Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Departamento de Histテウria
A ARRテ。IDA NO BRONZE FINAL A PAISAGEM E O HOMEM
Mestrado em Arqueologia
Ricardo Miguel Simテ」o Soares 2012
Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Departamento de História
A ARRÁBIDA NO BRONZE FINAL A PAISAGEM E O HOMEM
Ricardo Miguel Simão Soares (Aluno N.º 35052) Dissertação de Mestrado em Arqueologia apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa sob a orientação do Professor Doutor João Carlos de Senna-Martinez Lisboa, Fevereiro de 2012
A presente dissertação não foi redigida ao abrigo do Acordo Ortográfico de 2009
No princípio era só o Verbo. A força criativa da Natureza espraiou-se naquelas paragens e do barro da Terra elevou-se vaidosa, numa erupção de beleza sem igual. Depois veio o Homem, comungando do cenário edílico que a Mãe lhe propôs... Pela Arrábida
Resumo Muito genericamente, o presente trabalho pretende produzir uma análise de questões relacionadas com as estratégias de povoamento das comunidades que habitaram o(s) território(s) da Serra da Arrábida no decorrer do período histórico convencionalmente denominado de “Bronze Final”. A investigação focou-se nas áreas da Serra da Arrábida e da Serra do Risco, estendendo-se, para poente, até às serras dos Pinheirinhos e da Azóia, na plataforma do Cabo Espichel, e, para nascente, até à “Pré-Arrábida”, dominante sobre a foz do Sado. Para o efeito, a Arrábida (Península de Setúbal) foi entendida como um território definido e circunscrito, a norte, pelo Tejo, a sul, pelo Sado, e, a oeste, pelo Oceano; um território de charneira entre o Atlântico e o Mediterrâneo, entre o Norte e o Sul, entre o litoral e o interior; um excepcional ponto de convergência de linhas naturais de transitabilidade (terrestres, fluviais e marítimas) – um conjunto de particularidades geográficas que, associadas às suas excelentes condições naturais de defesa, acessibilidade e abrigo de costa, à disponibilidade dos seus recursos hídricos, marinhos e cinegéticos, além da fertilidade dos seus vales, proporcionaram um edénico quadro, em termos de fixação humana, e ao longo da história, particularmente no decurso do Bronze Final. Isto, sem contar com a dimensão estética das paisagens da Arrábida, aspecto que talvez não tenha sido indiferente às comunidades que, em épocas antigas por aqui se instalaram. Posto isto, impôs-se estabelecer um “ponto da situação”, a partir da bibliografia produzida até à data, reconhecendo e coligindo os parcos dados disponíveis e apresentando uma resenha histórica da investigação que lhes subjaz. Para um melhor entendimento do período em causa, e complementarmente, procedeu-se, de forma genérica, a um esboço da sua génese e evolução no âmbito da bibliografia arqueológica europeia, destacando-se as principais questões de ordem teórica e metodológica. Neste seguimento, face à escassez de dados regionais, foi inevitável procurar eventuais paralelos e/ou avaliar as diferenças relativamente a modelos de ocupação traçados para outras áreas, com particular atenção para o Sudoeste Peninsular. Tratando-se de um tema muito pouco estudado, mas onde já afloravam contextos arqueológicos particularmente sugestivos (o monumento funerário da Roça do Casal do Meio, o povoado do Castelo dos Mouros e algumas grutas), entendeu-se pois oportuno avançar com um trabalho de síntese, complementado pelas novidades emergentes das cartas arqueológicas de Sesimbra (2007-2009) e de Setúbal (em curso desde 2010), projectos integrados pelo signatário, na qualidade de arqueólogo, espeleólogo e fotógrafo, e que têm permitido ampliar significativamente a base de dados relativa a algumas facetas da questão. A hora ainda não nos permite obter uma perspectiva, sincrónica e de “curta duração”, do povoamento na Arrábida ao longo do 2.º e 1.º milénios a.C. Ainda assim, facto é que a Arrábida afigura-se hoje como um interessante “iceberg de Bronze”, do qual se pode descortinar uma florescente e vigorosa cota emersa no horizonte cultural da última fase da Idade do Bronze do Sul da Estremadura. A avaliação global dos dados disponíveis, acerca do povoamento e sobre o território, sugere, por um lado, uma forte articulação com as vias de comunicação marítimas e fluviais e, por outro, a possibilidade de estarmos perante uma unidade política coerente num território específico e individualizado.
Palavras-chave: Arrábida, Sado, Paisagens, Presença Humana, Bronze Final, a Vida e o Sagrado, Santuários Naturais, Navegações, Sal.
Abstract The object of this work is to analyse some issues regarding the settlement strategies of the communities that once inhabited the territory(-ies) of Serra da Arrábida (Setúbal/Sesimbra, Portugal) during the period in History conventionally called the “Late Bronze Age”. The research work focused on two main areas – Serra da Arrábida and Serra do Risco – but it also extended to the west, covering the areas of Pinheirinhos and Azóia (both elevations located on the plateau of Cabo Espichel), and to the east, covering what is called the “PreArrábida”, overhanging the mouth of river Sado. For the purpose of this work, Arrábida (on the Portuguese peninsula of Setúbal) comprises a well-defined territory, limited to the north by the river Tagus, to the south by the river Sado and to the west by the Atlantic ocean; a strategically placed territory, a frontier between the Atlantic and the Mediterranean, North and South, coastline and inland; an exceptional location where all natural routes converge (land, river and sea). This incredible set of geographical peculiarities, in association with excellent natural means of defence, accessibility and shelter, the abundance of water, fishing and game resources, as well as the fertility of the valleys, constituted a perfect setting for human settlement throughout history, and must have been particularly appealing during the Late Bronze Age. An additional aspect that perhaps did not escape the attention of the communities that chose to settle down in Arrábida in ancient times is the great beauty of this magnificent landscape. In light of all this, it was imperative to establish a “state of the art”, based on the bibliography and data available, in order to collect and acknowledge the scarce information, as well as to make an historical summary of the research work involved. To give a better understanding of that period, this work includes a generic and complementary summary of its genesis and evolution in the scope of European archaeological bibliography, highlighting the main theoretical and methodological issues. Next, and given the scarcity of regional data, it was inevitable to look for possible parallels and/or to evaluate the differences regarding settlement models already established for other areas, particularly for the Southwest of the Iberian Peninsula. Although this subject has not been the object of many studies, several very suggestive archaeological sites have come up, namely, the funerary monument of Roça do Casal do Meio, the settlement at Castelo dos Mouros, and some caves). Therefore, it seemed appropriate to present a summary of these sites, while at the same time complementing it with new data uncovered during the field work done for the archaeological surveys of Sesimbra (2007-2009) and Setúbal (in progress since 2010), two projects that contributed to increase quite significantly the existing database regarding some of the issues in discussion and in which the author participated as archaeologist, speleologist and photographer. For the time being, it is still not possible to have a synchronic short-term perspective of the settlement in Arrábida throughout the 2nd and 1st millenniums BC. Nevertheless, Arrábida is seen today as an interesting “Bronze iceberg”, a place that holds tremendous promise, because beneath its waterline there seems to be a strong and flourishing source of material which will enrich the cultural horizon of the final period of the Bronze Age. The overall data assessment regarding settlement and territory suggests a strong articulation with communication routes along watercourses or sea, as well as the possible existence of a coherent political unit within a specified and contained territory.
Key words: Arrábida, Sado, Landscapes, Human presence, Late Bronze Age, Life and Sacred, Natural Sanctuaries, Navigation, Salt.
Agradecimentos O presente trabalho não seria possível, quer na sua realização e resultado final, quer na sua original motivação, sem o diversificado contributo de tantas pessoas que tive a satisfação de encontrar, sobretudo nos últimos anos. A todas o dedico e a todas agradeço o apoio, inspiração e aspiração. Destaco, desde logo, o Professor Doutor João Carlos de Senna-Martinez, por ter aceitado orientar este trabalho, acompanhando-o com dedicado zelo, disponibilidade, competência, entusiasmo e amizade académica. Um reconhecimento muito especial ao Professor Doutor Manuel Calado. Natural de um Alentejo sem fronteiras que se espraiou na Arrábida, vinculou-me em definitivo à minha Serra, à sombra da qual nasci como gente e arqueólogo. Um Mestre e amigo sempre presente, que me apresentou à Arqueologia na Faculdade de Letras de Lisboa, conduzindo-me nas prospecções da Arrábida, na aventura da escavação da Lapa da Cova, entre outras. Obrigado, sempre! A todos os Professores que tive o privilégio de seguir ao longo da Licenciatura e Mestrado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É bom aprender convosco. Um agradecimento especial ao Professor Doutor Amílcar Guerra pela simpática tradução de Plínio – “o sal da vida”. Aos colegas com que partilhei, ao longo destes últimos cinco anos, tantos momentos de aprendizagem e descontracção, em especial aqueles com que me liguei para a vida por via da amizade. Em especial o amigo Miguel Amigo, colega de carteira e fiel companheiro das lides arrábidas, o Sérgio Rosa, por toda a amizade e apoio, particularmente no tratamento digital de topografias, o Luís Cunha, pelo exemplar espírito aventureiro. À fantástica equipa de “espeleo-arqueólogos” da Arrábida, muito em particular ao Rui Francisco (Loia) e ao Ricardo Mendes, incansáveis guerreiros do submundo cavernícola sem os quais este trabalho não seria de todo possível. “A Arrábida revela-se a quem a merece”. Parabéns amigos! Ao Professor Doutor Luís Jorge Gonçalves, pela amizade, apoio e hospitalidade na Faculdade de Belas Artes de Lisboa e nos projectos da Arrábida; ao grande Rui Mataloto, pela disponibilidade e pelas incontáveis conversas e PDF’s; ao “arqueo-arquitecto” Pedro Alvim, obrigado pela amizade e exemplo académico; ao Pipão (e Vera de Freitas), prosseguidor do pioneirismo de Estácio da Veiga nos territórios do “Bronze Algarvio”; à Maria do Rosário Silva, pela longa amizade e apoio, especialmente nas profissionais traduções. Será também justo recordar o excelente acolhimento no Museu Geológico (“o Museu dos museus”), particularmente na pessoa do José António Moita, pela hospitalidade, boa disposição e apoio no registo fotográfico dos materiais cerâmicos da Roça do Casal do Meio; e Centro de Documentação e Arquivo Histórico do Museu de Portimão, por tantas horas de fruição daquele aprazível espaço e do seu útil acervo bibliográfico. Também quero agradecer a todos os autores cujo trabalho citei ao longo do presente texto, pelo que aprendi e pelas reflexões necessariamente produzidas a partir das suas obras. À Fertagus e à CP, pela embalagem de incontáveis horas de estudo pelos carris do nosso Portugal; a todos os javalis, esses improváveis aliados da arqueologia de prospecção da Arrábida, pelos seus preciosos trilhos e clareiras que nos permitiram inesperadas janelas sobre o Passado. Em especial à Sara Navarro, por tudo o que é e significa para mim! Um obrigado muito pessoal pelo espírito crítico, pela valorização estética e pela liberdade de novas visões, perspectivas e horizontes – a Arte e a Arqueologia, o barro e a forja, a terra e o fogo. À minha irmã Cátia. Concretização e sucesso nos teus objectivos académicos, conta comigo! Por fim, mas acima de todos, obrigado Mãe (Fernanda & Fernando).
Índice Resumo/Abstract Agradecimentos 1.
Notas introdutórias: motivações, objectivos e metodologias
2.
A Serra da Arrábida: Geografia e Paisagem
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3.
Episódios da investigação arqueológica regional
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4.
A Idade do Bronze Peninsular: evolução dos conceitos e periodização
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5.
O Bronze Final: indígenas, visitantes e colonos
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6.
O Bronze Final na região da Serra da Arrábida: a vida, a morte... e as paisagens 6.1. Os sítios de habitat 6.1.1. Povoado aberto das Terras do Risco – base agro-pastoril 6.1.2. Povoado de altura do Castelo dos Mouros – povoado central (?) 6.1.3. Povoado de altura da Serra da Cela – povoado portuário (?) 6.1.4. Povoado de cumeada de Valongo – “atalaia” 6.1.5. Quinta do Picheleiro – casal agrícola 6.1.6. Bico dos Agulhões – “atalaia” (?) 6.1.7. Caetobriga (Setúbal) 6.2. As necrópoles e os “santuários naturais” 6.2.1. Monumento funerário da Roça do Casal do Meio 6.2.2. A Lapa do Fumo e os “ornatos brunidos” – “gruta-santuário” (?) 6.2.3. Lapa da Furada – “gruta-santuário” (?) 6.2.4. Gruta do Médico – necrópole (?), “gruta-santuário” (?) 6.2.5. Lapa da Cova – “gruta-santuário” 6.2.6. A Fenda – “santuário natural” (?) 6.2.7. Outras cavidades 6.3. Cultura material 6.4. A rede de povoamento: sincronias (?), hierarquia (?) e inter-relações 6.5. Recursos, vias e circulação: algumas questões e a “rota do sal” 6.6. Transição Bronze Final/Idade do Ferro: os novos dados
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46 50 50 54 56 59 61 62 64 67 71 78 82 86 88 93 94 96 101 106 115
7. A Arrábida: entre o Tejo e o Sado, entre Atlântico e o Mediterrâneo, entre o litoral e o interior 120 7.1. Navegando em “Mares de Bronze” – o “síndrome do marinheiro” 120 7.2. O Sado e o “Porto(inho)” da Arrábida 134 8. Bibliografia
1. Notas introdutórias: motivações, objectivos e metodologias “Um lugar tem de se tornar uma paisagem interior para que a imaginação comece a habitar esse lugar e fazer dele o seu teatro”. Ítalo Calvino “Archaeologists have argued recently that the formation of the landscape, as a sweep of land featuring meaningful places, is brought about by the accumulation of markers of human activity, including monuments, which are in a sense the repositories of shared memories”. Renfrew, 2006 “A existência é aleatória, não tem um padrão, salvo aquilo que imaginamos depois de a contemplarmos durante demasiado tempo. Sem significado, salvo aquele que escolhemos impor”. Rorschach in Watchmen (DC Comics)
O presente trabalho pretende contribuir para a construção de um modelo para as estratégias de povoamento das comunidades que habitaram o(s) território(s) da região da Arrábida no decorrer do período histórico convencionalmente chamado de “Bronze Final” (lato senso). A investigação foca-se nas áreas da Serra da Arrábida (Setúbal), propriamente dita, e da Serra do Risco (Sesimbra), estendendo-se até às serras dos Pinheirinhos e da Azóia (Sesimbra), na plataforma de abrasão do Cabo Espichel. Para o efeito, impôs-se como necessário estabelecer um “ponto da situação” na investigação arqueológica regional, coligindo os dados disponíveis, produzindo uma resenha histórica da respectiva investigação, além de uma preliminar exposição dos novos dados emergentes das Cartas Arqueológicas de Sesimbra e de Setúbal. Em boa verdade, trata-se de um trabalho inédito – a área em causa nunca foi objecto de um trabalho de síntese específico, no que respeita à sua ocupação nos últimos momentos da Idade do Bronze. A investigação desenvolveu-se, em grande parte, a partir de experiências, reflexões e interpretações paisagísticas, acerca da implantação, funcionalidade e inter-relação dos contextos tratados; passando por uma análise descritiva dos sítios e dos vestígios artefactuais e estruturais de superfície, na sua maioria identificados na sequência de recentes projectos de investigação
sistemática
integrados
pelo
signatário.
Destacam-se
as
prospecções
arqueológicas e espeleológicas realizadas no âmbito da nova Carta Arqueológica do concelho de Sesimbra, entre 2007 e 2009 (Calado et al., 2009); prospecções espeleológicas de levantamento e caracterização nas quais o autor tem participado, desde 2008, na qualidade de espeleólogo/arqueólogo (LPN-CEAE – Centro de Estudos e Actividades Especiais da Liga para a Protecção da Natureza); prospecções “arqueoespeleológicas” no âmbito da Carta Arqueológica da Arrábida – Setúbal, em curso desde 2010; além de outras prospecções esporádicas de iniciativa pessoal. Depois de apresentados os dados disponíveis para a área e período de estudo, foi desenhado um polígono com vértices no grande povoado aberto das Terras do Risco (vale A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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adjacente da encosta norte da Serra do Risco); no povoado de altura do Castelo dos Mouros (vertente norte da Serra da Arrábida); no povoado de altura da Serra da Cela (vertente sul da Serra da Arrábida/Portinho da Arrábida); no povoado de cumeada de Valongo (“topo” da Serra da Arrábida); e no pequeno povoado/casal agrícola da Quinta do Picheleiro (cabeço a norte de Valongo, depois do vale que os separa), considerando, ainda, outros sítios em fase de caracterização (por exemplo o Bico dos Agulhões, entre a Serra do Risco e o Portinho) e Caetobriga (Setúbal). Aos “vértices” de habitat, foram ligados outros pontos que remetem para funções mágico-religiosas – as necrópoles e os “santuários naturais”/“grutas-santuário”: o monumento funerário da Roça do Casal do Meio (Terras do Risco – necrópole), a Lapa do Fumo (Serra dos Pinheirinhos – necrópole/“gruta-santuário”?), a Lapa da Furada (Serra da Azóia – necrópole/“gruta-santuário”?), a Gruta do Médico (encosta meridional da Serra da Arrábida/Portinho da Arrábida – necrópole/“gruta-santuário”?), a Lapa da Cova (vertente sul da Serra do Risco – “gruta-santuário”) e a Fenda (Portinho da Arrábida – “santuário natural”?). Este esboço cartográfico pretendeu avaliar as presumíveis inter-relações de um grande complexo populacional do Bronze Final, implantado estrategicamente numa paisagem específica, desde sempre propícia à implantação humana. Assume-se, é claro, como um exercício parcialmente especulativo, tendo em conta o facto de os dados de povoamento disponíveis resultarem exclusivamente de recolhas de superfície, com carências em termos de sincronias e diacronias. Recorde-se, aliás, que as únicas escavações realizadas em contextos da Idade do Bronze da Arrábida se reportam a sítios de vocação sagrada/funerária (Roça do Casal do Meio, Lapa do Fumo, Lapa da Furada e Lapa da Cova). Também pareceu razoavelmente interessante vir a desenvolver a hipótese de dois blocos paisagísticos diferenciados: a Arrábida central e ocidental (Serra da Arrábida, Serra do Risco, serras dos Pinheirinhos e da Azóia), enquanto território preferencial para a Idade do Bronze; e a “Pré-Arrábida” (Ribeiro, 2004), a oriente (Serra de São Luís, Serra do Louro e Serra de São Francisco), como suporte preferencial para a implantação durante o Calcolítico. Esta ideia foi provisoriamente aflorada no âmbito do Seminário proposto pelo autor na sua Licenciatura em Arqueologia (FLUL) – Povoados Calcolíticos da Região da Arrábida (Soares, 2009), ganhando substância com os recentes dados decorrentes das já referidas cartas arqueológicas regionais. Para um melhor entendimento deste período (Bronze Final), e complementarmente, procedeu-se, de forma genérica, ao estudo da sua génese e evolução no âmbito da bibliografia arqueológica europeia, destacando-se as principais questões de ordem teórica, metodológica e A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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cronológica. Neste seguimento, tratando-se de um território com algumas singularidades regionais, onde escasseiam os dados sobre a Idade do Bronze, foi inevitável procurar eventuais paralelos e/ou avaliar as diferenças relativamente a modelos de ocupação conhecidos para outras regiões peninsulares. Assim, tornou-se necessário recorrer, entre outros, a estudos de síntese regional, com particular atenção para a área do Sudoeste Peninsular: Estremadura (Cardoso, 1998, 2000, 2004; Cardoso e Silva, 2004; Ferreira et al., 1993; Silva e Soares, 1986, 2006; Soares, 2000a); Alentejo (Calado, 2001, 2005; Calado et al., 1999, 2006, 2008; Mataloto, no prelo); Beiras (Senna-Martinez, 1993a, 2002, 2007, 2010, 2011; Senna-Martinez et al., 2011a, 2011b; Vilaça, 1995). A grande parte dos dados tratados no presente estudo foi produzida a partir de trabalhos de campo, em parte desenvolvidos pelo signatário ao abrigo dos já referidos projectos de Carta Arqueológica. Além de diversas acções de prospecção, objectivando a reavaliação e identificação (de novo) de sítios arqueológicos, procedeu-se à sua georreferenciação (com recurso a GPS) e à recolha e/ou registo fotográfico, in loco, de artefactos, estruturas e de aspectos relativos à sua implantação paisagística. Os dados de campo foram precedidos, acompanhados e complementados por trabalhos de gabinete: levantamento bibliográfico dos dados disponíveis; tratamento, descrição e registo de materiais recolhidos; descrição, caracterização e interpretação de arqueossítios; produção de material cartográfico: implantação dos sítios, a partir de coordenadas GPS, em extractos das Cartas Militares de Portugal (1:25000 – folhas n.º 454, 464 e 465) e em imagens de fotografia aérea, extraídas do Google Earth. Os sítios foram alvo de descrição e caracterização, tendo em conta a história da sua investigação, nos casos já publicados, e os novos dados. Foi dado particular enfoque à sua implantação topográfica e respectiva envolvente paisagística: proximidade a recursos naturais (acesso a água e a solos com potencial agrícola), proximidade e relação com vias de transitabilidade regional e inter-regional e interrelação com outros povoados associáveis. No que se refere à geologia de implantação, foi observada a composição e compactação dos solos (bases arenosa, argilosa, rochosa), cruzada com a interpretação de eventuais fenómenos pósdeposicionais/tafonómicos: dinamismo dos solos e remobilização de materiais por acção da agricultura, do pastoreio, das raízes do coberto vegetal, das luras de roedores, da erosão e da deposição/dejecção de detritos (por acção natural, animal ou humana). No caso das grutas, estas foram caracterizadas e descritas com base em critérios espeleológicos e arqueológicos. Importa aqui diferenciar as virtudes e as lacunas de duas abordagens distintas, mas complementares, na investigação arqueológica: a prospecção e a escavação arqueológica. Nas A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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últimas décadas, e um pouco por todo o mundo, incluindo Portugal, os trabalhos de prospecção têm sentido um progressivo incremento, em parte devido a obrigações impostas pela conjuntura legal relativa à protecção do património arqueológico e, sobretudo, por transformações metodológicas e alteração dos próprios objectivos gerais da Arqueologia. Em consequência deste exponencial aumento de acções de prospecção, verificou-se um proliferar de novos arqueossítios e a consequente possibilidade de abordagem das respectivas questões territoriais. A prospecção emancipou-se, assim, enquanto método independente e de direito próprio, no âmbito da investigação arqueológica – “prospectar e cartografar em arqueologia: Tijolos para um edifício em contínua construção” (Victor S. Gonçalves, 2001). Desde logo, e numa conjuntura em que urge reter o máximo de informação de um Passado cada vez mais ameaçado pelo irremediável avanço da pressão humana, a prospecção tem vindo a revelar-se, justamente, como a mais proveitosa abordagem quando, numa perspectiva patrimonial, se pretende prevenir os riscos e, numa perspectiva científica, se pretende alcançar um conhecimento abrangente acerca da ocupação humana de uma determinada região. Por outro lado, a prospecção permite identificar os sítios com maior potencial informativo e que podem ser alvo de projectos de escavação, passando-se de uma exploração superficial, horizontal e de largo espectro, para uma localizada e aprofundada exploração vertical. Esta última permite, teoricamente, aferir a diacronia e as eventuais sincronias dos complexos culturais regionais. Neste sentido, do ponto de vista da rentabilidade científica e atendendo à carência de financiamentos para a investigação arqueológica, a par da urgência face à galopante destruição dos contextos, a prospecção deverá ser vista como prioritária, quando comparada com a escavação. Num mundo perfeito de projectos sistemáticos e de longo prazo, dirigidos para uma determinada região (raramente possíveis, infelizmente), as escavações deveriam constituir uma ponderada etapa consequente à prospecção. Só então, depois de uma completa avaliação de toda a informação produzida, esta impõe uma tradução, num discurso final onde a sequência de ocupação de uma determinada região é partilhada com a comunidade científica e com a comunidade em geral, em última análise os verdadeiros destinatários destas empresas. Por muito que se pense conhecer um determinado território, o seu verdadeiro entendimento provém de uma experiência cumulativa, de um permanente dialogo entre o arqueólogo e a sua área de estudo. Por exemplo, as condições de visibilidade dos solos alternam sazonalmente ao longo do ano e variam indeterminadamente ao longo dos anos: os terrenos lavrados, além de limpos de vegetação, são revolvidos, expondo eventuais vestígios arqueológicos; as áreas afectadas por incêndios, depois de “lavadas” pelas chuvas, também A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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facilitam a actuação do prospector; os terrenos perturbados pela acção dos javalis são fossados ao ponto de permitirem uma excepcional progressão na vegetação densa e a prospectabilidade em novas clareiras. Assim, enquanto a abordagem por escavação constitui uma acção única, destrutiva e irrepetível, impondo, por isso, um completo e atento registo, como exclusivo documento para reinterpretações futuras (a par da reserva de testemunhos); já a prospecção pressupõe uma tarefa “interminável”, sempre em aberto e incompleta, em constante actualização. Posto isto, e para o presente trabalho, optou-se pela seguinte escalonamento metodológico: 1.ª Fase – levantamento bibliográfico de referências, directas e indirectas; registo de testemunhos orais acerca da região, a partir de uma população com potencial informativo: pastores, agricultores, caçadores, guardas da natureza, enfim... gentes da terra; análise cartográfica (militar, corográfica, geológica, hidrográfica, capacidade dos solos, etc.), toponímica e de fotografia aérea/satélite, associada aos dados arqueológicos disponíveis, obtidos no levantamento bibliográfico; definição de áreas prioritárias e com maior potencial arqueológico e de prospectabilidade, gizando-se a estratégia de abordagem ao terreno e uma calendarização de áreas alvo. 2.ª Fase – prospecções preliminares, em unidades naturais/geográficas (geológicas, geomorfológicas e topográficas) e culturais (Idade do Bronze/1.ª Idade do Ferro), com prioridade à relocalização e visita dos arqueossítios já conhecidos e de eventuais locais sugeridos pela toponímia e pelos testemunhos orais da população, procedendo-se à sua georeferenciação (GPS) e respectivo registo fotográfico. Além da reavaliação dos dados conhecidos, este exercício teve como objectivo uma definição, in loco, de novos alvos, “empírica” e a partir da paisagem (micro-relevos, particularidades geológicas, vegetação, grau de legibilidade do terreno), actualizando-se a agenda de prospecção. 3.ª Fase – na sequência das anteriores fases, partiu-se finalmente à descoberta. Nesta fase foi posta em prática a estratégia de prospecção selectiva anteriormente definida e que sofreu, naturalmente, ajustamentos determinados pela experiência e condicionantes no terreno. Um arqueólogo prospector, além de “cientista”, é um “homem”, com intuição própria e sensibilidade empírica, o que em muitos casos se revela como uma excelente ferramenta de descoberta. Os vestígios arqueológicos identificados foram dando entrada no caderno de campo com uma descrição sumária, sendo as respectivas coordenadas obtidas com GPS implantadas na cartografia ortogonal militar (UTM, Datum de Lisboa) e na fotografia aérea
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(Google Earth). Foi ainda realizado um registo fotográfico dos vestígios (informativo e “artístico”), tendo em conta a sua implantação e relação com a paisagem. Paralelamente aos trabalhos de campo, foram realizados os correspondentes trabalhos de gabinete, que consistiram em tarefas diversas como a lavagem, marcação, colagem, desenho, fotografia e descrição de materiais recolhidos pela sua excepcionalidade. Não se tratando o presente trabalho de um estudo artefactual, mas sim, e sobretudo, de uma análise da relação do Homem com a Paisagem, os materiais tidos como pertinentes, pela sua singularidade ou potencial informativo, foram apenas apresentados em registo fotográfico. Esta abordagem não pretendeu substituir, de forma alguma, o desenho, tratando-se de uma opção meramente prática e que não descorou, dentro do possível, a representação da informação relativa às formas e particularidades dos materiais. Toda a informação coligida (descrições de artefactos e de sítios e as correspondes coordenadas e fotografias) deu entrada numa base de dados criada para o efeito. Os novos sítios foram designados de acordo com o topónimo mais próximo na respectiva folha da Carta Militar 1:25000, ou, sempre que possível, optou-se pelo microtopónimo adquirido a partir da informação oral. As propostas cronológicas foram aferidas em função de uma avaliação global dos achados de superfície (artefactos e/ou estruturas), tendo em conta variáveis como a extensão, distribuição e intensidade de ocorrência dos vestígios, o tipo de implantação, os contextos arqueológicos vizinhos, as geoestratégias, etc. Para os sítios calcolíticos, foram tidos em conta “fósseis directores” como a cerâmica manual de bordos espessados, o barro de cabanas, os pesos de tear (crescentes e placas), etc. Na ausência destes, e para a Idade do Bronze/Bronze Final, foram considerados outros artefactos: cerâmica de ornatos brunidos, cepillados, mamilos alongados, perfis em “S”, carenas de ombro e fundos planos. Foram considerados, igualmente, aspectos da cultura material, como sejam o elevado número de fragmentos face ao número de bordos (indicando uma predominância de formas fechadas), ou a escassez relativa de materiais líticos, além da própria implantação e tipologia dos povoados e a proximidade de outros contextos comprovadamente referentes à Idade do Bronze. Para a Idade do Ferro: a cerâmica a torno, os bordos exvertidos, as asas de rolo, as plantas ortogonais dos edifícios, etc. Para os sítios referidos na bibliografia, e sempre que os elementos recolhidos não permitiram estabelecer novas classificações, foram respeitadas as cronologias propostas pelos respectivos autores. O povoado da Serra da Cela, por exemplo, foi reclassificado tendo em conta o observado in loco, merecendo, assim, um novo enquadramento cronológico – Bronze Final.
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Também o estudo circunstanciado dos artefactos registados, que não coube no âmbito deste trabalho por razões logísticas e de objectivos, virá, seguramente, em eventuais trabalhos ulteriores, permitir uma maior precisão cronológica e uma melhor compreensão das realidades arqueológicas identificadas. A classificação tipológica dos sítios implicou, tal como no caso da cronologia, o cruzamento de diversos dados, tendo o resultado oscilado entre classificações muito abertas, como “achado avulso”, e outras mais precisas, como “povoado”. Também foi feita referência ao tipo de protecção legal conferida aos sítios/monumentos, quando aplicável (um caso único – monumento funerário da Roça do Casal do Meio). Todos os casos em que subsistiram dúvidas acerca da classificação tipológica, funcional e cronológica dos achados e dos sítios, a incerteza foi assinalada com uma interrogação “(?)”. Na última fase das prospecções entendeu-se necessário revisitar determinados sítios, de modo a, à luz de uma visão mais actualizada e global da região, efectuar uma revisão e tomar decisões interpretativas melhor escoradas. 4.ª Fase – dando por terminados os trabalhos de campo, tendo em conta os prazos prédeterminados (na verdade, a informação de campo é inesgotável), todos os dados coligidos e sistematizados foram interpretados e traduzidos num discurso científico normalizado, complementado por uma narrativa coerente, validada, sempre que possível, por apropriadas referências bibliográficas. No que diz respeito aos achados referenciados, e no contexto do presente trabalho, foram considerados os artefactos, as estruturas e os ecofactos. Entende-se por artefacto qualquer objecto móvel que apresente determinadas características físicas que pressuponham uma produção humana. Aqui também são incluídos os vestígios resultantes dessa produção (restos de actividade). Por seu turno, as estruturas, ou vestígios imóveis, podem ser positivas ou negativas, estas últimas dificilmente detectáveis e caracterizáveis sem escavação. Por fim, os ecofactos são os materiais orgânicos (vestígios antropológicos, faunísticos, vegetais e bolsas de solo antropogénico), interessando sobretudo, para o presente estudo, os remanescentes antropológicos (ossos e dentes) e o material malacológico, pelo facto de serem de fácil detecção em prospecção, particularmente em contextos de habitat e de gruta, e por se revelarem como um indicador directo para práticas alimentares. A descoberta de um sítio arqueológico, e a sua consequente classificação funcional, dependem da percepção arqueológica conferida aos vestígios identificados durante as prospecções. Claro que essa percepção é parcialmente subjectiva, dependendo das decisões tomadas pelo arqueólogo de serviço, manifestando-se no grau de representação arqueológica A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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atribuída aos vestígios identificados. Na evolução do presente trabalho, serão tratados três tipos genéricos de sítios arqueológicos: os sítios de habitat, as necrópoles e os “santuários naturais”/“grutas-santuário”. Assim, no caso dos sítios de habitat, estes são entendidos como lugares de dimensão variável, nos quais grupos humanos se detiveram, durante um determinado período de tempo, legando-nos vestígios físicos, móveis (artefactos e ecofactos) ou imóveis (estruturas), testemunhando as suas actividades tecno-económicas, sociais e mágico-religiosas (Vilaça, 1995, p. 42). Nestes incluem-se os povoados abertos, os povoados de altura, os povoados de cumeada e os abrigos. O povoado aberto “corresponde a sítios de habitat implantados em áreas pouco declivosas, logo sem defensabilidade natural, e geralmente em solos com elevado potencial agrícola relativo” (Calado, 2004, p. 36). Aqui são incluídos o povoado aberto das Terras do Risco e o pequeno povoado da Quinta do Picheleiro. Quanto aos povoados de altura, “foram assim classificados os sítios implantados em locais com evidente defensabilidade natural, no topo de colinas ou de esporões. Muitos deles podem encerrar estruturas de tipo defensivo (…), outros, mesmo sem terem sido escavados, são fortemente suspeitos de encerrarem sistemas defensivos, atendendo à existência, mais ou menos explícita, de evidências microtopográficas” (ob. cit., p. 37). São aqui incluídos os povoados do Castelo do Mouros e da Serra da Cela. Mais acima, relativamente aos povoados de altura, implantam-se os povoados de cumeada, no topo dos complexos orográficos – o povoado “atalaia” de Valongo. No que às “necrópoles” diz respeito, estão em causa sítios onde grupos humanos sepultaram e cultuaram os seus mortos ao longo de um determinado período cronológico, sendo identificáveis por vestígios osteológicos e artefactuais, de carácter votivo, remetendonos
para
actividades
espirituais.
Distinguem-se,
aqui,
os
sítios
funerários
construídos/edificados (Roça do Casal do Meio), dos sítios funerários naturais – as grutas. No entanto, a total ausência de vestígios osteológicos num determinado sítio não deve excluir liminarmente a sua utilização enquanto necrópole, pelo menos num determinado momento. Há que admitir, teoricamente, opções de culto fúnebre como a incineração ou a remobilização dos restos para contextos secundários, nomeadamente aquáticos – lançados aos rios ou ao mar – situações dificilmente detectáveis mesmo em escavação. Importa também deixar claro o que se entende por “santuários naturais” e “grutassantuário”, denominações que vão surgir amiúde mencionadas ao longo do texto e que correspondem a monumentos naturais, ou geomonumentos, susceptíveis de actividade humana. Genericamente, estão em causa formações ou acidentes geológicos invulgares, A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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excepcionais ou exuberantes na paisagem e que, de forma directa ou indirecta, comprovada ou não, poderão ter tido algum tipo de exploração ritual. Exemplos: afloramentos, cavidades, sumidouros, falhas, fendas, elevações destacadas e formações sugestivas (Calado, 2004, p. 39). Fazendo zoom no espaço arrábido, e assumindo a importância de certos detalhes paisagísticos para a ancoragem física dos comportamentos simbólicos, tornou-se possível destacar alguns monumentos naturais que, por hipótese, tiveram algum papel na organização do espaço ao longo da Pré e Proto-História (Bradley, 2000). Nesta ordem de ideias, um “santuário natural” implica um local de características naturais singulares, utilizado por grupos humanos enquanto local de culto – “templo natural”. A este propósito, temos o exemplo paradigmático do “santuário natural”/rupestre da Rocha da Mina (Alandroal) (Calado, 1993a, p. 175), alegadamente dedicado ao culto de Endovélico e que depois de adoptado pelos romanos é transferido para um templo edificado em São Miguel da Mota, à vista de 3 km. O texto, no seu decurso, fará amiúde referência substantiva a grutas e lapas. Na verdade, grutas, lapas, cavernas, covas e algares são geralmente sinónimos na linguagem corrente. Todavia, se quisermos ser mais precisos, podem aqui ser feitas algumas distinções. Genericamente, por gruta ou caverna, entende-se uma cavidade subterrânea natural, aberta na montanha calcária (karst/carso) por um longo processo de erosão/dissolução combinada (mecânica e química), provocado pela infiltração de águas ácidas provenientes da superfície, resultando em espaços ocos, mais ou menos amplos, simples ou complexamente ramificados, podendo apresentar um desenvolvimento vertical, horizontal ou misto. Em zonas costeiras, à erosão das águas subterrâneas acresce a acção hidrodinâmica do mar, fenómeno que acaba por ampliar e reconstruir determinadas aberturas cársicas – as lapas, por exemplo. As lapas são cavidades simples, tendencialmente de menores dimensões e cujo desenvolvimento é horizontal e a partir da abertura. Por fim, entende-se por algar, uma cavidade de abertura e desenvolvimento vertical, por vezes muito profunda e que poderá ramificar horizontalmente em amplas galerias, ou terminar num fundo “em saco”. Regressando à Arqueologia, no que diz respeito, mais concretamente, às “grutassantuário”, e pelo facto dos vestígios dos rituais serem praticamente omissos numa abordagem de superfície, a opção por uma classificação no domínio do sagrado é sobretudo aferida por exclusão de partes. Estamos perante cavidades abertas naturalmente no calcário, que, pelo facto de não exibirem vestígios antropológicos, excluem, à partida, uma classificação como necrópole. Por outro lado, por se tratar de locais pouco propícios à vida quotidiana, distantes dos recursos básicos de sobrevivência, de acessibilidade difícil, exíguos, A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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irregulares, insalubres e desconfortáveis, é mais plausível que correspondam a utilizações de tipo excepcional, nomeadamente de carácter simbólico/espiritual. Também neste caso, estão em causa sítios de dimensão variável, onde supostamente grupos humanos praticaram actividades espirituais, magico-religiosas, ao longo de um determinado período de tempo. Posto isto, importa ainda considerar possíveis casos de dupla função: necrópole e “grutasantuário” – Lapa do Fumo, Lapa da Furada e Gruta do Médico. Por fim, um dos compromissos assumidos à partida para este trabalho prendeu-se com a premissa, dentro da razoabilidade, de a presente investigação constituir um produto de satisfação pessoal. Nesta perspectiva, surgiram naturalmente temáticas que mereceram particular desenvolvimento, decorrentes de actividades, motivações e interesses pessoais do autor. Desde logo a Proto-História e a própria Arrábida, o gosto pela prospecção, passando pelas grutas e pelas navegações antigas que ligaram este território a outras paragens, ao longo do Sado e através do Atlântico.
