Capítulo 8 - On Line
Palmira Ribeiro da Silva
Os dilemas da emoção na arte de interpretar a notícia
Adefinição para se inscrever em Jornalismo veio com um pensamento incomum e, ao mesmo tempo, com um sentido direcionado para Palmira Ribeiro da Silva. Os motivos revividos por meio da memória por ela durante a entrevista deixam identificados que não se tratam de fatores do passado. Pelo contrário: a paixão pelo Teatro e pelo Direito prosseguem como elementos importantes em sua produção de sentido como jornalista. E, mais precisamente, é o ponto central que mergulha sua análise crítica sobre a nova geração de jornalistas que acompanha no exercício de estágio.
A primeira questão foi: qual a relação que há entre a decisão de reunir no jornalismo as paixões do Teatro e do Direito? Palmira deixa claro que o caminho não foi definido assim, de forma tranquila, com ausência de dúvidas. E essa dúvida só teve redirecionamento no momento em que foi realizar a inscrição para a graduação. Ao fim das contas, não escolheu nem o Teatro, nem o Direito. Ao optar por Jornalismo, Palmira Ribeiro iria iniciar essa complexa relação de trazer para o Jornalismo um movimento singular em que sua potencialidade como sujeito já indicava como missão: ajudar as pessoas.
Ela se recorda que no terceiro período do colegial chegou a participar de uma feira de profissões e participou, neste evento, do exercício de um tribunal. Quando tudo indicava que a decisão estava tomada para seguir o curso de Direito, e que a paixão pelo Teatro iria ter de encontrar outros movimentos em sua constituição de identidade, Palmira Ribeiro transfigurou a dúvida em uma proposta profissional. É desta forma que a decisão veio no indicativo de juntar essas duas áreas.
E assim a narrativa de Palmira Ribeiro se sucedeu ao ser interrogada: o Jornalismo foi sua primeira opção de curso? Você tinha dúvidas sobre esse curso, tentou algum outro?
Tinha, tinha. Eu já fiz teatro, a minha vida inteira. Eu fiz teatro e eu gostava muito de interpretar. Mas ao mesmo tempo tinha uma paixão muito grande por Direito. Então eu enxergava que com o Direito eu poderia ajudar as pessoas. Com o tempo foi passando eu peguei e falei assim: “bom, como que eu posso fazer Direito de uma forma mais rápida?”, como posso ajudar uma pessoa de uma forma mais rápida? Aí eu optei pelo Jornalismo. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A proposta, então, era reunir esse gosto de interpretar e, ao mesmo tempo arrumar um meio de fazer o curso de Direito de forma mais rápida. Como toda decisão exige que o sujeito encontre o sentido para que prossiga o caminho, Palmira Ribeiro traçou um entendimento, mas se direcionou para uma área
específica:
Tanto que porquê que eu comentei do Teatro? Porque eu entrei no Jornalismo pensando em TV, pela interpretação, eu uniria dois cursos num só: a interpretação com a parte da justiça, do Direito. A minha vontade era ajudar as pessoas, só que o Direito demora mais, em alguns casos, e ajudar no sentido assim: o buraco da vizinha, sabe? Ajudar a resolver muitos assuntos assim. Então acabou que no terceiro colegial cheguei a participar daquelas feiras de profissões, participei de um tribunal, participei de algumas coisas mas no dia que eu fui me inscrever pra Direito eu marquei Jornalismo, me veio uma coisa assim, eu falei assim “eu vou juntar os dois e vou fazer Jornalismo”, foi a melhor coisa que eu fiz, do começo ao fim, até hoje. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
É desta forma que Palmira Ribeiro fez seu primeiro exercício de interdisciplinaridade reunindo as três áreas, entendendo as particularidades de cada uma e, ao mesmo tempo, encontrando o ponto comum. Havia a necessidade de entender esse ponto de
ligação para inclusive estruturar a lógica do curso que decidira realizar. Se por uma perspectiva parece claro como a entrevistada está traçando a relação de Jornalismo e Direito, por outra torna-se necessário indagar qual proximidade ela articula entre o Jornalismo e o Teatro.
Sim, tanto o Direito, quanto o Teatro, quanto o Jornalismo, pra mim têm essas três ligações. Um repórter de TV por exemplo: ele tem que interpretar a notícia, se ele não interpretar ele não vai levar emoção pras pessoas. Se você vê uma matéria de comportamento, tem gente que chora. Tem gente que chora assistindo uma reportagem e, se de repente ele não souber interpretar, ele não vai conseguir atingir as pessoas. Então assim, tanto que eu pensava na TV por isso, que era uma forma de eu poder ao mesmo tempo decorar um texto, interpretar e levar esse texto pras pessoas, entendeu? Então pra mim é muito próximo. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Palmira Ribeiro realizou o curso de Jornalismo no Centro Universitário do Triângulo, UNITRI, no período de 1998 até 2001. Três anos depois, 2004, realizou o curso de especialização em Comunicação e Marketing pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Esse curso de especialização iria tomar outra interpretação sobre os caminhos da profissão e dos fatores que exigem o trabalho profissional na realidade. As respostas de Palmira Ribeiro edificam o sentido da memória que percorre sua realidade vivida e estabelece, no presente, quais fatores devem ser postos em discussão com mais veemência.
Se o jornalista não souber interpretar, ele não levará emoção para as pessoas. O sentido desta frase precisa ser desvelado para que não prossiga com o olhar próximo do debate, seja para manipulação da notícia, seja para o sensacionalismo. Palmira Ribeiro estabelece este ato de interpretar como técnica ao se associar ao teatro, mais precisamente a atuação do ator. Claro que esta interpretação está vinculada ao contexto, seja do texto do qual o ator está levado a interpretar determinada peça, seja da notícia
da qual o jornalista estará lendo. O ponto elementar é recair então em outro dilema: é possível interpretar a notícia sem que você recaia na antítese de somente sensibilizá-la? A resposta a essa interrogação parece estar na proposta de Palmira Ribeiro, na justificativa de se inscrever em Jornalismo em vez do Direito: ajudar as pessoas.
O exemplo de ajudar as pessoas está amparado em questões do cotidiano. O buraco da casa da vizinha e outros assuntos desta mesma proporção de serem denunciados e amparados pelo senso de justiça. E assim é possível entender que o sentido de interpretar a notícia, apresentado pela entrevistada, está diretamente vinculado ao conceito de levar emoção. Trata-se de impulsionar o movimento de identificação do outro, em vez da mudança de comportamento. No momento em que lança o desafio para si mesma, Palmira Ribeiro está adentrando na distinção entre o terreno teórico da razão e o da emoção em contraponto ao procedimento metodológico de interpretar a notícia do presente. E esse embate seguirá para os outros elementos do qual a entrevistada destacará como fator de análise em sua memória coletiva.
Mas há no entanto outro elemento que insurge como possível para a análise. Ao ser questionada sobre as disciplinas da qual se recorda e que mais se identificou Palmira Ribeiro cita, entre elas, a Psicologia. O ponto importante é compreender em qual sentido está direcionado o conhecimento de Psicologia:
Psicologia, por incrível que pareça, porque a psicologia fala do próprio corpo, falar, como que você tem que se comportar nas reportagens, até como você fala com o entrevistado. Então acho que é muito importante às vezes a persuasão no que a gente tem que falar e depois realmente a prática, acho que é muito importante a gente colocar a mão na massa né? (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Novamente o entendimento da Psicologia está definido ora em procedimento metodológico, ora está percorrendo um sentido teórico. Pois se num primeiro momento se avança em uma relação de ato condicional de comportamento profissional, de como se expressar pelo corpo, como você tem de se comportar e até como você fala com o entrevistado. Mas no momento em que o sentido da persuasão se efetiva, temos de ressignificar se essa lógica do ato de falar está delimitada ao comportamento ou se estende como persuasão, cujo sentido comunicativo está em alterar o comportamento do outro, sem que isso resulte na proposta de consciência sobre o cotidiano.
Há outras duas matérias que percorrem a narrativa da memória de Palmira Ribeiro. Elas se apresentam com sentido diferenciado. E, novamente, estamos tendo de compreender se a análise da qual parte a entrevistada se configura em procedimento e/ou teórica, agora com ênfase para a formação do jornalista. E elas também estão amparadas na justificativas se foram suficientes ou insuficientes para que ela tomasse consciência de seu trabalho profissional. É importante considerar aqui que a leitura de Palmira Ribeiro está diretamente constituída pela orientação da tensão e conflito da experiência vivida do presente.
A primeira disciplina da qual ela destaca é o Português. Palmira Ribeiro considera que essa disciplina foi suficiente para o seu aprendizado e que ao mesmo tempo fortaleceu a sua formação acadêmica.
Português acredito que foram suficientes. As aulas de Português foram suficientes porque acaba que é muita regrinha que é revisão do que você vê no colegial, entendeu? Que eu acho que no dia a dia não muda muita coisa exceto a reforma ortográfica, né? Então, o português foi suficiente, agora a questão da matemática, a questão da economia, umas outras questões que são mais áreas especializadas a gente não aprofunda tanto quanto deveria aprofundar. Eu acredito assim, porque foi muito superficial na época quando a gente teve aula
de economia, que dá um geral, eu me senti no colegial. Tipo, dá um geral sobre Marx, sobre não sei o quê. E, na prática, como é que é jornalismo econômico? Como que a gente vai traduzir aquela linguagem teórica pras pessoas? Isso a faculdade não me ensinou, e isso eu sinto deficitário, entendeu? (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Ao que indica os comentários acima, o ensino acadêmico de Português e de Economia seguiram a mesma tendência da qual a entrevistada denuncia: uma revisão do que teve no Ensino Médio. Porém, por que a economia teve um peso diferenciado da de Português? A referência da resposta, longe de ser sobre a dimensão acadêmica, está mais articulada para o debate sobre a sua atuação no mercado de trabalho. Ou melhor: do que mais ela sentiu falta no mercado de trabalho na sua formação. O sentimento de angústia, de que a universidade deixa de assumir seu papel crítico para se apresentar como colegial, teve início na graduação e se estendeu para outro horizonte, na redação. Mas o ponto nodal aqui da crítica da entrevistada está no que ela denominará como falta de equilíbrio da teoria e da prática entre a universidade e o mercado de trabalho, e depois entre a universidade pública e privada.
