Capítulo 2 - TV
Sandra Satiko Kikuchi
A produção de sentido do conhecimento
Omomento da vida em que Sandra Satiko Kihuchi aceitou o convite para o diálogo da entrevista na pesquisa é expressivo: trata-se do período em que a jornalista se retira da vida profissional para se ingressar no mundo da vida como aposentada. Sabemos que a aposentadoria está distante de ser interpretada como uma decisão que se efetiva do dia para a noite ao sujeito. Mesmo em condições que é tomada como ação pragmática, o ponto essencial está em saber que é impossível avançar na decisão de se aposentar sem se desvencilhar da memória. E neste processo de reflexão do passado como crítica ao presente, ou do presente como dilema do passado, Sandra salta do deslumbramento do ser jornalista para atual estado de decepção.
Talvez seja por isso que Sandra Satiko explique que a história de sua formação acadêmica é meio complicada. O primeiro aspecto é sobre o espaço em que concretizou a graduação. Sandra Satiko iniciou sua jornada acadêmica ao ingressar pelas Faculdades Integradas São Tomás de Aquino, em Uberaba, FISTA. Depois de dois anos, a FISTA foi encampada pela então FIUBE (Faculdade Integrada de Uberaba), que hoje se trata da UNIUBE. Em 1983, a entrevistada acabava de se formar em Comunicação Social: Jornalismo pelas Faculdades Integradas de Uberaba.
A decisão de optar por Jornalismo veio amparada pela experiência vivida da família com atuação profissional na área. Primeiro, o fascínio pela área de comunicação instigado pelo programa de rádio de responsabilidade dos primos, em Uberaba, Triângulo Mineiro. O segundo aspecto é decorrente da convivência.
Então assim, já veio meio que uma coisa pronta. Meu pai tinha um bar bem tradicional lá em Uberaba e era muito bem frequentado por jornalistas, por músicos e etc. Então eu convivia muito com comunicação sabe, com gente que aparecia na televisão, gente que falava no rádio. Então aquilo me despertou certo interesse e
entusiasmo também, sabe, convivendo com aquilo. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Além disso, o mergulho no passado acrescenta também uma identificação de um fato, mais precisamente de uma característica sua, que releva um suposto ponto de origem na experiência vivida para o rumo que tomou na graduação. Por isso, Sandra Satiko afirma que sempre teve como primeira opção fazer o curso de Jornalismo.
Mas sempre foi o Jornalismo, mesmo no tempo de estudante, eu sempre era oradora e eu lia os textos. Eu tinha mania de narrar como se eu já tivesse fazendo uma reportagem. Então já é sempre o Jornalismo. Nunca tive dúvidas, nunca. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
No horizonte, de 1983, para o salto da sua aposentadoria, de 2016, há algo sintomático que conduz o discurso de Sandra Satiko para o outro extremo. Ou mais precisamente, para que a conversa recente com o filho, em vez de despertar o fascínio, tivesse superado em seu espírito o conselho negativo para seguir a carreira de jornalista. A pergunta era sobre uma hipotética avaliação, de caráter impessoal, mas Sandra Satiko empregou como experiência vivida. Vem a pergunta: se tivesse alguém hoje em dúvida de prestar o vestibular e chegasse pra você dizendo que havia decidido fazer Jornalismo. Qual seria o seu comentário?
E assim a resposta veio com a revelação da situação vivida: o filho comentou: “Mãe, vou fazer jornalismo”. E ela respondeu em tom direto:
“Não, não faça. Se você for fazer Jornalismo vai fazer 5 línguas e vai embora de Uberlândia, vai fazer fora’. Isso eu tô contando do meu filho. Agora pras pessoas que falam que vão fazer, ‘vai, e faça bem feito’. Tudo na vida tem que fazer muito bem feito. Se a pessoa for só pra querer ser mais um rostinho bonito na TV ou fazer um blog, desiste que pra fazer blog não precisa ser jornalista. Pra aparecer na Televisão não precisa ser jornalista. Acho que a pessoa tem que procurar outro rumo. Fazer Jornalismo é estudar, aprender, ler, sabe? É um autor, um
dos, autores da história do Brasil. Faça com amor e bem feito. Só que meu filho eu não quis não. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
E de que forma a afirmativa de Sandra Satiko se estabeleceu como crítica para convencer o próprio filho a entender que fazer jornalismo, a profissão que atuou durante toda a vida, não compensava. A primeira ordem da crítica estava voltada essencialmente para o financeiro.
Falei pra ele que achava que não compensava. Eu acho que eu tive sorte, de ter entrado na universidade, conseguido um bom emprego, porque eu tenho muitos companheiros ganhando 1.500 reais. A minha ajudante ganha R$ 1.200. Minha empregada, ganha R$ 1.200. Trabalha feito um cavalo. É uma profissão mal remunerada, mas não é por conta do mercado, é por conta do jornalista que aceita um salário barato em troca do estágio, fazer um trabalho de graça pra poder aparecer, ganhar ingresso. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Esse aceitar um emprego barato ou quase fazer um trabalho de graça leva Sandra Satiko a comentar sobre a ética na profissão. E no seu reverso, ela denuncia como prostituição. A denúncia deixa de se ater à desvalorização do mercado ao trabalho do jornalista, que poderíamos entender como ordem estabelecida pelo sistema capitalista. Entretanto, avança agora no plano subjetivo, que também se apresenta como conflito ético da categoria. Quando alguém se apresenta para produzir um trabalho com a proposta de receber aquém ou até mesmo deixar de receber, o que se faz, ela explica:
É prostituir a profissão. Aí, por exemplo, fazer uma boa produção de vídeo. Você cobra 250 reais a diária, aí vem uma bonitinha e fala que faz de graça pra aparecer no set, aparecer perto do ator. Então o próprio estudante, o próprio jornalista que tá começando, ele mesmo se prostitui. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
E a pergunta que se encerra neste comentário crítico sobre a profissão tanto na ordem da remuneração do campo profissional, quanto no questionamento da identidade subjetiva, Sandra Satiko
retoma o conceito sobre a temporalidade do presente e faz uma pergunta em busca de outros sentidos interpretativos sobre a realidade. É dessa maneira que ela materializa uma pergunta existencial: “Vocês na sala de aula discutem isso?”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) Antes de finalizar com a resposta no presente, é preciso compreender o complexo caminho do fascínio da profissão provocada pela família ao desencantamento de Sandra Satiko referente às pessoas que levam o jornalismo para uma marginalidade, em que a resultante está na própria objetificação do sujeito.
Para a entrevistada, o fascínio do jornalismo enquanto representação sobreveio à leitura crítica da realidade quando entrou na universidade. A expectativa do curso se transfigura em um sentimento que ela distancia de frustração e podemos aproximar de produção de sentido, pois é do sentimento de se “sentir uma ignorante assim, entre aspas, porque eu pensava que sabia muita coisa, mas eu não sabia nada.” (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) E o diagnóstico estava em enfrentar os seus próprios dilemas sobre o conceito de conhecimento.
Aquela coisa de jovem. Não sabia nada de história do Brasil, que eu estudei durante o colegial, não era nada daquilo. Então eu recomecei, sabe! não sabia o que tinha acontecido no Cangaço… Isso tudo a gente discutia na faculdade, através de livro e discussão. E coisas que eu achava que sabia, que não precisava mais. Aí muito pelo contrário, aí que eu e meu grupo a gente começou a estudar mesmo, a conhecer a história do Brasil. Isso depois que eu entrei na faculdade. Foi isso, eu fiquei deslumbrada, deslumbrada em aprender e estudar e desbravar as coisas, sabe? (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
É significativo entender esse relato de Sandra Satiko, uma vez que ao entrar na universidade, ela tinha, por experiência vivida no Ensino Médio, determinada concepção do que é conhecimento e, mais especificamente, ter domínio da história do Brasil. E é assim que mergulha no plano acadêmico e, aos poucos vai desvelando que aquilo que considerava profundo, ao ponto de se tornar
conhecimento em sua realidade vivida, apresenta-se como superficial ao ponto de considerar que, na verdade, nada mesmo sabia. Torna-se importante, com isso, desferir a pergunta: quais são as consequências para o sujeito que identifica o limite de seu conhecimento sendo levado a interrogar sobre o seu próprio sentido de sujeito histórico?
O que a conduz ao sentido da frustração, de esvaziamento daquilo que se sabe, é revertido para outro plano. Os livros, a leitura atenta, as discussões passam a constituir um significado que a alimenta como estudante de graduação e aos poucos vai tomando corpo no próprio conceito que a entrevistada efetiva sobre o que é ser jornalista. Ao retomar a explicação sobre o porquê não gostaria que o filho seguisse no Jornalismo, Sandra Satiko indaga que “fazer Jornalismo é estudar, aprender, ler”. No momento em que se descobriu ignorante na universidade, Sandra Satiko mergulhou, pela própria experiência vivida, na discussão complexa epistemológica sobre: o que é conhecimento? E assim, a memória coletiva se efetiva. Não se trata de um movimento solitário, cujo vazio teórico entra em um caminho perigoso de imediato preenchimento, em que se perde a referência do que se trata como informação e do que se efetiva enquanto saber. É o contrário: o deslumbramento a leva a pensar em toda a sua vida e ao mesmo tempo refletir sobre o sentido da realidade vivida. De forma que o grupo do qual ela se identifica por pertencimento, toma a decisão de estudar com afinco para conhecer, não mais de forma superficial, mas de modo profundo a história do Brasil.
Trata-se, portanto, de identificar que Sandra Satiko está, no primeiro plano de ingresso na universidade, submetida a uma problemática epistemológica cíclica. Mas em que medida poderíamos denominar que esse novo conhecimento que se desperta pode ser considerado como profundo? A resposta está nesse dinâmico movimento do jornalismo de estudar, do cotidiano da profissão sempre dispor uma realidade que permite o aprender e ao mesmo tempo o sujeito jornalista não pode se indispor de
realizar a leitura. E é desta forma que a história, o conhecimento acadêmico passou a ser desbravado. E é também neste ponto que somos levados a outro estado de interrogação: quando a expectativa do curso se desmorona na produção de sentido do cotidiano, em que base passa a sustentar a construção da identidade do sujeito?
Para a resposta a essa indagação temos de recorrer a memória de formação teórica de Sandra Satiko. Não é de se surpreender que uma das disciplinas que ela traz como referência para sua formação seja a da cultura latino-americana. A justificativa era que a sala gostava muito, e que “era um professor massa”. Mas do que se tratava essa disciplina que materializa o concreto do deslumbramento da entrevistada no ato de desbravar o conhecimento?
