LITERATIVIDADES - Contos Escolhidos

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RICARDO GNECCO FALCO

LITERATIVIDADES C ontos E scolhidos

1ª edição

Rio de Janeiro

Edição do Autor 2013



Aqui, sua Obra-Prima vira Obra de Arte!

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RICARDO GNECCO FALCO

LITERATIVIDADES Contos Escolhidos

1ª edição

Rio de Janeiro Edição do Autor 2013


Catalogação na Publicação (CIP) Ficha Catalográfica feita pelo autor F181l

Falco, Ricardo Gnecco, 1975 — Literatividades - Contos Escolhidos / Ricardo Gnecco Falco. - Rio de Janeiro: Ricardo Gnecco Falco, 2013. 96 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-914174-2-1

1. Literatura brasileira. 2. Contos brasileiros. I. Título. CDD: B869.35 CDU: 821.134.3(81)-3

© 2013 by Ricardo Gnecco Falco Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução ou transmissão deste livro, no todo ou em parte, através de quaisquer meios e para quaisquer fins, sem a autorização prévia, por escrito, do autor. Obra protegida pela Lei de Direitos Autorais. Arte da capa: do autor. Revisão, diagramação, projeto gráfico e coordenação editorial: RICARDO GNECCO FALCO. Fanpage | Site da Produtora:

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Direitos exclusivos desta edição pertencem ao autor:

RICARDO GNECCO FALCO ————————————————————————————— Produzido no Brasil em Maio de 2013 por


Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra. Não a pronuncie. Carlos Drummond de Andrade



Pa z e B e m !



C

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Índice

ON TOS

Escolhidos

A Frase ................................................................................................ 13 Na Pista... ..........................................................................................17 O Menino ....................................................................................... 23 Digressão Perigosa ............................................................... 27 Irreversível ..................................................................................... 33 Desespelho ..................................................................................... 35 Um Reles Traço... ................................................................. 41 Oito de Copas ............................................................................ 47 A Conquista ................................................................................. 53 Valeu, tio! .......................................................................................... 59 Obra da Destino ..................................................................... 63 O Regresso ..................................................................................... 65 Castelo de Areia ..................................................................... 69 Apreço ................................................................................................. 71 O Sorriso da Lua .................................................................... 77 Delirium Tropicalis ........................................................... 79 Olho Vivo ....................................................................................... 85 11


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A Frase — Ela tem ciúmes até de você! Na época em que Duda disse esta frase, Bruna — hoje sua namorada — era apenas uma amiga. E foi com esta sentença que, sem saber, Duda alterou radicalmente a vida de Bruna. E também o rumo de suas histórias... Naqueles tempos, tinham lá seus respectivos relacionamentos amorosos. Duda com Marly, a garota mais sexy e desejada de todo o curso de psicologia; e Bruna tinha um caso com Augusto, professor do segundo período da faculdade, onde conheceu Duda. Na verdade, Duda e Bruna viram-se pela primeira vez no trote e, quem diria, estariam lado a lado também na foto de formatura, trocando muito mais do que sorrisos e olhares cúmplices. Já tinham até combinado isso... Mas, voltando no tempo novamente... Duda e sua então namorada, Marly, não tinham o menor pudor em demonstrar, em toda sua voluptuosidade, o quanto se gostavam. E, para delírio de todos os rapazes do turno da noite, era comum ver o casal entrelaçado durante os intervalos das aulas; no pátio, lanchonete, estacionamento... E se pegavam mesmo! 13


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Com todo o entusiasmo e dinâmica que a fogosa juventude costuma gratuitamente oferecer como espetáculo, Duda e Marly formavam o casal mais conhecido – e comentado! – daquela conservadora instituição de ensino. Colírio e delírio para toda a rapaziada do curso. Contudo, numa das incontáveis festas da faculdade das quais participaram, isso já no terceiro período, Duda revelou para a então amiga Bruna que, sua estonteante e desejada namorada, além de beleza, tinha de sobra também... Ciúmes. Pura, e nunca simplesmente, ciúme. Ciúme imensurável, incontrolável. E isso, como Bruna pôde perceber naquele desabafo, tirava Duda realmente do sério. A amiga podia ver em seus olhos a raiva que certas atitudes de Marly lhe faziam sentir. O pior é que, na cabeça de qualquer um, deveria ser Duda a sentir ciúme de sua cobiçada namorada, pois até mesmo os professores da faculdade — e aqui se encaixava também Augusto, o tal caso de Bruna — perdiam o controle sobre o olhar e as palavras ao verem Marly passar. Às vezes até o controle sobre a saliva... Mas, isso Bruna sabia reconhecer também... Marly era mesmo maravilhosa. Linda. Toda completa. Se fosse um carro, seria uma Ferrari; vermelha. Com todos os opcionais. No entanto, nada mais deprimente do que ver um bando de marmanjos, a maioria casada e com filhos, ou filhas, babando na porta da sala dos professores quando Marly passava... 14


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Em contrapartida, se havia alguém mais seguro, maduro e bem resolvido do que Duda ali naquela faculdade, Bruna não tinha ainda conhecido ou ouvido falar. Duda detinha todas estas qualidades e ainda muitas outras... Formava um conjunto de atributos que, em sua totalidade, causavam imensa admiração por parte de sua, ainda então, amiga. Ter conhecido Duda foi, sem sombra de dúvida, uma das melhores coisas que haviam acontecido para Bruna naquele período importante e confuso de transição para a vida realmente adulta... Era com Duda que Bruna se abria e sempre ficava impressionada com a sabedoria e sensibilidade contidas nos conselhos que recebia em troca. Sempre em troca... Mas então veio a frase. A tal frase que mudou tudo. A frase que pegou Bruna de surpresa; que a acertou em cheio como uma bolada na testa. Marly tinha ciúmes dela... Ela; Bruna! Não que se achasse feia; estava longe disso. Mas saber que a musa da faculdade, a deusa suprema, o ícone máximo da luxúria, sentia ciúmes dela... Nossa! Isso era mais do que um banho de ofurô em seu ego. Foi estranho... Aquilo mexeu de verdade com Bruna. Fato que uma semana após aquela revelação, Bruna e Duda trocaram o primeiro beijo. Proibido, secreto, curioso... Exatamente como um beijo deve ser. 15


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E o incidente despertou dentro de Bruna sentimentos e desejos que nunca sequer cogitou existirem. Estava transtornada. Irreconhecível. Não conseguia mais parar. Queria sempre mais e mais e não compreendia a fonte de tudo aquilo... Bruna estava verdadeiramente apaixonada. Irradiando alegria, terminou com apenas duas palavras o complicado relacionamento que mantinha há tempos com o inconformado professor, tornando então público todo aquele novo e indescritível sentimento que surpreendentemente apoderara-se dela e a fizera sentir-se, finalmente, completa. Completamente feliz. A parte mais difícil para Bruna foi, sem sombra de dúvida, após quatro anos de intenso aprendizado, apresentar o motivo de toda aquela plenitude aos seus pais, que vieram do interior de Minas especialmente para a formatura da filha e, finalmente, conhecerem Maria Eduarda... Seu grande amor.

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Na Pista... Por trás da persiana ela olhava para fora do quarto. A luz do Sol fazia com que enxergasse tudo envolto em uma espécie de névoa. Uma aura luminosa que lhe ofuscava os olhos tanto ou mais do que a desprevenida mente. Era Carlos quem vinha em direção à porta. Ajeitava a camisa florida por dentro do elástico da bermuda que lhe deixava os machucados dos joelhos à mostra. Quando entrou, ela reparou nas casquinhas que agora cobriam os ferimentos do rapaz, dando um tom ameno ao que poderia ter sido muito pior… Lembrou-se do namorado rodopiando no meio da pista, com as costas tangendo o solo em um efeito idêntico ao de um pião. Tinha sido muito engraçado… Só mesmo ele para arriscar passos de hip hop, toscos, em pleno baile de carnaval, ao som de uma antiga marchinha que se negara a perder-se no passado, da mesma forma que aquela leda lembrança… Ela ainda se culpava pelo acidente, mesmo tendo sido um descuido de Carlos o que acabara ocasionando a queda dos dois. Se bem que fora ela quem pedira para o namorado mudar de faixa… Ele, como sempre o fazia, apenas quis brincar com sua amada, trocando de lado na pista, embora sabendo que ela havia se referido à faixa da música que escutava no discman, e não a da estrada, na volta do baile. Sem volta… 17


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Ela estava na garupa e, mesmo sem capacete, não sentira a batida com a cabeça no asfalto, parecendo não ter sofrido sequer um arranhão. Contudo, ao ver agora o estado em que a moto ficara — colocada sobre a caçamba de uma picape da polícia rodoviária, estacionada ali do lado de fora do quarto —, ela percebia a sorte que também Carlos, exibindo apenas algumas pequenas escoriações, tivera. A moto estava totalmente destruída… Aqueles machucados eram como um lembrete; notas de rodapé em uma página… Neste caso, notas de joelho. Nos joelhos dele. Como que a lembrá-los do que poderia ter sido tudo aquilo. Um texto autoexplicativo… Mas era Carlos quem gostava de procurar a explicação de tudo nos fatos. Costumava dizer que toda e qualquer pergunta já detinha, invariavelmente, a resposta dentro dela mesma. Afirmava para quem quisesse ouvir, sempre em alto e bom som, que todo fato provinha da consequência de um ato, que por sua vez era oriundo de um pensamento, que era, basicamente, produto de um desejo. E tudo estaria à mostra, disponível… Embora não evidente. Assim ia Carlos discorrendo sobre o que quer que fosse que, à primeira vista, se demonstrasse enigmaticamente obscuro. Gostava de solucionar problemas, descobrir coisas, mudar os paradigmas… Contudo, ela sabia que, na verdade, Carlos tinha mesmo era uma “alma de caçador”. Ele era um ávido — e incansável! — caçador de respostas. Talvez fosse isso a passar pela cabeça dele agora. Carlos estava quieto demais; quase tenso… Quem sabe até um pouco fora da realidade, tentando explicar o inexplicável, exprimir 18


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o inexprimível, encontrar o detalhe faltante… Enquanto ela perdia-se em pensamentos não tão distantes, como a quilometragem existente entre aquele quarto de hotel de quinta e os cacos de vidro que ficaram sobre o asfalto quente da pista. Quente e acolhedor… E novamente o brilho invade seu semblante, como um farol a delatar uma longínqua e até então despercebida embarcação. Ofuscando agora até as lembranças através da luz que aqueles pequeninos cacos espalhados no revolto mar de sua confusa mente refletiam. Purpurinas do baile de carnaval… Batuques ferindo gravemente o couro dos tambores, joelhos… Serpentinas vibrantes… Cor de sangue. Agora tudo misturado e exposto; espalhado por aquela estrada. Migalhas de vidro na pista… Brilho esmigalhado. Os reflexos… O Silêncio. Somente então repara: não havia som naquele quarto. Nem mesmo barulho vindo do lado de fora. Só o silêncio… O momento a silenciar o que o vento, sem ciência do fato, sentenciava. As árvores balançando lá fora num vai e vem confuso e melancólico… Tudo melancolicamente mudo. Carlos puxa do bolso de sua bermuda o que sobrara do aparelho que, com a outra parte ainda a repousar no pescoço dela, completar-se-ia. Esmigalhara-se por fora… Mas, os fones que pendiam das pontas do metálico arco e tocavam a jugular 19


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da namorada, agora aumentando gradativamente a pressão naquela área, não detinham sequer um arranhão. Estavam intactos, assim como ela. Intacta… Intacta e aflita. Ela fita as mãos de Carlos que, após livrar-se dos restos do aparelho, segurava agora, entre cortes, arranhões e manchas de sangue, apenas o CD com os enredos das escolas de samba deste ano, comprado já na saída do baile, após muita insistência por parte dela. Ele não queria comprar. Ele não devia… Fato. Carlos chora. Copiosamente. Deixa-se cair por sobre os restos do discman que são então prensados entre a colcha encardida daquela cama de hotel de beira de estrada e o machucado corpo que sobre a mesma tombara, derrotado. Corpo… E alma. Carlos estava estranho… Não trocara uma só palavra com ela desde que ali chegara. Como se nem a tivesse visto. Como se ela não existisse; como se ele não estivesse ali. Agia friamente. Talvez a culpasse pelo acidente; talvez culpasse a si mesmo… Mas não houvera nenhuma acusação; nenhum carinho… Nada. Tinham as suas diferenças. Ela gostava de samba; ele de música eletrônica. Ela falava em aprender a tocar violão; ele queria comprar uma mesa de som. Um gostava de correr no 20


