Palavras de falar, palavras de escrever

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galeano - evangelista

30.07.04

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palavras de falar, A OPORTUNIDADE DE ENTREVISTAR EDUARDO GALEANO SURGIU COM O LANÇAMENTO NO BRASIL DE UM NOVO LIVRO DELE. MAS, PARA OUVIR TAMANHO CONTADOR DE HISTÓRIAS, O PRETEXTO É O QUE MENOS IMPORTA

palavras de escrever

Ele diz que escreve à mão. Mas não é verdade. As palavras de Eduardo Galeano, palavras lutadoras e apaixonadas, palavras “sentipensantes”, são escritas com o corpo todo: as veias, as tripas, o coração. São cinqüenta anos dedicados ao ofício de denunciar o que incomoda e anunciar o que pode ser. O autor de As Veias Abertas da América Latina, da trilogia Memória do Fogo, entre outras obras extraordinárias, lança este mês no Brasil um novo livro: Bocas do Tempo. Nosso encontro com esse malabarista das palavras, contador e escutador de histórias, aconteceu no café El Brasilero, o mais antigo de Montevidéu. O uruguaio Alberto Lechili, motorista de táxi que conhecemos logo depois da entrevista, diz: “Galeano é um homem que vê o mundo como poucos”. Enquanto seu velho carro cruza as frias avenidas da capital, acrescenta: “É um ser humano como poucos”. Alberto tem razão. Fernando Evangelista - Sempre começamos perguntando sobre a infância do entrevistado. Qual é a imagem mais nítida que você guarda dessa época?

O que sei é que nasci em 1940 e o mundo não esperava nada de bom, aí eu nasci. Minha infância foi um tempo de muita liberdade. Quando comparo – involuntariamente, não é uma coisa deliberada – o que foi a minha infância com o que é a infância dos meninos de hoje, é patético. É muito triste ver esses meninos andando de triciclo nas varandas dos prédios, prisioneiros do medo, da insegurança. Isso numa cidade como Montevidéu, que não é grande e ainda contém espaços de liberdade. Para não falar da situação dos extremos sociais, dos pobres pobríssimos prisioneiros da pobreza, dos ricos riquíssimos prisioneiros do dinheiro, tratados como se fossem dinheiro. Então, a minha infância foi de muita liberdade, de classe média, numa época em que a classe média não estava tão prisioneira como hoje. Estava prisioneira porque sempre está prisioneira dos medos que inventa. Mas naquele tempo não eram tão evidentes, como hoje, os níveis de alienação desses setores sociais nos quais nasci e vivi. Morei num bairro que agora está cheio de imensos edifícios, mas que naquele tempo era puro verde. Tive uma infância de muita intempérie, bem guerreira, de bandos inimigos, de muito futebol na praia. Minha mãe nos trancava no quarto, meu irmão e eu, para dormirmos a sesta, que era obrigatória, e aí fugíamos pela janela. Nunca dormi a sesta durante a infância. Foi depois que aprendi a enorme importância dessa invenção maravilhosa que faz com que cada dia tenha duas manhãs. Valorizei isso só depois. Agora não posso viver sem a sesta, mas naquela época, quando era criança, a sesta era um tempo roubado do jogo, da brincadeira, das aventuras.

FOTOS: RICARDO VIEL

Entrevistadores: Fernando Evangelista, Elis Motta, Ricardo Viel e Franco Squicciarini

É uma família de uruguaios de várias gerações. Remotamente, tenho uma mistura disso que chamam de sangue – em que não acredito muito – de britânicos de Gales, italianos de Gênova, espanhóis de Castilha e alemães que não se sabe muito bem se eram alemães ou holandeses. Uma mistura nada recomendável. Quando se vê o resultado, você diz: vamos tentar outros experimentos. Darcy Ribeiro dizia que eu era um mulato ideológico. Quando ele me escrevia cartas – algumas guardei, outras o vento levou –, começava sempre assim: “Meu mulato ideológico”.

beber vinho, acompanhando o vinho de algumas coisas, sobretudo de canções e histórias. Isso se perdeu, já não existe mais. Para mim foi muito importante esse período de formação, foi ali que se deu a revelação do magnetismo do poder da palavra. Eu não tinha muita idéia disso. Em parte, porque achava o pouco que eu tinha estudado de história, literatura uma chatice e depois porque estava muito mais inclinado para a coisa plástica. Como projeto de vida, me sentia muito mais pintor do que escritor. Adorava desenhar, pintar, passava as horas desenhando. Nos cafés, eu desenhava todo mundo, fazia caricaturas.

Franco Squicciarini - A casa em que você morava era uma casa com biblioteca, com muitos livros?

Elis Motta - Foi fazendo caricaturas que você começou no jornalismo, não?

Não, não era. A casa da minha avó materna, sim. Ela lia muito. Foi daí que recebi essa influência de amor aos livros. Mas eu também não era muito leitor.

É, comecei no jornalismo como caricaturista, num semanário socialista. Eu tinha 14 anos quando publiquei as primeiras charges, que eram caricaturas. Depois comecei a reconhecer nas palavras um poder de comunicação que eu não sabia que elas tinham. E então começo a escrever. Mas isso não foi revelado pelos livros, foi revelado pelas pessoas. Foi revelado por caras que não existem mais, que já morreram, que eram velhos. Os melhores narradores são os velhos. Eram, porque agora já não existem mais. Nem velhos, nem jovens, nem nada. Mas naquele tempo existiam muitos narradores velhos. Daqueles maravilhosos que contavam como deuses.

Fernando Evangelista - Sua família é de onde?

Fernando Evangelista - E quando começa essa paixão?

Eu não acreditava na sesta, não era muito leitor. Gostava de ler Salgari, Sandokan, Corsário Negro, essas coisas. Já Júlio Verne, eu achava chatíssimo, esse negócio da ciência. Era mais de brincar a vida do que de lê-la. Na verdade, só fiz a escola primária e um ano da secundária. Naquele tempo eram seis anos de escola primária e um ano, um ano e meio, mais ou menos, de secundária. Isso foi tudo que estudei na vida. Ingressei muito cedo na vida das vinerías, dos cafés daqui de Montevidéu, que foram a minha universidade. Foi nos cafés que aprendi a maioria das coisas que sei. Através dos livros também, claro. Mas, para mim, a experiência mais importante foi o contato direto com grandes narradores orais que descobri nos cafés de Montevidéu. Agora já não existe mais isso. Nesse tempo, que não era a pré-história da humanidade, Montevidéu tinha muitas vinerías, ou seja, cantinas, lugares onde as pessoas se encontravam para

Ricardo Viel - E por que não existem mais esses narradores?

Não sei. Acho que os tempos mudaram. Existem ainda, estou exagerando. Mas não é tão freqüente como era encontrar esses transmissores da memória coletiva. Ainda em alguns lugares, quando morre um velho, se diz que é uma biblioteca que se incendeia. São pessoas que, com conhecimento acumulado no espírito, encarnam um tempo, às vezes uma cidade, um país. Às vezes, uma rua apenas. Para


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