Capítulo 4 - Rádio
Mônica Cunha
A subversão da linguagem poética na rotina jornalística
Ousadia. Uma menina de 17 anos, sem qualquer experiência na área de comunicação decide ligar para a Rádio Cultura FM. Não se trata de pedir uma música, como ouvinte, mas sim de solicitar uma oportunidade de trabalho. É assim que a memória de Mônica Cunha Ferreira, neste movimento do passado, traz à tona um dos momentos que podem revelar o porquê de ter se definido no campo do jornalismo. É assim significativo que a expressão que mais dimensiona a relação inicial da entrevistada com a profissão seja o acaso. Para uma profissional que se formou no início da década de 90 e possui longo tempo de experiência soa, como paradoxal, no presente, esse elemento do passado: anunciar ter sido por acaso que sua vida tenha se transbordado para o Jornalismo.
Isso porque antes do ato ousado de 17 anos, a relação com o rádio para Mônica Cunha era somente de ouvinte. Por isso, antes da resposta sobre o porquê do Jornalismo, sobrevém um sorriso que demarca, esse gesto espontâneo, com uma frase de quem articula valores do passado. E sem encontrar um motivo que materialize os passos para aquele caminho na memória coletiva, a entrevistada só tende a mergulhar na memória individual para assim articular uma resposta: “Engraçado. Não tem uma resposta muito assertiva assim. Ele foi muito por acaso, sabe Gerson!”. O que significa não ter uma resposta assertiva? Poderíamos entender que implica que a narrativa da memória, ao não se fundar em um elemento dedutivo, precisa encontrar os indicativos que a conduziram até ser profissional na área.
E aqui se efetiva dois pontos importantes que nos conduzem ao entendimento da narrativa de Mônica Cunha. O primeiro é a referência ao acaso, que se traduz em não encontrar, na memória
coletiva, materialidade ou experiência vivida que levariam ela a conduzir para o Jornalismo.
Eu não tenho ninguém na minha família, jornalista. Eu tenho… a minha família é de contadores, contabilistas, e de médicos. O jornalismo ele veio muito por acaso. Por uma curiosidade que eu tinha, por exemplo, pelo mundo do rádio. Talvez pelo fato de eu ter sido criada muito com meus avós. Todo fim de tarde meu avô está sempre sintonizado num AM. Aquele mundo me encantava. E também porque meus pais sempre assistiam a telejornais. Eu ficava com eles ali assistindo. E talvez aquele mundo tenha me encantado. E...tanto que não foi a minha primeira opção. Eu gostava daquilo, mas não tinha uma ideia muito formada. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Quando o sujeito se reconhece na profissão, no presente, a memória precisa tornar relevante os elementos no movimento do passado que o conduzem ao sentido da produção da identidade. E é no quadro dos avós, da sintonia com a rádio AM ou com os telejornais, que a experiência vivida consegue demarcar os fatores a serem considerados relevantes. É possível mesmo, que aquele mundo completamente diferente tenha levado ao encantamento da adolescente Mônica Cunha. Mas há uma diferença singular, conforme podemos mergulhar em sua frase, entre o gosto, vindo da curiosidade de ouvinte, e a consciência sobre o que é o rádio, ao decidir seguir o campo profissional.
De quais lembranças do rádio está narrando a entrevistada? O exercício dos atos de lembrar e do esquecimento tem de ser entendido com a profundidade que ultrapassa os dilemas de ser um contraponto teórico. É necessário considerá-los como elementos fundantes para que o sujeito viva, no presente, sem perder a relação com o passado. E é nesse movimento que os nomes dos programas, das emissoras são reordenados do passado.
Sinceramente eu era muito menina assim. Então eu não me lembro. Mas de jornal, era sempre o Jornal Nacional. Com Cid Moreira, Sérgio Chapellin. É muito essa referência que eu tenho porque era quando a
gente chegava, quando tudo estava pronto em tarefa de escola. E a gente sentava na sala para assistir ao telejornal. E eu menina não entendia muito aquilo. Mas acompanhava. Então eu me lembro muito disso. A gente assistia também na época tinha o Globo Repórter. Os programas de rádio, você me apertou, eu não me lembro. Tinha o Zé Betio. Lembra do Zé Bétio? Tinha o Zé Bétio. Eu, se não me engano gente, não me falha a memória, tinha Rádio Mundial. É isso?...Mundial. Era uma rádio antiga que tinha muita notícia, tinha muita música também assim. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
A descrição permite compreender que Mônica Cunha tinha como única relação com o rádio, até aquele momento, o de ser ouvinte. E poder-se-ia perguntar porque essa convivência tenha ganhado força na memória da entrevistada? Porque a narrativa deixa claro que embora não tinha entendimento, a entrevistada acompanhava esse mundo do rádio. Mas há outros elementos de suporte da memória no relato: a tarefa pronta da escola, a sala como espaço de sociabilidade, a atenção do telespectador que se traduz na produção de sentido do ato de assistir. E, “se não me falha a memória”, a Rádio Mundial. O ponto principal da memória coletiva é que ela necessita ser sempre reforçada para ser amparada na relação com o outro. Por isso, não soa como estranho, que para tornar compartilhado a afirmativa, a frase de Mônica Cunha tenha se lançado em uma proposta de colaboração. A entrevistada opta, ao trazer do esquecimento para a lembrança, um sinal indicativo de colaboração do entrevistador. E, desse modo, lança a pergunta no decorrer da entrevista: Lembra do Zé Betio? E mais a Rádio Mundial.
Ao afirmar que o acaso a conduziu para o curso de Jornalismo podemos já considerar que esse curso não estava entre os desejos ou interrogado pela consciência como sonho a ser materializado. Ou para traduzir: O Jornalismo não ocupou a primeira opção definida por Mônica Cunha. Ela explica que os pensamentos iniciais para prestar vestibular tinham como primeira opção o curso de Medicina. Seria uma decisão por amor. Ao desistir de mergulhar
na Medicina, a entrevistada iniciou um cursinho para tentar o curso de Decoração. Entretanto, do amor da Medicina para a realidade do curso de Decoração, havia no entremeio o desvelar do encantamento do mundo do rádio.
Há um momento da narrativa do passado em que Mônica Cunha identifica, pela memória, a passagem de status da qual ela se distancia daquele papel de quem acompanha os avós para se efetivar como ouvinte. É quando se afirma, embora ainda pela percepção, de que queria muito o rádio.
Na época, a gente tinha aqui em Uberlândia a Cultura FM, 95,1, que tinha uma programação muito forte. E a cidade, na época, não era tão grande como é hoje. Então havia uma interatividade muito boa, apesar de não ter a tecnologia que a gente tem hoje, mas tinha o famoso telefone de discar. Então os ouvintes tinham muita interação na rádio. E eu era uma das ouvintes. E aquele mundo começou a me encantar e eu lia muito. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Nem Medicina, nem Decoração. Quando iniciou o curso de Decoração, veio a ousadia dos 17 anos. Sem qualquer conhecimento prático ou teórico, somente conduzida pelo mundo encantado. E a surpresa é que ao pedir a oportunidade, a porta foi aberta. E foi dessa maneira que se iniciou para Mônica Cunha os primeiros passos na profissão. No estado do presente, Mônica Cunha procura encontrar um entendimento que traduza o porquê de ter sido acolhida pelos profissionais da rádio.
Porque eu tive, digamos assim, a ousadia, na época, de ligar aqui na rádio, sem experiência nenhuma, tinha 17 anos, experiência nenhuma, nada, nada, nada. Nem um conhecimento. E pedir uma oportunidade. E aí, na época, eu tive pessoas que me abriram aqui meu portão, minha porta, e me acolheram. E decidiram me ensinar. Eu acho que eles viram algum tipo de potencial. E começaram a me ensinar. Mas aí por uma série de questões não deu certo. Aí fui fazer Decoração. E aí neste meio tempo voltei pro rádio e aí comecei a fazer televisão, indicado pelo Urbano Lúcio, pelo programa rural chamado Terra da Gente produzido pela ABC Propaganda, então. E aí quando a faculdade veio,
depois de uma estrada na prática tanto da TV Paranaíba, Aqui (TV Integração), que eu voltei para cá, que eu comecei aqui, aí eu fiz o curso de Jornalismo, porque eu considerei importantíssimo para a minha formação. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Mônica Cunha Ferreira se formou no Centro Universitário do Triângulo (Unitri), antiga FIT (Faculdades Integrada do Triângulo), que trouxe o Jornalismo para Uberlândia. Ela faz parte da segunda turma de Jornalismo. Entrou em 1990, quando tinha 25 anos. Se considerarmos como início de sua carreira a ligação ousada para a Rádio, temos que considerar que há uma distância de oito anos em que Mônica Cunha toma contato com a prática. E nesta soma que se efetiva, temos de acrescentar outros três anos em que a entrevista realizou o curso de Decoração, na Universidade Federal de Uberlândia.
O peso desta soma nos conduz a seguinte problemática: qual a expectativa orienta Mônica Cunha, já com oito anos de profissão na área, para realizar o curso de Jornalismo? E como essa experiência profissional redefiniu sua compreensão teórica ao considerar que estava na segunda turma inicial da Universidade? A primeira questão nos coloca diante da situação da prática. Mônica Cunha tinha como principal expectativa aprender mais sobre técnica de reportagem, e inclusive melhorar a técnica também de apresentação. Como finalidade pretendia agregar o que já sabia com os colegas. A memória formativa teórica revela que o conhecimento conceitual se efetivou como diferencial em sua formação. Tanto ao ponto que a entrevistada, em determinado momento, é conduzida, pela coerência do pensamento, a afirmar que entrou com uma expectativa e saiu com outra. Entrou com foco na melhoria técnica da prática e descobriu no decorrer do curso o fundamento teórico.
Mas não foi somente o conhecimento teórico que eclodiu como surpresa afirmativa na experiência vivida de Mônica Cunha. E essa
afirmativa precisa ser entendida se ocorreu a priori ou no momento mesmo do enfrentamento.
