Gabo: Entre a fama e a máfia

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Cássio Loredano

Perfil

ENTRE A FAMA E A MÁFIA Ele detestava ser o badaladíssimo Gabriel García Márquez, mas adorava ser o Gabo, membro de um pequeno círculo formado por familiares e dedicados amigos por Ricardo Viel

Tomás Eloy marTínEz, escritor e jornalista argentino morto em 2010, foi testemunha do dia em que a fama encontrou-se pela primeira vez com Gabriel García Márquez para nunca mais deixá-lo. Era agosto de 1967 e um desconhecido escritor colombiano desembarcara em Buenos Aires acompanhado da mulher. Cem anos de solidão, seu quarto livro (três romances e um de contos), acabara de 28

ser lançado na Argentina, primeiro país a publicar a obra, com uma tiragem inicial de 8 mil exemplares – uma aposta arriscada, já que, até então, o autor não tinha vendido nem mil livros, se somados todos os anteriormente publicados. Foi uma jogada acertada. O livro foi muito bem recebido nas terras de Borges. Em duas semanas a primeira edição esgotou-se e a editora Sudamericana mandou

gastar todo o estoque de papel que tinha segunda edição, de 11 mil exemplares. É nessa altura que García Márquez aterrissa na capital argentina, onde seu nome começava a ser escutado, mas seu rosto nunca havia sido visto. Viaja a convite de Martínez, que, depois de ler Cem anos de solidão de escrever uma crítica (a primeira sobre o livro), quis conhecer o homem que criou Macondo. Arrumou como pretexto um concurso literário e convidou o colombiano para ser um dos jurados. Naqueles dias, no Sul do mundo, Gabriel e a mulher, Mercedes, caminharam tranquilos pelas ruas, namoraram nos parques e aproveitaram, sem saber, os últimos momentos de anonimato. Foi já perto da data do regresso ao México, onde

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moravam, que a fama apresentou-se para nunca mais deixá-los em paz. Foi num teatro, recordou Martínez em uma crônica. “Entramos na sala pouco antes de que se abrissem as cortinas, com as luzes ainda acesas. García Márquez e Mercedes pareciam desorientados com a quantidade de peles e plumas desnecessárias que resplandeciam. Eu os seguia três passos atrás. Estavam a ponto de sentar-se quando um desconhecido gritou: ‘Bravo, bravo!’, e começou a aplaudir. Uma mulher aderiu: ‘Por seu romance, García Márquez’. Ao ouvir o nome, a sala toda colocou-se de pé e acendeu a chama de uma longa ovação. Nesse instante preciso senti que a fama descia do céu e pousava nos ombros do romancista, como se fosse uma criatura viva. [...] A fama o alcançou como um raio”, escreveu o argentino, que a partir daquela viagem manteve com Gabo – maneira carinhosa como o colombiano era chamado (primeiro pelos amigos e, depois, pelo mundo todo) – uma amizade O episódio de Buenos Aires foi uma pequena amostra ao escritor do que o aguardava dali por diante. Aquele título e aquele nome espalharam-se com a rapidez de um tsunami pelos quatro cantos – só Cem anos de solidão vendeu mais de 40 milhões de exemplares em seus quase 50 anos de existência (fora as edições piratas, impossíveis de contabilizar e que se tornaram muito populares especialmente na América Latina e na Ásia). Gabo tinha 40 anos quando escreveu o romance que colocou uma região no mapa da literatura universal, inaugurou um novo momento das letras e colocou ele trabalhava como jornalista e já havia escrito relatos de grande qualidade. Com um deles, “La mala hora”, tinha ganhado um prêmio, mas seu nome era absolutamente desconhecido tanto na Colômbia, seu país, como no México, onde vivia com a família. Em 1955 conheceu de perto a fome. Mandado como correspondente a Paris, publicada em um periódico, que o jornal para o qual trabalhava havia sido fechado por questões políticas, o que explicava o motivo de o dinheiro que esperava não chegar. Sem trabalho e sem recursos, decidiu permanecer na Europa e Foi nesse período que lhe apareceu o argumento de Ninguém escreve ao coronel,

romance publicado em 1961 e que seria considerado uma de suas obras-primas – foi eleito pelo jornal espanhol El Mundo um dos cem melhores livros do século passado. Na época, passou despercebido. Foi preciso esperar alguns anos mais para que o reconhecimento viesse.