O sentimento deficitário do ensino que Palmira Ribeiro confessa ter sentido tem de ser entendido pela sua proposta de seguir o Jornalismo. A sua relação com o Teatro a levou a optar pelo Jornalismo com este sentido de interpretar. Contudo, se o repórter não tem condições de elaborar uma matéria que consiga traduzir a linguagem teórica do econômico para as pessoas entenderem, está diante de um problema. Sem a compreensão do tema em embate, não há como fazer matéria. E sem matéria, não há a interpretação que levará emoção ao outro. É desta forma que a entrevistada mergulha no problema de natureza teórica da formação profissional fazendo a indagação: na prática, como é o Jornalismo Econômico?
Nem o fato de Palmira Ribeiro ter resolvido ou minimizado esse dilema referente a economia a retirou dessa esfera de luta. Isso porque a identificação de que a disciplina de Economia se fez como revisão de colegial a levou a fazer um curso de Economia na UFU depois de encerrada a graduação. E assim, a pergunta de ordem subjetiva deixou o estado de um “segundo” colegial para se efetivar na dimensão profunda do que reivindica que deveria ter tido na graduação.
E até hoje, depois que eu formei eu fiz um curso de Economia pela UFU. Eu e vários jornalistas da cidade. Foi aberto pros jornalistas, faz muito tempo, e foi bom, foi bom pra entender na época assim, SELIC, foi bom pra entender o porquê do sobe e desce de inflação e como traduzir isso. Porque os professores não entendiam, os professores eram de economia da UFU, eles reclamavam daquilo que eles não entendiam que a gente estava passando, então foi um curso muito legal, porque eles tentavam explicar pra gente e a gente tentava entender de fato. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Nessa fala há uma mudança na relação de ensino e aprendizagem que demarca o entendimento teórico associado ao prático. Palmira Ribeiro deixa claro que não se trata da teoria pela teoria, nem da prática assim reduzida. O sentido positivo era a relação dialógica construída por jornalistas e professores dentro daquilo que se estabeleceu como proposta: é preciso entender economia, essa linguagem acadêmica, para que se possa atuar como jornalista e informar ao público. Pois, se nem o jornalista consegue traduzir determinadas questões, como a Taxa SELIC, como poderá produzir sentido em uma matéria de forma crítica, sem que se recaia meramente em reprodução mecânica de dados?
Se por uma esfera, o curso de especialização minimizou a dúvida em Economia, por outro lado faltava estabelecer valor substantivo para a importância do Direito. E o direcionamento que ela estabelece para o Jornalismo se tornou um problema a ser resolvido. Primeiro, pela ausência da linguagem jurídica no curso
de Jornalismo, segundo, porque mesmo depois de formada, a relação da jornalista com os estagiários identifica essa mesma deficiência. E o questionamento se fortalece: por que será que o ensino de Jornalismo não pesa sobre essa Linguagem Jurídica tão empregada pelo jornalista no seu cotidiano de reportagem? Sem que isso se fortaleça, a redação sobrevive em meio a este estado de tensão:
Então, eu acho que falta linguagem jurídica, eu não tive. Uma das maiores dificuldades que eu tenho no dia a dia com os estagiários, com os repórteres, é linguagem jurídica, a questão do Direito mesmo, sabe? Mostra o rosto da pessoa ou não mostra? Quando é menor, quando não é menor? O termo menor? Porque o termo menor você só pode usar se tiver passagem, se não tiver passagem é adolescente, se foi a primeira vez que foi apreendido, entendeu? Então, isso eu não tive na faculdade. Acho que foi muito importante, o que mais marcou foi o Português, que realmente foi uma revisão, a Economia que foi superficial mas que eu acho importante e a ausência, por exemplo, de questões jurídicas, assim, dessa falta de linguagem especializada.
(Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
É a falta de ensino e aprofundamento sobre a Linguagem Especializada que a jornalista Palmira Ribeiro reclama como insuficiente. É preciso compreender o que se traduz como Linguagem Especializada: o complemento da resposta indica ser algo que não pode ser localizado no cotidiano da vida. Sem essa proximidade, deixa de ser uma linguagem comum para se tornar algo a ser aprendido da qual é preciso encontrar referência ao se tratar do assunto. A questão levantada acima se reafirma: se o conteúdo se torna estranho como se fosse código indecifrável para o jornalista, a interpretação se torna uma razão utópica na proposta de Palmira Ribeiro
Porque o esporte, por exemplo, eu costumo brincar com a minha equipe, que o esporte faz parte da nossa vida, a gente sabe a técnica e você faz, porque aí o esporte vai depender do Teatro, da sua
representação e de saber contar história, pra você tornar aquilo interessante, entendeu? Mas tem umas áreas que a gente tem que aprender, saúde, área do agronegócio, assim, tem muita coisa que a gente não sabe. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A articulação do Jornalismo com o Teatro extrapola o sentido subjetivo de Palmira Ribeiro e o da orientação aos estagiários, na redação, para compreender a Linguagem Jurídica. É provável que já seria de se esperar que a concepção deste ato interpretativo que se efetiva do Jornalismo iria, aos poucos, ter de responder a outras instâncias de método para que se alcance coerência teórica. O primeiro passo para esse extrapolar veio do ressignificar do ato de interpretar. Em vez de ser o ato do jornalista no comentário ou na narrativa da notícia, é preciso que o jornalista tenha ciência de que seu entrevistado ou aquele da qual está como sujeito da matéria também está interpretando.
A resposta veio como tônica a uma pergunta realizada sobre essa ausência da qual a entrevistada parte para criticar a universidade. Você considera que essa deficiência é em decorrência da estrutura curricular da universidade ou é devido a metodologia do professor ou depende se os alunos estão preparados naquele momento para isso? A questão versa sobre os três itens básicos para entender o posicionamento de Palmira Ribeiro. E, de certa forma, ela desconsidera esses três elementos:
Então, quem define a grade geralmente é a universidade, né? Então eu não sei se o professor pode opinar muito, mas a meu ver é uma deficiência muito grande, é uma falta de noção das universidades de saber o que de fato é preciso no mercado, o que de fato o jornalista vai sentir falta, é isso que eu vejo, uma coisa que acontece aqui e em várias empresas que eu passei, vários repórteres que já vi passar tanto na TV quanto no site. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Da ausência do que sentiu em sua formação a entrevistada aponta para um diagnóstico do qual trata-se da responsabilidade da universidade. E aqui se torna imprescindível a pergunta: quando se denuncia a superficialidade do que foi o ensino de determinada disciplina, não se está diante de um problema teórico de ensino – aprendizagem? A resposta acima vem muito mais empreendida na crítica à universidade direcionando para a estrutura curricular. O fato é que Palmira ratifica mais uma vez que se a universidade tem a proposta de formar o aluno, e entre elas está o item mercado de trabalho, de que falta noção para a instituição em saber o que realmente é preciso para o jornalista atuar no mercado.
Essa deficiência pode ser sentida na redação sob dois aspectos:
É, que, por exemplo, tem aquele cara que entende de política. Quando ele sai, todo mundo fica desesperado. Quais são as artimanhas? A gente estava falando de Teatro. Política é um teatro.
Se o jornalista não souber que aquele cara está representando, ele vai cair, se não tiver a malícia do que ele tá falando, não entender de política, vai cair. Então pra mim, há uma deficiência das universidades particulares e federais de, de fato, não entender e não colocar na grade curricular aquilo que de fato é o dia a dia. Por mais que seja teoria, mas a gente precisa entender pra depois a gente colocar em prática. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A política é um teatro. Mas que jornalista será possível destinar para a cobertura se não tem o aprendizado sobre política ou sequer consegue entender a arte de interpretar do político? O que isso significa na prática? Temos então de retornar para o item da persuasão para conseguirmos identificar o sentido da frase. O temor aparente de Palmira Ribeiro é que sem malícia, nesta cobertura política, o repórter possa ser levado pela interpretação do político, levado a se emocionar pelo seu posicionamento de fala e com isso reproduzir na matéria.
É como se fosse um círculo: o político interpreta e provoca emoção no repórter que está na cobertura. O repórter interpreta a notícia para levar a emoção ao leitor; e o leitor emocionado sobre aquele fato circula e consome a informação na produção de sentido. O resultado deste círculo é perigoso quando Palmira Ribeiro indaga e tem como receio de que o jornalista pode cair nesta cilada interpretativa. Em vez de escrever com base na análise do fato, se escreverá por meio da ideologia do outro. E, ao cair nesta armadilha, perde-se a noção tão cara para a jornalista de ajudar as pessoas, o bem comum.
Esse temor da perda da referência do público tem de ser entendido para além do simbólico. Isso porque a narrativa da memória de Palmira Ribeiro identifica, no percurso de graduação, outro problema considerado grave e que adiciona elementos de insuficiência que denuncia na universidade. Ao modificar o teor da pergunta para que responda agora sobre a memória de formação prática, a questão se efetiva de forma simples: eu queria
que você falasse um pouco sobre a prática. Se a teoria foi insuficiente, você acha que a prática que você teve na graduação, ela foi suficiente para você realizar o trabalho no mercado?
A resposta é negativa. Nem a teoria, nem a prática foram suficientes. Mas quais foram os elementos que a entrevistada enumera como insuficientes. O primeiro deles refere-se ao número pequeno de laboratório para os exercícios das aulas práticas. No entanto, não se trata da quantidade de laboratório ou dos equipamentos. O tom mais grave apontado por Palmira Ribeiro nas aulas práticas era o fato de o aluno não extrapolar o universo da academia para sedimentar o seu aprendizado na disciplina prática. Ela justifica que por mais que fosse uma universidade particular, é necessário considerar que, apesar de ser a 15ª turma, o jornalismo ainda era muito novo:
Então a gente tinha um laboratório de fotografia e tínhamos aulas práticas de TV, então tinha deficiência, fora usar o equipamento da faculdade e fazer ali um... a gente tinha laboratório sim de jornal, de jornal impresso, fora fazer o jornal impresso, fora fazer ali mesmo dentro da faculdade as entrevistas e editar e aprender a revelar foto, a gente não extrapolava o universo, a gente não ia pra comunidade in loco assim, não era uma prática, uma rotina, entendeu? A gente não ia pra essa realidade, sabe, a gente ficava mais dentro da faculdade, “ah, vamos fazer um trabalho de reportagem”, “vamos aprender agora, vamos pra prática”, a gente entrevistava os alunos dentro da faculdade, entendeu? Aí você vai pensar “ah, estudante não pode sair” ok, não pode sair mas, às vezes, um dia o professor dar um trabalho, jornalismo comunitário, igual eu te falei que a gente teve, professor pegar o aluno e vai com eles in loco, vamos fazer, vamos ver aqui como que você agem na prática fazendo uma reportagem, como que é? E isso a gente não teve, eu tive, eu posso dizer que a maior parte do que eu sei eu aprendi na prática, na vida fora da faculdade. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A perda de referência da comunidade deixa de ser um aprendizado teórico e prático para passar a ser compreendido
somente na vida fora da faculdade. A qualificadora dessa perda do bem comum tem de ser entendida no fundamento importante considerado pela entrevistada sobre o Jornalismo: se o discente não vai para a comunidade, não se tem referência sobre quem é este sujeito. E com a perda deste sujeito, o ato de interpretar para levar emoção às pessoas, passa ser somente delimitado por uma representação do público. E a agonia da entrevistada precisa ser estendida aqui da própria escolha de fazer Jornalismo: ajudar de forma mais rápida às pessoas. Que pessoas se pode ajudar quando as únicas experiências de entrevistados, de dilemas do cotidiano, são retirados do sentido do ato de interpretação de alunos?