E eu fui sem muita expectativa porque era começo de curso. Estava tudo nascendo ali, né? Mas me surpreendi porque tive excelentes professores. A gente teve ótimos debates. A gente teve, digamos assim, tivemos alguns ajustes a serem feitos. Eu estou com a palavra embate na cabeça, mas não é um embate. Foi discussão para tornar o curso melhor. Tanto da turma com os professores e vice-versa. E, na verdade eu me surpreendi, mesmo sendo da segunda turma. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Há uma espécie de relativização no discurso apresentado indicando como a memória do presente se efetiva como leitura do passado. A surpresa veio de ter ótimos debates com professores que a levaram ao aprofundamento do conhecimento teórico. Mas há na própria frase uma articulação indireta do pensamento que embora a primeira frase não se efetive, de forma material, ela ressoa como fator posteriori. Há uma mudança de significado entre considerar que durante o curso houve ajustes ou houve embate? Mais do que encontrar o sentido da resposta é importante considerar o próprio fator do diálogo interno que a entrevistada estabelece para si, no momento em que define o que e com qual intensidade deve ser relatado durante a entrevista. E na negociação entre o termo ajuste em contraponto ao embate, o moderado veio como discussão com a finalidade de tornar o curso melhor.
Ao mesmo tempo em que revela a dimensão do passado, Mônica Cunha traz ainda uma consciência do tempo presente para indicar a forma de relativizar o conhecimento obtido na universidade. O primeiro aspecto é utilizar o comparativo das experiências em que fora chamada para ser palestrante ou participar de bancas na Unitri. A experiência revela que a Universidade realizou investimentos que a deixou diferente em relação ao passado. Não se está em debate nessa discussão se o investimento em tecnologia resulta, de forma direta, em uma mudança no processo de construção de
conhecimento. Para se efetivar essa resposta teríamos de entrar em um fundamento sobre método. Mas o que se pode anunciar é que a quantidade de laboratório, em si, superior do ponto de vista numérico em relação ao do período anterior, demarca possibilidades qualitativas substanciais em relação ao que se tinha, principalmente quando se sabe sobre a segunda turma.
E com base neste quadro comparativo, a entrevistada desfere essa análise, redefinindo como contraponto as realidades anunciadas:
E não tinha tanto laboratório como tem hoje na Unitri, porque eu acompanho. Eu sou sempre chamada para fazer parte da banca. Mas assim, no que a gente tinha, eu aprendi muito. Sabe, aprendi com profissionais da fotografia, aprendi com profissionais do telejornalismo. E olha que eu já tinha experiência, mas aprendi muito. Aprendi muito sobre semiótica, que te dá uma visão, um entendimento um pouquinho maior. E eu confesso que me dediquei muito na faculdade. E saí de lá bem mais cheia de conhecimento teórico. Eu acho isso fundamental. Sabe, eu acho que a faculdade, pelo menos no meu caso, acrescentou muito isso. A visão daqueles estudiosos que a gente tem na faculdade. Então tudo isso me agregou muito, sabe. Eu entrei com uma expectativa e saí com outra. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Entrou com uma expectativa e saiu com outra. Há outro sentido que podemos compreender essa frase, por meio da experiência vivida de Mônica Cunha. E se esse fator se apresenta com força no momento essencial da entrevista sobre a memória de formação teórica, é porque demarca algo relevante na construção de identidade da jornalista. A faculdade teve um peso importante porque a permitiu realizar, pensar, produzir e discutir sobre a “Linguagem do Jornalismo”, no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Em vez do tema, é importante trazer o sentido da problemática: há realmente uma semelhança entre a linguagem poética e a linguagem do Jornalismo? Para a entrevistada, distante de ser comparativa, é preciso entender que cada uma delas tem sua particularidade, mas se encontram em determinado momento.
A descrição sobre esse momento vivido é de alegria e de orgulho por dois fatores. O primeiro é que Mônica Cunha reconhece a importância acadêmica de sua orientadora: “E eu fui orientada por uma excelente profissional e acadêmica que é a Vadalbieri Cunha, que senão me engano, é pós-doutora em semiótica. Então você pensa o tanto que eu tive de conhecimento assim dela”. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016) E o segundo fator por considerar o resultado deste trabalho como importante para compreender a profundidade com que avançou no processo de construção de conhecimento teórico. É importante notar que a Semiótica é uma das disciplinas que se efetivou como surpresa na construção do conhecimento da entrevistada.
O que significa essa produção de sentido resultante do TCC da entrevistada? Ao ser indagada sobre a conclusão do de seu trabalho sobre essa problemática, Mônica Cunha efetiva um discernimento para se avançar na compreensão de sua frase:
Eu tenho e posso até enviar pra você, mas foi que é possível sim você, em determinadas situações do jornalismo, não o factual? Mas em determinadas matérias e reportagens você, sabe, utilizar o recurso poético, pra deixar aquela matéria um pouco mais interessante, aquela história, que você conseguiu, um pouco mais interessante e que vai tocar a pessoa que assiste, principalmente, que é o meu ramo? Mais interessante, mais inspiradora. Mas eu posso mandar pra você.
(Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
O Jornalismo pode ir mais longe, pode mergulhar de forma profunda na relação com o outro ao se estabelecer como recurso na linguagem poética. Não nas matérias factuais em que a estrutura do texto já vem definida para estabelecer uma relação impessoal com o outro. Mas em determinadas matérias. Pode ser para se tornar um pouco mais interessante ou por ser uma outra forma de contar a mesma história. Contudo, a entrevistada deixa preciso a finalidade com que esse recurso poético pode ser desferido pela linguagem: tocar a pessoa que assiste. E para tocá-la é preciso despertar o
interesse, ou num grau mais profundo: inspirá-la. Se orientarmos pelo negativo do não-dito iríamos recair na discussão de que a maior parte das matérias jornalísticas são redigidas em uma linguagem que traz pouco atrativo para o leitor.
Só que em vez de prosseguir neste campo de análise, do não-dito, é preciso apreender o significado do dito pela entrevistada, já que em nenhum momento, Mônica Cunha se detém no pensamento crítico do factual para mostrar a relevância do uso do recurso poético. E então vem a problemática: o que seria realmente a produção de uma notícia em que o jornalista passa a utilizar o recurso poético? Estamos discutindo sobre a questão da forma da escrita, para ser mais atraente? Ou o que se efetiva como debate, ou melhor embate, é uma proposta de método que permita considerar a produção do texto como análise crítica da realidade social?
O mergulho sobre a linguagem poética nos leva a aterrissar na compreensão da entrevistada sobre a realidade prática do Jornalismo. Pois, é importante considerar que, quando entrou na universidade, com idade de 25 anos, Mônica Cunha já trazia parte de experiência profissional. Então o orgulho e a felicidade do TCC pode ser entendido como um momento de pensar a teoria e a prática. Mas Mônica Cunha precisa contextualizar a produção de sentido do jornalismo, neste uso de recurso poético, diante do estado de tensão e conflito em que se estabelece a rotina jornalística. E então a pergunta se dispara para que ela responda em análise crítica: ao relacionar o embate do TCC, na universidade, com a rotina do jornalista, na prática, você considera que o jornalismo é mais ou menos poético?
Pergunta boa hein, Gerson? Eu acho que estamos em tempos muito difíceis de poesia. E eu tenho visto, mas eu tenho visto assim, o Jornalismo tá mudando tanto. E ele tá trazendo uma conversa pro público. É claro que a gente tem que tomar muito cuidado com isso, vocês devem estar acompanhando alguns repórteres? Que estão trazendo uma nova linguagem, a linguagem da conversa. Isso é muito bom, porque nos aproxima das pessoas, as pessoas efetivamente nos
sentem lá da cozinha, da sala, né, de onde elas assistem televisão. E essa empatia, essa conversa mais próxima fazendo com que ele se sinta parte da emissora que leva a notícia, né, isso é ótimo. Isso firma um laço de confiança, de credibilidade, mas eu acho que ainda falta um pouquinho. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Estamos vivendo tempos difíceis de poesia no Jornalismo, mas eu acho que falta um pouquinho. As frases dos extremos dessa frase nos levam a um estado de análise do Jornalismo. E porque não, instaura outros dilemas: quais são os fatores que colocam a produção de sentido do jornalismo em tempos difíceis? Além disso, o que significa esse pouquinho que nos falta para conseguir inspirar o leitor de forma que ele nutra credibilidade e estabeleça um laço de confiança? Em vez da crítica, apresenta-se o movimento, mesmo que seja pouco, dos passos traçados pelo jornalismo com o uso de recurso poético. O jornalista está propondo em suas matérias essa conversa com o público. E isso é importante porque trata-se de um movimento cuja finalidade nos levara, na relação comunicativa, a nos aproximar das pessoas, do leitor, mas nesse movimento é preciso ter cuidado para não ultrapassar a linha tênue.
O que seria realmente essa linha tênue? Mais do que a resposta a essa indagação, a continuidade da frase de Mônica Cunha nos remete essencialmente a sua conceituação sobre o que estabelece como recurso poético:
Eu acho que tem outras possibilidades de fazer essa... Porque não é só fazer a poesia, é você enxergar a poesia naquela história que te vem pra você contar. Então, por exemplo, eu lembro que eu fiz uma matéria com o seu Nenê, que plantou mangueiras ali no distrito de Cruzeiro dos Peixotos, que tinha um jardim em frente à igreja. Isso... O seu Nenê fazia poesia com simplesmente a bondade dele de querer fazer algo bacana pro distrito, pro lugar onde ele vivia. E aí eu acho que cabe ao jornalista enxergar. Isso aqui é poesia. E eu posso fazer do meu trabalho um pouquinho de poesia pra, nesses momentos difíceis, em que a gente tem vivido um momento de limpa na nossa história, de muita mentira que vem à tona, né, e de coisas que vão tirando um pouco o brilho do dia a dia, a gente tem que ter esse... Sabe, essa
sensibilidade de enxergar essa poesia e saber, que em determinadas pautas a gente pode trazer e surpreender quem tá lá assistindo e tá meio descrente, né? (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Eis aqui o relato dos momentos difíceis pelo qual passa o Jornalismo. Primeiro, nasce de uma crítica do próprio sentido objetificado do Jornalismo, cuja linguagem factual está diretamente vinculada ao problema da rotina. E segundo, porque das matérias que são disseminadas sobrevém a descrença de quem olha para a realidade e visualiza as mentiras sendo reveladas no movimento de fatos narrados pelo Jornalismo. Qual o papel do Jornalista neste contexto? Trilhar esse desafio de fazer o seu trabalho com um pouco de poesia. Porém, essa definição ultrapassa a questão da forma do que será escrito, ao contrário, pois a narrativa de Mônica Cunha apresenta o contexto teórico em que o trabalho não pode estar dissociado da realidade vivida. Ou melhor, para formular a mesma frase com a perspectiva de Mônica Cunha: o olhar para a realidade do sujeito deve estar em consonância com o olhar sobre o fazer jornalismo.