Sim, a gente estudou todos os países da América Latina, suas culturas, costumes, sabe? Foi bastante interessante. E tudo assim, eu me lembro que a gente tinha que apresentar trabalhos e a gente pesquisava muito, mostrava slides, tirava foto, sabe? Era muito bacana. Essas coisas que não dá pra esquecer. Fica um pouco complicado, professor, por causa disso. Eu não tenho o histórico aqui pra gente lembrar assim, e quantos anos tem isso. Pelo amor de Deus, mais de trinta anos. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Há duas decisões que possibilitam entender o caminho percorrido pela entrevistada na produção do conhecimento. A primeira decisão é sobre o trancamento da disciplina de Estatística, que teve no segundo e terceiro períodos da universidade. O motivo do trancamento está explicado pelo descompasso entre essa vontade de escrever e os números e estatísticas levados nessa disciplina.
Então eu achei estatística meio chata. Então eu tranquei e deixei pros últimos períodos. Aí eu gostei. Por quê? Porque eu já tinha uma noção do que era o Jornalismo, das coisas e como eu iria usar a estatística nas matérias. Então se tornou algo mais atraente, me lembrei muito disso. Que eu até fechei rapidinho, porque ela passou a ser interessante depois que a gente começou a redigir matérias e estatisticamente informar as pessoas do que é que você estava fazendo e de que forma
aquilo era feito. Então foi uma matéria que eu achei bastante interessante. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
No momento em que o eu de Sandra Satiko buscava a compreensão da história do Brasil, na complexa relação da ignorância que se comunga com o próprio sentido do que é o conhecimento, ela se defronta com o horizonte de estatísticas. A ausência de sentido a leva a fazer o trancamento. E o olhar do final do curso para o início requalifica a disciplina de chata para atraente. O que significa que a construção do percurso para o saber desencadeado por Sandra Satiko não só edifica uma problemática desta disciplina no campo do jornalismo, como desvela a estrutura da qual a entrevistada passou a nutrir sobre o sentido do que é saber. Como foi o caso da Estatística submetida ao sentido da escrita do texto, para a produção da matéria.
De outro lado, a segunda decisão, é sobre as disciplinas com ênfase na produção nos laboratórios. “Agora as outras, que são laboratório de fotojornalismo, cinema, a gente tinha cinema, fotojornalismo, jornal laboratorial, psicologia, é isso que mais chamava a atenção”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
A produção técnica dos laboratórios se fizeram em um bom momento de construção de saber de Sandra Satiko. E é por essa razão que ela não pensa duas vezes para afirmar que teve uma boa formação teórica. Ao orientar o elemento teórico no cumprimento de disciplinas práticas, temos de identificar que outros fatores estão adicionados nesta frase, que nos permite ultrapassar o sentido da instrumentalidade.
Um bom exemplo desta produção está no relato de algumas dessas disciplinas. Sandra Satiko enumera que teve excelentes professores na parte de produção. E enquanto desvela o método empregado por cada um desses nesta produção de sentido ela deixanos ver um distanciamento de como era fazer jornalismo na década de 80 em relação ao que se materializa hoje no processo do presente da sua aposentadoria.
Foi uma época muito diferente da de hoje. Que a gente tinha tudo que se virar, pra gravar um programa de rádio, por exemplo. A gente tinha que se fechar em um quarto, e não existia estúdio na faculdade. Vou por etapa. Como não existia estúdio na faculdade, a faculdade alugava estúdios da cidade de Uberaba. Então você tinha uma hora pra ficar dentro do estúdio e você já tinha que levar tudo pronto, roteiro e tudo. Outras vezes a gente gravava na casa dos amigos, e um aumentava o som, aí você falava alguma coisa. Eu acho que um amigo meu tem gravado um dos programas. Então já estava tudo no roteiro “vai começar o jornal não sei o quê”. Aí ele subia o som. Era tudo mecânico, tudo na mão. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Era tudo mecânico, tudo na mão. O problema do estúdio, longe de se tornar frustração, passou a ser outro elemento de desbravar para se produzir o conhecimento. Para fazer programa de rádio, tinha de deixar tudo pronto, o que nos revela: é preciso conhecer e saber aprender a fazer todo o processo. Esse mesmo dilema, agora revertido em encantamento, Sandra Satiko submeteu às outras disciplinas:
Cinema, era uma câmera pro curso inteiro. Então a gente saía pra fazer, aí editava, tinha que cortar e tudo. Aí não era só filmar, você tinha que conhecer a história do cinema, conhecer a máquina, como que era, como era o funcionamento da máquina, como se montava, como desmontava. Fotografia, fotografar, revelar, ampliar, secar. No jornal, já era o Jornal Mural, era um jornal que a gente pregava na parede da cantina da faculdade e lá pro final do curso já tinha um jornal que chamava “Enfim”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Se por um lado, a jornalista revela os motivos que considera ter tido boa formação teórica, mesmo em disciplinas práticas, por outro é necessário fazer outra indagação. A jornalista fez parte de um período em que no curso de Jornalismo não havia a exigência de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Mas será que essa experiência a deixou com alguma falta em sua formação? Sandra Satiko diz que o TCC não fez falta porque o conhecimento produzido na faculdade foi bom. No entanto, acrescenta uma frase
que nos leva agora a interrogação da sua experiência no mercado de trabalho: “o conhecimento que eu tive foi muito bom, mas a prática eu acho que a faculdade não te ensina não”. (Entrevista, Sandra
SATIKO, Dez. 2015)
A primeira indagação que poderíamos fazer dessa última frase da jornalista é sobre o seguinte elemento: de qual prática Sandra Satiko está realmente pondo em negativa? Isso porque a descrição de boa formação teórica está vinculado exatamente às disciplinas de laboratório, em que o exercício prático de entender a totalidade de determinados meios nos conduziu a entender o método. A revelação da jornalista se fez aos poucos, com os questionamentos em que a entrevista se seguiu, para tentar entender essa complexa relação de aprendizagem, conhecimento e ignorância. Sandra Satiko diz que teoricamente sentia-se preparada para atuar no mercado de trabalho, mas na prática, sentia-se insegura. E depois que estava atuando profissionalmente, esse discurso só passou a ganhar mais corpo: “mas não adianta, depois que você começa a trabalhar, a prática é totalmente diferente da teoria”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) E assim Sandra Satiko expõem essa fragilidade ao responder a pergunta sobre: o que falta na teoria?
Não, eu acho que falta a prática dentro da universidade. Porque naquela época, professor, a gente não tinha o que tem hoje. Essas faculdades que dispõem de laboratório, de estúdio, de recursos da tecnologia, na nossa época não tinha isso, você tinha que se virar nos 30. E aí você me perguntou do que eu senti falta, é isso. É o medo, né, então você tem que meter as caras. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
A frase pode ser entendida pelo sentido irônico da experiência vivida. Sandra Satiko revela como positivo, na construção do conhecimento, que as disciplinas as conduziu a desbravar por meio de uma produção mecânica, artesanal, o sentido do jornalismo. Mas ao mesmo tempo em que produzia esse sentido, o medo de enfrentar outros espaços em que a tecnologia se fazia presente a
levou a essa outra condição de crítica. Entretanto, engana-se se vincularmos que o único sentido de crítica da jornalista se faz pela questão do manuseio tecnológico. O que mais a jornalista sentiu falta da formação na universidade quando chegou na redação jornalística foi a ética:
A ética, agora, a ética, tem colega de escola que eu não fui com a cara dele no primeiro semestre e até hoje não vou. Eu acho que a índole vem com a pessoa. Ou a pessoa é ética ou não é, eu acho que já nasce assim, eu acho que você não cria uma pessoa. A personalidade da pessoa eu acho que ela já é nata. Mas assim, te ajuda, claro. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
É importante entender esse tom de crítica à profissão sobre a ética no Jornalismo. Mas, ao mesmo tempo, o sentido da frase nos conduz a entender um alongamento da temporalidade do passado, da graduação, e de hoje, em que se aposenta. O colega da escola do primeiro semestre, da década de 80, e que até hoje, três décadas e meia depois, ela questiona seu caráter, materializa esse salto da memória de Sandra Satiko. Se visualizarmos de forma rápida, é provável chegar a conclusão que a entrevistada está argumentando do passado para o presente, em um sistema contínuo da história.
Uma pausa um pouco mais demorada, sobre suas colocações, remete-nos a entender que esse dilema é do presente como reflexão do passado, pois a acusação de falta de ética está justamente neste fator de que não se pode alterar com o tempo. Só tem sentido compreender esta frase se levarmos em consideração que a jornalista acreditava nesta possibilidade. Ao se defrontar com a continuidade deste elemento que ela considera gravíssimo, ao ponto de se frustrar na profissão, só há uma forma de apresentar para si mesmo uma justificativa conceitual: “acho que já nasce assim”. O problema da frustração do presente mergulha em outro problema conceitual para analisarmos a entrevistada: a retirada do conceito de ética do processo de construção histórica do sujeito para a naturalização, quase que biológica.
Neste momento é imprescindível retornarmos para as explicações sobre a experiência vivida da jornalista no mercado de trabalho para se compreender o sentido desta crítica e evitarmos, incorrer em generalização. Como se trata de ponto de origem, é possível nesta parte enumerar e descrever os espaços em que Sandra Satiko atuou como profissional. Ela relata que a primeira experiência começou enquanto estudante ao ajudar um amigo:
Tinha um projeto em Uberaba que chamava Circo do Povo. Que era um circo itinerante que ficava nos bairros e ia coletando, conhecendo, descobrindo novos talentos do bairro, e no final de semana eles se apresentavam. E eu fazia esse serviço com ele, de procurar novos talentos. Então já comecei ali. Acho que no segundo ano de faculdade, eu já trabalhava com produção “achística” lá do circo. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Em seguida Sandra Satiko fez outros caminhos. Trabalhou na Fundação Cultural de Uberaba onde arquiva fotos, fotografava, e levantava histórias da cidade, mas a experiência como jornalista veio mesmo no Jornal da Manhã.
porque tinha uma vaga lá de repórter fotográfico. E eu falei “Lídia me dá uma semana, duas semanas, pra eu ver se é isso, se eu dou conta”. Aí dei, aí comecei como repórter fotográfica de lá. Aí a Lídia, que era proprietária do jornal, me pediu pra eu começar a escrever algumas matérias, eu não tinha me formado ainda. Acho que não tinha, quando eu trabalhava lá. Não, tinha. Aí depois que ela me registrou. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
A outra experiência começou após fazer e ser aprovada em um teste na TV Integração, em Uberlândia. Depois nunca mais voltou a atuar profissionalmente em Uberaba. “E na TV, fiz a matéria, gostei, nunca mais voltei”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez.
2015) No período da entrevista, Sandra Satiko encerrava sua carreira profissional de jornalista na equipe da rádio e televisão universitária da Universidade Federal de Uberlândia.
Essa descrição da atuação profissional de Sandra Satiko nos permite então compreender as questões que a levaram a se interrogar sobre esse distanciamento entre a prática vivenciada na universidade e prática no mercado de trabalho. Neste percurso da memória da entrevistada, ela revela, em primeiro momento, um pequeno desvio, porém procura apresentar um primeiro indício:
É porque eu tô confundindo aqui com a rádio universitária e com o tempo de escola. É experiência, né. Tem um amadurecimento, porque você chega crua. Você sai com um trabalho acadêmico pra ir pra um mercado profissional. É igual quando você forma “ixe, e agora, amanhã não tem aula mais, acabou”. Vida nova, independência.
(Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
A narrativa revela que essa vida nova, essa independência está dominada por um fascínio teórico, todavia dominado por uma insegurança prática. Dessa forma, o caminho para sair deste complexo círculo de se defrontar com a liberdade da vida nova pósaulas é descobri-la encerrada em uma insegurança. E como é possível sair deste estado de conflito? Por ironia do destino, o enfrentamento no mercado de trabalho veio justamente em uma disciplina que a jornalista revela ter tido pouco na prática: o telejornalismo. Ela revela que não tinha na estrutura curricular a disciplina de Telejornalismo. E do conteúdo que lembra é porque aprendeu no curso de cinema.
O primeiro desafio de sua carreira, para retomar a confiança em si e, com ele o deslumbramento, veio na raça: passar em um teste da TV Integração. Eis o triunfo da subjetividade frente ao indeterminado da estrutura profissional. Ao ser indagada por mais de uma vez sobre qual a distância entre a prática na universidade e a prática no mercado de trabalho, Sandra Satiko nos revela o momento em que o jornalismo se fez como sentido de vida nova:
É o dia a dia. O dia a dia e responsabilidades. Só de ter ficado, claro, quando você se submete a um teste você tem que mostrar competência, porque você quer ficar. Então assim, já é um triunfo. Então quando isso
já acontece te dá mais força. E aos poucos que eu fui adquirindo essa segurança. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
A segurança profissional foi sendo adquirida sim aos poucos, no dia a dia em que se exige a responsabilidade do jornalista em seu trabalho com o outro. A diferença da prática da academia para a prática do mercado é por meio desse cotidiano em que o sujeito é levado para a produção de sentido. E a jornalista iniciou esse processo para desbravar essa nova realidade que a conduziu novamente da revelação do estado de ignorância para a produção do conhecimento. No começo, os companheiros dela foram dando dicas técnicas sobre o procedimento para produzir as matérias. E assim a insegurança passou novamente para o deslumbramento:
Quando você vê uma matéria sua no ar, professor, é o trem mais bom no mundo. A sensação é de satisfação, sabe? É do seu trabalho, de você atingir as pessoas com uma informação verdadeira, que está fazendo bem pras pessoas, porque você está alertando ou de utilidade pública. Você tá colaborando com a comunidade. E o respaldo, né, antigamente nem existia essa palavra “feedback”. O retorno que te dá de você estar andando na rua e as pessoas falarem “ah, obrigada, você ajudou demais da conta. Nossa, resolveu.”, então você tinha, como tem hoje ainda, retorno do trabalho que você faz, que se divulga. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Logo o deslumbramento deixa de ser uma conquista subjetiva para demarcar a importância social do trabalho jornalístico. O esforço de aprender na raça, com os conselhos técnicos dos companheiros, foi ressignificado na sociabilidade com a comunidade. E então, ao ser cumprimentada na rua, e ao ver a satisfação de ver a matéria ir ao ar a produção de sentido do sujeito se encontra em consonância com a produção de sentido coletiva. O retorno do trabalho pela comunidade, com essa satisfação revelada pela entrevistada de atingir as pessoas com uma informação verdadeira, estabelece o valor do cotidiano. É por isso que a memória coletiva de Sandra Satiko, por mais uma vez, decreta esse fato como histórico.
Depois do deslumbramento de ter as matérias indo ao ar, é sobre o sentido das matérias que é possível entender o significado da profissão. Afinal, por quem se luta no jornalismo? O feedback revela que se luta com a responsabilidade de apresentar um significado do social para o social. E, desse modo, neste percurso que Sandra Satiko passou a definir o significado do que é o trabalho do jornalista:
Eu fiz muito esses trabalhos culturais, até hoje um punhado de artista plástico, porque muita coisa que acontecia era porque o TN primeira edição era muito focado em cultura. Então assim, a gente fazia muita matéria cultural. E eu acho que, acho não, a imprensa ela é responsável por dar um reflexo da cultura da sua cidade. Se você divulga, ninguém sabe que tem. Ou não cresce, ou não melhora, fica ali estagnado. Divulga o seu livro, por exemplo, as pessoas vão querer comprar. Esse é o retorno que o jornalista tem. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Ao definir o significado do trabalho do jornalista vinculando a realização subjetiva diretamente ao cumprimento da responsabilidade pública, trata-se do momento de efetivar uma análise da sua experiência vivida no mercado de trabalho. Ou melhor: trata-se de interrogar sobre o que define em uma redação no mercado de trabalho: a ideologia individual do jornalista, a ideologia da empresa ou é do público? A resposta da entrevistada é enfática:
Eu acho que tem que ser tudo junto. Mas o que predomina é a ideologia da empresa. A partir do momento que você tá trabalhando na Universidade Federal de Uberlândia, eu tô vestindo a camisa dela. Mas isso não quer dizer, existem N formas de você seguir essa ideologia. É igual eu estava te mostrando ali. Renata Neiva falou, do esmalte. Antigamente não se podia usar esmalte vermelho, era só clarinho, em TV. Hoje tá liberado. Então, isso se segue. A forma de você entrevistar, hoje existe relação comercial “não é pra falar mal de…”. Não se fala mal de prefeitura. Quem sou eu pra fazer uma matéria falando mal da prefeitura? Então você tem que seguir a sua linha editorial. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Sandra Satiko acha que tem de ser tudo junto, mas confessa que está separado. O que prevalece no jornalismo é a ideologia da empresa. Esse testemunho nos coloca diante do dilema da própria jornalista. Ela testemunha que o fascínio advindo do jornalismo é o reconhecimento público da responsabilidade social. Tanto que enfatiza os termos e frases da comunidade que mostram que se cumpre a proposta de ser crítico social. Todavia, ao reconhecer como mais influenciadora a ideologia da empresa e, embora esteja alicerçado em sua fala um discurso de maturidade profissional, deixa em aberto a interrogação: se este lugar do qual se direciona é motivo de crítica, de onde poderia manter, por meio deste ponto, a satisfação em ser jornalista?
Pode-se considerar com isso que a entrevistada localiza agora o estado de tensão e conflito do próprio trabalho jornalístico: por um lado, está o jornalista que reconhece a satisfação individual ao escrever matérias que contribuam para a melhoria do social e que resulta no reconhecimento do público no cotidiano. Por outro lado, é o diagnóstico de que o sujeito está sob determinação da ideologia da empresa. Esse estado só não leva a estagnação do sujeito quando ele toma consciência de que o conflito se edifica em movimento histórico. E isso distancia dela recair no discurso da naturalização. Mesmo que a senha para esse movimento esteja em detalhe: da passagem do esmalte clarinho, definido sob normas pela estrutura, para o esmalte vermelho, agora sob a liberdade de escolha do sujeito.
Em que momento da história Sandra Satiko reconhece que o jornalista perdeu a referência de quem é o público. Em primeiro momento ela disse que às vezes o jornalista perde a referência do público porque está “tudo tão globalizado, entre aspas, que acho que todo mundo tem a mesma linguagem”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) Entretanto, depois acrescenta que cada emissora tem público dirigido. Dessa maneira, o que significa essa perda de referência de público e ao mesmo tempo escrever mais
para a ideologia da imprensa? Será que há consequências na definição sobre a história narrada pelo jornalista?
Na sequência, a pergunta para a jornalista se faz inevitável: você acredita que nosso trabalho enquanto jornalista é um trabalho de valor histórico? E a jornalista responde de forma enfática:
“Ah, total. Você tá ajudando a escrever a história da sociedade, seu bairro, sua entidade. É documento. Parte fundamental da história de tudo. Por isso daí a responsabilidade, entendeu?”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
No primeiro momento a resposta sobre o valor histórico do jornalista é sobre a sua responsabilidade do social. O jornalista produz um documento que é possível fazer a leitura sobre a história da sociedade. E em seguida a entrevista é levada a responder outro dilema: você considera que o jornalista, hoje, tem consciência de que quando ele está fazendo uma matéria ele está fazendo história? A resposta ressoa como relativo ora pelo subjetivo, ora pelo coletivo da categoria.
“Depende do jornalista. Se não tem, deveria, minha resposta é essa”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
É preciso entender qual o conceito de história que perpassa a construção crítica de Sandra Satiko. O jornalista deveria ter consciência de que aquilo que ele escreve tem o sentido da história. Mas ainda fica uma brecha para entender como pode um documento, que no seu processo de produção não é histórico, tornar-se história. E a resposta da entrevistada é resumida. “Mas eu acho que tudo vira história”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015). Em vista disso, qual a referência que se pode estabelecer sobre o que é história? Seria o tempo do documento em vez de considerar o processo de produção?
É o tempo, o tempo define. É que eu tô viajando aqui no tempo, por isso eu tô meio parada assim. Porque ontem quando você me falou eu
fui procurar meu histórico escolar, e eu comecei a mexer e achei um punhado de matéria que eu já tinha feito, uns roteiros, é história. E eu acho bacana quando alguém coloca lá, tem uns grupos nossos da faculdade. O pessoal começa a postar umas coisas que a gente fazia antigamente e tudo. Eu penso “por que não arquivei isso?”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Ao considerar que o documento, ou melhor, que o tempo em que existe o documento já o define como histórico, há uma necessidade de verificarmos que o conflito deixa da tensão do sujeito para ser objeto da mídia. Eis o sentido da pergunta do final da frase: “Por que eu não arquivei isso”. A frase remete a uma discussão premente de memória. O grupo da faculdade, do qual Sandra Satiko faz parte, posta determinadas imagens que passam a ser consideradas como importante para a memória do grupo. Mas, se por um lado não foi arquivado por Sandra Satiko de forma espontânea, é porque não passou a ter relevância na continuidade do presente da profissional. É preciso também discutir outro impasse da memória: será que é possível você apanhar imagens de outro grupo para incorporar à sua história de vida como memória?
É difícil chegar a conclusão, mas a defesa dessa linha de raciocínio indica que não se pode edificar uma memória vivida simplesmente arquivando fotos do passado. Então nós podemos considerar que a história seria a plataforma em que os fatos ficam armazenados? E a jornalista responde:
“Eu acho que é um documento também. Quando você faz a matéria você não faz com o intuito dela virar história, você está registrando a história. Quem vai saber se eu trabalhei aqui 30 anos, se vai interessar também. São histórias que interessam cada público.” (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
E que histórias são essas narradas pelos jornalistas? A jornalista refaz a pergunta e responde: “Que história que nós estamos narrando? A nossa. De vida, de divertimento, de cultura. De crise.”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) A problemática ainda
ressoa com a resposta cujo conceito de história está diluído em todos os fatores. No documento que será visto por outro daqui a 30 anos. A assinatura da matéria em que se pode comprovar que ela esteve e fez parte da redação. No fato que se tornou notícia e que está estampado nas páginas: esse é o registro histórico.