Fig. 1 – Prospecções na Arrábida (foto de R. Soares).
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2. A Serra da Arrábida: Geografia e Paisagem “A serra tem o ar de uma onda que avança impetuosa e subitamente estaca e se esculpe no ar; é uma onda de Pedra e mato, é o fóssil de uma onda”. Sebastião da Gama
A península de Setúbal, também referida por “península da Arrábida”, define-se numa região correspondente à extremidade sul da Bacia Lusitaniana, separando as bacias estuarinas dos rios Tejo e Sado e penetrando dominante no Atlântico sob a égide do Cabo Espichel (o cabo Barbarium dos romanos, segundo Estrabão). O recorte costeiro da orla meridional desta península é majestosamente dominado pela Serra da Arrábida, cadeia montanhosa de carsos essencialmente jurássicos e miocénicos, singularmente variada do ponto de vista geológico. Partilhada pelos concelhos de Setúbal, Palmela e Sesimbra, a Serra da Arrábida constitui uma das mais importantes, originais e diferenciadas estruturas da tectónica de inversão de idade miocénica da Bacia Lusitaniana, documentada pela primeira vez na região por Paul Choffat, em 1908 (Choffat, 1908). A cordilheira tem o seu ponto mais elevado no alto do Formosinho, com 499 m de altura, e define-se genericamente na paisagem por uma série de elevações dispostas de este-nordeste para oeste-sudoeste, paralelas à Cordilheira Bética, com cerca de 35 km de comprimento e 6 km de largura média. A sul e oeste é limitada pelo Oceano, onde cai bruscamente em arribas imponentes, prolongando-se na plataforma continental por cerca de 5 km. A norte é confinada pelo sinclinal de Albufeira e a leste pela falha Setúbal-Pinhal Novo, quadrantes de terras baixas e arenosas que caracterizam grande parte da península. No sentido este-oeste, estende-se por uma cortina de elevações, desde Palmela até Sesimbra (Ribeiro, 2004). Na verdade, a Arrábida constitui a principal peça montanhosa da cordilheira a que dá nome, dominando, dos altos do Formosinho e Picoto, um complexo de relevos associados – “pequena unidade natural perfeitamente individualizada” (ob. cit.). Ainda submersa há cerca de 180 milhões de anos, ganhou contornos com as deformações produzidas durante o Miocénico, em dois momentos distintos: as primeiras verificadas há cerca de 17,5-15 Ma, e as segundas há cerca de 7-6 Ma. Em consequência, foram produzidos dois sistemas de falhas, esboçados durante as fases distensivas mesozóicas, de orientação aproximada norte-sul e esteoeste, e que promoveram a compartimentação da região, influenciando, significativamente, os principais acidentes tectónicos e o seu estilo particular (Ribeiro et al., 2000) – “devido ao successivo resfriamento e consequente contracção do planeta que habitamos, a crusta solidificada, que desde a esphera central da terra ainda fluida chegava até o fundo d’esse mar, encarquilhou-se como a pelle de uma uva que se secca, a ponto de fazer saliencias acima do oceano e formar uma elevada ilha, de que a actual Arrabida não é mais do que um A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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vestigio, comparavel aos restos de altivo e grandioso monumento a que as injurias do tempo não tivessem deixado senão pequenas porções das suas arruinadas paredes” (Costa, 1902, p. 275-276). Do ponto de vista da Geomorfologia, este longo processo resultou num conjunto de elevações, agrupadas naturalmente em duas linhas separadas por vales. A primeira linha, mais vigorosa e característica, é composta por alguns pequenos cerros que partem de Sesimbra, serras do Risco (380 m - Píncaro) e Arrábida (499 m - Formosinho), e pelas colinas que se desenvolvem do Outão até Setúbal. Entre a Serra do Risco e a Ribeira da Comenda, os picos dominantes do Formosinho e do Picoto, e as respectivas falésias abruptas, constituem uma inexpugnável barreira natural sobre os territórios de planura que se espraiam nas baixas estuarinas. Por outro lado, esta “linha defensiva” proporciona um extenso domínio visual: sobre o vale do Tejo, avistando-se, no horizonte norte, a Serra de Sintra; a sudeste, sobre o vale do Sado, até à região de Alcácer-do-Sal; e a sul, sobre a costa atlântica, da foz do Sado, península de Tróia até ao cabo de Sines. Uma segunda linha orográfica, denominada por Orlando Ribeiro de “Pré-Arrábida” (Ribeiro, 2004), desenvolve-se a norte e leste da primeira, integrando as serras da Comenda, de São Luís (392 m), dominante sobre Setúbal, de São Paulo, dos Gaiteiros (ou dos Barris) e de São Francisco/Louro (256 m - Alto da Queimada), monoclinal que parte de Palmela em direcção a Sesimbra. Entre a Serra de São Francisco e o Cabo Espichel desenvolve-se uma sucessão de planaltos de altitude média entre os 150 e os 250 m, alguns dos quais dominam as imponentes escarpas atlânticas entre o Risco e Sesimbra (Serra dos Pinheirinhos e Serra da Azóia). A “Pré-Arrábida” termina com uma série de relevos sobranceiros à planície arenosa, que se vão esbatendo até ocidente de Coina-a-Velha, configurando uma espécie de baluarte avançado da cordilheira (ob. cit.). No que respeita à composição litológica dos seus solos, predominam as rochas calcárias e dolomíticas ou detríticas, compactas e relativamente resistentes. Uma série de sequências sedimentares carbonatadas, margosas e detríticas de idade Mesozóica, sobre as quais se sobrepõem outras, predominantemente detríticas e por vezes carbonatadas de ambientes marinhos restritos, de idade cenozóica, associadas ao processo evolutivo da Bacia do Tejo (ob. cit.). À superfície, o carso é relativamente incipiente, embora apresente uma grande diversidade de formas geomorfológicas características: lapiás, dolinas, algares, sumidouros e o vale fluvio-cársisco (polje) das Terras do Risco. A sistemática exploração espeleológica desenvolvida nos últimos anos (NECA – Núcleo de Espeleologia da Costa Azul e LPN-CEAE – Centro de Estudos e Actividades Especiais da Liga para a Protecção da A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Natureza) tem vindo a revelar um carso subterrâneo relativamente desenvolvido e de incomparável beleza de concrecionamentos, aflorando em várias lapas, grutas, abrigos e sumidouros, cavidades que têm registado um importante potencial arqueológico. Dos cursos de águas torrenciais produzidas na Serra, apenas a Ribeira da Comenda, partindo da Ribeira da Ajuda, apresenta um regime permanente, desaguando no “SadoAtlântico”. A sua foz, na praia da Comenda, desenha uma pequena baía que não passou indiferente, por exemplo, em época romana. No entanto, outros cursos de água com fraca expressão actual, sobretudo devido a fenómenos de assoreamento, podem ter constituído, outrora, importantes cursos fluviais, alguns dos quais com admissível apetência para a navegação. A destacar, por exemplo, as ribeiras do Livramento, de Corva, de Alcube, de Santo António, da Ferraria, da Mareta, do Cavalo, da Apostiça, de Aiana e de Coina, antiga Vala Real, que se assume como a principal linha hidrográfica de toda a cordilheira (ob. cit.). As encostas atlânticas e os vales abrigados da Arrábida, temperados por um clima mediterrâneo, têm potenciado uma excepcional vocação arbórea, cinegética e agro-pecuária, conservando, ainda, algumas manchas de vegetação endémica, espontânea e original, “os valles tem hoje os nomes de Picheleiro, Alcube, Barris, Gralhal, etc., e são de aspecto tão pittoresco e encantador quanto se póde imaginar” (Costa, 1902, p. 276). Nas zonas mais elevadas, de cristas rochosas e de solos esqueléticos, desenvolve-se um estrato “rupestre”, composto por líquenes e pequenos fetos, substituídos progressivamente, ao longo das encostas subjacentes, por charnecas de carrascos, alecrim, madressilva, esteva, tomilho, orégão, rosmaninho, aroeira e lentisco bastardo; por bosques e sub-bosques de maquiais, sobretudo compostos por zambujeiros, medronheiros e alfarrobeiras; e por matas de carvalhos, sobreiros e pinheiros mansos (Ribeiro, 2004), estes últimos, uma espécie autóctone provavelmente existente na Arrábida, pelo menos, desde o Calcolítico do povoado da Rotura (Silva e Soares, 1986). O seu relevo acidentado permite uma boa diferenciação de microclimas, alguns dos quais excepcionalmente propícios a uma diversidade de espécies que atingem um exemplar porte em determinados vales mais favoráveis – matas do Vidal, do Solitário e Coberta. Há que ter em conta eventuais alterações ambientais e episódios de impacto antrópico, determinantes e transformadores do estrato vegetal autóctone da região. Além dos naturais processos de alteração ambiental/climática, há que considerar a acção humana: conquista de terrenos agrícolas pelo fogo, consumo de madeira, introdução de novas espécies no coberto vegetal e exploração de pastagens. Análises isotópicas a partir da recolha de amostras contextualizadas (palinologia, antracologia e de restos faunísticos, em particular de pequenos A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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roedores – a exemplo da Gruta do Caldeirão) podem, em alguns casos, permitir recuperar paleoambientes e a respectiva sequência de transformação. Contextos arqueológicos especiais (turfeiras, lagoas marginais/litorais e ocos de maciços calcários, em montanha) constituem potenciais ambientes de excepcional preservação da informação isotópica relativa à evolução ambiental de uma determinada região. Nestes locais, e por exemplo, a sedimentação de pólenes em ambiente anaeróbico permite à Palinologia, associada a datações radiocarbónicas, detectar eventuais vestígios de impacto antrópico em episódios de desbaste ou outras alterações no coberto vegetal. Também a fauna beneficiou, ao longo dos tempos, das convidativas condições mediterrâneas da região, desde há muito referenciada pelos seus recursos cinegéticos e venatórios servindo, por exemplo, enquanto coutada de caça real até praticamente aos nossos dias. Lobos, veados e javalis foram extintos, resistindo, ainda, espécies como o gato-bravo, a geneta, o saca-rabos, o texugo, o toirão, a doninha, a raposa, a lebre, o coelho e diversas colónias de morcegos. Os javalis foram recentemente re-introduzidos, deixando as suas marcas um pouco por toda a serra, revelando-se como improváveis colaboradores da arqueologia de prospecção, pois além de proporcionarem uma útil rede de novas vias onde antes a transitabilidade era impossível, também fossam clareias de terra revolta, preciosas janelas de prospecção que têm dado resultados inesperados. No que respeita à avifauna, destacam-se, de entre as rapinas, a águia de Bonelli, a águia de asa-redonda, o peneireiro, o bufo real e a coruja das torres, predadoras de outras espécies como a perdiz, o andorinhão real e os abelharucos. A vocação eminentemente piscatória dos mares da Arrábida (“Mar da Manta”, “Bombaldes”, “Mé”, “Queimados”, “Mar Novo”, “Mar de Ferro”, “Estradinha”, etc.) encontra-se bem documentada ao longo dos tempos. A excelência natural do vale de Sesimbra e de algumas pequenas baías e enseadas (Portinho da Arrábida, Rasca e Comenda, entre outras), particularmente abrigadas dos ventos predominantes de norte, tem propiciado óptimas condições abrigo-portuárias de que os “calhaus” são um bom exemplo. Estão em causa estruturas de apoio à pesca de “armação”, criteriosamente implantadas em paisagens abrigadas, por exemplo: o Calhau da Baleeira, o Calhau da Mijona, o Calhau da Cova, o Calhau do Restaurador e o Calhau do Cozinhadouro (Amigo e Soares, 2009). A riqueza do meio marinho é representativa dos principais habitats nos quais ocorre uma grande diversidade de espécies, destacando-se alguns cetáceos e atuns, a xaputa, o peixeespada branco e o preto, a sardinha, o carapau, a cavala, a pescada, a raia, o cherne, a faneca,
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o besugo, a dourada, o sargo, a sargueta, a corvina, diversa fauna malacológica, crustáceos, além dos chamados “ferrados”, ou seja, a lula, a pota, o polvo e o choco. No que às artes de pesca diz respeito, ainda sobrevivem etnograficamente algumas, pouco modificadas com o passar dos tempos, conservadas por um saber cumulativo transmitido geracionalmente – a Arte da Chávega, ou do Caneiro, popularmente conhecida pela “chincha”, aparelhos de anzol, armadilhas como os “covos”, etc. (ob. cit.). Torna-se neste ponto relevante recuperar os antigos “caminhos de peixe” (Gonçalves, 1966, p. 9), enquanto acessos preferenciais aos recursos marinhos, exercício que permite estabelecer a ligação entre os povoados e o mar. Em suma, as particularidades geográficas e climáticas da península da Arrábida, “enclavada” entre os estuários do Tejo e do Sado e definida pelo Oceano, sobranceira às adjacentes planuras, proporcionaram um conjunto de características determinantes para a fixação de grupos humanos e para a confluência de rotas comerciais (terrestres, fluviais e marítimas), com evidentes consequências geoestratégicas. As excelentes condições de defesa, acessibilidade e abrigo de costa, aliadas à abundante disponibilidade dos recursos hídricos, marinhos, cinegéticos e venatórios, além da singular fertilidade dos solos (vales), proporcionaram um edénico quadro de contínua fixação e habitabilidade ao longo da história.
Fig. 2 – Extracto da folha 464 da CMP esc. 1:25000 (Sesimbra - serras da Azóia, Pinheirinhos e Risco).
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Fig. 3 – Colagem dos extractos das folhas 454 e 465 da CMP esc. 1:25000 (Sesimbra/Setúbal - serras do Risco, Arrábida e “PréArrábida”).
Fig. 4 – Modelo tectónico da cadeia da Arrábida (cedido por © Nuno Farinha, 2006).
Fig. 5 – Modelo digital de terreno da Arrábida (Graça Brito/CIGA in Ribeiro, 2000, p. 11).
3. Episódios da investigação arqueológica regional “Fragil é a flammula que tremúla no tôpo do mastro, mas basta apercebê-la ao longe para sabermos que em baixo voga uma nau, que as aguas mal sustém: do mesmo modo um fragmento de barro cozido, de um ferro corroido, de uma pedra trabalhada pela mão do homem nos pode levar ao descobrimento de uma povoação soterrada, cuja existencia nem se suppunha, ou se julgava desviada. Esse fragmento, inutil ao parecer, mostra-nos a civilização de um povo; esclarece, não raro, pontos confusos da historia da humanidade. E ha tanto que explorar! Pena é que no nosso Portugal o acaso seja o maior agente dos descobrimentos e que poucas explorações bem dispostas se tenham feito para se roubar á terra o que ella cuidadosamente esconde”. Joaquim Rasteiro, 1897
As “ruínas romanas de Tróia”, na margem esquerda da foz do Sado, encontram-se referenciadas desde o século XVI, quando André de Resende e Gaspar Barreiros as interpretaram como Caetobriga. Interessante o facto de, no século XVIII, Tróia ter sido objecto de uma das primeiras intervenções arqueológicas documentadas em Portugal (senão mesmo a primeira). Esta marca pioneira deveu-se à Infanta D. Maria, futura Rainha D. Maria I, que num passeio de barco, a caminho do Pinheiro, sentiu o apelo da curiosidade e aproveita para conhecer o sítio, ordenado a sua posterior “escavação” (entenda-se, no contexto da época, como uma mera acção de desenterro de ruínas). Este histórico episódio da Arqueologia portuguesa ainda hoje é “celebrado” no arqueossítio, na sua “Rua da Princesa” (CasteloBranco, 1965). Será a obra Descripção do terreno quaternário das bacias hidrographycas do Tejo e do Sado, de Carlos Ribeiro (1866), a marcar a alvorada do reconhecimento científico, geológico e arqueológico da região da Arrábida. Pioneiro da Geologia e da Pré-história portuguesas, Carlos Ribeiro, ao serviço da Comissão Geológica do Reino, avançou, na década de 60 do século XIX, com as inaugurais campanhas arqueológicas dos hipogeus da Quinta do Anjo (Palmela), numa época em que a própria Arqueologia dava os seus primeiros passos no nosso país, sobretudo no sul de Portugal. É desta altura a descoberta do povoado pré-histórico da Rotura, em Setúbal (1865/66), documentada por uma série de litografias coloridas da autoria de F. Pereira da Costa. Em 1878, Carlos Ribeiro coordenou novos trabalhos nas grutas artificiais de Palmela, desta feita desenvolvidos pelos colectores António Mendes e Agostinho José da Silva. Em 1897, Joaquim Pedro d’Assunpção Rasteiro (1834-1898) publica, no Archeologo Português (Rasteiro, 1897), as suas preciosas Noticias arheologicas da Península da Arrábida. Trata-se de um texto produzido, entre 1893 e 1894, como resposta a um questionário da Commisão dos Monumentos Nacionaes, instituição a que pertencia. Nesta obra, Joaquim Rasteiro produz uma exaustiva monografia, coligindo toda a informação disponível, relativa aos achados arqueológicos identificados na área da Península de Setúbal/Arrábida, além de referenciar outros dados históricos, culturais, arquitectónicos, artísticos, toponímicos, etc. O seu contributo para a investigação histórico-arqueológica da A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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região não se esgotou neste texto, legando-nos um interessante acervo documental de estudos e artigos, muitos dos quais publicados no Jornal do Comércio, e outros, por exemplo, no boletim da Sociedade de Geografia. Joaquim Rasteiro personifica o espírito de um período em que a informação arqueológica era produzida por uma elite de “curiosos enciclopedistas”, que embora diligentes para a época, se encontravam muito longe da necessária exclusividade e profissionalização, tendência que se manifestou até à segunda metade do século XX e que ainda hoje, de certa forma, mas por outros motivos, constitui uma realidade – a propósito do povoado do Castelo dos Mouros, Joaquim Rasteiro escreve: “nunca alli encontrei cousa que désse notícia de estação humana nos tempos mais desviados, como fragmentos de barros, quaesquer instrumentos de silex, ou objectos semelhantes; verdade é, tambem, que nunca alli fui como explorador, mas apenas por desvio propositado do caminho da Arrabida, ou de passagem caçando” (Rasteiro, 1897, p. 33). Este notável setubalense, nascido em Vila Nogueira de Azeitão, em 1834, “dedicou a vida à sua terra”, na plenitude de todas as acessões da expressão. Agricultor de raiz, além de historiador e arqueólogo pioneiro, dedicou-se à educação, foi vereador da Câmara Municipal de Setúbal, procurador à Junta Geral, chegando mesmo às Cortes Gerais do Pais como deputado, na legislatura de 1887. O meritório contributo científico de Carlos Ribeiro, e mesmo de Joaquim Rasteiro, ganhou um digno prossecutor em António Ignácio Marques da Costa, o arqueólogo pioneiro que melhor prospectou a região de Setúbal (Gonçalves, 1971, p. 57-58). Militar de carreira (oficial-médico), professor (na Escola Popular e no Liceu de Setúbal) e arqueólogo, Marques da Costa foi ainda um activo militante na vida política local, ao integrar um dos elencos da Comissão Administrativa Municipal de Setúbal, durante o período da I.ª República. Porém, foi o seu incontornável contributo, no âmbito da embrionária Arqueologia portuguesa, que importa aqui destacar. Aliás, de entre a diversidade das suas actividades, foi o legado para a Arqueologia que melhor o notabilizou e que constitui, ainda hoje, uma reconhecida referência do panorama intelectual da região de Setúbal, Sado e Arrábida. Nascido em Souzos (Leiria), em 1857, António Ignácio Marques da Costa chegou a Setúbal por via do serviço militar. O Tenente-Coronel do Exército cedo foi “adoptado” pela sua nova cidade, retribuindo, por seu turno, com uma inestimável contribuição enquanto pioneiro da Arqueologia e Geologia locais. Numa época em que estas constituíam ciências intimamente associadas, Marques da Costa foi o primeiro investigador a estudar o monumento geológico da “Pedra Furada” (Setúbal). Por outro lado, empreendeu uma A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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ambiciosa campanha de reconhecimento, escavação e investigação de estações pré-históricas, proto-históricas e romanas na região da Arrábida, na busca de uma identidade etno-histórica regional, de acordo com as tendências genéricas da Arqueologia da 1.ª metade do século XX – “e então, talvez para ocupar a sua inactividade e a queda para a arqueologia resolveu investigar por conta própria o solo da cidade e dos arredores” (Almeida, 1975, p. 17). Das suas pioneiras campanhas importa destacar, por exemplo, as ruínas romanas de Tróia (Grândola) e o povoado de Chibanes (Palmela), além de trabalhos de reescavação no povoado da Rotura (Setúbal) e nos hipogeus do Casal do Pardo (Quinta do Anjo, Palmela). Relativamente ao povoado da Serra da Cela, no Portinho da Arrábida, foi Marques da Costa, com base em informações do geólogo Paul Choffat, a fazer referência, pela primeira vez, a uma ocupação pré-histórica do sítio (Costa, 1907, p. 210). Os resultados das suas iniciativas foram exemplarmente publicados, entre 1902 e 1910, nas páginas de O Arqueólogo Português, sob o título Estações prehistoricas dos arredores de Setúbal (Costa, 1902, 1903, 1904, 1905, 1906, 1907, 1908 e 1910), sendo os materiais exumados fielmente depositados no Museu Nacional de Arqueologia (Cardoso, 2000) – “dezenas de estações pré, proto-históricas e romanas foram marcadas na carta. Centenas de objectos foram descritos ou referenciados” (Gonçalves, 1971, p. 57); “organizou uma colecção arqueológica em sua casa e foi um dos que em 1901 assinaram uma petição para ser criado, em Setúbal, “O Museu da Cidade” (Almeida, 1975, p. 17). O pioneirismo de Marques da Costa só teve continuidade nos inícios da década de 1940, com uma série de prospecções dirigidas ao longo do litoral meridional da Arrábida, por Henri Breuil e Georges Zbyszewski. Estes trabalhos vieram a demonstrar a verdadeira dimensão da ocupação paleolítica e epipaleolítica da região (Cardoso, 1998, p. 23). Só a partir de 1956, com Eduardo da Cunha Serrão, foi retomada a sistemática regularidade dos trabalhos arqueológicos na região da Arrábida. Cunha Serrão, juntamente com Rafael Monteiro e Gustavo Marques, motivaram um grupo de jovens estudantes da Faculdade de Letras de Lisboa (José Morais Arnaud, Vítor e Susana Oliveira Jorge, F. Sande Lemos e J. Pinho Monteiro) a desenvolver trabalhos na região, em particular no Concelho de Sesimbra. Do vasto contributo científico legado por Cunha Serrão impõe-se destacar um documento: a Carta Arqueológica do Concelho de Sesimbra (desde o Paleolítico antigo até 1200 d.C.) (Serrão, 1973), uma das primeiras cartas arqueológicas regionais publicadas em Portugal, resultado final de um sistemático trabalho de reconhecimento arqueológico do Concelho, precedido e actualizando o levantamento de A. I. Marques da Costa. A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Postumamente, este trabalho foi ampliado e publicado pela Câmara Municipal de Sesimbra – Carta Arqueológica do Concelho de Sesimbra (do Vilafranquiano Médio até 1200 d.C.) (Serrão, 1994). De acrescentar, ainda, os inovadores trabalhos de escavação nas necrópoles da Lapa do Fumo (Pinheirinhos/Sesimbra) e na Lapa do Bugio (Azóia/Sesimbra), cujos importantes resultados foram publicados, nacional e internacionalmente, em 1958/59. Em boa verdade, foram os ornatos brunidos exumados na Lapa do Fumo que introduziram, na agenda da investigação arqueológica europeia, a temática da Idade do Bronze da Arrábida. A propósito da Lapa do Fumo, há que destacar o pioneirismo metodológico de Eduardo da Cunha Serrão. Em 1958, na qualidade de membro da comissão organizadora do I Congresso de Arqueologia, Cunha Serrão deslocou-se a Inglaterra no sentido de conhecer, nos campos de trabalho ingleses, as mais recentes teorias sobre técnicas e métodos de escavação, no intuito de suprir a carência de elementos de fonte nacional. No regresso a Portugal, aplicou pela primeira vez no nosso país (em 1956) o Método Wheeler (Wheeler, 1954), na escavação do povoado neolítico da Parede, em Cascais (Serrão, 1983). Em Agosto de 1957 recorreu novamente a este método, desta feita em contexto de gruta, na exploração da Lapa do Fumo, tendo obtido resultados exemplares, especialmente no que respeita à referenciação efectuada através do registo tridimensional de todo o espólio. Por estas alturas foi elaborada a Folha Geológica de Setúbal (Folha 38-B), cuja notícia explicativa, da autoria de Georges Zbyszewski, foi publicada em 1959 (Zbyszewski et al., 1965). As prospecções e sondagens, realizadas para o efeito, proporcionaram novas descobertas que acabaram por motivar Octávio da Veiga Ferreira e Rafael Monteiro a retomar as escavações na Lapa do Bugio (1966/67), além da organização de um empreendedor trabalho monográfico acerca dos hipogeus da Quinta do Anjo, publicado em 1961 pelo primeiro daqueles autores, em parceria com Vera Leisner e Georges Zbyszewski. Destas novas descobertas, salienta-se o monumento funerário da Roça do Casal do Meio, em Sesimbra, identificado nos inícios dos anos sessenta por Octávio da Veiga Ferreira e Georges Zbyszewski. A necrópole da Roça do Casal do Meio foi escavada, entre Outubro e Novembro de 1972, por Konrad Spindler e Veiga Ferreira, sendo o resultado dos trabalhos publicado em francês e alemão (Spindler et al., 1973-74), o que conferiu a este sítio um estatuto de referência europeia para as cronologias do Bronze Final. Esta inédita projecção nacional na bibliografia arqueológica europeia deveu-se, não só, à própria excepcionalidade do monumento, mas também às tendências genéricas da época e ao próprio curriculum internacional de Konrad Spindler.
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A década de 1960 vê nascer em Setúbal uma nova geração de arqueólogos, personificada nomeadamente por Carlos Tavares da Silva e Victor dos Santos Gonçalves. O primeiro trabalho científico de Carlos Tavares da Silva, publicado em 1963, foi dedicado à Fauna malacológica do Castro da Rotura (Silva, 1963), estação onde viria a desenvolver outras campanhas arqueológicas (Ferreira e Silva, 1969-70; Silva, 1971). Victor S. Gonçalves, por seu turno, também desenvolveu trabalhos na estação arqueológica da Rotura: trabalhos preliminares de prospecção e sondagem (Gonçalves, 1966), seguidos de campanhas de escavação em 1967 e 1968 que resultaram na sua dissertação de licenciatura em História, publicada em 1971 – O Castro da Rotura e o vaso campaniforme (Gonçalves, 1971). Tavares da Silva tem vindo, desde então, a incrementar significativamente o conhecimento arqueológico da região da Arrábida, Sado e cidade de Setúbal, particularmente por meio de uma exaustiva e oportuna tarefa de reavaliação das antigas informações de Ignácio Marques da Costa. De destacar, também, o contributo de Joaquina Soares, que a partir da década de 1970 inicia trabalhos de arqueologia em colaboração com Carlos Tavares da Silva. Estes autores têm vindo a desenvolver, nas últimas décadas, numerosos trabalhos de prospecção e escavação, direccionados essencialmente para a Pré-história, Proto-história e época romana, traduzidos na reavaliação, identificação e caracterização de vários sítios arqueológicos, descritos em diversas publicações. Impõe-se destacar o levantamento arqueológico do Parque Natural da Arrábida, que resultou numa “quase” carta arqueológica da Arrábida – Arqueologia da Arrábida (Silva e Soares, 1986) – uma monográfica “obra de síntese e de carácter inovador no seu género” (Cardoso, 1998, p. 23). Com a criação do Museu de Arqueologia e Etnografia da Assembleia Distrital de Setúbal (MAEDS), dirigido por Joaquina Soares desde a sua fundação, em 1974, os trabalhos de investigação arqueológica do Distrito ganharam um novo enquadramento científico e institucional, que tem potenciado a sua regularidade, financiamento e divulgação, destacandose, por exemplo, diversas publicações promovidas no seio do MAEDS (Setúbal Arqueológica, MUSA, entre outras). Em 1993 foi publicada outra obra de referência – Património Arqueológico do Distrito de Setúbal. Subsídios para uma carta arqueológica – um sistemático levantamento integrado na inventariação do património distrital, promovido pela Associação de Municípios do Distrito de Setúbal (Ferreira et al., 1993). De referir, ainda, o contributo de João Luís Cardoso, investigador que na década de 1990 dirigiu trabalhos na Lapa da Furada (Serra da Azóia/Sesimbra), reapreciou antigos A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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espólios da Lapa do Bugio (Serra da Azóia/Sesimbra) e publicou algumas sínteses regionais (Cardoso, 1998, 2000, 2004). Após o estudo de espólio, em 2004, o autor promoveu trabalhos de escavação no povoado pré-histórico do Outeiro Redondo/Castro de Sesimbra, entre 2005 e 2008 (Cardoso, 2009). Por fim, de destacar o projecto da nova Carta Arqueológica do Concelho de Sesimbra: Arqueologia de Sesimbra – Projecto de investigação e valorização do património arqueológico concelhio – desenvolvido, entre 2007 e 2009, por uma equipa multidisciplinar coordenada por Manuel Calado e na qual o signatário se integra na qualidade de arqueólogo, espeleólogo e fotografo. Os trabalhos foram publicados em Setembro de 2009, sob o título O Tempo do Risco. Na sequência deste projecto foi estabelecido, com a Câmara Municipal de Sesimbra, um protocolo de continuidade para a investigação arqueológica do concelho, ao abrigo do qual se avançou para a escavação da Lapa da Cova (Serra do Risco/Sesimbra). A mesma equipa encontra-se, desde Maio de 2010, a desenvolver trabalhos de prospecção arqueológica e espeleológica na “Arrábida Oriental”, prosseguindo a exploração deste território na área concelhia de Setúbal – Carta Arqueológica da Arrábida/Setúbal.
Fig. 6 – Esboço de uma cartografia arqueológica da região de Sesimbra (seg. Serrão, 1962).