A insuficiência na teoria da Linguagem Específica se somou à insuficiência teórica da disciplina prática e a perda de referência da comunidade. Adicionado a esses elementos, Palmira Ribeiro iria se defrontar com outra questão polêmica que a conduziria a produção de sentido para tornar coerente sua proposta de jornalismo. E a gravidade agora se recaiu no único meio que havia definido para se sustentar na área: a TV. O que levou a entrevistada a partir da TV como meio, declarar amor pela TV, mas que por uma frustração, esse meio de comunicação não a tocou mais no coração.
Para se chegar nessa crise é preciso compreender como foram realizadas as disciplinas práticas de telejornalismo na Unitri.
Naquela época, ah!, tivemos teoria e a aula prática foram dois períodos. Eu lembro que um dos períodos foi mais estética e linguagem, a estética também da linguagem e o outro período foi mesmo aprender a fazer reportagem e edição. Eu acredito que faltou profundidade, sabe, assim, falta profundidade, eu acho que é tudo muito rápido, a gente teve um ano sabe, um período estética outro período TV mesmo, Jornalismo, e é isso que eu estou falando, acho que falta mais prática, a malícia da coisa, aprender... a gente fica muito: faz assim e mira assim na câmera, e não é só isso, sabe?
(Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
É sintomático entender a frase de Palmira Ribeiro sobre essa falta de prática, que se traduz na falta de malícia para entender os meandros que percorrem na produção jornalística. E diante deste quadro tornou-se inevitável recorrer a outra pergunta, não mais ao se tratar da causa, mas da consequência em sua concepção de Jornalismo. Para quem definiu a TV como parâmetro, não se renderia a deixar de tê-la como concepção. Porém, o mercado de trabalho sinalizou outro quadro no qual a entrevistada tomou ação drástica. Poderíamos considerar que essa revelação, na verdade, pode ser interpretada como uma proposta teatral fracassada? A resposta da jornalista mergulhou nessa profundidade em que somente a experiência vivida se vê nua diante das vestes que não possibilitam mais cobrir o corpo.
Tanto que eu nunca fiz TV. Na minha opinião, eu estou dentro, eu amo a TV a qual eu trabalho, gosto de TV, mas enquanto pessoa, sonho, eu entrei querendo TV e dentro da faculdade existe um outro universo também de TV que, é de qualquer lugar que existe, uma vaidade de muitas pessoas, muitos profissionais, e uma vaidade para com elas, do mundo lá fora para com os profissionais, entendeu? E a partir do momento que eu tive contato, na minha sala eu tinha muita gente de TV, a partir do momento que eu tive contato com quem trabalhava com TV e descobri como funcionava o universo de TV, eu falei “eu não quero isso pra mim”, entendeu? (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A vaidade dos profissionais e a vaidade das pessoas lá fora com os profissionais. Trata-se de uma decisão subjetiva, de no meio do processo de reafirmação sobre o sentido do Jornalismo, ainda na graduação, ver um elemento base se perder a partir da análise crítica do mundo da vida. A graduanda que optou pelo Jornalismo para interpretar na TV, agora está com esses dois elementos em questionamento. E a consequência deste ato analítico está exposta em sua carreira profissional: nunca fez TV, mesmo que nos últimos 12 anos esteja dentro da TV trabalhando no site.
Não se trata de um movimento fácil romper com seu próprio sonho em meio ao processo de formação acadêmica. A reatualização da produção de sentido a levou a seguinte afirmativa: aprender a teatralizar e contar histórias no texto.
Meu desafio maior, eu trabalhei com Rádio, apesar do sotaque (risos), fui repórter de rádio, fui de assessoria de imprensa, trabalhei com jornal impresso, no Jornal Correio (de Uberlândia) e estou aqui há 12 anos. Eu já cheguei até a fazer umas participações no MGTV apresentando enquete e chamando as pessoas pra votar pro site, votarem em enquetes no site, mas não me... sabe, assim, não tocou mais meu coração, não era, eu descobri que realmente não era o que eu queria. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
poderiam nos conduzir a seguinte interpretação: se nem a universidade, nem o mercado traz elementos afirmativos no sentido defendido por Palmira Ribeiro, poderíamos considerar que se está diante de uma crise subjetiva? Para que ela seguisse na profissão, torna-se necessário ir adicionando outros elementos que levem a um outro significado. E é assim que a entrevistada nos revela de onde encontrou elementos de reencantamento com o Jornalismo: no curso de especialização. Na pergunta sobre o porquê ter buscado realizar curso de especialização, a jornalista foi objetiva: a necessidade de entender os meandros que percorrem a produção jornalística. E mais do que isso: a importância de considerar a responsabilidade social do jornalista.
A perda dessas referências
Sim, porque uma das coisas que acontece com a comunicação é que ela é jornalismo, publicidade, relações públicas, e essa setorização não dá ao jornalista a real amplitude daquilo que ele atinge nas pessoas. Exemplo: dependendo do título que eu colocar na minha reportagem, vai causar um estrago muito grande, como jornalista tem como eu ter essa percepção, mas quando você faz uma pós, por exemplo, em comunicação e marketing, você entende que o marketing daquilo que você tá divulgando pode ter um estrago muito maior. Então eu queria ter essa visão ampla da comunicação, foi
fazendo comunicação e marketing que eu entendi o porquê que aquela matéria X está do lado esquerdo e não do lado direito, a importância daquela foto, isso eu não aprendi na faculdade, a importância daquela foto, daquele foco, eu aprendi fazendo comunicação e marketing. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Palmira Ribeiro enfim, a partir da especialização, tem condições de interpretar o texto e saber como contar essa narrativa. Esse é o teor do reencantamento com a profissão do jornalismo. Para substituir a vaidade, fator de crítica e de abandono da TV, Palmira Ribeiro recoloca o marketing pessoal. Você é aquilo que você vende. E, na verdade, o jornalista vende o seu trabalho:
A importância do marketing pessoal enquanto jornalista, tipo, você é aquilo que você vende? Você está vendendo uma imagem e você está vendendo o seu trabalho. Então o marketing acabou complementando essas coisas, e tinha marketing digital também, que abordava bastante isso que eu estou falando, título, texto, revista. Quando você está passando, diagramação, na faculdade a gente vê muito rápido a diagramação. Eu cheguei a diagramar vários jornais, e aí você chega assim, cara, se fosse hoje eu não tinha feito isso que eu fiz, entendeu? Quando você faz a comunicação e marketing você fica mais encantado ainda e entende muito mais do tanto e do porquê que aquela matéria tem que ficar do lado direito e não no esquerdo, sabe, é isso que me encantou e eu gostei bastante de ter feito. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A experiência no curso de especialização responde o caminho de superação de Palmira Ribeiro diante da tensão e conflito vivenciados na experiência acadêmica e no mercado de trabalho. E assim, com essa racionalidade sobre sua própria concepção, a jornalista define, em meio ao contexto já exposto: o que é ser jornalista?
O exercício de informar as pessoas, despido mesmo de vaidades e do dito quarto poder, dizem por aí? A serviço da sociedade. É o serviço de informar e eu não gostaria de perder nunca isso, de informar a
sociedade aquilo que ela tem que saber, poder contribuir de alguma forma pra quilo que vai mudar a vida delas, ou que vai orientá-las de alguma forma. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Despido de vaidades significa que o papel do jornalista e do público tem de ser diferente ao que se defrontou na experiência vivida com TV. E despir do dito quarto poder implica em reconhecer que a interpretação do fato tornado notícia não pode ser superior ao interesse da sociedade. Informar não está articulado aqui a persuadir o público, mas em contribuir para que essas pessoas tenham material suficiente para que realizem a produção de sentido do Jornalismo. E, diante desta afirmativa, como entender que este Jornalismo em seu papel na história? Será que o trabalho jornalístico dentro deste contexto narrado por Palmira Ribeiro pode ser considerado como História?
Palmira Ribeiro responde que o Jornalismo tem valor histórico. No entanto, é necessário pensar na raiz jornalística, de quem faz Jornalismo, quem estuda jornalismo, quem são os jornalistas, quem ajudou a construir o Jornalismo. Essa análise permite entender os sentidos e ao mesmo tempo o significado do que é o Jornalismo. Embora a pergunta tenha sido sobre a produção, a entrevistada recorre a estabelecer a historicidade do Jornalismo como primeiro elemento importante. Pois, mais do que considerar se o profissional produz história, ela recoloca a história do Jornalismo. A preocupação também se direciona para que se produza valorização histórica daqueles que fazem o Jornalismo.
Porque se não ele vai se perder, entendeu? Ele vai se perder, e é isso que eu não quero. Eu amo bastante o que eu faço, eu amo muito e eu acho muito importante quando vocês me chamaram porquê eu amo falar do que eu faço. E o meu sonho é que o diploma fosse exigido, defendido, sabe? E eu acho que tem que ter ali uma história, tem que ser divulgada e tem que falar, sabe? Por exemplo, Seu Ivan Santos, é uma lenda da cidade viva, sabe, e será que as pessoas sabem quem é oseu Ivan Santos? O trabalho dele? Eu acho muito importante o
trabalho de manter viva a história do jornalismo. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
O segundo fator de destaque para responder sobre o Jornalismo na história é sobre os fatos.