Essa concepção de história produzida pelo jornalista é confrontada com outra narrativa de Sandra Satiko: a decepção com o jornalismo. Será que há alguma relação que poderia problematizar a produção de sentido histórico do jornalismo com a decepção subjetiva da jornalista? A pergunta exige, antes da resposta, um mergulho sobre o que a jornalista considera como essencial para a responsabilidade social da qual somos exigidos. E, que por sinal, é o aspecto positivo que ela traz como referência da memória teórica da sua formação em graduação. Para Sandra Satiko, o ponto fundamental do sentido de ser jornalista é o poder de argumentar que se transfigura em conhecimento:
Que você tem o conhecimento de uma coisa e vê outra. O poder da argumentação de você não aceitar ser assim, por exemplo. É tipo quando você fala “ah, a caixa de água pegou fogo. A cobertura é sua”, aí você vai mas não questiona. “Como a caixa de água pegou fogo?”, é pegadinha, a pessoa desce e vai lá no DMAE fazer. De brincadeira, sacanagem, sabe? Já aconteceu, não comigo. É o poder da argumentação. Você ter conhecimento, professor, você argumenta qualquer coisa. Você nega uma pauta, você muda a sua pauta, você cria a sua pauta. Né? Eu acho que é por aí. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Esse poder de argumentar retira o sujeito do estado de ignorância, do ponto de vista epistemológico, para o transpor na produção do conhecimento. E o maior exemplo que ela pode citar sobre esse processo de maturidade como jornalista está no relato de uma entrevista com uma psicóloga, quando entrou na universidade. É um fato relevante da memória que Sandra Satiko traz para o campo do presente e produz significado para toda a sua experiência vivida.
Quando eu entrei pra universidade a psicóloga falou assim, que ela estava entrevistando os candidatos pra entrar aqui, eu não me esqueço disso, que ela perguntou se eu sou uma pessoa que acataria às normas do meu chefe. A resposta era só sim ou não. Eu coloquei não. Aí ela virou e perguntou “porque você respondeu ‘não’?”. Aí eu falei “uai, se meu chefe me designar uma coisa que eu não concordo…”. Eu falei pra ela, não tinha outra opção, era sim ou não. Eu coloquei ‘não’. “Se meu chefe me designar uma coisa que eu não concorde, eu vou conversar e argumentar com ele porque não pode ser de uma outra forma”. Ela falou “Vocês jornalistas são tudo doido”. Eu acho que ela pirou na batatinha de ter entrevistado 10 jornalistas, sabe. Deve ter recebido muito não ali. Mas assim, quem não tem argumentação, não tem um conhecimento teórico, não tem um estudo, não tem uma leitura, vai concordar com tudo. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Se para discordar daquilo que o chefe remete para ser feito é necessário usar o poder de argumentação, indagar, pois aí está o processo de construção de conhecimento. A decepção de Sandra Satiko com o jornalismo tem um dos pontos de origem exatamente no momento em que considerou que o jornalista perdeu esse papel de crítico, intelectual. Ou melhor, quando a argumentação não é mais seu ponto forte. “Por isso que eu falo que o repórter não pergunta nada, não questiona, não argumenta. É muito difícil você ver isso.”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) Sem argumentação não há critica. Sem crítica, sem discutir a ideologia da empresa na redação para confrontar com a responsabilidade social, perde-se o sujeito em meio a determinação hegemônica do econômico. E assim veio se constituindo a desilusão da jornalista para o jornalismo, ao ponto de se aposentar e manter uma distância da sua experiência vivida.
A decepção teve início com a rede social. “Não é bem uma desilusão com o jornalismo, sabe, acho que estava na hora e juntou a fome com a vontade de comer, desiludi. Achei as pessoas vulgares, não profissionais, chegou um ponto de vulgaridade.” (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015). Mais do que analisar a
vulgaridade, que ela já apontou como prostituição no jornalismo, é preciso compreender o sentido do termo “não profissional”. O diagnóstico aponta para essa fratura na sociabilidade que desencadeia de forma incisiva nas redes sociais: “antigamente os jornalistas se juntavam pra trocar ideia, levantar pauta, uma conversa boa. Hoje não, eu acho. No meu caso nem é esse, eu desiludi com as pessoas.” (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
O principal argumento levantado pela jornalista é sobre o tempo de produção no mercado de trabalho. E aqui ela faz uma análise comparativa sobre as mudanças de valores da década de 80 para dias atuais.
Tinham tempo pra levantar matéria, porque não existia pauteiro. Tinham tempo pra produzir essa matéria. Não, não tinha, é o mesmo tempo de hoje, mas é que a gente que fazia tudo. Sabe o que não existia? Computador. E hoje as pessoas perdem tempo é pelo computador, sabe? Era assim: chegava lá, no quadro, câmara. Minha pauta era essa. Aí chegava na câmara tinha que ver qual o assunto que estava em pauta, se tinha algum assunto polêmico. Nem todos eram assim. Aí era assim a pauta: feira livre… Ver os preços dos legumes. Hoje já sai assim: o tomate semana passada estava tanto, essa semana já foi vendido a tanto. Já vai com tudo mastigado. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Então sobrevém uma nova indagação da própria entrevistada no meio de sua própria reflexão:
O que o jornalista faz hoje? Ele se mostra, dá uma melhorada no texto do produtor. Eu falo que produtor tem que ganhar mais do que repórter. O produtor entrega de mão beijada ao repórter. Na minha época, te dava pouco. Tinha que falar com fulano: o que está sendo discutido? Hoje você já chega com tudo mastigado. Pega uma pauta pra você ver. Sai com a pauta prontinha, até com a pergunta que vai fazer.
(Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Tudo mastigado, e determinação hegemônica do econômico passa a preponderar de modo que Sandra Satiko passa a questionar
onde está o jornalismo: Qual imagem você tem de sua formação e da universidade?, eu pergunto. A jornalista aposentada explica que não é com a sua historicidade que se deva preocupar. Mas com quem está cursando a universidade no presente. Você não sabe o que as pessoas tão esperando do curso. Eu acho que hoje se tem o melhor pra oferecer pra essa moçada. Parece o melhor. Eu me aposentei porque eu me desiludi com a profissão. Você vê jornalistas se vendendo um tanto, um merchandising tão grande, se vendendo, se convidando pras coisas. Que que é isso? O que tá acontecendo com esse povo? Vendendo marca. Marketing, o jornalismo tá virando marketing. De ganhar um convite pra poder almoçar em algum lugar e divulgar. Mimo não sei da onde, mimo não sei do quê. Que eu pensei “gente, mas onde que vai parar, cadê o jornalismo?”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
A constatação na experiência vivida de que o Jornalismo está se tornando uma peça de marketing é a angústia revelada por Sandra Satiko. Poderíamos discutir seus argumentos, mas o elemento fundamental é entender a discordância dela deste caminho. E os motivos saltam na realidade, como a perda da sociabilidade na redação em que os repórteres discutiam e construíam juntos as matérias; a falta de criticidade das perguntas nas entrevistas dos jornalistas, que na prática mais reproduzem aquilo que já foi estabelecido pelo editor; a prostituição denunciada da área quando realiza determinado serviço e cobra aquém do que deveria com o único objetivo de aparecer.
A jovem que não teve dúvidas de ingressar na carreira do jornalismo por referências da família, agora toma a decisão de interromper na família esse percurso no jornalismo. Do presente da aposentadoria, ela analisa o passado e os rumos tomados pela profissão nas últimas décadas. Embora denuncie que essa desilusão nasce das redes sociais, Sandra Satiko, em determinado momento, confidencia que esse sentimento é referente às pessoas.
Não se trata da inclusão ou do uso do computador. Mas dos sujeitos que retiram da profissão aquilo que deveria ser o seu próprio alimento: a capacidade de argumentar. E sem argumento, fica difícil entender de onde será levantada produção de sentido que remeta ao conhecimento. Sandra Satiko descobriu que a ignorância sobre a realidade pode levar o outro a se instigar para atingir o conhecimento. Foi assim, desta forma, quando tomou o choque ao ingressar na universidade e depois no mercado de trabalho. Agora não se trata de Sandra Satiko, como subjetivo, mas do jornalismo, como sujeito. Na universidade, o grupo de alunos se reuniu para estudar mais e com isso encontrar significado para ser jornalista. Fora do mercado de trabalho e sem pensar mais na profissão, a confiança nos estagiários de jornalismo se apresenta como possibilidade de produzir sentido de conhecimento e retirá-los desse momento da ignorância epistemológica.
Capítulo 3 - Rádio
Matheus Malaquias
Os incômodos da paixão na prática vivenciada no Jornalismo
Adúvida sobre qual profissão iria substituir a decisão inicial de ser docente na área de Matemática conduziu Matheus
Malaquias Silva para um caminho de investigação social. O principal sintoma veio com a conversa com professores em período de formação no Ensino Médio, do qual ouviu o seguinte conselho: “pensa em alguma coisa que você realmente vá conseguir colocar aquilo que você gosta”. Essa frase foi repetida por outras vezes, por outras pessoas, o que contribuiu para que o pensamento do entrevistado tomasse a decisão de se atentar para outras áreas do conhecimento. E é assim que em um ato de curiosidade, ou por acidente de percurso, é que descobriu o jornalismo.
Poderíamos, neste momento, considerar a importância da dúvida enquanto método para o processo de conhecimento. No entanto, para que ela atinja o seu grau devido de profundidade, o sujeito precisa ser lançado primeiro em uma afirmativa. Mesmo que esse sentido de afirmativa esteja incompleto ou sem aprofundamento em sua concepção teórica. Para produzir o sentido inicial do caminho a ser seguido, o sujeito precisa justificar, mesmo que de ordem estritamente subjetiva, algum motivo que o trouxe até aquele espaço e tempo de decisão. É só quando a afirmativa toma sentido material que a dúvida, ao ser instaurada, é conduzida para a profundidade em que o dilema assalta o espírito e o conduz inevitavelmente a busca de seu significado na existência.
A diferença nesse movimento consiste que ao efetivar a segunda natureza de afirmativa, o sujeito estará amparado agora não mais pela hipótese, mas pela própria problemática daquilo que se proporá a fazer. O que significa que nesta segunda natureza, o sujeito está mergulhado no interior de sua decisão, e não como um elemento externo que fica a olhar do lado externo para assim,
conforme o estado e o limite da contemplação, ele possa se orientar e tomar a decisão.
Matheus Malaquias explica que entrou no Ensino Médio com duas opões muito focadas em sua mente sobre qual profissão seguiria na vida. E as duas estavam definidas para a área de exatas. O ponto de ligação para seguir a área de Matemática veio em uma primeira análise de si mesmo. É aquele momento em que a memória precisa auxiliar o sujeito a identificar, em sua história de vida, momentos ou sinais que relevam aquilo que pertence à preocupação ou simplesmente ao gosto do sujeito.