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4. A Idade do Bronze Peninsular: evolução dos conceitos e periodização “As sociedades camponesas, tal como antes os caçadores-recolectores, produzem um discurso sobre a natureza, alterando-a, conformando a percepção da paisagem à sua realidade social”. Senna-Martinez, 2008
Até meados do século XX, a conjuntura europeia da investigação da Idade do Bronze implicou uma perspectiva artefactualista/antiquarista, resultante das influências teóricas evolucionistas dos finais do século XIX. Focando-se, quase exclusivamente, em dispersos e descontextualizados vestígios arqueometálicos, esta visão justificou-se na concepção de que a Idade do Bronze seria o período áureo da generalização do metal. Neste contexto, vão surgindo na Europa, pela mão de autores como Montelius, Kossina, Reinecker ou Déchelette, os primeiros estudos tipológicos e comparativos, geralmente implicando uma matriz difusionista, definidores da periodização clássica da Idade do Bronze. Estes autores só vão ser “contrariados” na viragem da década de 50, com as novas propostas de Hatt, autor que estabelece, em 1958, a divisão ternária da Idade do Bronze: Bronze Antigo (1800-1500 a.C.), Bronze Médio (1500-1200 a.C.) e Bronze Final (1200-700 a.C.). No espaço peninsular, investigadores pioneiros como Cartailhac (1886) vão seguir a genérica tendência europeia, limitando-se a considerações de ordem tipológica, sem arriscar propostas de natureza cronológica. A “cultura de El Argar”, revelada pelos irmãos Siret e beneficiando de uma conjuntura muito particular, já vinha a ser divulgada em larga escala desde finais do século XIX, desviando a atenção da investigação de outras realidades culturais contemporâneas. Até aos anos 30, admitia-se que o Bronze Argárico constituía um fenómeno cultural relativamente homogéneo, que se prolongou até à Idade do Ferro por toda a Península Ibérica. No entanto, a subsequente pesquisa arqueológica (Bosch Gimpera e Santa Olalla), além de propor as primeiras sínteses cronológicas de alcance peninsular, acabou por distinguir duas realidades culturais no território ibérico: o Bronze Levantino ou do Sudeste – 1200-1000/900 a.C. (Bronze Mediterrânico), mantendo o epicentro de referência na região argárica; e o Bronze do Noroeste – 900-650/570 a.C. (Bronze Atlântico), marcado por influências europeias e fixando-se na fachada atlântica da Península (Portugal, Galiza e parte da Andaluzia). No nosso país, “Leite de Vasconcelos considera prematuro um estudo sistemático sobre a época do Bronze em Portugal, recorrendo, nos seus ensaios, a Montelius e a Mortillet” (Vilaça, 1995, p. 26). Em 1924, Mendes Corrêa, na História de Portugal de Damião Peres, mesmo adoptando as propostas de Déchelette, admite a simplicidade dos quadros cronológicos existentes, pelo facto de compreenderem um limitado âmbito regional, não sendo merecedores de uma aplicabilidade universal (ob. cit., p. 26). A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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O influente, mas efémero, esquema dualista foi ultrapassado à medida que foram sendo isolados novos grupos culturalmente distintos, mantendo-se, ainda assim, uma ideia de unidade cultural para cada fase da Idade do Bronze. Esta nova perspectiva, regionalista, não se esgotou na divulgação de achados ocasionais, marcando o início de um progressivo incremento das escavações (ob. cit., p. 28). Por outro lado, as concepções difusionistas, previamente propostas pelos irmãos Siret, reforçam-se pelo Normativismo, prevalecendo, até muito recentemente, uma tradicional teoria de génese orientalista para Idade do Bronze peninsular. Os anos 50 vão ser marcados pelos ainda incontornáveis contributos de Savory e de MacWhite, investigadores que, mesmo assim, vão dar continuidade ao clássico paradigma científico dos estudos tipológicos dos materiais metálicos peninsulares, no intuito de determinar as suas origens e protótipos europeus (ob. cit., p. 28). Só a partir dos anos 70, salvo raras excepções, o mito do ex oriente lux começa a ser posto em causa, surgindo uma linha de investigação que procura o fundamento genético para o Bronze Antigo e Bronze Médio num conglomerado herdado das culturas calcolíticas regionais. Bosch Gimpera foi um dos investigadores peninsulares que mais se bateu por esta perspectiva indigenista, curiosamente já sugerida em 1890 pelos irmãos Siret, no seu primeiro texto sobre El Argar (Calado, 1993b, p. 328). As teses indigenistas, partidárias de um desenvolvimento local das culturas do Bronze Ibérico, e as teses difusionistas mais ou menos mitigadas, vão continuar a medir argumentos, validados, ou não, ao nível dos modelos formulados a partir de diferentes, e por vezes contraditórias, leituras dos dados arqueológicos (ob. cit., p. 328). Regressando a Portugal, é de assinalar o pioneirismo das escavações de Schubart, integrando os dados da sua investigação nas problemáticas regionais. Foi assim que o autor definiu, em 1974 (Schubart, 1974), as duas fases do “Bronze do Sudoeste” (I – 1500/14001100 a.C.; II – 1100-800 a.C.), substituindo a designação de “Bronze Meridional Português”. Trabalho posterior (Barceló, 1991; Pavón Soldevilla, 1995; Soares, 1994; Castro Martinez, Lull e Micó, 1996) corrigirá as cronologias, desmontará o faseamento e integrará como fase inicial o tão discutido “Horizonte da Ferradeira”, permitindo incluir, em definitivo, o Bronze do Sudoeste na 1.ª Idade do Bronze ou Bronze Pleno. Em 1977 Almagro-Gorbea, por meio de novas escavações e de um crítico trabalho de revisão dos dados disponíveis, desenvolve a mais completa e ainda actual síntese para o Bronze da Extremadura espanhola, durante o período de transição Bronze Final/Idade do Ferro. A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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O somatório dos dados emergentes das cada vez mais frequentes escavações, e a multiplicação de datações de C14, permitiram transpor as clássicas cronologias globais peninsulares, dando lugar a uma pluralidade de periodizações regionais. Por outro lado, estudos de composição metalográfica permitiram determinar alguns centros produtores de artefactos metálicos, bem como a distinção entre bronzes locais e bronzes importados. Foi nesta altura que Schubart nomeia e introduz, na bibliografia peninsular dedicada ao Bronze Final, o chamado “Grupo do Tejo” (1971), definido a partir de cerâmicas brunidas atribuídas aos inícios do 1.º milénio a.C. Em 1974, Gustavo Marques e Gil Miguéis Andrade, seguindo uma tendência histórico-culturalista, sugerem a polémica “Cultura de Alpiarça” (séculos V-IV a.C.), associada aos Cempsi e presumida a partir de um extenso acervo de materiais, tidos como coevos, provenientes de recolhas de superfície em 62 estações, dispersas entre a Beira Alta e o Algarve. De entre estes materiais os autores destacam, muito discutivelmente: cossoiros de barro, pesos de tear, braceletes “tipo La Mercadera”, fíbulas de dupla mola “tipo Tossal Redó” e elementos de foice em sílex. Estes autores estribam a sua proposta numa constante tipológica de oito tipos cerâmicos e de seis processos de acabamento de superfícies, sendo as diferenças atribuídas a tipologias mais frequentes e de largo espectro. Diversas escavações, posteriores a esta proposta, acabaram por inviabiliza-la definitivamente, por meio de datações relativas e absolutas. Ainda assim, Spindler considerou razoável considerar o termo “Cultura de Alpiarça” para designar o grupo regional do Bronze Final do Oeste Peninsular (Vilaça, 1995, p. 30). A partir da década de 80 esboça-se uma tendência para as abordagens de âmbito regional, que terá consagração nos textos de Susana Oliveira Jorge para o 1.º volume da História de Portugal da Presença (Jorge, 1990) e posteriormente na organização da exposição A Idade do Bronze em Portugal: discursos de poder, realizada pelo Museu Nacional de Arqueologia, sob o comissariado científico da referida autora, documentado pelo respectivo catálogo (AAVV, 1995). Tratou-se de um evento de expressão pública à escala nacional, que resultou na “primeira e extremamente meritória tentativa de síntese colectiva” (SennaMartinez, 2002, p. 104) de um complexo mosaico regional, consagrando a delimitação da Idade do Bronze portuguesa em dois momentos sequentes e consequentes: a 1.ª Idade do Bronze (ou Bronze Pleno – integrando o Bronze Antigo e o Bronze Médio) e o Bronze Final. Esta abordagem, por grupos regionais, revelou-se mais adequada para um estudo de uma problemática de grande variabilidade inter-regional, “configurando a existência no âmbito peninsular de um mosaico cultural complexo” (Senna-Martinez, 2002, p. 104). A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Por seu turno, a desmontagem do conceito de “Bronze Atlântico” (introduzido na bibliografia arqueológica peninsular por Santa Olalla, contrapondo-o ao mundo centroeuropeu – Santa Olalla, 1946) será “ratificada” em Lisboa, em 1995, no colóquio internacional Existe uma Idade do Bronze Atlântica? (Jorge, 1998), encontro que recuperou alguns ecos do simpósio de 1988, realizado em Mação, dedicado ao tema O Bronze Final na Beira Interior (Senna-Martinez, 2002). Já nos anos 90, Mário Varela Gomes propõe, para o Sul de Portugal, duas etapas para o Bronze Final: o Bronze Final I (séculos XII-X a.C.), de influência continental e atlântica; e o Bronze Final II, também designado por “horizonte Roça do Casal do Meio - Ervidel II” (século X - finais do século IX/inícios do século VIII a.C.), caracterizado por uma intensificação dos contactos comerciais e culturais com o Mediterrâneo Oriental (Gomes, 1992, p. 122-125). Susana Oliveira Jorge também reconhece duas grandes etapas de aperfeiçoamento cultural durante o Bronze Final, desta feita no Norte de Portugal: uma primeira entre c. de 1250-1000 a.C.; e uma segunda entre c. de 1000/900-700 a.C., marcada pelo surgimento dos primeiros habitats alcantilados, recorrendo a defesas naturais ou edificadas (Jorge, 1988, p. 98; 1990, p. 244). Por sua vez, Senna-Martinez (Senna-Martinez, et al., 2010: Tabela I) propõe a periodização do Grupo cultural Baiões/Santa Luzia em duas fases: a primeira entre os séculos XIII-X a.C. e a segunda entre os séculos IX e VII/VI a.C. Hoje, é praticamente pacífico fixar entre os séculos XIII-XII a.C. a marca temporal definidora dos inícios do chamado “Bronze Final”. Todavia, denominações como “Bronze Tardio” ou “Bronze Recente” vão traduzindo alguma insegurança ou ambiguidade bibliográfica. Na sua génese, estas expressões remetem-nos, muito especificamente, para o Sudeste Peninsular, surgindo como resposta à necessidade de caracterizar o hiato pósargárico/pré-Bronze Final. Assim, pelo seu significado e especificidade cultural, não podem ser aplicadas a outras regiões, e muito menos no extremo atlântico da Península. O significativo aumento, quantitativo e qualitativo, da informação cronométrica produzida à escala peninsular, verificado nas últimas décadas do século XX, permitiu, enfim, propor um coerente balizamento temporal para os inícios do Bronze Final, ainda que, com ligeiros acertos regionais (Castro Martínez, Lull e Micó, 1996). Quanto ao seu terminus, é hoje uma questão muito marcada pelo momento e forma que assumem, ou não, nas diversas áreas regionais peninsulares, os contactos com o “mundo orientalizante”. Precoces na Andaluzia e sul peninsular em geral (séculos VIII-VII), serão A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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sucessivamente mais tardios e escassos, nomeadamente à medida que avançamos para o Ocidente e Norte peninsulares. Nomeadamente para o Noroeste (Bettencourt, 2004 e 2009) a transição centrar-se-á no século V a.C., implicando a não existência de uma 1.ª Idade do Ferro. O agenciamento da investigação para a Idade do Bronze tem hoje novas premissas e motivações. Independentemente das terminologias adoptadas e das cronologias estabelecidas, há que integrar, em definitivo, as comunidades na investigação do Bronze Peninsular. Estas têm sido omissas da esmagadora maioria dos quadros crono-culturais. Mesmo coevas e ocupando as mesmas regiões, as comunidades têm sido marginalizadas em função dos artefactos, os protagonistas, por excelência, das redes de trocas e dos contactos supraregionais. Não nos podemos esquecer do verdadeiro objecto da Arqueologia – o Homem. Desde logo, há que considerar o facto de nem todas estas comunidades partilharam da metalurgia do bronze, quer na sua produção, circulação ou mesmo usufruto. Estes objectos constituem elementos de excepção, revestindo-se de um carácter de prestígio, de pouca utilidade prática, não sendo por si só representativos de uma universalidade social ou plenos caracterizadores de uma etapa crono-cultural (Senna-Martinez, 2009). Os objectos de prestígio revestem-se de um baixo potencial de precisão cronológica, ou seja, com um tempo de vida de difícil determinação. Pelo seu valor idiossincrático adquirem dois tempos distintos de utilização, tendendo a perdurar muito além do seu original período de circulação – transmitidos hereditariamente, por via de ofertas politicas ou como troféus de guerra. Ainda assim, por serem tendencialmente trocados a longas distâncias, constituem, por isso, bons indicadores de espectro largo para amplas áreas geográficas. Em contrapartida, os objectos utilitários, em regra dependentes de matérias-primas locais, implicam um período de circulação mais limitado, adequando-se melhor ao estabelecimento de cronologias loco-regionais – “os recipientes cerâmicos terão um papel fundamental, mas não absoluto” (Vilaça, 1995, p. 34). Por fim, a génese, evolução ou substituição destes objectos não coincide, necessariamente, com importantes mudanças em termos culturais e sócio-económicos – “o tempo económico é diferente do tempo social e ambos se distinguem do tempo arqueológico” (ob. cit., p. 33). Neste sentido, aferições cronológicas para amplas áreas regionais não podem ser concretizadas segundo os mesmos critérios utilizados para as cronologias loco-regionais. Esta é certamente uma diferença, nem sempre tida em conta, tanto pelos investigadores proponentes das referidas cronologias, como pelos que, a jusante e posteriormente, recorrem a estes dados – “as periodizações e os esquemas cronológico-culturais terão ainda de se A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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libertar, progressivamente e definitivamente, de sistemas de índole convencionalista que nos dominam” (ob. cit., p. 37). Outra questão na “ordem de trabalhos” da investigação para a última etapa do Bronze Final é a correcta aferição da origem dos seus protótipos culturais – produtos autóctones? Produtos exógenos? Réplicas autóctones de produtos exógenos? Ou, ainda, produtos autóctones evolucionados a partir de modelos exógenos? Para confirmar estas hipóteses, a ciência tem proporcionado à Arqueologia, adoptando esta uma atitude transdisciplinar e pluridisciplinar, algumas técnicas de análise que podem determinar a origem das matériasprimas e de algumas produções, nomeadamente por meio de análises arqueometalúrgicas (Senna-Martinez et al., 2011a) e de composição de pastas cerâmicas.
Fig. 7 – Capa do catálogo da Exposição A Idade do Bronze em Portugal: discursos de poder, realizada pelo Museu Nacional de Arqueologia (AAVV, 1995).
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5. O Bronze Final: indígenas, visitantes e colonos “Uma época das mais notáveis em transformações culturais de toda a nossa Pré-história, decorrentes em parte da chegada dos primeiros influxos orientalizantes, cujo impacto na sociedade pré-existente estão, outros-sim, longe de suficientemente conhecidos”. João Luís Cardoso, 1995a “Ninguém parece já duvidar que a tão apregoada “invisibilidade” dos sítios de habitat e necrópoles do Bronze Final resulta da falta de sistemático reconhecimento arqueológico das diferentes áreas regionais e, simultaneamente, de uma alteração qualitativa das estratégias de povoamento relativamente a épocas anteriores”. Senna-Martinez, 2002
No contexto do Bronze Final, além da quantificação e compreensão dos motivos que justificaram a circulação e adopção, em contextos indígenas, de novos elementos alógenos, como os artefactos de ferro e a cerâmica produzida ao torno, há que considerar outros elementos e, sobretudo, entender a lógica de aceitação de alguns aspectos culturais mais cedo que outros, bem como o porquê de outros nunca se terem afirmado. Neste sentido, há que distinguir os factores económicos dos políticos, manifestados em timings diferentes (Vilaça, 1995, p. 37). Em última análise, será razoável considerar que o período convencionalmente denominado por “Bronze Final” resultou, sobretudo, do natural desenvolvimento interno das sociedades autóctones precedentes, intensificado com os renovados impulsos culturais, aportados mormente por via das navegações provenientes do mundo mediterrâneo. O grau de desenvolvimento variou regionalmente conforme o timing e o grau de contacto, permeabilidade e aceitação dos referidos estímulos. A par das antigas rotas marítimas mediterrâneas/orientais, que contactaram sobremaneira o sul da Hispânia, a Península terá recebido, por via continental, através dos Pirenéus, bacia do Ebro e da Meseta, influxos provenientes da Europa Central e Atlântica. Por outro lado, torna-se cada vez mais pertinente admitir algum grau de contacto por via oceânica, a partir dos “mares do Norte”, tendo em conta emergentes indícios que concorrem para uma efectiva comunicação entre as Ilhas Britânicas e destas com o continente e, quem sabe, uma possibilidade de exploratórias navegações de cabotagem pelos recortes ocidentais da costa atlântica. Genericamente, este período implicou rupturas e alterações, particularmente evidentes nas estratégias de povoamento, na disseminação da liga de bronze na metalurgia, na adopção de novas opções de culto funerário e numa personalização iconográfica do poder. O “mundo dos mortos”, com algumas excepções, encontra-se praticamente ausente do registo arqueológico conhecido. A Idade do Bronze marca o fim das deposições colectivas e uma tendência para a individualização da morte, fenómeno manifestado num claro desinvestimento e uniformização das arquitecturas sepulcrais. Mais evidente no Sudoeste Português, bem como em outras áreas culturais do sul peninsular, a individualização do ritual A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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de enterramento é menos clara na Estremadura e nas Beiras, não apenas pela falta de evidências contextuais, mas também pela reutilização de monumentos megalíticos neocalcolíticos (a Roça do Casal do Meio poderá inscrever-se como um exemplo “Atlântico” deste fenómeno), pela (re)utilização em continuidade de cavidades naturais, sobretudo na Estremadura, ou pela difícil detecção, no registo arqueológico, de outras opções funerárias como a incineração ou o “lançamento” dos corpos no abismo (fendas, falésias, rios e mar). A “singularização da morte” poderá ser entendida como reflexo da desagregação da vida comunitária, suprida por uma emergente sociedade em processo de complexificação e estratificação, prevendo o advento de sistemas de tipo “chefado”, tendencialmente hereditários. As inumações, além de individuais, contêm um espólio diferenciado, tanto em adultos, como em jovens e crianças, o que concorre para a aludida hierarquização social e transmissão do poder pelo sangue. Observa-se uma diferenciação dos indivíduos que, tal como na vida, transportam na morte os seus ícones estatutários, por vezes compostos de um espólio de grande riqueza. Outra mudança detectável revela-se numa mais nítida separação entre o “mundo dos vivos” (povoados) e o “mundo dos mortos” (necrópoles), revelada, sobretudo, num plano simbólico, pois fisicamente o distanciamento já era uma realidade. Enquanto no mundo funerário megalítico as necrópoles significavam um prolongamento dos espaços domésticos, apresentando um pacote artefactual funerário de cariz quotidiano, contendo as mamoas, em alguns casos, fragmentos cerâmicos e outros restos provenientes dos povoados (Silva e Soares, 1981); já na Idade do Bronze parece existir uma declarada opção por artefactos especiais, nomeadamente algumas formas de cerâmica que, em muitos casos, são produzidas especificamente para uma utilização ritual funerária – função exclusivamente votiva. Relativamente às estelas decoradas do Sudoeste Peninsular, também conhecidas por de Guerreiro, de Tipo Extremeño ou de Tipo II, estas têm vindo a revelar-se como um excelente “fóssil director” para a progressão temporal e espacial dos já referidos impulsos culturais, para a consequente dinâmica de transformações histórico-culturais e para a compreensão do fenómeno de complexificação social ocorrido ao longo da Idade do Bronze. Por outro lado, tendo em conta a natureza dos objectos gravados nas estelas, alguns de consensual origem oriental, estas têm constituído um recorrente argumento na defesa de teses acerca da “pré-colonização” (Arruda, 2008, p. 365). Estes monumentos têm vindo a ser datados de uma fase avançada do Bronze Final – “entre os séculos X e IX a.C. ou mesmo IXVIII a.C.” (ob. cit., 366).
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Constituindo verdadeiros “mitos de sobrevivência” (Edgar Morin), numa tendente personificação iconográfica do poder, parecem integrar “a morte dos grandes personagens, de forma a permitir que a cultura e a organização social se reproduzissem no seio da memória colectiva” (Gomes, 1992, p. 117), numa “dinástica” estratégia de manutenção e continuidade da sua influência nas comunidades que lideravam, no “que julgamos ter sido o suporte social e administrativo do Sudoeste Peninsular durante a Idade do Bronze Final” (ob. cit., p. 117). “Associar ao defunto armas reais, produzidas em metal, ou gravar na tampa da sepultura [ou estela] a respectiva figuração não nos parece essencialmente diferente, do ponto de vista da simbólica do poder” (Senna-Martinez, 2007, p. 126). Trata-se, portanto, de um grupo de monumentos que demarcaria as sepulturas de um privilegiado e limitado número de indivíduos com atributos de chefia – “grandes personagens e guerreiros prestigiados, em alguns casos verdadeiros ‘heróis civilizadores’, capazes de manter a organização social, imposta pela metalurgia e comércio dos metais e o progresso em geral” (Gomes, 1992, p. 115); “exibem a posição social privilegiada de alguns indivíduos ou a existência de rituais de antepassados (‘ancestor rituals’) conotados com heróis-fundadores” (Parreira, 1998, p. 270). Recorde-se que a Idade do Bronze foi também o palco dos homéricos “heróis civilizadores”, uma Odisseia de épicas viagens de descobertas, de périplos mitológicos, de percursos iniciáticos e primordiais. Na Arrábida, entre o espólio funerário dos dois “personagens” da Roça do Casal do Meio, foram exumados alguns itens análogos aos figurados nas estelas do Sudoeste – duas pinças e um pente. Ainda no domínio do simbólico mágico-religioso, assiste-se, na Idade do Bronze, à gradual substituição de uma ritualidade rural de carácter feminino, figurada na “deusa-mãe” (a natureza, a terra, o barro e a fecundidade), por uma iconografia manifestamente masculina, patente na arte rupestre e nas estelas do Sudoeste (a guerra, o guerreiro, o metal, as armas e as primeiras figurações do poder). A olaria, enquanto actividade tradicional do mundo das mulheres, perde importância para a metalurgia, enquanto especialidade masculina. Os restritos mistérios dos elementos ganham novos “alquimistas”, transformadores e produtores de novas matérias. A “sagrada fertilidade” do barro e das oleiras é “brunida” pelo profano metal dos metalúrgicos e guerreiros. As sociedades de tendência matriarcal, mais naturalistas e igualitárias, são agora “maculadas” por um competitivo espírito guerreiro e pelas novas hierarquias e emergentes elites. Por seu turno, a pouca visibilidade arqueológica do mundo dos vivos na 1.ª Idade do Bronze – sediados em povoados tendencialmente implantados em cotas baixas, perto dos recursos naturais e sem preocupações defensivas – contrastará, no Bronze Final, com o A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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“êxodo” para as topografias mais elevadas e naturalmente defensáveis, num fenómeno de concentração demográfica em grandes povoados “eriçados” na paisagem (povoados de altura e de cumeada). Porém, esta genérica tendência para o abandono e implantação e/ou reocupação de povoados com evidente domínio visual da paisagem somente se manifestou, em determinados âmbitos regionais, no seu acastelamento e, por vezes, na sua “monumentalização” pela construção de complexos dispositivos defensivos. No Alentejo Central, por exemplo, e de certa forma também na Arrábida, se bem que numa escala proporcionalmente mais discreta, estes povoados de altura, fortemente defendidos pela topografia natural e pelo recurso a estruturas de defesa, lançavam um claro controlo visual e estratégico sobre as adjacentes paisagens e sobre um amplo território de influência, particularmente sobre os recursos primários, sobre dependentes casais agrícolas, sobre áreas de exploração de minério e sobre os eixos de comunicação regional e transregional. Estes povoados, além de evoluídos e dominantes dispositivos de defesa, significavam complexas e especializadas estruturas de representação do poder, enquanto reflexos da organização económica das sociedades, hierarquizando o espaço em termos geográficos, políticos, económicos e simbólicos, constituindo-se, ao longo do Bronze Final, como “‘lugares centrais’, de onde partiam as directrizes administrativas, capazes de conferirem prestígio às elites ali sediadas, mas, ainda, de proteger vidas humanas e os bens que a comunidade, ou cada um dos seus membros possuía, e dos quais dependia a sua sobrevivência” (Gomes, 1992, p. 105); “centros – políticos e económicos – de uma população dispersa em pequenos povoados nos arredores” (Parreira, 1983, p. 167). Naturalmente, o evidente crescimento demográfico, bem patente nos finais da Idade do Bronze, implicou um longo processo evolutivo desencadeado durante a 1.ª Idade do Bronze. Ao contrário do Calcolítico, estes novos povoados, extremamente alcandorados nas paisagens serranas, tornam-se menos dependentes da proximidade directa aos recursos básicos de subsistência, como os principais cursos de água e os terrenos agrícolas locais, dominando-os, efectivamente, a alguma distância visual, compensando tecnologicamente esse aparente distanciamento (García et al., 1999, p. 156-157). De facto, a tecnologia e a especialização (agro-pecuária, mineira, metalúrgica... e náutico-portuária) terão, certamente, constituído significativos argumentos de desenvolvimento, potenciando as riquezas e as assimetrias que estão na base da complexificação social e da emergência das elites do Bronze Final. Segundo alguns autores, este modelo sugere relações de tipo “centro-periferia” – os povoados centrais desenvolvem acentuada complexidade funcional e sócio-política, numa A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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clara expressão das “tecnologias do poder”: arquitecturas de força, armas, meios de comunicação e transporte, objectos de prestígio e luxo (Silva e Soares, 2006, p. 40). Nesta perspectiva, os centros e as periferias relacionam-se num desigual e centrípeto sistema de trocas e apropriação. Os povoados centrais absorvem eventuais “tributos”, matérias-primas e mão-de-obra provenientes dos povoados subsidiários, devolvendo-lhes, por sua vez, autoridade, controlo, organização e protecção. Esta aparente relação simbiótica, não muito distante de realidades históricas, ou mesmo subactuais, terá produzido um dinâmico devir populacional e naturais mutações sócio-políticas em todas as cinturas de povoamento. Assim, no Bronze Final, as elites terão ido além do controlo destas alianças, concorrendo com outras comunidades e regiões, especializando-se na acumulação de riqueza, passando de uma estratégia assente exclusivamente no intercâmbio para uma estratégia de consumo – “formação fortemente hierarquizada, aristocrática e ‘mercantilista’” (ob. cit., p. 42). Ainda assim, as sociedades do Bronze Final, apesar de impulsionadas por novas actividades produtivas e mais complexas estratégias económicas, vão denotando algum conservadorismo, pois parecem continuar em parte dependentes das tradicionais actividades primárias. Na verdade, a agro-pecuária conservará uma vital importância para a subsistência e desenvolvimento das populações, justificando, em diversas áreas regionais peninsulares, a inclusão do Bronze Final num último capítulo da Pré-História das Sociedades Camponesas. Aparentemente, as estruturas económico-produtivas e os elementos básicos de subsistência destas comunidades parecem encontrar-se bem estabelecidos e estabilizados regionalmente desde épocas anteriores. Mesmo com o impulsionador advento da exploração mineira e da metalurgia, algumas destas populações vão continuar a alicerçar as suas economias e a respectiva acumulação de riqueza nas tradicionais actividades primárias: agricultura, criação de gado, caça, pesca, marisqueiro e recolecção. Por outro lado, a par das mais expressivas actividades tradicionais, personificadas nos pastores e nos agricultores, vão surgir novas actividades especializadas: mineiros, metalúrgicos, novos artesãos e marinheiros – “as principais forças produtivas de uma sociedade do tipo das chefaturas. Elites guerreiras detinham o poder político e espiritual, através do controlo supra-familiar, territorial, tecnológico e das principais fontes metálicas e de subsistência, bem como das rotas comerciais” (Gomes, 1992, p. 104). A propósito do desenvolvimento das sociedades camponesas do sul peninsular, com base numa suposta sustentabilidade em produções cerealíferas de grande extensão, nomeadamente no Sudoeste e Andaluzia, e recuperando a questão da(s) chamada(s) “crise(s) do Calcolítico”, um recente estudo (Araus et al., 1997) veio documentar – a partir de isótopos A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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de carbono obtidos em amostras carbonizadas de cevada, trigo e fava – “a improbabilidade de, entre o Neolítico e o Bronze Final, ter existido irrigação de cereais e admitem apenas a irrigação de hortícolas” (Senna-Martinez, 2009, p. 481). Outros dados mais recentes, desta feita para o Sudeste Peninsular (Aguilera et al., 2008, p. 1662), parecem corroborar a vulnerabilidade e insustentabilidade de tal esquema produtivo, particularmente nas áreas peninsulares banhadas pelo Mediterrâneo, onde foi registada uma progressiva perda de eficiência. Esta conclusão baseia-se no decréscimo do tamanho, rentabilidade das colheitas e do conteúdo total de azoto por grão observado em amostras exumadas no arqueossítio de Montefrío, numa sequência estratigráfica que abrange cerca de 1500 anos (Neolítico e Calcolítico). Esta constatação não parece estar relacionada com perdas na disponibilidade hídrica durante o cultivo, mas sim com um enfraquecimento da capacidade dos solos, sobretudo para o trigo, o mais representativo cultivo deste sistema agrícola. Estes trabalhos podem contribuir, “não só para a compreensão dos processos de colapso dos ‘ensaios de complexidade calcolíticos’ que caracterizam a transição para a Idade do Bronze, mas também, se extrapolável, o que pensamos possível, de alguns dos colapsos que marcam, de modo semelhante, o final da 1.ª Idade do Bronze” (Senna-Martinez, 2009, p. 481) e, eventualmente, em determinados casos, o Bronze Final. Mais uma vez, o nosso país não constitui aqui exemplo de vanguarda nos estudos paleoambientais, ainda assim, algum trabalho tem vindo a ser desenvolvido. Por exemplo, estudos palinológicos, realizados em turfeiras da Serra da Estrela, permitiram confirmar um profundo impacto antrópico nas paisagens da região, particularmente no decorrer do Bronze Final. Este impacto manifestou-se numa progressiva desflorestação, iniciada nas zonas baixas, avançando até às zonas mais elevadas, presumindo uma intensificação da pressão agropastoril (Knaap e Janssen, 1991; Knaap e Van Leeuwen, 1994). Por outro lado, a arqueobotânica permitiu isolar, no sítio da Senhora da Guia de Baiões (Beira Alta), algumas espécies com particular importância na dieta alimentar das comunidades da Idade do Bronze. Numa região de excelentes solos agrícolas, a fava predominou largamente sobre outras espécies como a ervilha, o trigo e a cevada (SennaMartinez, 2002, p. 109). A cevada também foi atestada na Beira Interior, pela presença de impressões de grãos em cerâmica (Vilaça, 1995), o que também poderá indiciar a produção de cerveja, na sua receita original. Estes estudos permitiram, ainda, reconhecer a importância da recolecção e torrefacção da bolota (Senna-Martinez, 2002, p. 109). Segundo Senna-Martinez, a contínua utilização alimentar da bolota encontra-se seguramente documentada desde meados do 4.º milénio a.C. A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Depois de torrada e farinada, a bolota seria transformada em pão, uma evidência arqueológica que acabou por corroborar as fontes clássicas: Estrabão, no volume III da sua Geographia, atribui aos Lusitanos a prática do fabrico do pão de bolota (ob. cit., p. 124). No que respeita à Estremadura, nela incluindo a Península de Setúbal, e tendo em conta alguns dados atribuíveis ao 3.º milénio a.C., exumados em povoados como o Zambujal, Vila Nova de São Pedro e Pedra do Ouro (Senna-Martinez, 2002, p. 110, cf. Hopf, 1981; Paço, 1954; Silva e Tellez, 1954), continua a evidenciar-se uma tendência para uma policultura complexa, combinando o sistema de regadio e de sequeiro, documentando a exploração cerealífera, hortícola e frutícola, nomeadamente da vinha e do olival. A policultura ainda hoje é utilizada em sociedades rudimentares, como segura estratégia de subsistência face à imponderável acção do microclima e das pragas. Por exemplo, na América do Sul, as comunidades andinas ainda hoje semeiam várias espécies de batata, em diferentes solos e a diferentes cotas de altura, precavendo fracassos na colheita e garantindo uma produção mínima para a sua subsistência. Ainda relativamente à(s) crise(s) do Calcolítico, a totalidade das causas deste(s) fenómeno(s) ainda escapa à investigação arqueológica, sendo melhor reconhecidos os seus efeitos. As possíveis hipóteses explicativas divergem entre, por um lado, a crise da estrutura político-social calcolítica (Silva e Soares, 1984); por outro, a crise económica, reflexo da exaustão dos solos face às crescentes necessidades demográficas (Calado, 2001). A verdade é que a expressão do povoamento regional (dimensão e número de povoados conhecidos), ao longo do 3.º milénio, sofreu um inesperado esvaziamento, “que só viria a ser colmatado, em novos moldes, nos finais do II milénio a.C.” (Calado et al., 2006, p. 167). O problema fundamental da sustentabilidade dos fenómenos de complexificação social consiste na existência, ou não, de um correlativo suporte económico (Senna-Martinez, 2009, p. 481). Para a legitimação e garantia do status quo e poder político das proclamadas “emergentes elites da Idade do Bronze”, Senna-Martinez propõe uma estratégia combinada de sistemas de wealth finance e staple finance. A estratégia de staple finance (financiamento a partir de bens de consumo alimentar acumuláveis) nutre-se do controlo dos excedentes da produção agro-pecuária, implicando, necessariamente, algum grau de coercibilidade e de risco, pois depende do aumento do esforço produtivo das tradicionais sociedades rurais e do desvio dos seus produtos em benefício dos grandes centros populacionais e das elites. Por seu turno, a estratégia de wealth finance (financiamento a partir de bens de prestígio) permitia às elites o sustento do seu domínio social pela conversão de alguns excedentes de produção agro-pecuária em produtos de circulação controlada – bens de prestígio. “É neste âmbito que A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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pensamos se enquadra a produção de armas e jóias metálicas cujo monopólio da produção, circulação e utilização a um tempo sustenta e explica a emergência das elites da Idade do Bronze” (ob. cit., p. 482). Este ponto de vista é igualmente sustentado pelo autor para o Grupo Baiões/Santa Luzia (Senna-Martinez, 1996), sendo que os grandes factores de transformação das sociedades camponesas pré-históricas peninsulares resultarão do impacto dos contactos e “colonizações orientalizantes” (Arruda, 1999-2000). Genericamente, as opções de fixação dos grupos humanos do Bronze Final prenderam-se, claramente, com o controlo dos mais importantes recursos naturais, particularmente de terrenos férteis, bem como, em determinadas regiões, de determinados recursos minerais (cobre, estanho e ouro) e marinhos (marisqueiro, pesca, sal?). Por outro lado, a proximidade às vias de comunicação e circulação de pessoas e bens, bem definidas desde épocas anteriores, também foi determinante para as estratégias de implantação. O incremento, em algumas regiões, da exploração mineira, associada à sua transformação e produção de armas, ferramentas e artefactos de adoro, bem como à organização de novas vias de tráfego e circulação destes produtos, terá acentuado as diferenças e desigualdades interpovoados e inter-regionais, aquilatadas pela disponibilidade das riquezas naturais e pelo resultado das suas produções (quantidade, qualidade, tecnologia e especialização). Neste ponto, há que desmistificar o verdadeiro impacto e alcance do advento da metalurgia no conservadorismo das economias atingidas. Esta nova realidade não implicou, seguramente, uma verdadeira revolução agrícola: não nos podemos esquecer que o desenvolvimento da metalurgia do cobre e do bronze não revogou o recurso aos artefactos líticos (elementos de foice, por exemplo) e, mesmo na Idade Média, a metalurgia do ferro tardou a substituir os utensílios de madeira (Duby e Wallon, 1975, apud Senna-Martinez, 2002, p. 110). A evidente e generalizada prosperidade material observada neste período, reflexo do harmónico desenvolvimento do trinómio agro-pastorícia/metalurgia/“primeiras formas de circulação alargada”, terá acentuado as discrepâncias na distribuição dos bens e na definição dos estatutos, verticalizando progressivamente a estratificação social. Esta ideia surge particularmente evidenciada nas necrópoles, que apesar da pobreza material da maioria dos espólios, vão também manifestando claras variações na distribuição de riqueza votiva. Como veremos mais à frente, na qualidade de extremo sul da Estremadura (no sentido amplo de Orlando Ribeiro, 1967), a Arrábida estabelecerá efectivas relações com outros domínios regionais, de que o vasto interior alentejano e a restante Estremadura, particularmente o vale do Tejo, serão os mais imediatos territórios.
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Tendo em consideração os dados disponíveis, o Alentejo impõe-se, de facto, como um território Central no registo de ocupação para o Bronze Final do Sudoeste Português – uma verdadeira centralidade geográfica e cultural. Na realidade, no arranque oriental da Serra de Monfurado, define-se o ponto de convergência das linhas de festo das três bacias hidrográficas dos grandes rios do sul: o Tejo, o Sado e o Guadiana. Este singular entroncamento de caminhos naturais (festos e cursos de água) parece ter potenciado a fixação de grupos humanos durante a Pré e a Proto-História, a julgar pela sua comprovada representatividade arqueológica – nomeadamente como genético cenário do povoamento neocalcolítico e megalitismo alentejanos (Calado, 2004). Contudo, entre a região da Arrábida e a região de Évora, parece definir-se uma “terra de ninguém”, onde são desconhecidos significativos indícios de povoamento durante o Bronze Final. Esta aparente lacuna na malha de povoamento apenas volta a ser contrariada no distante horizonte de Montemor-o-Novo, no povoado do Alto do Castelinho da Serra (Burgess, 1998), o que abona em favor de uma “autonomia” da região da Arrábida, relativamente ao mundo alentejano. Segundo Rui Mataloto, e partindo dos dados disponíveis, a ocupação dos finais da Idade do Bronze no Alentejo Central dificilmente configuraria sociedades plenamente estratificadas, proto-estatais e proto-urbanas. As evidências coligidas sugerem antes um modelo ainda assente nas tradicionais estruturas familiares de parentesco e numa limitada produção de auto-subsistência. Neste contexto, entre estas comunidades indígenas, foram emergindo determinadas linhagens de elementos socialmente destacados – os “Patriarcas” (Mataloto, no prelo, cf. Barceló 1995). Estes líderes terão ascendido pela necessidade de reunião e coordenação de vastos grupos humanos, em determinados locais estratégicos e de elevada defensabilidade natural, motivados por conjunturas de potencial conflituosidade territorial. A sua influência sobre a comunidade seria transmitida numa linguagem identitária, trans-regional e de sentido gregário – um verdadeiro discurso de poder. A ideia de “guerra”, efectiva ou simbólica, “jogou um papel fundamental na estruturação destas comunidades do final da Idade do Bronze, tal como se perspectiva um pouco por toda a Europa” (Mataloto, no prelo). Nesta ordem de ideias, Senna-Martinez, baseado nos resultados da Tese de Mestrado de Jessica Reprezas (2010), propõe outro “harmonioso mecanismo” de coesão comunitária. Partindo da análise das decorações do espólio cerâmico do “Mundo Baiões/Santa Luzia”, a investigadora aponta para uma elevada probabilidade na ocorrência de variantes subregionais, o que, segundo Senna-Martinez (2010, p. 14) pode indiciar a existência de diferentes linhagens de oleiras. A circulação de mulheres, sob a forma de alianças A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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matrimoniais, parece ter constituído um efectivo mecanismo de intercâmbio e difusão entre os sítios, a nível local, regional e mesmo “inter-áreas culturais no Bronze Final da fachada atlântica peninsular” (ob. cit., p. 16). Este fenómeno, além de difusor de “modas de produção” (particularmente cerâmicas), reforçaria laços de coesão social. Relativamente à região estremenha (na qual a Arrábida se integra), por se tratar de uma área de limitada disponibilidade de recursos minerais, as suas comunidades terão subsistido e prosperado graças ao bom aproveitamento dos seus solos, extraindo dividendos da exploração agro-pecuária e, particularmente, do seu papel de “placa giratória” interregional, com um enorme potencial de abertura a contactos marítimos, sobretudo concretizados a partir do estabelecimento do interface orientalizante. Neste sentido, a Estremadura beneficiou, sobremaneira, da sua localização geoestratégica, entre o norte (rico em estanho e ouro) e o sul (abastado em cobre), e da confluência e excelência das suas vias naturais de transitabilidade e comunicação – terrestres (os festos), fluviais (os grandes rios do Sul – Tejo e Sado) e marítimas (o Atlântico). João Luís Cardoso refere uma abundância de pequenos povoados atribuíveis ao Bronze Final – último quartel do 2.º milénio a.C. e primeiro do milénio seguinte – registados, particularmente, na baixa península de Lisboa/Baixa Estremadura. Segundo o autor, esta ocorrência justifica-se, sobretudo, pelas propícias condições de fixação humana: “clima ameno, excelente insolação, solos férteis, particularmente os correspondentes ao Complexo Basáltico de Lisboa, cujos afloramentos ocupam boa parte da área em causa, e abundância de água explicam o sucesso da fixação sedentária verificada no Bronze Final” (Cardoso, 1995a, p. 126). “A amenidade climática, temperada pela acção do oceano, os mananciais e abundantes linhas de água, aliavam-se ao fácil acesso aos recursos marinhos (recolecção, pesca, sal)” (Gomes, 1992, p. 106). No decorrer do Bronze Final regional verifica-se a reocupação de uma série de lugares estratégicos, abandonados desde finais do Calcolítico/inícios da Idade do Bronze, o que demonstra a importância do controlo do espaço e das suas principais vias de comunicação (Senna-Martinez, 2002, p. 111). Luís Cardoso detém-se na evidente dicotomia entre os pequenos povoados (casais agrícolas de encosta) e os maiores povoados de altura, justificando a sua coexistência com a crescente hierarquização social que marcou a evolução da sociedade no decurso do Bronze Final. Assim, os povoados de altura, defendidos naturalmente e eventualmente reforçados com dispositivos de defesa, abrigavam as elites controladoras do território: “a estrutura tribal dá lugar a um regime de chefaturas onde
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começam a manifestar-se formas embrionárias de organização estatal” (Silva e Soares, 1986, p. 116). Dos trabalhos de João Luís Cardoso na região estremenha, de destacar a escavação na Tapada da Ajuda, hoje sob o campo de rugby do Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa (Cardoso e Silva, 2004). Trata-se de um povoado aberto, atribuível ao Bronze Final, com uma área original de cerca de 200 x 100 m, implantado em cotas médias entre os 100/115 m de altitude, numa suave encosta de boa exposição meridional/sul, com excelentes solos agrícolas e junto de um curso de água que desagua no Tejo. Estas condições repetem-se em numerosos outros sítios da região – pequenos povoados que dificilmente ultrapassam, na maior parte dos casos, as dimensões de casais agrícolas de raiz familiar. A área em causa propiciou, assim, convidativas condições à fixação de populações sedentárias e pacíficas, dedicadas ao cultivo da terra e à pastorícia, durante todo o ano. As prospecções realizadas na zona da Tapada da Ajuda permitiram recolher um copioso conjunto de elementos de foice sobre lascas de sílex de bordos denticulados, indício indirecto de actividade agrícola, mais precisamente de produção cerealífera. A agricultura terá sido complementada pela criação de gado (bovino, ovicaprino e suíno), pela pesca e recolecção marisqueira no estuário do Tejo e nas costas rochosas do Oceano, bem como por uma residual actividade venatória (coelho e veado), na qual também se inscreve a presença do cão (Cardoso, 1987; Gomes, 1992, p. 107). De acrescentar, ainda, evidências de produção queijeira, atestada pela ocorrência de fragmentos de “cinchos”, vulgo queijeiras (Cardoso e Silva, 2004, p. 268). No que respeita à cronologia absoluta, esta foi aferida a partir do resultado ponderado de cinco datações radiocarbónicas que apontam para uma provável ocupação do sítio durante o século XIII a.C. A região estremenha tem vindo a revelar outros sítios de habitat onde foram registados materiais semelhantes aos observados na Tapada da Ajuda, destacando-se as cerâmicas carenadas, por vezes brunidas, abundantes elementos de foice em sílex, além de fauna mamalógica e malacológica, vestígios que vão sugerindo idênticas estratégias de exploração dos recursos naturais (Marques e Andrade, 1974; Gomes, 1992, p. 107). Na margem sul do Tejo, as opções económicas aparentam semelhanças, mesmo tendo em conta tratar-se de uma região de solos menos produtivos. Os povoados por aqui identificados (Ramalha, Quinta do Almaraz, Quinta do Percevejo e Quinta do Marcelo) registaram cerâmicas de formas hemisféricas, carenadas, algumas de colo alto, fundos planos, decoração brunida e digitada. A análise das pastas isolou elementos basálticos, o que sugere a sua
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importação a partir da margem norte do Tejo (Barros e Espírito Santo, 1991; Gomes, 1992, p. 107). Mesmo na sua segunda etapa (séculos IX-X/VII), em que o Bronze Final estremenho sofre “a interferência da rede fenício-orientalizante de comércio com as redes de circulação do Bronze Final Atlântico [esta] não produzirá transformações imediatas no que se configura como um tipo de ‘modo de produção domestico’ virado essencialmente para o autoconsumo e em que o baixo nível de circulação parece obedecer a razões sociais não directamente de raiz económica” (Senna-Martinez, 2002, p. 111). Pelo menos numa primeira fase, os marinheiros fenícios vão introduzir os seus artigos nos pólos de produção e de troca locais/indígenas, não como bens de consumo, mas como bens de prestígio específicos, numa relação de troca desigual, típica de um sistema de comércio colonial (Aubet, 1994; SennaMartinez, 2002, p. 111-112). Tudo aponta para um modelo de autoconsumo, de fraco espectro de circulação das produções metalúrgicas locais, modelo este particularmente patente nas regiões centro-atlânticas/beirãs, sendo presumivelmente extrapolável à Estremadura e Noroeste e aguardando confirmação a Sul, por meio de dados que confirmem ou infirmem esta tendência (Senna-Martinez, 2002, p. 111, 124).
