dentre os militares que deixaram os quartéis para impedir a revolta e negaram-se a faze-lo estava José Alves Costa, o cabo que disse não. Segundo relatos, fora ele o primeiro a recusar-se a abrir fogo contra as tropas de Salgueiro Maia, gesto que desencadeou outras insubordinações e demonstrou aos superioJosé Alves Costa, tantos anos procurado. O homem


que virou mito, que foi alçado à categoria de herói que não via em seu gesto qualquer heroísmo. Um militar que não sabia quem era (era um brigadeiro, mas para ele era um detalhe) dera a ordem de disparar contra outros militares. O superior tinha em mãos uma pistola e dizia que se não abrisse fogo, morreria. “Recebi ordens do meus alfares (posto militar já extinto, inferior ao de brigadeiro), que era quem vinha connosco, que trabalhava comigo e quem eu conhecia perfeitamente, de ninguém dar fogo sem ordem dele. E foi essa a ordem que acatei”, relatava aos jornalistas. Meteu-se dentro do tanque, fechou a porta pera de que as coisas se acalmassem. Ali estava seguro, era impossível entrar no veículo. Quando saiu do refúgio Salgueiro Maia já começara a virar mito, e a ditadura recebia a extrema-unção. Depois daquela estranha manhã, Costa não voltou a Lisboa até o dia do lançamento do livro - meses depois de ter sido Parecia envergonhado e desconfortável, talvez sentia-se uma espécie de farsante de si mesmo; porque ainda que não mentia, não podia deixar de pensar que estava no papel de outro - do outro que queriam que ele fosse. Um herói que tivesse dito não, que se colocava contrário às guerras e à opressão, e que por isso levantou-se contra uma ditadura, e passou ao lado dos revolucionários. Mas esse não era ele, se não abriu fogo foi por causas menos nobres. A repórter o chama, e faz a mesmas pergunta já feita tantas vezes naquele dia: Por que não disparou? E ele, mecanicamente, responde o que já tinha respondido. O microfone não capta, e há uma breve discussão entre câmara e repórter. “Temos que fazer de novo”, diz ela. E ele, olhar triste, concorda.


E vem a segunda, e a terceira pergunta. E quando penso que já não vale a pena estar por perto, que não tive medo de morrer porque eu estava do lado mais forte”, diz - e com razão, em tese as tropas leias ao governo eram muito superiores às insurgentes. “Mas não teve medo de morrer?”, insiste a repórter. “De morrer não”, rebate, e completa: “Tive medo de matar alguém”. A repórter termina a entrevista e o homem seco vai sentar na cadeira para ele reservainteressante que aquele (ante)herói podia dar: tive medo de matar alguém. Mas no telejornal da noite suprimida. Talvez o herói que procuravam não poderia dizer coisas assim. Porque é possível que seu gesto se assemelhe mais a uma covardia, do que a uma valentia. E que seu protagonismo seja acidental. Da mesma maneira que pode se que a senhora Celeste Caeiro, que deu nome à Revolução, tenha distribuído os cravos porque não tinha mesmo nada mais valioso ou útil em mãos, e quando o fez não tinha ideia da dimensão do gesto. É o que tem contado a cada vez que lhe perguntam. Vinha do restaurante onde trabalhava, que naquela manhã não abrira por causa do clima na cidade. E vinha com dezenas de cravos à mão, porque naquele dia o local completava um ano aberto e a ideia inicial do dono era dar um cravo a cada cliente. “E o que fazemos com os cravos?”, perguntou Celeste. “Leve-os para casa”, disse o patrão. feito por militares. Foi informada por um jovem fardado do que estava acontecendo. “Estou de pé aqui há muito tempo. A senhora por acaso não tem um mava. Se houvesse uma venda aberta, teria comprado cigarros ao menino, mas ainda era muito cedo,


ainda estava tudo fechado. E então apanha um cravo dos que carregava e oferece ao soldado. “Tome lá, tome este cravinho, também se dá a um cavalheiro”, conta ela. “Ele aceitou, e colocou no cano da espingarda, e foi bonito. E depois dei a outro, e a outro, e a outro...”. E de repente todas as vendedoras de cravos, e de cravos na mão as pessoas escutaram dizer - e espalharam a história - que houve um cabo apontador que, ao insurgiu-se contra ordem de um brigadeiro, salvou a vida de um capitão com cara de menino que respeitou um sinal vermelho antes de dar início à derrubada de uma ditadura que durante meio século silenciou as pessoas.



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