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calçadão; a outra se esforçava em caminhar dia sim, dois não. Ele adorava a chuva; ela desafiava o sol. Mocidade porque estava bonita na televisão; Mangueira de berço e coração… Leite quente versus leite frio; um no Engov a outra no Doril… Ela não era de beber. Na verdade, não gostava mesmo era de cerveja. Mas, naquele baile, haviam realmente caprichado… Parecia até que os organizadores tinham feito uma pesquisa pré-carnaval, como se tivesse sido possível descobrir, já no ato da compra dos ingressos, a preferência etílica de cada comprador. Tipo um elo mental mesmo, que fosse direto ao ponto do cérebro capaz de revelar, instantaneamente, a preferência por esta ou aquela bebida. Sim… Havia uma mesa enorme e absurdamente apinhada de copos transbordantes no baile, repletos de uma verdadeira e irresistível tentação. Uma mesa que era constantemente renovada… Que ressurgia, a cada olhadela, impávida e convidativa. Um a um, os copos vazios colocados sobre ela eram, todos, substituídos por outros, cheios. E, por mais que tentassem, eles não conseguiam dar conta... O nome da tentação? Cuba Libre. Uma marchinha antiga pra lá, um samba-enredo famoso pra cá, e lá iam eles para a pecaminosa mesa. Carlos — é verdade — nem era assim tão vidrado na perfeita mistura de rum, Coca-Cola e limão, mas fizera questão de acompanhar, durante toda aquela noite, a namorada em sua rara expedição alcoólica. Já ela… Era fã mesmo. Profunda conhecedora e admiradora. Gostava tanto que até a história desse drinque ela fazia questão de difundir, lembrando a todos que a invenção do mesmo era atribuída aos soldados norte-americanos que ajudaram 21


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nas guerras da independência cubana — daí o nome — e que, muito provavelmente, inspiraram-se no calor dos campos de batalha para a criação da explosiva bebida. Porém, o calor que ela sentia agora não se devia mais ao efeito da bebida ingerida em demasia naquele baile. Nem da animação das marchinhas ou do rebolar frenético das mulheres no meio da pista lotada… Tampouco vinha de fora daquele quarto de hotel de beira de estrada. Nem da claridade que agora ultrapassava as persianas e tomava conta de tudo à sua volta, misturando-se ao crescente batuque dos tamborins que voltava a ouvir através dos fones desplugados e que, cada vez mais, pressionavam seu pescoço… Ela sentia o calor da estrada. Do asfalto quente e acolhedor. Das serpentinas vibrantes cor de sangue se abrindo naquela pista. Do repique metálico e do chamativo brilho dos pequeninos cacos de vidro, espalhados pela imensidão daquele cruzamento, que lhe invadiam a alma ao refletirem seus próprios olhos… De dilatadas pupilas.

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O Menino Pela janela do carro passavam os prédios, enfileirados. Imponentes, resistentes, pacientes. Misturavam-se ao azul do imenso céu que se sobrepunha a todo o cenário em volta. Eram como mergulhadores de concreto sobre trampolins de rua, à beira de uma enorme piscina às avessas. O garoto estava sentado no banco de trás do veículo, olhando para cima, mas parecia flutuar à frente de tudo aquilo; admirado com a sensação de primeira vez que se apoderava dele ao mergulhar naquele momento indescritível. Deliciava-se. A claridade daquele dia especialmente belo repetia em suas retinas as mesmas formas refletidas no vidro da janela do carro. E o resultado de toda aquela radiante maravilha, em suas variadas dimensões, era logo retido na alma do menino, explodindo em uníssono com as batidas de seu coração. Um retumbante brado, transformado em pulsação... Era um garoto franzino, dono de um sorriso tranquilo. Mas, suas traquinas meninas, dotadas de um brilho tão intenso que pareciam querer competir com o esplendor do astro que a tudo ali iluminava e coloria... Estava alegre, o menino. 23


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Alegre como o sol. Alegre como uma criança ao acordar e ver que seu melhor sonho estava acontecendo de verdade; na realidade. Estava acordado; não estava dormindo. Não estava... Estava vivo. O carro seguindo pela avenida da praia... Ele mimeografando os coqueiros, a areia, o intenso azul do mar e, lá no fundo, o horizonte. O horizonte inimaginável estava ali. Bem ali, ao alcance de seus olhos. Atingia, portanto, neste instante, o inatingível ponto. O dia estava lindo... Perfeito. E não era só isso. Tinha mais do que a natureza e suas belezas infinitamente belas... Tinha as pessoas. Motoristas, famílias, crianças, velhinhos... Primeiro nos carros ao lado, depois os pedestres, transeuntes, pessoas no calçadão, pessoas correndo, pessoas de bicicleta; pessoas, pessoas, pessoas... Gente. E... Ele ali. Junto. Junto da gente. Uma paz muito grande dentro daquele automóvel. Família completa. Pai, mãe, irmã... Todos ali. Completamente novos. Completamente família, embora ainda não familiarizados com tanta alegria. Renovados. O sol forte reluzia sobre a pele ávida e ainda fria do menino, após quarenta dias aprisionado naquela escola. Quarenta dias sem poder sair daquele prédio; de uma sala à outra sendo a maior distância percorrida, desde o resultado da primeira prova. Quarentena. 24


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Os primeiros exames foram um baque e tanto. Fora pego de surpresa, o menino. Assim como sua família, amigos, colegas... As chances de passar eram remotas. Muito remotas. E foi então que o curso intensivo teve início. Não fazia ideia, o menino. A menor ideia do quão séria era a sua situação. Talvez não houvesse nem chance de recuperação. Momentos muito difíceis seriam necessários. O desgaste seria intenso; proporcional à sua resistência física e mental. Quando a médica lhe disse a longa frase, já com as três versões do exame na mão, foi trazendo todas as palavras para frente do ponto em questão. Todas as longas horas de espera, as horas na antessala daquela emergência, foram então explicadas. Tudo fora refeito. Por isso as horas... E a longa frase que ainda lhe apresentaria vários personagens novos, de futura convivência diária. A sentença proferindo-se e alongando-se na mesma proporção que a certeza de que haveria realmente algo de errado no final. Algo errado com o menino. Leucócitos, monócitos, hematócritos, hieróglifos... Todos trazidos para frente daquele singelo par. Um “L” e um “A”. E lá estava a resposta. Aquela era a sigla cujo significado a tudo tanto complicava... Mas tinha cura. E, como um mantra, a verdadeira notícia contida naquela frase, antes mesmo de seu término, ia sendo mentalmente repetida pelo menino. 25


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Tem cura... Ecoando por todas as partes do interior daquela sala de emergência, a poderosa palavra jorrava como sangue nas paredes, transformando-se então em esperança. A fé escrita em sangue. No sangue do menino. Não havia mais volta. Nem muitas opções também. E, mesmo agora, saindo pela primeira vez de sua “escola”, encarando o horizonte estendido sobre o azul do mar daquele dia todo especial, o futuro era incerto. Mas ele já era outro. E já sabia também a quem o futuro pertencia. Ele era o agora. Ele era o menino improvável de ontem; o impossível de antes. O talvez, quem sabe, amanhã... Ele era o hoje. E hoje estava um dia lindo...

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Digressão Perigosa Ronaldo era uma pessoa bem distraída... No entanto, já na saída do túnel, percebeu que havia algo errado. A pista à sua frente estava completamente vazia, assim como toda a travessia feita pelo interior do imenso vão que deixava para trás. Fixou o olhar no retrovisor do carro. Cada segundo passado sem avistar sinal de outro veículo, à frente ou atrás do seu, reconfirmava aquela primeira impressão, responsável pela crescente e involuntária força exercida em seus músculos temporais. Ronaldo sentiu a vista adaptar-se à claridade do ensolarado dia e, já de posse da certeza que alguma coisa estranha estava realmente acontecendo por ali, reduziu a marcha do veículo. Ele só não sabia ainda o que era. O incômodo vazio, atípico no trânsito de fim de tarde carioca, especialmente naquele ponto da cidade — que ligava a zona sul à uma via expressa —, levou Ronaldo a diminuir ainda mais a velocidade de seu carro; quase parando no meio da rua deserta. Até que notou o brilho... 27


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Trazendo ainda menos veracidade ao cenário apocalíptico no qual se encontrava, Ronaldo visualizou alguns vagalumes próximos ao asfalto, à frente do automóvel, como se desprovidos da informação sobre o horário local. Ou talvez confusos, devido à ausência do costumeiro fluxo de veículos... Pirilampos diurnos. Só então distinguiu um carro branco de reportagem, com a logo de uma emissora de TV estampada na lataria, parado mais adiante, à esquerda da pista. Aparentemente, gravavam alguma matéria, pois Ronaldo acompanhou a corrida de um homem, carregando uma câmera de filmagem, e uma mulher, muito bem vestida, com o que parecia ser um microfone na mão. Os únicos seres-vivos avistados por aquelas bandas, além dos estranhos vaga-lumes... Seria uma reportagem sobre este bizarro fenômeno? Na verdade, pareciam temerosos... Ambos, câmeraman e repórter, pararam agachados ao lado do carro da emissora e, se realmente filmavam algo por ali, só poderia mesmo ser alguma coisa bem pequena sobre o asfalto. Pequenina e perigosa. O fato é que, ao aproximar-se mais da dupla, mantendo a baixa velocidade de seu veículo, Ronaldo pôde perceber a expressão de espanto que figurava nas feições dos dois; como se o casal sofresse um inesperado ataque por parte dos curiosos pirilampos que, em maior número agora, piscavam bem próximos da atônita dupla. Contato visual estabelecido... 28


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Ronaldo não conseguiu evitar o encanto recebido daquela repórter. Lindíssima. Os olhos azuis abertos ao máximo, fitando-o; revelando todos os seus segredos num instante de êxtase que parecia sem fim. Tudo em câmera lenta... O olhar fixado nele como se o desejasse mais do que a própria vida. Encarando-o sem empáfia; o hipnotizando de imediato. Por completo. Foi quando os dois veículos se emparelharam e, durante a eternidade que um único segundo pode conter, pela janela de seu carro, Ronaldo vislumbrou o quadro mais perfeito dentre todas as imagens que até então julgava conhecer. Déjà vu. Sentiu por inteiro o impacto daquele momento. Um insólito elo cuja ruptura, no instante seguinte, queimou-lhe por dentro, criando um mal-estar súbito que Ronaldo imediatamente tentou desfazer. Inquietação... Numa busca quase que animalesca, voltou os olhos para todos os retrovisores de seu carro, o de dentro e os de fora, procurando restabelecer o mágico contato que o fizera sentir-se a meio passo da perfeição. Reencontrou o veículo branco pelo qual acabara de passar somente no espelho esquerdo; pequenino demais para permitir uma boa visualização daquela que fora a responsável pelo instante mais intenso de toda a sua vida. A magia daquele olhar... Penetrante. 29


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Profundamente alterado, Ronaldo tentou enquadrar o cândido automóvel no retrovisor central de seu carro — maior e menos indigno para aquele glorioso fim. Porém, na dolorosa busca pelo posicionamento ideal de seu corpo, que o permitisse avistar a agora já dona de sua sanidade física e mental, Ronaldo acabou deparando-se novamente com a enorme e negra boca de onde havia sido cuspido para aquele deserto. O imenso vão. Num calafrio, percebeu as diversas construções sobre a abismal galeria do túnel, reveladas somente então pelo espelho. Na verdade, casebres. Inúmeros. Sobrepostos; confusos. Tudo misturado e exposto. Pedaços de madeira, concreto, tijolos... Favela. E, do mesmo modo que antes, Ronaldo viu fulgurar, agora também dentro daquele pedaço de vidro refletor, o brilho tão característico aos supracitados insetos reluzentes... Uma verdadeira infestação de pirilampos que parecia querer tomar conta de todo o morro atrás do carro, acima da saída do túnel, repleto de pontos luminosos. Flamejantes marcas destacavam-se na indigente paisagem sobre a meia-lua negra e soturna. Centelhas cintilantes invadiam ruelas e agrupavam-se de modo amorfo e insólito. Um endêmico ataque àquela comunidade menos favorecida. Uma epidemia de chispas na favela. Invasão insana; fulgente. Sobrenatural. Luzes sobre a escuridão. 30