Fig. 8 – Estela de Ategua/Córdoba, in Museo Arqueológico de Córdoba (foto de R. Soares).
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6.
O Bronze Final na região da Serra da Arrábida: a vida, a morte... e as paisagens
“Quem de Lisboa observar o horizonte ao sul do Tejo descobre no seu extremo a crista de uma serrania, que se desenvolve de leste a oeste entre os dois velhos castellos de Palmela e Cezimbra, sendo dominada ao centro pelas penhascosas montanhas do Formosinho e Picoto da Arrábida. Esta serie de montes prende-nos a attenção pelo bello e accidentado das suas formas e suggere no nosso espírito o desejo de conhecer a sua origem e historia”. António Ignácio Marques da Costa, 1902 “Eu tenho três mil anos: sou Poeta. Surgi dos lábios secos dum asceta, de uma oração que Deus deixou de parte”. Sebastião da Gama, Florbela, Arrábida, 1943
Como já referido, o passado cultural subjacente ao Bronze Final constitui uma “época de trevas”, “de materialidade arqueológica muito pouco visível” (Vilaça, 1995, p. 23). A 1.ª Idade do Bronze foi, em todo o sudoeste peninsular, uma época de colapso e de vazios – a região da Arrábida não constitui aqui excepção: “até à data, não foi identificado nenhum sítio, nenhum artefacto sequer, que sustentem a hipótese de uma qualquer continuidade entre o Calcolítico final, na segunda metade do III, e os finais do II milénio a.C. Porém, claro, a ausência de provas não é a prova da ausência” (Calado et al., 2009, p. 27). Todavia, decorrido o misterioso hiato do “Bronze Médio”, verifica-se, no Bronze Final, uma inesperada explosão populacional, com assinaláveis manifestações materiais. Também aqui a Arrábida não fugiu à regra, pelo contrário, a presença humana na região reaparece excepcionalmente fervilhante. Eduardo da Cunha Serrão, na sua Carta Arqueológica do Concelho de Sesimbra (desde o Paleolítico antigo até 1200 d.C.) (Serrão, 1973) e Carta Arqueológica do Concelho de Sesimbra (do Vilafranquiano Médio até 1200 d.C.) (Serrão, 1994); Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares na obra de síntese Arqueologia da Arrábida (Silva e Soares, 1986) e Tavares da Silva e outros autores, em Património Arqueológico do Distrito de Setúbal. Subsídios para uma carta arqueológica (Ferreira et al., 1993); seguidos de João Luís Cardoso na sua Breve Síntese Baseada nos Principais Testemunhos Arqueológicos – Arqueologia da Região Meridional da Península de Setúbal (Cardoso, 1998) e Na Arrábida, do Neolítico Antigo ao Bronze Final (Cardoso, 2000), coligem a escassa informação relativa aos achados enquadráveis na Idade do Bronze, identificados na região da Arrábida: •
Dois machados de alvado em bronze, referenciados em Alfarim/Sesimbra, um deles sem anéis e outro de duplo anel lateral (Serrão, 1967, 1973, 1975; Cardoso 1998, 2000). Tratase de peças de tipologia “atlântica”, de provável produção estremenha, ocorrendo muito esporadicamente na área mediterrânea (Serrão, 1975, p. 214; Silva e Soares, 1986, p. 129; Cardoso, 2000, p. 67). Estes achados de “Alfarim”, tendo em conta as imprecisas informações disponíveis, parecem descontextualizados, tanto mais que no local referido não existem evidências atribuíveis à Idade do Bronze, nem nas proximidades.
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Os bronzes das Pedreiras/Sesimbra: um machado de alvado de duplo anel lateral e uma foice de talão, de “tipo Rocanes” (Serrão, 1967, 1973, 1975; Cardoso, 1998, 2000), “de produção local ou regional, como indica a presença de molde de fundição deste tipo de artefacto encontrado em Rocanes (Sintra)” (Cardoso, 1998, p. 31). Este achado remetenos para a importação de minérios de cobre e de estanho pelas populações estremenhas, provavelmente permutados por matérias-primas produzidas nesta região. Embora sem referência exacta ao sítio da sua descoberta, a povoação de Pedreiras situa-se numa zona de grande materialidade arqueológica para o Bronze Final: o autor e Miguel Amigo, nas suas prospecções para a Carta Arqueológica de Sesimbra, identificaram um núcleo de concentração de povoamento, integrável na periferia poente do povoado das Terras do Risco.
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O monumento funerário da Roça do Casal do Meio, Calhariz/Sesimbra (Spindler et al., 1973-74; Gomes, 1992, p. 108; Vilaça e Cunha, 2005; Harrison, 2007; Calado et al., 2009).
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O espólio cerâmico da Lapa do Fumo, nos Pinheirinhos/Sesimbra, com destaque para a primeira “aparição” publicada no nosso país dos chamados “ornatos brunidos” (Serrão, 1958, 1973, 1975).
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O conjunto arqueológico exumado na Lapa da Furada, na Azóia/Sesimbra (Cardoso, 1993, 1997; Cardoso e Cunha, 1995).
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O povoado de altura do Castelo dos Mouros (Rasteiro, 1897; Silva e Soares, 1986, p. 129; Gomes, 1992, p. 107; Ferreira et al., 1993, p. 271-272; Cardoso, 2000, p. 67).
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O povoado do Bronze Final instalado na foz do Sado, na Colina de Santa Maria, na zona urbana de Setúbal – Caetobriga (Silva e Soares, 1986; Gomes, 1992, p. 107; Cardoso, 2000, p. 67; Soares, 2000a; Arruda, 1999-2000), ocupando uma encosta baixa, sobranceira à área lagunar e à praia fluvial da margem direita da foz do Sado, indiciando uma ocupação de “substrato autóctone tardio da Idade do Bronze Final que beneficiou, no século VIII a.C., das influências culturais provindas com o comércio fenício” (Gomes, 1992, p. 108).
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O Bico dos Agulhões I, sítio em fase de caracterização, entre a Serra do Risco e o Portinho da Arrábida, que segundo a base de dados Endovélico terá manifestado evidências correspondentes à “Idade do Bronze/Idade do Ferro”: cerâmica manual e a torno e eventuais restos de estruturas, ou naturais afloramentos calcários e de brecha.
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De acrescentar, ainda, o Castro de Chibanes (Serra do Louro/Palmela) e a Lapa da Rotura (Serra de São Luís/Setúbal – já destruída pela acção das pedreiras), arqueossítios onde
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parece terem sido identificadas cerâmicas de ornatos brunidos (Silva e Soares, 1986, p. 128, cf. Spindler et al., 1973-74). A estes parcos vestígios, no conjunto bem “insinuantes” (sobretudo o monumento funerário da Roça do Casal do meio, o povoado do Castelo dos Mouros e algumas grutas), uma mais recente investigação, com base em prospecções sistemáticas no âmbito dos projectos da nova Carta Arqueológica de Sesimbra (Calado et al., 2009) e da Carta Arqueológica da Arrábida/Setúbal (em curso), conduzidos por Manuel Calado e nos quais o signatário participa, tem vindo a averbar novas evidências de ocupação humana, enquadráveis em cronologias do “Bronze Final arrábido”. Os “antigos” sítios também foram (re)visitados, à luz de perspectivas mais “panorâmicas” e actualizadas. Na verdade, há muito que curiosas sugestões de carácter poético (e, até certo ponto, profético), relativas a um interessante “Passado de Bronze”, vinham aflorando pela região. Já no século XVI, André de Resende e Gaspar Barreiros atribuíram o homérico topónimo às “ruínas romanas de Tróia”, sítio que acabou por ser escavado no século XVIII, por ordem da Rainha D. Maria I, tornando-se no primeiro episódio de intervenção arqueológica no nosso país. Mais tarde, em 1943, desta feita pelo aparo de um “poeta visionário”, Sebastião da Gama, num poema em memória de Florbela Espanca, e referindo-se à Arrábida, escreveu o seguinte: “Eu tenho três mil anos: sou Poeta. Surgi dos lábios secos dum asceta, de uma oração que Deus deixou de parte”. Em 1962, Eduardo da Cunha Serrão, na contra-capa da sua “preambular” Carta Arqueológica de Sesimbra (Serrão, 1962), desenhou um “auspicioso” hippoi a desembarcar na Arrábida (fig. 6). Por fim, em 1998, na sequência do projecto Navegando pelo Império dos Mares, desenvolvido pela Associação Laitau (Preservação e Dinamização do Património Naval e Cultural do Rio Sado), organização da qual o autor é associado fundador e dirigente, partiu de Abul uma flotilha de três Galeões do Sal (embarcações tradicionais do Sado), com destino a Cádiz e recuperando a antiga rota dos Fenícios. No regresso, na boca do Sado, o “santuário de chegada” da Lapa da Cova voltou a surgir no horizonte arrábido, prenunciando, 12 anos antes, a sua futura escavação. A Arrábida tem vindo, assim, a revelar-se como um território praticamente virgem, não “beneficiando” dos impulsos da pressão humana e do crescimento urbanístico, teimando em esconder os testemunhos do seu Passado. Hoje, a descoberta de olvidados sítios depende de uma atenta análise cartográfica, do profundo conhecimento da área e da aventura empírica da sua exploração, onde a aspereza da vegetação e a vertigem do abismo constituem sérios obstáculos à progressão. Neste sentido, a prospecção tem vindo a assumir-se como a principal ferramenta da investigação arqueológica, pelo menos nesta primeira fase. A jusante, e a seu A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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tempo, há que aprofundar verticalmente, e numa perspectiva integrada e comparada, os vestígios disponíveis, de forma a desenhar um quadro mais completo da sequência de ocupação deste território. Se, por um lado, a prospecção arqueológica produz uma informação superficial, com naturais limitações diacrónicas e sincrónicas; por outro, permite uma visão de largo espectro espacial e temporal e uma interpretação mais alargada de um determinado território, permitindo identificar uma diversidade de sítios arqueológicos, inscritos numa paisagem envolvente – física, cultural e ritual – ficando definido o seu potencial e prioridade para futuras escavações. De salientar a total ausência de dados de escavação para os contextos de habitat atrás referidos, sendo a informação disponível, à data, exclusiva de acções de prospecção. Conhecendo o território e partindo dos sítios arqueológicos identificados, torna-se quase intuitiva a descoberta de novos sítios, “basta ligar os pontos” – “prospectar é preciso. Uma das temáticas emergentes na arqueologia pré-histórica portuguesa (e não só) é, precisamente, a questão das continuidades, das sobrevivências, das reutilizações, para além das épocas em que, por razões metodológicas, a investigação costuma segmentar o tempo” (Calado et al., 2009, p. 31).
Fig. 9 – A Península da Arrábida e a localização de alguns dos sítios tratados. Os pontos vermelhos referem-se a sítios do Bronze Final, os pontos verdes referem-se a sítios da Idade do Ferro: 1 - povoado do Risco; 2 - povoado do Castelo dos Mouros; 3 - povoado da Serra da Cela; 4 - povoado de Valongo (I); 5 - “atalaia” de Valongo (II); 6 - “casal agrícola” da Quinta do Picheleiro; 7 - Bico dos Agulhões; 8 - Pedreiras; 9 - Roça do Casal do Meio; 10 - Lapa do Fumo; 11 - Lapa da Furada; 12 - Gruta do Médico; 13 - Lapa da Cova; 14 - Fenda; 15 - povoado da Casa Nova; 16 - povoado da Meia Velha; 17 - necrópole do Casalão; 18 - Alfarim (imagem Google Earth adaptada).
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Fig. 10 – Os bronzes de Pedreiras e “Alfarim”: em cima, um machado de alvado de duplo anel lateral e uma foice de talão, identificados em Pedreiras (Sesimbra); em baixo, os dois machados de alvado presumivelmente referenciados em Alfarim (Sesimbra), um deles sem anéis e outro de duplo anel lateral (adaptado de Serrão, 1994, p. 47 e 85).
6.1.
Os sítios de habitat “Nos pittorescos valles do Picheleiro, Gralhal, Alcube, Barris, etc., poderia pastorear os seus rebanhos; sobre os penhascos das collinas edificaria as suas habitações fortificadas e os seus castros; poderia cultivar as varzeas, como a do Bomfim, hoje coberta de laranjaes; e nas lapas abertas nas rochas guardaria religiosamente os restos dos que passavam á eternidade”. Ignácio Marques da Costa, 1902
Além da descrição e caracterização dos sítios de habitat abaixo elencados, pretendeuse compreender o seu funcionamento e os modelos de gestão praticados pelas comunidades que os habitavam e, sobretudo, descortinar o papel que estes desempenharam na rede regional de povoamento que presumivelmente integravam. Na caracterização dos povoados são destacadas as suas particularidades como, também, as relações que os articulam. 6.1.1. Povoado aberto das Terras do Risco – base agro-pastoril Na sequência dos trabalhos de prospecção (2007-2009) para a nova Carta Arqueológica do Concelho de Sesimbra, publicada em Setembro de 2009 sob o título O Tempo do Risco (Calado et al., 2009), foi identificado, no vale adjacente à encosta norte da Serra do Risco (Sesimbra), na singular paisagem localmente conhecida por “Terras do Risco” e “Terras do Meio”, um vasto povoado aberto, sem aparentes estruturas amuralhadas ou fossos, ocupando uma área de cerca de 100 ha, “o que o coloca entre os mais vastos da Europa” (ob. cit., p. 47). Porém, a singular dimensão do povoado do Risco não foi imediatamente aferida. Em 2007 foi identificado um primeiro núcleo artefactual com cerca de 5 ha, denominado de “povoado das Marmitas”, que, na verdade, representava apenas a ponta de um imprevisível iceberg. Ulteriormente, em 2009, numa fase final dos trabalhos de prospecção, dedicados à revisão de áreas de difícil prospectabilidade, e para grande surpresa da equipa, foi sendo revelado, em cada clareira da vegetação, “um povoado de dimensões inauditas, descrevendo um arco de círculo, junto ao monumento da Roça do Casal do Meio (...). O povoado – que, entretanto, passámos a designar por povoado do Risco – estende-se por uma área, mais ou menos contínua” (ob. cit., p. 29). Na verdade, o povoado das Marmitas e o povoado do Risco “correm o risco” de serem uma e a mesma coisa. Os materiais de superfície identificados, um pouco por todas as janelas de prospecção permitidas pela densa vegetação arbustiva, muito fragmentados e em alguma abundância, indiciaram uma cronologia relativa correspondente aos finais da Idade do Bronze. Trata-se de um muito disperso conjunto artefactual de fragmentos cerâmicos, onde se destacam os bordos simples, os fundos planos, algumas carenas e mamilos. De destacar, também, um elemento de foice em sílex, recolhido nas imediações da Roça do Casal do Meio, um indício indirecto de A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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actividades agrícolas. O enquadramento deste(s) sítio(os) num horizonte do Bronze Final, em termos muito amplos, deveu-se a um conjunto de observações relativas que excluíram outras atribuições culturais. O Neolítico Antigo teria algum cabimento, apenas atendendo ao facto existir na área um povoado do Neolítico Antigo – Casal do Meio 1 (Calado et al., 2009, p. 95). Contudo, a inaudita dimensão da área em causa, além da total ausência de cerâmicas decoradas e do pouco sílex identificado, descartou liminarmente esta cronologia. O Neolítico Médio, não tendo paralelos conhecidos na região, sendo mal caracterizado ergologicamente, implicaria, pelo menos, uma maior presença de sílex. O Neolítico Final/Calcolítico seria, de certa forma, plausível, pelo menos em termos de implantação e de contexto, tendo em conta o povoado do Neolítico Final/Calcolítico identificado junto ao algar dos Ouriços (ob. cit., p. 99). Porém, a ausência de formas abertas não abona em favor de cronologias neolíticas, além de se exigir, para o efeito, uma maior ocorrência de sílex e de outros fósseis directores como os pesos de tear, o barro de cabanas, etc. Por seu turno, o Bronze Antigo/Médio, por se tratar de um período mal conhecido, deverá ser sempre tido em conta, tanto mais que continuam em aberto questões genéricas relacionadas, por um lado, com a(s) crise(s) do Calcolítico, com repercussões ao longo de praticamente todo o 2.º milénio; por outro, com a pujante emergência do povoamento do Bronze Final, após um longo período de retracção demográfica. Por fim, o Bronze Final: a observação da cerâmica identificada, particularmente das suas pastas, cozeduras, tratamentos de superfície e formas (contentores fechados, considerando a relação muito expressiva entre fragmentos de parede e bordos, a ocorrência de diversos fundos planos e de algumas carenas), para além do referido elemento de foice, justificaram, assim, a inclusão desta grande área de povoamento no âmbito cronológico do Bronze Final. Outros dados já faziam prever esta inferição temporal: a suposta reutilização do monumento funerário neo-calcolítico da Roça do Casal do Meio, como sepultura de elites indígenas durante o Bronze Final, conforme a proposta de Richard Harrison (Harrison, 2007), baseada na análise de documentação inédita das escavações de Konrad Spindler (Spindler et al., 1973-74); as reutilizações, quase sistemáticas, das cavidades cársicas durante o Bronze Final, um fenómeno bem documentado em Sesimbra e que completa o quadro mental que presidiu à reutilização da Roça do Casal do Meio; a descoberta do núcleo artefactual das Marmitas (Calado et al., 2009, p. 98), vindo resolver, à partida, a questão dos “indígenas vs intrusos”, criando um contexto local para o referido monumento funerário; o carácter “elitista” dos dois enterramentos da Roça do Casal do Meio exigindo, naturalmente, a A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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existência de um povoamento mais intenso, para além do povoado das Marmitas, com ou sem solução de continuidade; outros claros indícios do Bronze Final verificados nas imediações, tais como os achados metálicos das Pedreiras e, sobretudo, o povoado do Castelo dos Mouros. O grande povoado da Terras do Risco define-se num arco de círculo, ao longo da meia encosta das vertentes e imediações do vale do Risco (“polje”), adossado, nas extremidades, à própria Serra do Risco. De assinalar a elevada fertilidade dos solos da base sedimentar deste vale, potencialmente explorados desde o Neolítico, até à actualidade. Na sua envolvente, e em presumível relação, registaram-se duas cavidades: a Lapa da Ovelha ou da Nazaré (ou ainda da Cereja, topónimo dado pela equipa – “a Cereja no topo do povoado”), aberta a meia encosta na vertente oriental do vale, acima da Roça do Casal do Meio, numa perspectiva dominante sobre todo o povoado e a merecer, por tudo isto, uma futura sondagem; e, sobre o mar, na vertente sul da Serra do Risco, na cota dos 260 m, o arrebatador monumento natural da Lapa da Cova. Ainda na envolvente do Risco, e além das referidas cavidades, de assinalar algumas paisagens de elevado potencial simbólico. As Marmitas do Gigante, por exemplo, nas imediações de vestígios reportáveis a várias épocas, designadamente do povoado da Idade do Bronze, constituem um raro fenómeno de erosão hídrica, causado pelo milenar fluxo da Ribeira das Marmitas nos degraus de um afloramento calcário. A torrencial hidrodinâmica, mobilizadora de pesados seixos rolados, foi esculpindo, ao longo dos tempos, formas ímpares na rocha, de notável identidade. Mesmo não tendo oferecido, até à data, evidências arqueológicas, o sítio, além de proporcionar alguns abrigos “sob pala”, reveste-se de inegável potencial enquanto “santuário natural”, bem ao jeito das paisagens de eleição da Idade do Bronze. Nesta linha, também o ponto mais elevado da crista do Risco estampa uma eventual paisagem ritual. O “Píncaro”, de seu nome, justifica o topónimo dominando simetricamente, do alto dos seus 380 m, todo o vale e povoados adjacentes. Por sinal, este cume registou um fragmento de machado de pedra polida, além de vestígios estruturais de época indeterminada (Calado et al., 2009, p. 99). Curiosamente, a “anatomia” da Serra do Risco também é bastante sugestiva, mesmo para os observadores menos imaginativos – a sua linha de cumeada descreve o perfil perfeito de uma cara virada ao céu, com evidentes semelhanças com a “Peña de los Enamorados” (fig. 17), em Antequera (Andaluzia/Espanha), local onde se comprova uma manifesta relação com um extraordinário monumento megalítico – Cueva de Menga (Romero e Ruiz, 2009). De assinalar, ainda, numa cota inferior em relação ao grosso dos vestígios atribuíveis ao Bronze Final, dois núcleos de povoamento que documentaram fragmentos cerâmicos e A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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artefactos líticos de épocas precedentes: um povoado do Neolítico Antigo no Casal do Meio (ob. cit., p. 95); e um povoado do Neolítico Final/Calcolítico, junto ao algar dos Ouriços (ob. cit., p. 99). Na base do vale, nas imediações do Casal do Risco, foram registados diversos “megalitos” alongados, de arenito e brecha, alguns ortostáticos e aparentemente alheios ao contexto geológico (ob. cit., p. 99). Em suma, o povoado do Risco, tendo em conta a informação disponível à data – uma topografia de implantação de cota baixa, sem aproveitamento de condições naturais de defesa e não revelando, aparentemente, qualquer tipo de estrutura defensiva, numa área de excepcional dimensão, sem paralelos conhecidos no contexto peninsular, que não se traduz numa boa densidade de materiais de superfície, pelo contrário, adivinhando-se mesmo estratigrafias “magras” – parece apontar para um disperso conjunto de pequenos casais agrícolas, subsidiários de outro(s) povoados(s) de altura. Outra alternativa, para a qual existem alguns indícios, é a de se tratar de uma “aldeia”, de malha urbana pouco concentrada (Mataloto, no prelo).
Fig. 11 – A Serra do Risco - “A serra tem o ar de uma onda que avança impetuosa e subitamente estaca e se esculpe no ar; é uma onda de Pedra e mato, é o fóssil de uma onda” - Sebastião da Gama (foto de R. Soares).
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Fig. 12 – Área de implantação do povoado do Risco no extracto da folha 465 da CMP esc. 1:25000.
Fig. 13 – Os principais núcleos de povoamento do Risco e a sua relação com outras realidades da envolvente (imagem Google Earth).
Fig. 14 – A Serra e o vale do Risco - “polje” (foto de R. Soares).
Fig. 15 – Reconstituição hipotética do povoado do Bronze Final das Terras do Risco (desenho de Mariana Croft in Calado et al., 2009, p. 50).
Fig. 16 – Fragmentos de cerâmica manual observados nas prospecções da área do povoado do Risco, alguns em conexão, designadamente carenas, bordos simples e perfurações (fotos de R. Soares).
Fig. 17 – “Paisagens anatómicas”: à esquerda a Peña de los Enamorados, em Antequera/Andaluzia (foto de Manuel Calado); à direita a Serra do Risco/Sesimbra (foto de R. Soares), cujos perfis desenham a forma de caras viradas ao céu.
6.1.2. Povoado de altura do Castelo dos Mouros – povoado central (?) O “monte fortificado” do Castelo dos Mouros, também conhecido nos textos antigos como “Jogo dos Mouros”, foi o primeiro povoado da Idade do Bronze identificado na Arrábida (Rasteiro, 1897), e será, até ver, o mais imponente e inexpugnável do ponto de vista defensivo, tanto no aproveitamento das condições naturais, como nas estruturas de defensa edificadas – “parece de uma só pedra, é nu, alveja ao longe como lençol gigante estendido na serra” (Rasteiro, 1897, p. 33). Implantado no monte de Alvide, ou Olivide, trata-se de um “local elevado, em crista, de difícil acesso, com óptimas condições naturais de defesa, situado na encosta norte da Serra da Arrábida” (Silva e Soares, 1986, p. 129). Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares, a partir das suas prospecções no local, referem um fragmento cerâmico, “talvez do Calcolítico final, integrável no grupo inciso da cerâmica campaniforme” (Silva e Soares, 1986, p. 127), além de “fragmentos de cerâmica atribuíveis ao Bronze Final, mas desprovidos de ornatos brunidos” (ob. cit., p. 129). Em 1993, o sítio dá entrada no texto Património Arqueológico do Distrito de Setúbal – subsídios para uma carta arqueológica, fazendo referência a uma ocupação da Idade do Bronze e, outra, dos Finais da Idade do Ferro/Período Romano Republicano (Ferreira et al., 1993, p. 271-272), sendo de notar a ausência da anterior referência ao Calcolítico. Novas prospecções (a partir de Dezembro de 2010), no âmbito da Carta Arqueológica da Arrábida/Setúbal, não permitiram confirmar o Calcolítico. Estas recentes visitas possibilitaram uma melhor e merecida caracterização do sítio. O povoado “eriça-se” num esporão calcário de perfil assimétrico, delimitado, a sul, por um paredão vertical que atinge vários metros de altura e, a norte, por uma encosta de rocha nua, de acentuada inclinação. As naturais condições de defesa e domínio paisagístico foram reforçadas por um circuito amuralhado, edificado com o recurso a aparelho ciclópico, no lado norte. Segundo Francisco Rasteiro, “se pelo norte é inaccessivel, pelo sul protege o terrapleno a muralha natural, que forma a crista do monte” (Rasteiro, 1897, p. 33). Na verdade, além das condições naturais, o lado sul apresenta vestígios de uma muralha com um 1,70 m de largura, sem aparelho ciclópico, dando continuidade, na vertical, ao paredão rochoso. “O acesso actual ao Castelo dos Mouros mantém, provavelmente, o traçado de um dos acessos proto-históricos. Em alguns pontos são notórios os agenciamentos” (blogue Arqueologia da Arrábida). São visíveis três entradas no recinto fortificado: 1. No lado sul – aproveitando uma lacuna no esporão, de evidente origem tectónica. Esta entrada apresenta também vestígios de uma estrutura defensiva. A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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2. No lado norte – uma interrupção na muralha de cerca de 1 m de largura. 3. Na extremidade sueste – parece haver um acesso natural, relativamente fácil, junto ao qual foi aparentemente construída uma estrutura defensiva. No lado norte, num patamar ataludado e relativamente plano, a meia encosta, resultante da construção da própria muralha, registou-se uma assinalável concentração de fragmentos cerâmicos. De referir, ainda, um poço localizado junto da entrada sul, apresentando um perfil ligeiramente oblíquo, parcialmente colmatado por sedimentos, apresentando ainda uns 7/8 m de profundidade, que deverá ter funcionado como cisterna (até à data não referenciado). Também foi identificada uma cavidade natural, aberta na base nascente do paredão, constituindo um elemento de sugestivo potencial simbólico. A observação da faixa de vegetação, visível na encosta norte do sítio, permitiu extrair algumas considerações: a faixa horizontal corresponde, claramente, ao desenvolvimento da muralha ciclópica, enquanto a faixa oblíqua condiz com a continuação da falha geológica observada no entalhe da crista (a “porta sul”), em cujo enchimento milonítico foi aberta a cisterna. É provável, por outro lado, que a falha tenha sido aproveitada como caminho de acesso, pelo lado norte. Infelizmente, a muralha ciclópica encontra-se muito destruída, pelo menos em superfície, não permitindo confirmar a existência de uma eventual entrada nesse ponto (ob. cit.). De acrescentar, ainda, a observação de dois grandes blocos calcários no topo da crista, um deles visivelmente mobilizado, o outro erguido por motivos desconhecidos, o que não deixa dúvidas quanto a uma justificação antrópica para o seu ortostatismo, sugerindo uma monumentalização paisagística com objectivos simbólicos e/ou rituais, dentro de uma certa continuidade para a qual existem vários paralelos relativamente à monumentalidade megalítica. O Castelo dos Mouros materializa, na perfeição, o agenciamento do domínio visual e defensivo sobre a paisagem envolvente, por parte dos seus construtores, impondo-se enquanto marco conspícuo no quadro norte da Arrábida, alcandorado sobre os campos de Azeitão e “dominante” sobre as Terras do Risco (ob. cit.), além de um notável investimento construtivo, até à data sem par no território da Arrábida.
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Fig. 18 – Área de implantação do povoado do Castelo dos Mouros no extracto da folha 465 da CMP esc. 1:25000.
Fig. 19 – O povoado do Castelo dos Mouros e a sua relação com a envolvente paisagística e cultural (imagem Google Earth).
Fig. 20 – O Castelo dos Mouros visto de poente (foto de R. Soares).
Fig. 21 – O Castelo dos Mouros visto de norte (foto de R. Soares).
Fig. 22 – O Castelo dos Mouros visto de sul (foto de R. Soares).
Fig. 23 – Entrada sul no entalhe natural (foto de R. Soares).
Fig. 24 – Aparelho ciclópico da muralha norte (foto de R. Soares).
Fig. 25 – Megálito ortostático no topo da crista (foto de R. Soares).
Fig. 26 – Poço/cisterna na base do entalhe da crista (foto de R. Soares).
Fig. 27 – O poço/cisterna visto do interior (foto de R. Soares).
Fig. 28 – Castelo dos Mouros: fragmento de cerâmica manual - bordo simples (foto de R. Soares).
Fig. 29 – Castelo dos Mouros: fragmento de cerâmica manual - fundo plano (foto de R. Soares).
Fig. 30 – Cerâmicas da Idade do Bronze provenientes do Castelo dos Mouros. O fragmento n.º 1, segundo os autores, poderá inscrever-se no grupo inciso da cerâmica campaniforme/Calcolítico Final (seg. Silva e Soares, 1986, p. 127).