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m 1965, já instalado no México, o escritor teve uma epifania enquanto viajava à praia com a família. Abandonou todos os trabalhos que tinha – como editor, roteirista e publicitário – e dedicou 18 meses a escrever o romance que durante anos lhe dava voltas à cabeça e que a princípio teria como título A casa. Entregou à esposa dinheiro para que a família vivesse por seis meses e calculou que projeto. Mercedes fez o montante render o máximo possível, os amigos ajudaram e, no começo de 1967, o escritor colocou o tinham nada mais para penhorar – carro, televisão, joias e rádio já haviam ido, só e a máquina de escrever. Havia negociado com uma editora argentina e não tinha crito pelo correio. Só pôde enviar metade das 590 páginas e no mesmo pacote colocou uma nota pedindo um adiantamento para poder remeter o restante das folhas. “Gabito, agora só falta que esse romance seja ruim”, disse Mercedes à saída do correio, contou o escritor algumas vezes. Por sorte, não era. Além de ser uma história absurdamente bem escrita, trazia consigo ingredientes necessários para inaugurar um novo momento literário. Era, sem que se soubesse, o romance aguardado. Quando vem à luz, a reação geral é de espanto e contentamento: Cem anos de solidão era o que o mundo literário precisava naquele momento. “O choque que me causou foi tal que tive que parar pôr alguma ordem na cabeça, alguma disciplina no coração e, sobretudo, aprender a manejar a bússola com que tinha a esperança de orientar-me nas veredas do mundo novo que se apresentava”, escreveu José Saramago sobre sua leitura de Cem anos de solidão. A reação do português repetiu-se entre leitores, acadêmicos e escritores. A partir de então, García Márquez já não passaria mais fome, já não teria que trabalhar em ofícios que não lhe agradavam, já poderia dedicar-se inteiramente

ao que gostava de fazer: escrever. Mas tudo isso tinha um preço e o episódio no teatro em Buenos Aires foi uma pequena mostra de quão alto ele seria. “O pior que pode acontecer a um homem que não tem vocação para o sucesso literário, em um continente que não está preparado para ter escritores de sucesso, é que seus livros vendam convertido em um espetáculo público. ferências e as mesas-redondas”, revelou sinceramente García Márquez ao amigo Plinio Apuleyo Mendoza no livro El olor de la guayaba, publicado em 1982. Um conseguiu uma entrevista com o escritor recém-premiado com o Nobel de Literatura. A primeira pergunta que o brasileiro lhe fez foi: “É difícil ser Gabo?”. “Você nem imagina como é bom ser Gabo. Um homem que é muito querido pelos muitos lugares, que come de tudo e que tem uma mulher maravilhosa”, respondeu o escritor. “O ruim é ser Gabriel García Márquez, que é um peso que eu tenho que forçosamente carregar a todas as partes. Que é um estorvo em todos os lugares, que não me deixa viver, que se mete na minha vida privada, que come da minha comida, que gasta meu tempo e dorme com a minha mulher. Isso é duro, mas ser Gabo é maravilhoso.” À diferença da grande maioria dos premiados com o Nobel de Literatura, o passar dos anos não fez com que o assédio a García Márquez diminuísse. Já era anterior ao galardão e acompanhou-o até 1967 para nunca mais afastar-se. Em 2009, em Cartagena de Indias, durante um curso de jornalismo na fundação criada pelo escritor colombiano em 1994, Jaime García Márquez, um dos dez irmãos de Gabo e diretor da entidade, revelou uma história que dá a dimensão do tamanho do fantasma que acompanhava o homem que escreveu O outono do patriarca. Certa vez Gabo viajou a Cartagena porque uma pessoa próxima havia morrido. O irmão queria ter com ele uma conversa privada sobre os rumos da fundação que acabara de nascer. No entanto, era impossível que tivessem um só minuto de sossego. Fosse onde fosse – na casa da família, no velório, no bar –, sempre havia alguém que interrompia a conversa para dizer ao escritor o quanto o admirava, 84 retratodoBRASIL