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Guiou o carro apenas pelo instinto. Dirigiu dezenas de metros sem atentar-se para o que viesse adiante. Olhos vidrados no retrovisor central. Olhava para frente, mas pelo espelho lhe era revelado tudo o que ficara para trás... Como se não houvesse mais futuro. Com a razão extinta, à imagem e semelhança dos imperceptíveis cacos de vidro espalhados sobre o banco traseiro do carro, sem ainda conseguir juntar os pedaços daquele verdadeiro enigma, Ronaldo tombou sobre a direção. Não sentia mais o peso do corpo. Na verdade, não sentia mais nada. Nada além de saudade. Saudade daquele rosto, de feição misteriosamente angelical; de olhar reluzente e enigmático. Alaranjadas fagulhas em meio a uma imensidão azul... Ensandecidamente belos. A boca entreaberta e inverossímil, na eterna dúvida do movimento. Os lábios vermelhos... A mente divagando... Sem som; sem tom; centrada. O momento exato da ultrapassagem. Etéreo instante. O vento sutil a balançar os fios loiros sobre a perfeição da pele alva. A súplica daquele olhar derradeiro... Um toque sublime a percorrer toda sua espinha, num aguçado carinho... A unha feroz cravando-lhe a pele num afago algoz; a ferroada nas costas... O delírio. Ronaldo emergiu no interior daquele carro, já quase sem embalo. O som dos estampidos próximos e o calor de rubra intermitência foram seus últimos companheiros. Não viu a barreira de veículos perfilados mais à frente, nem as dezenas de oficiais fardados, fartamente armados, em irracional revide. 31


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Ronaldo perdeu-se no frescor daquele rastro... Dormiu ninado pelo tilintar metálico dos fuzis em meio ao nauseante hálito de pólvora que invadiu o automóvel, instantes antes de parar na reforçada lataria de uma das viaturas que bloqueavam o trânsito daquela importante e desolada via. Uma verdadeira operação de guerra. No noticiário da noite, figurou entre as vítimas fatais de mais aquele confronto urbano. Bala perdida. Uma jovem repórter relatou, emocionada, os momentos de perigo vividos por ela e seu companheiro de equipe. Ambos surpreendidos pelo intenso tiroteio ocorrido entre a polícia e os traficantes invasores que tentaram tomar posse dos pontos de venda de drogas daquela afamada favela. No carro de Ronaldo foram encontrados — além das diversas perfurações de bala — pedaços de tela, pincéis, cavaletes de madeira, recipientes com tintas de inúmeras cores e uma pasta repleta de folhas de papel, contendo vários desenhos, de diferentes temáticas. Alguns destes desenhos que estavam no interior do veículo da vítima foram mostrados na reportagem, de cunho extremamente emocional. Dentre os mesmos, destaque especial foi dado pela repórter, visivelmente alterada, a uma série de inacabados esboços, sobre os quais o falecido artista parecia estar trabalhando. Todos retratavam a figura de uma bela e enigmática jovem. De lindos olhos azuis...

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Irreversível Sempre nos perguntamos se o destino realmente existe. Seria possível nascermos com todos os futuros acontecimentos já totalmente determinados? Será que tudo que advém em nossas vidas é resultado independente da nossa vontade ou existiria alguém, ou força, ou desejo de um ser maior, desconhecido, a reger todos os episódios da nossa história? As pessoas especulam sobre este assunto sem chegar a uma conclusão e, então, cada um define a sua própria versão pra sua própria — ou imprópria — razão de viver. Ou de morrer. Ou, ainda, de matar... Mas o que realmente faria com que duas pessoas de vidas completamente diferentes se encontrassem em um mesmo local, numa determinada data, e se apaixonassem perdidamente, sem mais nem menos? Teria sido por acaso que Roberta sentara-se ao seu lado num longínquo primeiro dia de aula e puxado assunto com ele? Seria apenas coincidência ver-se agora de frente a alguém que nunca imaginara conhecer tão a fundo; a pessoa pela qual se morreria? E que este alguém a parte final de sua vida representaria? Seria... Ou não seria? 33


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Esta história falaria um pouco disso. Contaria como um casal, completamente feliz, teve terminada toda a linda história que havia construído junto — repleta de alegrias, carinhos, aprendizados, momentos e promessas indescritíveis —, chegando, separado, ao final da caminhada; não mais mútua. Talvez, se o jovem bem apessoado não a tivesse ajudado quando a bolsa dela virou, no chão da festa lotada... Ou, talvez, se ela não houvesse aceitado aquela inofensiva oferta de carona... Quem sabe se o ex-namorado, na semana anterior, não abafasse no travesseiro o pedido de desculpas? Ou mesmo se, naquela mesma noite, como era no início, ele não abdicasse do desejo de apertar o SEND, ainda com a frase mágica refletida no display do aparelho? Esta história explicaria tudo. Revelaria tudo. Só que agora já não importa mais... Revê-la; seria tudo.

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Desespelho Era estranho... Beijava bocas sem rostos como se buscasse o antídoto para uma latente dor. Explorava corpos desprovidos de nomes e em suas toscas pilhas me perdia. Trilhava caminhos opostos, impostos; sobrepostos... Chafurdava na lama impiedosa da madrugada, mergulhando de cabeça nos bueiros, poços... Chegava a ser poético, mas insano. Dor de amor. Ter de passar por tudo isso, para só então começar a me perguntar: Para quê? Ter que atingir o fundo e só lá embaixo descobrir que fora eu mesma a saltar... Estar dentro de uma situação claustrofobicamente real e então perceber que na realidade fora eu mesma a me trancar ali. Era tudo tão simples. Tudo tão complexo... Tudo tão contraditório. O telefone tocava. Vibrava. Roía. Escandalizava... Minha cabeça girava. Sentia o gosto na boca borrada que o espelho em primeiro plano delatava, escondendo a metade do corpo tombado e exaurido sobre a cama, ali atrás... Recompensado. Entorpecido. Eu queria que tudo fosse diferente. 35


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Que fosse tudo diferente... Olhava-me no espelho daquela espelunca e não me encontrava do outro lado. Na verdade não sabia mais de que lado estava; qual era o lado certo... Onde estava? Quem eu era? Por que fizera aquela tatuagem horrível que a menina do espelho me mostrava? E quem eram os caras deitados na cama, ali atrás? Não... Não sabia mais quem eu era e nem o que eu fazia. Aliás, o que eu fazia ali...? Que lugar era aquele? O que eu havia tomado...? Eu não queria ter estado no meio de toda aquela gente. Não sabia se atendia aquele maldito telefone, ou se me escondia. Eu não queria ter estado ali! Humilhada... Usada... Eu só queria que tudo aquilo fosse diferente. Vil. Eu estava magra. Engraçado... Sempre quisera ser magra. Passara a adolescência inteirinha lutando contra a balança; me contendo, segurando. Sempre desejara ter um corpo assim. Mas não assim... Sabe quando a gente se olha e não acredita que seja a gente naquela foto? Era assim que eu olhava pra mim naquele espelho... Sempre quisera ter um corpo daquele. Sem nenhuma gordurinha. Mas não daquela forma. Não daquele jeito. O corpo tão sonhado... Em meio a um pesadelo. Não sei quanto tempo fiquei olhando para mim mesma, dentro daquela pocilga; diante daquele espelho que parecia quebrado. Aquele maldito telefone se esgoelando... Talvez o tempo necessário para que eu pudesse me reconhecer naquela imagem. Despertar. Sem a maquiagem, a máscara... Assustadoramente real. Encontrar-me. Descobrir-me. Ali, nua, durante um curto período de lucidez. 36


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Ensandecidamente lúcida... Eram doses pequenas no início. Passavam quase que despercebidas. Imperceptivelmente absorvidas. Depois era o efeito a passar rapidamente. Tão rápido que nem mais se fazia sentir. Não... Não estou falando sobre drogas. Também não estou afirmando que não as usasse. Mas nenhuma delas poderia sequer aproximar-se do efeito que as tais lembranças surtiam em mim. Eu repassava as cenas em minha mente... Uma a uma. Confusa mente... Geralmente quando acordava. Era quando a cabeça parecia estar ainda livre do cimento que a insana realidade, no final do dia, como um fardo insustentável, incutia em minha mente. E só nos dias bons isso acontecia. Pois a dor de cabeça, normalmente, já me acompanhava desde quando levantava. Assim como a ressaca, o enjoo, a tontura... A culpa. Poesia. Herege; mundana... Mas poesia. Eu abrindo os olhos e encontrando... Ele. Os objetos, assim como as pessoas, passando como se estivessem, todos, em câmera lenta. E m c â m e r a l e n t a . Era sempre ele... Como o vento, seus dedos acariciando meus cabelos, sua voz doce reverberando em meus ouvidos junto ao som da melhor banda de rock do mundo... O telefone não parava de tocar. ... Salvando-me; resgatando-me daquele matinal momento perdido, onde eu não era eu. Onde o que eu fazia não era eu a fazer. Onde o que eu queria era nada mais querer... Nada além de estar ali, com ele... Nos braços dele novamente. Segura... 37


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Salva. Era o instante eternizado no fundo de minha mente. A fronteira final de minhas lembranças. O derradeiro território. A essência da minha alma. O meu sonho mais real. O estar sendo; tendo sido, para sempre... Perfeito. O Nirvana... A mentira. Brotavam então as cenas que se misturavam à realidade daquele sonho; como se tudo fosse um devaneio irreal; mesmo que irremediavelmente verdadeiro. Os flashes, sussurros, gemidos... Os corpos em cima do meu... Dançando como que enlouquecidos. Enlouquecida. O entra e sai lúdico, sentimentais espasmos cleptomaníacos. Roubando-me de mim mesma; assaltando-me, levando-me... Munidos apenas da arcaica sofreguidão. E desespero... Alçando um voo imaginário chegava ao fim de mais aquela noite, em silêncio profundo. E do mundo, lá de onde saltara rumo ao meu, vinha o som do telefone que me caçava e enlaçava como a um objeto sem graça, sem vida... “Fria”, um toque me dizia. Lá do fundo... Da superfície plana e macia, a me olhar de cima; superficialmente. O espelho. Encarava os olhos que me encaravam e não me viam; que enxergavam apenas a imagem despontada, com extrema apatia. “Frígida?”; “Insensível?”... Como eles ousavam acusar-me enquanto eu não apontava ninguém? Eu não recusava ninguém! Irritava-me isso... Mesmo. Queria fechar os olhos novamente. 38


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Mas eu já era refém... Tentava sair dali; daquele emaranhado de restos, noites... Daquela fartura de carnes, guimbas, sexos... Daquele vazio compulsivo e gelado. Meu corpo é que já não aceitava mais. Meus olhos, naquele amórfico pedaço de vidro, também não brilhavam mais. Minha mente, disforme, já não me refletia mais... Estava doente. Física, mental e espiritualmente. A fuga, remédio ineficaz, já não me levava adiante. Não mais. Queria atirar longe aquele maldito telefone que não parava de tocar, avisando sobre o término de mais um período... Mais um pedaço vendido. Perdido. Não conseguia achar minhas roupas, nem apoio nas paredes que me cercavam. Que conspiravam, me prendiam; delatavam... Queria era poder ir embora. O corpo tombado, vencido; o olhar a fixar-se numa cadeira vazia. Solitária como cada um ali dentro daqueles quartos, a esperar por um colo que nunca viria. Sabia muito bem disto... O gosto amargo na boca, a azia... Eu queria muito sair dali, de qualquer jeito; simplesmente levantar e caminhar. Quebrar aquele espelho. Atravessar aquela porta. Sem rumo ou plano. Mesmo sem volta. Eu só queria ir embora...

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Um Reles Traço... De: Ana Carolina <carolzinha@rothymail.com> Para: Lista Formandos <formandos2009@inhauugrupos.com.br> Cc: Bruno <bruno.salles@rothymail.com> Cco: Rotezão <rogerio.sena@vmail.com > Assunto: Contagem Regressiva!!!