6.1.3. Povoado de altura da Serra da Cela – povoado portuário (?) Em Dezembro de 2008, na sequência de trabalhos de prospecção espeleológica da LPN-CEAE (Liga para a Protecção da Natureza – Centro de Estudos e Actividades Especiais), o autor teve a oportunidade de (re)descobrir um povoado no Portinho da Arrábida – povoado da Serra da Cela. Na verdade, o arqueossítio já se encontrava referenciado bibliograficamente como “Neolítico/Calcolítico” (Ferreira et al., 1993), interpretação fundamentada em antigas informações de Paul Choffat e de Ignácio Marques da Costa: “no cume da serra da Cella, no sopé da qual fica o forte da Arrabida, proximo do Portinho do mesmo nome, encontrou o distincto geologo, o Sr. Paul Choffat, alguns pedaços de louça de barro muito grosseiro e mal escolhido como aquelle de que era feita a louça pre-historica. Percorri o cume da dita serra e na sua parte mais oriental, sobranceira ao forte da Arrabida, dei com uma pequena chã fortificada naturalmente pelas camadas de rocha, que ahi se levantam a prumo como a servirem de muralha. Nesta chã, apesar de não mandar fazer sondagens, encontrei pelo solo muitos dos fragmentos de louça acima referidos” (Costa, 1907, p. 210). Todavia, os materiais de superfície, agora identificados, remeteram antes para cronologias do Bronze Final – predominância de formas fechadas, de perfil em S e ausência de indústria lítica (Relatório de Seminário – Povoados Calcolíticos da Região da Arrábida – Soares, 2009). Desde 2008, o signatário tem vindo a desenvolver diversas visitas exploratórias, preliminares trabalhos de prospecção e caracterização do arqueossítio, no âmbito da Carta Arqueológica da Arrábida/Setúbal, sob a orientação científica de Manuel Calado. Trata-se de um esporão calcário apresentando, no seu topo mesial, uma plataforma aplanada, com bom suporte de implantação e excelentes condições naturais de abrigo, defesa e controlo das paisagens adjacentes, em particular da baía do Portinho da Arrábida – porto natural – até à entrada do Sado. O sítio conserva ainda diversos vestígios estruturais, presumivelmente de habitat, associados a abundantes fragmentos cerâmicos, relativamente bem conservados e com boa informação: duas pequenas taças (uma hemisférica e uma carenada), praticamente completas e depositadas em “nichos” rochosos; taças hemisféricas; vasos de perfil em “S”; vasos carenados; um vaso de carena baixa; um vaso de colo estrangulado; um vaso mamilado; além de diversos fragmentos apresentando brunimento (não ornatado), carenas, bordos simples, fundos planos, perfurações de suspensão, perfurações de reparação, etc. De referir, ainda que com cariz residual, a ocorrência de cerâmica a torno, de pastas claras e depuradas, A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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nomeadamente um bordo exvertido e um fundo em “pé de anel”, num total de quatro fragmentos, evidências que podem indiciar algum grau de presença/contacto durante a Idade do Ferro. No que respeita aos vestígios líticos, apenas se registaram alguns seixos e lascas talhados em quartzito e quartzo leitoso, um grande percutor em basalto, um movente discóide e um nódulo grosseiro de sílex, conjunto insuficiente para uma atribuição cronológica do Neolítico/Calcolítico, não se descartando, contudo, alguma presença humana em tempos mais antigos. De acrescentar, por fim, alguns ecofactos: vestígios malacológicos (búzios, lapas, mexilhões, ostras e outras conchas de maiores dimensões), o que sugere uma vocação eminentemente marítima-piscatória deste povoado, além de ossos de ovicaprinos, alguns apresentando cortes, cujo aspecto permite pensar, também, numa cronologia subactual, associável a uma pastorícia etnográfica, documentada por um objecto de “arte de pastor” – uma colher esculpida em madeira. O grosso da ocupação teve lugar na plataforma do topo do esporão, protegida, a sul, por uma parede com cerca de 6 m de altura, formada pelas bancadas da crista do contraforte. Também foi registada alguma ocupação no patamar inferior, em alguns dos abrigos formados pelos paredões subverticais que delimitam a plataforma pelo lado noroeste. Além das referidas estruturas, foram identificadas duas cavidades cársicas na plataforma do topo: uma delas, de formação tectónica, encontrou-se aparentemente vazia de conteúdo arqueológico; a outra, de aparente hidrogénese, apresentou-se obstruída por um cone de dejecção, repleto de materiais arqueológicos (grandes fragmentos cerâmicos, excepcionalmente conservados e diversos restos malacológicos), supondo uma provável lixeira do povoado. Na vertente sul do esporão, num socalco a meia encosta, ligeiramente aplanado e propiciando uma boa plataforma de implantação, foram identificados, além de abundantes fragmentos cerâmicos, outro núcleo de estruturas, destacando-se um círculo que descreve uma planta ligeiramente elipsoidal, com sensivelmente 4/5 m de maior diâmetro, rudemente aparelhado com blocos calcários de dimensão média. A escassos metros desta estrutura, foi observado um corte natural incrustado de material cerâmico, evidência que, associada à referida estrutura, a poderá, eventualmente, integrar no mesmo horizonte cronológico – Bronze Final. O esporão documenta, ainda, uma diversidade de apontamentos geológicos e paisagísticos de grande potencial simbólico. No seu flanco norte, abrem-se uma série de abrigos, fendas, recantos e pequenas cavidades, algumas das quais registando a ocorrência de cerâmica fina (duas pequenas taças, uma dela carenada). Numa grande fenda, entalhada transversalmente na linha de cumeada, por onde se pode facilmente subir ao topo da crista e A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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desfrutar de uma panorâmica de excelência sobre a costa e enseada do Portinho, destaca-se uma grande pedra, perfeitamente “entalada”, criando um “arco natural”, obrigando a uma passagem no mínimo ousada e de provação – “a Guardiã da Fenda” ou “a Fenda de Atlas”. O topónimo “Cela” (do latim cella(-ae) – pequeno compartimento, santuário, pequeno quarto que um religioso ocupa no convento) joga com uma exígua cavidade natural, fechada com uma porta gradeada, existente na extremidade nascente do sopé da Serra da Cela, na curva junto ao Forte de Santa Maria da Arrábida. Tendo em conta a implantação do povoado da Serra da Cela, sobranceiro e dominante sobre a pequena baía da foz do Sado e cuja toponímia remete, naturalmente, para uma funcionalidade portuária (“Portinho”), arqueologicamente documentada desde época Romana (as cetárias do Creiro dependeram, necessariamente, de um porto), é de considerar a hipótese de actividades marítimas no Portinho da Arrábida (porto de pesca e “comercial”), no decorrer do Bronze Final. A confirmação desta conjectura não será fácil, isto porque, como se sabe, estruturas portuárias e embarcações de épocas tão remotas constituem realidades de rara detecção no meio arqueológico, pelo facto de serem construídas em materiais perecíveis e por estarem expostas à constante acção erosiva e sedimentar da hidrodinâmica das marés e das correntes, particularmente em locais afectados por uma contínua utilização. Assim, resta-nos considerar outras evidências indirectas, além da manifesta potencialidade e lógica “geoestratégica” do sítio. Por exemplo, na linha de praia, é fácil deter o olhar num sugestivo alinhamento pétreo, formado por um conjunto de grandes blocos calcários, arrumados num pequeno “pontão”, que, independentemente de ter tido uma origem geológica ou antrópica, facilmente poderá ter servido para o apoio portuário (fig. 153). Seria também importante promover uma campanha de prospecção subaquática na área da baía do Portinho da Arrábida, no sentido de identificar eventuais vestígios de antigas actividades náuticas naquelas paragens, designadamente âncoras e poitas líticas. Na base de dados Endovélico apenas é possível encontrar duas referências a achados isolados em meio subaquático: um conjunto de pesos de rede romanos assinalado a 4 de Novembro de 1995 e o “avistamento de ânforas em meio aquático”. Neste seguimento, há que admitir a probabilidade de antigas navegações indígenas, para o hinterland sadino, ou mesmo de precoces contactos “pré-coloniais”, por via marítima, considerando a importância “geoestratégica” do sítio, enquanto porto de excelência para um presumível complexo de povoamento, além de porto de chegada/saída do Rio Sado, favorável via de penetração fluvial para os territórios interiores do Alentejo, com largas referências à mineração do cobre... mas isso são outros mares! A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Fig. 31 – Área de implantação do povoado da Serra da Cela no extracto da folha 465 da CMP esc. 1:25000.
Fig. 32 – O povoado da Serra da Cela e a sua relação com a envolvente paisagística e cultural (imagem Google Earth).
Fig. 33 – Dominante sobre o Portinho da Arrábida, o povoado da Serra da Cela fotografado a partir da Gruta do Médico (foto de R. Soares).
Fig. 34 – Conjunto de estruturas pétreas na plataforma do topo do esporão da Cela (foto de R. Soares).
Fig. 35 –Estrutura circular na meia encosta da vertente sul (foto de R. Soares).
Fig. 36 – Fragmento de pequena taça carenada (foto de R. Soares).
Fig. 37 – Fragmento de vaso de perfil em “S” (foto de R. Soares).
Fig. 38 – Fragmento de vaso de carena baixa (foto de R. Soares).
Fig. 39 – Fragmento de bojo com carena (foto de R. Soares).
Fig. 40 – Fragmento de taça hemisférica (foto de R. Soares).
Fig. 41 – Fragmento de pequena taça hemisférica (foto de R. Soares).
Fig. 42 – Fragmento de pote de colo exvertido (foto de R. Soares).
Fig. 43 – Fragmento de vaso de perfil em “S” (foto de R. Soares).
Fig. 44 – Fragmento de vaso de colo estrangulado (foto de R. Soares).
Fig. 45 – Fragmento de vaso mamilado (foto de R. Soares).
Fig. 46 – Fragmento de vaso de colo fechado (foto de R. Soares).
Fig. 47 – Fragmentos de cerâmica brunida (foto de R. Soares).
Fig. 48 – Fragmento com perfuração de suspensão (foto de R. Soares).
Fig. 49 – Fragmento com perfurações de suspensão (foto de R. Soares).
6.1.4. Povoado de cumeada de Valongo – “atalaia” Seguindo uma acertada informação do arqueólogo António Carvalho, foi recentemente confirmado (em 2010), no âmbito da Carta Arqueológica da Arrábida/Setúbal, um inédito povoado de altura (Valongo), na cota dos 400 m e a pouca distância (cerca de 2,5 km) do ponto mais elevado da Serra – o Formosinho (499 m de altura). Ainda em fase de caracterização, é possível adiantar tratar-se de um povoado de cumeada, implantado ao longo de um desnivelado esporão calcário, com elevada defensibilidade natural nos lados norte e oeste. Nos lados sul e nascente, muito menos escarpados, conservam-se vestígios de um sistema defensivo, actualmente manifestado por um extenso cordão de aparelho calcário desmantelado, embora ainda se conservem alguns troços de faces de muro. Não foi possível, no estado actual da estrutura, avaliar a sua real espessura, uma vez que só por meio de escavações será possível observar a sua face interna. Ainda assim, torna-se aparente uma maior potência construtiva no seu extremo nascente, mais desprotegido, onde o material desmantelado atinge um volume mais considerável. A elevada disponibilidade do aparelho pétreo parece resultar da fracturação natural, e eventualmente intencional, daquelas bancadas lapiazadas. A superfície aplanada deste extremo nascente documentou alguma concentração de materiais: fragmentos de cerâmica manual, destacando-se um perfil em “S”, além da possível metade de um braçal de arqueiro em xisto, de superfícies perfeitamente polidas, arestas biseladas e apresentando uma perfuração escareada nas duas faces, podendo remeter para cronologias do Calcolítico/1.ª Idade do Bronze, mas também posteriores. Tendo em conta a pouco expressiva amostragem de materiais de superfície assinalada neste local, o seu enquadramento num horizonte do Bronze Final prendeu-se com a aparente ausência de líticos; com a observação dos fragmentos cerâmicos identificados, que, pelas suas pastas, sugestão de formas, a escassez relativa de bordos, se encaixam no padrão cultural dos povoados vizinhos; pela própria implantação e defensabilidade (natural e edificada) do povoado; e com a proximidade de outros povoados, indubitavelmente referentes ao Bronze Final (Castelo dos Mouros e Serra da Cela). Tendo em conta o presumível “fóssil director” ali encontrado (o braçal de arqueiro), a hipótese de uma ocupação mais antiga, poderia ser considerada. Todavia, de sublinhar o facto de não existir nenhum registo atribuível ao Calcolítico/1.ª Idade do Bronze nas imediações, devendo tratar-se, assim, de um achado avulso, ocasional. O povoado de Valongo, baptizado pelo topónimo mais próximo, dista cerca de 3 km do Castelo dos Mouros (a poente), cerca de 6 km do povoado do Risco (a poente), cerca de 3 A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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km do povoado da Serra da Cela (a sudoeste), cerca de 1.5 km do casal agrícola da Quinta do Picheleiro (a norte) e cerca de 5 km do sítio do Bico das Agulhões (a sudoeste), controlandoos intervisualmente e assumindo-se como o mais elevado vértice deste presumível complexo populacional. Contudo, não goza de uma intervisibilidade directa com a Serra da Cela e o Portinho, esta só seria possível a partir de um cabeço que surge a poente (Valongo II), a menos de 1 km, separado por um suave vale. Esta contígua elevação, denotando elevada defensibilidade natural, com várias cinturas ataludadas de afloramentos calcários, também documentou alguns fragmentos de cerâmica manual, o que pressupõe uma relação directa com o povoado de Valongo, enquanto extensão do seu domínio visual sobre a costa e a enseada do Portinho. A par do directo contacto visual sobre os povoados associados, a “atalaia” de Valongo controla todo o fértil vale que nasce na “Pré-Arrábida”, na Serra de São Luís, e “desagua” nas Terras do Risco, terrenos de elevado potencial agrícola, certamente integrados na área de influência do referido complexo populacional. O recurso ao termo “atalaia”, apesar de historicamente desadequado, ajusta-se funcionalmente, tanto que, e curiosamente, numa leitura posterior à experiência in loco, verificou-se que os investigadores do povoado de Trastejón (Serra de Huelva), para uma realidade similar, socorreram-se da mesma opção terminológica – “a este cerro lo denominamos Atalaya” (Hurtado et al., 2011, p. 33). Também na zona de Viseu, João Carlos de Senna-Martinez refere um povoado de “atalaia” do Bronze Final, no Cabeço do Cucão, Pedra Cavaleira (Senna-Martinez, 1993b, p. 144-145).
Fig. 50 – Contorno da muralha do povoado de Valongo (imagem Google Earth adaptada).
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Fig. 51 – Área de implantação do povoado de Valongo (I) e do seu “anexo de atalaia” (II) no extracto das folhas 454 e 465 da CMP esc. 1:25000.
Fig. 52 – O povoado de Valongo (I/II) e a sua relação com a envolvente paisagística e cultural (imagem Google Earth).
Fig. 53 – Povoado de Valongo (I) visto de sul (foto do R. Soares).
Fig. 54 – Panorâmica sobre a Pré-Arrábida e o Sado (foto do R. Soares).
Fig. 55 – Troço de muralha (foto do R. Soares).
Fig. 56 – Troço de muralha (foto do R. Soares).
Fig. 57 – Valongo I visto de Valongo II (foto do R. Soares).
Fig. 58 – Panorâmica de Valongo II sobre o Portinho e Serra da Cela (foto do R. Soares).
Fig. 59 – Alguns dos materiais observados à superfície no povoado de Valongo I (foto de R. Soares).
Fig. 60 – Fragmento de cerâmica manual - perfil em “S” (foto de R. Soares).
Fig. 61 – Fragmento de braçal de arqueiro (foto de R. Soares).
6.1.5. Quinta do Picheleiro – casal agrícola A menos de 1.5 km a norte do povoado de Valongo, foi identificado um pequeno núcleo de povoamento, definido na cota dos 70 m, sobranceiro a uma área de comprovado potencial agrícola (ver fig. 52). Registou-se a ocorrência de cerâmica manual, designadamente um fragmento de bojo com arranque de mamilo e um bordo simples, associados a um elemento de foice em sílex. O sítio foi recentemente identificado no âmbito dos trabalhos de prospecção para a Carta Arqueológica de Setúbal. Considerando as evidências no seu conjunto, poderá tratar-se de um pequeno casal agrícola, na linha dos povoados referidos por João Luís Cardoso para a região estremenha do Tejo (Marques e Andrade, 1974; Gomes, 1992, p. 107).
Fig. 62 – Área de implantação do “casal agrícola” da Quinta do Picheleiro no extracto da folha 454 da CMP esc. 1:25000.
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Fig. 63 – Fragmento de cerâmica manual - bordo simples (foto de R. Soares).
Fig. 64 – Fragmento de cerâmica manual com arranque de mamilo (foto de R. Soares).
Fig. 65 – Elemento de foice em sílex (foto de R. Soares).
6.1.6. Bico dos Agulhões – “atalaia” (?) Esporão na encosta sul da Arrábida, recortado pela escarpa sobranceira ao “Bico dos Agulhões” – um pequeno cabo definido entre a Serra do Risco e o Portinho da Arrábida. O sítio é chamado ao presente trabalho por uma recente entrada na base de dados Endovélico. A ficha de sítio refere uma ocupação da “Idade do Bronze/Idade do Ferro”: “Os materiais arqueológicos foram encontrados num caminho de terra batida que dá acesso às pedreiras, nos regos abertos pelas chuvas. Algumas cerâmicas aparecem fracturadas em conexão. No meio da vegetação existe maior concentração de pedras que poderão eventualmente corresponder a restos de estruturas ou apenas a afloramentos de calcário e brecha da Arrábida.
Um
pouco
mais
a
sul
foi
identificada
uma
lasca
de
sílex”
(http://arqueologia.igespar.pt/POC/?sid=sitios.resultados&subsid=2983934). No intuito de confirmar esta informação, o sítio tem sido alvo de recentes visitas, no âmbito da Carta Arqueológica de Setúbal e do presente trabalho. De facto, foi registada abundante cerâmica a torno, sobretudo moderna, alguma passível de um muito genérico enquadramento em cronologias da Idade do Ferro (ou mesmo Romano Republicano); além de observados alguns fragmentos de cerâmica a torno em conexão. Somente foi identificado um fragmento manual que, atendendo à proximidade dos povoados do Risco e da Serra da Cela, poderia corresponder ao Bronze Final, não descartando, contudo, uma produção da Idade do Ferro, ou mesmo calcolítica. Tendo em conta a referida cerâmica manual e os contextos arqueológicos das imediações, é forte a probabilidade de se tratar de um sítio do Bronze Final, com continuidade pela Idade do Ferro, faltando, porém e por hora, a sua confirmação. Mas, assim sendo, é de estranhar a grande desproporção entre cerâmica manual e a torno. Para estes sítios, a regra implicaria uma maior quantidade de cerâmica manual, relativamente à cerâmica a torno. Tendo em conta a referida desproporção, ocorrem alguns “paralelos”, particularmente no Alentejo e para época republicana – os chamados “castella”, “recintos torre” e “recintos ciclópicos”, muitos deles com implantações bem alcandoradas paisagisticamente. Admitindo esta hipótese, também faltam os seus “fósseis directores” (bordos de ânfora, cerâmica campaniense, as decorações estampilhadas, etc.). A confirmação de um povoado ainda não foi conseguida, apesar das repetidas tentativas, sobretudo nas poucas janelas de prospecção permitidas pela densa vegetação do local. De facto, existe um cabeço que reúne características para a implantação de povoamento, todavia, as prospecções têm sido inconclusivas. Seja como for, mesmo atendendo à fraca prospectabilidade do local, tudo indica que se trata de um sítio com escassa A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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entidade artefactual. Assim, na falta de mais informação e considerando a sua implantação paisagística, controlando visualmente a Serra da Cela e o Risco e com franca intervisibilidade com a “atalaia” de Valongo, fica a hipótese de se tratar apenas de um pequeno posto com funções de intercomunicação entre os povoados vizinhos.
Fig. 66 – Área prospectada no Bico dos Agulhões no extracto da folha 465 da CMP esc. 1:25000.
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6.1.7. Caetobriga (Setúbal) Por fim, Setúbal. Povoado vestibular da foz do Rio Sado, desenvolveu-se a partir de um porto abrigado na sua margem direita, numa pequena elevação circundada por uma área de sapal. A actual baixa da cidade implantou-se sobre um antropizado braço de rio, onde desaguava a Ribeira do Livramento, entre outras linhas de água hoje canalizadas, encontrando-se edificada num plano abaixo do nível médio das marés do Sado. As referências clássicas à Caetobriga pré-romana (a Caetobrix de Claudio Ptolomeu, apud Fabião, 2004, p. 63), se considerarmos a actual Setúbal como a correcta herdeira deste topónimo, documentam que o seu porto constitui um exemplo de continuidade até ao presente e relativamente à costa portuguesa, tanto na sua posição de litoralidade, como na exploração das condições de navegabilidade flúvio-marítimas (Blot e Blot, 2003, p. 40-42). O topónimo “Caetobriga” sugere uma fundação proto-histórica da povoação, persistindo, contudo, apesar de algumas suspeitas (Colina de Nossa Senhora da Saúde – Soares, 2000a, p. 117), um hiato no registo arqueológico, entre a ocupação sidérica e a cidade romana. O topónimo “Setúbal” apenas surgirá em 1235. Hoje, não parece remanescer grandes dúvidas relativamente à localização da antiga Caetobriga. Os trabalhos desenvolvidos pela equipa do MAEDS ao longo das últimas décadas, complementados por alguns recentes achados exumados na sequência de obras no centro histórico da cidade, têm vindo a reunir fortes elementos de prova arqueológica para esta velha questão, corroborando “a intuição de José Marques da Costa” (Arruda, 19992000, p. 92). Recorde-se que Ignácio Marques da Costa, no princípio do século XX, identificou uma necrópole romana no decorrer da construção do túnel do caminho-de-ferro entre Palhais e as Fontainhas, na Ladeira de São Sebastião, sendo os resultados das suas observações publicados apenas em 1966, por Carlos Tavares da Silva. Mais tarde, a partir de 1957, José Marques da Costa teve a oportunidade de “acompanhar” as grandes obras da rede de saneamento básico da cidade (1957-59), registando novos e inequívocos dados relativos à ocupação romana de Setúbal (Soares, 2000a, p. 101-106). O inestimável contributo destes pioneiros da Arqueologia da região permitiu silenciar, em definitivo, os partidários de uma fundação medieval da cidade, sendo os seus trabalhos prosseguidos, a partir dos anos de 1960, por Carlos Tavares da Silva. Em 1974, com a criação do MAEDS, até à presente data dirigido por Joaquina Soares, a investigação arqueológica da cidade ganhou uma dimensão sistemática, profissional, institucional e “editorial”, manifestada em diversos trabalhos, achados e publicações.
A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Segundo Tavares da Silva e Joaquina Soares e “de acordo com o estado actual dos conhecimentos [1986-2000 – sempre condicionados pela crónica problemática da arqueologia urbana], Setúbal nasce como entreposto comercial marítimo, no século VIII a.C. (Soares e Tavares da Silva, 1986), aberto aos contactos com o mundo fenício” (Soares, 2000a, p. 113). Na realidade, trata-se da evolução de um precedente povoado indígena do Bronze Final, revelando estreitos contactos com o mundo fenício. O povoamento proto-histórico implantouse na Colina de Santa Maria, uma suave elevação no quadrante nascente da actual cidade, de cota máxima na ordem dos 19 m, formando um istmo que dominava estrategicamente a antiga paisagem estuarino-lagunar e a foz do Sado. Foi em 1983 que se registaram, na área urbana da cidade, os primeiros vestígios enquadráveis na “Idade do Ferro orientalizante”, quando trabalhos arqueológicos, realizados na Travessa dos Apóstolos, em Santa Maria (1983-85), revelaram níveis de ocupação que, segundo os arqueólogos responsáveis (Tavares da Silva e Joaquina Soares do MAEDS), teriam tido início no século VII a.C., em cronologia tradicional (Soares e Silva, 1986), funcionando como porto de chegada para as frotas fenícias que então penetraram no Sado, rumo a Abul e Alcácer do Sal (Mayet e Silva, 2000). O sal estuarino e o cobre do interior alentejano terão constituído, muito naturalmente, mercadorias que justificaram o empreendimento marítimo destes povos até paragens sadinas. Embora os dados arqueológicos ainda sejam escassos e ténues, alguns indicadores de mudança, como a cerâmica, parecem indiciar uma “rápida assimilação das inovações económicas, tecnológicas e culturais orientalizantes” (Soares, 2000a, p. 113). As intervenções arqueológicas na Colina de Santa Maria permitiram considerar “três fases de ocupação sidérica” (ob. cit., p. 113-117): uma primeira fase, de primeiros contactos, situada entre os finais do século VIII e os inícios do século VII a.C., registou pouca dispersão material, dominado a cerâmica manual do Bronze Final regional (83.4%); uma segunda fase, similar à “fase III” do Castelo de Alcácer do Sal, fixada entre o século VII e o século VI a.C., já denotou uma boa expressão espacial, sugerindo uma “plena assimilação das inovações fenícias, oriundas do círculo do Estreito de Gibraltar” (Soares, 2000a, p. 116) – nomeadamente “cerâmica orientalizante de engobe vermelho”; por fim, uma terceira fase, “evolucionada”, definida entre o século V e o século IV a.C., atestada pela ocorrência de “cerâmica ibero-turdetana e de ânforas ibero-púnicas”. Em concordância com os investigadores do MAEDS, Ana Margarida Arruda refere que “os resultados obtidos nas escavações da Travessa dos Apóstolos indicam que a ocupação pré-romana da cidade de Setúbal foi marcada por um vincado orientalismo, bem A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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evidenciado no espólio cerâmico recolhido na totalidade das camadas correspondentes a essa ocupação. Contudo, as quantidades de cerâmicas manuais e, sobretudo, as suas características formais e decorativas não permitem esquecer que esse orientalismo incidiu sobre uma população com fortes raízes no Bronze final local” (Arruda, 1999-2000, p. 95). Por outro lado, a mesma autora, tendo em conta as naturais limitações dos dados produzidos a partir de intervenções em contexto urbano, sublinha ser difícil uma grande precisão nas datações relativas das diversas fases de ocupação detectadas, “assim, se a análise tipológica dos materiais da «Segunda» e «Terceira» fases permite uma aproximação relativamente segura sobre o âmbito temporal dessas ocupações, o mesmo não posso dizer sobre o que foi considerado a Primeira fase de ocupação de Setúbal” (ob. cit., p. 95). “A primeira fase de ocupação de Setúbal é, em meu entender, e com base nos materiais publicados, completamente impossível de datar de forma absoluta (...). O que me parece, no entanto, possível deduzir dos resultados das escavações levadas a efeito na Travessa dos Apóstolos em Setúbal é que o sítio estava já ocupado na primeira metade do I milénio a.C. Apesar de só existirem dados objectivos para a primeira metade do século VI a.C., não é impossível pensar que a ocupação sidérica remonte ao século VII a.C., em cronologia tradicional, dado que a primeira fase é anterior às camadas cujos materiais datam do século VI a.C.” (ob. cit., p. 96). Em suma: entreposto comercial desde a Idade do Ferro, aberto aos contactos mediterrâneos e contemporâneo do estabelecimento fenício de Abul A, fundado em meados do século VII a.C. (Mayet e Silva; 2000), Setúbal já se impunha como um verdadeiro e emergente centro urbano em época romana, com uma economia sobretudo assente na pesca, na produção de sal e na indústria conserveira piscícola. A cerâmica importada, “de feição fenícia ou paleo-púnica” (séculos VII-VI a.C. – Silva, 1990), exumada no subsolo urbano de Setúbal, particularmente na Travessa dos Apóstolos, assim como o posterior aumento da presença de cerâmica de características “orientalizantes”, correspondentes aos séculos VI e V a.C. (Silva, 1990), indicam a tendente precocidade dos contactos marítimos, estabelecidos por marinheiros provenientes do Mediterrâneo. Este comprovado interesse pela região, por parte de gentes de proveniências tão distantes, não deverá ser alheio ao relevante papel do sal produzido no estuário do Sado, realidade histórica e arqueologicamente bem documentada desde época romana, valorizando-se à escala europeia a partir do século XIII (Rau, 1984).
A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Fig. 67 – Área de implantação do núcleo proto-histórico de Caetobriga/Setúbal no extracto da folha 454 da CMP esc. 1:25000.
Fig. 68 – Materiais cerâmicos exumados na Travessa dos Apóstolos, na Colina de Santa Maria, em Setúbal, destacando-se os três primeiros fragmentos, de produção manual (seg. Silva e Soares, 1986, p. 135).
6.2.
As necrópoles e os “santuários naturais”
“... é sina a cegueira dos homens vivos não darem a conta certa de quantos fizeram o feito, mil vivos e cem mil mortos, ou dois milhões de suspiros que se ergueram do chão [...], como é que estes vivos não dão por nada, cuidam que estão sozinhos, que andam no seu trabalho de gente viva, quem morreu enterra-se, é o que julgam, os mortos vêm muitas vezes , ora uns, ora outros, mas há dias, é certo que raros, em que saem todos, [...] e olhando nós de mais longe, de mais alto, da altura do milhano, podemos ver [...] outros de quem não sabemos os nomes, mas conhecemos as vidas...” José Saramago, Levantado do Chão “(...) Duvido poder ser que se desfaça Com água clara, e branda a pedra dura Com quem assim se beija, assim se abraça. Mas ouço queixar dentro a Lapa escura, Roídas as entranhas aparecem Daquela rouca voz, que lá murmura (...)”. Frei Agostinho da Cruz, Elegia II
Este sub-capítulo é dedicado aos sítios de vocação mágico-simbólica. Entre estes, individualiza-se, pela sua excepcionalidade, o monumento funerário da Roça do Casal do Meio, pois trata-se do único edifício destinado ao culto dos mortos, até ao momento identificado na Arrábida do Bronze. Os demais sítios, aqui tratados, enquadram-se no âmbito das necrópoles e santuários em cavidades naturais, particularmente das “grutas-santuário”, tendo sido produzidos por acção da Natureza e explorados pelo Homem. Esta apropriação de uma paisagem diferenciada, notável ou exuberante, tem sido amiúde assinalada no carso da Arrábida, particularmente nas suas cavidades, com registos de ocupação que remontam ao Paleolítico, passando pela Idade do Bronze e chegando até aos nossos dias (a “lapa-capela” de Santa Margarida, por exemplo). Além da Arrábida, também algumas grutas da região da Península de Lisboa, do Maciço Calcário Estremenho e do Barrocal algarvio têm vindo a evidenciar espólios correspondentes ao Bronze Final, que por não se encontrarem associados a vestígios antropológicos excluem, à partida, a classificação de espaços funerários. Segundo alguns autores,
as
evidências
também
não
permitem
uma
atribuição
funcional
habitacional/quotidiana, tendo em conta cerâmicas, em muitos casos, de boa qualidade: pastas bem depuradas, paredes finas, formas elaboradas e elegantes, superfícies brunidas ou espatuladas, algumas apresentando ornatos brunidos com complexas gramáticas geométricas bicromáticas (Gomes e Calado, 2007, p. 150). Acresce o facto de estas cerâmicas se encontrarem, amiúde, associadas a outros materiais de carácter especial, particularmente artefactos metálicos. Todavia, estas considerações levantam alguns problemas, designadamente a total ausência de vestígios antropológicos nestes contextos, mesmo após a sua escavação, não exclui, necessariamente, a ocorrência de rituais funerários, nomeadamente de incineração ou mesmo de “despedida”, antes do lançamento dos corpos ao abismo marinho, por exemplo. Esta última hipótese “joga bem” com a disposição das grutas da Arrábida face ao mar, muitas A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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delas em planos elevados e escarpados, sobre-expostos ao Oceano. Esta possibilidade ganha sentido se tivermos em conta o facto de, até ao momento, e na Arrábida, os vestígios funerários não corresponderem à densidade do povoamento identificado. Posto isto, o melhor critério para uma atribuição funcional para estes sítios, e para o espólio neles contido, reside nos próprios sítios, isto é, locais excepcionais, de difícil acesso, longe dos recursos básicos de suporte à subsistência, insalubres, exíguos e de limitada mobilidade e habitabilidade, que, de per si, não parecem suportar outra classificação senão a de “grutas-santuário”. A procura destes locais ermos e inóspitos, para práticas de cariz mágico-simbólico, converte-os em “santuários naturais” subterrâneos: “onde os homens procuravam o contacto com o transcendente e as forças da fertilidade, capazes de originarem e de manterem a vida, ou de reproduzirem a cultura, tornando-se verdadeiras grutas-santuário, continuaram longa tradição que remonta, pelo menos, ao Paleolítico Médio, quando ali se desenvolveram os primeiros enterramentos e outras práticas de carácter ritual” (Gomes e Calado, 2007, p. 150). Neste sentido, o endocarso poderia configurar o “submundo uterino da fértil mãe Natureza”, da terra geradora de vida e transformadora pela morte, um umbilical espaço iniciático de eterno retorno, onde as águas subterrâneas simbolizariam um transcendente poder de purificação, infiltração e comunicação com o “além” – com os estranhos mistérios da morte. Estes ocos profundos, escuros, geralmente húmidos, exíguos e ornamentados por formações cársicas de grande beleza, designadamente estalagmites sugestivamente antropomórficas, documentam, desde a Pré-História, práticas mágico-simbólicas, numa aproximação às ingénitas forças da Natureza; ou na perspectiva de outros, palcos privilegiados da experiência xamânica (Williams, 2004 – the mind in the cave). Esta ideia parece ter tido continuidade nas antas, nas grutas artificiais e nos tholoi – o mesmo simbolismo em diferentes opções espaciais e arquitectónicas. O polimorfismo cultual do final da Idade do Bronze, em particular no actual território nacional, tem sido documentado numa grande diversidade de santuários rupestres, quer em grutas e abrigos, quer ao ar livre, sendo materialmente perceptível por meio de gravuras, pinturas e depósitos votivos. As “grutas-santuário” constituem um fenómeno de largo espectro em todo o Mundo. No contexto nacional, e até à data, tem sido a região da Península de Lisboa a registar um maior número de cavidades subterrâneas contendo materiais atribuíveis ao Bronze Final. Locais que, na sua maioria, e pela características já enumeradas, constituem potenciais A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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santuários cavernícolas. Mário Varela Gomes e David Calado referem uma série de prováveis santuários cársicos, correspondentes ao Bronze Final da região de Lisboa (Gomes e Calado, 2007, p. 152): a gruta da Ponte da Laje, Oeiras (Cardoso e Carreira, 1996); as grutas do Poço Velho, Cascais (Carreira, 1990-1992); a gruta do Correio-Mor, Loures; o Fojo dos Morcegos, Assafora, Sintra (Marques, 1971; Marques e Andrade, 1974); a gruta do Cabeço do Castelo, Maceira, Vimeiro, Torres Vedras (Zbyszewski e Viana, 1949); a Cova da Moura, Torres Vedras; o abrigo das Bocas, Rio Maior (Carreira, 1994). Por seu turno, o carso do Barrocal algarvio documentou, na Gruta de Ibn’Ammar (Mexilhoeira da Carregação/Lagoa) e na Gruta da Ladroeira Grande (Moncarapacho/Olhão), uma significativa quantidade de materiais atribuíveis ao final da Idade do Bronze. Ambas as cavidades foram publicadas, pela primeira vez, em 1850, por Charles Bonnet – Algarve (Portugal): description géographique et géologique de cette province. A Gruta de Ibn’Ammar situa-se na estuarina margem esquerda do Rio Arade, a cerca de 4 km de Portimão, tendo revelado vestígios arqueológicos de uma ocupação humana compreendida entre o Paleolítico Médio e o Período Medieval, sendo admissível considerar uma provável exploração sagrada durante o Bronze Final. Aberta em calcários do Jurássico, a gruta desenvolve-se ao longo de um complexo sistema cársico, apresentando várias aberturas, algumas das quais permitindo apertadas entradas: um sifão vertical, exposto numa depressão a cerca de 10 m acima do nível médio das águas do Arade e, praticamente ao nível da margem do rio, duas condutas forçadas tubulares, que nos conduzem a diversas salas bem marcadas pela hidrogénese, algumas inundadas periodicamente pelo fluxo das marés. Rui Mataloto, Rui Boaventura, Carl e Peter Harpsöe apresentaram, no 9.º Encontro de Arqueologia do Algarve, em 20 de Outubro de 2011, uma comunicação sobre – A ocupação da Idade do Bronze na Gruta de Ibn-Ammar (Lagoa). Esta investigação, ainda numa fase preliminar, tem por base a análise do espólio cerâmico exumado pelos Harpsöe, entre 1964 e 1966, em duas galerias do piso inferior da cavidade. Segundo os investigadores, o grosso dos materiais tratados enquadra-se num período relativo compreendido entre o Bronze Médio e os inícios do Bronze Final (3.º quartel do 2.º milénio/segunda metade do 2.º milénio a.C.). São, na sua maioria, cerâmicas comuns, “tigelas e vasos de pequena, média e grande dimensão, destinados à confecção e armazenamento de alimentos”, perfeitamente enquadráveis em contextos de habitat, não apresentando excepcionalidade que justifique uma utilidade ritual ou votiva; sendo ainda realçada a ocorrência de grandes contentores cerâmicos, alguns dos quais apresentando aspectos decorativos. As formas mais pequenas apresentam bom acabamento, espatulado ou brunido, sendo o acabamento mais grosseiro com o aumento das A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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dimensões. As decorações escasseiam: ornatos brunidos, incisões, cepillados e pequenos mamilos. A hipótese de eventuais práticas de comensalidade pode explicar a ocorrência de cerâmicas comuns, associadas a outras de melhor qualidade. Por outro lado, a utilização daquele espaço como abrigo sazonal, de apoio à exploração de recursos marinhos (marisqueiro), jogaria com os grandes vasos de armazenamento identificados. Ainda assim, os referidos investigadores admitem que, por hora, e tendo em conta as características específicas da gruta e a total ausência de restos antropológicos, a hipótese mais consensual e verosímil assenta numa utilização enquanto “gruta-santuário”, apontando, porém, para a necessidade de uma investigação de fundo para esta temática, particularmente nas cavidades identificadas nas penínsulas de Lisboa e de Setúbal. No contexto nacional, à escassez quantitativa de dados, que permitam uma melhor aferição dos processos deposicionais nestes contextos arqueológicos, acresce a pobreza ou total ausência de documentação publicada sobre as condições das jazidas identificadas e dos respectivos acervos artefactuais, com algumas excepções como o meritório contributo de Eduardo da Cunha Serrão na Lapa do Fumo (Sesimbra). A Gruta de Ibn’Ammar, com base na observação in loco efectuada pelo signatário do presente texto, não parece oferecer as mínimas condições de salubridade para um suporte habitacional. Desde logo, temos entradas e corredores pouco práticos, sendo necessário “gatinhar” para o seu interior. Depois, não nos podemos esquecer que o seu interior, com galerias abaixo do nível médio das águas do Arade, encontra-se sujeito a regulares inundações pelo fluxo das marés, realidade que, ao que tudo indica, também se verificaria durante épocas proto-históricas. No que respeita à Gruta da Ladroeira Grande, situa-se perto do cimo do Cerro da Cabeça ou de Moncarapacho, 2,5 km a norte daquela povoação, abrindo-se para o pequeno vale na sua vertente nascente. O Cerro da Cabeça atinge 249 m de altitude, dominando a panorâmica envolvente, alcançando, a sul, as planícies costeiras e o mar, apenas a 8 km. Desenvolve-se em calcários margosos e bio-compostos do Jurássico Superior, integrando um desenvolvido complexo cársico de que fazem parte numerosas cavidades subterrâneas, nomeadamente a Ladroeira Pequena, o Abismo Velho, o Abismo Novo, a Coluna, o Garrafão, o Algar da Medusa e a Pechinha, entre outras. Quanto ao espólio cerâmico identificado “as formas e o tratamento das superfícies, tal como os ambientes de cozedura e arrefecimento, permitem a atribuição do acervo descrito à segunda metade do II milénio a.C. (Idade do Bronze Final)” (Gomes e Calado, 2007, p. 148). A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Senna-Martinez, no que se refere ao Grupo Baiões/Santa Luzia, também admite uma ocupação de carácter ritual na sala 20 do complexo de galerias graníticas do Buraco da Moura de São Romão: “apresenta uma sequência estratigráfica que se estende desde um eventual Neolítico Final à Idade Média, facto que é único para a região” (Senna-Martinez et al., 193, p. 132); “a ‘utilização’ de BMSR-20 no Bronze Final, ao contrário do verificado no horizonte cultural estratigraficamente antecedente, não teve cariz doméstico, podendo tê-lo tido funerário ou ritual” (Senna-Martinez, 1993a, p. 118). Tendo sido excluída qualquer manifestação funerária, e considerando a totalidade dos dados disponíveis, uma interpretação de carácter ritual para os vestígios registados neste local ainda parece ser a mais coerente. De referir, ainda, que este local documentou uma percentagem de recipientes brunidos particularmente expressiva (83.8%), relativamente aos demais sítios estudados naquela área regional (ob. cit., p. 113). Também a Península de Setúbal/Arrábida tem vindo a registar algumas jazidas da Idade do Bronze, depositadas em grutas(-santuário?). Como veremos mais à frente, à Lapa do Fumo e à Lapa da Furada, poderão vir a acrescentar-se outras cavidades susceptíveis de uma utilização enquanto “santuário natural”. Refira-se, mais uma vez, que a região da Arrábida tem sido alvo, desde 2007, de uma intensa e sistemática investigação “arqueoespeleológica”, sendo de esperar novos sítios e mais informação acerca deste tema. Por fim, quando falamos em grutas, não nos referimos, necessariamente, a grandes cavidades, de entradas amplas e bem destacadas na paisagem. Muitas das grutas e lapas aludidas ao longo do presente texto foram de muito difícil detecção. 6.2.1. Monumento funerário da Roça do Casal do Meio O monumento funerário da Roça do Casal do Meio foi identificado nos inícios dos anos sessenta por Octávio da Veiga Ferreira e Georges Zbyszewski, sendo escavado dez anos depois, entre Outubro e Novembro de 1972, por Konrad Spindler e Veiga Ferreira. Localizase em Sesimbra, nas terras da Quinta do Calhariz (Casal do Meio/Terras do Risco), entre o sopé ocidental da Serra da Arrábida, propriamente dita, e a encosta norte da Serra do Risco (ver fig. 13). Foi classificado como Imóvel de Interesse Público em 1984 (Dec. N.º 29/84 de 25 de Junho). Trata-se de um monumento funerário contendo duas inumações, datadas recentemente por radiocarbono, resultando numa cronologia absoluta fixada entre os meados do séc. XI e os finais do séc. IX a.C. – 1004-835 cal a.C. (Vilaça e Cunha, 2005, p. 52), num período correspondente ao Bronze Final. De referir que estas recentes datações vieram corroborar a A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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datação relativa da escavação de Spindler, produzida a partir da acertada análise do espólio exumado. Publicada em francês e alemão (Spindler et al., 1973-74), a excepcionalidade da Roça do Casal do Meio ganhou um estatuto de referência europeia para o Bronze Final, tendo em conta a própria projecção internacional de Konrad Spindler, as tendências genéricas da época, as suas particularidades arquitectónicas, inéditas para o período e região em questão (ocidente peninsular), a sua expressiva implantação na paisagem, por apresentar um túmulo com duas sepulturas formais (os próprios enterramentos nesta época são raros) e a riqueza do espólio exumado. A escavação permitiu recuperar uma planta definida por um círculo com 11,5 m de diâmetro, com uma abertura voltada a este-sueste com 1,20 m, delimitada, exteriormente, por um espesso muro, composto por grandes blocos ortostáticos de calcário regional, com cerca de 2,50 m de largura e atingindo 1,20 m de altura. A abertura conduz a um estreito corredor, com 4,20 m de comprimento, que desemboca numa câmara funerária central, de planta subcircular e com um diâmetro de base de 3,3 m, supondo uma cobertura original em “falsa cúpula” (Silva e Soares, 1986, p. 116). Segundo Richard Harrison (Harrison, 2007), trata-se de um tholos calcolítico, entretanto arruinado, e que na Idade do Bronze teria sido esvaziado dos originários destroços e conteúdos, recebendo um reboco de argila no interior para acolher os enterramentos; a cúpula não teria sido reconstruída, sendo os enterramentos selados com um tumulus simples, composto por terra e pedras. Genericamente, e em termos arquitectónicos, todos os autores observaram as semelhanças deste (re)monumento funerário com os de “falsa cúpula” calcolíticos. Ainda assim, apesar de todas as dúvidas publicadas pelos seus escavadores, estes fixaram-se nos paralelos então conhecidos – os protótipos do Mediterrâneo Oriental, identificados em Chipre, no Egeu, na Sardenha e na Sicília. Os autores assumiram, assim, a hipótese da estrutura, e do seu conteúdo antropológico e material, serem coevos e correspondentes a cronologias do Bronze Final, sobretudo por não terem identificado materiais calcolíticos durante a escavação. Por outro lado, Spindler considerou que os construtores e defuntos teriam origens exógenas, tanto mais, que à época, ainda não tinha sido localizado, na envolvente desta necrópole, um povoado contemporâneo das inumações. As escavações revelaram dois indivíduos, estudados e publicados por G. Gallay (1973): um primeiro na zona sudoeste da câmara, sepultado directamente sobre o solo, em decúbito dorsal e segundo uma orientação noroeste-sueste, com a cabeça virada para sueste e a face para norte; e um segundo, na zona noroeste da câmara, depositado sobre uma banqueta A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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de argila com uma altura de 25 cm, jazente sobre o seu lado direito, em posição contraída, com a cabeça para nascente e a face virada a norte. Os
