O engenheiro que virou livro
24/01/13 15:04
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22/10/2012 - 00:00
O engenheiro que virou livro Por Ricardo Viel
(/sites/default/files/images/joao_pb_0.jpg)João Ricardo Pedro ganhou € 100 mil pelo romance de estreia e foi considerado exemplo por primeiro-ministro
O que um homem casado, com dois filhos, faz quando perde o emprego? O engenheiro eletrotécnico português João Ricardo Pedro sentou-se à frente do computador e começou a escrever um livro. Dois anos depois recebeu €100 mil, do Prêmio Leya, e teve seu romance de estreia publicado. "O Teu Rosto Será o Último" (ed. Leya, R$ 29,90; 192 págs.) já vendeu mais de 30 mil cópias em Portugal e será traduzido em alemão, holandês e espanhol. Atualmente com 39 anos, Pedro virá ao Brasil no mês que vem para lançar o livro. A obra conta a história do garoto Duarte e sua família, entrelaçada com a história recente de Portugal, em especial as guerras coloniais e a Revolução dos Cravos. "Tenho alguma dificuldade em dizer que sou escritor", diz Ricardo Pedro ao Valor. "Ainda sinto certo pudor, apesar de meu cotidiano ser escrever. É difícil imaginar o futuro e só quero escrever enquanto sentir esse impulso. Ficarei feliz se daqui a uns anos eu puder dizer, com certeza, que sou escritor." Leia a seguir a entrevista com o autor.
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Valor: Aos 36 anos você perdeu o emprego e decidiu virar escritor. Como isso aconteceu? João Ricardo Pedro: Já vinha há anos com essa ideia. Não quer dizer que soubesse qual livro queria escrever, não tinha na cabeça nenhuma história. Mas achava que se sentasse a escrever conseguiria fazer. Tinha essa arrogância, sem nunca ter escrito. Valor: Enquanto escrevia, nunca pensou em desistir? Pedro: Muitas vezes. Às vezes pensava que não tinha talento. Mas outras vezes escrevia algo e pensava: isso é muito bom. Eu e minha mulher tínhamos um conforto financeiro, senão seria impossível. Meus pais ficaram mais assustados. E meus amigos também, acharam que eu estava maluco. Estabeleci uma rotina e comecei a escrever. Só seis meses depois é que realmente apareceu esse livro. Começaram a surgir os personagens e vi que havia achado o caminho. Valor: Foi prazeroso escrevê-lo? Pedro: Foi, mas acompanhado de angústia. Fiz isso muito solitariamente, não mostrava a história. Às vezes o computador estava ligado e nem assim minha mulher lia. Acho que tinha medo de ser confrontada com algo que não gostasse. E eu tinha medo de mostrar. Fui entregar o manuscrito para concorrer ao prêmio e estava completamente convencido de que iria ganhar. Quando cheguei ao carro, já achava que era estupidez pensar naquilo. Valor: A história do livro não é das mais felizes. Como foi o processo criativo? Pedro: Há o prazer da escrita, de encontrar a palavra certa, ver que a história avança. Comecei a escrever em primeira pessoa, até que se tornou insuportável. Quando o pai volta da Angola e não reconhece o próprio filho, comecei a chorar. Era uma violência tão grande que vi que não conseguiria. Então reescrevi em terceira pessoa. E não sabia como o livro ia acabar. A cada frase a história ia evoluindo e muitas vezes as palavras apareciam e era uma surpresa para mim. Quando a mãe do Duarte diz que tem um cancro [câncer], meu lado leitor dizia: isso não. Mas o escritor sabia que era o que tinha que ser. Ouvia escritores dizerem que aconteciam essas coisas e achava que era conversa, mas senti isso. Valor: Por que escolher o dia da Revolução dos Cravos como pano de fundo? Pedro: Escolhi abrir com uma data histórica [25 de abril de 1974] e, ironicamente, desde um lugar onde as pessoas não tinham noção do que estava a passar. É uma ideia que me persegue, que em dias históricos acontecem situações que podem ser muito mais relevantes às pessoas. Houve quem morreu, quem se casou, quem nasceu, quem perdeu um amigo assassinado. A vida não se congelou. Esse confronto entre o que é a vida das pessoas e o que é a vida dos países é algo que me interessa muito. Valor: Apesar de serem histórias trágicas, há bastante ironia e humor no livro. Por quê? Pedro: Quando percebi o dramatismo das histórias, pensei que tinha que balancear. Muitas vezes o humor nasce de situações dramáticas. Em Portugal temos o hábito de contar piadas em funeral. Tento sempre ter um olhar irônico e humorístico das coisas. Quando me perguntam do peso do segundo livro eu digo: e quem disse que vai ter segundo? Ou falo: não, agora é só declínio, os próximos serão sempre piores.
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Valor: Tem algo de autobiográfico no livro? Pedro: Não é autobiográfico, mas poderia ser. Não sou o Duarte, mas poderia ter sido. Nunca conheci ninguém com aquela história, mas muito facilmente essa pessoa existe. E a ficção também é essa transformação da memória, não só do que vivi, mas do que chegou até mim através dos amigos, dos familiares. Acaba também por ser autobiográfica. Valor: Pedro Passos Coelho [primeiro-ministro de Portugal] disse que você é exemplo para os portugueses. O que achou da declaração? Pedro: Isso me incomodou porque em Portugal o desemprego é um problema grande, e as pessoas estão passando dificuldades. Era como se a grande ambição do governo fosse colocar um milhão de portugueses a escrever. Há aquela ideia de que as pessoas, por iniciativa própria, têm que se safar. Esse aproveitamento político me incomodou. Até porque me beneficiei de um conforto financeiro que a grande maioria não tem. Pude me dar a esse luxo. Valor: Caso não tivesse perdido o emprego ainda seria engenheiro? Pedro: Eu era um mau engenheiro porque era infeliz no que fazia. Não sei o que teria sido da minha vida, se calhar estava no Brasil a trabalhar. Muitos dos meus colegas emigraram. Talvez eu fosse professor particular de matemática, algo que fiz um pouco nesses tempos. Valor: A vida de escritor é mais glamourosa que a de engenheiro? Pedro: Sou o mesmo tipo, com as minhas inquietações e angustias. Ganhei um pouco mais de tranquilidade, mas minha vida continua a mesma. Sempre admirei os escritores, mas, por vergonha, nunca pedi um autógrafo. E quanto à vida glamourosa, eu não a vivo. Mas pelo pouco que conheço desse mundo vejo que há muita inveja. Vi isso logo nos primeiros encontros de escritores a que fui e não me agradou. Não faço esforço para pertencer. O que quero é estar a escrever. Repara que nunca tinha imaginado meu nome artístico. Já me disseram que esse não é nome de escritor. Sou um caso singular e minha vida é um bocado diferente. Há tipos melhores que eu, que estão a escrever há anos, e nunca ganharam o que ganhei.
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