A outra parte é exatamente a parte boa e tal assim, é a cobertura daquilo que realmente faz história? Impeachment, manifestações, onde é que as pessoas vão encontrar isso se não tiver o Jornalismo? Se não tiver o jornal impresso, se não tiver arquivos de TV, documentários, se não tiver um livro, se não.. sabe? Pra mim, assim, tem que existir porque se isso acabar, a gente vai viver de Facebook, e se viver de Facebook, uma hora você... agora o Facebook lembra a gente do que a gente fez há quatro anos atrás, mas antes não lembrava, e se de repente não lembrar? Como é que a gente vai viver? (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A resposta revela que o sentido do jornalista está no ato de lembrar a sociedade sobre os acontecimentos ocorridos na sociedade. O elemento a ser problematizado aqui está nos fatos que passam a ser considerados história. Pois, a recusa em considerar o valor do sujeito jornalista nesta produção de sentido remete a ficar mercê da leitura interpretativa de outrem, como do Facebook. E o que significa do ponto de vista teórico viver da memória do Facebook? Seria no mínimo considerar a inversão metodológica de sujeito e objeto. Diante deste quadro de objetificação da história, em que a sociedade é desprovida do ato de lembrar, surge o paradoxo: e se de repente, o suposto sujeito, Facebook, não lembrar? Como é que a gente vai viver?
Antes de prosseguirmos a análise é importante aprofundar essa interpretação existencial lançada por Palmira Ribeiro: como é que a gente vai viver? Trata-se de entender que sem memória, não há vida. Essa leitura poderia nos conduzir para mergulhar no debate sobre o valor do passado enquanto movimento na produção de sentido. Esse passado, tão desfigurado pelo olhar progressista, em que proclama a cada novo presente a desfuncionalidade para o
social, agora é remetido ao ponto de égide do existir. Sem o passado, sem a história por ele narrada e entendida pelos sujeitos, não há vida.
Mas poderia, também, questionar se a frase disposta acima não estaria reduzida a plataforma, como se sucede impresso, arquivos de TV, documentários, livro. Esse sentido interpretativo poderia até ser levado adiante, se o contexto em que percorre a interpretação de Palmira Ribeiro não estivesse sobre quem produz. E, neste quadro de enfrentamento, é disparada outra pergunta que exige essa confrontação de sentidos: quem é o sujeito da narrativa de Palmira Ribeiro? A questão se envereda por esse contexto: Você acha que os jornalistas, no momento que estão produzindo a matéria, eles têm consciência de que estão fazendo história? A resposta vem de forma surpreendente com uma análise sobre a nova geração que se apresenta como o futuro do jornalismo.
Não sei se todo mundo tem não. Não sei, sinceramente. Eu acredito que os novos estudantes, não. A experiência que a gente tem tido, a minha equipe - ela é muito nova, a maioria da equipe tem menos de 30 anos e a preocupação do jovem jornalista é com o dia de hoje. Não é nem com o futuro nem com o passado, eu estou falando baseada na minha equipe. Então assim, acho que a preocupação deles é bem essa dinâmica do que anda acontecendo, então tipo assim: aconteceu um acidente, tá no Facebook? Tá no G1? Então sabe, é o imediatismo da notícia, não sei se eles tem muito a consciência do “estou fazendo uma história” “vou cobrir aquele fato político e vou fazer isso”, são poucos os mais novos que tem essa consciência. (Entrevista, Palmira
RIBEIRO, Out. 2015)
Esses poucos dos mais novos que têm consciência de que está fazendo história é narrado pela entrevistada dentro deste quadro de exceção. É desta particularidade que renasce a felicidade da entrevistada sobre o Jornalismo: ela confidencia que se sente feliz ao ver a empolgação de alguns dessa nova geração. Todavia, o
quadro geral apresentado pela jornalista sobre essa nova geração está na imediaticidade do presente, que abandona deliberadamente opassado e o futuro. Ao considerar esse diagnóstico, é preciso indagar se essa crise de conhecimento que assola o Jornalismo pelas novas gerações é em decorrência da estrutura da universidade ou também do mercado de trabalho que não consegue ter uma formação que os leve a se conscientizar que o trabalho jornalismo é histórico?
O problema que se apresenta como grave é levado às suas últimas consequências na resposta de Palmira Ribeiro. O problema deste vazio histórico denunciado pelo imediatismo dos jovens é uma questão de ordem subjetiva.
Eu acho que não é nem um nem outro. Eu acho que é pessoal, é o mundo, acho que é o mundo mesmo, porque a faculdade continua fazendo o trabalho dela, o mercado tá tentando se adaptar a esse imediatismo. Se cada dia eu não der algo novo pra minha equipe eles vão enjoar e vai dar “tchau”, entendeu? Só que o jornalismo já é dinâmico, todo dia acontece alguma coisa, mas todos os dias acontece acidente, todos os dias tem homicídio, enche o saco, entendeu? Então assim, aí enche o saco da pessoa, então eu acredito que é muito mesmo da geração, não é nem do mercado necessariamente, nem da faculdade, acho que é mais de pessoa mesmo. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
O problema se apresenta. O Jornalismo é dinâmico, mas os fatos que levam a produção de matérias no cotidiano tem uma tendência de se tornar rotina para essas novas gerações. E diante da rotina, de cobrir sempre acidente, todos os dias homicídios, coloca o jornalismo em um círculo vicioso, de repetição de fatos cuja ausência de sentido é traduzido aqui pelo termo enjoar. E ao enjoar do jornalismo, pode se desfazer dele como sentido da vida. O teor desta resposta é importante dentro deste embate teórico de pensar a cultura como sentido em confronto à estrutura.
Palmira Ribeiro é enfática ao exteriorizar o temor: precisa apresentar o que é novo todo dia para a equipe para que ela mantenha o entusiasmo de que ela necessita. Caso contrário, corre orisco de perder esses sujeitos. É sintomático e necessário aqui problematizar o que significa esse enjoar, ou literalmente, o “encher o saco”. Primeiro é que a situação contextual nos remete ao individualismo, em que há a perda das referências sobre ser sujeito. Há consequências graves na história do sujeito e do social quando a história do passado e das perspectivas do futuro se esvai no imediatismo. Mas o enjoar, neste caso, está na repetição de fatos, no reconhecimento de que a produção jornalística é definida por uma estrutura em que o sujeito inexiste.
Estamos próximos do teor da frase disparada acima por Palmira Ribeiro, e , porque não, considerar o seu desafio dialético existencial. Viver com uma nova geração cujo sentido está no imediatismo e desprezo do passado e do futuro; e trabalhar como jornalista para mostrar que sem passado e consciência do presente para produzir sentido no futuro, não há sentido o viver. Enjoar dos fatos repetidos significa essa perda do sujeito da notícia.
Pois não se trata de matérias de homicídios que se divulgam como texto, mas de sujeitos diferentes, que possuem histórias diferentes, que estão neste momento como vítimas e acusados, e que de alguma forma implica em entender em outra vida. Como fazer com que esses estudantes tomem consciência desse processo no movimento dinâmico da realidade? E de que forma você acha? Como você passou pela estrutura curricular, o que poderia ser alterado na universidade pra ter uma discussão sobre essa estrutura mental para chegar às novas gerações?
Não se tem uma fórmula pronta para se lidar nesse movimento do cotidiano. Palmira Ribeiro acredita que as novas gerações precisam ser levadas a pensar neste imediatismo. E de quem é esse papel: ela recorre como amparo à universidade.
Pensar que por mais que as coisas tenham que ser, às vezes, imediatas, tinha que ter um desenvolvimento pra eles entenderem que nem tudo acontece na hora que eles querem. E que é necessário até mesmo no Jornalismo ter um planejamento, eu acho que é preciso pensar aonde você quer chegar, porque alguns, por exemplo, entram e é estagiário já quer ser repórter, já quer ser editor e já quer aparecer na TV, e esse imediatismo não deixa... eles pulam etapas, entendeu?
Pula etapa de aprendizado e se queima muito fácil. Então eu acho que a universidade talvez tenha que trabalhar a questão do planejamento, a questão do explicar que existem coisas que tem que esperar, sabe?
(Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A universidade talvez tenha que trabalhar a questão do planejamento. É preciso considerar a grave situação pelo qual o individualismo se prenuncia no quadro da redação. A jornalista anuncia que não se trata de problema da universidade, nem do mercado de trabalho. É uma questão pessoal. Mas como combater esse pessoal, subjetivo? E assim, na tentativa de encontrar espaços para retomar a historicidade no Jornalismo, a atenção e a esperança se fundam com um “talvez” para a universidade. Quem irá explicar, com legitimidade, para essa nova geração que existem coisas que é necessário esperar?
Há outro sentido em que a experiência vivida se faz como problema na frase exposta pela entrevistada. O estagiário que salta, por ironia, o estágio de aprendizado está sustentando de que aprender determinadas regras é fácil. Mas, como sabemos, Palmira Ribeiro não está falando de regras, mas da linguagem específica, da malícia, da maturidade para o interpretar a ação do outro. O erro, que deveria fundamentar a experiência, é retirado de seu sentido de presente futuro. E assim a jornalista chega na crítica ao uso da experiência do jovem como obstáculo ao seu próprio desenvolvimento.
Eu acho que nada tira a bagagem que você tem, você tem que ter uma bagagem pra chegar em algum lugar, claro que tem gente que começa como repórter e parece que foi repórter há anos. Parece que a pessoa
já foi há mil anos, mas é preciso ter um pouco de paciência, eu não sei como que a universidade pode tratar isso, eu só às vezes falo assim “calma, gente” (risos) calma né, vamos com calma, até porque eu acho que eles nem ligam se tipo: “ah, eu errei” ok!, todo mundo erra, mas errar em Jornalismo tem consequência... (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Palmira Ribeiro decidiu cursar o Jornalismo para unir ao Direito e ao Teatro e com isso ajudar as pessoas no cotidiano. O jornalismo era a forma rápida de conseguir este objetivo ao avaliar a mesma dimensão ao Direito. Ela descobriu, em seu percurso, a insuficiência do ensino da prática e da teoria na universidade e teve que aumentar a dose de tempo para aprofundar seus conhecimentos e assim conseguir ter entendimento para traduzir a Linguagem Específica. Justamente aquela linguagem que não temos como relação no cotidiano. E no caminho de formação do mercado, teve que abandonar o sonho de estar na TV, no questionamento da vaidade.
Ao mergulhar na arte de interpretar o texto, se defronta com o imediatismo da nova geração que recusa o passado como problema vivido. Mais do que isso, a nova geração desconstrói o Jornalismo como dinâmico e precisa receber doses de novo para que não se torne enjoativo, como repetição incessante de fatos. Em vista disso, como conseguir encontrar saídas para esse horizonte? É preciso enfrentar com a profundidade que a própria complexidade desta questão se apresenta no presente. O que está em jogo é a historicidade do Jornalismo.