Oieee... Td bem galera?! Faltam menos de dois meses para a nossa formatura!!! UH-HUUUUULLLL!!!!!!!!! Gente... Como todo mundo sabe, eu me caso daqui a dois dias. Todos vcs já receberam o convite e, pela lista de confirmação que vi ontem, a grande maioria estará lá!!! Estou muito feliz... Minha vida está parecendo um conto de fadas! Parece mais um sonho do que realidade... Estou vivendo o melhor momento de minha vida... Realizando o maior desejo que qualquer pessoa pode ter... Estou amando, e sendo amada! Mas sei também que, quando alguém está tão feliz como eu estou, acaba provocando certos sentimentos em algumas pessoas que, inexplicavelmente, passam a querer destruir, a todo custo, a felicidade de quem nunca fez nada de mal para elas. Fui na facul na terça e, como tinha o primeiro tempo vago, decidi passar na biblioteca para checar alguns e-mails e resolver algumas pendências típicas de quem está prestes a se casar... E qual não foi minha surpresa ao abrir minha caixa de msgs e me deparar com aquilo?!?

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Sei que vcs já sabem do que se trata, pois a mesma coragem que a pessoa não teve para se identificar, teve em ousadia para enviar o e-mail para (toda!) a nossa lista de formandos, criada para servir de ferramenta facilitadora para os arranjos e decisões a serem tomadas de comum acordo, em prol de nossa festa de formatura. Foi um ato covarde. Covarde, cruel e infrutífero, pois é tudo mentira! E tenho certeza — cer-te-za! — que nenhum de vcs, até mesmo os que não tenho muito contato ou muitas afinidades, acreditou em sequer uma linha daquela mensagem! Todos vcs sabem que eu nunca — nunca! — fiquei com o Rogério e, na última festa de arrecadação citada no e-mail, naquele sítio lá em Vargem Grande, eu saí logo no início, pois estava passando muito mal. Jamais poderia “ter sido vista dentro da picape dele, no estacionamento”, depois do show da banda, que só foi terminar de madrugada (!), como fiquei sabendo depois. No aniversário da Amanda, naquela boate na barra, eu sequer esbarrei com ele! Fiquei o tempo todo na mesa com o Bruno e, quando ele foi embora (pois ele acordava cedo no dia seguinte; e não por termos brigado por eu ter bebido demais, como insinua o e-mail), eu só fiquei mais um pouco para não chatear a Amanda e voltei de táxi para casa, e não de carona com o Rogério (que nem sequer vi na festa!!!). E todas; todas as demais insinuações e infundadas “provas” contra mim que o anônimo “delator da verdade” (como se auto-intitulou) escreveu, não passam de uma invejosa e frustrada tentativa de acabar com a alegria que, certamente, este desprezível ser jamais experimentou em sua deprimente vida. De minha parte, esta pessoa é digna única e exclusivamente de pena; um sentimento que consegue ser ainda pior do que a inveja que claramente domina o coração e escraviza a mente desta infeliz alma “delatora da verdade”. Por isso mesmo, não vou deixar que esta infeliz criatura estrague o mágico momento que estou vivendo e, ao

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invés de me abater, venho aqui reforçar o convite e dizer que espero encontrar todos vocês lá na igreja, quando finalmente entrarei para o time das (bem!) casadas!! Né, mozi?! (rs!) E, depois da cerimônia, quero ver todo mundo lá no clube para nos acabarmos de vez na festa!!! UH-HUUUUULLLL!!!!!!!!! Nos vemos no sábado!!! Beijinhos, Carol. __________________________________________________ Rothymail agora ainda melhor: 30MB, anti-spam e antivírus grátis!

... Este foi o e-mail que Carol mandou para todos. Todos que receberam a tal difamatória mensagem... O anônimo e covarde e-mail que foi intencionalmente copiado para todos seus colegas formandos e, também, para seu noivo. O Bruno. Agiu precipitadamente, sem dúvida. A demasiada preocupação em desmentir o que fora escrito na tal mensagem anônima certamente acabou por complicar ainda mais a situação de Carol. Pois, como se diz num famoso provérbio, quem não tem nada a dever é exatamente quem não tem nada a temer. E Carol temeu... Tudo bem que ela estava nas vésperas de seu casamento com Bruno e, talvez exatamente por isso, não podia dar-se ao luxo de permitir que mal-entendidos continuassem mal entendidos. Ela tinha mesmo que explicar tudo. Para os colegas e, principalmente, para seu noivo... 43


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O Bruno. Porém — e em toda história que se preze sempre existe um porém —, o que Carol não sabia é que Bruno nem havia lido o e-mail original. Na verdade, ele não se interessava pelas trivialidades da internet já fazia bem umas duas semanas. Só tinha olhos para a noiva; já quase esposa. E só ficara sabendo da existência do dito cujo exatamente na véspera do casamento, ao encontrar uma mensagem da amada em sua menosprezada caixa de entrada. Pensara até tratar-se de algo sobre o casamento, tão próximo e já latente. Ainda mais com aquele título... Contagem Regressiva!!! Mas, não... Era o e-mail de resposta que Carol, precipitadamente, enviara a todos da lista. Todos os que, supostamente, teriam recebido a tal difamatória mensagem; o e-mail anônimo e covarde que julgara ter sido direcionado para todos seus colegas formandos e, em cópia, também para seu noivo. O Bruno. No entanto, o fato é que... Apenas Carol recebera aquele primeiro e-mail. Até hoje não se sabe se o inominado autor confundiu-se ao preencher o cabeçalho da mensagem, ou se, descartando-se a opção de que tudo tenha sido proposital, aconteceu realmente algum tipo de falha no envio da mesma, fazendo com que, despercebida e ironicamente, apenas a própria vítima recebesse aquele revelador e incômodo e-mail. Na verdade, todos os demais endereços eletrônicos inseridos naquela amarga mensagem tinham um simples, porém importantíssimo, detalhe... Um imperceptível _underline, colocado antes do início dos nomes dos destinatários, diferenciando-os assim dos endereços de e-mail verdadeiros. 44


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Um reles traço... Linha baixa; sorrateira trilha. Exatas incertezas transbordantes de um suposto rio... O infinito devaneio de um inconsciente coletivo. Automáticas consequências de um inesperado enlaço. Se Carol tivesse conseguido vencer seu vício diário de acessar a internet e, principalmente, o impulso de reagir imediatamente àquela fatídica mensagem, ou sabe-se lá por qual outro motivo, nada do que acabou acontecendo na vida desta atormentada jovem teria acontecido. Ou melhor... Não acontecido. Tudo em decorrência daquele instintivo ato, de imprevistas implicações... Impensado traço, de irrefletidas sequelas... Pois, só o que se sabe até hoje é que rolou um ti-ti-ti e tanto no dia seguinte, na aula. E outro maior ainda quando o casamento foi adiado. Sem data marcada.

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Oito de Copas Ernesto suava sem parar diante da churrasqueira... Estava com a turma da faculdade em uma espécie de confraternização de fim de período. O sítio do colega anfitrião ficava ao lado de uma enorme pedreira e, além do calor absorvido pela gigantesca montanha de pedra durante todo aquele dia, somado ao bafo oriundo das brasas sobre as quais eram assadas as carnes, havia ainda o abrasivo efeito da meia dúzia de caipirinhas que já tinha tomado. Tudo isso, no final daquela típica tarde de verão, fazia Ernesto sentir-se realmente desconfortável. Mas, mesmo consciente de todas estas variantes, o rapaz sabia a verdadeira origem das infindáveis gotas que brotavam por toda a extensão de seu corpo; uma infinita nascente viva... Ernesto tinha um pronunciamento a fazer. Iria abandonar o curso de engenharia que já estava em reta final para, surpreendentemente, mudar de forma radical sua futura carreira. Ernesto queria graduar-se na área de humanas. Na verdade, já havia até feito a prova para ingressar na nova faculdade. Sentia uma incontrolável vontade de entender o comportamento das pessoas. Psicologia... 47


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E abriu para todos ali que a decisão tomada devia-se ao ocorrido naquele mesmo sítio; na mesma mesa de madeira que agora servia de base para os incrédulos olhares de seus amigos, que lhe fitavam num silêncio típico de quando se conhece a imutabilidade de um fato concreto. Concretamente absortos. Também fora ali, naquela mesa, após algumas latinhas sorvidas numa noite quente do verão passado, que Ernesto experimentara pela primeira vez a estranha sensação que tentava agora, um ano após, definir em palavras para seus amigos... Onisciência. Foi a única palavra encontrada. Assim como apenas um fora o número visualizado em sua mente; na forma de uma curiosa sombra a projetar-se sobre a fina parede de plástico que tinha à frente. Jogavam baralho naquela mesma mesa incrédula de agora, na qual outrora Ernesto, inacreditavelmente, concebera a imagem do número pintado do outro lado da carta. Era um oito; escuro. De paus ou espadas... Um oito negro. A carta estava apoiada de lado sobre a mesa, segura pelas mãos de uma colega de turma; hoje ausente. Mais do que ver, Ernesto, inexplicavelmente, “pré” sentira o que existia do outro lado daquela matéria... Um oito de espadas. 48


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Pensara tratar-se de algum estranho efeito etílico. Mas já no dia seguinte, durante o café da manhã, a ressaca apresentar-se-ia ainda mais poderosa, fazendo Ernesto passar toda a primeira metade daquele revelador domingo sentado sozinho diante da piscina, numa cadeira na varanda, brincando de embaralhar aquelas bizarras cartas esquecidas no canto da cozinha. Todas transparentes... E das cartas passara então a intuir os números discados nos telefones celulares dos amigos, mesmo quando virados de costas para ele. Visualizava os algarismos no mesmo ritmo de pensamento dos autores das discagens. Já lhe surgiam de forma quase natural. Sua brincadeira predileta tornara-se a adivinhação. Mandava os amigos, familiares, a futura noiva... Cada um sentar-se diante dele e, concentrando-se, pedia para pensarem em um número. Qualquer número... Ernesto adivinhava. No início, ainda restavam algumas dúvidas. Mas, seus amigos mais próximos, e principalmente sua noiva, acabaram aceitando aquele instigante fato. Ele acertava mesmo... Vez ou outra tentavam encontrar alguma falha, algum “defeito”. Sem prévio aviso, mostravam-lhe nas ruas carros desconhecidos, de ângulos pré-determinados; qualquer carro... Ele falava os números da placa. 49


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O jogo na televisão começava e era só o placar aparecer zerado pela primeira vez no canto da tela; qualquer jogo... Ele predizia o saldo de gols da partida. Rápida e faceira, Raquel — a noiva — apareceu certa ocasião com um canhoto de loteria vazio. Deixou-o, como quem não quisesse nada, em cima da mesinha de cabeceira do quarto de Ernesto, após uma intensa, voluptuosa e atípica noite de sexo. Raquel estava com um sorriso misterioso... Mas foi somente naquele momento, contando para os amigos sobre o histórico que o levara à decisão há pouco anunciada, que Ernesto atentou-se para o significado do primeiro número adivinhado naquela mesma mesa, um ano atrás. O primeiro presságio... Um explícito agouro. Um oito, oditrevni e negro. Tenebrosa alegoria. Genuíno símbolo de infinito. Infinitamente sombrio. Uma enfadonha profecia sobre seu futuro e inglório relacionamento com Raquel, colega de turma que empunhava aquela carta e por quem era apaixonado, desde o primeiro período. O representativo fiel de seu trágico noivado... Oito de espadas. Raquel por fim confirmaria aquele prognóstico, revelando sua verdadeira face. E frieza. Com oito dígitos na conta, fugiu não se sabe até hoje para onde com um ex-namorado, do tempo do colégio. Deixou para trás apenas uma negra espada fincada no coração atormentado de Ernesto, que nunca mais se utilizou do dom recebido. 50


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Sina. Ernesto agora buscava conhecer a essência humana. A beleza da alma. A mansidão. O atrativo e seguro caminho das virtudes. O ser antes do ter. A imensidade e onipotência do Amor. Ilimitável; eterno. Sim... Ainda procurava o infinito. O que Ernesto queria mesmo era encontrar um oito de Copas.