indivíduos
faziam-se
acompanhar
de
vários
artefactos
de
prestígio,
designadamente objectos de bronze: duas pinças, um anel, um colchete de cinturão e uma fíbula de enrolamento no arco, com braços iguais, mola simples, fuzilhão recto e descanso. Além destes, de destacar um pente cuneiforme de marfim. Trata-se, portanto, de um conjunto artefactual bastante homogéneo, enquadrado no horizonte da cerâmica de “ornatos brunidos” do Bronze Final, a que se associam objectos em bronze de largo espectro cronológico e geográfico, recorrentes por todo o Mediterrâneo e produzidos localmente (Harrison, 2007, p. 76). No que respeita à fíbula, é tipologicamente semelhante a outros seis exemplares identificados no nosso território (no “Mundo Baiões/Santa Luzia”) – “o tipo mais antigo e mais comum de fíbula peninsular é o de “enrolamento no arco” (ou Roça do Casal do Meio, Sesimbra)” (Senna-Martinez, 2010, p. 19). Esta fíbula aponta para paralelos sicilianos, sendo por vezes confundida com as “fíbulas de cotovelo” – em Cassibile datam-se, convencionalmente, do século XII a.C. (Senna-Martinez, 2010, p. 19). Quanto ao pente de marfim, tendo em conta o suporte material em que foi produzido, aponta para uma feição exógena de origem mediterrânea norte-africana (Silva e Soares, 1986, p. 121). Relativamente às pinças, têm vindo a ser identificados alguns paralelos em contextos do Bronze Final do Ocidente Peninsular, por exemplo em povoados como o Castro dos Ratinhos (Alentejo – Berrocal-Rangel e Silva, 2010), Monte do Frade (Beira Interior – Vilaça, 1995; 2005) e Fraga dos Corvos (Trás-os-Montes – Senna-Martinez et al., no prelo) e na necrópole do Casalão, em Sesimbra (Serrão, 1994, p. 58; Fabião, 1992, p. 141-143; Calado et al., 2009, p. 31) – um conjunto de sepulturas da 1.ª Idade do Ferro, contendo alguns objectos de bronze na tradição do Bronze Final da Roça do Casal do Meio (pinça, mola espiralada de fíbula e anel). As pinças e o pente remetem-nos para cuidados pessoais e de aparência do homemguerreiro da Idade do Bronze, provavelmente empregues na definição das suas iconográficas barbas. De recordar que, objectos como pinças, pentes e espelhos (entre outros, de índole marcial) surgem amiúde representados nas estelas do Bronze do Sudoeste, particularmente no sul de Portugal. Para alguns autores, estas representações fazem eco de um modelo social fortemente hierarquizado, de tipo “chefado”. Este modelo parece manifestar-se, da mesma forma, na Roça do Casal do Meio, pois, além do espólio, há que sublinhar o facto de, não obstante a monumentalidade da sepultura, apenas terem sido registadas duas inumações, o que aponta para uma evidente distinção destes indivíduos – heróis fundadores? líderes A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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guerreiros? “comerciantes ou mesmo missionário”? (Cardoso, 2000, p. 65), ou homens “pertencentes a uma classe sacerdotal em crescente afirmação”? (Cardoso, 1998, p. 31). Também não será de estranhar a total ausência das armas e dos escudos, frequentemente figurados nas estelas do Sudoeste. A deposição de armas, em sepulturas do Bronze Final do ocidente peninsular, é relativamente rara, havendo uma tendência, sim, para ocorrerem em depósitos rituais, designadamente em grutas, fendas e leitos de rio (Vilaça e Cunha, 2005, p. 55). No que respeita ao espólio cerâmico, documentaram-se apenas três recipientes: um vaso bicónico de fundo plano, registado no interior da câmara funerária, com 39 cm de altura, apresentando bordo simples, sem espessamento e lábio convexo, conservando, ainda, na zona externa do bojo, vestígios de reticula brunida de traço fino – “as características decorações de “ornatos brunidos”, produzidas por pontas rombas, provavelmente de madeira, constituídas por finas caneluras definindo motivos reticulados de natureza exclusivamente geométrica” (Cardoso, 1998, p. 31); uma taça de carena de ombro, registada no corredor, à entrada da câmara, de fundo externo ligeiramente côncavo, apresentando uma pega vertical perfurada, aplicada entre o bordo e a carena; e oito fragmentos de uma outra taça de carena de ombro, de fundo aplanado, apresentando mamilo perfurado verticalmente, aplicado sobre a carena (Calado, 1993d, p. 354). Os oito fragmentos foram registados de forma dispersa sobre o monumento, integrando os materiais da mamoa (Harrison, 2007, p. 70). Segundo Richard Harrison, estes fragmentos não partilham das mesmas características de fabrico dos outros dois recipientes referidos, admitindo, contudo, um estilo e produção locais para os três exemplares identificados (Harrison, 2007, p. 71, 76). Estamos perante grandes recipientes de armazenamento, destinados, presumivelmente, à deposição ritual de alimentos (Calado, 1993, p. 354). Ainda acerca do espólio votivo, resta referir os vestígios osteológicos de duas cabras e de dois carneiros, depositados com carne aderente (Spindler et al., 1973-74; Silva e Soares, 1986; Vilaça e Cunha, 2005; Harrison, 2007). A Roça do Casal do Meio insinua, assim, o grau de diferenciação social atingido pelas comunidades do Bronze Final da região, parte da “placa giratória” estremenha. Esta relação regional é aparentemente documentada pela ocorrência, por um lado, de elementos de cariz mediterrâneo, como a fíbula e o pente da Roça do Casal do Meio; e, por outro lado, por artefactos de origem atlântica, como as peças de bronze de “Alfarim” e das Pedreiras – machados de alvado e foice (Silva e Soares, 2006, p. 43). João Luís Cardoso, em 2004, a partir das suas observações no tholos do Cerro do Malhanito (Alcoutim), e na continuidade do que já vinha a ponderar há algum tempo, admite A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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poder tratar-se de um reaproveitamento de um monumento calcolítico, tendo em conta a “simplicidade arquitectónica” da sua planta e por se enquadrar nos paralelos estremenhos de tholoi (Cardoso, 2004b). Quanto à total ausência de materiais atribuíveis ao Calcolítico, é de considerar uma provável acção de limpeza do monumento, aquando do seu reaproveitamento (Vilaça e Cunha, 2005, p. 53, cf. Cardoso, 2004b; Harrison, 2007, p. 65). Recorde-se, a este propósito, que já em 1986, Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares denunciavam semelhanças arquitectónicas com os tholoi identificados no nosso território (Silva e Soares, 1986, p. 116); enquanto Ana Margarida Arruda também reconhece, “na sua globalidade, uma vaga proximidade formal e de soluções construtivas com os monumentos megalíticos de tipo tholos” (Arruda, 2008, p. 362). Raquel Vilaça, em 2005, recupera uma questão que a investigação há muito vinha a evitar: “será o monumento contemporâneo dos enterramentos, ou trata-se de uma estrutura antiga reaproveitada? E, sendo-lhe anterior, que anterioridade é essa?” (Vilaça e Cunha, 2005, p. 53). A investigadora de Coimbra, embora reservadamente, não se vinculando às hipóteses em causa, refere, por um lado, a constatação estratigráfica dos escavadores, relativamente ao facto dos enterramentos não terem sido realizados logo após a construção do monumento, o que abona a favor da hipótese do reaproveitamento de um tholos do Calcolítico durante o Bronze Final; por outro lado, recorda os oito fragmentos de uma taça carenada do Bronze Final, registados incorporando “as camadas de construção do monumento”, um argumento importante (senão o único) para os defensores de um empreendimento arquitectónico dos finais da Idade do Bronze (ob. cit., p. 53). Ora, posto isto, e partindo das dúvidas e incoerências suscitadas pela investigação desde a descoberta deste monumento, Richard J. Harrison avança com um cuidado trabalho de revisão e de síntese de dados inéditos da escavação de Spindler, propondo uma nova interpretação: “a new interpretation, that the graves were placed inside a much older Copper Age Tholos after it had been cleaned out. They are not burials of immigrants from Sicily in a mock-up of a passage grave” (Harrison, 2007, p. 65). Harrison afirma, logo à partida, que o monumento da Roça do Casal do Meio atraiu a atenção como um raro exemplo dos ricos enterramentos do Bronze Final, num monumento megalítico único, permanecendo, desde 1973, como uma destacada anomalia na Idade do Bronze atlântica (ob. cit., p. 65). A consequente discussão rapidamente sanou, com a generalizada tendência em aceitar que o monumento, os enterramentos e o respectivo espólio seriam todos contemporâneos e correspondentes ao Bronze Final, mesmo apesar de todas as dúvidas equacionadas pelos próprios escavadores. A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Posto isto, Harrison levanta uma questão: porquê, depois de 30 anos de investigação arqueológica, ainda não foi identificado, até à data (2007), um efectivo paralelo para a Roça do Casal do Meio? Cada ano que passa, este sítio torna-se ainda mais peculiar e incomum – “these anomalies persuaded me to reconsider the site and the two burials from a new perspective” (ob. cit., p. 65). Após uma atenta revisão dos dados disponíveis da escavação, sobretudo dos inéditos, e reconhecendo a relativa qualidade e rigor da escavação, mesmo segundo os padrões actuais, Harrison identifica algumas falhas e incoerências na publicação de 1973. Assim, e contrariando as interpretações de Spindler, avança determinado com a proposta de que “os hierarcas que foram aqui sepultados, não eram estranhos numa terra estranha. Eram indígenas. Elites nativas” (Calado et al., 2009, p. 28, cf. Harrison, 2007). Neste seguimento, coloca duas hipóteses interpretativas para a génese fundacional da Roça do Casal do Meio: “a primeira é que a singularidade do monumento se explica pelo facto de ser o reaproveitamento de um tholos, do Neolítico Final/Calcolítico, por populações da Idade do Bronze, o que levou à segunda hipótese que é da existência de um povoado do Neolítico final/Calcolítico, os construtores do tholos e de que os indivíduos sepultados da Idade do Bronze não vieram de fora mas que estavam associados a um povoado da Idade do Bronze, na área da Roça do Casal do Meio” (Calado et al., 2009, p. 47, cf. Harrison, 2007). Na verdade, um dos principais contributos deste autor foi ter reunido argumentos suficientemente fortes em defesa de uma das leituras alternativas que tinha sido, à partida, descartada pelos próprios escavadores: um tholos do Calcolítico, reutilizado pelas populações do Bronze Final, quase 2000 anos depois da sua construção e utilização primárias – “with this new sequence in hand, it is now possible to restore the Tholos monument to the Late Copper Age where it belongs, and see the Late Bronze Age materials in a new light” (Harrison, 2007, p. 75). “Como consequência do trabalho do referido autor inglês, a questão que se colocava era, desde logo: onde moravam então esses indígenas?” (Calado et al., 2009, p. 28). Ora, nos já referidos trabalhos de prospecção arqueológica, desenvolvidos entre 2007 e 2009 no âmbito da Carta Arqueológica de Sesimbra, foi possível identificar, nas imediações do monumento funerário, um povoado do Neolítico Final/Calcolítico (o povoado dos Ouriços – Calado et al., 2009, p. 99), achado que jogaria bem com a primeira hipótese proposta por Harrison – “os possíveis construtores do primeiro monumento funerário” (ob. cit., p. 47). Contudo, além desta descoberta, foi definida uma imensa área de povoamento, atribuível ao Bronze Final, com cerca de 100 ha e descrevendo um arco de círculo junto ao monumento. A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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A investigação antropológica dos vestígios osteológicos exumados na Roça do Casal do Meio permitiu caracterizar, de certa forma, e tendo em conta a amostragem, o homem que povoou a Arrábida durante o Bronze Final – “para além dos artefactos, há, naturalmente, homens, organizados de forma específica, vivendo num dado espaço, seguindo padrões de comportamento mutuamente reconhecíveis, portadores de signos de identificação no complexo comportamento social das sociedades humanas” (Gonçalves, 1993, p. 188). A insuficiência de dados de escavação não tem permitido grandes deduções antropológicas para a região em causa, destacando-se os trabalhos desenvolvidos a partir dos vestígios osteológicos da Lapa do Bugio (Isidoro, 1964) e das grutas artificiais da Quinta do Anjo (Bübner, 1979), ambos caracterizadores do Homem do Calcolítico. No que diz respeito ao Homem do Bronze Final, Raquel Vilaça e Eugenia Cunha publicaram, em 2005, um texto de revisão e síntese dos dados arqueológicos e antropológicos, relativos às inumações da Roça do Casal do Meio – A Roça do Casal do Meio (Calhariz, Sesimbra): novos contributos (Vilaça e Cunha, 2005). Trinta anos após o primeiro estudo de G. Gallay (Gallay, 1973), as investigadoras concluíram tratar-se de dois indivíduos adultos do sexo masculino, um mais jovem, com uma idade entre os 20 e os 40 anos, e outro mais velho, entre os 40 e os 50 anos. Ambos os indivíduos apresentaram severo desgaste dentário, sem patologias orais associadas. Os ossos dos membros inferiores e superiores dos dois sujeitos indiciaram uma assinalável robustez, com grande desenvolvimento das zonas de inserção muscular, sugerindo um esforço físico repetido ao longo de vários anos, estimando-se uma altura de 1,70 m para um deles – uma estatura média/alta. No que respeita ao chamado “Síndrome do Cavaleiro”, os ossos da bacia e fémures não ofereceram informação conclusiva, contudo, um dos indivíduos patenteou alguns indícios de ter montado a cavalo com alguma frequência. A avaliação acerca do grupo populacional de origem também não foi conclusiva, pelo facto dos ossos da face se encontrarem bastante fragmentados. Parâmetros como o índice nasal e facial poderiam estimar a origem geográfica destes indivíduos. “Assim, os inumados não parecem ser exógenos, mas indígenas, podendo defender-se que os próprios construtores seriam também nativos (...). Mas estes indígenas não seriam certamente uns indígenas comuns, e poderiam fazer parte das elites locais que, de uma forma ou de outra, participaram e tiveram papel preponderante nas redes de intercâmbios que ligaram o Atlântico e o Mediterrâneo durante o Bronze Final” (Arruda, 2008, p. 361-362).
A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Fig. 69 –Localização do monumento funerário da Roça do Casal do Meio no extracto da folha 465 da CMP esc. 1:25000.
Fig. 70 – Reconstituição hipotética da fase I da Roça do Casal do Meio (seg. Artur Ramos, in Calado et al., 2009, p. 16).
Fig. 71 – A Roça do Casal do Meio virada a nascente (foto de R. Soares).
Fig. 72 – Entrada da câmara funerária (foto de R. Soares).
Fig. 73 – A Roça do Casal do Meio e a Serra do Risco (foto de R. Soares).
Fig. 74 – Reconstituição hipotética da Roça do Casal do Meio (seg. Spindler et al., 1973-74).
Fig. 75 – Em cima, plano geral de todo o monumento depois de escavado; em baixo, plano simplificado do monumento (seg. Harrison, 2007, p. 66-67).
Fig. 76 – Plano do nível inferior do monumento onde foram depositados os dois indivíduos e o respectivo espólio votivo (seg. Harrison, 2007, p. 70).
Fig. 77 – A posição exacta dos objectos exumados junto dos dois indivíduos (seg. Harrison, 2007, p. 71).
Fig. 78 – Os três recipientes cerâmicos exumados no monumento funerário da Roça do Casal do Meio (seg. Harrison, 2007, p. 72).
Fig. 79 – Vaso bicónico de fundo plano, exumado no interior da câmara funerária - in Museu Geológico (foto de R. Soares).
Fig. 80 –Taça de carena de ombro com pega vertical perfurada, exumada no corredor, à entrada da câmara funerária - in Museu Geológico (foto de R. Soares).
Fig. 81 – Reconstituição a partir de oito fragmentos de uma taça de carena de ombro, registados na mamoa do monumento - in Museu Geológico (foto de R. Soares).
6.2.2. A Lapa do Fumo e os “ornatos brunidos” – “gruta-santuário” (?) Foi em 30 de Agosto de 1956 que Eduardo da Cunha Serrão visitou pela primeira vez a Lapa do Fumo, reconhecendo, desde logo, o seu “grande interesse arqueológico” (Serrão, 1958, p. 177). De facto, esta foi a primeira gruta arqueológica e a primeira estação préhistórica, pós-paleolítica, identificada no concelho de Sesimbra. Trata-se de uma cavidade cársica, situada cerca de 3 km a oeste de Sesimbra, na Serra dos Pinheirinhos, apresentando uma galeria aberta em calcários do Jurássico, com sensivelmente 70 m de comprimento, na cota dos 190 m de altitude. Cunha Serrão, na qualidade de colaborador do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, mandatado pela presidência da Câmara Municipal de Sesimbra, decide avançar para a investigação desta importante jazida. Foi assim que, no Verão de 1957, deu início à sua escavação – “começando por abrir um quadrado com 2 metros de lado, 8,5 metros da entrada, que foi explorado por camadas de 20 cm (não tendo encontrado estratigrafia suficientemente esclarecedora na primeira sondagem, procedi à escavação da parte restante por camadas arbitradas), até encontrar um chão estalagmítico que, neste local e até onde o pude reconhecer, se mostrou estéril” (ob. cit., p. 177). A escavação revelou uma exemplar sequência estratigráfica e um rico e diversificado espólio, atribuível a cronologias compreendidas entre o Neolítico Antigo e o Período Islâmico: “além dos restos ósseos de vários indivíduos sepultados, se recolheram artefactos de interesse, tais como vários instrumentos e armas de sílex, de pedra polida, de osso e de cobre ou bronze, objectos de adorno e vários ídolos-placas, de ardósia. Mas a cerâmica é a nota mais interessante desta estação, pois, nos 4 m2 de terreno explorados num só quadrado – o n.º 1 –, encontrei cerca de 2.000 fragmentos que pertenceram a uns 200 vasos que podem classificar-se em pelo menos 11 tipos cerâmicos distintos” (ob. cit., p. 177-178). Entre
estes
fragmentos,
Cunha
Serrão
isolou
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fragmentos
cerâmicos,
correspondentes a 20 vasos diferentes, reunindo um conjunto de características tipológicas e decorativas até então desconhecidas – os “ornatos brunidos” – “fabricada sem recurso ao torno rápido; superfície exterior polida (às vezes também a interior) sugerindo a aplicação de um engobe; ornatos geométricos (praticamente nunca curvilíneos), produzidos pela passagem de brunidores (uns mais largos do que os outros) nas paredes dos vasos, antes do cozimento; ornamentação nas paredes exteriores em quase todos os exemplares portugueses, e no interior em quase todos os exemplares espanhóis (curiosa diferenciação); distribuição geográfica na P. Ibérica: principalmente ao Sul do Tejo e na Andaluzia” (Serrão, 1975, p. 214-215). Peças de excelente qualidade, de formas compósitas bastante elegantes, A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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apresentando, em alguns casos, um exuberante barroquismo decorativo, “consideradas justamente o apogeu das produções cerâmicas, de fabrico manual, quando começavam a chegar, ao nosso território, os primeiros exemplares produzidos com uma tecnologia revolucionária, oriunda do Próximo Oriente: a roda de oleiro” (Calado et al., 2009, p. 27). De facto, o conjunto cerâmico com ornatos brunidos da Lapa do Fumo foi o primeiro do seu género a ser divulgado em Portugal, de forma bastante sistemática e aprofundada para a época. Até então, apenas eram conhecidos alguns escassos fragmentos provenientes do tholos do Monge (Sintra) e da Gruta da Maceira (Torres Vedras) (Silva e Soares, 1986, p. 127), que, pela ausência de paralelos, foram atribuídos a cronologias do Neolítico, Calcolítico e Idade do Bronze. Na sequência da publicação dos trabalhos de Cunha Serrão na Lapa do Fumo, e de outras escavações em jazidas do Bronze Final e da 1.ª Idade do Ferro, na Andaluzia, na Estremadura portuguesa, no Alentejo e no Algarve, proliferaram os arqueossítios com registos de cerâmica com ornatos brunidos. Segundo Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares, é legítimo “aceitar que esta cerâmica se tenha desenvolvido na Estremadura durante o Bronze final, entre o século IX e os séculos VIII/VII a.C., constituindo aqui um centro paralelo ao que simultaneamente se formara na Andaluzia. Destes centros teriam irradiado influências para outras zonas peninsulares, nomeadamente para o Alentejo e Algarve, províncias até então ocupadas pela Cultura do Bronze do Sudoeste” (Silva e Soares, 1986, p. 127-128). A descoberta do monumento funerário da Roça do Casal do Meio, contendo exemplares de cerâmica com “reticula brunida”, permitiu aferir, pela primeira vez, a cronologia relativa destas cerâmicas, pelo menos a nível regional. Cunha Serrão concluiu que os enterramentos da Lapa do Fumo eram enquadráveis nos meados do 2.º milénio a.C. – “Bronze Médio” (Serrão, 1959, p. 345), todavia, as cerâmicas correspondentes ao Bronze Final não se encontraram estruturadamente associadas a restos antropológicos. Tendo em conta o seu reconhecido rigor metodológico, resta-nos considerar a hipótese de estarmos perante deposições votivas numa “gruta-santuário” do Bronze Final (Gomes e Calado, 2007, p. 152) – “ainda não pude averiguar com segurança o motivo da sua presença, mas ocorre-me que poderia muito bem ser por razões de ritual religioso, se em certas épocas, a Lapa do Fumo foi tida na conta de gruta sagrada onde se iriam fazer oferendas e talvez sacrifícios” (Serrão, 1959, p. 347). Nesta linha, João Luís Cardoso entende que as cerâmicas com ornatos brunidos da Lapa do Fumo “corresponderiam a oferendas fúnebres ou, em alternativa, a deposições relacionadas com santuário rupestre, atendendo à dificuldade de se poderem relacionar com quaisquer sepulturas, hipótese que, embora A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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carecendo de demonstração, é plausível” (Cardoso, 1998, p. 31). As razões do (re)aproveitamento das grutas da região estremenha, durante o Bronze Final, deverão prenderse com a utilização destas “como prováveis santuários rupestres, mais do que para necrópoles e, muito menos, habitação” (Cardoso e Cunha, 1995, p. 55). António Monge Soares (Soares, 2005, p. 142), com base em observações efectuadas em treze povoados identificados na margem esquerda (portuguesa) do Guadiana, fundados durante o Bronze Final e abandonados entre os séculos VIII e VII a.C., antes de qualquer manifestação atribuível à 1.ª Idade do Ferro, propõe a existência de um “estilo” regional personalizado para as cerâmicas de ornatos brunidos identificadas (ob. cit., p. 141). Ainda que escassas, elas constituem um dos elementos da cultura material transversais aos arqueossítios em causa, cujas gramáticas geométricas se caracterizam pelo barroquismo, variedade e complexidade dos seus motivos. O investigador verificou que esta tipologia cerâmica é relativamente residual no conjunto artefactual recolhido nos diversos sítios estudados, com excepção do povoado de Santa Margarida onde foram registados cerca de 50 exemplares – “Santa Margarida é constituído por três núcleos, separados entre si por cerca de uma centena de metros e, em todos eles, a cerâmica, único tipo de artefacto aí recolhido, aparece concentrado numa zona restrita” (ob. cit., p. 142). A referência a este sítio importa no sentido em que este parece estabelecer uma relação especial com a água, pois “implanta-se entre dois cursos de água e existe uma fonte de água permanente na sua vizinhança imediata” (ob. cit., p. 142). Esta evidência, associada à excepcional quantidade de cerâmica de ornatos brunidos aí recolhidas, contrariamente aos demais sítios da região, constituindo um conjunto artefactual exclusivamente cerâmico, e tendo em consideração o que tem sido proposto sobre a função e significado destas cerâmicas, quer para o Sudoeste espanhol (Torres Ortiz, 2002), quer para as áreas dos estuários do Tejo e do Sado (Cardoso, 1996), será de admitir, para o sítio de Santa Margarida, “um cunho ritual (santuário rupestre?). De igual modo, se poderá inferir a ligação da cerâmica de ornatados brunidos a actos rituais” (Soares, 2005, p. 142). Por fim, de destacar o pioneirismo metodológico de Eduardo da Cunha Serrão. Em 1958, na qualidade de membro da comissão organizadora do I Congresso de Arqueologia, Cunha Serrão deslocou-se a Inglaterra para conhecer, nos campos de trabalho ingleses, as mais recentes teorias, técnicas e métodos de escavação, no intuito de suprir a carência de elementos de fonte nacional. Os autores que no seu entender desenvolviam os princípios fundamentais da boa técnica de escavação eram: Sir Mortimer Wheeler, o Professor R. J. C. Atkinson e a Dr.ª Kathleen M. Kenyon. Estes partilhavam princípios que condenavam A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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abertamente o método da trincheira. Nesta passagem por Inglaterra, Cunha Serrão ainda visitou o Council for British Archaeology, onde recolheu importante informação bibliográfica. No regresso a Portugal, aplicou o Método de Wheeler pela primeira vez, em 1956, na exploração do povoado neolítico da Parede (Cascais). Em Agosto de 1957 recorreu novamente a este método, desta feita em contexto de gruta, na exploração da Lapa do Fumo, tendo obtido resultados exemplares, especialmente no que respeita à referenciação efectuada através do registo tridimensional de todo o espólio. A escavação da Lapa do Fumo revelou uma excepcional sequência estratigráfica, de grande riqueza arqueológica (cultural e cronológica), permitindo aferir dados de referência para ulteriores investigações e apontando novas abordagens de estudo.
Fig. 82 – Corte estratigráfico da Lapa do Fumo, destacando-se a camada 2 pela predominância de cerâmicas do “Bronze avançado e final” e a área “O.b” onde foi registado o grosso das cerâmicas com ornatos brunidos (seg. Serrão, 1994, p. 76).
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Fig. 83 –Localização da Lapa do Fumo/Serra dos Pinheirinhos no extracto da folha 464 da CMP esc. 1:25000.
Fig. 84 – A situação da Lapa do Fumo relativamente ao Cabo Espichel (imagem Google Earth).
Fig. 85 – Interior da Lapa do Fumo (foto de R. Soares).
Fig. 86 –Área de testemunho reservada por Cunha Serrão (foto de R. Soares).
Fig. 87 – Aspectos de concrecionamento (foto de R. Soares).
Fig. 88 – Perfis de alguns recipientes com ornatos brunidos da Lapa do Fumo (seg. Serrão, 1994, p. 80).
Fig. 89 –Cerâmica com ornatos brunidos da Lapa do Fumo (seg. Serrão, 1975).
Fig. 90 –Fragmento de taça com ornatos brunidos da Lapa do Fumo (seg. Serrão, 1994, p. 79).
Fig. 91 – O fragmento da taça com ornatos brunidos da fig. 90 (foto de R. Soares).
Fig. 92 – Machado de bronze da Lapa do Fumo – “Bronze Médio” (foto de R. Soares).
6.2.3. Lapa da Furada – “gruta-santuário” (?) Trata-se de uma cavidade cársica situada na Serra da Azóia, em Sesimbra, na paisagem sul do Cabo Espichel, a cerca de 600 m da aldeia da Azóia. Também é localmente conhecida pelo microtopónimo de “Lapa do Piolho”. Aberta na cota dos 159 m, em unidades sedimentares do Jurássico Médio (J2 pe), esta cavidade fóssil desenvolve-se ao longo de uma junta de estratificação, com um desnível semi-vertical de - 43 m, segundo uma orientação na tendência dos 210º, ocupando uma área total de aproximadamente 409 m2 e arrumando-se em várias galerias dispostas em pelo menos três patamares de profundidade. O primeiro patamar/galeria comunica com o exterior através de uma pequena entrada vertical “bífida”, com cerca de 1 m x 1,50 m, produzida pelo cruzamento de uma diaclase com a junta de estratificação. A descida conduz à penumbra de uma pequena sala vestibular, com aproximadamente 50 m2, área onde se realizou a escavação arqueológica. Esta sala de entrada comunica, por sua vez, com uma outra, de maiores dimensões, por onde se pode descer para o nível inferior da cavidade, através de um tramo vertical de 12 m. Neste patamar inferior abrese a maior galeria da cavidade, com uma área aproximada de 110 m. A gruta continua a desenvolver-se até aos 43 m de profundidade, estreitando ao longo de uma fenda que acaba por impossibilitar a progressão. A primeira referência bibliográfica à Lapa da Furada deve-se a Eduardo da Cunha Serrão (Serrão, 1962), partindo da informação dos seus “achadores”: Rafael Monteiro, Duarte Mafra e Manuel Cabrita Ribeiro Cruz. O autor atribui à estação uma cronologia do Bronze Médio. Mais tarde, na sua Carta Arqueológica de Sesimbra (Serrão, 1973; 1994), Cunha Serrão faz referência a trabalhos de prospecção, desenvolvidos entre 1957 e 1958, nos quais foram registados diversos fragmentos cerâmicos atribuíveis ao Calcolítico e à Idade do Bronze, além de um importante espólio antropológico. Contudo, apenas em 1992, com João Luís Cardoso, foram encetados trabalhos de escavação arqueológica, limitados à sala de entrada (Cardoso, 1993). Estes trabalhos justificaram uma nova campanha de escavação, em 1994, possibilitando, segundo o autor, a integral conclusão da exploração arqueológica da referida área (Cardoso e Cunha, 1995). A estratigrafia antrópica permitiu isolar 4 Camadas, descritas em 3 cortes, numa área quadricular de 20 m2, destacando-se, na Camada 2, com 20 cm, um depósito contínuo e homogéneo de ossos humanos desconexos, associados a materiais neolíticos e do “Bronze Médio”. Tal evidência sugeriu, segundo os autores, um único e rápido momento de deposição secundária, de ossos provenientes de outro local, resultando num aparentemente pouco A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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importante ossuário. Esta interpretação ganhou substância no facto de, à abundância de ossos corresponder uma desproporcional e “desinteressante” quantidade de espólio votivo, insinuando, no momento da transladação, uma selecção de peças ainda com interesse ritual ou funcional. Posto isto, apenas restaram residuais fragmentos cerâmicos sem proveito e pequenos artefactos líticos, dificilmente visualizáveis (algumas lâminas, pontas de seta e uma conta de colar). Também foram documentados alguns materiais que remetem para uma ocupação do Neolítico Final (Camada 3): um machado e uma enxó, registados à entrada da cavidade, completamente isolados do posterior depósito antropológico e que podem indiciar práticas funerárias durante o Neolítico Final, à imagem do verificado na Lapa do Bugio (Cardoso, 1992). Porém, a integração dos materiais exumados no depósito funerário revela incoerências e disparidades crono-culturais. Os autores propõem uma cronologia absoluta do ossuário fixada “entre cerca de 2700 e 2450 anos a.C., a que corresponde o Calcolítico pleno da Estremadura”, e uma cronologia relativa dos materiais cerâmicos da Idade do Bronze, “coevos da remobilização daquele conjunto, no qual se encontravam amalgamados”, situada entre 1700 e 1300 a.C., “na transição do Bronze pleno (horizonte do Catujal) para os primórdios do Bronze Final” (Cardoso e Cunha, 1995, p. 55) – “consequentemente, pode concluir-se que foram populações da Idade do Bronze as responsáveis pela acumulação do ossuário, mas não à custa dos despojos dos seus próprios elementos” (ob. cit., p. 51). Posto isto, os autores consideram possível que tenha ocorrido, em “plena” Idade do Bronze, uma acção de limpeza de um depósito osteológico primário das proximidades, 1000 anos após a sua deposição calcolítica, provavelmente para uma reutilização funerária e/ou ritual da cavidade vizinha. Entretanto, nesse mesmo espaço, terá sido produzida uma camada com materiais da Idade do Bronze, sobreposta à camada do nível sepulcral calcolítico, antes de ambos serem totalmente misturados aquando da sua transladação para a Lapa da Furada. Por fim, após uma acção de limpeza ritualizada, dá-se uma única deposição destes materiais na Furada, respeitando o pré-existente nível do Neolítico Final (machado e enxó). O momento de transladação dos despojos da necrópole primária para a Lapa da Furada deverá ter sido ritualizado em cerimónias fúnebres que incluiriam, provavelmente, fogueiras de purificação. Esta sugestão, além dos paralelos documentados para o Neolítico e Calcolítico do Centro do País, é deduzida pela ocorrência de numerosos carvões misturados com os ossos humanos. Os autores também descartam a hipótese de um depósito primário de origem na vizinha Lapa do Bugio (Cardoso, 1992), pelo facto de as suas tumulações remontarem, sobretudo, ao Neolítico Final, mais antigas, portanto, que a cronologia absoluta obtida para a A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Furada. A respeito dos materiais datáveis da Idade do Bronze, estes ocorreram na Camada de superfície (Camada 1), associados a cerâmicas medievais e modernas, e na Camada 2, acompanhando os restos antropológicos (Cardoso e Cunha, 1995, p. 18). Estão em causa, além de numerosos fragmentos cerâmicos, uma conta de osso tubular, com perfuração cilíndrica obtida com recurso a furador metálico, e de dois artefactos de “cobre”: um fragmento de anzol de secção quadrangular (fig. 148) e uma pequena lâmina curva, com dois entalhes de fixação opostos. Se para o primeiro é possível considerar uma cronologia ainda do Calcolítico, o segundo remete para tipologias já da 1.ª Idade do Bronze, em consonância com muitos dos materiais cerâmicos. As reduzidas dimensões do “punhal” não apontam para qualquer funcionalidade que não a “votiva”, de cariz marcadamente simbólico. A cerâmica da Idade do Bronze da Furada caracteriza-se por uma boa variedade de recipientes: grandes vasos em forma de saco, de paredes verticais na parte superior, ou suavemente introvertidas, bordos, com ou sem espessamento, e fundos planos; recipientes de menores dimensões, mas formalmente idênticos aos anteriores, os chamados “tronco-cónicos” da Idade do Bronze (fig. 99), “sucedâneos dos “copos” do Calcolítico inicial da Estremadura” (Cardoso e Cunha, 1995, p. 19); taças carenadas (fig. 99), apresentando carenas bem definidas ou esbatidas; fundos planos com ligação esbatida à pança (fig. 100); numerosas taças de calote, de fundo mais ou menos achatado e de bordos com ligeiro espessamento externo; esféricos médios, de bordo não espessado ou ligeiramente exvertido, análogos às cerâmicas do Neolítico. “De salientar que todas as formas citadas se encontram representadas em contextos do Bronze médio da bacia do médio e Alto Mondego” (Cardoso e Cunha, 1995, p. 19). No que se refere às pastas, estas apresentam-se, regra geral, grosseiras a muito grosseiras, incorporando volumosos grãos de quartzo e de feldspato, além de menos expressivas micas. Apesar de residuais, algumas das formas decoradas, isoladas de um conjunto predominantemente liso, permitem-nos propor uma parcial integração em momentos já do Bronze Final. Na escassa amostra, foi possível observar fragmentos com acabamento cepillado; potes de colo estrangulado e de bordo ligeiramente exvertido, em aba, apresentando impressões espatuladas no lábio (fig. 98), produzindo um bordo denteando (com paralelos na Tapada da Ajuda); peças decoradas com cordões plásticos, pouco proeminentes e verticais, das quais se destaca um grande vaso negro brunido. É de salientar o facto de estes aspectos decorativos implicarem uma longa diacronia. Tendo em conta a análise da cultura material e do próprio contexto, fica no ar a A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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possibilidade de algum grau de continuidade na utilização desta cavidade até ao Bronze Final, não obstante as conclusões cronológicas dos autores. Esta utilização seria de carácter sagrado e não funerário, na linha do verificado noutras cavidade por aqui tratadas – “grutassantuário”. Aliás, também parece razoável admitir que os fenómenos interpretados pelos autores tenham ocorrido todos no mesmo palco – na própria gruta da Furada. Resta recordar que a escavação da Lapa da Furada resumiu-se à primeira sala, a vestibular sala de entrada, remanescendo outros espaços com evidente potencial arqueológico. A este propósito, em recentes visitas realizadas ao local pelo signatário, foram assinalados vestígios antropológicos e cerâmicos noutros espaços não intervencionados, na mesma cota da área da escavação.