E, como decorrência desse processo, o que está em discussão é que embora a nova geração esteja alheia ao futuro e alheia ao erro, oJornalismo é uma profissão cujo principal teor é a vida do outro. Errar em Jornalismo tem consequência para a vida do outro. E enquanto se articula táticas e estratégias para recolocar a produção de sentido do Jornalismo no plano da responsabilidade social, Palmira Ribeiro recorre a um dos elementos de contraponto que
simboliza muito mais que uma frase: a calma. E complementa com uma frase que poderia ser direcionada para sua experiência vivida, para as novas gerações ou para que se estabeleça valor histórico ao jornalismo. Para encontrar o sentido de viver, a vida precisa ser vivida com paciência.
Capítulo 9 - Impresso
Fernando Boente
Narrativas da realidade: O gosto pelo Jornalismo
“N
ão tem uma coisa muito precisa para explicar como é que se deu esse processo.” A frase exposta acima do jornalista Fernando Boente é para identificar a imprecisão com que tomou a decisão de fazer o curso de Jornalismo. Não se trata de uma decisão simples, muito menos de considerar que houve um único fator primordial que o conduziu para o mergulho na escolha da produção jornalística como meio de vida. O fato é que durante a entrevista, a memória coletiva de Fernando Boente estabeleceu na narrativa o marco dessa decisão. E toda vez que a memória instaura como relevância determinado fato, temos de reconhecer que é o passado em movimento a partir da ressignificação da experiência vivida no presente.
A primeira referência apresentada pelo entrevistado está na dimensão de temporalidade e espaço. Ao fim do Ensino Médio, permaneceu por um ano parado, mas com o pensamento exercendo a mesma atividade quando estudava. A pergunta a si mesmo, revela, era: o que vou fazer agora? E outras mais imprecisas que deixam nubladas qualquer caminho a ser seguido: o que eu gosto de fazer? Ao indagar a si mesmo sobre o que gostaria de fazer, a primeira imagem que se pode recorrer é de indefinição. Mas que pode remeter, por um lado ao vazio de referência, como pode suscitar, ao contrário, o preenchimento completo ao ter a sua frente essas diversidades de possibilidades no campo profissional.
A segunda referência está no percurso da materialidade. Jornalismo não foi a primeira opção de Fernando Boente. Para o vestibular, prestou primeiro Psicologia, em seguida Direito. Nenhum dos dois caminhos o conduziu para a continuidade de formação a partir de uma justificativa: “na verdade nada tinha interesse no final das contas. Aí eu entrei em Jornalismo e deu
certo. Quase um acaso, mas era pra ser provavelmente”.
(Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015) A pergunta imediata que se pode vislumbrar é: quais são os motivos ou fatores que levaram o entrevistado a buscar como caminho acadêmico o curso de Direito ou mesmo o de Psicologia? Por ora, há a negativa que se descortina ao apontar que, na verdade, se houve motivo, se dissipou com a mesma temporalidade em que se surge e se demole uma perspectiva criada sem enraizamento na experiência vivida do próprio sujeito.
Entretanto, todas as ações enunciadas como experiência de vida tem uma repercussão na memória, cuja negociação em determinados períodos da existência do sujeito releva ou retira do suposto quadro denominado de esquecimento. O que nos coloca diante de outro fator importante e se faz necessário desvelar se as faíscas despertadas para o Direito ou para a Psicologia se acendem para serem ressignificadas em outra etapa da decisão do entrevistado ao optar pelo Jornalismo, ou se foram apagadas diante da proclamada ausência de sentido.
Como compreender o significado deste ato de cursar o Jornalismo quando o próprio sujeito releva ao acaso, como se fosse acidente de percurso, em que a vida é surpreendida, e só a partir daí é conduzida a reconhecer no movimento de produção de sentido? A indagação é mais complexa porque ela acontece a posteriori da narrativa do entrevistado, em que já havia justificado a opção que o levou a definir o Jornalismo. O que dimensiona outro fator: se a definição é remetida ao acaso, em que momento a memória passa a tornar relevante a referência da leitura de uma obra que o iria definir como marco na vida do fazer jornalismo?
Antes de recorrer à resposta, é preciso entender quais os elementos que Fernando Boente demarca como marco do passado para justificar o porquê de fazer o curso de Jornalismo no Centro Universitário do Triângulo (UNItri), no período de 2007. É expressivo que antes de citar a obra sobrevenha a afirmativa
reveladora de que gostava de ler. Está tácito aqui um dos motivos que por si só poderiam justificar a definição do curso de Jornalismo: o gosto da escrita. Entretanto, o entrevistado segue adiante para apresentar um objeto plausível, que demarca o horizonte no qual criará a perspectiva de ser jornalista.
Ao retomar neste momento a pergunta inicial, por que definiu o Jornalismo para cursar a graduação, Fernando Boente demarca esse elemento:
Não tem uma coisa muito precisa para explicar como é que se deu esse processo. Eu só sei que eu gostava muito de ler e eu fiquei um ano parado depois do ensino médio. E acho que eu entrei em 2007, e eu tinha acabo de ler um livro do José Hamilton Ribeiro, que é um jornalista que eu admiro muito, que chama: “O gosto da guerra”. Não sei se vocês conhecem o José Hamilton Ribeiro, talvez do Globo Rural. Na verdade ele é especializado em Jornalismo Científico e começou a carreira dele como jornalista de cidade e região, escreveu sobre política também. Ele foi contratado por uma revista que chama Realidade. Isso ele explica no livro, que tipo uma prévia do que seria a Veja depois nos anos 60 e ele foi mandado para o Vietnã, como jornalista brasileiro para cobrir a guerra. Acho que foi da América Latina e nessa cobertura dele, ele perdeu a perna inclusive. Então ele relata um pouco como foi essa cobertura dele lá e eu gostei muito do livro e pensei: nossa eu quero fazer isso. Uma coisa bem louca, mas jovem quer fazer isso. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
O livro “O Gosto da Guerra” trouxe para Fernando Boente o sentido do que faltava para entender do que iria fazer no futuro, ou mais precisamente, do que gostaria de fazer como profissional. Da ausência de sentido do presente sobre qual profissão seguir, o entrevistado estava assim produzindo o sentido da leitura de uma narrativa de quem mergulha na vida do outro. E a leitura, assim como a escrita, é sempre profunda quando o sujeito mergulha no outro para viver a sua emoção e razão e depois ser testemunha.
É provável que a obra de José Hamilton Ribeiro tenha atraído o entrevistado por outro fator que lhe foi próximo: um relato sucinto
da obra revela que se trata da “capacidade do autor em aliar a narrativa direta com a abordagem psicológica. No livro ‘O Gosto da Guerra’, o leitor acompanha tudo que José Hamilton Ribeiro viveu e sentiu no Vietnã. É o dia a dia da guerra, o drama do acidente, e por fim, um relato inédito e emocionado sobre a sua volta ao Vietnã 30 anos depois.”1
Por isso, a questão se torna importante: E foi só por causa do livro? A resposta, por um lado, parece indicar que a questão da psicologia contribuiu para que ele produzisse sentido sobre a leitura. Estaria aqui um indicativo de que a faísca da Psicologia acendeu agora em outro campo, em que em vez do campo teórico, aparece materializado no relato da obra. Mas o entrevistado procura então discernir porque essa obra pode ser denominada de referência para sua vida.
Não, o livro deu uma, foi um marco, eu vi o que os caras faziam e eu queria fazer isso. Eu gostaria de fazer isso. Não correspondente de guerra, mas, participar de coisas que são importantes e que eu possa narrar isso para as pessoas e ter uma função social, ser um intermediador, a ponte entre as pessoas e as coisas que acontecem e tornar esse distanciamento de algumas coisas importantes e levar para as pessoas... eu pensava mais ou menos assim. Ainda penso, embora não tenho tanto a ingenuidade da época. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Estamos diante do quadro em que Fernando Boente nos traz o primeiro indicativo para conceituar o Jornalismo. Há sim de considerar que se trata de uma elaboração conceitual prematura ainda, pronunciada para encontrar sentido do que fazer na graduação, e reconhecido no presente como ingênuo. Um mergulho mais preciso redimensiona a ingenuidade do tempo passado para o presente. Fernando Boente deixa explícito que o pensamento elaborado sobre o jornalismo é o mesmo do presente. Cabe ao sujeito jornalista ser um intermediador, a ponte entre as pessoas. Como se pudesse, assim como José Hamilton Ribeiro, colocar as
pessoas no estado de conflito do Vietnã para compreender a experiência vivida.
Ao considerar que o pensamento teórico conceitual prematuro sobre o jornalismo está sobre o mesmo alicerce do hoje, temos de interrogar de onde parte a afirmativa do presente em que está identificado esse “embora não tenho tanto a ingenuidade da época”.
A ausência da ingenuidade parece recair, como teremos de confrontar mais adiante, com a discussão sobre a prática jornalística. Essa prática que irrompe desde o seu ingresso no mercado de trabalho e que tem uma particularidade: Fernando Boente atuou na prática em seu período de graduação.
A base teórica da formação no curso de Jornalismo na Unitri levou Fernando Boente a efetivar duas análises por meio de sua experiência vivida. A primeira é pela surpresa positiva que ultrapassou a sua perspectiva de formação ao entrar em uma universidade particular. Por sinal, essa base teórica se tornou o ponto central dos aspectos que defende sobre o que é comunicação.
Mas me surpreendeu positivamente porque o curso de Comunicação Social, ele começa com uma base muito teórica, embora eu ache que o curso de Comunicação Social que vai habilitar pra uma dessas três áreas ainda é incipiente, mas depois eu falo disso, vou te explicar porque que é incipiente. Eu acho, eu achei condizente com o que eles propuseram na época, por quê? Porque você começava com bases teóricas, você começava a estudar Sociologia, Ciência Política, História, a depender e pra ser um jornalista, um comunicador, você precisa disso. Se você não tiver essa base bem fixa, se você não for uma pessoa que sabe dessas disciplinas, dessas áreas de conhecimento, você não faz comunicação, se faz comunicação você vai fazer muito mal, isso eu te garanto. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
O primeiro indicador dessa crítica está na relação entre Jornalismo e Comunicação. As bases teóricas de Sociologia, História, Ciência Política estão como fatores primordiais para que o sujeito se constitua como jornalista. É importante visualizar durante seu discurso uma relação direta entre produzir um bom jornalismo
ou fazer muito mal a comunicação. A teoria para fundamentar a comunicação está articulada em uma proximidade teórica metodológica imprescindível para que o jornalista se torne sujeito do seu processo. E não se trata de conhecimento superficial ou somente para que seja instrumentalizado na prática. É isso que temos de entender com essa posição da base bem fixa, ou com maturidade, para conseguir olhar para a realidade e assim conseguir produzir uma narrativa consciente.