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A Conquista Era engraçado... Uma pista de dança repleta de gente, numa afamada casa noturna carioca, e ele ali, olhando para cima, para os lados... De vez em quando fixava o olhar em algum ponto da parede; nas geringonças do teto; em algum holofote... Sei lá onde. E também não sei se todo mundo reparava nisso. Nisso e em todas as outras coisas que envolviam esse cara. Na verdade, acho que era ele quem me envolvia; ele que me atraía com essa aura de mistério dele. Parecia estar sempre além... Ele era assim e ponto. Numa noite dessas, ele simplesmente fechou os olhos e dançou... Dançou por quase meia hora sem abrir os olhos. Nem uma única vez. Tenho certeza disso, pois estava bem na frente dele. Eu já estava naquele estágio de “tenho que descobrir o que é que esse cara tem...”, entende? Eu tinha que saber por que ele era tão diferente. Por que ele chamava tanto a minha atenção? O que ele ligava em mim, que me deixava totalmente ligada nele... Era estranho. 53


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O cara podia reparar no parafuso à mostra de uma caixa de som, num canto qualquer da pista, e ficar absorvendo o fato como um colecionador a degustar um vinho, mas era incapaz de perceber que a pessoa em frente — bem na frente! — não tirava os olhos dele. Chegava, conversava com os conhecidos, brincava; ria com as amigas — como eu as odiava! —, dançava; esbaldava-se na pista. E eu ali, seguindo-o pela boate toda. Depois ele simplesmente ia embora. Este era outro ponto. Sempre ia embora antes do fim. Tinha disso, também... Ele nunca ficava até o final. Esta era outra característica deste ser. Outra particularidade desse verdadeiro emblema que apareceu certa noite na minha vida e que nunca mais me deixou em paz, forçando-me a procurar descobrir tudo que podia sobre ele. Não que ele fosse um deus grego. Na verdade estava longe disso. Mas, como já disse, ele era diferente. Tinha alguma coisa nele... Alguma coisa especial. Algo que o tornava único. Alguma coisa que me fez fazer tudo o que fiz. Eu não ia mais para as outras pistas; passava a noite inteira na que ele gostava de ficar. Sabia os dias que ele costumava aparecer por lá e também os que ele jamais apareceria... Já sabia quais eram as bandas prediletas dele; os DJ’s que ele mais gostava; os tipos de garotas que chamavam a atenção dele... As festas que ele frequentava; os malucos que ele conhecia; as camisas que ele mais usava; o carro dele... Orkut, Fotolog, Myspace, Facebook... 54


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Cada dia era uma descoberta nova; uma outra prova. Um novo e excitante desafio. Eu não me interessava por mais nada. Nada nem ninguém que não tivesse algum tipo de ligação com ele. E, de certa forma, comecei a cuidar um pouco mais de mim, também. Parei de fumar, pois ele detestava fumaça de cigarro; bebida alcoólica então... Portanto, mantinha-me também sóbria durante toda a noite. Enfim... Descobria e vivenciava as maravilhas escondidas na difícil tarefa de se investigar — a fundo! — alguém. Alguém como ele, é claro... Alguém com o poder de ditar mudanças em meu comportamento que iam além de quando estava em sua presença. Ele influenciava também as minhas escolhas do dia a dia. Eu ainda nem sabia, mas já tinha começado a minha mutação... Tanto é que, depois de alguns meses, eu fui reparar que não havia ficado com ninguém. Ninguém, mesmo! Quer dizer, eu nem me toquei disso, né... Minhas amigas é que repararam. Logo eu... E confesso que fiquei surpresa ao me dar conta da realidade. Estava realmente diferente. Tinha uma amiga minha, a mais doidinha de todas, que não tardou em juntar os fatos. Sabia que eu estava interessada por alguém. Veio com o papo de que eu andava estranha; que estava preocupada comigo... Disse que eu podia contar com ela para o que precisasse. Mas o fato é que eu estava mesmo diferente. Eu agia diferente. Eu via as coisas de forma diferente e, mais cedo ou mais tarde, o motivo disso tudo viria à tona de vez... 55


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Cedo ou tarde, meu segredo seria revelado. E, como se já não bastasse a situação na qual eu estava, a fulana ainda resolveu me pedir ajuda para chegar num cara que ela estava de olho já há algum tempo. Não preciso nem falar quem era, né...? O próprio. Entretanto, foi engraçado no início... Eu vi ali uma situação onde eu poderia, finalmente, resolver um impasse que se estendia muito além de minha compreensão... Parecia inacreditável, mas eu ainda não havia trocado sequer uma simples palavra com ele. Nem uminha... E eu tinha certeza que ele não se interessaria por ela, pois já me considerava conhecedora dos gostos dele também. Afinal, eram meses de vigilância intensa... Seria a tão esperada chance de me comunicar com ele. E, nada melhor do que tentar apresentar-lhe uma amiga. Uma pessoa nada a ver... Seria perfeito! Eu ainda sairia por cima. Mas... Sim. Eles ficaram. Ficaram já ali, na primeira vez. E eu nem precisei entrar na jogada. A fulaninha foi direta. Rápida e certeira. Não me deu nem tempo de absorver o acontecimento. O inusitado episódio. 56


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Os dois ali, no sofá do segundo andar, se beijando como se tivessem sede. Muita sede. A ficha não caiu, sabe...? Só mais tarde. E então desabei. Não entendia o porquê daquilo; por que eles haviam ficado... A depressão rolando solta. Consumindo meu sono, minhas vontades... Parei com tudo. Inclusive com o que havia parado. Fumava que nem uma louca; comia como uma vaca e me vestia da pior forma possível. Achei-me a pior das criaturas. O ser humano mais rejeitado dentre todos os viventes; e até em morte confesso que pensei. Parece bobeira; exagero... Mas pensei mesmo em desistir de tudo. Não sei nem como foi que não fiz coisa pior, mas tudo que fazia era visando a minha própria destruição. Queria desintegrar, sumir, desaparecer da face da terra. Enfim... Na minha angustiada mente, eu já fantasiava até o casamento deles. Os dois tinham se dado tão bem... E eu sabia que ela estava fazendo tudo aquilo só para me atingir. E me acertou mesmo em cheio. Até que numa noite — após várias semanas de sofrido isolamento —, resolvi testemunhar de longe a alegria daquele casal ridículo que não parava de se agarrar no meio da pista. Comecei a beber e a beber mais e mais... Passei tanto da conta que a última coisa que lembro ter feito foi tão vergonhosa que nem tenho coragem de contar... E isso sem falar das coisas que eu fiz e não tenho a mínima lembrança. 57


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Se valeu a pena? Não sei... Mas faria tudo de novo. Na verdade, quase tudo. Pois, se tivesse escolha; se pudesse realmente decidir entre o que sentir e o que não sentir... Se tivesse algum mísero controle sobre o meu coração... Eu jamais teria me apaixonado por ele. Todavia... De tudo o que fiz; tudo o que fiquei sabendo depois sobre aquela fatídica noite... A bebedeira, o escândalo, o mico... Tudo o que aconteceu... O mais importante, o mais marcante... O mais terrível e ao mesmo tempo o mais maravilhoso de tudo... Foi que eu saí de lá nos braços dele.

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Valeu, tio! Entrou no ônibus após uma pequena corrida. Não queria perder a oportunidade que o sinal de trânsito fechado lhe oferecia. Já na roleta, percebeu o missionário que, na forma de vendedor de cocadas, bradava como de costume sua história de conversão aos passageiros. Em meio ao testemunho proclamado no interior daquele coletivo, o recém-chegado passageiro caminhou pelo centro do longo veículo a conferir o troco recebido. Não vira o rosto da trocadora, nem do entusiasmado convertido, assim como o da maioria dos trabalhadores que, após mais um extenso dia, voltavam para suas casas através daquele popular meio de transporte. Não havia bancos vagos totalmente, apenas um lugar aqui, outro ali, sempre ao lado de algum outro alguém sem rosto e que, para seu desgosto, não muito espaço ofereciam para ele e sua enorme sacola de doces. Sim. Da mesma forma que o vendedor de cocadas, também ele, o recém-chegado passageiro, carregava guloseimas. Não portava uma cesta, como o prolixo missionário, mas segurava as alças de uma vultosa bolsa plástica, repleta de chocolates, balas, bombons e outras iguarias. Estas não eram para vender, ao custo da solidariedade alheia, em prol dos irmãos atendidos pela casa onde e ex-dependente 59


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químico declarava trabalhar; mas sim para o seu próprio consumo. No centro da cidade existia uma enorme casa de doces, que vendia em médias quantidades a preço de atacado. O recém-chegado passageiro abastecera-se lá. Sua cota mensal de glicose. Era início de mês e, com o salário recebido no bolso, dera início ao costumeiro estoque. Sentou-se ao final do coletivo; no penúltimo banco, pois visualizara um espaço no fundo do ônibus onde descobrira não haver ninguém ao lado, possibilitando-o assim começar a saborosa degustação. Mas, ao aproximar-se, percebera o motivo daquele inusitado vazio, a ele oferecido em plena hora do rush. Havia um menino de rua deitado sobre o último assento, ocupando o lugar destinado originalmente para duas ou três pessoas. Descalço, maltrapilho e sujo, o dimenor também portava um saco plástico, só que o detinha na altura da boca, pressionado em sua abertura por um par de mãos trêmulas, ainda sob efeito do alucinógeno vapor. O rosto daquela criança em êxtase, retrato cruel da realidade urbana, foi a primeira e única feição avistada pelo homem dentro do coletivo. Torpor infantil. Contraste. Asco. Então, após entreabrir somente um dos olhos, o menino foi diretamente atraído pela transparência da sacola plástica carregada pelo recém-chegado passageiro; o único a sentar-se próximo a ele. 60


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Levantou-se com dificuldade e, no resto de inocência que a brutalidade desumana daquela grande cidade ainda lhe permitia experimentar, estendeu os braços na direção da sacola, numa mistura de sonho e realidade. “Valeu, tio!”, disse o moleque com o esboço de um tenro sorriso nos lábios marcados de cola. “Valeu, tio!” Mais ainda do que o sorriso, ficou marcada na mente do recém-chegado passageiro aquela frase. Alegre. Aliviada. Feliz. Uma simples e pequenina frase. Uma meia sentença. Muito mais rica em sua exclamação. Uma pequena pausa em meio a uma meia vida. Sem sua sacola de doces, o passageiro agora não mais era um recém-chegado. Estabelecera contato direto com a plenitude de sentido coletivo. E único. Desfizera-se de sua máscara, seu muro, sua redoma de vidro temperado. Temperança. Tocado pelas mãos daquela criança, sujas pelo mesmo cimento do intransponível muro agora derrubado, o passageiro já havia feito o verdadeiro percurso. O caminho precursor de todos os trajetos. Concretos acessos. Pela janela avistava o invisível. Marquises, pontes, viadutos... A cidade estava toda lá fora. Viva. Reflexos convexos de encontro a um complexo coletivo. Cidade. A rima na mente, incoerente, querendo conversa. E se tudo tivesse sido diferente para ele? E se, nessa idade... E se? 61


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Cidade. O doce sentido das palavras, degustado em forma de poesia. O abrupto encontro de realidades perdidas. Perdidas em meio a um insustentável sentido. Idas e vindas. A pressa. O medo. O egoísmo e a falsa sensação de impotência. Desculpas de culpas cabíveis. Reflexa ação do pensar coletivamente. Ônus. Ônibus. O resto do percurso foi feito em silêncio. Tudo diferente do normal. O vendedor de cocadas desceu; alguns outros passageiros desceram. O coletivo flutuando sobre as trilhas perdidas de uma tarde em despedida. Só havia aquele rosto agora. E aquela frase... “Valeu, tio!” E aquele sorriso infantil.

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Obra da Destino Cidade

O

por Ricardo Gnecco Falco, free lancer.

respeitado Sr. Amor de Facto Albuquerque e sua esposa, dona Felicidade Plehn Albuquerque, grávida de seis meses, foram vítimas de um sangrento acidente nesta madrugada na avenida Destino, altura do Insensatez Shopping Center. Os bombeiros (quartel Samaritano) afirmaram que são comuns chamados para socorrerem vítimas de acidentes naquela área. Testemunhas da tragédia disseram que tudo aconteceu muito rápido, devido a uma obra na pista, mal sinalizada. O veículo, um importado preto (placa R&V 1994), que vinha correndo muito, bateu em um trator de fabricação árabe, da companhia Fathá Lidhad e capotou. O casal, gravemente ferido, foi levado para o Hospital da Esperança, em Santa Fé. Amor não resistiu aos ferimentos e teve uma parada cardíaca, ainda na ambulância.