Eu tive duas opções, desde que entrei no Ensino Médio, muito focadas na minha cabeça. Primeiro, eu sempre tive uma facilidade muito grande com Matemática, então eu pensei em fazer algo mais voltado para a área de exatas. Dei aula de Matemática um ano e falei: ah, vou fazer Matemática. Aí parei pra pensar depois conversando com meu professor e com outras pessoas, ele falou: “pensa em alguma coisa que você realmente vá conseguir colocar aquilo que você gosta”. E aí chega um momento em que a dúvida paira mesmo né? Aí procurei investigar outras coisas, outras profissões e não me limitar na Matemática, na Engenharia ou alguma coisa assim. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Chega um momento em que a dúvida paira diante da certeza afirmativa e o leva para investigação. Há na frase acima dois pontos que se apresentam em contraposição, e porque não dizer, que poderíamos tratar como elemento substantivo para a questão da crise do conhecimento que assalta o entrevistado. É representativo que esses dois pontos estejam delineados na ordem subjetiva. O primeiro ponto é demarcado pelo mergulho do sujeito em sua experiência vivida, mesmo que seja no campo acadêmico. Matheus Malaquias identifica que sempre teve facilidade com a disciplina de Matemática. E seria coerente prosseguir esse caminho, já que poderia expandir essa potencialidade de forma a materializá-la no dia a dia.
E é com este campo de identificação que o sujeito toma a primeira decisão: vou fazer Matemática. Contudo, antes de buscar a afirmativa da graduação, a experiência de dar aula na área o conduziu para outro sentido da decisão. Ademais, é com este impacto que o entrevistado é levado do movimento da afirmativa para parar e pensar sobre si mesmo. Se o processo interior de experiência vivida se esgota em referências para a autoanálise torna-se necessário redimensionar o campo de orientação. É neste momento que a argumentação subjetiva do simples ter facilidade com determinada área se torna insuficiente para a totalidade do seu ser sujeito, cuja definição do caminho profissional tomou o sentido da objetividade.
Há uma importância substantiva ao entendermos que Matheus Malaquias se permite avançar sobre o conhecimento de si ao recorrer aos professores e depois a outras pessoas de sua convivência. Pois é o momento em que o sujeito passa a reconhecer que o saber está na relação comunicativa que se efetiva na realidade existencial com o outro. Para tomar decisões, mesmo que aparentemente esteja somente como ato subjetivo, é preciso afirmar a experiência do outro como fundante para o sentido da realidade.
E assim chegamos ao segundo impasse: “pensa em alguma coisa que você realmente vá conseguir colocar aquilo que você gosta”. A frase levou ao indicativo da dúvida. E com a dúvida surge como expoente esse outro dilema. Para Matheus Malaquias havia uma diferença entre o que tinha potencialidade, nesta facilidade de aprender Matemática, em relação a procurar por sua potencialidade para fazer aquilo que gostava.
Embora o problema de encontrar o que realmente gosta de fazer esteja na ordem subjetiva, a dúvida trouxe outro movimento que se estende para além de seu horizonte. E o primeiro passo foi colocar como possibilidade, e não mais como prioridade, a proposta de fazer graduação em Matemática ou em Engenharia. Ao se desfazer dessas referências era necessário construir outras que pudessem ter
a força para substituí-la. E é nesta procura que uma visita, por curiosidade, a um primo jornalista edificou novas experiências.
Aí eu tenho um primo que é jornalista, ainda não formou, e eu por curiosidade passei um dia de trabalho com ele. Na época, ele trabalhava na Educadora Jovem Pan, hoje ele trabalha mais com assessoria política e é assessor do Odelmo Leão. Eu gostei do dia a dia dele aí fui procurar saber mais do que era o Jornalismo e o campo de trabalho, as vantagens que tinha e as dificuldades também apareceram na hora que a gente está pesquisando... Gostei, gostei bastante. Aí já depois que comecei a procurar mais e ter visto o dia a dia dele eu falei: “bom, vou fazer Jornalismo. A Matemática que eu achava que gostava não vai me prender não, vou fazer algo mais diferente, totalmente diferente, aí optei pelo Jornalismo. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A curiosidade o conduziu para descobrir outra realidade que não estava mais no campo de Exatas e sim no totalmente diferente de Humanas. Quando as opções sobre o que seguir se demole, a experiência vivida, no presente, se encarrega de iniciar o movimento do passado por meio da memória. Mas antes de decidir pelo Jornalismo, Matheus Malaquias inicia uma investigação que o conduzirá anos depois a considerar uma divisão conceitual na própria concepção de Jornalismo: o fazer jornalismo é algo que pertence ao gosto. E portanto responde às indagações que o conduziram para a dúvida. Todavia, o jornalismo se encerra também em dificuldades, inclusive de ordem financeira.
É possível separar esses dois elementos para se efetivar o conceito de Jornalismo? Ou torna-se necessário confrontá-los conceitualmente para encontrar um elemento de sentido nesta decisão existencial? Na avaliação geral, somado à disposição de alterar completamente a área, Matheus Malaquias então se efetiva como sujeito no mergulho do sentido da experiência vivida para afirmar: vou fazer Jornalismo. E enquanto responde a indagação de outros, precisa nesta afirmativa responder a aflição que o conduz a
si mesmo: “a Matemática que eu achava que gostava não vai me prender não”. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A pergunta que se efetiva neste momento é: qual a referência em sua história de vida, no passado que o liga para a decisão, no presente, de fazer Jornalismo? A resposta a esse dilema tem de ser buscado, primeiro, no sentido definido pela experiência vivida de Matheus Malaquias com o primo. Embora soe a curiosidade como ponto nodal, o que se efetiva como proposta do sujeito nos conduz a efetivar uma outra leitura interpretativa da realidade. Pois o jornalista, ao gostar do dia a dia do primo na Educadora Jovem Pan, passou a considerar como prioridade, o gosto por trabalhar em rádio, ou seja, o gosto de viver o dia a dia em uma rádio. Para que se efetive o poder de argumentação como estudante de Jornalismo, os momentos vividos do passado que percorre esse sentido precisam ser aflorados.
Eu sempre tive, desde menor, muita vivência, principalmente com o rádio. De família. Meu avô escuta muito rádio, minha mãe escutava muito rádio, então eu já entrei na faculdade com uma curiosidade maior sobre o rádio, o veículo de rádio. Mas não o rádio entretenimento, o Radiojornalismo. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A curiosidade do radiojornalismo inicia pela experiência com o primo e se justifica no cotidiano, agora evidenciado pela memória, no movimento do passado. Matheus Malaquias entrou para fazer o curso de Comunicação Social – Jornalismo no Centro Universitário do Triângulo (UNITRI), finalizando em dezembro de 2012. Pela natureza exposta da decisão de Matheus Malaquias em fazer
Jornalismo é preciso considerar se em algum momento de sua formação se estabeleceu outra dúvida existencial. E a pergunta que se considera é saber se em algum momento houve uma indefinição ou dúvida para sair do curso. O entrevistado é enfático:
Eu acho que no sétimo período foi bem complicado porque a gente vinha de um ritmo de muita prática e caímos no sétimo período que era
mais pesado na teoria. A gente voltou pra sala de aula pra fazer projetos. Naquele momento, passou na minha cabeça: “poxa, será que vale a pena continuar ou não?”. Acho que junta o cansaço de final de curso, e na época estava a questão da discussão do diploma, se tinha valor ou não tinha, vamos formar ou não vamos... Aí bateu um desânimo, mas pensar em desistir não. Falar “olha, não quero mais isso” não. Graças a Deus isso não aconteceu. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Será que vale a pena continuar no Jornalismo? A dúvida então novamente paira para levar adiante a decisão de Matheus Malaquias. Se por um lado, ele efetivou como afirmativo o gosto pelo Jornalismo, por outro, agora, precisa fazer o enfrentamento das dificuldades do campo. Não se trata de desistir, mas de colocar a frente de si mesmo os dilemas negativos da profissão para tomar consciência da realidade a ser vivida. No caso, não mais como um telespectador curioso que assiste a vivência do primo, mas como escritor da narrativa de sua própria vida. Ao considerar esse confronto, isso não significa que o entrevistado deixou de levar esse aspecto ao optar pelo curso. É que há uma diferença entre levar os dilemas da profissão somente ao campo teórico como hipótese, de quem está no início de curso, em relação a esse entendimento do imediato futuro às vésperas de estar graduado.
Ao responder a pergunta se considera que estava preparado para cursar a graduação em Jornalismo Matheus Malaquias já havia comentado:
Eu acho que eu estava preparado. Eu acho que eu...vai muito da mentalidade da pessoa. Eu já sai do Ensino Médio com a minha definição de profissão feita. Eu já queria fazer Jornalismo, mesmo sabendo das dificuldades, porque é como eu falei no início: financeiramente falando, a gente sabe que não é uma profissão tão
vantajosa, as dificuldades de trabalhar no interior também são grandes... Então foi tranquilo porque eu já tinha noção daquilo que eu queria fazer, não tive muito problema não. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Da perspectiva formulada sobre a graduação em Jornalismo Matheus Malaquias apresenta duas questões de ordem contrária. E as duas estão diretamente vinculadas a essa concepção inicial que fez como experiência vivida para definir a si mesmo a importância de cursar graduação em Jornalismo. A primeira é a positiva. O início na graduação lhe indicava que do plano que traçou para si mesmo como possibilidade no Jornalismo iria se concretizar pelo aprendizado na universidade.
De positivo foi entender que aquilo que eu imaginava realmente poderia se concretizar enquanto profissão. De colocar a mão na prática e saber: “Nossa, isso daqui realmente é o que eu quero fazer”. E a gente chegar e ver que é possível, que a gente consegue. Então isso pra mim foi muito positivo, de saber que eu estava no caminho certo, porque a gente tem um receio no início, mas foi muito bom quando cheguei e entendi que dava pra fazer o que eu queria, independente da opção, até então, de veículo. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
O receio no início foi dissipado para que Matheus Malaquias pudesse produzir o sentido sobre a produção jornalística. E agora essa consciência sobre a profissão estava diretamente demarcada pelas possibilidades reais de a universidade possibilitar viver o dia a dia da profissão. Mas o elemento negativo identificado pelo entrevistado estava voltado para outro setor de enfrentamento do qual não constava, pelo menos em sua percepção.
O incômodo sentido por Matheus Malaquias se refere ao fator que conduziu outros estudantes a realizar o curso de Jornalismo: o glamour. Trata-se de um glamour exagerado em que muitas vezes se perde a noção do próprio sentido do Jornalismo, enquanto tempo de formação, para um espaço a ser ocupado no futuro. E esse espaço estava mais voltado para um individualismo, em que o sujeito vislumbra o aparecer na TV ou ser apresentador do Jornal Nacional como meta. E não se trata de um reducionismo articulado somente por alunos.
O que me colocou no ponto negativo foi, no início, a gente achar –porque muita gente no início acha que jornalismo é glamour. Então isso me incomodou no início. Você já entrar na faculdade “não porque eu sou jornalista, estou fazendo jornalismo. Vou trabalhar na TV, vou apresentar o Jornal Nacional. Isso me incomodava no início. Não é muito voltado para a parte acadêmica, acho que, academicamente falando, eu não tive nada negativo assim. Mas esse glamour exagerado, que às vezes até profissionais que davam aula pra gente tinham também, isso me incomodava bastante no início. “Não, eu sou jornalista, vou trabalhar como jornalista, aparecer na TV, escrever no jornal...”, isso me incomodava. Agora, quando eu olho na parte acadêmica acho que não tem nada que me incomoda assim não.
(Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
O primeiro impacto negativo então se efetiva por identificar o individualismo exacerbado no comportamento dos alunos de sala. E, por um reducionismo, sobre a concepção do que é o Jornalismo. Nota-se que o tom disparado pela narrativa do entrevistado é o estranhamento de alguns em relação ao próprio dia a dia do Jornalismo. O glamour estava direcionado para um quadro suposto de fama de apresentar um telejornal ou de ser visto pelo Brasil todo por meio do Jornal Nacional. E nesta preocupação, qual a importância da produção jornalística para a sociedade? Como se preparar de uma forma melhor, do ponto de vista teórico, para tomar consciência sobre a realidade vivida e com isso produzir um jornalismo com profundidade?
As perguntas efetivadas nesse momento, sem respostas adequadas, sinalizam o estado de incômodo. Afinal não se trata de mera descrição crítica do estado de corpo e espírito daqueles que buscam o glamour como fim em si mesmo, mas se trata do sentido do aprendizado teórico no exercício do pensar a si mesmo como formado, como jornalista. Talvez seja por isso que em meio a crítica sobre o excessivo glamour, a teoria na universidade apresenta como contraponto. A teoria não incomodava, e não havia nada de negativo. Dessa maneira, configura-se na produção de sentido de Matheus Malaquias esse elemento de contraponto: a
representação dos alunos a partir do imediatismo do glamour sobre a profissão; e a produção de identidade de si ao encontrar na teoria a consistência importante para entender o próprio sentido da prática.
A teoria para mim foi mais vantajosa porque eu comecei a entender um pouco por trás... porque se faz assim, porque não pode fazer assado... essa parte era interessante, de entender o motivo das coisas, mas a prática sempre me chamou mais a atenção, de querer fazer. Eu acho que fazendo a gente aprende, a gente erra, a gente muda. Então, fazendo para mim era a melhor parte, era praticar. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A teoria surgiu como vantagem diante de um sujeito que entrou no Jornalismo depois de avaliar a prática do dia a dia da profissão. Por isso, a frase de Matheus Malaquias tem um peso sintomático.
importante porque a prática, já sabemos, está longe de ser adereço para o glamour. O que se acrescenta aqui é o distanciamento crítico da técnica para o reducionismo ou de ser empregado somente como contingência de reforço. Portanto, não é o exercício repetitivo que levará ao sentido, mas o processo de conhecimento que consiste neste desafio: se você consegue aprender com seus próprios erros, você muda para alguém de modo substantivo.
E, nesta complexidade, Matheus Malaquias afirma que a teoria foi vantajosa, mas a prática para ele era a melhor parte. E assim o praticar foi deixando cada vez mais a lógica da repetição para se efetivar com o sentido da práxis comunicativa. É na realidade do jornalista que vive seus dilemas, tensões e conflitos, que a teoria precisa ser descortinada para produzir o sentido da prática. É bem possível que esta discussão tenha possibilitado esse mergulho do entrevistado em sua formação teórica. Em sua análise sobre a formação teórica na universidade, sobrevém a resposta:
Eu tive excelentes professores na faculdade. A avaliação teórica - tudo quando a gente fala de teoria é um pouco mais complicado porque você fica ali no livro, texto, você faz estudo, é resenha... então é um
pouco mais pesado. Ainda mais no Jornalismo em que você vislumbra sempre o dia a dia, a prática, né? Mas foi uma formação muito bacana porque nossos professores, na ocasião, estavam, estão ainda, no mercado de trabalho. Então a gente tinha o dia a dia de teoria mas sempre tinha aquelas inserções de práticas, de exemplos no dia a dia de coisas bem pontuais. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Há, no primeiro momento, uma dissociação sobre o conceito de teoria: tem a ver com a produção de texto, leitura de livro que conduzem para pensamentos conceituais. E é ao reconhecer a resultante do aprendizado de teoria que Matheus Malaquias edificou sua base de formação. Essa base se efetiva como importante diante de uma profissão no qual se vislumbra à prática. Com base nesses dois elementos, profissional e prática, é que compreendemos esse segundo momento de análise. A formação profissional na universidade se configura como importante também porque os professores, que propuseram o ensino teórico, estavam ainda no mercado de trabalho. E, com isso o aprendizado passou a ter acrescido, de forma natural, inserções de práticas do dia a dia da profissão.
A existência do dia a dia da teoria era desvelada, desnudada e analisada pela orientação do cotidiano da prática. Mesmo em uma disciplina tão pesada, como as de Teorias da Comunicação:
E a teoria da faculdade que eu fiz era muito boa. Por exemplo, quando eu comentei da Teorias da Comunicação, que eu acho que é o que todo mundo “pega’ na faculdade de Comunicação, foi uma teoria pesada tem bastante coisa; mas trazendo essa realidade do dia a dia, do profissional na rua - que é onde eu acho que o jornalista tem que estar – foi bem tranquilo. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
As afirmativas de Matheus Malaquias já designa a funcionalidade do conhecimento em Jornalismo. O jornalista é um profissional que tem de estar na rua. É neste espaço e tempo de atuação que o aprendizado deve possibilitar a produção de sentido. Nessa colocação se explica o termo pesado para a disciplina de Teorias da
Comunicação. Embora a narrativa demarque que os insites do dia a dia da prática possibilitaram trazer para o plano da formação esse olhar crítico. Três anos depois de formado, a memória do entrevistado traduz essa experiência por meio de uma palavra para definir a experiência vivida na universidade: conhecimento.
Como se traduz o conhecimento dentro da lógica de pensamento que vem sendo estruturada pela narrativa de Matheus Malaquias? O conhecimento é aquilo que ultrapassa a natureza informativa sobre o que é o Jornalismo daqueles alunos que ingressaram na universidade. Quando definiu que o Jornalismo seria o curso de graduação que faria, Matheus Malaquias construiu uma base de sentido para conceituar o curso, mesmo que de forma restrita. A universidade, para que se configure nesta afirmativa sobre o conhecimento, deveria conduzi-lo para algo além desta limitação. E o elogio do aprendizado teórico e prático demarca bem a memória de formação teórica do entrevistado.
Para a prática, não é de se surpreender que o destaque da narrativa tenha sido sobre a disciplina de radiojornalismo. E assim, ao aprender para além da limitação do como funciona uma rádio, o entrevistado passa agora a estabelecer outros elementos de referência que permite conceituá-lo. E afirma, no tempo presente, que o gosto pelo rádio foi se constituindo como fator de sua construção de identidade.
A gente fazia muita aula de rádio lá na Unitri, lá tem um laboratório muito bacana. Eu sempre gostei de rádio, quando eu fui pra prática na faculdade eu falei “é isso que eu quero fazer”. Tem a questão da imaginação, é o veículo mais veloz que tem, eu dou informação com celular de qualquer lugar a qualquer hora, isso a internet não me possibilita. Mesmo ela sendo rápida. Vou ter alguém pra escrever o texto, alguém pra revisar o texto, alguém pra subir pro ar, isso pode levar tempo. No rádio, não, no rádio isso é imediato. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A imaginação e a velocidade com que a informação poderá ser disposta por meio do celular em qualquer tempo e espaço se efetivam como justificativas nesse processo de construção de conhecimento. E cabe ressaltar como crítica o contraponto ao Jornalismo Digital, em que essa relação de imediato não supera o rádio, porque para postar na internet será preciso alguém para escrever, revisar e postar o texto. Porém, seria reducionista se a interpretação desses dois valores sobre o rádio fossem somente utilizados como contraponto à internet. Se tomarmos como um dos pontos da narrativa do entrevistado que noventa por cento dos alunos da sala levantaram o braço ao ser perguntado sobre o interesse em TV, e somente ele pelo interesse em rádio, esses valores tomam outra dimensão analítica.
Qual mergulho interpretativo se pode efetivar então para a imaginação e essa velocidade? Há uma tentativa lógica de explicitar que o rádio mantém como identidade um valor da sua tradição, ao mesmo tempo em que conseguiu se constituir no tempo sem ser considerado como atrasado do contexto da modernidadeou da sua crise. Primeiro porque o sentido do jornalismo, ao ser deslocado para a rua, assume que, na relação com o público, é essa produção de sentido que se estabelece como força comunicativa. E assim a crítica poderá ser feita no contraponto daqueles veículos de informação cuja racionalidade apresenta obstáculos para que os sentidos ultrapassem os limites da percepção.
Ao considerarmos essa linha interpretativa temos de compreender que a imaginação não está delineada pelo procedimento do uso da rádio, mas da conceituação do processo comunicativo em que podemos problematizar o cotidiano do jornalista. Desse modo, a imaginação toma o significado teórico, e, porque não, se aproxima de uma linha epistemológica em que se desvela o fator do qual se constitui, na relação com o público, o processo de conhecimento.
Isso porque o segundo elemento, na qual se refere a velocidade da informação está diretamente voltada ao meio tecnológico rádio. Em determinado momento poderíamos objetar aqui: mas não poderia a velocidade da informação ser reconduzida, de procedimento, para a própria constituição de identidade da rádio? A pergunta tem o sentido analítico, ainda mais se considerarmos determinadas teorias estudadas em Teorias da Comunicação. O primeiro contato que desvia desse campo é a ausência de um atributo substantivo para o veículo rádio quando afirma sobre a velocidade de informação, esse imediato do rádio. Soma-se a isso, as indagações que levam o sujeito a conceituar o jornalismo: estar na rua com as pessoas. Esse fator nos redireciona ao segundo contato de desvio de uma possível acusação de que poderia recair em um determinismo tecnológico ou regra funcional: ouvir as pessoas.
Matheus Malaquias em determinado momento utiliza o termo “ouvido curioso”. E por sinal faz uma interligação entre o sentido da prática aprendida na universidade com o sentido da prática no mercado de trabalho.
Obviamente que junto com prática da faculdade eu acho que quem trabalha com rádio tem que ter, além da prática da faculdade, ouvido muito curioso: ouvir outras pessoas, ouvir vários tipos de programas de rádio, às vezes não só AM, ouvir também FM porque aí a gente aprende também. Então quase 100 %, ou 100% do que eu fiz nas minhas aula de rádio -, errei bastante lá também – a gente traz pra cá. E ouvir, eu acho que isso também que é importante nas aulas de rádio que a gente faz na faculdade, orientação do seu professor. A gente fazia muita coisa praticando na faculdade. E sempre orientação de ouvir, ouvir outras pessoas, outros veículos, outros profissionais. Até pra você entender as formas que têm de trabalhar, como você pode fazer, o que você não pode fazer. A gente às vezes pega isso também ouvindo as outras. Então a prática foi extremamente importante para o meu dia a dia hoje enquanto profissional. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Há uma série de leituras que podemos fazer ao considerar os elementos indiciados pelo entrevistado sobre essa função do ouvir. E, em boa parte deles ultrapassa o sentido do ato perceptivo. A orientação de ouvir outras pessoas está demarcando o próprio sentido existencial do rádio que, em um âmbito, está nesta relação comunicativa de ouvir as outras pessoas. O que nos remete em entendermos que a força da imaginação do rádio se estabelece aqui no processo comunicativo, em que tanto o jornalista, quanto o público precisam se nortear por esse fator epistemológico para construir o conhecimento.