Então, você tem que ter esse suporte. Eu tinha Ciência Política, Realidade Sócio Brasileira, que a gente analisava todo o contexto desde o fim do século XIX pra gente entender o como era a comunicação que o Brasil estava fazendo... Filosofia, você precisava entender. Então assim, se tem maus profissionais na área, provavelmente é carência nessa base. Não é o técnico, o técnico você consegue muito bem suprir se você for interessado no assunto. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A defesa premente da Teoria enquanto formação do sujeito jornalista se configura como atributo e, ao mesmo tempo, desvela a identidade de Fernando Boente em seu processo de formação. Embora a frase esteja se referindo ao passado, o jornalista traz determinados conflitos para o movimento do presente. E a cada problema revelado é preciso encontrar a dimensão de significado do que é o jornalismo, e do que é a comunicação. Se tomarmos como referência a própria divisão da estrutura curricular de Fernando Boente temos de entender que o ponto positivo está demarcado majoritariamente pelas disciplinas que configuram a comunicação.
Para o sujeito que entrou na universidade tentando encontrar o sentido, encontrar uma narrativa que faça essa defesa nos leva a seguinte interrogação: será que essa construção consciente do jornalista está forjada na experiência vivida na graduação ou se trata de uma produção de sentido posterior? A importância de entender esse momento é para considerar se a crítica se efetiva
dentro da tensão e conflito vivenciado na universidade ou se trata de um entendimento a posteriori, quando se defronta com outros dilemas apresentados pelo mercado de trabalho.
A resposta a essa indagação parece estar na denúncia de Fernando Boente sobre ser incipiente a formação em Comunicação Social na universidade. E aqui está a segunda análise de formação em Jornalismo. O primeiro indicativo da crítica do entrevistado para o reducionismo do ensino ou da técnica jornalística está no final da frase anterior. O conhecimento técnico você consegue suprir se for interessado no assunto. É representativo frisar que essa frase está como contraponto ao conhecimento teórico.
No primeiro momento somos conduzidos a chegar ao estado de conflito apresentado por Fernando Boente: se a técnica você consegue suprir por meio do interesse, o conhecimento teórico é preciso ultrapassar esse ponto para que se pese a formação. A técnica se efetiva pela experiência na redação. Mas, se recorrermos a um pequeno contraponto da Psicologia e que pertence a base de estudos em comunicação, a prática se efetiva pela contingência de reforço, mas não é suficiente para levar a profundidade da consciência ao que o sujeito é conduzido seja pela razão, seja pelo inconsciente.
Toma-se aqui o corpo da crítica: a teoria não pode ser utilizada com o mesmo método de ensino como se estivesse em contingência de reforço. É possível entender que a experiência vivida de Fernando Boente na universidade o fez a ir identificando essa sensação de falta, de ausência de sentido, em que as fissuras da Teoria para a Prática se tornaram cada vez mais visível ao ponto de considerá-los como corpos separados na produção da identidade do sujeito jornalista.
De onde nasce a crítica da técnica em Fernando Boente? A narrativa efetivada pela memória revela que ela nasce na natureza da surpresa positiva da universidade. Há uma similaridade nesta surpresa, que podemos articular ao “Gosto pela Guerra”: é a base
teórica que permite narrar de forma consciente a experiência vivida na realidade. No entanto, sem a profundidade da qual lhe tornou exigência no futuro, Fernando Boente se deparou com o ensino técnico, ou melhor, com as disciplinas práticas do curso. E como consequência da surpresa positiva, o ensino técnico lhe levou a novas confrontações sobre o sentido e o significado do que é a comunicação.
O problema começa quando a gente passa pelo período que vai transformar uma graduação em uma coisa tecnicista, que é a produção técnica do jornalismo. Embora a produção técnica do jornalismo ter sido montada na fusão dessas teorias que a gente estuda antes, por exemplo, vocês tem que fazer uma matéria, tem que fazer o lead, o famoso lead que surgiu da pirâmide invertida da escola de Palo Alto, da Teoria Hipodérmica e o cara chegou nessa conclusão que pra ele fazer uma informação objetiva, clara e que vai interessar ele tem que escrever isso com as sete perguntas, eu estou sendo bem simplista explicando isso, mas é só pra vocês entenderem, tudo isso o cara chegou a conclusão e isso difundiu. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A dissociação entre tecnicista e técnica já nos remete que a conceituação de Fernando Boente está amparada por uma base teórica e metodológica que se contrapõem ao funcionalismo. Esse horizonte teórico vai tomando corpo pela crítica ao tecnicismo e, em seguida, se estenderá na denúncia da incipiência da teoria na formação do jornalista. O ponto central está em entender que a memória de formação do entrevistado remete à compreensão das Teorias da Comunicação e da Teorias do Jornalismo. Pois, mais do que analisarmos se as escolas estão sendo citadas de forma coerente ou das suas interligações, há de considerar que o entrevistado afirma ter compreensão de que a técnica é uma elaboração conceitual. E se ela tem essa natureza de ser elaborada a partir do dilema de um determinado sujeito em determinada realidade, retirála do contexto histórico e filosófico de sua elaboração é recair sim em uma tecnicismo.
Então, assim, chegamos ao primeiro ponto da reflexão do entrevistado sobre as disciplinas práticas do curso de Comunicação:
Então criou-se as técnicas com base nas teorias do jornalismo e aplicação do jornalismo. E essas técnicas foram desenvolvidas, praticamente todas, que o Brasil segue muito, hoje, os jornalistas brasileiros, com técnicas criadas pelos jornalistas norte-americanos. O que nós fazemos hoje aqui é praticamente uma réplica. Não que não seja mutável, as coisas vão mudando, mas basicamente é a sementinha que foi movido pela imprensa americana, foi sendo desenvolvido pela imprensa americana. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Podemos interpretar que o tom de crítica efetivada por Fernando Boente está demarcada, primeiro, por uma falta de originalidade ou mesmo de criatividade do pensar a realidade. Pois, diante do seu argumento, ressoa o termo réplica quase como um simulacro da operacionalidade do jornalismo em detrimento da ressignificação. É isso que poderia explicar que mesmo com a mudança na temporalidade de sua formulação até os dias de hoje, a sementinha permanece a mesma. Mas se essa técnica é deslocada do estado de crise, a técnica passa a ser fragmentada de seu potencial para se tornar um exercício repetitivo que se aprende com a contingência de reforço.
Se o problema estivesse somente nesse esvaziamento, talvez a denúncia de Fernando Boente não o levaria a um mal estar, pois se a técnica pode ser simplesmente suprida com o exercício, embora esvaziada, não tornaria um problema efetivo da comunicação. O problema mais emergencial é que o reducionismo técnico, dissociado do problema de origem, é levado ao entendimento de um outro conceito na ordem do Jornalismo. Essa nova conceituação advinda mais da réplica, do simulacro, do que da ressignificação, dos novos dilemas vivenciados na realidade, é que se torna o alvo de denúncia do entrevistado.
Aí começou o problema porque, eu não sei, não tem como eu comparar com base de outra faculdade, mas, nós temos dois problemas: falta de
estrutura nas universidades para fazer isso e, por outro lado, nós temos alunos que estavam interessado totalmente nesse lado técnico, principalmente o televisivo, só preocupados com a câmera e não com uma base anterior. E isso corrói a profissão de certa forma, porque a pessoa deturpa um pouco do que ela está fazendo. Ela está preocupada mais em aparecer o lado certo dela na câmera do que qual informação ela vai levar. Quando vê assim, talvez ela já esteja no lugar errado, porque a última coisa que você tem que preocupar é a estética. Se você não tem formação a estética não interessa. Você pode ser feio, horroroso, ser o estrupício que se a informação for importante, não interessa. Então pelo menos lá, eu tive um pouco de estranhamento, porque havia coisas lá que não me interessavam, por exemplo: enquadramento, posicionamento de microfone, não sei o que não sei o que, isso pra mim é só uma futilidade. Nos fins das contas soava uma futilidade, isso é um padrão, não é correto, foi inventado, existe uma fórmula. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A frase entoada no presente da entrevista revela que a produção de sentido de ser jornalista de Fernando Boente esteve diretamente ligado com sua filiação teórica que tomava corpo na graduação. O lado técnico que se critica do interesse dos alunos não está na crítica ao telejornalismo, mas ao reducionismo com que se busca a disciplina para somente aprender a manusear o microfone, ou melhor dizendo, o posicionamento do microfone. O tom da crítica é que enquanto se mergulha nesta futilidade padrão do posicionamento do microfone, o reducionismo técnico se efetiva como distância da conceituação crítica do que é o telejornalismo.
Poderíamos materializar essa interrogação com uma pergunta: qual o sentido de aprender a posição exata do microfone se ao abrilo para o uso da voz não se tem consciência sobre o enfoque ou mesmo das perguntas que serão entoadas? Seria casual que tantos alunos estivessem com essa preocupação técnica ao ponto de incomodá-lo e relegar como futilidade? Se tomarmos como referência o último termo, como fórmula, como padrão, seria correto dizer que o tom de crítica é que o jornalista deixa de assumir a sua responsabilidade como sujeito do processo
comunicativo para se ater somente a futilidades em que se efetiva como objeto do sistema. O incômodo está no sujeito ao recair como instância máxima para se render somente a uma fórmula. E ao se efetivar como objeto, Fernando Boente acusa que se trata de uma deturpação do que é o Jornalismo.
O paradoxo da crítica do entrevistado, em sua memória de formação teórica, ao tecnicismo da universidade está em que ao mesmo tempo precisa entoar o lado positivo da técnica sem que pareça uma análise meramente ao acaso. Afinal, como descrevemos anteriormente, um dos pontos que o conduziu ao Jornalismo é o gosto pela escrita. E não poderia ser diferente que justamente, da crítica ao reducionismo técnico, o aprimoramento da escrita tenha sido o ponto de interesse. Neste momento poderia se objetar: não estaria Fernando Boente sendo incoerente com sua afirmativa sobre otecnicismo? Será que não há um reducionismo do próprio entrevistado quando considera negativo somente o que não pertence a sua lista de interesse?
São perguntas instigantes que tomam corpo nesta nova revelação. Entretanto, antes de recair nesta cilada da subjetividade, de considerar somente como positivo o que nasce da técnica de interesse particular, Fernando Boente procura articular o aprimoramento da escrita não com a técnica da escrita, mas como mediador do pensamento nesta relação que se estabelece com o outro.