Fig. 93 – A entrada da Lapa da Furada vista de dentro (foto de R. Soares).
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Fig. 94 –Localização da Lapa da Furada/Serra da Azóia no extracto da folha 464 da CMP esc. 1:25000.
Fig. 95 – A situação da Lapa da Furada relativamente ao Vale das Lapas e às suas cavidades (imagem Google Earth).
Fig. 96 – Topografias da Lapa da Furada (seg. Rui Francisco – Associação Arrábida Antiga).
Fig. 97 – Planta da área escavada em 1994 na Lapa da Furada (seg. Cardoso e Cunha, 1996, p. 48).
Fig. 99 – Fragmentos de recipientes “tronco-cónicos” e de taças carenadas (seg. Cardoso e Cunha, 1996, p. 21).
Fig. 98 – Fragmento de pote de colo estrangulado e de bordo ligeiramente exvertido, em aba, apresentando impressões espatuladas no lábio (seg. Cardoso e Cunha, 1996, p. 34).
Fig. 100 – Fragmentos de fundos planos, alguns com ligação à pança esbatida (seg. Cardoso e Cunha, 1996, p. 23).
6.2.4. Gruta do Médico – necrópole (?), “gruta-santuário” (?) A Gruta do Médico localiza-se na vertente norte do Vale do Solitário (mata coberta), em pleno “coração” da Serra da Arrábida/Setúbal (ver fig. 32), na meia encosta do Monte Abraão, no topo do qual se elevam as “icónicas” três cruzes da Arrábida. A entrada vertical é feita por uma estreita abertura no chão do seu átrio de entrada, por onde se desce cerca de 3 m. Desenvolve-se na cota dos 210 m, em unidades sedimentares do Jurássico, segundo uma progressão semivertical de orientação oeste-este, com um desnível de cerca de 21 m de profundidade. O desenvolvimento dá-se ao longo de uma junta de estratificação, organizandose em galerias ricas em fenómenos de concrecionamento, sobrepostas em três patamares, numa área total de aproximadamente de 174 m. Terá sido descoberta por um pastor por volta de 1856, sendo referida, pela primeira vez, por Manuel Maria Portela no folheto Gazeta Setubalense n.º 218, de 27 de Junho de 1873, onde se pode ler: “El logar eminente, e não distante do vale que chamam da Mata Coberta, por ser de espessura impenetrável aos raios de sol, vêm-se ainda os restos da parede que resguardam o concavo da rocha onde habitou um médico, do qual a tradição nos refere apenas que foi notável pelos seus conhecimentos científicos, e que ali se recolheu, depois de haver percorrido vários países em dilatadas viagens”. Em 1897, Joaquim Rasteiro publica uma breve descrição da cavidade no Arqueólogo Português: “a lapa do Médico, na meia encosta do monte Abraão, á esquerda do caminho que vae da fonte do Solitário para o mosteiro pelo valle de S. Paulo. Tinha formosas estalactites e estalagmites, que foram destruidas na maioria pelos visitadores. A parte superior foi habitação de um cenobita; o subterrâneo foi descoberto ahi por 1850 devido á queda de uma pedra, que fechava a entrada” (Rasteiro, 1897, p. 3). O átrio de entrada ainda conserva vestígios de uma antiga construção adossada à rocha (a estrutura de pedra seca das ombreiras da porta e os arranques de uma cobertura alpendrada), provavelmente de função religiosa, tendo em conta a proximidade da “lapacapela” de Santa Margarida e do Convento da Arrábida e por ali passar um secular caminho que o liga ao ermitério de El Cármen. De assinalar, também, a proximidade ao Portinho e à Serra da Cela, a cerca de 1 km. Em recentes visitas ao local, no âmbito da Carta Arqueológica de Setúbal, foi possível registar, além de diversos vestígios de época medieval/moderna e de alguma indústria lítica em sílex, dois fragmentos de cerâmica negra brunida, não ornatados, e que apesar de não proporcionarem colagem, parecem corresponder ao mesmo recipiente. Curiosamente, estes A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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dois fragmentos encontravam-se bastante distanciados entre si: um no interior da cavidade, em excelente estado de conservação; o outro no exterior, mais erodido, mas que pelo facto de ainda conservar algum brunimento e brilho supõe uma mobilização relativamente recente. Recorde-se, para o efeito, que a referida cavidade, embora nunca tenha sido alvo de estudos arqueológicos, é bem conhecida localmente, recebendo frequentes visitas, nem sempre de visitantes com sensibilidade arqueológica e espeleológica. Além destes dois exemplares brunidos, foram observados outros fragmentos de cerâmica manual, designadamente um fundo plano. No interior da gruta, na base da entrada vertical, abre-se um estreito recanto, colmatado por dejecções sedimentares que o preenchem quase na totalidade. Depois de um apertado rastejamento, o signatário identificou um fragmento de cerâmica manual (bordo simples), associado a duas vértebras que, segundo uma informal consulta antropológica, são lombares, além de alguns dentes humanos. Estes achados constituem um forte indício de uma necrópole que poderá pertencer ao Bronze Final, tendo em conta o registo artefactual associado e os arqueossítios da envolvente. Por outro lado, atendendo ao contexto regional, que prima pela ausência de restos humanos da Idade do Bronze em ambientes de gruta, pode sim tratar-se de uma necrópole de época anterior à Idade do Bronze (Neolítico/Calcolítico?). A utilização desta cavidade enquanto “gruta-santuário”, durante a Idade do Bronze, constitui uma forte hipótese, em aberto.
Fig. 101 – Localização da Gruta do Médico, em plena área de “culto arrábido”, no extracto da folha 465 da CMP esc. 1:25000.
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Fig. 102 – Topografias da Gruta do Médico (adaptado de Rui Francisco, Associação Arrábida Antiga).
Fig. 103 – Entrada da Gruta do Médico (foto de R. Soares).
Fig. 104 – Uma das galerias da Gruta do Médico (foto de R. Soares).
Fig. 105 – Passagem para o recanto presumivelmente utilizado como necrópole (foto de R. Soares).
Fig. 106 – Prospecções no interior do “nicho-necrópole?” (foto de Sara Navarro).
Fig. 107 –Vértebra lombar humana (foto de R. Soares).
Fig. 108 – Dente humano (foto de R. Soares).
Fig. 109 – Fragmento de cerâmica brunida (foto de R. Soares).
Fig. 110 – Fragmento de cerâmica brunida (foto de R. Soares).
Fig. 111 – Fragmento de cerâmica manual (foto de R. Soares).
Fig. 112 – Fragmento de cerâmica manual (foto de R. Soares).
Fig. 113 – Fragmento de fundo plano (foto de R. Soares).
Fig. 114 – Fragmento de bordo simples registado em associação aos restos antropológicos (foto de R. Soares).
6.2.5. Lapa da Cova – “gruta-santuário” O geomonumento da Lapa da Cova localiza-se na vertente sul da Serra do Risco, em Sesimbra, perto da povoação de Pedreiras, a cerca de 3 km do “epicentro” do povoado do Risco. Apresenta-se na cota dos 260 m da mais elevada arriba calcária da Europa continental. Trata-se de uma cavidade cársica fóssil, constituída por duas salas, abertas em unidades sedimentares do Jurássico Médio (J2 pe) pela suposta combinação da actividade tectónica com a acção hídrica. A cavidade desenvolve-se ao longo de uma diaclase principal, longitudinal à sala de entrada, de orientação aproximada sudeste-noroeste (da entrada para o interior), sendo cruzada por outras diaclases secundárias. Morfologicamente, e muito genericamente, a Lapa da Cova caracteriza-se por uma galeria principal ascendente, com um irregular desnível do chão com cerca de 10 m, ao longo de cerca de 30 m de profundidade. Tem cerca de 10 m de largura média, 15 m de altura à entrada e 2 m no topo. No topo existe uma plataforma que comunica, à direita, através de uma rampa descendente, com uma pequena galeria apendicular, alvo prioritário da escavação a que foi sujeita. A galeria principal apresenta um desarranjo estrutural, um caos de blocos de grandes dimensões, colmatados, no topo da sala, por “recentes” (na Era geológica) depósitos sedimentares margo-argilosos, fenómeno que também contribui para a difícil interpretação da sua génese geomorfológica. De acrescentar, ainda, a pobreza de fenómenos de concrecionamento. Em termos ambientais, estamos perante uma cavidade senil e muito seca. À medida que se penetra no seu interior, subindo o seu desnível, a temperatura aumenta e estabiliza gradualmente (+/- 20/22º de temperatura – média anual da envolvente do sítio), enquanto a luz se perde na penumbra, dando lugar à total escuridão no interior da pequena galeria no topo. O seu microtopónimo é interessante, pelo facto de ser redundante: “Lapa da Cova”. O acesso ao sítio não é fácil, pela sinuosidade, inclinação e vegetação da escarpa onde se localiza, podendo ser feito por baixo, a partir do mar, subindo penosamente pela enseada da Cova/Calhau da Cova (Cabo de Ares); ou por cima, a partir do topo da arriba, por uma rampa natural, ou pela meia encosta poente, aproveitando o ligeiro degrau proporcionado pelo topo de um cone de dejecção. A manifesta relação desta gruta com o mar merece realce, partindo-se de um conjunto de observações realizadas in loco. Desde logo, o contacto visual com a Cova só é possível a partir do mar – um “grande buraco negro” em fundo calcário claro. Proveniente de sul, qualquer embarcação consegue facilmente vislumbrar o “buraco” da Cova a uma distância A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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considerável, revelando-se, esta, como uma boa referência visual. Na verdade, as embarcações oriundas de sul (designadamente do Mediterrâneo), após dobrarem o Cabo de São Vicente/Sagres, e seguindo uma rota aos 0º (norte), podem, em dias de boa visibilidade, descortinar a silhueta da Arrábida a partir de Sines, na forma de um verdadeiro marco paisagístico para a entrada no estuário do Rio Sado, transversal à linha de costa. A própria Lapa da Cova é visível a longa distância, o que contribui para a sua natural relevância no horizonte de eventuais “rituais de chegada” – antigos navegantes que agradeceriam o sucesso das suas épicas viagens, gratificando os seus deuses com cultos, oferendas e rituais de comensalidade. Neste sentido, torna-se possível imaginar esta cavidade enquanto “santuário natural de chegada”, nomeadamente para marinheiros fenícios. Ainda a este propósito, será oportuna a referencia ao episódio homérico de Odisseu na Gruta do Ciclope. A partir de dentro, do seu “altar” no topo, e olhando para o exterior, apenas se avista o azul do mar – “ouro sobre azul!”. Da sua monumental entrada, em “arco gótico”, é possível controlar visualmente a desembocadura do Sado, os recortes do seu estuário e a “ponta” de Abul, sendo praticável algum grau de intercomunicação com este estabelecimento (fogo e fumo). Em dias de excepcional visibilidade, o olhar pode percorrer toda a costa sul, a partir de Tróia, e, no limite do alcance visual, torna-se mesmo possível vislumbrar a Serra de Monchique (a grande referência paisagística para o Promontorium Sacrum). No que diz respeito à Arqueologia, a sua caracterização foi realizada no contexto dos trabalhos de prospecção para a nova carta arqueológica do concelho de Sesimbra (20072009). A preliminar interpretação cronológica, apenas baseada em materiais cerâmicos de superfície, acabou por ser corroborada, em Outubro de 2009, pela descoberta ocasional de um brinco de ouro, correspondente a cronologias relativas da 1.ª Idade do Ferro. Neste contexto, e face às recentes notícias de destrutivas actividades detectoristas, foi interposto um pedido de escavação à entidade tutelar (IGESPAR) que, sendo deferido, enquadrou legalmente os trabalhos de limpeza e escavação, iniciados em Janeiro de 2010. Ao abrigo de um protocolo com a Câmara Municipal de Sesimbra, a escavação tem sido dirigida, desde então, pelo Dr. Mário Carvalho, sob a coordenação científica do Professor Doutor Manuel Calado, contando na equipa com os alunos de mestrado em Arqueologia da FLUL, Miguel Amigo e Ricardo Soares. Optou-se por uma equipa reduzida, com experiência e formação espeleológica, tendo em conta as especificidades do sítio e as limitações espaciais e logísticas. A interpretação das estratigrafias em contexto de gruta constitui, por vezes, um processo particularmente complexo, por estas se apresentarem afectadas por intensos fenómenos de bioturbação. No caso da Lapa da Cova, observou-se uma estratigrafia pouco A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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espessa e bastante perturbada, pelo facto de ter sido intensamente utilizada, em época recente, como curral de caprídeos (facto documentado artefactualmente por objectos de “arte de pastor”) e, até à actualidade, por um “bando” de cabras assilvestradas, além dos habituais pequenos roedores e texugos, amplamente documentados por restos ósseos. Ainda assim, tem sido possível avançar alguns considerandos. Os dados preliminares da escavação foram, em parte, partilhados no seu blogue (SAFA - Santuários Fenícios da Arrábida – http://lapadacova.blogspot.com), apontando, segundo os responsáveis, para uma ocupação mágico-religiosa no decorrer da 1.ª Idade do Ferro. De salientar o facto de não ter sido identificado qualquer vestígio antropológico durante a escavação, o que remete para uma utilização exclusivamente sagrada enquanto santuário, ficando excluída a hipótese funerária. Acresce o registo, no patamar superior da galeria principal, de um grande depósito de cinzas, insinuando um provável “altar de fogo”, dejectando, em cone, para a pequena sala apendicular, que parece ter servido de espaço de amortização da maior parte dos materiais registados (depósito votivo? restos de rituais de comensalidade?). Esta atribuição crono-funcional foi documentada por abundantes artefactos de origem mediterrânea: uma boa quantidade de cerâmica a torno, correspondente a um diversificado conjunto de recipientes (cerca de 30/40), na sua maioria contentores (ânfora e pithoi); um cossoiro; cerca de duas centenas de contas de colar (cornalina, pasta vítrea e outras matériasprimas mais residuais – quartzo hialino, olivina e osso); objectos de bronze (uma fíbula muito fragmentada e de difícil caracterização, um botão cónico com duplo apêndice de preensão, um espeto/obelos, uma “mãozinha”, possivelmente proveniente de uma pega de braseira, e dois pequenos presumíveis ponderais); e peças de adorno em ouro (um brinco, uma arrecada e uma pequena conta esférica). Além destes materiais, na globalidade remetendo para proveniências mediterrâneas, também foram exumados residuais fragmentos de cerâmica manual, de aparente produção local/indígena e atribuíveis ao Bronze Final. No caminho de acesso à cavidade, a partir do mar, também foi registada a ocorrência de alguns fragmentos de cerâmica manual, tal como no acesso poente, a partir da Serra da Achada (nomeadamente um mamilo alongado). Atendendo ao isolamento e dificuldade de acesso ao sítio, talvez não seja de estranhar que os vestígios detectados se limitem exclusivamente à ocupação proto-histórica e à ocupação pastoril, já em época actual ou subactual. Na verdade, considerando o facto de a cavidade apenas poder ser vista do mar, sendo o seu acesso bastante “afoito”, é de admitir que a sua descoberta tenha sido feita por marinheiros. A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Relativamente ao supracitado “botão de bronze”, às suas mais (re)correntes interpretações, enquanto acessório de vestuário ou de arreio de cavalo (sublinhando, neste caso concreto, que os seus orifícios não permitem passar tiras de couro), poderá acrescentarse uma eventual função enquanto ponderal (suspensão pendular?), em associação à ocorrência de dois presumíveis ponderais de bronze no mesmo contexto. Esta possibilidade parte da interpretação dada a objectos em tudo similares, abundantemente registados em Cancho Roano1 (finais do século VI/inícios do século IV a.C.). Segundo Manuel Calado2, tendo em conta que os materiais ainda se encontram em fase de estudo, “a genérica apreciação do conjunto artefactual propõe uma ocupação de razoável diacronia (alguns séculos), iniciada numa fase precoce da colonização fenícia”, considerando, designadamente, a existência de uma ânfora produzida em torno, apresentando uma cozedura redutora e ornatos brunidos, replicando o “gosto” da cerâmica indígena e sugerindo, por isso, um momento antigo do contacto – “santuário de chegada” (no duplo sentido). Porém, também parece claro que o grosso dos materiais exumados se enquadra num âmbito cronológico mais tardio e ajustado ao genérico panorama actualmente estabelecido, designadamente os pithoi e o “botão” metálico, com paralelos dentro dos séculos VI-V a.C. (por exemplo, Celestino Pérez, 2003; Arruda, 1999/2000). Será neste contexto pertinente referir a eventual relação do “santuário natural” da Cova com o estabelecimento fenício de Abul, fundado ex novo em meados do século VII a.C. (Mayet e Silva, 2000) na margem direita do Sado, a meio caminho entre Setúbal e Alcácer. Trata-se de um edificado com alguns atributos funcionais de ordem sagrada, curiosamente alicerçado sobre um embasamento fundacional de brecha da Arrábida, constituído por peças na sua maioria de textura rolada (Mayet e Silva, 2000, p. 134). Este aspecto é interessante pelo facto de sugerir a recolha deste conglomerado geológico em algumas praias, em determinados pontos de ocorrência da costa da Arrábida – designadamente nas proximidades da Lapa da Cova. Em suma, além da marcada ocupação durante a Idade do Ferro, será de considerar o conhecimento desta cavidade pelas comunidades indígenas, durante o Bronze Final, tendo em conta a sua proximidade relativamente ao(s) povoado(s) das Terras do Risco e ao monumento funerário da Roça do Casal do Meio. Isto pode implicar, por um lado, uma utilização anterior
1
“En definitiva, después de dar continuas vueltas a la cuestión y con los datos que nos ha proporcionado un nuevo análisis de estos botones, donde hemos tenido en cuenta su dispersión, medidas, peso y, fundamentalmente, su asociación con otros elementos aparecidos en el entorno donde fueron hallados, hemos concluido que los mismos podrían haber correspondido a los diferentes conjunto del sistema ponderal que tan bien representados están en el yacimiento” (Celestino Pérez e Zulueta, 2003, p. 67). 2 Informação pessoal que se agradece, em parte publicada no referido blogue da escavação.
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à Idade do Ferro (muito residualmente manifestada pela ocorrência de escassos fragmentos de cerâmica manual); por outro, durante a ocupação da Idade do Ferro, a provável convivência e partilha deste espaço e algum grau de participação nos rituais ali praticados, por parte dos indígenas do Risco, admitindo-se, mesmo, uma fundação exógena, relembrando o difícil acesso e a visibilidade exclusiva a partir do mar. Por fim, de referir, a cerca de 1.5/2 km para poente da Lapa da Cova, duas estações de ar livre enquadráveis na 1.ª Idade do Ferro, recentemente identificadas no âmbito dos trabalhos para a Carta Arqueológica de Sesimbra – Meia Velha e Casa Nova (vide infra).
Fig. 115 – Topografias da Lapa da Cova (adaptado de Rui Francisco, Associação Arrábida Antiga).
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Fig. 116 –Localização da Lapa da Cova/Serra do Risco no extracto da folha 464 da CMP esc. 1:25000.
Fig. 117 – A situação da Lapa da Cova relativamente ao povoado do Risco e à Roça do Casal do Meio (imagem Google Earth).
Fig. 118 – O “arco da Cova” - um santuário sobre o mar (foto de R. Soares).
Fig. 119 – Trabalhos de crivo com “a vista no oriente” (foto de R. Soares).
Fig. 120 – A Lapa da Cova vista do Mar (foto de R. Soares).
Fig. 121 – Entrada monumental da Lapa da Cova (foto de R. Soares).
Fig. 122 – Instalação do crivo (foto de R. Soares).
Fig. 123 – The mind in the cave (foto de R. Soares).
Fig. 124 – Acesso à Lapa da Cova pelo topo da arriba (foto de R. Soares).
Fig. 125 – Trabalhos de implantação topográfica (foto de R. Soares).
Fig. 126 – Trabalhos no interior da sala apendicular (foto de Manuel Calado).
Fig. 127 – Montagem de fragmentos cerâmicos na base logística (foto de R. Soares).
Fig. 128 – Botão cónico de bronze (foto de R. Soares).
Fig. 129 – Duplo apêndice de preensão no verso do botão de bronze (foto de R. Soares).
6.2.6. A Fenda – “santuário natural” (?) A Fenda constitui um geomonumento de rara beleza natural, relativamente bem conhecido localmente, mas sem informação arqueológica publicada. A verticalidade e dureza das suas paredes têm proporcionado uma verdadeira “Meca” para os amantes da escalada, que têm vindo a equipar aquela arquitectura natural com várias vias de diferentes graus de dificuldade. Como o próprio microtopónimo indica, trata-se de um acidente tectónico, aberto ao longo de aproximadamente 700 m, na encosta sul da Serra da Arrábida, sobranceiro e paralelo à linha de praia do Portinho, proporcionando, à exploração humana, uma potencial área de abrigo e, sobretudo, de grande vocação ritual. Porém, a sua prospectabilidade é de manifesta dificuldade, pelo facto de a área se desenvolver como um imenso colector de dejecções sedimentares, culminada por uma espessa camada de manta morta em constante produção. Se, por um lado, os sedimentos escondem por completo os presumíveis vestígios arqueológicos; por outro, selam-nos, preservando a sua latente informação que vai assim aguardando uma oportuna intervenção de sondagem. Ainda assim, foram identificados alguns fragmentos de cerâmica manual, além de um grande búzio (“buzina”), curiosamente depositado numa pequena anfractuosidade, entre um caos de blocos. A referida cerâmica foi identificada no sector poente, onde se abrem as áreas mais amplas, de mais fácil circulação e com melhor suporte de implantação. O extremo oposto, a nascente, extingue-se num progressivo estreitamento, aprofundando numa fenda subterrânea. As prospecções deverão ser dirigidas para os recantos subterrâneos, particularmente por entre os caos de blocos, espaços que reproduzem os ambientes de gruta, supostamente utilizados, em contexto ritual, pelas comunidades da Idade do Bronze regional. Esta abordagem encontra-se agora em fase inicial. Considerando as singulares particularidades deste geomonumento e a sua insinuante integração na presumível rede de povoamento local do Bronze Final, destacando-se a “umbilical” proximidade e intervisibilidade com o povoado da Serra da Cela (a escassos 500 m), torna-se possível antevê-lo como um “santuário natural”, propício a actividades de propensão mágico-religiosa.
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Fig. 130 – Localização da Fenda no extracto da folha 465 da CMP esc. 1:25000.
Fig. 131 – A Fenda e a sua relação com a envolvente paisagística e cultural, destacando-se a proximidade à Serra da Cela (imagem Google Earth).
Fig. 132 – A Fenda sobre a praia do Portinho (foto de R. Soares).
Fig. 133 – A Serra da Cela vista da Fenda (foto de R. Soares).
Fig. 134 – Uma “buzina” recolhida no interior de um nicho natural (foto de R. Soares).
Fig. 135 – Extremidade poente da Fenda (foto de R. Soares).
Fig. 136 – “Intramuros” (foto de R. Soares).
Fig. 137 – Janela sobre a Serra da Cela (foto de R. Soares).
Fig. 138 – Troço mesial (foto de R. Soares).
6.2.7. Outras cavidades Além das cavidades acima descritas, outras tantas registaram características e aparentes indícios de ocupação durante o Bronze Final da Arrábida, entre elas algumas a aguardar uma melhor investigação por terem documentado fragmentos de cerâmica manual de época indeterminada, ficando ainda por descobrir, seguramente, novas “covas”, colmatadas pelo tempo ou intencionalmente encriptadas pelos seus “cultores”. Junto a Sesimbra, a Lapa do Forte do Cavalo A assinalou a ocorrência de cerâmica manual atribuível à Idade do Bronze, além de cerâmica a torno correspondente à Idade do Ferro (Calado et al., 2009, p. 119). No Vale das Lapas (local bem visível do mar e que “desagua” no Oceano, a sul), na Serra da Azóia (Sesimbra), a Lapa da Janela I documentou inequívocos materiais de superfície atribuíveis ao Bronze Final e, sobretudo, da Idade do Ferro – cerâmica brunida e bordos exvertidos (Calado et al., 2009, p. 115). Na vertente oposta deste vale, de frente para a Janela I, “abrem-se” as Janelas II e III, no total de cinco cavidades que estão na origem do microtopónimo “Vale das Lapas”. Nas vertentes e linha de água do vale também foram recolhidos diversos fragmentos de cerâmica manual, atribuíveis aos finais da Idade do Bronze, sendo de admitir algum grau de presença proto-histórica nas restantes cavidades, que não apresentaram artefactos de superfície directores para as cronologias em causa. Na Lapa do Mosquito, na Serra dos Pinheirinhos (Sesimbra), os achados de superfície não permitiram determinar timings de ocupação, contudo, tendo em conta os fragmentos de cerâmica manual identificados, fica uma baliza provisória entre a Pré e a Proto-História (Calado et al., 2009, p. 121). Na própria “cara” do Cabo Espichel (Sesimbra), em dois pequenos abrigos na falésia, foram assinalados fragmentos de cerâmica manual e a torno, estes últimos passíveis de cronologias da Idade do Ferro (Calado et al., 2009, p. 105). Tendo em conta a força paisagística e o potencial simbólico do local, será válido admitir a presença de “grutas-santuário” ou de necrópoles – “o cabo era um enorme barco de pedra que transportava, no seu interior, os defuntos, em direcção ao mar onde o Sol se esconde. Metáforas perfeitas da condição humana” (Manuel Calado num texto de carácter poético que serviu de guião para um trabalho videográfico sobre a região da Arrábida). Num pequeno Abrigo no Cabo de Ares (Sesimbra), no acesso poente à Lapa da Cova, a partir da Serra da Achada, registaram-se diversos fragmentos de cerâmica manual que, tendo em conta as suas características e a proximidade ao contexto da Cova e ao povoado do Risco, deverão enquadrar-se no mesmo âmbito cronológico – Bronze Final. O Algar das Aranhas (Setúbal), não obstante ainda não ter registado qualquer informação arqueológica, mas atendendo à sua íntima proximidade com o povoado de Valongo, permite expectar algum tipo de relação com A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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este, tendencialmente mágico-religiosa. Trata-se de uma cavidade de entrada vertical, com um desnível de cerca de 6 m, proporcionando, a partir da base, uma progressão semivertical descendente, de sensivelmente 15 m. Situa-se à beira da estrada, no topo da serra, a escassos 3 km do povoado de Valongo. Actualmente em fase de desobstrução espeleológica, com acompanhamento arqueológico, o seu interior apresenta-se colmatado por estorvo pétreo, lixos diversos e dejecções sedimentares, ocultando expectáveis vestígios arqueológicos. Ainda na área de influência do povoado de Valongo, numa área de vertente de difícil acesso, foi identificada outra cavidade, desta feita com legado arqueológico de superfície – o Abrigo de Valongo. Trata-se de um pequena reentrância, aberta na encosta exposta a norte, onde foi registado um fragmento de cerâmica manual apresentando decoração indefinida, que por não se encontrar associada a cultura lítica, e considerando a proximidade ao povoado de Valongo, propõe um horizonte proto-histórico.
Fig. 139 – O Vale das Lapas (foto de R. Soares).
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6.3.
Cultura material “Como sabemos, os cacos não falam: é preciso falar por eles, servir de intérprete, interpretá-los”. Manuel Calado
Não constituindo o presente trabalho um estudo de cariz artefactual, os artefactos não deixam de representar uma fonte fundamental para a caracterização cultural e cronológica das comunidades tratadas. Nesta abordagem de superfície – sobretudo direccionada para os contextos da Idade do Bronze, mas não perdendo de vista os sinais “orientalizantes” e da transição para a Idade do Ferro – e na ausência de significativa cultura material lítica, as cerâmicas assumem-se como os principais (na maior parte dos casos os únicos) “fósseis directores” para uma atribuição cronológica proto-histórica. Os artefactos, e os respectivos contextos, encerram em si uma determinada opção humana, revelando uma série de decisões e de comportamentos, desde a selecção da matériaprima à produção de um determinado objecto, passando pela sua utilização, circulação, distribuição e tempo de vida. Na ausência de fontes escritas, a cultura material permite “auscultar” os processos sociais, económicos e políticos de determinado momento histórico. Nesta perspectiva, entende-se por “cultura material” um pacote de informações contidas nos artefactos cerâmicos e torêuticos, bem como nas arquitecturas, “urbanismo”, etc. Para o presente estudo, e na medida das necessidades, apenas se procedeu a uma elementar abordagem classificativa e descritiva, com base em primárias observações macroscópicas, empíricas, sobretudo comparativas, a partir das diferenças e similitudes das propriedades formais, técnicas e funcionais dos vestígios identificados nos diversos contextos tratados, ficando o seu aprofundado estudo tipológico premeditado para trabalhos ulteriores. Ao longo do texto, e em sede própria, estes materiais foram merecedores de uma mais desenvolvida caracterização, em associação ao contexto arqueológico onde foram observados. No que respeita aos materiais exumados em escavação, objecto de publicação por outros autores, foi feita a sua descrição conforme a bibliografia disponível. No caso da Lapa da Cova, pelo facto do processo de escavação ainda não se encontrar encerrado e dos respectivos materiais se encontrarem em fase de estudo, a informação adiantada partiu da experiência do signatário no projecto e da cortesia dos responsáveis. Os materiais entendidos como excepcionais, ou revestindo-se de particular importância informativa, na falta de desenhos próprios, são apresentados em registo fotográfico ou por adaptação de outra iconografia disponível.