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Gabo tinha 40 anos quando escreveu o romance que colocou uma região no mapa da literatura universal,

poderiam conversar com tranquilidade. Mas a paz durou pouco. A notícia correu rápido e jovens prostitutas com cara de quem acaba de levantar-se começaram a passear pelo salão, a cochichar, a subir e descer escadas. Em poucos minutos exemplares de livros na mão para serem autografados.

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oi na Cidade do México, em um bairro sossegado de uma das megalópoles mais povoadas do planeta, onde o escritor colombiano construiu seu refúgio contra esse monstro chamado sucesso. Ali criou sua fortaleza, fechou-se para o mundo e deixou pouca gente entrar em seu universo. Território sagrado, a casa estava sempre de portas abertas ao seleto grupo de amigos apelidado pelo só na companhia deles que sentia ser ele mesmo, sem máscaras, rótulos e títulos.

O escritor e tradutor brasileiro Eric Neo amigo famoso como um homem de “generosidade sem limites” e “lealdade sem fronteiras”, mas que também cobrava dos amigos esse tipo de sentimento de amizade. “Alguém que nunca foi movido por outra força além da lealdade e do afeto”, escreveu Nepomuceno poucos dias depois da morte do colombiano. O autor de O amor nos tempos do cólera costumava dizer que escrevia para que seus amigos gostassem mais dele. Com o universo próprio que criou, com as inesquecíveis histórias de amor que contou, conseguiu também que dezenas de milhões de pessoas dos mais diversos lugares do planeta o amassem. O cineasta anedota de uma interminável sessão de autógrafos em que alguém perguntou a Gabo o que o levava a escrever. A resposta foi: “Escrevo para que me amem”. Ato contínuo, o escritor virou-se para Guerra e cochichou: “Mas não precisavam me amar tanto”. O curioso é que, embora García Márquez tenha se fechado cada vez mais no

seu mundo, nunca deixou de ser querido pelos leitores. Cada novo livro seu era esperado com grande expectativa e se esgotava em semanas (Memórias de minhas putas tristes, o último romance publicado pelo autor, vendeu 400 mil exemplares em uma semana). Seu nome sempre esteve nas ruas. Era como se seus leitores e sua morte comprovou isso. Embora não publicasse um inédito houvesse dez anos, embora raramente aparecesse em público, embora as informações divulgadas dessem conta de sua saúde delicada, quando, no dia 17 de abril, a notícia de sua morte correu o mundo, o que se viu foi uma comoção sem precedentes. Era como se um familiar de todos tivesse ido embora.

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ais do que homenagens oficiais, o que marcou aqueles dias foram as manifestações dos fãs: as demonstrações de carinho e de agradecimento, as leituras coletivas, as ruas tomadas por flores amarelas (as preferidas do escritor), a chuva de borboletas amarelas, como as que perse-

Do anonimato à fama, a esposa Mercedes era peça fundamental da “Máfia” Reprodução

repente, Jaime teve uma ideia. Agarrou o irmão, meteu-o no carro e foram até um prostíbulo. Era por volta das quatro da tarde e não havia ninguém além de uma senhora que limpava o chão. As cadeiras ainda estavam postas de ponta-cabeça sobre as mesas. Ao ver quem eram as visitas, a dona da casa mandou-os entrar e serviu-

meu sentimento de amizade é tamanho que lembra um pouco o dos gângsteres: de um lado, meus amigos, e do outro, o resto do mundo, com o qual tenho muito pouco contato”, contou em uma entrevista. “Considero-me o melhor amigo dos meus amigos e acho que nenhum deles me quer tanto como eu quero o amigo que menos quero.” Na porta do escritório da casa havia um letreiro no qual se lia: “A cova da máCem anos de solidão, labuta que só não foi mais árdua porque os amigos se revezavam na tarefa de ir ao lar do casal algumas vezes durante a semana para, com a desculpa de jantar, levar-lhes mantimento e tratar de que nada faltasse. 30

