A linda voz de Alfama

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A LINDA VOZ DE ALFAMA AOS 28 ANOS, CARMINHO, UM DOS PRINCIPAIS NOMES DO FADO, JÁ MOSTROU SUA MÚSICA EM PAÍSES DE TODOS OS CANTOS DO MUNDO, ALÉM DE FIRMAR PARCERIAS COM CANTORES COMO CHICO BUARQUE E MILTON NASCIMENTO POR RICARDO VIEL, DE LISBOA

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lugar é a antiga capela de um palacete, hoje transformado em um pequeno restaurante. Os azulejos de mais de dois séculos e a pouca iluminação, debilmente compensada pelas velas, constroem o ambiente perfeito para que se escute e cante fado. É nessa construção do bairro da Alfama, o mais antigo de Lisboa, que, em 2002, uma garota começou a chamar a atenção por sua voz e seu jeito de interpretar as canções. “Um dia, ela chegou com uns amigos e veio me perguntar se podia cantar. Havia o artista principal e depois outras pessoas cantavam. Olhei para aquela menina de tênis e calça jeans e fiquei desconfiada, mas disse que sim. Quando ela abriu a boca, todo mundo ficou de queixo caído”, conta Anabela Paiva, 52 anos, proprietária na época da casa em que Carmo Rebelo de Andrade, a Carminho, deu início à carreira – hoje, aos 28 anos, ela é um dos principais nomes da típica música portuguesa e circula o mundo; só no fim do ano, chegou a se apresentar 15 vezes em 17 dias, em uma turnê europeia, e, na volta, rumou para mais cinco shows no Brasil. “Bela”, como é chamada pelos amigos, ficou tão impressionada com o que viu naquela sexta-feira há uma década que convidou a fadista adolescente para se apresentar semanalmente. Meses depois, Carminho já cantava duas vezes por semana no restaurante, sempre com casa cheia. “Nos dias em que ela cantava, eu tinha que deixar cliente para fora. Começamos a fazer reserva de mesa com semanas de antecedência. Todo mundo queria escutá-la”, destaca. Em pouco tempo, a fama da garota de 17 anos tinha ultrapassado o círculo dos adoradores de fado e até quem não

era amante das tristes melodias subia as vielas da Alfama para ouvir a jovem que interpretava como se fosse uma veterana. “Olha como ela respira, olha como ela canta”, comentava-se nos intervalos entre as canções. Não demorou para que o assédio de produtores musicais surgisse. Fãs e profissionais da música pressionavam Carminho para que ela gravasse o primeiro disco. Foi quando decidiu fazer uma pausa. Aos 21 anos e recém-formada em Publicidade e Marketing, resolveu tirar um ano sabático. Pegou o dinheiro que havia ganhado como cantora e foi fazer trabalho voluntário, com doentes em fase terminal, na Ásia, Oceania e América do Sul – no total, passou por 13 países em 11 meses. Antes de partir, ouviu um alerta: o comboio não passa duas vezes, vai perder a oportunidade. “Fiquei um pouco aflita quando ela disse que ia fazer essa viagem. Não ia passar um ano em Paris ou Berlim, ia sem muito plano e para países que desconhecíamos”, conta Teresa Siqueira, 59 anos, mãe da cantora e também fadista. “Mas foi muito bom para ela, que é a caçula, era mimada, e de repente saiu para conhecer o mundo. Voltou mudada, e isso foi ótimo para a cabeça dela e também para a carreira”, completa a mãe, que, às quartas-feiras, canta no restaurante que Anabela, a “descobridora” de Carminho, administra atualmente, também no bairro da Alfama. No regresso da viagem, que teve escala final no Brasil, Carminho voltou decidida a ser cantora. Até então, havia dúvida sobre o caminho a ser seguido. “Fazia confusão na cabeça dela isso de ganhar dinheiro fazendo uma coisa de que gosta tanto. Demorou a entender que poderia ser uma profissão”, conta Teresa.