Se pudéssemos colocar em uma frase poderia ser disposta com o seguinte entendimento: para que o sentido preferencial da informação seja produzida no rádio é preciso que o jornalista ouça as pessoas na rua para que elas possam, constituída pela imaginação, ouvi-lo em novo lugar de produção de sentido. E esse processo pode circular de forma imediata, sem que isso constitua por si mesmo em recair na superficialidade do tema.
É preciso também ouvir outras emissoras, outros tipos de programas de rádio. São referências para pensar o si mesmo, enquanto conhecimento subjetivo, assim como aperfeiçoamento profissional. E neste insistente movimento formativo do ouvir é que se abre as palavras que serão expostas na constituição da fala do jornalista em rádio. Se aprofundarmos esta concepção, por meio da teoria, poderíamos novamente chegar a uma relação constitutiva entre emissor e receptor no qual o ouvir e o falar se interligam como processo comunicativo. E esse elemento toma mais força quando o entrevistado explicita que quase cem por cento do que aprendeu na prática universitária se deslocou para a sua prática no mercado de trabalho.
A memória de formação prática traz como elemento identificativo inclusive o nome do professor responsável por esse procedimento:
Então a prática em si, a gente teve um professor muito bom também uma época, o Sergio Gouvea, tudo que eu coloco hoje em prática, a gente sempre está melhorando, mas eu tenho certeza, saiu de lá das práticas que fiz na faculdade, forma de falar, questão de colocação de palavras, às vezes, você toma cuidado em como você coloca uma palavra ou não porque quando a pessoa ouvir pode sair de outra forma. Enfim, a prática em si eu trouxe quase tudo do que eu vi na faculdade. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A passagem nos coloca diante do significado produzido pelo entrevistado sobre radiojornalismo. E esse significado vem demarcado por um nome, mais precisamente pelo reconhecimento do docente, cuja metodologia de trabalho trouxe para a identidade de Matheus Malaquias a profundidade da experiência vivida. A narrativa do presente integra três momentos em um mesmo sentido interpretativo que podemos enumerar no lado positivo do entrevistado. O momento de ter gostado do radiojornalismo ao satisfazer a curiosidade de acompanhar o dia a dia do primo em uma emissora. A satisfação da teoria e prática da disciplina de radiojornalismo cuja metodologia o conduziu para o cerne da questão do ouvir o outro como sustentação teórica e a compreensão de que a realidade do mercado de trabalho está em sintonia com o exercício prático da universidade.
Entretanto, no momento em que parece encerrar a linha que demarca a interpretação comunicativa do entrevistado, temos de ser levado também ao outro lado do conflito que envolve Matheus Malaquias. O primeiro passo está na argumentação de que nem tudo que aprendeu de forma teórica cabe na lógica pragmática do mercado de trabalho. E assim, pela primeira vez, a velocidade da informação narrada tempos atrás como principal fonte para entender o rádio, é colocado como obstáculo a ser transposto, pois a mesma velocidade da qual a internet não consegue superar o rádio, é o mesmo fator de limitação, seja para conseguir alcançar a temporalidade da produção jornalística, seja para a utilização dos
elementos teóricos em sua totalidade, como aprendeu na universidade.
Quando a gente está na faculdade, a gente aprende a fazer tudo muito correto. Eu acho que isso é fundamental porque você tem que entender o motivo das coisas e o porquê da gente estar fazendo essa coisa. Quando a gente vem para prática, a gente percebe que, às vezes, por tempo - porque hoje tudo é questão de tempo, velocidade, às vezes a informação não pode passar - aquilo que você vê na teoria não dá para aplicar totalmente na prática. Eu acho que essa visão da teoria é bacana nesse sentido de preparar a gente pra fazer o certo em qualquer momento e te deixar preparado também pra quando você vem para o lado de cá [mercado de trabalho]: você vê que aquilo que aprendeu, mesmo que não aplique da maneira mais assertiva ou 100%, aqui você consegue trabalhar também sem maiores problemas. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Do aprendizado da teoria na universidade somente em poucas situações se pode aplicar totalmente. Isso porque a velocidade exigida da informação se torna incompatível com todo o desenho que deve ser produzido a informação, a partir do ensinamento da universidade, uma vez que hoje, o elemento de sentido do rádio, não é só a imaginação. O hoje também estabelece esse outro contraponto: tudo é questão de tempo, de velocidade. Então temos de retornar ao problema central do sentido do rádio: em que medida essa velocidade, que tratamos anteriormente como procedimento, se transfigura no momento presente em outra demarcação teórica em que a tecnologia passa a ser elemento substantivo do que denominamos comunicação? Em que medida essa velocidade, apresentada agora como correria e pressa do trabalho, pode desfigurar a construção epistemológica do ouvir as pessoas no processo de conhecimento?
Então, minha grande dificuldade às vezes é trazer o que a gente aprende na faculdade hoje para o veículo onde a gente trabalha, onde a maioria das pessoas não tem essas mesma visão. Então, por exemplo, eu fui produtor na rádio aqui um ano. No início, os scripts, materiais
de pauta eram todos bem desenhados naquele formato que a gente conhece bem, com sinalização de pergunta, destaque pra pegar um gancho diferente, enfim. Eram pautas extremamente bem elaboradas. A gente passa para um profissional que não tem essa mesma graduação, a gente percebe que esse trabalho todo, às vezes, não tem valor para ele. Então assim, na questão, aí a gente volta na correria que falei, na velocidade do rádio, então, às vezes, você opta por fazer alguma coisa mais simples, mas não exatamente aquilo que você aprendeu na faculdade. Então assim, é uma adaptação, mas não entendo que a teoria não serve de nada. Para a gente chegar nessa visão você tem que ter a teoria. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
É necessário se adaptar diante da nova realidade que se apresenta de um mercado em que há profissionais formados na universidade e outros que se formaram na prática. Essa adaptação incide em adaptar um fator operacional: da pauta bem desenhada para uma pauta simples. Porque a elaboração da pauta da forma como aprendeu na universidade, não tem valor para esse outro profissional mergulhado na exigência de velocidade do mercado de trabalho. Mas temos de entender que em meio a crítica ao mercado, Matheus Malaquias vai, a todo momento, afirmando a importância da teoria. E acrescenta que até para discernir a desvalorização do processo diante do outro, prático, no mercado de trabalho, é preciso ter teoria. A questão aqui é indagar: até que ponto o entrevistado irá levar a defesa da teoria neste confronto com os elementos negativos do Jornalismo?
A pergunta acima permite considerar as estratégias de análise do entrevistado diante do impasse no próprio jornalismo. O primeiro impacto é identificar que não se trata efetivamente do problema de compreensão do jornalista, mas, por vezes, na diferença conceitual dos que são formados na universidade, daqueles que somente se formam pela prática. Temos de retomar aqui a outra frase que lhe trouxe incômodo e dúvida sobre seguir o curso de graduação, quando estava no sétimo período: a desvalorização do diploma. Para se formar ele teve de atravessar esse fator de dúvida, no último
ano de formação, e responder de forma afirmativa sobre esse sentido.
Esse é o momento em que a responsabilidade social tem de ser entendida nessa análise sobre a produção jornalística que temos de perguntar sobre o sentido histórico do Jornalismo. Será que podemos definir o trabalho jornalístico como histórico? Se é um trabalho histórico, em que sentido ele é histórico? E o fato, por exemplo, de eu não ter, muitas vezes, uma compreensão sobre o que eu estou fazendo, eu posso até fazer, mas não tenho uma compreensão sobre o significado do que eu faço, eu posso entender como um fator histórico? A resposta a essas indagações veio estruturada em dois fatores diferenciados. O primeiro refere-se ao registro de contar história:
Eu acho que a gente faz história sim. Primeiro pelo fato da gente poder contar histórias. Eu acho que esse é um papel bacana do jornalista, seja em qual veículo for. A gente está registrando, acompanhando, isso fica arquivado, registrado, isso é história. Eu acho que o jornalista faz parte da história e até contribui para que ela às vezes não se perca. Quando a gente fala de cobertura jornalística, às vezes a gente vai resgatando fatos, até pelo próprio trabalho que a gente tem, que às vezes as pessoas nem lembram disso. Então esse trabalho também é importante. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
O jornalista tem o papel de registrar o fato e ao mesmo tempo lembrar a sociedade sobre fatos ocorridos no passado. Essa parece ser a tônica definida por Matheus Malaquias para nos defrontarmos com o valor da produção jornalística. Porém, em meio a essa afirmativa, soa em meio a frase a ideia de história como mero registro e arquivo, documento do qual as pessoas poderão verificar no futuro. Podemos considerar que há uma lacuna ainda a ser preenchida com essa resposta, se relembrarmos que o conceito de Jornalismo apresentado pelo entrevistado está no ouvir as pessoas. E é assim que o conceito de fazer história se desloca do subjetivo para se edificar no processo comunicativo.
Agora, essa questão de fazer história é um pouco delicada porque vai da concepção das pessoas também do que é fazer história, né? Eu entendo que, principalmente no rádio, que é um veículo mais comunitário, a gente acaba fazendo história sim. Mas é uma história um pouco diferente de quem faz TV, web, por exemplo. A gente trabalha com um público muito... o foco do rádio hoje em Uberlândia é muito comunitário. Às vezes quando a gente faz história a gente pode avaliar a história da comunidade que a gente está inserido mesmo. As pessoas tem o rádio e o jornalista que está à frente do rádio como um meio de ser visto, de se fazer valer. Quando eu falo fazer história, é fazer história para essas pessoas, para essa comunidade. Seja levando uma informação bacana para ele, seja mudando a própria história dele, através dos veículos de rádio que hoje, graças a Deus, a gente tem esse poder. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Qual a concepção de história de Matheus Malaquias? Pela resposta desferida acima a concepção está em afirmar que a história que se efetiva é o da relação com a comunidade. Se faz história ouvindo essas pessoas e para essas pessoas. E, nessa reflexão, surge outro sentido: levar a informação para o outro ao ponto de que ele possa mudar sua própria história. Esse é o momento em que a história deixa de ser mero registro para se efetivar na circulação e consumo da mensagem no cotidiano das pessoas. Ou poderíamos ainda conceituar: a história da comunidade se efetiva neste complexo diálogo do sentido preferencial do rádio em contraponto com a produção de sentido do ouvinte.