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Bertil Ericson/AFP

guiam Maurício Babilônia em Cem anos de solidão. Gabo tinha horror às deferências – dizia que todo prêmio era um perigo e que toda homenagem, um “princípio de embalsamamento” –, mas é pouco provável que não se emocionasse ao ver como, naqueles dias de maio, o vallenato, o ritmo caribenho do qual tanto gostava, espalhou-se por toda a Colômbia para sua despedida e como a tristeza de sua morte se misturou com a alegria por ter existido e ser colombiano. Em 2005, Gabo concedeu ao diário La Vanguardia aquela que seria sua última enao jornal catalão que a fama “quase” havia arruinado sua vida. “A fama perturba o sentido da realidade, tanto quanto o poder. Condena à solidão, gera um problema de falta de comunicação que isola.” No livro de entrevistas, Apuleyo Mendoza pergunta a García Márquez: “Se é verdade isso que um escritor passa a vida escrevendo um único livro, o teu seria o livro de Macondo?”. A resposta é um rotundo não. “Você sabe que não é assim. Só dois dos meus romances [...] e alguns contos ocorrem em Macondo.” “E qual seria então?”, insiste o entrevistador. “Seria o livro da solidão”, responde o escritor colombiano antes de fazer um repasso de vários personagens seus condenados à solidão, como a estirpe dos Buendía em Cem anos de solidão.

N

a altura de sua morte, o poeta colombiano Eduardo Escobar recordou o dia em que assistiu a como era para Gabo impossível estar no mundo como os demais mortais. Alguém dava uma festa e sem aviso prévio o escritor chegou. “E se acabou a festa. Todos nos pusemos a interpretar um papel. Cada um fez a cara de mais inteligente que conseguiu e a postura mais interessante.” Escobar viu como as pessoas o cercaram para fazer fotos enquanto comentavam sobre Macondo como se estivessem a explicar ao autor o que ele quis dizer com sua criação. Quando o fotógrafo teve Gabo desapareceu. Escobar o viu minutos depois escondido ao lado da geladeira, comendo na mesa de picar cebola, tentando passar-se por um empregado. A fama é o esfriar do café da manhã enquanto se dá autógrafos no restaurante de um hotel, disse certa vez Gabo. Não obstante todos os esforços do escritor, a fama usou das suas roupas, comeu da sua comida, deitou-se com sua mulher

Na Suécia, em 1982: prêmio Nobel de Literatura veio na esteira do sucesso de Cem Anos de Solidão

e, de certa maneira, condenou-o ao isolamento. Impediu-o de ter uma vida como as pessoas normais. Contava García Márquez que certa vez em Zurique uma tormenta de neve obrigou-o a entrar em um bar. “Tudo estava em penumbra. Um homem tocava piano na sombra e os poucos clientes que havia eram casais de namorados. Essa tarde soube que, se não fosse escritor, queria ter sido o homem que tocava o piano sem que ninguém lhe visse a cara, só para que os namorados se amassem mais.” O sucesso impediu-o de ser esse piasua própria vida. Mas não foi capaz de

ele manteve a lucidez e se expressava, nos despedíamos sempre com a mesma Nepomuceno algumas semanas depois da morte de seu amigo. a memória de Gabo já não era capaz de reter as imagens daquela vida plena, a seu coração. Conta o jornalista espanhol Juancho Armas Marcelo que, alguns meses antes da morte do escritor, um amigo foi visitá-lo no México. Esteve durante vários minutos ao seu lado, sem dizer qualquer palavra, até que Gabo rompeu o silêncio: “Não sei quem é você, mas sei que lhe quero muito”. 84 retratodoBRASIL

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