UM RAIO NO MESMO LUGAR DUAS VEZES

O comboio passou novamente, e dessa vez Carminho não o perdeu. Fado, o primeiro disco, foi lançado em 2009 por uma grande gravadora e teve ótima recepção de crítica e público. O restaurante dos azulejos cheios de história ficou pequeno, e a fadista começou a frequentar grandes salas – embora procurasse conciliar os espetáculos com apresentações mais intimistas. Em 2011, um dueto com o espanhol Pablo Alborán colocou a cantora no topo das paradas na Espanha e alavancou de vez sua carreira internacional. Pela primeira vez, um artista português teve a música mais executada na pátria

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vizinha. Em 2012, a cantora fez show em países distantes do fado, como Suécia, Finlândia, Alemanha, Coreia do Sul, Peru, além do Brasil – local pelo qual tem carinho e boas histórias para contar. Aos 19 anos, Carminho embarcou como cantora em um cruzeiro que ia de Lisboa ao Rio de Janeiro. Na chegada, passou alguns dias na cidade, com direito a assistir a um ensaio de escola de samba. Na volta, confessou à mãe que “seu maior sonho” era conhecer Chico Buarque. No final do ano passado, o desejo se realizou, e melhor do que o que fora pedido. Carminho gravou com Chico, no Brasil, a música Carolina para seu segundo álbum, Alma, lançado no país em novembro último. “Ficou linda a versão, e foi escolha dela. Convenceu o Chico de que ficaria bom. Ela tem muito cuidado com o repertório que escolhe”, diz Teresa, em um momento mãe coruja. No final de 2012, mãe e filha dividiram o palco do Coliseu de Lisboa, a principal casa de shows da capital portuguesa. Foi uma espécie de retribuição. Aos 12 anos, Carminho cantou no mesmo lugar em um concerto beneficente em que a mãe era uma das artistas. “Perguntei em casa se alguém queria cantar e ela foi a única. Então, falei que tinha que ensaiar. Depois do ensaio, um dos músicos me disse: ´Deixa a menina cantar. É afinada, tem voz, canta melhor do que muito profissional´”, relembra Teresa. Hoje, Carminho é uma das cantoras mais badaladas de Portugal e, aos 28 anos, já tem lugar de destaque no Museu do Fado. Além da voz e da maneira como interpreta as canções, a fadista é elogiada pela crítica por seu cuidado ao escolher não só as músicas que canta, mas também os músicos que a acompanham. Costuma dizer que é “filha do seu tempo” e por isso, embora tenha muito respeito pela tradição, não se furta a experimentar outros ritmos. Em seu segundo disco, além de cantar com Chico Buarque, faz dueto com Milton Nascimento e Nana Caymmi. Já se apresentou no Rock in Rio Lisboa acompanhada do brasileiro Pedro Luís e, recentemente, fez um improvável dueto com uma banda de metal portuguesa. Mesmo entre os fadistas mais antigos e puristas, é difícil encontrar alguém que a critique. “Não quero mudar ou modernizar o fado, até porque ele é muito maior do que eu”, disse certa vez. Agenciada por uma grande gravadora e cobiçada tanto pela imprensa como por empresas que querem associar sua marca à imagem da cantora, virou tarefa complicada conseguir uma hora de conversa com Carminho. Mas pode ser que em um sábado de noite, em uma das estreitas ruas da Alfama, você a encontre passeando tranquila com um gorrinho na cabeça. Se isso acontecer, não se furte a puxar conversa. Ela abrirá um sorriso bonito, falará de Chico com brilho nos olhos, contará da vontade que tem de voltar sempre ao Brasil e pedirá desculpas pela burocracia das assessorias de imprensa e dos empresários. E se calhar, como se diz em Portugal, você ainda conseguirá escutá-la cantar em uma diminuta taberna. Só você e mais duas dezenas de sortudos. c

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FORA DA BOLHA

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