O seu Nenê faz poesia na comunidade quando seu ato de plantar mangueiras no Distrito de Cruzeiro dos Peixotos se materializa. Trata-se da poesia materializada no ato de bondade. Cabe ao jornalista ter essa sensibilidade de compreender a realidade que o atravessa a frente para que essa poesia seja, em primeiro momento, apreendida. É isso que podemos traduzir como um pedido
emblemático: é preciso enxergar a poesia que emerge da realidade. E não ficar submetido a regra de estrutura imparcial de uma
linguagem jornalística. Em sentido poético podemos dizer que para o jornalista inspirar o leitor, é preciso que ele se inspire na inspiração do ato de bondade do seu Nenê. E ainda se efetiva o último desafio: a mediação desse ato de inspiração só se efetiva se o jornalista souber, de fato, escrever sobre o assunto de forma que sua sensibilidade se concretize nas palavras, ou mesmo na fala. No momento que a sensibilidade e a inspiração ressoam como elementos de exceção, é preciso enfrentar qual sentido a realidade está impondo como sentido de linguagem. E assim se efetiva outro questionamento existencial para entender o posicionamento teórico de Mônica Cunha: se nós não conseguimos ter um predomínio dessa poesia no cotidiano da produção jornalística, isso se deve a qual desses fatores: é falta na formação desse jornalista, é por causa do espaço, ou é pela rotina mesmo? E a resposta se efetiva como definidor:
Eu acho que pela rotina. Eu acho que o principal fator é pela rotina. Né, eu acho que é isso, você tem que tá sempre atento... E com o ritmo da informação que a gente tem hoje, você não pode descuidar, a internet tá aí. A internet tá aí a todo momento, atualizando, atualizando, vem informação de rede social, vem informação de sites. Então o que eu vejo na minha experiência, você não pode descuidar muito disso, essa rotina é necessária, ela é uma realidade e a gente não pode descuidar dela. Então eu acho que essa rotina não é um entrave, mas ela tá ali. Agora cabe a nós escapulir pela porta da cozinha pra trazer a poesia e a leveza, né ? (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
A realidade da rotina do Jornalista está aí. E se efetiva em seu aspecto contraditório: ela é necessária, e não podemos nos descuidar dela, porque há um tempo, um ritmo, em que a informação se estabelece do qual não se tem o controle. Pelo contrário, a condução apresentada por esse ritmo nos conduz ao que denominamos como estar se atualizando, estar em contato com aquilo que se faz na realidade. É preciso aqui anunciar qual o conceito de rotina se efetiva na compreensão de Mônica Cunha para termos o dizível. E a resposta a pergunta sobre como avalia a rotina do jornalista, tem de ser interpretada em dois fatores: primeiro do ponto de vista objetivo e em seguida o subjetivo.
A primeira indagação objetiva demarca as situações em que se exige do jornalista.
Engraçado. Eu acho que como qualquer outra profissão, ela te exige muito dedicação, empenho, esforço, abrir mão de algumas coisas, porque a gente trabalha feriado, a gente trabalha sábado, a gente trabalha domingo, você acorda cedo, você trabalha feriado, né? Às vezes você não pode se programar, mas pra mim, é uma rotina... Eu nunca questionei. Eu sempre gostei, nunca me importei de sair daqui 2 da manhã, nunca me importei de chegar aqui às 4h e sair às 13h. Sabe, nunca me importei de trabalhar no revellion, à meia-noite, então é assim, é uma rotina que quando você tem a certeza de que você gosta, essa rotina passa a ser algo normal. Só que é uma rotina que mexe com pressão diária. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
É possível entender a rotina como algo normal sem que a normalidade do sujeito passe a ser alterada? Não se trata aqui de um jogo de palavras desferidas para se utilizar somente como forma poética. Esse problema lançado tem de ser entendido no dilema da inspiração, desse impasse de ser sujeito. Pois a normalidade objetificante da rotina tem consequências na demarcação da produção de sentido do cotidiano. Ainda mais quando o próprio sujeito atribui outras exigências sobre si, que acentuam a profundidade existencial.
Eu tenho um nível de exigência comigo muito sério. Então a minha exigência comigo mais a pressão, mas o que você tem que entregar, mais a sua responsabilidade de levar a informação da maneira correta, tudo isso mexe com o quê? Com o nosso corpo e a nossa mente. Então a gente tem que ter noção disso, dessa pressão que existe, dessa exigência que existe, da responsabilidade e quando a gente sai, você tem que cuidar disso lá fora. Pra que você possa voltar e fazer o que você ama fazer. Então eu tento, já tive uma crise de estafa uma vez, há muitos anos, e mudei isso. Mas a nossa rotina eu acho que pra quem escolhe assertivamente o Jornalismo, você assimila e ela tem um gostinho bom. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
O ritmo exigido da rotina do Jornalismo mexe com o corpo e a mente do sujeito jornalista. Essa exigência só não se torna insuportável, ao ponto de retirá-lo desta vida, porque se ama o que faz. E se o sujeito perde o controle de direcionar o seu tempo e espaço diante da rotina, ele terá que assumir isso quando se retirar desse ambiente. É no mundo lá de fora da pressão jornalística, que
a pressão arterial, a crise de estafa precisa ser tratada para que se possa voltar a fazer o que se ama. Poderíamos aqui entender que Mônica Cunha retrata a rotina de forma poética? Mesmo diante da experiência vivida em que o corpo e a mente foram diretamente afetados por doses múltiplas de pressão, encontra, do tempo impositivo, um fragmento de tempo em que resulta na assimilação do sujeito em ter um gostinho bom?
É provável que o termo que se apresente de forma contumaz, na narrativa da entrevistada, seja: para quem escolhe assertivamente o Jornalismo. E os indicativos vão indicando que em meio à rotina, em meio às matérias que disseminam o retrato desta rotina, há momentos em que a poesia surge, e passa a surpreender até aqueles que anunciam assimilar a rotina.
Pra você ter uma ideia hoje a gente estava discutindo. A gente está com tanta matéria pesada em todos os telejornais que a gente vê, de todas as emissoras. E ontem a gente se surpreendeu, porque o Jornal Nacional abriu, o Jornal Nacional é... O Jornal Nacional, ele abriu com duas matérias levando exemplos que deixam a gente mais esperançosos. Então tá vendo, como as vezes você pode quebrar essa rotina? Que tá pesada? Você traz um caso com a poesia da vida pra poder mostrar, então a história de um casal que estava desempregado e que estava passando dificuldades e que de repente alguém resolveu ajudar esse casal que também ajudou outras pessoas. Então foi um pouco da poesia que se tem que pela tão complicada que a gente tem a gente não vê e que foi matéria de capa no Jornal Nacional. Espaço a gente tem. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
A defesa premente de Mônica Cunha se anuncia com um toque de enfrentamento para entender o Jornalismo como linguagem poético em confronto com a linguagem jornalística. Há espaço sim para que as matérias sejam apresentadas e invadam o espaço da estrutura, demarcado pela rotina, e produza um novo sentido. O termo conceitual afirmativo nesse trecho está em que é possível quebrar a rotina. E a extensão desse processo se efetiva nesta relação comunicativa em que os sujeitos precisam enxergar o ato
singular exteriorizado na vida em sua construção poética para tratála com poesia.
E quando o espaço e o tempo são invadidos, destituídos do reducionismo imposto pela estrutura, se efetiva a esperança no jornalismo. Se prosseguirmos neste confronto teríamos obrigatoriamente de fazer uma nova pergunta: como é possível que essa rotina seja quebrada com mais normalidade? A gente tem que equilibrar isso tudo. Agora você trouxe uma coisa interessante. Porque não trabalhar na faculdade também essas questões de como você pode fazer com que a poesia da vida, principalmente, ela seja presente. Nos telejornais, no jornal impresso, na revista, no rádio, na internet, né. Por que não? (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
A resposta de Mônica Cunha traz um elemento diferencial. Se por um lado, ela confessa ter entrado sem expectativa do curso, pois se tratava da segunda turma, por outro foi criando, com a inspiração do TCC, uma expectativa para conduzir a interpretação do significado do que é o Jornalismo. É preciso equilibrar, no tempo e espaço da rotina, matérias que passam a disseminar a linguagem poética a partir da apreensão existência da poesia da vida na realidade social. Isso também é fazer jornalismo com responsabilidade. E, nesta dialética, entre a prática e a teoria, a reflexão se sobressalta no momento da entrevista para nos remeter novamente no percurso de formação teórica da universidade: por que não trabalhar na faculdade a poesia da vida na construção da notícia?
E assim a discussão retorna para o campo da universidade, cujo princípio agora se efetiva com outra perspectiva. Se o ensino de graduação atuar como campo de enfrentamento e possibilitar ao graduando que se forme com a proposta de enxergar a poesia na vida, podemos ter um outro jornalismo. Ou, pelo menos, igualar em quantidade as matérias produzidas em que se emprega o recurso poético em confronto com as de linguagem factual. Eis o campo da dialética: a profissional que entrou no jornalismo para melhorar a técnica é surpreendida pelo conhecimento teórico. E do
conhecimento teórico veio o trabalho de TCC. E com o TCC, a defesa de que a linguagem poética deve ser o recurso inspirador tanto para a escrita quanto para o leitor.
Mas para que essa alteração aconteça, como da entrevistada, é preciso ser surpreendido. E nesta surpresa, o sujeito salte do reducionismo técnico a que é levado para fazer jornalismo para a profundidade conceitual, na qual o próprio pensar é conduzido para ser interrogado no cotidiano. Por isso, diante da pergunta sobre as suas referências de formação, Mônica Cunha é explícita sobre as disciplinas que considera fundamental para o sujeito jornalista: a Antropologia e a Filosofia.