Ao chegar ao hospital, Felicidade entrou em trabalho de parto e deu à luz uma menina. O bebê prematuro foi levado imediatamente para a UTI e tornou-se órfão aos dez minutos de vida. Lembrança, irmã de Felicidade e agora responsável pela criança, chegou ao hospital pela manhã e entrou em estado de choque ao ser notificada dos óbitos pelo doutor Tempo de Castro, que terminava seu plantão. Por volta do meio-dia, à base de fortes calmantes, Lembrança subiu até a Unidade de Tratamento Intensivo do Esperança e foi informada que o bebê não corria mais risco de morte. À tarde, ainda muito abalada, disse que iria manter o nome planejado para a criança, em homenagem à irmã. Saudade, que por apenas alguns instantes conheceu Felicidade, é a cara do Amor e será batizada no próprio hospital, assim que sair da incubadora.

com exclusividade para o jornal “O VIGILANTE”

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O Regresso

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* Fonte: G1 – Planeta Bizarro (http://g1.globo.com/planeta-bizarro/noticia/2010/09/livro-e-devolvido-com-35-anos-de-atraso-nos-eua.html)

Quando a página finalmente desprendeu-se da lombada do livro, já tinham se passado trinta e cinco anos. Trinta e cinco anos de uma luta que, agora, realmente comprovava-se em vão. A lei da Física vencera. A gravidade, por último, mostrara-se mais forte. Mas foram anos também de intenso aprendizado; de imensa aceitação e — Por que não? — de indiscutível regozijo. Voando pela imensidão daqueles intermináveis segundos, num inigualável sentimento de liberdade e missão, a amarelada folha pousara exatamente à frente de João. E, do infinito inatingível contido naquela esquecida página, pôde então a envelhecida tinta chamar-lhe a atenção. Era a data de seu aniversário. Doze de setembro de mil novecentos e setenta e cinco. O exato dia, mês e ano de seu nascimento. E, pela primeira vez em toda a sua vida, João teve a certeza da hora exata de seu natalício: dez e dezessete da manhã. Não poderia ser diferente. O tiro fora perfeito. Seria uma excepcional chance; uma extraordinária ocasião. Um momento insólito; único. Nem ontem, nem amanhã e nem em nenhum outro instante o impacto daquela coincidência surtiria o efeito desesperadamente — foram trinta e cinco anos! — desejado. 65


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Aquela folha continha a senha mágica que viria a se tornar o tão esperado ingresso para a viagem de volta à origem. De ambos: livro e homem. Regresso. Ao encontrar a esquecida publicação de onde a velha folha desprendera-se, lá do alto da estante, João finalmente compreendeu a lição. Preso a fotografias, cartas, selos e memórias impróprias, chegava ao final de um longo e revolto ciclo. Órfão após poucos minutos de seu nascimento, João passara a vida inteira culpando-se pela morte da mãe, cuja falta sentia em cada segundo de sua triste e vazia existência. Mas aquele livro; aquele velho e empoeirado livro, trazia muito mais do que a exata data de seu nascimento estampada na forma de um carimbo. Aquele livro trazia-lhe a paz. A cura. A liberdade. Ninguém entenderia a origem do belo e intenso sorriso no rosto do rapaz, diante do balcão de entrega, pouco tempo depois. A nova gerente da biblioteca preocupava-se mais em chegar ao valor aproximado da dívida a ser paga. Um verdadeiro absurdo! Do tamanho do descaso que aquele antigo carimbo delatava... Ligou para a diretora da instituição que, de imediato, desceu até o térreo para averiguar a veracidade do inusitado fato. Uma senhora já idosa, mas de aparência dócil e sábia, adquirida ao longo de décadas e décadas de vida. Boa parte destas, por sinal, dedicadas ao serviço naquela biblioteca, sua verdadeira paixão. 66


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E, nestes anos todos, não se lembrava de ter visto algum caso sequer parecido com aquele. Na verdade, já não se recordava de muitas coisas... Mas, engraçado, ao olhar para o enorme e brilhante sorriso no rosto daquele rapaz, podia jurar que já o tinha visto antes, na face de uma bela e radiante jovem, que entrara em trabalho de parto bem ali, na frente daquele balcão. Trinta e cinco anos atrás.

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Castelo de Areia Dentre todas as coincidências, aquela era a mais comum. Encontrar Luzia ali, em meio a tantas outras pessoas, não era assim tão inesperado. Era um dia de Sol, a praia estava lotada e ela sempre gostara de Sol e de praia. Conhecer o Rio de Janeiro sempre estivera em seus planos e, nesta época do ano, certamente aproveitava as férias para realizar tão antigo desejo. Mais este desejo. Reconhecera Luzia em meio às meninas que formavam uma roda na areia. Era a mais branca do grupo; mais até do que a areia. O contraste da pele com as longas e negras mechas de seu cabelo lhe dava um destaque todo especial. Um brilho. Luzia era especial. Sentou-se ao lado dela, como se ali fosse o destino de todos os passos que já dera na vida. Permaneceram calados; ambos. O vento movia lentamente as poucas nuvens no azulado céu e acariciava de modo intrínseco os pensamentos perdidos ali. Lembrou-se da primeira vez que a vira nua. Inquietante miragem em meio ao devaneio etílico. O andar de cima da casa vazio, cada vez mais e mais distante da festa. O batuque eletrônico em sua exata ruptura ao fechar da porta. O verde mar convidativo daquele inesquecível olhar. 69


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A ilha que trazia o horizonte para perto da praia. Um vendedor de sorvetes tentava atrair a atenção do grupo com seus urros de praxe. Ver Luzia novamente lhe fazia delirar. Sentado ao lado dela, então, difícil acreditar... Queria poder gritar. Congelar aquele instante. Derreter aquele gelo gigante. Relembrar os momentos vividos; os incontáveis sorrisos perdidos. Refazer uma trajetória retórica, ensandecida. Retorcer o aço dos traços contidos no peito. Sonhar a respeito. Perder por direito o acesso ao descaso. Reter o fio da navalha que lhe inflamava a alma e ardia. Voltar para casa no rastro da espuma das ondas, tardias. Sua fortaleza... Castelo de areia. Ela, sereia, irretocável. Ele, ser ele, irrevogável. Em busca de perguntas, não respostas. Ter nas mangas as cartas dela. Reviver a vívida vida não vivida junto dela. Deter nas mãos os nãos dela. Ser forte o suficiente para ela. Por ela. Às vezes sentir saudades, outras vontades. Algumas meninas se levantaram, indo na direção do mar. Entre elas, Luzia. Das poucas que ficaram, apenas duas lhe fitaram. Quem era e o que fazia ali, perguntaram. Não sabiam da história de Luzia; não a viam. Nada havia. Não sabiam de nada...

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LITERATIVIDADES

Apreço O cargo era o mais difícil de definir. Falava a empresa, o local de trabalho, tamanho da sala, benefícios... Mas, quando revelava o valor do salário, era inevitável a pergunta sobre o emprego. Afinal, por mais famosa, gigantesca e importante que fosse a corporação na qual trabalhava, ninguém poderia receber uma soma como a que ele dizia ganhar por mês. E olha que ainda mentia para menos; bem menos... Contudo, recebendo um valor tão vistoso e superior aos maiores ordenados de cargo público de seu país, como os de juízes do Supremo, desembargadores; a remuneração do próprio presidente da República... Era mesmo impossível não causar tamanha surpresa. E nem revelava o salário, mesmo a menor, para qualquer um. Somente alguns poucos familiares e amigos mais próximos. Nem sua esposa conhecia a quantia correta, embora não precisasse se preocupar com isso, pois como era de se esperar, não lhe faltava nenhum bem, qualquer bem, que quisesse ter. E nunca na vida pensara que um dia, qualquer dia, fosse usufruir de tanta fartura. Mas, nem tudo tinha preço. 71


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Este era o caso do trabalho dele. Simplesmente, não tinha preço. Fazia-o porque gostava e porque ninguém mais no país inteiro, ou qualquer outro país, o exercia tão bem quanto ele. Era algo como um dom, uma dádiva recebida sabe-se lá de onde ou de quem. Um poder que somente ele, e ninguém mais, possuía. Ele era único. Trabalhava com publicidade. Mas, não era publicitário. De fato, nunca sequer produziu qualquer peça publicitária. Nenhuma campanha, nenhum anúncio... Nada. Mas trabalhava, diariamente, com propaganda(s). Todas. Via de regra, com as maiores e mais caras marcas. Tinha contato direto com os melhores profissionais da área. Conhecia e era reconhecido à distância pelos mais renomados marqueteiros do planeta. Na verdade, era disputado a tapa por todos eles. Transformou-se, em muito pouco tempo, em um mito. Já tinha gente que até desconfiava de sua existência. Mas ele existia; estava lá. Trabalhava naquela megaempresa de televisão que parecia mesmo tentar desviar todo e qualquer alarde sobre a sua pessoa e, principalmente, sobre a função que ele desempenhava ali. Virou objeto de estudo e havia até uma equipe contratada para, simplesmente, acompanha-lo no dia a dia, com a secreta função de analisar seu trabalho; tentar entender as escolhas e decisões que tomava. Era, definitivamente, um mestre. 72


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Tinha curso superior, é claro, mas em outra área, completamente diferente da que ocupava ali. Tornara-se a maior referência da atualidade no ramo, sem sequer ter feito um único curso com aquela especificação. Era formado em música. Música clássica. Tocava peças musicais dificílimas já aos sete anos de idade, debruçado sobre o piano velho da tia-avó, herança de família. Um piano que nenhum ente querido queria guardar. Um elefante branco no meio da sala e que ninguém gostava, ou se interessava. Somente ele. Apreço. Então, aos vinte e três, a ruptura de seus maiores sonhos... Um acidente de carro no carnaval o obrigara a uma dolorosa estadia no CTI de um hospital. Vários meses. Vários ossos quebrados, principalmente nas mãos e braços. E vários membros da família a menos. O sonho de ser músico levado juntamente do pai, mãe e irmãos naquele fatídico cruzamento. Recomeçou do zero. Reaprendeu a andar, falar, pegar... Até a sorrir novamente, com a chegada de Mariana em sua vida, pouco tempo depois; ao lado de quem estaria no altar, maternidade e ao final de cada novo e belo dia de vida. Só não deu mesmo para voltar a tocar. Mas, como diz o ditado, quando uma janela se fecha, portas se abrem. E Paulo nem percebeu ao entrar no mundo que hoje tão bem lhe faz. E que tão bem o faz, também. Começou meio sem querer, ao sugerir a um amigo, que trabalhava em uma agência, que alterasse a ordem de exibição de um anúncio, veiculado na televisão. 73


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Tal anúncio aparecia sempre após outro, que terminava de uma forma que o incomodava, pois não só apagava a ideia da primeira propaganda, que deveria ficar na cabeça do público, como também revertia a mesma, afastando o consumidor do produto, ao invés de aproximar. Tudo por causa de uma simples questão de arranjo. “O compasso está errado”, dizia ao amigo, que se interessou pela sugestão e, ao atentar-se para as demais colocações recebidas, vislumbrou algo ali que até então jamais enxergara. Nem ele, e nem ninguém que conhecia. Era uma ideia totalmente nova, um novo conceito. Algo que, embora óbvio, seria inovador. A quebra de um paradigma. E assim foi contratado. Pela primeira vez na vida, entrou em uma agência de propaganda. Foi apresentado pelo amigo aos profissionais da área responsável pelo fechamento dos contratos com as mídias e, também pela primeira vez, um contrato foi firmado com algumas poucas e até então estranhas cláusulas a mais. E que mudariam por completo não apenas sua vida... Mas também todo o modus operandi da publicidade contemporânea. A agência do amigo tornou-se pequena e os convites de trabalho começaram a chover de diversos segmentos do mercado. Empresas privadas, grandes organizações corporativas, indústrias, conglomerados multinacionais, redes de comunicação... Até chegar ao cargo e empresa atuais. 74


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Ele orquestrava, de modo espontâneo, natural e subliminar, a ordem dos anúncios pagos pelas patrocinadoras para irem ao ar. Rarefeito naquela emissora, diga-se de passagem. Cortava alguns, repetia outros, misturava partes, sons... Silenciava imagens. Floreava tons, semitons. Fazia arte sobre a arte com total liberdade e domínio. Incomparável. Montava um caminho na apresentação ao público das peças que, ao final do intervalo, juntamente de sua massiva exposição, deslumbravam cada vez mais e mais consumidores e, consequentemente, anunciantes. Estupefatos. Conforme constatado por especialistas, as mesmas peças publicitárias, em outros canais e redes televisivas, não surtiam o mesmo efeito, o mesmo impacto nos sentimentos do público, que causavam ao serem apresentadas, após seu arranjo, na emissora onde trabalhava. Era, realmente, um dom. Sua função, oficializada na tabela de cargos e salários da empresa, para estranhamento de todos os que tinham acesso às informações sigilosas da corporação ou aos holerites, estava assim definida: “Maestro”.

