08/11/2013
"Pessoa já é amplamente brasileiro” Por Ricardo Viel | Para o Valor, de Lisboa
Fernando Pessoa viveu menos de meio século. Neste mês, faz 78 anos que o escritor morreu, aos 47 anos, e deixou como legado milhares de projetos em diversos estágios de realização. Um deles é o "Livro do Desassossego", cuja escritura lhe tomou mais de 20 anos e só veio a ser publicado em 1982. Desde então, várias versões do mesmo livro de prosa poética chegaram aos leitores. Uma delas recém-desembarcou no Brasil (Tinta da China), organizada pelo colombiano Jerónimo Pizarro, de 37 anos, um dos mais destacados pesquisadores pessoanos e autor de vários livros sobre o poeta português. Catedrático da Universidade dos Andes, em Medellín, Pizarro recebeu recentemente em Portugal o prestigiado Prêmio Eduardo Lourenço por seu trabalho de pesquisa sobre Fernando Pessoa. Leia os principais trechos da entrevista que ele concedeu ao Valor.
Pizarro: cada edição do "Livro do Desassossego" é só uma possibilidade entre muitas
Valor: Há diversas versões do "Livro do Desassossego". Qual é a diferença principal entre elas? Jerónimo Pizarro: De certa forma, já não há como contar o número de edições, porque muitas das que são tradução de uma edição portuguesa optam por propor uma nova ordem dos fragmentos e as edições portuguesas que dizem ser a mesma edição em nova tiragem (2ª, 3ª, 4.ª edições etc.) são em boa verdade edições revistas, com supressões e acréscimos, que não mantêm uma clara identidade. O "Livro do Desassossego" ainda não é um livro "estável" no sentido em que o é "Mensagem", por exemplo, e dificilmente chegará a sê-lo, porque cada proposta de organização dos fragmentos é só uma possibilidade entre muitas. O que hoje existe são edições mais atualizadas e mais desatualizadas, em termos de estabelecimento textual, de inclusão e de exclusão de fragmentos e de notas relativas aos textos. Valor: E como será a edição que agora sai no Brasil? Pizarro: A edição que preparei para o Brasil procura ser o mais atualizada, rigorosa e anotada possível, embora entenda, perfeitamente, que o aperfeiçoamento é um trabalho de dimensão coletiva, isto é, que em dez anos, por exemplo, posso chegar a propor uma edição com alguns melhoramentos ulteriores e novas notas de leitura. Sobre as edições brasileiras prefiro ainda não fazer uma história, nem referir a mais antiga ou a mais recente, por um motivo muito simples: a meu ver, a melhor edição portuguesa durante quase 30 anos foi a primeira (Ática, 1982) e não as subsequentes; no caso do "Livro do Desassossego", paradoxalmente, a primeira edição teve uma visão da obra de que as restantes careceram. Valor: Há no Brasil uma atração enorme por Pessoa. Mesmo quem não conhece nada de poesia sabe citar algum poema dele e há quem jure que ele era brasileiro. Arrisca uma explicação? Pizarro: Pessoa hoje já é amplamente brasileiro e muito mais brasileiro do que inglês, por exemplo, embora ele tivesse sonhado ser um autor mais vivo no mundo anglófono. De fato, quando num texto ou numa comunicação nós não nos lembramos da costela brasileira de Pessoa, imediatamente um interlocutor do Brasil lembra essa costela e pede-nos para não esquecer uma das pátrias póstumas de Fernando Pessoa. Não sei a que se deve esse encantamento, mas ele é evidente e constitui um elo que Portugal e o Brasil podiam explorar muito mais.
Valor: Concorda que os dois países não buscam um entendimento? A discussão sobre o acordo ortográfico é exemplo disso, arrisco dizer. Acha que Pessoa poderia, de alguma maneira, ser o elo entre os dois? Pizarro: Acho, sim. Pessoa podia ser um símbolo de novas alianças e acordos mais reais entre os dois países. Se o entendimento mútuo fosse maior, nem era preciso andar a discutir acordos ortográficos: simplesmente celebraríamos que cada país tivesse as suas diferenças. Valor: Você costuma dizer que o mais correto quando nos referimos a Pessoa é dizer o escritor e não o poeta. Por quê? Pizarro: Digamos que é o mais abrangente. Dizer "poeta" é esquecer muitas dimensões do universo pessoano; é admitir, inconscientemente, a superioridade da poesia sobre a prosa; é repetir um clichê. Dizer escritor é já começar a dizer Pessoa, isto é, não apenas poeta, mas para citar a Wikipédia: "empresário, editor, crítico literário, jornalista, comentador político, tradutor, inventor, astrólogo e publicitário". Com o tempo, teremos não que limitar Pessoa a uma categoria, mesmo que seja a de poeta, que se considera "nobre", mas de expandir Pessoa, de nomear todas as suas pessoas. Valor: Quando foi lançado em Portugal o livro "A Prosa de Álvaro de Campos", você chegou a compará-lo com o "Livro do Desassossego". É tão potente? Os leitores brasileiros podem esperar pela chegada desse livro ao Brasil? Pizarro: Nos dois casos devo responder que sim, embora o primeiro, sim, seja subjetivo e o segundo, factual. A meu ver, a prosa de Campos - contemporânea da melhor prosa do "Desassossego" - completa o capítulo da melhor prosa literária que Pessoa escreveu nos seus últimos anos. E esse livro não demora em ter uma vida brasileira. Simplesmente, o Brasil tem que se abrir a um Pessoa mais plural e já livre do monopólio de uma única editora. Valor: Voltando ao "Desassossego", pode-se dizer que esse é um livro imprescindível para entender Pessoa? Ainda falta muito para compreendê-lo ou o essencial já foi publicado? Pizarro: Ainda há poucos grandes ensaios sobre uma das maiores obras de Fernando Pessoa e esse vazio só vai começar a ser preenchido entre 2013 e 2014 por Paulo de Medeiros, que há mais de duas décadas lê, estuda e ensina o "Livro do Desassossego". O fundamental já foi publicado, mas faltam textos que convidem a reler e a redescobrir a obra. Os clássicos devem ser atualizados para que não tenham apenas uma existência nominal de tipo impositivo ("Deves ler Homero", "Deves ler Clarice", etc.).