Antropologia porque eu acho que você conhece muito de gente, dos seus hábitos, dos seus costumes, da sua história, né? E isso eu acho que tem muito a ver com o Jornalismo. E a outra disciplina é a Filosofia, porque você trabalha o pensamento, você trabalha o comportamento, você trabalha o desafio de pensar e encontrar uma... Não é uma nova realidade, mas uma nova forma mesmo de enxergar a nossa sociedade, a nossa realidade. Então essas duas disciplinas assim eu considero que foram... Eu tinha paixão, sabe, por elas. E tive professores muito bons, então eu considero essas duas disciplinas, Antropologia e Filosofia, que eu tive? ? (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Se nos detivermos nas justificativas das disciplinas em que a entrevistada apresenta como referência, somos levados a retornar a pergunta: por que não trabalhar na faculdade a poesia da vida na construção da notícia? E, com isso, temos de fazer um movimento de desconstrução sobre a própria experiência de vida de Mônica Cunha para alcançarmos esse ponto de conquista do pensamento crítico. Quando se refere à disciplina de Filosofia, a entrevistada narra sobre esse desafio de pensar e enxergar uma nova realidade. Ao considerar essa nova forma de enxergar a realidade por meio da Filosofia, não estaria neste elemento o caminho teórico para se pensar a realidade? Essa frase significa que para valorizar o recurso poético, em vez de treino de redação, é preciso problematizar o
pensamento do sujeito no cotidiano. Para que o sujeito possa olhar para a realidade e enxergar a poesia da vida.
Quando se escreve que se trata da Filosofia, do pensamento crítico, e não do ensinamento de técnicas como contingência de reforço, saímos desse processo de entender o jornalismo como procedimento tecnológico para o fator epistemológico. Assim como a Filosofia, a paixão por Antropologia a redefine. Trata-se de se interessar pelos hábitos, costumes, da história das pessoas com as quais você passa a conviver na sociedade. São essas as duas paixões de Mônica Cunha. E por que não dizer que essas duas referências de disciplinas foram fundamentais para finalizar o TCC e recuperar, no presente, o sentido da linguagem poética. Ou pelo menos: “acho que essas duas disciplinas são fundamentais, pra que a gente possa ter, assim, uma visão do mundo que a gente vive”.
Da memória de formação prática surgem alguns fatores que demarcam o problema de formação de Mônica Cunha. E, assim, aos poucos chegamos a entender os elementos de embate. A entrevistada cita primeiro o amor pela TV para depois revelar que na universidade faltou um pouquinho de técnica.
eu acho que o que faltou, e é perfeitamente compreensível, porque é o começo, eram os primeiros passos, mas eu acho que faltou muito trabalhar mais a técnica do telejornalismo, de entrevista... Como que se faz uma entrevista? Como deve ser a sua postura? Como deve ser a sua preparação? Então na minha época faltou muito isso. Eu já tinha uma certa noção, queria mais, mas pelas circunstâncias não foi possível. E eu me lembro também que rádio a gente teve tão pouco... (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Como se faz uma entrevista? Trata-se de uma pergunta básica de formação do graduando. E se a entrevistada reconhece, no tempo presente, que faltou esse conhecimento prático é porque em algum momento a realidade do mercado de trabalho também exigiu de si uma resposta.
E eu acho que o rádio, apesar de toda tecnologia que a gente tem hoje, ele é tão forte, sabe? Eu acredito tanto na força dele ainda, sabe? Do radinho lá da cozinha da Dona Rosa, que tá lavando a louça. Mesmo que ela tenha o celularzinho dela, mas ele tá lá do lado dela. Então o rádio é muito forte, e eu me lembro que na época foi muito falho isso. Teve pouca técnica. E querendo ou não, Jornalismo é técnica quase 90%. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
A compreensão de que o Jornalismo se efetiva em ter quase 90% de técnica nos coloca diante da profundidade do problema de formação de Mônica Cunha. A entrevistada sempre enfatiza que tudo se fez dentro das possibilidades, mas adiciona o limite do qual o embate se chegou para que pudessem atingir o conhecimento.
É, foi assim, um professor foi dar aula de..., um exemplo, tá? Um professor X pra dar aula de telejornalismo. Mas ele não tem nenhuma vivência em telejornalismo, então foi isso, mais ou menos, uma situação que a gente viveu e que a gente teve que questionar, né? De trazer um profissional que pudesse trazer vivência da área pra gente. Foi mais ou menos um dos casos que aconteceram foi esse. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Como é possível ministrar uma disciplina para inspirar os alunos na proposta jornalística se o professor não tem vivência neste campo? É desse embate que Mônica Cunha e os alunos foram construindo de forma coletiva a formação no curso. Por um lado, identificamos as questões estruturais da universidade que afastam essa possibilidade de investir neste recurso poético. Por outro lado, temos de considerar a temporalidade do passado em relação ao contraponto de Mônica Cunha no presente. A entrevistada afirma, de forma enfática, que é preciso considerar o contexto de ser segunda turma do curso ainda em início.
Ao tomarmos essa referência somos então conduzidos para outro enfrentamento do qual se leva a análise conceitual do Jornalismo. E, por isso, a pergunta se efetiva: Quando o jornalista está escrevendo, na prática do mercado de trabalho, o que predomina:
ele escreve mais para si mesmo, para o público ou mais para o editor ou para a empresa? A resposta vem com essa concepção conceitual de Mônica Cunha sobre esse caminho de descoberta, esse caminho de busca da conversa do jornalista com o seu público. Como já identificamos, esse é o ponto central da concepção da entrevistada. E ela primeiro explica a pergunta: será que o jornalista tem o conhecimento de “quem é esse público pra quem eu escrevo?”
Nossa, gente, esse público a gente descobre todos os dias. Olha, eu estou com quase 30 anos aprendendo sempre pra ser jornalista, e esse público a gente tá sempre descobrindo. Sempre, sabe? Se ele é trazer o público jovem pra gente. O que que o público quer? Ele quer mais segurança? Ele quer mais serviço? Ele quer mais política? Ele quer mais saúde? Sempre a gente tá tentando descobrir: quem é esse público pra quem a gente leva o nosso serviço? E a gente sempre se preocupa em falar com ele. Então, quando eu estou redigindo uma cabeça pro MGTV 1ª edição eu tenho que saber até as palavras que eu estou usando pra saber se tanto a Dona Maria do bairro Morumbi como um empresário que tá lá na casa dele no centro da cidade, se ambos vão entender, porque se um deixar de entender meu papel foi incompleto.
(Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
É preciso descobrir esse público para quem se escreve todos os dias. E conseguir o desafio de informar de forma que o entendimento sobre essa notícia esteja ao alcance do empresário e da Dona Maria. A narrativa de Mônica Cunha deixa claro que esse público não está somente como dado. O público está como problema conceitual na teoria do processo comunicativo.
Então, hoje, quando a gente escreve, a gente pensa nesse público, que nos desafia todo dia a saber quem ele é, né? Pra que a gente possa atender as demandas dele, as angústias dele, as respostas desse público, né? E aí esse é o fator principal, mas claro que a gente tem que levar em consideração também a linha editorial, como que você faz, que tipo de português você leva, que tipo de clareza quer você leva, qual o seu formato no jornal. E aí eu bato na tecla de novo que o Hoje Em Dia, assim, a gente tá trabalhando muito a questão da conversa. Sabe? Pra
aproximar cada vez mais e tentar sempre atender essa expectativa e essa resposta que o público pergunta, entendeu? Mas hoje a gente escreve pra essa pessoa. Toda vez que vem um texto, sabe, tudo, eu penso “será que eles vão entender? Será que isso está claro?”
(Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Mônica Cunha bate sempre nesta tecla: para que se escreva para o público é preciso atender as suas angústias, atender as demandas e estar próximo o suficiente para que consiga saber as suas respostas. É preciso estar próximo para que se estabeleça uma relação comunicativa neste desafiador movimento da rotina em contraponto ao cotidiano. E para que o jornalista escreva o texto neste processo de construção de identidade é preciso que ele desfaça a representação do público, tomada de forma estática. Pois aqui está o desafio: a todo dia somos levados a entender quem é ele. E, assim o público salta de um dado estatístico, de uma suposta homogeinização em que há negação da identidade, para surgir como uma produção de sentido, um sujeito do processo comunicativo. Ao considerar o movimento do público neste processo, o jornalista então é levado a refazer diariamente a pergunta que o desloca sempre nesta constituição: será que eles vão entender?
Nota-se que eles estão no plural a demarcar as diferenças que constituem cada particularidade e, ao mesmo tempo a identidade do público como sujeito. No entanto, há outros fatores que precisam ser levados em conta nesta escrita, que já se sabe não é livre ou está alheia da força da estrutura. E entre elas está a linha editorial do qual o jornalista está. Mônica Cunha perpassa pelo problema, sem trazer uma projeção analítica de como essa força pode desviar desse caminho do leitor como sujeito. Para que se efetive o contraponto, a narrativa da entrevistada é conduzida para entrar em outra discussão que exige novamente o estar em embate: a historicidade do fazer jornalístico.
A resposta tem a entonação de considerar que o Jornalista é um contador de história. Sobre a pergunta se considera que o trabalho do jornalismo é histórico, Mônica Cunha é enfática: “sem dúvida nenhuma que considero histórico”. O diferencial aqui é entender por quais caminhos a entrevistada segue diante dessa explanação em que articula, pelos fatos ocorridos, o que se apresenta como fator histórico.
Sabe, é engraçado que quando você fala assim “você considera o nosso trabalho histórico?” aí me vem uma imagem lá de 89 do Pedro Bial cobrindo a queda do Muro de Berlim. O que ele passou ali? Um dos momentos mais importantes da nossa história, que foi a derrubada daquela divisão entre as duas Alemanhas. Então eu acho que o nosso trabalho é histórico, a gente tem a Constituição lá da década de 80, a gente acompanhou a Constituinte, a gente teve o movimento das Diretas Já, a gente teve a queda do Collor, agora mais recentemente o afastamento da presidente Dilma, né? Então querendo ou não, o Jornalismo, além de investigar, apurar, questionar, apresentar um serviço, mostrar tudo isso, a gente... Eu diria que somos contadores da história, estamos ali, a história que todo mundo faz. Desde os mais simples, aos mais intelectuais, aos políticos, ao senhorzinho que tá lá no campo. Então eu acho que o Jornalismo, nessa mistura toda, ele é, sem dúvida, um contador de história. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
A queda do muro de Berlim com a cobertura de Pedro Bial é a primeira imagem. Em seguida, há a descrição de outros fatos que levam Mônica Cunha a explicar sobre quais alicerces define a historicidade do Jornalismo. Há um privilégio de acentuar os grandes fatos, no primeiro momento, para depois ao final estender que o valor histórico pode ser entendido ao cotidiano em que o senhorzinho produz sentido no campo. E, ao considerar essa dissociação, vem a primeira contraposição. Já que o fato se efetiva como prioritário, será que o jornalista se efetiva como sujeito neste processo? Ou para ser mais exato: você considera que o jornalista, quando está escrevendo a sua matéria, ele tem consciência de que ele está escrevendo história?