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O Sorriso da Lua Era mesmo como um fiapo branco. Curvilíneo, ligando as duas pontas de um infinito negro. Um risco torto de claridade numa lousa insana e triste. Não havia estrelas, fixas ou cadentes. Só a antagonia visceral de um breu sobrecarregado pela luz. O rosto astuto do céu mirando-me em brilho. Senti a ameaça em cada poro da pele, arrepiada pela brisa noturna. O ressoar oculto de um deserto sábio e incerto, trazendo-me a única certeza comum aos viventes de toda a Humanidade. Clara como a Lua. O despertar de outrora estava lá fora agora, dormindo. Dentro da caixa de madeira repleta de flores restavam apenas os sonhos. Já em processo de decomposição. Encarei então, finalmente, o suave sorriso que me chamava; clamava... Sereno. O gracejo da Lua. Ri. De verdade. Do fundo de minhas vontades. Sorri com a própria alma, liberta de iniquidade. E, naquele exato instante, revivendo o momento instigante, lembrei-me da frase infante. A Lua está parecendo um sorriso. 77


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Dita no banco de trás do carro. Instantes antes... O assunto era outro, completamente diferente. Nada a ver. Nada a ver com a Lua. Com a beleza da Lua que só ele via. E que espalhar queria. Tudo a ver e ninguém via. Só ele. A frase pairou no interior do veículo como um risco sobre a imensidão mortal, padecendo de atenção. Um pequeno silêncio, reverberando-se antes do eterno calar. Captada, é claro, primeiramente, por seu sensível radar. Ecoou na mente de todos ali. Preencheu de silêncio a desconexa correria do dia a dia. Reverteu a agitação mental oriunda dos cosmopolitas estímulos para a transcendental meditação cósmica. A Lua. Tanta pressa para percorrer os caminhos e tanta animosidade ao chegar ao fim. Tanto tempo perdido em discursos, em vãs tentativas de firmar-se, para ao final só restar a inércia. E a impossibilidade da despedida. Quantas palavras, frases, gestos... Quando, ao cabo, é a silenciosa lembrança dos momentos singelos a ficar. E o sorriso. No luar.

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LITERATIVIDADES

Delirium Tropicalis Avistara a mesa recém-liberada do outro lado do salão. O restaurante estava lotado. O centro da cidade estava lotado. O metrô, pela manhã, lotado. As calçadas, já na hora do almoço, lotadas. A galeria, o elevador... Provavelmente, lembrou-se das pilhas de relatórios que lotavam sua sala, em algum prédio próximo àquela rua, também lotada. Correu. Aquele seria possivelmente o único momento somente dele no dia e, driblando as bolsas dependuradas nas costas das cadeiras, percorreu com desenvoltura o labirinto formado entre as mesas lotadas de clientes famintos. Gente como ele. Executivos, consultores, empresários... E, sem parcimônia, se jogou à frente das duas estupefatas moças que já se preparavam para a posse daquele almejado pedaço de madeira. Praticamente delas. Duas jovens secretárias, uma delas visivelmente grávida, e que há bastante tempo esperavam o longo final da degustação que o casal anteriormente ali sentado teimara em empreender, descompassivo ao extremo. Cercaram a área ao redor do disputado altar que exaltavam em silêncio com os olhos e, então... Aquilo. Uma verdadeira invasão bárbara. 79


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O rapaz traçara uma rota inimaginável por entre as apertadas mesas do estabelecimento, atingindo, com maestria, o solo no qual fincara sua bandeja contendo o prato de salada, talheres e a garrafinha de mate natural. Da casa. Nada nem ninguém ali conseguiria ser mais cruel, insensível e maquiavélico do que ele. As coitadas das moças, indefesas, de bandejas nas mãos e incredulidade nos rostos, não puderam contar sequer com os olhares possivelmente recriminadores das pessoas em volta. Mesmo carcadas por tanta gente, as duas tornaram-se vítimas passivas de um crime sem testemunhas, ou registro. Praticamente, ninguém viu ou percebeu o desenrolar daquela cena; daquela manobra asquerosa, covarde. Uma perfeita jogada de mestre. Mesmo que trapaceiro, cruel, insensível... Mas sim, um mestre. O rapaz parecia realmente nem se incomodar com o ato que cometera. Como se “se dar bem” fosse o lema de sua vida e um glorioso destino pertencesse indubitavelmente aos mais espertos, como certamente ele se julgava. Demostrava, de fato, estar orgulhoso de si e de suas atitudes. Desdém. Mas, mesmo do alto de sua aparente prepotência, não percebera a senhora que o observava de longe. Na verdade, quase ninguém notou a mulher sentada do outro lado do salão, na ponta oposta ao local do ocorrido. Uma senhora muito estranha. 80


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Aparentando sabe-se lá qual idade, levantou-se calmamente. Pegou sua bandeja com o prato já vazio e, arrastando sua longa saia, caminhou, da mesma maneira que se erguera, até as duas moças, ainda paradas, de pé, no centro do salão, à procura de algum lugar onde pudessem, finalmente, agora apenas deglutir o conteúdo já gelado de seus pratos. Mostrou-lhes a mesa estranhamente ainda vazia de onde saíra e, na sequência, terminou seu trajeto bem ao lado do jovem executivo, entretido com sua comida saudável. Então, no exato momento em que as duas mulheres, enfim, arrumavam-se na outra mesa, no extremo oposto do salão, ela sentou-se calmamente diante dele. Uma senhora de feições oblíquas. Não conseguiu entender sequer uma das várias palavras que a velha proferiu, pois com o restaurante lotado, em plena hora do almoço no centro da cidade, o barulho estava uma loucura. Parecia outra língua. Talvez Latim; ou algum dialeto há muito esquecido. O fato é que o tom ameno com que foram ditas estas palavras contrastava e muito com o brilho que recebia daquele par de olhos sinistros, fixados nos seus como lanças afiadas. Mumificados. Perdeu a fome. A noção do tempo e espaço. As batidas do coração, audição, tato. Até a cor. À noite, sonhou com aquela figura estranha e com o som tenebroso daquelas palavras repletas de significados desconhecidos. Ficou algumas semanas sem aparecer novamente naquele estabelecimento. 81


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Quando deu as caras finalmente por lá, estava bem diferente. Mais magro, abatido, com olheiras gigantescas e um olhar desesperador. Tenso, ao extremo. Mas, ao avistar o conhecido salão completamente lotado, pareceu formar-se um micro sorriso no canto de sua boca. Correu no instante em que percebeu uma mesa a vagar. Sentou-se, com muita pressa. Comia tão rápido que as pessoas em volta chegavam a comentar. Entre uma garfada e outra, olhava em todas as direções, como se um perigo iminente pudesse surgir de qualquer parte, num ângulo de 360 graus naquele salão. Atormentado. Talvez por causa de seu agir nervoso, o grupo da mesa ao lado terminou rapidamente a rodada de sobremesa e não tardou em levantar. Mal as pessoas retiraram as bandejas da mesa, o bem vestido rapaz praticamente saltou de onde estava, ainda mastigando alguma coisa, para cima dela. Afoito. E a manobra repetiu-se por diversas vezes, aumentando gradativamente o mal-estar que acabou tomando conta de todo o salão. Várias pessoas deixaram o restaurante às pressas e muitos clientes abandonaram seus pratos ainda não terminados. Assustados com aquilo. O homem não conseguia mais ficar parado em uma mesa só. A única exceção era se todas as demais estivessem lotadas. 82


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Se alguma vagasse, mesmo que do outro lado do salão, ele levantava e saía correndo, desesperado, com a bandeja na mão, até alcançar esta nova mesa liberada e nela arranjar-se. Podia estar no meio de uma garfada, ou acabado de sentar-se, o que fosse... Ele era impelido sempre a pular para a próxima mesa que vagasse. Isto lhe causara um estado de nervos tão desconcertante que em suas feições podia-se ver uma angústia profunda. O oposto do que fora visto naquela vez, semanas atrás, quando ele parecia feliz com o seu “feito”; como se estivesse mesmo contente pela pernada que conseguira dar naquelas duas coitadas, roubando-lhes a mesa e rapidamente acomodando-se, em meio a um restaurante lotado. Satisfação. Diferentemente de agora, pois a amarga expressão no rosto deste aflito rapaz denotava extremo cansaço. Era como se fosse obrigado a fazer aquilo. Como se agisse daquela forma estranha, involuntariamente. Um cacoete desesperador. Uma sina. Ou praga. Pois sua até então confortável vida virara do avesso no exato instante em que cruzara com aquela intrigante senhora... Esta sim, aterrorizante. E nunca mais a vira novamente. Passara a tomar diversos remédios, a maioria com tarjas pretas. Mas, sentia-se diferente. Ele havia mudado. 83


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Outro dia, no metrô, na volta para casa, teve os pensamentos interrompidos pela movimentação dentro do coletivo lotado que, ao parar em uma das estações, acolheu mais alguns viajantes. Dentre eles, uma moça, grávida, de aparência cansada. Para quem, de imediato, fez questão de ceder seu lugar...

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Olho Vivo Aos dezessete anos teve uma experiência que mudaria por completo a vida dele. Estava sentado num destes bancos de praça quando, no meio da conversa que tinha com seu melhor amigo na época, apareceu aquele cara. Desconhecido. Deu boa noite, trocou algumas palavras para quebrar o clima e, depois, calou-se. Incomodado, Osíris se questionava interiormente sobre as intenções daquela pessoa que se achegara sem ser convidada. Prosseguiu na conversa com o amigo, embora se mantivesse atento às reações do intruso. Acendeu um cigarro. Sempre com o canto do olho a observar aquele estranho, sentado no banco em frente ao deles. Calado. Bebiam uma mistura de refrigerante com Vodka, numa garrafa de dois litros que os acompanhara durante toda a noite. Depois, até se questionou sobre este fato, mas acabou chegando a um ponto que não dava mais para refugiar-se nesta fácil desculpa alcoólica. Parece mesmo... 85


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Foi a frase que ouviu, logo após pensar que a fumaça tragada do cigarro, e que então soltava, parecia não ter fim. Pois, até terminar o fôlego, a névoa branca que saía de sua boca não findara. Estava frio. A fumaça do cigarro misturava-se com a que era gerada pela diferença de temperatura entre o ar que expelia de seus pulmões, mais quente, e a que pairava ao redor deles, naquele início de madrugada de inverno. Parecia mesmo não ter fim. Olhou para o estranho, que permanecia imóvel. Na mesma posição que estabelecera já havia um bom tempo. Sentado no encosto do banco de madeira, com os pés apoiados sobre a base do assento. Osíris levantou-se e, ainda de frente para o estranho — cada vez mais estranho —, subiu para três o número de questionamentos que até então pensava deter somente em sua mente. Havia ele pensado em voz alta sobre a impressão que tivera, a respeito da fumaça do cigarro que expelia pela boca parecer não ter fim? Primeiro questionamento. O estranho tinha mesmo dito aquela frase que ele pensara ter escutado como resposta ao seu pensamento, mesmo sem perceber nenhum movimento na boca do “dito” cujo? Segundo. 86


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Estava ele bêbado demais por causa da vodka misturada com o refrigerante que compartilhava com o amigo? Terceiro e último questionamento. Na dúvida, Osíris decidiu dar por terminada aquela noitada. Estranha noitada. Despediu-se do amigo e do estranho — que agora o encarava com um também soturno sorriso nos lábios — e partiu para a casa da mãe. Game over. Numa outra ocasião, muito pouco tempo depois, viu-se ele cercado por desconhecidos que, também, de uma hora para outra, sabiam tudo o que ele pensava. Simples assim. Foi numa festa na casa do namorado de uma amiga da irmã de um amigo dele. Osíris bebeu de tudo e também participou de tudo o que rolou naquele festejo. Festa estranha; com gente esquisita... Lá pelas tantas da madrugada, estava ele compondo uma rodinha em um dos quartos da casa onde acontecia a tal folia. Já havia percebido o clima diferente que se formara ali dentro, ao fechar da porta. Na terceira ou quarta rodada, Osíris compreendeu o imperceptível até então. O vulto. Uma sombra que parecia alternar-se entre os três demais integrantes da roda, como se o trio compusesse um único ser; uma múltipla unidade. Uma colmeia humana onde todas as operárias compartilhavam do mesmo poder. Um elo mental. 87