Por outro lado, tinha algumas coisas que me interessavam muito, matérias técnicas que eram de aprimoramento de escrita. E você já começa a ter contato com isso também, de produzir textos. Eu acho que o jovem hoje ele lê pouco, lê muito na internet e ele escreve muito menos, escrever assim de forma concisa, não de internet, parar para pensar e montar um argumento acho que eles escrevem muito pouco. Então na faculdade de jornalismo você está sempre fazendo esse exercício, você está sendo desafiado a montar um argumento que seja coerente e que convença e faça sentido, não são coisas largadas. Então esse exercício é quando você pega toda aquela bagagem teórica de antes, que é a principal parte da base para apurar as coisas que você quer saber para ordenar uma coisa coerente e lógica, que faça sentido né, e começar a treinar isso e aprimorar seu texto. E não só, aprimorar seu português também, pois quanto mais você escreve, mais as pessoas vão ler, vão criticar, mais vão te corrigir e mais você vai aprender e mais você vai formando a sua caraterística de escrever. Por essa parte também muito boa essa questão técnica. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Não se trata da escrita pela escrita. Trata-se do desafio de escrever, elaborar um argumento que seja coerente e que seja convincente ao outro. Para se atingir com plenitude esse exercício é preciso retirar da bagagem teórica das disciplinas dos primeiros anos do curso de Comunicação Social. É essa base que possibilita apurar na profundidade do pensamento daquilo que se será materializado na escrita. A todo momento o argumento de Fernando Boente é desvelar que o interesse subjetivo pela escrita, por um lado, conduziu-o para essa demarcação, por outro, não está
falando de lead, da pirâmide invertida, de fórmulas que já apontou como tecnicista. Uma das formas de entender que o entrevistado procura se esquivar de recair na armadilha é a circulação do texto em que ele aponta sobre a produção do conhecimento.
O exercício para o escrever contribui sim para o aprimoramento técnico e o conhecimento sobre o uso da ortografia e outras regras da Língua Portuguesa. Trata-se do ponto de início, não o fim em si mesmo. Pois da escrita é preciso buscar a bagagem sobre como apurar e o que escrever. E da escrita se estende a dimensão da leitura. E os jovens, como vimos na crítica, leem pouca literatura, embora leiam muito de textos da internet. E escrevem pouco também de forma elaborada, sendo instigado a produzir um argumento que desafie e o leve a organização do pensamento. Por isso, a característica de Fernando Boente sobre a escrita o mergulha neste universo de formação. E que se reforça cada vez mais em seu trabalho como profissional no Jornal Correio de Uberlândia.
Todo esse estado de tensão e conflito vivenciados por Fernando Boente pode ser identificado pelo artigo em que produziu para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) no sétimo período. Ele traz esse elemento como narrativa para revelar como o significado do que é Jornalismo foi sendo produzido nesta argumentação de análise. Ao ser questionado sobre o que tratou em seu artigo de final de curso, o entrevistado aponta para essa outra narrativa:
O artigo que eu escrevi era exatamente sobre ‘boa pergunta’, porque foi exatamente sobre a deficiência do curso de Comunicação Social, principalmente para a formação técnica. Por quê? Eu já tinha começado a trabalhar no Correio de Uberlândia há uns dois anos e eles me pegaram lá e me colocaram no Cidade e Região como estagiário. E num veículo de comunicação não existe um “senta aqui do meu lado que eu vou te ensinar a ligar o computador e a escrever uma linha do que nós fazemos”. Não. É “sua senha é essa, seu computador, o assunto é esse, se vire”. Então você tem um choque, você tem que se tornar um profissional do dia pro outro, você tem que fazer, entregar o produto, é ruim falar produto, mas é que a gente pensa em produto no
fim das contas e o nosso produto tem uma relevância social, no fim das contas, e isso é bom. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A experiência profissional durante o processo de formação o levou a redimensionar o valor dos sentidos da técnica e da teoria. Qual o sentido do uso do termo choque, de se tornar profissional do dia para outro? É importante essa frase para entendermos como se opera os dilemas na experiência vivida do sujeito. É claro que não se trata de se tornar um profissional do dia para outro, mas o de identificar, no momento em que se é exigido para ser jornalista, que não se tem base suficiente para que se possa produzir um texto com omínimo de autonomia técnica e teórica.
O relato da deficiência não está somente na questão técnica. Ao estar no mercado de trabalho, Fernando Boente vai identificando outras questões teóricas que faltam para o ensino. Ele cita como exemplo o tema da Segurança Pública, de importância na área social e também de uma pauta de interesse público.
Tem outros também, mas pro jovem jornalista é o mais latente porque ele vai se deparar com isso logo no início da profissão, porque os veículos de comunicação têm mania de colocar coberturas policiais pra ele aprender, digamos perder um pouco da ingenuidade, pegar um pouco de malícia e perder a crueza em coberturas policiais. Nós não temos a formação que precisamos, por exemplo, de Direito nenhum, como que você quer escrever sobre uma coisa que envolve diretamente questões constitucionais, Direito Penal, sendo que você não tem ideia do que está acontecendo. Os jornalistas não estão preparados para isso e eles têm de fazer isso nos meios de comunicação. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A perda da ingenuidade no campo profissional é instaurada a fórceps, sem possibilitar tempo suficiente para que o aprendiz possa ter maturidade. Adiciona a isso as implicações que o trabalho de Jornalismo incorre na qual o sujeito toma ciência de que não tem preparo para as consequências de seu próprio trabalho. Eis a conclusão problemática: os jornalistas não estão preparados para
isso. Não se tem preparo porque a formação teórica para alguns fatores sociais não é tema da estrutura curricular da universidade. Sendo assim, a indagação é premente e toma o sentido grave de preocupação sobre a responsabilidade social do ser jornalista.
A gravidade está nesta dupla situação. Por um lado, parece já uma normativa social ou mania, que, para colocar o jovem jornalista diante da realidade, para pegar um pouco de malícia, ele seja levado a realizar cobertura de segurança pública. A cobertura policial se efetiva como primeiro passo. Mas, por outro, a segurança pública exige, para que se escreva com a consciência devida, de conhecimento sobre o Direito. E assim Fernando Boente se ressente de que não há uma disciplina que trabalhe esse entendimento sobre o Direito ao ponto de possibilitar uma compreensão sobre o tema a que se escreve. E a problemática se torna coerente: na realidade social, o jornalista precisa escrever sobre temas que envolvem questões constitucionais. Mas como intermediar para a sociedade determinado fato se o próprio sujeito que fará a escrita não tem o entendimento sobre o que será escrito?
Então, acontece muito erro, tem algumas falhas e não é incomum os jornais serem processados por veicular coisas relacionadas à segurança pública, é o mais normal. Eu, por exemplo, já tenho uns 10 processos relacionados, nunca perdi, graças a Deus, nenhum, mas eles processam: “ah você pôs meu nome lá no jornal”. E ele foi preso, mas ele foi preso em flagrante, aí porque que o jornalista perde a crueza, o que interessa mais: o direito de imagem dele ou o direito coletivo de segurança pública? Com qual você vai estar preocupado? Aí você vai começar a enfrentar esses dilemas. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Não basta que o jornalista tenha uma disciplina que apresenta tecnicamente as leis ou determinadas leis. Isso faria com que o ensino de Legislação recaísse também em um tecnicismo. Nesta situação, o ponto fundante é que a falta de compreensão do Direito leva o jornalista ao erro. Não o erro consciente, mas o erro de quem utiliza a escrita de forma mecânica por causa da incompreensão do
sentido do que é o Direito. Justamente o curso que Fernando Boente tornou relevante em determinado momento da sua vida antes do Jornalismo. Para superar esse reducionismo, o mercado deveria possibilitar, como nesta mania para aquisição de malícia, uma compreensão sobre Direito Penal. Enquanto isso não ocorre, a perda da ingenuidade parece estar mais vinculada aos processos jurídicos efetivos que necessita responder pela assinatura das matérias do que da maturidade na compreensão conceitual sobre a produção jornalística que se efetiva por meio da experiência vivida.
E, com esse dilema, sobrevém outros de outra ordem que remetem o jornalista a ter de estabelecer valor. Ou a ter de considerar uma ordem hegemônica de valor, do qual se descobre estar despreparado. Fernando Boente traz para a cena o dilema sobre o estupro. E sua construção apresenta sobre como vários fatores sociais estão envoltos nesta discussão do qual o jornalista nem sempre está preparado no mercado de trabalho.
Porque os estupros eles são averiguados muita das vezes, através de denúncias, que as vezes não são reais, que eram outras circunstâncias por trás, sociais, e não tem a ver com o estupro, tem a ver com a questão de discussão da família mal formada. E já aconteceu até de prisão irregular de pessoas que foram acusadas de estupro e quando acontece, aí você tem o dilema: eu faço a reportagem sobre estupro, eu exponho o rapaz, eu exponho a família, não exponho? Quem tem mais direito: a sociedade saber que ele está fazendo isso ou que supostamente ele estaria fazendo isso ou eu tenho que esperar? Essa é área que é mais complicada. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A tônica da crítica está na denúncia desse movimento do mercado de trabalho, de ter malícia, mas recai também na universidade. E assim, o entrevistado avalia que se os problemas com os jornalistas, como os processos jurídicos, acontecem de forma sistemática, qual seria o melhor meio para se resolver essa questão.
O ideal seria, eu estou dando um exemplo, de uma disciplina que a gente deveria ter ou reformular: seria a questão jurídica. Nós temos que ter uma base jurídica também como nós temos as bases teóricas da Sociologia, História, para exercer a profissão, se não tivermos, nós vamos ter muitos problemas. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Os processos jurídicos respondidos pelos jornalistas não tem força suficiente para que se repense essa construção formativa? Ao analisar as indagações de Fernando Boente, podemos ressoá-las como crítica ao tecnicismo do mercado. É com este quadro emblemático que somos levados a indagar ao entrevistado: qual seria então a formação ideal para que o jornalista estivesse na redação com compreensão sobre os dilemas da realidade em que irá atuar no social? Fernando Boente acrescenta a disciplina de Economia como outro conhecimento fundamental:
Além de dessa base de disciplinas como Sociologia, Ciências Sociais, História, Filosofia, matérias ligadas à Letras. Precisamos acrescentar a área jurídica urgentemente, que talvez seja o aviso maior de urgência. Questões ligadas à Economia eu acho muito fraco, o jornalismo invariavelmente lida com essas questões que interessam diretamente. Então, esses dois pontos fossem mais urgentes. Em relação a disciplinas ligadas à Economia, não é matemática não gente, é entender a Economia de uma forma como funciona a sociedade. Eu considero que deveriam ter mais semestres com Direito e Economia. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
No momento em que se finaliza sobre as implicações da prática e da teoria na produção de sentido do jornalista, torna-se necessário indagar o valor do “produto” com o sentido histórico. E a pergunta que se efetiva ao entrevistado: Você considera que seu trabalho é um documento histórico? Fernando Boente responde que sim.