Não. Isso não vem claro assim, eu acho que vem depois. Porque no momento ali que ele está escrevendo, ele está preocupado com todas as informações que ele apurou, pra escrever aquela matéria da melhor forma possível, da forma mais clara, pra chegar, porque ele é ponte, no seu objetivo que é o público. Então, naquele momento talvez ele não tenha essa consciência clara. Mas, depois que isso passa ele diz “puxa, ajudei”. Eu acho que é assim que funciona. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
O jornalista quando escreve a sua matéria não tem consciência sobre a historicidade. E quando acontece então essa retomada da consciência? Mônica Cunha considera que essa consciência vem depois da divulgação do fato. É como se considerasse um tempo de distanciamento do sujeito jornalista para que tome consciência. Um distanciamento que parece estar distante teoricamente do recuo histórico, necessário para se escrever sobre a historicidade do passado no presente. O ponto provocativo é que a mediação com o público é o principal elemento que estabelece os limites da consciência da produção de sentido. Em vista disso, poderíamos avançar com a entrevistada para que se efetive essa análise: qual elemento é definidor para que se reconheça o jornalismo como histórico? Seria o fato, ou é o jornalista que escreve, ou é o tempo que se torna história? Seguindo a linha de argumentação, a entrevistada afirma:
O fato, né? Eu acho que o fato que vem pra gente, que você noticia e que a partir disso tudo vai se transformar em história. Eu acredito que é o fato. Que te leva a desenhar essa história. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
O primeiro fator reativo é considerar que a entrevistada, ao reconhecer o fato como ponto nodal para entender o fator histórico do jornalismo está nos colocando dentro de um problema teórico. Essa compreensão poderia nos levar a afirmar que se está funcionalizando o fato, hierarquizando um valor dele em relação ao sujeito que escreve. Mas há outra comparação que não podemos deixar à margem: o recurso poético. Ao considerar o recurso
poético aqui entenderíamos que, em vez da hierarquização, é na relação dialógica do sujeito jornalista com a interpretação do fato, neste olhar poético, remetido para o leitor como sujeito, que se efetiva o tempo de reconhecer como história. E então somos levados a considerar como histórias contadas desde o plantio da mangueira do seu Nenê até a queda do muro de Berlim.
A justificativa de todo esse processo veio com outra indagação problemática. Você considera como problema no jornalismo essa ausência de compreensão do jornalista no momento em que escreve? E Mônica Cunha encerra a linha de raciocínio retornando a esse processo comunicativo:
Não, de forma nenhuma. Não considero ela um problema. Sabe, eu considero que seja, naquele momento, o foco é mostrar aquele fato com toda verdade, com toda a responsabilidade, com tudo que você viveu, discutiu, e tudo isso com a sua técnica vai chegar até a pessoa da forma mais imparcial, digamos assim, e verdadeira possível. Aí depois sim, se torna história. Mas eu não vejo problema nenhum, porque ali você está focado. Quando você sai pra fazer uma matéria você já imagina o que você vai perguntar, você prepara uma lista de perguntas, né, então ali é foco. Depois você construiu a história. Isso é o máximo. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Mônica Cunha era adolescente quando decidiu ligar para a Rádio e construir seu futuro como jornalista. Do acaso passou a ter experiência vivida na área, se graduou e exerce a profissão. Mas os caminhos não percorridos sempre permanecem como trilhas que, de alguma forma ou de outra, passam a ser encontradas pelo sujeito seja no movimento do presente, seja no movimento do passado. Ao ser perguntada sobre onde deixou o desejo de cursar Medicina e Decoração, a entrevistada apontou: “No coração (risos). Eu deixei no coração”. Ela descreve que os três anos de cursos a trouxeram amigos para a vida toda.
E muito do que eu aprendi lá eu uso no Jornalismo, por exemplo, História da Arte. Eu tive História da Arte, e querendo ou não, isso me
ajuda, no momento que você vai, sabe... Ou ler alguma coisa, ou de repente você vai visitar uma exposição e aquilo eu sei o que é e posso trazer de repente pra trabalhar na TV também. Então o que eu fiz na UFU não ficou em vão, de certa forma deixou um legado, né? Que eu pudesse utilizar na profissão que escolhi, que foi o Jornalismo. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
E o amor pela medicina seguiu um caminho mais materializado no Jornalismo.
E a Medicina, olha pra você ver que interessante. Querendo ou não, mesmo que não tenho feito, amo Medicina e acho que até teria me dado um bocadinho bem na profissão também, mas querendo ou não, no Bem Viver, que foi um dos pontos altos da minha trajetória enquanto jornalista, sabe, foram quase dez anos, eu pude de certa forma aprender um pouco, porque foi um programa voltado pra saúde, então todo sábado a gente discutia algum distúrbio, alguma doença, o caminho da prevenção... Então, eu pude de certa forma, conhecer um pouco desse mundo da Medicina com o Bem Viver. Então assim, não foram sonhos deixados, não foi uma faculdade largada de mão. Querendo ou não cada um deles ficou na minha vida de alguma forma. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
O amor pela Medicina se transfigurou em tema no ponto alto da carreira de jornalista de Mônica Cunha. E os três anos de Decoração são conduzidos para o conhecimento conceitual na leitura interpretativa da TV. Mônica Cunha tem a certeza, por meio da experiência vivida, que o legado deixado pelo curso de Decoração e o amor pela Medicina de alguma forma estão sendo atendidos em sua vida. Os sonhos nunca são deixados de lado. Não se trata de deixar de lado por uma atitude racional do sujeito ao buscar outros caminhos de vida. Mesmo como o caso de Mônica Cunha, na qual o Jornalismo não pertencia à memória coletiva como profissão na família. A descoberta do Jornalismo, seja por curiosidade, seja pela necessidade posterior de conceituação crítica, remete a um fator inevitável do inconsciente. O conceito de Jornalismo, então, precisa estar problematizado com essa relação
comunicativa: em meio a produção da rotina das matérias, em meio a subversão do poético para dar sentido ao cotidiano, em meio ao fato como definição de história, o sujeito, nesta relação de tensão e conflito, vai se construindo pela identidade. Uma identidade construída por meio do diálogo concreto entre a realidade vivida e os desejos e sonhos em materialidade nos movimentos de passado e presente.
Capítulo 5 - Assessoria
João Feliciano
A interrogação do eu provocado na produção de
sentido
Se pudesse dimensionar o grau de realização de João Paulo Feliciano Fernandes no mergulho dialético da entrevista há um termo que singulariza: provocação, ou melhor: “eu gosto de ser provocado”. O termo precisa ser interpretado no sentido da história de vida de João Fernandes. Mas aqui já torna-se necessário fazer uma interrogação: o ser provocado é uma resposta efetiva do sujeito João Fernandes como diálogo construtivo de si mesmo na construção da identidade? Ou o termo “provocado” indicaria um comportamento adicionado à exigência de resposta na experiência vivida?
Esse questionamento percorre dois sentidos: o primeiro, a interrogação como constitutiva do eu; a segunda, como reação para o sentido do outro. É com essa dimensão interpretativa que devemos percorrer a produção de sentido de João Fernandes. Há descobertas e interrogações que ele narra estar descobrindo no decorrer do próprio processo de diálogo comunicativo da entrevista. É como se estivesse a todo momento percorrendo suas análises na vida sustentado nesse próprio teor existencial: para que se possa ter consciência sobre a realidade em que o sujeito vive é preciso que ele seja provocado.
João Feliciano cursou das faculdades. Começou na Faculdade Católica de Uberlândia, em 2009. Como o curso foi fechado por motivos financeiros da empresa, ele estava entre os alunos do curso que foram transferidos para o Centro Universitário do Triângulo (UNITRI), onde se formou no curso de Comunicação
Social com habilitação em Jornalismo. Essa mudança longe de trazer justificativa para revelar que o contexto o prejudicou em sua formação como jornalista, leva-o sempre a ponderar que, na prática, passou por uma feliz coincidência:
Eu gosto de destacar isso pra todo mundo porque às vezes faz uma mudança as pessoas ficam “nossa e aí cara, te atrapalhou?” E pra gente foi bom porque a católica não tinha muito -, eu não sei se vocês chegaram a conhecer, vocês são agora dessa leva? (...) Não tinha laboratório, era tudo... Não é que era arranjando é uma palavra ruim isso. Mas, eles se esforçavam pra você ter uma vivência de laboratório. Mas tinha que ser fora do prédio da universidade e isso começava a partir do 5º semestre e justamente nessa época que a gente ia começar a colocar a mão na massa a gente foi pra Unitri que, querendo ou não, independente do que as pessoas costumam falar, tem uma boa estrutura, pelo menos pra essa questão, então foi positivo. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A trajetória profissional deste jornalista tem início em 2010. Mais precisamente no primeiro estágio, do então Jornal Correio de Uberlândia. Essa primeira experiência, estranha no primeiro momento porque almejava trabalhar em TV, se estendeu de outubro de 2010 a agosto de 2013. Naquele ano, entrou para a FSB que é essa agência que atende a Algar Telecom. Essa é a segunda experiência em assessoria de imprensa: a primeira aconteceu na empresa Kompleta Comunicação, que atende, atualmente, o grupo Algar pra fazer assessoria de imprensa,
nessa época eu tive contato com TV, eles tinham um programa da Revista Cult, acho que chamava Cult Clã, acho que era de colunismo social e apesar de ser bem Amauri Junior assim o programa... mas foi muito bom de você começar a ter noção de postura no vídeo, a sua voz como você trabalha ou não, luz. Porque é bom você ter um conhecimento por de trás também. Um dia você pode estar segurando uma câmera pra você gravar sua própria matéria. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Em que contexto podemos considerar que existe uma relação direta entre a autoidentificação de ser tímido com a definição da escolha de se inscrever no Jornalismo? Esse fator é importante por considerarmos que a localização da timidez em seu ser o conduziu para o primeiro desafio provocado pela própria vida. É
sintomático a frase do entrevistado de: “eu tive um tempo que eu era meio tímido assim, hoje em dia isso já não existe mais, mas eu vi que eu queria trabalhar com comunicação”. No exercício de refazer o caminho pela memória, João Feliciano narra a experiência de jovem aprendiz que realizou na Caixa Econômica Federal como o ponto essencial para a escolha do curso.