Dessa maneira, assim como os elementos afirmativos são buscados nos dilemas da prática jornalística, o mesmo movimento necessita ser feito para entender os pontos emblemáticos do jornalismo. E a avaliação exige sair de liberdade subjetiva total do jornalista à estrutura jornalística. Será que esse fator levará Matheus Malaquias a redefinir suas concepções? Nem tanto redefinir, mas há um momento em que os pontos negativos são levados ao plano de debate, porque está mergulhado na realidade do sujeito que narra. Qual a avaliação da produção jornalística? O
entrevistado, então, é levado a problematizar esse outro fator que denomina como pecado atual do jornalismo:
O jornalista tem compromisso com a verdade. Só que em alguns momentos, as vezes, a gente não consegue ser tão verdadeiro passando uma informação. Não que a gente vá mentir, mas hoje as grandes empresas de comunicação estão ligadas à grandes empresas, grandes políticos, grandes nomes. E, às vezes, é difícil você colocar uma informação que talvez não agrade quem comanda a empresa, aquele grupo de pessoas. Então, eu entendo que hoje o jornalista em si até pra conseguir fazer seu trabalho da maneira mais tranquila possível, às vezes tem tropeçado nesse ponto. Se é algo que aconteceu que vai incomodar A ou B é um fato é uma notícia, a gente tem que passar.
(Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Eis aqui o contraponto entre a dialética vivenciada sobre o jornalismo por Matheus Malaquias. O jornalismo tem compromisso com a verdade. Só que em alguns momentos a prática o impossibilita de ser tão verdadeiro. Não se trata de mentir. Mas para quem é responsável por construir a história junto com a comunidade, na qual o ouvir se efetiva como construção epistemológica do conhecimento, torna-se um impacto gritante. Para o entrevistado, como já acostumamos a entender, toda gravidade que conduz a dúvida se denomina pelo tratamento de incômodo. E esse incômodo se estende para outros pontos que remetem a essa gravidade.
E hoje eu percebo, aqui em Uberlândia nem tanto, mas também tem, a gente não pode ser hipócrita, que os veículos de comunicação às vezes são muito tendenciosos, principalmente quando a gente fala de política. Então assim, eu entendo que não é o trabalho do jornalista em si, mas é uma diretriz que é passada pelos jornais: “a gente tem uma linha editorial, a gente vai falar assim, isso aqui a gente vai evitar falar ou vai falar dessa forma”. Então, isso me incomoda. Mas, ao mesmo tempo que me incomoda, eu tenho uma ciência de que é a realidade que a gente tem hoje. Talvez mudar isso, depende da gente também. Mas o que me incomoda são exatamente esses pontos, da gente saber dessas cosias, colocar de uma forma que talvez não é a melhor, não é a
mais clara. É trabalhar de uma forma que incomoda menos esse grupo, pra trabalhar menos com esse grupo, pra facilitar esse grupo... Então, isso me incomoda, eu entendo que a gente tinha que ter mais tranquilidade pra trabalhar. Trabalhar com aquilo que de fato é, que realmente aconteceu; se aconteceu é assim e essa é a informação. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
O incômodo sentido por Matheus Malaquias, aqui descrito, está em uma outra ordem teórica. Enquanto o reducionismo do trabalho no mercado era somente em simplificar os procedimentos aprendidos na universidade, a crítica poderia ser desferida para os profissionais que não passaram pela universidade. No entanto, há um momento em que a velocidade do tempo em produzir se efetivou também com essa demarcação. E desta forma, o problema sai da ordem subjetiva para recair na estrutura. E é assim que as grandes empresas, os grandes políticos eliminam aquilo que demarca o prazer de ser jornalista: a tranquilidade para apurar o fato e levar o que realmente aconteceu para a população. Hoje tudo é questão de tempo.
O ponto crítico traçado aqui está em identificar que a prática, tão importante para a produção da identidade do ser jornalista de Matheus Malaquias, torna-se afetada. O que incomoda é que essa violência da estrutura que leva o jornalista ao distanciamento da verdade, que poderia ser narrada ao público, é a realidade vivenciada nos meios de comunicação. Essa falta de tranquilidade, estendida para a gravidade anunciada, refere-se ao problema de consciência.
Será que depende do jornalista essa mudança? Para Matheus Malaquias, talvez. Esse talvez ressoa exatamente no momento em que o sujeito tem consciência de que o confronto não está somente na ordem subjetiva ou num problema direcionado de formação da universidade. Há algo que se vai além desses fatores, se formos recuperar uma frase do próprio entrevistado: é preciso ter teoria para reconhecer a estrutura que o violenta e retira a paz na produção de sentido. Como poder afirmar para a comunidade que
se faz jornalismo direcionado para ela, se cabe a esse grupo de grandes empresas demarcar, em determinadas situações, o que deve ser publicado?
Há um determinado momento em que o entrevistado é conduzido, nesta linha interpretativa, a afirmar: “o trabalho do jornalista hoje eu entendo que está muito mais nas mãos dos grupos de comunicação”. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015) E com essa crítica estrutural se retorna ao dilema da historicidade do jornalismo. Que tipo de história está sendo narrada pelo jornalista se considerarmos a hierarquização entre ideologia da empresa, conhecimento e depois o público? Matheus Malaquias argumenta:
É o ponto. Talvez será que é a história que realmente acontece? Ou é a história que as pessoas preferem que a gente conheça? Então, assim, vai muito do papel do jornalista, por isso que a formação é importante. Tem que ter uma forma bem tranquila para trabalhar porque essa questão de fazer uma história... é muito tênue, né? Você está no seu veículo, um veículo de comunicação que tem uma linha editorial que, às vezes, pode interferir nessa história que a gente está falando. Mas é uma situação que vale muito a discussão. Por isso que, quanto mais o profissional de comunicação está preparado para poder lidar com todos os fatos - público, ideologia, empresa, melhor. Pra gente tentar seguir a melhor forma de trabalho possível, pra deixar a interpretação, a análise dos fatos para seu público, no caso, o ouvinte. Ele é que tem que decidir, a gente não tem que decidir nada pra ele. A gente tem o papel formador, papel histórico de apresentar os fatos, as versões e os lados que estão envolvidos e ponto. Aí talvez seja a importância da história.
(Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Para se efetivar ou fazer a história é imprescindível proporcionar ao jornalista tranquilidade em seu trabalho. Até porque há uma linha tênue entre o público, a empresa e a ideologia do jornalista. O jornalista tem esse papel formador que se configura em produzir um documento histórico. A crise é quando se defronta com uma estrutura cuja prática obriga o jornalista a ir reduzindo os elementos que consistiriam em verdade a ser publicizada. Mesmo diante deste
impasse, Matheus Malaquias, ao ser perguntado sobre o que é ser jornalista volta a recontextualizar os problemas da profissão. E entoa que ser jornalista está diretamente vinculado a esse sentimento de paixão: O que é ser jornalista, Matheus?” É você fazer aquilo que você gosta, abrir mão de família, final de semana, casamentos, aniversários, viagens, feriado. Então isso é ser jornalista, é você fazer alguma coisa que você gosta, às vezes sem olhar a remuneração porque a remuneração não é uma coisa muito agradável na profissão. Por isso que eu falo que está muito ligado à paixão. Ser jornalista é fazer aquilo que você se colocou a fazer, levar a informação com qualidade, auxiliar a comunidade que você está inserido, uma informação às vezes em primeira mão que, às vezes, outro veículo não consegue te passar com a mesma qualidade. Isso é ser jornalista, é você às vezes abdicar de alguma coisa na intenção de levar a melhor informação pra quem está do outro lado. É paixão. É você gostar do que faz. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A última frase sobre o conceito de jornalismo parece a resposta ao conselho que obteve no Ensino Médio. Matheus Malaquias procurou aquilo que gosta de fazer e com paixão. Mas uma paixão que exige entrega ao trabalho, que por mais paradoxal que seja, ao mesmo tempo em que impõem o protagonismo no trabalho comunitário leva a abrir mão de ser sujeito de seu próprio tempo. Trata-se de uma paixão que conduz a liberdade de ser jornalista em uma estrutura da qual é necessário hierarquizar outros tempos de viver. Por isso que o ponto central da discussão é: será que ao reconhecer que a estrutura afeta o sentido da verdade, no espaço da prática em que a paixão é afetada, o sujeito não será levado a reconceituação do que é o jornalismo?
Trata-se de um momento crucial. Diante da lógica estrutural que afeta os dilemas sobre a verdade no jornalismo, Matheus Malaquias indica o projeto de retornar a faculdade para fazer especialização. E a pergunta se efetiva: a especialização é um indicativo da insuficiência formativa com que se defronta no mercado de
trabalho. A resposta do entrevistado é enfática e indica, porque não, um novo caminho para essa estratégia de enfrentamento.
Talvez, talvez. Porque no dia a dia, a gente percebe que precisa evoluir. Por tudo que a gente falou a gente não pode ficar parado. Eu saí da faculdade já tem três anos, sempre procuro estar antenado, procuro ler, procuro estar por dentro do que acontece, novas técnicas, ouvir outras rádios que não sejam de Minas Gerais, isso é importante. Mas aquilo que eu falei: a formação teórica quando eu tive na minha graduação foi fundamental. E se tem oportunidade de melhorar porque não? De procurar mais conhecimento. Eu tenho um desejo que já penso que é voltar pra faculdade, mas do outro lado, não como aluno, mas talvez de ensinar aquilo que a gente aprendeu também, trazer outra visão, trazer outras histórias. Por que não? Também é uma forma da gente trabalhar enquanto jornalista. E é algo que as pessoas às vezes não pensam. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Ser professor de jornalismo também é uma forma de a gente trabalhar enquanto jornalista. Eis aí o novo desejo de Matheus Malaquias. Como se dissesse para si mesmo: vou ser professor de jornalismo. E assim, o entrevistado ressignifica o seu passo inicial de estar na rua para fazer jornalismo, para o agora de estar na universidade. E coube a memória tornar relevante as referências que permitem a ele considerar que sua decisão é coerente com a história de vida. A metodologia e as aulas do professor de radiojornalismo então se efetivam como elemento primordial para se projetar no futuro. Porém, há outros indicativos negativos que o levam neste retrabalhar a vida.
Poderíamos aqui enumerar, mas vamos tratar dos elementos mais agudos. O primeiro é a consideração de que a realidade vivenciada pelo jornalista, na redação, faz com que a verdade, por vezes, não seja dita de forma clara ao público pelo interesse das grandes empresas. O segundo é que a preparação da pauta é simplificada diante da velocidade do tempo que exige divulgação prematuras. E terceiro, quando a vida do próprio sujeito tem de ser deslocada para segundo plano. Esses incômodos levam Matheus Malaquias a
redefinir que já é tempo de procurar mais conhecimento. Não como aluno, mas agora como professor. Quem sabe assim será possível narrar outras histórias sem que a tranquilidade e a verdade sejam afetadas pela estrutura. “Pensa em alguma coisa que você realmente vá conseguir colocar aquilo que você gosta”, e assim o conselho recebido no Ensino Médio torna-se orientação para a vida.