Primeiro é necessário identificar qual o conceito que o entrevistado se orienta sobre documento histórico.
Na verdade o documento histórico é qualquer documento que tenha informação e perpasse o tempo. Isso é uma definição de documento
histórico. Se eu escrever um bilhete aqui e ele ficar aqui, ele vai ser um documento histórico, pois eu escrevi num ano, perpassou o tempo e ele vai estar lá. Foi o que eu pensei no dia, entendeu? Até coisas não escritas, coisas simbólicas é um artefato histórico. Por definição. Então ojornal, como ele é uma comunicação linguística, está lidando com uma língua, informações ou virtualmente, no papel, não sei, daqui anos vai ser um banco de dados virtual que nós vamos pesquisar, é o documento histórico, sem dúvida. Por si só ele já é um documento histórico. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
O conceito de documento histórico apresentado por Fernando Boente está demarcado pela temporalidade da matéria. O bilhete se torna histórico porque foi escrito no ontem, assim como o Jornal Correio de Uberlândia, no qual escreve. Por ser um documento a ser consultado no futuro, ele já se torna documento histórico. Ora então a produção jornalística se efetiva em sua dimensão de história pelo fator de temporalidade ou por se enquadrar neste campo: qualquer documento que tenha informação e perpasse o tempo. E, dessa maneira, ele tem a justificativa plausível para apresentar o Jornal Correio de Uberlândia como documento histórico. E acentua ainda mais esse grau de importância: a empresa Algar que envia exemplares do Jornal Correio de Uberlândia para serem arquivados no Acervo Municipal. Por conter uma informação e estar disponível ao longo do tempo, para consulta, o Jornal Correio de Uberlândia é um documento histórico.
Ao se efetivar como documento histórico torna-se necessário entender se, para além de configurar a informação como técnica, o entrevistado irá colocá-la como elemento de embate no processo comunicativo. Há, pois, os dilemas envoltos nesse processo de produção. E o primeiro a ser enfrentado é sobre a ideologia da empresa. Ou mais precisamente no cerne da questão desta pesquisa: qual o tipo de história que está sendo narrada pelo jornalista? Fernando Boente afirma que há, claro, um conflito entre a responsabilidade social de jornalista e as questões da empresa. E pondera: “Mas não existe um meio de comunicação sem interesse”.
A resposta poderia indicar, em primeiro momento, que se trata de uma aceitação sem questionamento. Porém, o entrevistado logo precisa que o ponto importante para entender esse interesse de uma empresa não está no fator de ganhar dinheiro, pelo contrário: o veículo jornal em determinadas situações até deixa de ganhar dinheiro, quando não fecha em vermelho. E o exemplo do Jornal Correio de Uberlândia, que fechou no dia 31 de dezembro de 2016, pode ser listado neste processo de análise econômica. O primeiro elemento é como instrumento de força política.
O veículo de comunicação, o jornal impresso, quando eles são criados por uma empresa privada, ele tem duas intenções e não é ganhar dinheiro, você pode ter certeza que não é ganhar dinheiro, nenhum jornal dá dinheiro. The New York Times foi vendido por um grupo mexicano por quê?! Primeiro ele é um instrumento de força política, quando você tem um canal de comunicação, você está falando com as pessoas, quem fala com as pessoas tem o poder de talvez, não estou dizendo que vai manipular, mas tem o poder de mostrar aquilo que você quer. Isso não seria manipular, seria distorcer. Mostrar o que você quer não é mentir, é ignorar alguma coisa e mostrar o que você quer. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Usar o canal de comunicação como instrumento de força política. Em vez de manipular, há a afirmativa do distorcer a informação. E, com isso, temos de voltar ao enfrentamento: que história distorcida está sendo armazenadas nos arquivos municipais e que se tornou documento histórico por trazer a informação e por estar no fator tempo? E com que forças ou conhecimento suficiente será possível desvelar dessa mensagem o que foi ignorado, ou por interesse, deixado de lado? Esse fator nos coloca diante de um estado de conflito: o reconhecimento da distorção da notícia pelo interesse político da empresa está em oposição justamente no item considerado como primordial de Fernando Boente ao responder o porquê de cursar o jornalismo.
No entanto, Fernando Boente apresenta que o veículo de informação adquirido pelo empresário com a finalidade de ser
utilizado como poder, como instrumento de força política, necessita do Jornalismo. E ao ter de empreender o Jornalismo, torna-se fundante outro valor social: a credibilidade. E é desse modo que a produção jornalística se encarrega de sua responsabilidade social para estabelecer credibilidade ao social.
Então ele existe por isso. Só que quando uma empresa monta isso, pra ele ter esse poder de voz, ele tem que ter credibilidade. E credibilidade você só constrói quando se trabalha de forma que, não estou dizendo que é perfeita, mas que você vai seguir as regras do bom funcionamento do jornalismo, no meio de comunicação. Então ele vai criar um setor de jornalismo que vai ter esse preceito, um princípio. Ele vai ter, nem sempre as limitações são compartilhadas com o setor de jornalismo. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
O conflito então se apresenta: o interesse da empresa em contraponto aos princípios definidos pelo jornalismo. Há uma linha tênue que parece interligar esses dois valores para estabelecer o estado de tensão e conflito. Fernando Boente explica que esse processo é explicito em grandes empresas quando tomam uma posição política. O problema é nas empresas de comunicação do interior, cuja ideologia se faz de forma explicita a partir do jogo de interesses.
Não existe orientação, ele não vai dizer isso na sua cara, ele meio que joga duplo, entendeu? E, às vezes, parece que está jogando com interesse e às vezes nem dá pra saber. Aí na rotina que a gente tem que fazer as coisas, acaba caindo nisso, querendo agradar a gregos e troianos, mas é um dilema que você vai conviver, não tem jeito. Ou você põe a cara pra fazer ou desiste, arruma outra profissão, porque você vai ter que conviver, a linha é muito tênue, sabe?! Até pra você mesmo, porque fora as questões da empresa, tem o seu posicionamento em cima das coisas também, então você tem que ter um bom discernimento, bom senso, parar e pensar... É complicado, não é fácil não, você vai trabalhar com informação. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A linha tênue que separa o manipular do distorcer, da informação para a comunicação, do aprimoramento técnico para o tecnicismo. Não há uma solução à vista: é preciso enfrentá-la. Caso contrário, o melhor caminho é desistir, ir para outra profissão, e porque não, revisitar outros cursos não realizados no passado. Todavia, é preciso que nesta luta se discuta com mais ênfase sobre que tipo de narrativa de história está sendo orientada em cidades do interior. Como mensagem aos novos jornalistas em meio ao desalento, Fernando Boente explica que é necessário parar com essa utopia de trabalhar em grandes veículos. O problema não é só jornalístico, mas de interesse histórico.
Agora o que eu gostaria muito, por exemplo, que se difundisse muito na cabeça dos novos jornalistas que estão saindo aí, que nós precisamos fortalecer a imprensa regional, a gente tem que parar de ficar pensando: eu quero trabalhar na Folha de São Paulo, veículos de imprensa nacional... Eles não tem espaço, eles já tem o quarto poder atuado e nós precisamos levar a imprensa para o país. Nós precisamos entrar, as pequenas cidades, as de pequeno porte, elas não têm imprensa e as sociedades democráticas precisam de imprensa. As pessoas não sabem o que está acontecendo na sua cidade, não sabem o que a prefeitura está fazendo, não sabem que tipo de coisa vai acontecer, porque é tudo muito centralizado em polos. Os profissionais precisam explorar a imprensa e de fato começar a exercer sua função nos espaços do país. É uma coisa que pra mim tem que ser difundida, esquecer essa utopia de grandes veículos, nós precisamos é pensar no jornalismo como uma coisa que tem função e onde ela vem ter função?
Onde não tem! Então a gente tem que levar pra lá. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
O Jornalismo precisa assumir o seu papel de responsabilidade social. Para isso, por mais contraditório ao que defende o entrevistado, ele tem de ultrapassar de ser somente um documento histórico por conter informação e pelo tempo. É preciso que ele possibilite ao outro a compreensão sobre a realidade vivida. Aqui está o peso de pensar o Jornalismo para que se tenha uma função específica. Ao romper com a utopia de trabalhar nas grandes
imprensas, o debate sobre a história da cidade pode ser entendido, em uma de suas instâncias, pelo meio de comunicação. E se prosseguirmos neste enfoque somos obrigados a reconhecer que o sentido da história está na prática definindo referências para a memória coletiva.
Há um determinado momento em que as críticas postas para a profissão vivenciada é conduzida a fazer uma autoanálise. Com todos esses estados de tensão e conflitos expostos, será que o entrevistado se sente realizado com o percurso definido pelo Jornalismo.
Eu me sinto, eu gosto do que eu faço. Tenho minhas decepções com a profissão, mas é porque eu convivo com um monte de gente, entrevisto muita gente, vivo um monte de coisas, vejo crime, picaretagem, vejo muita coisa e você vai discrençando, vai perdendo um pouco a crença na sociedade. Como profissional eu me sinto realizado assim, tem muita coisa pra fazer ainda mas são oito, nove anos atuando e assim eu estou satisfeito. Vou continuar nessa linha. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Fernando Boente entrou no Jornalismo pelo impulso consciente, por meio da leitura, do gosto pelo Jornalismo e por gostar de ler. Se surpreendeu positivamente na Unitri em sua formação teórica, ao mesmo tempo em que produzia sentido sobre a base teórica da técnica, mostrou na experiência vivida o esvaziamento proporcionado pelo tecnicismo. A preocupação dos alunos de sala estava majoritariamente em aprender como se manuseia o microfone, e não o olhar analítico da realidade. No mercado se defrontou com a ausência de ensinamento. E, aos poucos, a realidade profissional permite identificar que há momentos em que não se tem conhecimento sobre o que será escrito.
Ao que parece, a decepção com a profissão ainda não chegou ao seu limite plausível de ter de desisti-la. E, ao recair em outro paradoxo, é preciso pensar que a história está sendo narrada ao considerar que a informação pode estar, assim, sendo distorcida. E
foi ao final desses nove anos que Fernando Boente teve que presenciar o fechamento do Jornal Correio de Uberlândia. As cidades precisam de jornalistas para que o público possa saber de outras histórias que são silenciadas pelo interesse de poder político da empresa. Enquanto permanece em sua luta na produção de sentido, Fernando Boente mantém esse gosto pelo Jornalismo.
1 Pequena síntese da obra retirada do site https://books.google.com.br