Natural de Monte Carmelo (MG), João Feliciano estava no Ensino Médio, com idade 15 anos, quando relembra um momento do passado que justifica o caminho do presente:
E lá a gente tinha um processo no colégio, que era uma espécie de jovem aprendiz que a gente trabalhava na Caixa Econômica e em outros lugares. E eu estava com 15 pra 16 anos e eu passei nesse processo e trabalhei na Caixa durante um ano. E eu lembro que lá mesmo que não era uma coisa muito legal. Mas a gente fazia atendimento ao público. Porque quando você fala de jovem aprendiz é mais ou menos organização de papel, né, organização de planilhas. E a gente chegou a fazer atendimento, e eu vi que eu gostava muito desse contato com pessoas, sabe? (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
O ponto mais fundante dessa definição está longe das papeladas ou do cálculo financeiro, mas no diagnóstico atual da importância de deter informação. O tímido descobre que essa relação de sociabilidade de lidar com a pessoa e ouvir as histórias por elas narradas se torna essencial para o aprendizado. E, ao mesmo tempo, importante para produzir sentido para a vida. No entanto, João Feliciano teve de se submeter a outros dois fatores antes de se inscrever no Jornalismo, o primeiro é o Teste Vocacional. Ele revela que os testes sempre apontavam para a área de Artes. Talvez seja por isso que as primeiras escolhas sobre o que fazer na graduação tenha perpassado pela Música e pelo Teatro.
É nessa revelação que se defronta o segundo fator: a orientação
da família. João Feliciano analisa atualmente que se trata de um pensamento tradicional a orientação recebida da mãe: faz primeiro
um curso que possa lhe dar dinheiro. E assim nesses dilemas que o Teatro e a Música foram superados pela definição de fazer Jornalismo, aos 17 anos.
Eu não arrependi hora nenhuma, eu entrei com 17 anos na faculdade e sai com 21, uma idade que quando você fala assim parece relativamente novo, mas eu acho que tudo aconteceu na hora certa, é bom você ter esse tipo de experiência, você tem uma maturidade diferente. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Há outra referência que sustenta a busca prática de João Feliciano na definição do Jornalismo: o encanto pela TV. A possibilidade de assistir a MTV ao ter acesso à antena parabólica trouxe para o sujeito uma outra realidade da qual ele considera importante:
Por que que eu tô contando esse processo da MTV? A MTV e jornalismo é bem destoante, mas foi vendo MTV que eu falei: cara, é meio que isso também, sabe? Essa produção de audiovisual é massa, e eu não quis fazer jornalismo pra ser o Willian Bonner ou alguém da Globo. Não! Nunca tive essa pretensão e hoje não tenho também, de ser o jornalista da Globo, de ser não. Eu acho que eu tenho outras necessidades, e aí juntando isso eu falei: não, é o Jornalismo mesmo, comecei e me encontrei de verdade. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Para entender o sentido da frase de ter se encontrado de verdade, a narrativa histórica de João Feliciano necessita atravessar o primeiro estágio que fez na área de Jornalismo. Há, por ele, a própria consideração que se trata de um jornalista na contramão ao revelar que não era uma pessoa de leitura. E se tomarmos outros elementos da representação do jornalista, há outro fator que remete ao sentido negativo.
O pessoal geralmente fala que jornalista lê muito ou tem um vício, ou fuma, bebe, não sei o quê, eu já bebi bastante mas hoje eu não bebo mais, não fumo nem nada disso e eu nunca fui um leitor, eu sempre
admirei a leitura, mas é uma coisa que nunca me provocou. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Sem ter tesão pela leitura, sem fumar e sem beber. Poderíamos questionar aqui o reducionismo com que se exterioriza sobre a representação do sujeito jornalista, caracterizado aqui mais pela generalização do comportamento com que lida com a rotina de trabalho do que de sua constituição de identidade. Mas se esses elementos representativos perfazem as referências iniciais do entrevistado, o que levaria então a sustentá-lo na decisão e no caminho? É nesse espaço de tempo em que necessita construir outros elementos de referência, que João Feliciano apresenta como curiosidade do passado: a realização do primeiro estágio na área de Jornalismo.
Para si mesmo já havia uma definição: sem paixão pela leitura, o sujeito já havia tomado a decisão: “não, jornal impresso vai ser a última coisa que eu vou fazer, não quero de jeito nenhum” (risos)” (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016) Em vez da última, foi o primeiro enfrentamento. A experiência vivida no Jornal Correio de Uberlândia iria então levá-lo ao que é possível identificar como caminho de sua produção de sentido no jornalismo, porque é necessário entender: primeiro, como alguém que não possui amor pela leitura se define em realizar o curso de Jornalismo e, segundo, como a primeira experiência, que tinha tudo para ser traumática, o conduz para o outro extremo: o prazer inenarrável agora da leitura.
A resposta não está no texto, mas no que ele revela como ter sido provocado. “gente, mas eu peguei uma paixão no negócio, hoje eu amo escrever. E uma das coisas que mais me dá prazer é escrever, e não escrever tipo ‘ah, eu voei’ (risos) não, mas tipo, eu gosto de ter uma provocação...” (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016) Esse elemento provocador que atirou João Feliciano para o prazer da leitura e, portanto, afirmar um elemento de
sentido de sua representação do que era jornalista, tem nome: Ricardo Ballarini, que atuava como consultor de conteúdo do Correio.
João Feliciano revela que tê-lo encontrado neste momento e contexto na redação é a maior prova de que é um homem de sorte. Mas o que fazia Ricardo Ballarini para que a concepção de jornalismo e do ato de escrever tomasse novo significado para João Feliciano? O consultor de conteúdo do Correio de Uberlândia pegava cada texto e devolvia com apontamentos sobre forma, conteúdo e ao que parece, a própria concepção do que é notícia. E, dessa forma, o comentário do texto ultrapassa o terreno da análise de conteúdo para se atingir outro elemento do método que a falta de experiência do estagiário até aquele momento não conseguia alcançar. E, assim, ao ultrapassar o conteúdo, Ricardo Ballarini atingia outros sentidos do estagiário. Esse sentido de provocar chegava até ao limite do sujeito enquanto existência no campo profissional.
Como ele fazia isso: ele instigava a gente, porque meio que colocava em cheque o seu profissionalismo. Mesmo que enquanto estagiário a gente podia participar disso que foi uma coisa muito boa, mas você fala: “nossa, não é possível que eu sou tão burro assim” (risos) Você entrega os textos e o cara devolve tudo vermelho ali pra alterar, e isso foi minha, assim, não, eu tenho que melhorar, porque não estava bom. Eu quero entregar um texto redondo e aí eu comecei a pegar essa vontade, sabe? E depois eu vi que foi uma paixão mesmo, né? às vezes acontece isso, a gente não gosta de determinada coisa “ah, não gosto de comida japonesa” mas aí eu experimento... e acho que o contexto foi meio assim. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
O encerramento da frase ao tratar com analogia a comida japonesa parece ser desvio, ou uma situação deslocada, se considerarmos que a ênfase do discurso está somente orientada pela lógica do comportamento, pois é importante considerar que há uma distância qualitativa na própria constituição do sujeito ao
deixar de ter hábito de leitura para o prazer de ler, do que passar a gostar de comer comida japonesa. Porém, o centro deste processo está em mostrar para o Ricardo, e depois se estabelece para si mesmo, que quem está entregando o texto é um jornalista. Eis aqui a materialização do sentido provocador para compreender o estado da qualidade profissional: receber o texto com o menor ou, de preferência, sem anotações em vermelho do consultor de conteúdo.
E sobre esse aspecto a pergunta se faz irreversível: É possível dizer que o desafio de produzir um bom texto mudou você como jornalista? E o entrevistado responde agora de forma dedutiva:
Total, totalmente, totalmente, Foi uma provocação assim, fora do comum, que hoje eu não consigo me imaginar fazendo nada sem escrever, sabe? Eu gosto de escrever, tanto é que eu lembro que “ah, vamos fazer festa dos amigos não sei o quê” vamos fazer um evento no facebook, eu que curtia escrever, deixa que eu escrevo...
(Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
O distanciamento da leitura, no tempo passado, se reconfigurou como sujeito leitor, no tempo presente. Porém, mais do que isso, o sentimento que toma forma no sujeito jornalista de João Feliciano é entender a vida como um desafio. É como se a provocação de Ricardo Ballarini fosse transposto para outros setores de sua vida, estendida para outros sentidos. E, dessa maneira, veio o primeiro desafio de iniciar o curso na Faculdade Católica, mas ter de se transferir para a Unitri.
A memória das disciplinas práticas que cursou na Unitri seguiu a lógica do pensamento que o norteou quando optou pelo Jornalismo. João Feliciano, seguindo a inspiração provocada pela MTV, recorda-se das aulas “bacanas” de telejornalismo. A importância das aulas estava na provocação do professor:
Então eu gostava muito das orientações que o professor dava, então, a gente gravava, olhava no vídeo e falava “nossa mas tá errado isso
aqui, eu tô torto” sabe? Nossa tipo, eu falo poRta (risos). Tem muita coisa disso. E eu gostava desse tipo, dessa análise, sabe? De se colocar em cheque e se ver. Na Católica quando a gente teve a oportunidade disso também a mesma coisa, mais ver texto assim, mas lá a gente não teve produção mesmo... (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
O sentido das aulas práticas está relevado pela memória também na provocação do professor de telejornalismo. A produção de um minidocumentário sobre prostituição é um dos exemplos elevados em sua experiência. Isso porque para realizar o trabalho o grupo conversou com travesti, falou com mulheres também e gravou isso em vídeo. E assim se materializa aquele desejo, manifestado desde o estágio na CEF, da importância de ouvir e conversar com o público.
Mas as aulas teóricas, embora não fossem de sua prioridade, também trouxeram momentos em que a memória lhe apresenta fatores para a identidade. Trata-se da provocação do professor Paulo, de Antropologia. Mas o que esse professor tem de diferente ao ponto de conseguir ser rememorado por João Feliciano? É sobre a experiência vivida.