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Osíris percebeu que o indivíduo para onde o vulto arremetesse adquiria uma feição sombria; um brilho diferente no olhar, e que passava a encará-lo desafiadoramente. Um olhar que se revelava ciente do que existia dentro de seus pensamentos. Sua mente era lida... Literal mente. As únicas frases ditas pelos operários daquela estranha colmeia eram as respostas às perguntas não pronunciadas por Osíris, como provas de que realmente conseguiam “escutar” os seus pensamentos. E o intuito era mesmo seduzir Osíris com aquele não mais suposto poder. Queriam que ele se juntasse à colmeia; que, por livre e espontânea pressão, ele optasse por compartilhar daquele estranho mel. Fel. Um pouco mais arredio e cuidadoso, Osíris passou não somente a acreditar, mas principalmente a aceitar o conhecimento adquirido na prática sobre as muito mais coisas que, como avisava o sábio ditado, existiam entre o céu e a terra. Contudo, diferente do supostamente exposto pela Filosofia, mostrou-se vã a tentativa de Osíris de lutar contra os desejos empíricos de seu próprio coração. Apaixonou-se. Naquela tenra idade, mesmo arredio e cuidadoso, foi Osíris pego pelo velho amor eterno da juventude. E o seu lastimoso fim. 88


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Coração exposto, à flor da pele. E a pele em carne viva. A intensidade do querer, a completude do ter e a dor desarmoniosamente insana experimentada no perder. Osíris levou vários anos até conseguir superar. Até conseguir lidar com esta parte de sua vida. Até conseguir voltar a caminhar. Osíris experimentaria, então, outro momento daquele tipo. Sobrenatural. Outro “estupro mental”, como após o ocorrido passaria a chamar tais experiências vividas. Sofridas. Mesmo tendo sido para o seu próprio bem, Osíris lutou e relutou (não vai entrar!), em vão, para que sua alma não fosse inteiramente revelada, exposta para um par de olhos poderosos que, após vencerem a silenciosa batalha inicial, por completo o desvendaram. O crescente brilho branco que se expandiu daquele olhar conseguiu, aos poucos, arrancar do mais profundo poço, sob a mais grossa barreira, por trás do mais denso muro, aquilo que Osíris mais desejava manter. O seu maior vício. A vívida lembrança daquela latente dor... Dor de amor. A moça que empreendera este difícil e louvável trabalho, tirando Osíris da beira daquele precipício, nunca mais foi vista por ele. E, no momento seguinte à extirpação daquele mal que ele secretamente guardava dentro de si, ela lhe dissera, também sem pronunciar nenhuma palavra, que ele iria esquecer-se de tudo o que eles haviam “conversado”. Tudo o que havia acontecido ali. 89


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Mas, Osíris não se esqueceu de nada... Assim sendo, dos dezessete aos vinte e sete foram anos repletos de histórias como estas. Com a diferença que Osíris foi se tornando um adulto e, como normalmente acontece, se dando conta de que existiam mais perguntas do que respostas no mundo. Aprendeu também que algumas, senão todas, respostas já estão contidas nas próprias perguntas. Viu-se vivendo num mundo onde, mesmo sendo diferente da maioria das pessoas, conseguia ir levando a vida normalmente. Terminou os estudos e virou “doutor”. No caso dele, doutor Osíris. O mais famoso e requisitado oftalmologista daquela pequena cidade de interior, na qual decidira viver. Era onde praticava os conhecimentos adquiridos na faculdade cursada em sua cidade natal; esta sim, a maior de seu país. São Paulo, Brasil. O diploma ganho lá na capital, e que preenchia a parede de seu consultório, refletia a fila que diariamente lhe aguardava, já na chegada ao mesmo. Ambos, diploma e fila, não deixavam margens para quaisquer dúvidas quanto a sua aptidão. Doutor Osíris era o melhor oftalmologista da cidade. Uma unanimidade. Uma referência local. E não somente daquele quase vilarejo, que teimavam em chamar de cidade. Mas, também, de toda a região ao redor dali. Até mesmo da gigantesca capital, volta e meia, aparecia alguém a procurar por seus serviços. 90


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Um verdadeiro ícone. E era muito, muito querido por seus pacientes; clientes que praticamente o adotavam como membro de suas famílias. Sérias disputas já tinham ocorrido por sua causa e ele já havia perdido a conta de quantos casamentos participara como padrinho. Tantos batizados, crismas... Doutor Osíris era quase uma personalidade pública. Muito estimado pelo povo e principalmente pelas pessoas mais simples e humildes. Para as mais pobres, muitas vezes, nem cobrava as consultas. Conseguia, ainda, trazer da capital medicamentos que estavam em falta na região e, se quisesse, sairia de longe vitorioso em qualquer eleição municipal, ou até mesmo estadual. No entanto, política nunca fora a praia dele... Inclusive, vale mencionar que ele não atendia qualquer um. Algumas pessoas — e não eram poucas, ultimamente — não passavam da primeira consulta. E, para estas, após o primeiro exame, ele simplesmente afirmava não poder ajudar. Dizia sentir muito, muito mesmo. Sinto muito, muito mesmo... Não que tais indivíduos ou grupos possuíssem doenças raras ou desconhecidas. Muitos destes o procuravam por pequenas causas; as mais simples, como conjuntivites ou alergias comuns. Mas ele, o famoso dr. Osíris, para espanto dos ouvintes, não poderia tratá-los. Simples assim. 91


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Algumas destas pessoas e grupos sequer possuíam problemas nas vistas, indo procura-lo mais devido a grande fama que o antecedia do que por motivos médicos propriamente. Todos queriam uma consulta com o dr. Osíris. Contudo, como disse, alguns não passavam da primeira. Ele recebia prontamente a todos em seu consultório e, somente após o exame inicial, que normalmente consistia-se da análise de fundo de olho do paciente, o veredicto era dado. Inconformados, os poucos — mas repercussivos — casos que o afamado médico afirmava não poder tratar reuniam-se em secretas conversas que, quase sempre, resultavam em protestos repletos de rancor e promessas de vingança. Tudo por ficarem marcados no falatório local como rejeitados pelo famoso médico. Verdadeiros abortos sociais. Ainda assim, era muito maior o número de pessoas que praticamente o idolatravam. Sua fama ultrapassava o campo da medicina — pelo menos o da tradicional —, atingindo contornos sobrenaturais e que, naquela região, poderiam ser encarados como crendices locais, típicas de pequenas cidades interioranas. Causos e histórias de um povo mais humilde. Mas, o fato era que esta tal fama estendia-se para muito além daquele pequeno povoado. Doutor Osíris tornara-se conhecido também nas capitais. Delas partiram pessoas — e aqui então finalmente me incluo à esta história — que podem certamente ser chamadas de “mais esclarecidas”. 92


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À primeira vista, já pedindo a todos aqui desculpas pelo trocadilho, a fama adquirida pelo oftalmologista poderia ser justificada pelo modo como o dr. Osíris atendia seus pacientes... Completa. Não apenas as questões médicas eram analisadas por ele. Mas, também — deixando “visível” o primeiro diferencial do médico —, dr. Osíris cuidava das questões de caráter pessoal de seus pacientes. Quando cheguei à cidade, encarregada de verificar secretamente a atuação deste recluso profissional, confesso que já tinha uma ideia formada na cabeça a respeito dele. Algo posicionado ali entre o charlatanismo e o mau-caratismo. Mas, o dr. Osíris não era nenhum “curandeiro” ou coisa do tipo. Longe disto... Após me instalar e acompanhar de perto — bem de perto — a atuação do médico, admito que já de cara deu para notar a seriedade e o comprometimento do mesmo para com seus pacientes. Ele, simplesmente, se importava de verdade com as pessoas. Passei alguns dias observando a intensa movimentação do consultório dele. Ficava a manhã inteira na rua em frente, contando e analisando o perfil das pessoas atendidas. E dos pacientes não atendidos, também... Logo percebi como diferenciar. Era só prestar atenção nas feições de quem saía de lá. Semblantes alegres ou serenos versus carrancudas expressões faciais. O sorriso era o verdadeiro termômetro. 93


RICARDO GNECCO FALCO

E então chegou a hora de me tornar um deles. Foi uma surpresa. Quando me olhou pela primeira vez senti uma coisa que jamais saberei como descrever. Eu simplesmente sabia que ele me via por completo. Sem máscaras, barreiras, personagens... Não havia segredos para ele. Aquele exame de fundo de olho que ele fazia, então... Era como rebobinar uma antiga fita de vídeo num videocassete ligado à TV. Em cerca de cinco ou dez minutos, ele simplesmente passava a compartilhar toda uma vida com quem quer que fosse. Tudo através dos olhos da pessoa. E então ficou mais do que claro que, impreterivelmente, ele já sabia quem eu era; o que eu fazia, por que eu estava ali e, principalmente, quem havia me enviado. Sabia, inclusive, o que eu ainda não sabia. Ou melhor... Ele já havia juntado os pontos que eu ainda não tinha percebido em tudo aquilo. Olhou novamente em meus olhos e disse: Sinto muito, muito mesmo... Quando voltei à capital, não consegui compreender o real significado de minha demissão. Muito menos de minha real missão. Pensava haver falhado e ser digna apenas daquela vexatória consequência profissional. Porém, após desistir de tentar entender de fato o significado de haver conhecido alguém com aqueles poderes e do que este fato poderia significar em minha vida, recebi aquela visita inusitada. 94


LITERATIVIDADES

Aquela frase... Ecoando em minha mente enquanto estava sentada diante do computador, digitando o relatório que nunca chegaria a entregar ao meu ainda então patrão. Não era um relatório o que deveria escrever. E nem para ninguém deles... Eu deveria escrever para vocês. Por isso peço, meus familiares e amigos muito amados, que, após lerem esta carta, risquem seus nomes da lista em anexo e enviem para outro que ainda não a tenha lido; não importa a ordem. Podem até acrescentar mais nomes, desde que, ao chegar ao último, este me envie de volta esta carta, esta mesma carta, para eu entregar em mãos ao dr. Osíris. Desta forma, cumpro com minha missão neste denso, porém conectado, emaranhado. Sei que o dr. Osíris a lerá com carinho e atenção e, então, também cada um de vocês, leitores que pousaram seus olhares por sobre estas mesmas linhas, serão vistos; terão seus atos analisados; poderão conhecer e ser conhecidos, além de integralmente tratados por este incrível médico. Aguardem um contato dele! Ou não...

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Š 2013 by Ricardo Gnecco Falco



E

sta não é uma antologia de contos comum. Aqui, as obras não obedecem qualquer ordenação estrutural. Não estão arrumadas. Nem filtradas, divididas. Muito menos organizadas. Não encontram-se agrupadas por períodos e tampouco por temáticas, deixando os leitores completamente à deriva, flutuando e afundando num mar de ondas inconstantes. Os presentes contos seguem apenas a fascinante maré criativa da mente de um autor. Literatividades traz o leitor para um contato direto com a diversidade de temas, confusão de gêneros e inúmeros contrastes existentes dentro da alma de uma criativa criatura criadora. Joga-o de encontro a este mundo ora fantástico, ora insuportavelmente real; algumas vezes romântico, noutras cruel demais; visitando e desmistificando os diversos setores da atividade humana e até mesmo sobre-humana. Caberá ao leitor apenas o deixar-se ir por uma antologia de contos tão intensa quanto a própria atividade literária pode ser. Pois, tudo nesta antologia é efusivo. Literal. Criativo. Nem mesmo as milhares de palavras existentes na ortografia de nossa Língua foram suficientes para expressar o significado das obras aqui expostas, à flor da pele. Foi preciso conceber um neologismo para sintetizá-las, para dar-lhes forma única, identidade... Foi preciso criar para dar-lhes vida! Acesse as Fanpages: /Literatividades /Seu.Livro.Pronto


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