Teve um professor que marcou muito. Eu acho que a minha sala toda e não só a mim porque ele viveu a ditadura e a gente fez um trabalho sobre isso. E ele era de Antropologia. E ele trouxe um contexto pra gente. Ele era... o estilo dele o estereótipo dele era muito legal, porque ele era já um senhorzinho que tinha limitação, cabelo bem branco, mas que gostava de rock’n roll. Ele era meio boêmio (risos), então era uma coisa bem... acho que era Paulo, não vou lembrar o sobrenome agora, mas era Paulo, e eu lembro que era bom, e isso foi no primeiro período de faculdade, no primeiro e no segundo.
(Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Com esta lógica de ser provocado, instigado ao reconhecimento do outro no processo de formação de jornalista, João Feliciano narra seus conflitos quando deixou a universidade para ir ao
mercado de trabalho. Esse é um ponto essencial para entendermos as tensões e os conflitos que demarcam a vida do sujeito quando inicia no campo profissional. Ademais, João Feliciano demarca precisamente o elemento de choque: a determinação do econômico sobre o social. É assim que ele passa a criticar que a universidade deixa de preparar o bom profissional porque fica “no mundo das ideias” e não consegue chegar no dilema ético da profissão do dia a dia. Cabe pensar sobre um problema de natureza conceitual: o que consiste esse distanciamento da realidade?
A experiência revelada pelo entrevistado demarca que determinadas disciplinas práticas e teóricas cumpriram com seu objetivo de levar a produção para a realidade da comunidade. Então, de que ordem de problemas se efetiva no dito do entrevistado?
De que sim, é uma realidade capitalista. E sim você tem alguém que vai pagar seu salário e, às vezes, você tem que concordar ou não com certas coisas e decidir se vai seguir aquilo, se vai escrever contra ou não. E a rotina que a gente tinha, que na verdade você chega no mercado de trabalho é onde você vê que você vai entrar na redação tal hora e não tem hora pra sair. Não é um trabalho simples de carteira assinada, é carteira assinada, mas não é aquela coisa “eu vou bater o ponto 8h e sair 18h” (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A pergunta encaminha então para este embate: até que ponto a universidade tem seu peso neste estado de conflito? Tem o peso quando o sujeito, ao se defrontar com um problema, se vê sem recursos para enfrentá-lo de alguma forma, principalmente João Feliciano que está em trabalho de assessoria de imprensa. Há a defesa por parte do entrevistado de que a universidade não deve se adequar, nem acompanhar esse tempo.
Não se adequar e eu não sei se acompanhar, mas uma coisa que me vem à cabeça agora, não tinha parado pra pensar nisso, mas eu acho que provocar um pouco mais essa vivência, então tentar talvez colocar ali... não é só fazer uma visita na redação, que o dia que você vai fazer visita gente. É igual visita em casa (risos) sua casa tá uma bagunça aí você joga tudo no armário, você dá uma passada de pano molhado só no chão e recebe, eu acho que é legal assim ter “ah, vamos ter uma semana que a gente vai ficar 3h na redação”, sei lá, sabe? Então eu acho que faltava um pouco disso assim, essa integração de mercado e faculdade, não só por estágio. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
E diante deste dilema econômico, é importante entender de João Feliciano qual o conceito de assessoria de imprensa. Se manter esse mesmo sentido interpretativo, a crítica da assessoria da imprensa recairá nessa lógica da determinação, em que se efetiva somente com a proposta do benefício, ou melhor, vantagem da empresa. João Feliciano percorre este caminho trazendo como elemento paralelo a publicidade. Todavia, para ele, não se trata da publicidade que está definida somente como venda do produto. Esse poderia se considerar como a tônica de uma determinada publicidade que para o entrevistado não responde como sentido ao seu trabalho no cotidiano. O que se sustenta no momento atual é que a lógica deixa de ser a venda do produto para a venda de valor. E o que o conceito de assessoria de imprensa tem algo relacionado a esse novo processo de mercantilização da publicidade? É essa tônica que temos de entender diante do discurso do entrevistado:
Assessoria de imprensa, na minha visão, é uma maneira de se gerar mídia espontânea e evidenciar, hoje… Eu via antes uma oportunidade da empresa pagar pouco e tá na mídia. Mas hoje eu vejo que é mais um posicionamento de marca, a assessoria de imprensa é um braço ideal e é essencial pra quem quer promover a marca mas preocupado mais com seu institucional, ainda mais nesse mercado que a gente vive hoje. E, por isso, acho que a gente vive um cenário de oportunidade pra quem quer ser assessor de comunicação. E aí eu
amplio, não só imprensa, porque a gente não funciona mais só aquela publicidade de “compre isso! Compre agora! Tá barato!” e tudo mais, a gente tá vendendo muito mais valor do que preço e produto, né? Por isso, você vê chovendo campanha aí que faz a gente chorar (risos) essas coisas de pai e mãe, de namorado, de filhos, e a assessoria de imprensa pode ajudar muito nisso porque ela vai tá vendendo mais o valor. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A concepção de assessoria está mais ancorada pelo valor. ´Talvez a frase em si esteja querendo estabelecer dois vínculos: enquanto a publicidade se efetiva como produto, a ordem mercadológica tratava o outro como consumidor, ou para sermos mais crítico, como objeto do consumo. Mas, ao tratar sobre o valor, há mudança substantiva para essa concepção comunicativa? Ao que se anuncia, ao tratar o valor a mensagem da publicidade, e estendido para a assessoria, estava mais próximo para conversar com o público sobre seus dilemas na vida. Quando se pronuncia que a marca se estabelece como ponto essencial, ou o valor, são as tensões e conflitos dos sujeitos que passam a ser direcionados para identificação. A questão é se esse fator leva mudança de consumidor para cidadão no processo comunicativo.
No momento em que o sujeito pode conceituar e revelar o sentido do seu trabalho no presente, como apresentou João Feliciano sobre assessoria de imprensa, a memória é levada a refazer o percurso e revalorizar determinados caminhos do passado. É assim que João Feliciano reavalia o conhecimento produzido na sua graduação na universidade. A pergunta tem um sentido simples, mas se efetiva como complexa: qual o valor que você atribui para sua formação? E a resposta teve um tom de análise:
Eu acho que ela foi bem mediana, mediana porque a gente não tinha tanta cobrança, sabe? Eu não vejo assim, porque, vou dar um exemplo, se eu tiver feito 18 provas, 15 provas nos 4 anos de faculdade, foi muito, sabe? A gente não tinha muito prova (risos),
não tinha gente, de verdade. E não que eu acho que isso faça diferença, eu acho que quando você faz um trabalho sei lá, interdisciplinar, você faz, sei lá, em conjunto um trabalho em grupo, uma exposição na frente da sala, às vezes isso é até mais rico, mas eu acho que faltou um pouco de firmeza, sabe? Que eu via amigos assim que não faziam Jornalismo do tipo “nossa, vou ter que varar a madrugada estudando”, “nossa, eu tive que fazer um trabalho o final de semana inteiro”, eu não tinha, não foi fácil também, igual falar tipo que foi mole, mas eu acho que podia ter exigido um pouco mais.
(Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
O termo “não tinha tanta cobrança” está diretamente vinculado ao sentido de ser provocado. João Feliciano revela que teve bons professores em sua formação, mas de uma forma geral faltou a exigência para que se atinja o máximo de sua potência criativa. Se por um lado, esse desafio provocador colocado pelo professor na universidade, pelo consultor no estágio ou pelo editor no trabalho profissional, sobrevêm outro debate de suma importância para entendermos a concepção de jornalista. A questão ao entrevistado foi enunciada da seguinte forma: de uma forma geral, você acha que os jornalistas no trabalho prático, no mercado de trabalho, escrevem mais para eles mesmos, para o editor, quer dizer, para a empresa que tem uma definição ideológica então você sabe o que vai escrever, ou para o público, o que predomina?
A resposta nos colocou para o centro do debate sobre a relação entre jornalismo e público, tão essencial na definição da área de jornalismo pelo entrevistado.
Uma boa pergunta. Nossa, eu fico até com medo de responder essa pergunta assim porque eu vou falar por mais pessoas, é difícil falar isso assim por outras, mas eu acho que existe uma mistura de tudo na verdade, existem jornalistas mais idealistas que eles pensam e bate a mão na mesa e que vai escrever pelo público e aí vai chegar um editor que ele vai te cortar porque ele sabe os valores comerciais do jornal, então dependendo algumas coisas pode falar, outras coisas não pode, vão ter jornalistas mais vaidosos que vão escrever por conta
dele mesmo, ou escolher certas formas de abordar um assunto baseado no que ele vive, então nossa, Gerson, muito difícil responder essa pergunta, não sei... (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A resposta enunciada assim de forma genérica, tratando da pluralidade de conflitos do ser jornalista não consegue e dificilmente poderia levar o nosso entrevistado a uma conclusão, sem que recorresse ao extremo do relativismo. E é com base na última frase que a indignação para a resposta que se distancie do impessoal e se aproxime da experiência vivida. E, com isso, efetivou-se a resposta, agora como análise dos quadros de memória vividas pessoalmente.
Nossa, do que eu lembro eu não consigo... no Correio eu acho que eu via mais pessoas que escreviam pelo jornal. Eu não vou falar pelo editor, mas pela empresa. Eu acho que era bem mais assim do que... o jornal lá não era um jornal tão vendido, não é até hoje, eu acho que ele produzia, na época, produzia conteúdos muito bons e hoje ainda produz, mas que ele tinha uma questão comercial que era muito forte assim por isso que eu acho que as pessoas acabavam escrevendo pelo jornal mais que pelo próprio público às vezes.
(Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
João Feliciano então toca em um sentido importante para o jornalista. A experiência vivida no Correio de Uberlândia levou ao diagnóstico: o que impera é a escrita mais para empresa do que para o público. Esse elemento remete a outro fator: o sentido de historicidade do jornalismo. Quais são as consequências para o significado do jornalismo, principalmente para João Feliciano, se considera a perda do público como referência para o sentido comunicativo. É com este contexto que João Feliciano é conduzido a entrar na provocativa questão da pesquisa: Você acha que o nosso trabalho como jornalista, é histórico?
Para a resposta a essa pergunta, considera-se o jornalismo histórico. João Feliciano foi categórico: “Muito”. O ponto essencial em seu discurso é entender se a afirmativa sobre o
jornalismo está diretamente vinculada ao sujeito jornalista. E a continuidade das respostas levaram a esta reflexão no desenvolvimento do ato da entrevista.
Como sustentar esse “muito” respondido de forma dedutiva? E então o entrevistado mergulha no convite da entrevista como dialética a refletir sobre si mesmo.
Eu acho o jornalismo muito histórico porque... primeira coisa a gente produz conteúdo e a gente produz conteúdo que vai ficar registrado por um determinado tempo. Mas hoje, com essa oportunidade do digital em si, você pode eternizar isso. Porque a internet tá pra sempre aí. Algumas coisas você pode apagar, mas você vai ser sempre registrado. Todo conhecimento que a gente tem de história antiga hoje foi baseado em relatos que eram praticamente jornais Então, os caras precisavam fazer algum comunicado, escrevia. Ou na época que eles tinham os folhetins, que eram pregados assim. Enfim né, tudo isso. Eu acho que pela nossa facilidade de dominar o conteúdo e ter a oportunidade de divulgar esse conteúdo, somos historiadores sabe? Ou criadores da história, também... (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A primeira resposta leva ao entendimento teórico-conceitual sobre o que o jornalista considera como histórico: o conteúdo que fica registrado na plataforma eterniza um momento da produção social do jornalista que tanto o leitor do presente, quanto os de outras gerações irão ter como documento histórico. Mas será que esse procedimento de ter como registrado já sustenta a afirmativa final de vincular os jornalistas como historiadores? Ou se trata da simples divulgação? O que consistiria neste ser criador de história?
A próxima etapa do prosseguimento da entrevista tinha como ênfase o mergulho para entender o sujeito jornalista. E então, se instaura novas problemáticas em que se busca entender a dimensão da afirmativa de ser o jornalista um historiador: você considera que o jornalista, submetido a rotina no trabalho dele no
mercado, tem consciência de que aquilo que ele está escrevendo é histórico? A resposta tangencia esse paradoxo.
Talvez não consciência. Mas o que ele faz, na minha visão, é totalmente histórico. Ele relata um cenário, ele relata um comportamento, por exemplo, as pessoas falam “ah, mas hoje em dia o povo só quer saber de bunda de fora, escutar funk” não sei o quê... Gente, será que quando a gente abre um caderno de entretenimento e a Anitta tá estampando o negócio ao invés de ser... (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
E a reflexão desta resposta prossegue na tentativa de encontrar elemento paralelo que possibilite sustentar esse “muito”.
É, será que não é uma tendência? Porque assim, a gente não vive muito atrelado, existe conteúdo demais e a gente quer escolher. E isso pra gente é o legal. Quer mais pensar em divertir. Então, estou só pegando um negócio aleatório aqui, mas acho que a gente consegue pegar esses registros. E aí você analisa todo um cenário sabe? Então, ah não, então não escreveu só sobre que a Dilma foi afastada tal e isso é história? Não gente, isso é fato histórico independente de ter um jornalista ou não, algum meio de registrar isso você ia ter que ter. Mas, agora eu não sei se o jornalista tem consciência do papel que ele está registrando história, em si. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Como então resolver esse dilema em que o conteúdo se efetiva como histórico independe do sujeito que o escreve? E assim se efetiva a problemática em que o aspecto central é entender a compreensão de historicidade que se efetiva no sujeito que a produz, quando o discurso automático de ser o jornalismo com status histórico. Se aprofundarmos uma de suas indagações neste segundo quadro teremos de ser obrigados a questionar se há hierarquia nas publicações em que fatos devem ser considerados como históricos, em relação a outros que se perdem na dimensão das informações da internet ou nas páginas impressas de algum caderno de editorial.
E quem é responsável ou legitima essa hierarquia? Levado ao extremo desse raciocínio teríamos de questionar o sentido crítico da razão para cairmos na identificação de uma racionalidade. Não se trata de fatos que se tornam históricos, mas de sujeitos presentes neles que conduziria a uma primeira perspectiva de definição de documento da história. A exemplo do afastamento da presidente Dilma que se torna um fato histórico. A questão desta defesa é entender se essa racionalidade não legitima uma forma de poder em que o outro, considerado como marginalizado no processo comunicativo, torna-se relegado a uma dimensão secundária nesta definição de história.
O próximo passo neste diálogo se fez na junção desses aspectos: como é possível resolver esse dilema, na defesa do sujeito como produtor social, em que o entrevistado dissocia o “eu não tenho consciência” do que “eu estou fazendo uma ação na história mas ela se torna histórica”?
É, mas será que ele precisa entender que ele está fazendo história? Esse é um questionamento que eu faço assim, porque ele tá produzindo conteúdo e isso vai ficar registrado. Eu acho que existe uma equação simples e que ela morre ali, agora. Como vão usar esses fatos, esses registros, eu acho que já cabe a outras pessoas. Eu acho que o jornalista quando ele toma noção da responsabilidade que ele tem de registrar o fato e ser fidedigno ao ponto de que isso está sendo perpetuado para outras pessoas verem, aí sim, aí eu acho que precisa ter uma conversa mais... (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A entrevista chega ao segundo dilema de contraposição entre o meio de comunicação e o sujeito que produz a notícia. Ao conduzir a dimensão da história para o tempo futuro, e não ao presente, torna-se prudente efetivar nova problemática para compreender essa temática. Essa afirmativa disposta na racionalidade técnica nos conduz a questionar: é o registro, e não o ato materializado na produção em si do trabalho do jornalista, o aspecto que predomina nesta conceituação histórica? E sobrevém
o dilema de considerar que o tempo, como duração, torna história, mas naquele momento, intensidade, em que se produz a notícia, não se revela a noção de história. Ou podemos introduzir uma nova pergunta que percorre esse embate e está no seguinte fundamento: O jornalismo é histórico por causa da plataforma? E isso implica em considerar que a plataforma, ou a tecnologia, seria hierarquicamente superior ao próprio jornalista que a produz? A resposta foi taxativa neste sentido:
Na minha visão de mercado eu acho que sim. Por conta de que, na minha visão, eu acho que é a minoria que tem essa consciência da relevância do conteúdo enquanto construção histórica do negócio. Acho que o pessoal lida mais com o valor do agora, se está passando no jornal de agora é porque o negócio vai acontecer amanhã, ou se aconteceu hoje vai tá no jornal de logo mais tarde. E então acho que a notícia nasce hoje pra morrer amanhã, ela tem um prazo. Eu acho que o jornalista lida mais com essa noção de tempo do que o “estou escrevendo hoje, porque daqui 20 anos alguém vai fazer uma pesquisa sobre o Odelmo Leão e eu escrevi que ele não é mais prefeito”, sabe? Eu acho que é mais a noção de tempo que é o X da questão. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Neste novo desdobramento, a resposta perturba por considerar a efemeridade da notícia, cujo valor está somente a ser consumido no hoje, sem qualquer valor para o amanhã. Como é possível entender esse efêmero quando o debate que se efetiva é pelo tempo de duração? Eis aqui a contradição a permear o debate. Aqui preciso restaurar a afirmativa do entrevistado para nos desvelar o conflito. Primeiro, o jornalismo é histórico. Segundo, o jornalista não tem consciência de que aquilo que escreve tem dimensão histórica. Terceiro, a notícia é efêmera e só tem sentido na dimensão do presente, já que morre amanhã. Mas, a mesma notícia que morre amanhã, no depois do amanhã, pela duração do tempo, é recuperada como valor histórico para compreender a realidade do passado. E, no decorrer deste cenário emblemático, efetiva-se nova questão sobre os aspectos delineados acima.
Então essa questão do tempo, é muito complexo poder falar disso, porque é a minha visão, a minha visão é difícil ser discutível com isso, sabe? Eu acho que a notícia ela tem uma validade e eu não consigo vê-la de uma outra maneira, assim. Lógico que eu sei da importância histórica do registro em si, mas eu não sei se eu saberia responder ao certo essa sua análise. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Aúltima parte da entrevista sobre este tópico vem com considerações para entender os elementos desta concepção do que é ser jornalista. A preocupação aqui está na continuidade de outra afirmativa exteriorizada por João Feliciano e que se refere sobre o sentido dominante ou a leitura preferencial da notícia: os jornalistas escrevem mais para a empresa do que para o público.
Outro dilema: se considerar que a duração do tempo torna histórico o factual escrito pelo jornalista no tempo presente, e se a referência do texto é mais para a ideologia da empresa, então que história está sendo narrada pelos jornalistas para compreensão no futuro? Qual sentido da história é essa que nós jornalistas estamos levando para daqui a 10 anos, 20 anos? Qual ideologia dessa história que está predominando como sentido dominante?
Nossa! Eu não sei. Eu tenho uma visão muito prática do negócio. Então, às vezes, eu posso ficar fugindo um pouco disso, mas eu acho que você está querendo é que por ter alguns filtros ou ter algumas portas pra atravessar a gente acaba filtrando o que vai ser história o que não vai ser história [...] Então é difícil de analisar isso. Eu não consigo fazer uma análise tão profunda porque a gente vive uma era onde existe uma produção de conteúdo muito extrema. Eu acho que vai ser até difícil pros historiadores do futuro terem um crivo pra analisar depois o que vai ser mais relevante. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
João Feliciano elucidou determinadas respostas e indagações no momento em que era sujeito da entrevista para refazer sua produção de sentido pela memória. Em seu percurso, entendeu o
teor qualitativo desde movimento de ser instigado, ou provocado para que pudesse desenvolver a sua opinião. E assim, ao ser provocado a encaminhar o texto para o consultor de conteúdo, do Correio de Uberlândia, e que o produto retornasse com o menor número de riscos vermelhos, conduziu-lhe a sair da falta de leitura para o prazer da escrita. Sendo assim, a entrevista se estabeleceu como diálogo crítico, no qual o sujeito é conduzido a indagar e desvelar sentidos sobre si mesmo. E é neste caminho que se situa oparadoxo: produzimos sentidos no cotidiano, mas quando esse cotidiano é interrogado ou levado a produzir um significado sobre opróprio sentido, é o viver que vai se desvelando e revelando a complexidade da vida. Para João Feliciano, o sentido de ser jornalista está no movimento provocador do próprio viver.