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As cerâmicas, o grupo artefactual por excelência no contexto do presente estudo, particularmente pela sua expressão quantitativa e informativa, constituem, numa primeira análise, instrumentos de formulação de tipologias crono-culturais, tidas, pela Arqueologia dita “tradicional”, como “agentes de difusão” (Childe, 1973, p. 90). A partir de uma descritiva abordagem positivista, foram propostas diversas classificações tipológicas “na suposição de que as cerâmicas (e a restante cultura material) poderiam espelhar directamente as mudanças culturais das sociedades” (Vilaça, 1995, p. 45). Por outro lado, entendia-se que as semelhanças tipológicas e estilísticas testemunhavam manifestações de migrações e de trocas comerciais. Porém, o estudo das cerâmicas arqueológicas não se pode consumir exclusivamente em questões adaptativas, evolutivas ou funcionais, não devendo estas ser encaradas somente enquanto resultado de interacções entre grupos humanos, nem como condicionado reflexo de sistemas culturais. Hoje, tornou-se claro que as cerâmicas também nos permitem responder a outras questões, nomeadamente de natureza tecnológica, sócio-económica, política, ideológica, simbólica, entre outras. Neste sentido, o meio ambiente foi impondo-se como uma variável determinante, um contexto natural específico que afecta as características constituintes da cerâmica, desde a selecção das matérias-primas necessárias à sua produção, conforme os recursos disponíveis, o seu transporte até ao local de fabrico, o seu tratamento, armazenamento, conservação e transformação, passando pela sua utilização e distribuição local, regional ou trans-regional. Assim, as antigas oleiras terão sido condicionadas pelo meio natural que as acolheu, nas suas escolhas, decisões e comportamentos, no grau de especialização e qualidade que imprimiram à sua criação. A esta interacção entre o contexto ambiental e a cultura material, Matson chamou de “ceramic ecology” (Matson, 1965, p. 203). Com a Idade do Bronze, a partir dos finais do 3.º milénio a.C. e ao longo do seguinte, surge uma série de novas formas e estilos no reportório cerâmico conhecido, destacando-se, entre outras: formas troncocónicas, com e sem asas, lisas ou com mamilos, particularmente expressivas na Beira Alta; e as cerâmicas alentejanas carenadas de tipo “Atalaia”, “Odivelas” e “Santa Vitória”. Já no Bronze Final, nos finais do 2.º milénio a.C. e na transição para o seguinte, multiplicam-se as formas produzidas, surgindo as características taças de carena de ombro, mais ou menos, por vezes bastante angulosas. Também ganham expressão os acabamentos de superfície, polidos ou brunidos, por vezes decorados – os ornatos brunidos do tipo “Lapa do Fumo” (Estremadura, Beira Baixa e Alentejo) e as finas incisões do tipo “Baiões” (Beira Alta/região de Viseu). A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Insistindo no supracitado, os artefactos referenciados no presente trabalho resultaram, sobretudo, de recolhas de superfície, à excepção dos materiais exumados nas escassas escavações realizadas em contextos rituais da Idade do Bronze da Arrábida, reportando-se à necrópole da Roça do Casal do Meio e aos “santuários naturais” da Lapa do Fumo, Lapa da Furada e Lapa da Cova. Relativamente aos contextos de habitat, os fragmentos cerâmicos registados à superfície apresentaram-se genericamente muito fragmentados e erodidos, com pastas pouco compactas e de qualidade média a grosseira, compostas, na sua maioria, por argilas de aparente proveniência local. Esta observação resulta de uma evidente homogeneidade do seu aspecto geral e da ocorrência, na sua composição, de pequenas “pepitas ferruginosas”, sobretudo esféricas, uma característica geológica dos solos da região, particularmente da zona das Terras do Risco. Além deste elemento não plástico, as pastas apresentaram outros desengordurantes, designadamente grãos de quartzo e micas, cuja frequência e granulometria aumentam conforme a espessura dos fragmentos e a dimensão dos recipientes. As
pastas
denotaram
cozeduras
irregulares,
afigurando-se
de
tonalidades
tendencialmente escuras (negro, cinzento-escuro, castanho-escuro e castanho), o que indicia cozeduras em ambientes redutores. Também foram observadas pastas oxidantes, de tonalidades mais claras, entre o castanho-claro, o castanho-avermelhado, os tons de laranja e beijes. De referir alguns exemplares apresentando sinais de exposição ao fogo nas paredes exteriores, sugerindo funções utilitárias de preparação e consumo de alimentos. As características formais podem ser aferidas a partir de alguns escassos fragmentos com informação, destacando-se uma grande percentagem de bordos simples, não espessados, e de fundos planos, além de alguns perfis em “S” e carenas de ombro. O expressivo ratio entre os poucos perímetros de bordo identificados e a esmagadora maioria de fragmentos de bojo de peças, sugere tratar-se de uma amostra global de formas fechadas que, na ausência de “fosseis directores” e em associação a outros indícios, aponta para cronologias da última fase da Idade do Bronze. No que se refere ao tratamento/acabamento das superfícies, não foi possível tecer grandes considerandos, pelo facto de se tratar de achados de superfície, sujeitos a prolongada exposição a fenómenos erosivos e de mobilização por rolamento. Ainda assim, foram identificados alguns fragmentos de cerâmica brunida, não decorada. Nas grutas, contextos mais estáveis e com melhores condições de preservação dos materiais, os brunidos foram melhor documentados. A Gruta do Médico registou dois fragmentos de superfícies negras, apresentando brunimento exterior, sem ornatos, que, apesar de não oferecerem colagem, A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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parecem pertencer ao mesmo recipiente. Na Lapa da Cova, durante a sua escavação, foram identificados alguns recipientes cerâmicos fracturados denotando tratamentos brunidos, quer produzidos manualmente, quer a torno lento. Quanto aos aspectos decorativos e/ou funcionais, de referir somente pequenos mamilos simples e um alongado. Também foram verificados alguns fragmentos cerâmicos apresentando perfurações paralelas ao bordo, imediatamente abaixo deste, sendo discutível a sua função (suspensão, fecho ou decoração), optando-se, aqui, por uma utilidade de suspensão. De referir ainda outras perfurações, maiores e escareadas, destinadas à reparação de fracturas – “gatos”. No imenso povoado das Terras do Risco, os materiais apresentaram-se homogeneamente dispersos ao longo de uma área de cerca de 100 ha. A regra da dispersão superficial foi contrariada por uma recente “decapagem” natural, provocada pelas águas da chuva, permitindo observar uma boa quantidade de fragmentos cerâmicos, em razoável estado de conservação, alguns em conexão e com informação, designadamente carenas, bordos simples, fundos planos e perfurações junto ao bordo (ver fig. 16). Por seu turno, o povoado da Serra da Cela, relativamente aos demais contextos de habitat analisados, diferencia-se, qualitativamente e quantitativamente, do padrão acima descrito, tendo revelado à superfície uma interessante jazida artefactual, com boa concentração de fragmentos cerâmicos, bem conservados, de maiores dimensões e com maior riqueza formal e informativa. O sítio é pouco exposto, protegido pela vertente sul da serra e pela própria vegetação da mata coberta, encontrando-se a sua área “intramuros” pouco ou nada perturbada. De entre os fragmentos cerâmicos observados, de produção manual e com informação formal, de destacar: duas pequenas taças (uma hemisférica e uma carenada), taças hemisféricas, vasos de perfil em “S”, vasos carenados, um vaso de carena baixa, um vaso de colo estrangulado, um vaso mamilado, diversos fragmentos apresentando brunimento, bordos simples, fundos planos, perfurações de suspensão, perfurações de reparação, etc. Também foi registada cerâmica a torno, de pastas claras e depuradas, particularmente um bordo exvertido e um fundo com “pé de anel”, denunciando algum grau de presença durante a Idade do Ferro. Foi naturalmente escasso o conjunto artefactual lítico observado nos trabalhos de prospecção e com interesse cronológico para o presente estudo: dois elementos de foice denticulados de sílex (Terras do Meio/Risco e casal agrícola do Vale da Rasca), objectos que resultam de uma longa tradição e continuidade, denotando, na sua observação macroscópica, o chamado “lustre de cereal”; um percutor de basalto e um movente de mó discóide, dois utensílios de largo espectro cronológico registados na Serra da Cela; um fragmento de braçal A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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de arqueiro identificado em Valongo (I), interpretado como um achado ocasional, abandonado em contexto de uso num qualquer momento entre os finais do Calcolítico e os inícios da Idade do Bronze. No
que
diz
respeito
aos
artefactos
metálicos
identificados,
resultaram,
exclusivamente, de trabalhos de escavação em contextos sagrados, à excepção dos bronzes descontextualizados de Alfarim (dois machados de alvado, um deles sem anéis e outro de duplo anel lateral) e dos bronzes de Pedreiras (um machado de alvado de duplo anel lateral e uma foice de talão de tipo “Rocanes”), todos de influência “atlântica”. Acompanhando os dois indivíduos depositados no monumento funerário da Roça do Casal do Meio, entre outros artefactos de prestígio, foram assinalados alguns objectos de bronze: um colchete de cinturão, uma fíbula de enrolamento no arco, um anel e duas pinças. Trata-se de um homogéneo conjunto artefactual de origem mediterrânea, documentando precoces contactos “orientalizantes”. Recorde-se, para o efeito, que os dois enterramentos da Roça do Casal do Meio foram recentemente datados por radiocarbono – 1004-835 a.C. (Vilaça e Cunha, 2005, p. 52). Na necrópole do Casalão, Eduardo da Cunha Serrão escavou um conjunto de sepulturas da “Idade do Ferro”, exumando alguns objectos de bronze (fuzilhão de fíbula, anel e pinça) e de ferro (faca afalcatada). Na Lapa da Cova também foi exumado um interessante conjunto artefactual metálico, atribuível à 1.ª Idade do Ferro. Este espólio encontra-se em fase de estudo, ainda assim é possível deixar as seguintes referências: objectos em ouro (um brinco, uma arrecada e uma pequena conta esférica) e bronze (um obelos, uma “mãozinha” presumivelmente pertencente a uma pega de braseira, um botão cónico com duplo apêndice de preensão ou suspensão como ponderal, dois presumíveis ponderais e uma fíbula de difícil caracterização). Ainda na Lapa da Cova, de acrescentar um numeroso e diversificado conjunto de contas de colar de proveniência oriental (cerca de 200), produzidas em pasta vítrea, cornalina, quartzo hialino (“baga de romã”), olivina e osso.
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6.4.
A rede de povoamento: sincronias (?), hierarquia (?) e inter-relações
“O mais difícil não é ir à Arrábida, porque no Verão há carreiras de camionetas, no Inverno há em Azeitão táxis ou carroças ou jeriquinhos tão prestáveis; como os da Cacilhas de antigamente, e de Janeiro a Dezembro, para muita e muito boa gente, há duas pernas vigorosas e de boa vontade que fazem transpor, a Serra pelo Vale do Picheleiro. Difícil, difícil, é entendê-la (...)”. Sebastião da Gama, O Segredo é Amar
Chegados aqui, e feito o “ponto da situação” no estado da investigação para a Idade do Bronze da Arrábida, mesmo na falta de informações cronométricas que permitam confirmar presumíveis sincronias, torna-se possível, a partir dos dados coligidos, realizar uma análise inter-relacional dos povoados entre si, destes com os seus locais de culto e com o meio paisagístico em que se integraram – um conjunto de observações que permitem considerar um complexo populacional, durante os finais da Idade do Bronze (em sentido muito amplo), com algum grau de diferenciação e de ordenamento político-administrativo. Desde logo destaca-se, na história da investigação e pela própria singularidade, o monumento funerário da Roça do Casal do Meio, a que faltava, contudo, uma efectiva compreensão fundacional, ou seja, um povoado (ou povoados) que tenha justificado este empreendimento dos vivos, dedicado aos seus mortos. Com as recentes campanhas de prospecção na Arrábida, foi finalmente revelado este lacunar mundo quotidiano: os presumíveis construtores do monumento original, as gentes do Neolítico Final/Calcolítico (povoado dos Ouriços – Calado et al., 2009), e os seus reconstrutores/reutilizadores do Bronze Final – povoado das Terras do Risco (ob. cit.). Mas qual seria o papel do (re)monumento funerário da Roça do Casal do Meio, erigido entre as Terras do Risco e o Castelo dos Mouros? Quem seriam aqueles homens, notavelmente diferenciados na morte, sepultados a meio caminho entre o seu “Castelo” e as suas “Terras”, dominando-as mesmo além morte? É de admitir, à imagem do modelo de povoamento proposto para o Alentejo Central, que este grande povoado aberto nas Terras do Risco se encontraria associado a um vasto complexo geoestratégico de povoamento, do qual fariam parte outros sítios arqueológicos atribuíveis ao Bronze Final: os “clássicos” povoados de altura e de cumeada (Castelo dos Mouros, Serra da Cela e Valongo) e as respectivas necrópoles/santuários (a Roça do Casal do Meio e as “grutas santuário”), além de outros expectáveis sítios, ainda por descobrir, estrategicamente implantados ao longo do território da Serra da Arrábida. Nesta conjuntura, há que ter em conta, ainda, o pequeno casal agrícola da Quinta do Picheleiro, o sítio do Bico dos Agulhões e o povoado instalado na foz do Sado (Caetobriga), além da sua relação com o rio – povoado a carecer de melhor caracterização, tanto na sua dimensão, como no seu papel relativamente ao sistema de povoamento regional (Arrábida, Abul e Alcácer). Todos estes A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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indícios de povoamento podem ser ponderados numa rede de povoamento coerente, em que os elementos mais destacados são, evidentemente, o Castelo dos Mouros, pelo seu investimento construtivo e inexpugnável defensabilidade, o grande “povoado aberto” do Risco, ocupando uma área excepcionalmente ampla (cerca de 100 ha) e a Serra da Cela, controladora da “porta do mar”. Por um lado, os dados tendem a favorecer a centralidade regional do povoado do Risco, atendendo à sua excepcional dimensão, à evidente relação com a Roça do Casal do Meio e à sugestiva proximidade com outros povoados de altura, dos quais se destaca a intervisibilidade com o Castelo dos Mouros. Todavia, o Castelo dos Mouros também revela características únicas para se impor como justo candidato à centralidade da rede de povoamento. As suas muralhas não têm rival no contexto regional. Aprumadamente erguidas em aparelho ciclópico, aproveitando a geologia local do declive escarpado a norte, de onde terão sido desmontados os blocos para a sua construção, documentam um ímpar investimento, só justificável por um carácter muito especial na rede de povoamento. Também a Serra da Cela, tendo em conta a sua implantação, relativamente ao mar e ao fundeadouro natural do Portinho, poderá ter assumido um papel de povoado central. Mais, se tomarmos em conta o seu perímetro fortificado, com uma maior área de implantação em comparação com o Castelo dos Mouros, o povoado da Cela poderia albergar um maior número de habitantes, confrontação que pode ser tida em conta na hierarquização dos povoados conhecidos. Porém, a Cela perde alguns pontos no “ranking” da centralidade, por se encontrar mais distante e sem intervisibilidade relativamente à Roça do Casal do Meio e às Terras do Risco. Assim, parece mais razoável atribuir-lhe apenas um destaque funcional na rede de povoamento, enquanto estabelecimento controlador do presumível porto piscatório e “comercial”. Quanto à lógica de centralidade das Terras do Risco, “salta à vista” a aparente desprotecção dos seus flancos poente e norte, não tendo sido identificados, até ao momento, e apesar das sistemáticas e direccionadas prospecções, quaisquer sinais de dispositivos defensivos ou de associáveis povoamentos de altura. Esta aparente ausência não invalida, contudo, a possibilidade de eventuais sistemas de protecção, como fossos e/ou paliçadas, situação a clarificar em futuras escavações. A norte, apenas foram identificados povoados de altura de cronologia calcolítica (Cabeço dos Caracóis e Casal do Bispo – Setúbal), e a poente o mesmo cenário (Outeiro Redondo/Castro de Sesimbra e Zambujal – Sesimbra). O morro do Castelo de Sesimbra surge no horizonte poente como um lógico local de implantação de um A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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povoado da Idade do Bronze, porém, após várias e teimosas prospecções em toda a sua cintura, nem um indício dessa expectável ocupação. Importa acrescentar uma série de cursos de água, dos quais se destaca a Ribeira das Marmitas, correndo de norte para sul, que associada à rede hidrográfica colectada pela Lagoa de Albufeira e dominada pela Ribeira de Coina, constituem, no conjunto, uma natural barreira de difícil transposição, definindo um oportuno perímetro defensivo a completar o segmento em falta (a norte). De resto, a norte desenvolvem-se desinteressantes paisagens – as planuras arenosas da margem esquerda do Tejo – enquanto a poente a península da Arrábida é circunscrita pelo Oceano. Posto isto, torna-se bastante razoável considerar o povoado do Castelo dos Mouros como a poderosa “capital” desta presumível rede de povoamento do Bronze Final, a morada das suas dominantes elites – os “proto-latifundiários” controladores das subsidiárias paisagens adjacentes, particularmente das Terras do Risco. Neste sentido, e justificando a sua inaudita área (100 ha), o povoado do Risco poderá ter sido constituído por uma solidária rede “cooperativa” de pequenos casais agrícolas, todos regidos por uma subordinação imposta pela eventual sede de chefatura no Castelo dos Mouros – um “todo” organizado simbolicamente em redor dos “cavaleiros” depositados na Roça do Casal do Meio, impondo o seu domínio mesmo depois da morte. Resta saber se o poder destes homens era imposto pelas armas e pela cavalaria, ou por uma liderança de cunho espiritual. Na verdade, as duas hipóteses serão eventualmente associáveis e complementares. A este propósito, refira-se que em Monsaraz têm vindo a ser exumadas evidências que concorrem para um modelo semelhante, isto é, uma malha de pequenos núcleos de povoamento dependentes de um único povoado central – “sítios que, atendendo à área de dispersão dos materiais de superfície (...), sugerem uma estrutura agrária com unidades de pequena dimensão, eventualmente de carácter familiar, de tipo quintas ou casais, onde se pode entrever alguma riqueza diferencial. Parece, no contexto da época em que se inserem, bastante razoável defender a contemporaneidade de boa parte destes pequenos núcleos, que teriam óbvias vantagens em funcionar articulados numa rede de povoamento disperso, com relações de vizinhança de diversos tipos” (Calado et al., 1999, p. 20-21). Também Senna-Martinez, para o Bronze Final da região centro-norte de Portugal, refere um sistema de povoamento “de marcada visibilidade arqueográfica, denotando uma clara preocupação com o controle da paisagem sem que tenhamos alguma evidência de tensões bélicas entre os povoados de nível mais alto” (Senna-Martinez, 2010, p. 14). Os sítios de habitat denotam uma frequente intervisibilidade (Senna-Martinez, 2002, p. 111) e apresentam dimensões reduzidas, apenas dois têm mais de um hectare, com dimensões A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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médias dos restantes na ordem do meio hectare e ainda casais agrícolas. Além de pequenos, manifestam pobreza arquitectónica, sem plantas ou equipamentos domésticos diferenciadores de estatutos sociais de excepção, o que sugere “nodos de importância equivalente em cada uma das redes respectivas e seguramente cooperantes, possibilitando a manutenção da circulação de pessoas e bens” (Senna-Martinez, 2010, p. 14). Feito um cálculo a partir de estimativas para as áreas úteis dos povoados identificados, foi possível admitir uma densidade populacional, para o Bronze Final, de 1 a 2,5 habitantes por km². “Desta forma resultaria impossível que cada unidade territorial constituída por um sítio de primeiro nível e os casais agrícolas adjacentes fosse independente como unidade de reprodução social” (ob. cit., p. 14). Mais acima, no topo da Arrábida, de assinalar a franca intervisibilidade, a partir do povoado de cumeada/“atalaia” de Valongo (I e II), sobre os povoados do Castelo dos Mouros (a poente), das Terras do Risco (a sudoeste) e da Serra da Cela (a sul). Estes povoados parecem, assim, integrar uma complexa e estruturada “geoestratégia” de povoamento, uma vez que ocupam posições aparentemente complementares. O povoado de Valongo instalou-se no topo da Arrábida, assumindo-se como um “vértice de atalaia”, visualmente dominante sobre o litoral (Serra da Cela) e o interior (Castelo dos Mouros, Terras do Risco e Quinta do Picheleiro), bem como a norte, sobre o fértil vale do Picheleiro. O esporão do Castelo dos Mouros domina por inteiro o mesmo vale, paralelo e a norte da Serra, que, vindo da “Pré-Arrábida”, desemboca no polje do Risco. A Serra da Cela, num esporão que se destaca na vertente oposta, sobre o mar, assume-se claramente como o “guardião” da excelente enseada portuária do Portinho. O Bico dos Agulhões, ainda em fase de caracterização, e considerando uma ocupação durante o Bronze Final, aponta para uma pequena “atalaia” de intercomunicação entre o Risco e a Cela, permitindo, ainda, um franco contacto visual com Valongo. O discreto povoado da Quinta do Picheleiro, de eminente vocação rural, permite antever outros suspeitáveis casais agrícolas naquelas férteis imediações. À imagem das alvas muralhas do Monte Alvide (Castelo dos Mouros), também o monumento funerário da Roça do Casal do Meio, (re)construído pelas gentes do Bronze Final, reveste-se de uma poderosa carga simbólica, marcando a paisagem envolvente. Se do alto do Castelo dos Mouros é possível controlar visualmente toda a área das Terras do Risco, a partir deste extenso povoado, aberto nas terras baixas, a silhueta do monte em crista do Castelo dos Mouros surge no horizonte como uma incontornável marca de poder. A sua elevada defensabilidade, além de símbolo paisagístico, constituiria, seguramente, um baluarte A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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para as elites governantes, um recinto defensivo contra ataques exteriores e, sobretudo, contra o próprio campesinato subsidiário – “um arquitectónico discurso de poder”. Noutra perspectiva, “a instalação dos grandes aglomerados em destacadas cristas, para além de representar a extrema necessidade de defesa, poderia estar associada justamente à manutenção desse sentido identitário pois, mais do que ver, estes povoados são vistos, assumindo-se a distância, e a altura, como a superação da realidade terrena e a aproximação às realidades celestes” (Mataloto, no prelo). Além disso, a implantação dos principais povoados, “eriçados” nas mais destacadas elevações (“para verem e serem vistos”) e junto de importantes cruzamentos de caminhos naturais, permitia-lhes controlar e “portajar” os circuitos de transitabilidade, possibilitando um desenvolvimento regional sobretudo assente na gestão da circulação de pessoas e bens. Esta estratégia terá implicado o “reforço das sinergias regionais e inter-regionais, estimulando o aparecimento de alianças intergrupais que controlariam os fluxos de circulação. Deste modo, acabariam por sair reforçados os laços de uma comunidade com um território e uma identidade, dando origem a processos de territorialização e consolidação dos elementos sociais nelas envolvidos” (Mataloto, no prelo, cf. Vilaça, 1998). A aparente curta duração do povoamento do Risco e a sua pouco expressiva ocupação nos inícios da Idade do Ferro poderá ser explicada pela profunda reorganização do modelo de povoamento indígena vigente, face aos novos impulsos sociais, culturais e políticos, gradualmente aportados do Mediterrâneo, à imagem do verificado no Alentejo Central – os grandes povoados eriçados na paisagem foram, na sua maioria, abandonados, dispersando-se as populações por pequenos casais agrícolas, sem preocupações defensivas, numa aparente antecipação da Pax Romana (Calado et al., 2009, p. 30). Em suma, estamos perante uma vasta área, contida entre o Cabo Espichel e Setúbal, entre o Tejo e o Sado, com férteis vales, excelentes áreas de pastoreio, uma grande diversidade e abundância de recursos cinegéticos, de fácil acesso aos recursos hídricos e marinhos, com algumas baías favoráveis à implantação de eventuais estabelecimentos portuários, bem localizada relativamente às grandes vias de circulação inter-regional, além de manifestar excelentes condições topográficas de defesa, domínio paisagístico e de protecção das elites locais. Um “conveniente” território que poderá ter assumido contornos de um “chefado complexo”.
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6.5.
Recursos, vias e circulação: algumas questões e a “rota do sal” “(...) Vita humanior sine sale non quit degere: adeoque necessarium elementum est, 3 ut transierit intellectus ad voluptates animi quoque. Nam ista sales appelantur (...)”. Plínio “o Velho”, Naturalis Historia, liv. XXXI
A disponibilidade e acesso aos recursos naturais e às vias de comunicação constituem, como tem sido amiúde referido, requisitos de vital importância para a fixação e desenvolvimento civilizacional. Se a exploração de recursos varia, no espaço e no tempo, conforme a sua disponibilidade ou de acordo com as opções estratégicas de cada época e de cada comunidade, já as principais vias de comunicação e circulação, de gentes e de bens, denotam uma maior estabilidade, encontrando-se bem definidas desde que foram trilhadas pela primeira vez – “de facto, foi a partir das principais rotas que se estruturaram territórios e no seu cruzamento nasceram muitas das grandes cidades do passado”; “numerosas estradas constituintes da complexa rede viária construída sob o domínio romano decalcam os percursos de antigos caminhos, também utilizados durante a Proto-História” (Gomes, 1992, p. 111). As opções de transitabilidade durante a Pré e a Proto-História terão sido determinadas, sobretudo, pelo próprio meio físico – as grandes vias naturais: planícies, festos, vales, portelas, pontos de travessia, lagos, rios navegáveis e mares calmos. O agenciamento dos caminhos de “pé-posto” materializou-se conforme a própria evolução das sociedades, de acordo com as suas necessidades e estratégias de subsistência, económicas e políticoadministrativas. No sul de Portugal, a vasta peneplanície alentejana, balizada entre o Tejo e o Guadiana, pela sua suave geomorfologia e acessível potamografia (rios Sado, Mira, Arade e Guadiana), propiciou, sobremaneira, a natural circulação de pessoas e de bens. Por sua vez, os caminhos do mar uniram, sobretudo a partir do período “Orientalizante”, o sul peninsular ao Mediterrâneo; enquanto outras formas de navegação, mais precárias e pontuais, ligavam já as costas continentais da Mancha e Mar do Norte à Irlanda e Grã-Bretanha, conforme demonstram os inúmeros traços culturais e materiais comungados entre estas regiões desde a Pré-História, particularmente detectáveis na arte rupestre, nas armas metálicas, nos objectos de adorno, nas cerâmicas e nos radicais toponímicos e onomásticos, não esquecendo os
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“(...) Uma vida mais civilizada, não é possível levá-la sem o sal; é um produto de tal modo necessário que constituiu uma metáfora até para os prazeres do espírito. A isso se chama de facto sal (...)”. O texto de Plínio continua da seguinte forma: “mas também todo o encanto da vida, a alegria plena e o repouso das canseiras não encontram uma palavra que os exprima melhor” – amável tradução do Professor Doutor Amílcar Guerra, enriquecendo-a com o seguinte comentário: “Enfim, Plínio fala do valor metafórico da palavra, do ‘sal da vida’” (obrigado!).
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“barcos de pranchas”, tendencialmente a partir do Bronze Médio regional (Wright, 1990; Wright et al., 2001; Clark, 2004a e 2004b; MacGrail, 1997). Na Península da Arrábida, território “entre águas” bem definido e circunscrito pelo Tejo, Sado e Atlântico, as opções de transitabilidade e circulação foram manifestamente desenhadas pela própria natureza – “as desembocaduras dos dois grandes rios que limitam a nossa região, constituindo excelentes portos, foram inegáveis pontos de atracção” (Silva e Soares, 1986, p. 130-131). As ingénitas particularidades geográficas e climáticas desta região proporcionaram um conjunto de características determinantes para a fixação de grupos humanos e para a confluência de rotas comerciais (terrestres, fluviais e marítimas), com evidentes consequências geoestratégicas. Porém, as propriedades orógenas da Arrábida resumiram as possibilidades de circulação interna ao mínimo essencial – às veredas de “pé-posto” ou de transporte montado que a Serra permitiu e que ainda hoje podem ser em parte trilhadas, algumas entretanto perdidas, outras alargadas, asfaltadas ou encurtadas pela engenharia das estradas. Muitos dos mais ermos e improváveis povoados da Arrábida, as suas grutas e “santuários naturais”, perderam-se no tempo e na vegetação, tanto pelas circunstâncias naturais, como culturais, esquecendo-se também os seus acessos. Neste sentido, poder-se-á dizer que “qualquer caminho tem sempre dois sentidos”. Independentemente da motivação prática e funcional dos seus utilizadores, ou da teórica perspectiva da investigação arqueológica, as vias inter e trans-regionais encurtaram distâncias e lançaram efectivas pontes entre diferentes territórios, povos e culturas... sempre com “duplo sentido”. Então, que “sentido(s)” teriam os grandes caminhos confluentes na encruzilhada da Arrábida? Estamos perante um território emissor, receptor ou aglutinador? Um território autónomo ou subsidiário? A região da Arrábida tem sido estimada como uma dependente “ocidental praia alentejana”, um “desaguadouro” de influências provenientes do montante interior, a partir dos grandes pólos dominantes do Alentejo Central. Por outro lado, a Arrábida pode ser entendida como um território culturalmente livre, um ponto de aportagem de novos estímulos materiais, tecnológicos, culturais e sociais, integrados e retransmitidos ao hinterland pelas vias de penetração. Ora, se a Arrábida for apercebida como o limite sul da grande “placa giratória” estremenha, como um natural território de charneira geográfica e cultural, entre o norte e o sul, entre o Atlântico e o Mediterrâneo, entre o litoral e o interior, como um território de confluência de propícias linhas naturais de transitabilidade e circulação – terrestres (os grandes festos), fluviais (o Tejo e o Sado) e marítimas (o Atlântico) – poderá ter-se A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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emancipado enquanto região colectora de estímulos, com provas dadas desde o Calcolítico regional, particularmente numa diferenciada cultura material de matriz autóctone ou livremente evolucionada a partir de impulsos provenientes de outras paragens. A este propósito, Manuel Calado e Rui Mataloto admitem que falta definir as rotas comerciais e culturais que fizeram chegar ao interior alentejano as inovações oriundas das dinâmicas do mediterrâneo oriental. “Neste aspecto, merecem, por enquanto, ser consideradas duas alternativas que, mais do que contraditórias, podem ser complementares: o foco orientalizante do Guadiana Médio, com acessos próprios ao litoral meridional, ou o foco dos estuários do Tejo e do Sado, para os quais o Alentejo Central, por razões de transitabilidade natural, constituiria naturalmente um território de interacção privilegiado” (Calado et al., 2006, p. 171). A par dos já referidos determinismos naturais, o acesso e circulação de recursos determinou o traçado das grandes vias, quer a nível regional, quer a nível inter e transregional, materializando-se numa rede viária que, evoluindo conforme as conjunturas do tempo, chegou aos nossos dias num palimpsesto de troços, mais ou menos preservados e activos. Na Antiguidade já se encontravam bem definidas as duas principais rotas que cruzavam a Península Ibérica: a grande via continental, vinda de além-Pirenéus pela bacia do Ebro, debruando a vertente sul da Cordilheira Central, chegando aos médios vales do Tejo e do Guadiana, por onde penetrava no sudoeste; e a “Via da Prata”, de desenvolvimento nortesul, partindo dos planaltos de Astorga e Leão, atingindo Cádis. Por meio de longitudinais ramificações secundárias, atingia, a nascente, o interior mesetenho e andaluz, e a poente, o Alentejo e a costa oceânica (Gomes, 1992, p. 111). Também os cursos dos grandes rios, propícios à navegação, cedo se revelaram como importantes vias de penetração para o interior, ou de forma inversa, como excelentes canais de escoamento para os territórios marginais e litorais – o Tejo, o maior rio ibérico, constitui um excelente exemplo disso mesmo. Muitos dos actuais e mais expressivos aglomerados urbanos das margens do Tejo foram fundados, senão anteriormente, pelo menos durante a Proto-História: o oppidum de Olisipo (Lisboa), Ierabriga (Alenquer), o oppidum de Scallabis (Santarém), o povoado fortificado do Alto do Castelo (Alpiarça) e Móron (Vale de Figueira). Mais a montante, nas Portas do Ródão, registou-se um extenso santuário rupestre associado a grandes povoados proto-históricos, de onde partiam os itinerários que os ligavam, na zona fronteiriça de Alcântara e Cáceres, à grande “Via da Prata”, entroncamento onde foi identificado o mais recuado núcleo de necrópoles com estelas decoradas do Bronze Final (ob. cit., p. 112). A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Avieno, na sua Ora Marítima, refere um itinerário terrestre que, no século VI a.C., ligaria a foz do Tejo a Tartessos em quatro dias. Atravessando o Tejo de barco, a partir de Olisipo, o viajante seguia um percurso que passava por Aquabona (Coina-a-Velha?), até chegar a Caetobriga (Setúbal), na margem direita da foz do Sado, seguindo pela margem norte do seu estuário até Salacia (Alcácer do Sal), por onde se entrava no Baixo Alentejo, passando a Vipasca (Aljustrel) e chegando a Pax Julia (Beja), capital do Conventus Pacensis (ob. cit., p. 112). Recuando alguns milénios, há cerca de sete mil anos, foram erguidos no Alentejo Central alguns dos primeiros grandes monumentos do continente europeu – os menires. No Cabo Espichel terminava (ou começava?) um dos mais importantes itinerários naturais da Península Ibérica: a linha que separa as bacias hidrográficas do Tejo e do Sado e que, em Évora, conflui com as que separam as bacias destes rios da bacia do Guadiana. Ao longo desta destacada via circularam, em praticamente todas as épocas, homens, bens, ideias e símbolos. De um lado os menires, hirtos e mudos na planície alentejana; do outro, na sua finisterra atlântica, de igual modo sugerindo uma iconografia antropomórfica, as estalagmites, cristalizadas pela paciência do tempo nas grutas da Arrábida. Mais tarde, há cerca de seis mil anos, as grutas-necrópole foram reproduzidas nas antas do Alentejo Central, enquanto, mais algum tempo depois, a “meio caminho” entre as grutas naturais da Arrábida e as antas do Alentejo e combinando características intermédias, foram construídos outros monumentos funerários – as grutas artificiais. Nesta lógica, e por fim, as placas de xisto. De origem alentejana, revelam-se como um dos mais interessantes elos de ligação entre os universos simbólicos do Alentejo e da Serra da Arrábida. Apesar das suas inúmeras variantes, genericamente de aspecto antropomórfico – “uma representação mais ou menos geometrizada da Deusa Mãe, força de vida e, por isso mesmo, companhia dos mortos” (Gonçalves, 2004, p. 57) – é fácil reconhecer-lhes “um certo ar familiar” (Manuel Calado in blogue Sesimbra Arqueológica). Moral da História: “os caminhos têm sempre dois sentidos”. Relativamente aos seus recursos, é importante realçar o facto de a Arrábida não apresentar qualquer potencial mineiro. Mesmo descontando a falta de escavações nos arqueossítios conhecidos, incluindo o Calcolítico, período em que a investigação atingiu um conhecimento mais aprofundado, a Arrábida não parece evidenciar uma significativa actividade metalúrgica, sendo residuais as manifestações desta tecnologia, resumidas a contextos familiares e de autoconsumo. Ora, se admitirmos o metal como uma das principais fontes do poder das emergentes elites do Bronze Final, resta para a Arrábida um papel de
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importador, de consumidor e, sobretudo, de intermediário nesta cadeia, usufruindo da sua dominante situação face a importantes vias de comunicação. Mas será que os dividendos obtidos com a circulação de bens foram suficientes para justificar o grau de desenvolvimento atingido pelas comunidades do Bronze da Arrábida? Não será de considerar outras “moedas de troca”, designadamente a expedição de algum excedente cerealífero? – “talvez os únicos bens susceptíveis de serem produzidos excedentariamente na Baixa Estremadura” (Cardoso, 2000, p. 67). Pouco credível! Tirando a potencial produtividade agrária do Baixo Sado, de que a Arrábida não beneficiaria directamente, os férteis vales da Serra apenas poderiam satisfazer as necessidades locais, sem áreas suficientemente capazes de produzir excedentes para trocas. Posto isto, resta-nos admitir um “ex-líbris” regional, produzido em quantidade remanescente e de valor suficiente para ser trocado por outros bens lacunares – o sal! De facto, o sal constitui um produto da natureza indispensável à vida humana, desempenhando um relevante papel na vida económica de qualquer sociedade, de tal forma que chegou a ser denominado de “ouro branco”4. Ao longo da História a salicultura tem constituído uma actividade de “vital” importância, pois o sal, além das suas múltiplas aplicações, é, sobretudo, um bem essencial. Por outras palavras, além das suas particularidades vitais, condimentares e conservantes (peixe, carne, azeitonas, etc.), o sal é indispensável em actividades como a produção de queijo e o curtimento de peles, sendo também utilizado como supletivo na engorda do gado, como complemento na farmacopeia e tratamento na medicina tradicional. Acrescente-se, ainda, o seu “poder espiritual”, documentado em diversas culturas e religiões como elemento purgatório. Genericamente, o sal pode ser obtido a partir de duas fontes de extracção: pela mineração de jazidas de sal-gema e pela evaporação de água salgada. Relativamente ao sal marinho, são hoje conhecidos dois antigos métodos de extracção, diferenciados tecnicamente mas com o mesmo objectivo – a decantação e evaporação da água salgada com vista à cristalização do cloreto de sódio. O método mais conhecido, ainda hoje utilizado, recorre à evaporação natural por insolação, levando à concentração da salmoura pela prolongada exposição solar, permitindo rentáveis explorações extensivas, organizadas e “marinhas”. Porém, este método depende de uma série de condições e especificidades meteorológicas e geográficas, implicando a escolha de áreas estuarinas, beneficiando de grande exposição solar anual, vento relativamente seco e 4
“Em Portugal, durante muitos séculos, a indústria extractiva do sal ocupou uma posição cimeira entre as actividades destinadas a activar quer o comércio interno quer o externo. Ela dinamizou de forma clara a vida de vários sectores populacionais em múltiplas regiões do litoral” (Rau, 1984, p. 9).
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pouca precipitação. Trata-se, portanto, de um método circunscrito a determinadas áreas de influência climática mediterrânea (Sul europeu e Norte de África). O outro método documentado recorre ao fogo, enquanto fonte térmica artificial para a evaporação da água salgada. À partida menos produtivo, implicando um maior investimento laboral e grandes quantidades de combustível, tem a vantagem de não depender dos imponderáveis determinismos climáticos e beneficiar de uma maior “liberdade” geográfica. Segundo as evidências arqueológicas disponíveis, este seria o método mais utilizado para a obtenção de sal em épocas Pré e Proto-Históricas (Escacena Carrasco, 1996; Valera et al., 2006; Soares, 2008) – “no registo arqueológico pré-histórico, esta prática manifesta-se através de entulheiras de fragmentos de recipientes cerâmicos (‘briquetage’), associadas a lareiras” (Soares, 2008, p. 361). A técnica extractiva da briquetage encontra-se documentada, na Europa Central, desde o 5.º milénio a.C., e desde os finais do 4.º milénio no litoral ocidental de França (Weller, 2004; Gouletquer, 1969; Bertaux, 1981, apud Valera et al., 2006, p. 292). Esta técnica implica três fases: na primeira, a água salgada era concentrada e decantada pelo aquecimento ao fogo em recipientes cerâmicos, até ser produzida uma salmoura. Os recipientes utilizados eram geralmente grandes, de formas abertas e fundos planos, produzidos com pastas grosseiras, com descuidado tratamento de superfícies e denotando marcas de grande exposição ao fogo. Numa segunda fase, a salmoura era modelada em pequenos recipientes de argila crua. Estes “tabuleiros” eram então dispostos em braseiros, provavelmente assentes sobre suportes cerâmicos (corniformes?), até a salmoura cristalizar de forma padronizada, em medidas e volumes, conforme o molde do contentor. Por fim, os tabuleiros/moldes eram partidos de modo a libertar os blocos de sal, resultando em volumosas entulheiras de fragmentos cerâmicos. Esta cadeia operatória era subsidiada por um conjunto de actividades paralelas: recolha e transporte de água salgada, do combustível e da argila necessária à produção dos diferentes recipientes (Valera et al., 2006, p. 292). Ainda que não se deva subestimar a possibilidade das sociedades paleolíticas aproveitarem, pontualmente, a natural cristalização do sal, as primeiras evidências relativas à sua produção remontam ao Neolítico, “en concreto del VI milenio en el yacimiento rumano de Poiana-Slatinei, en Lunca, Vânatori-Neamt” (Weller e Dumitroia, 2005, apud Terán, 2011, p. 74). Para a Península Ibérica, os dados mais remotos reportam-se ao Neolítico Médio (4500-3500 a.C.) da Muntanya de Sal de Cardona, a 80 km de Barcelona. Este arqueossítio permitiu identificar uma série de instrumentos líticos, produzidos especificamente para a
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extracção de sal-gema do referido afloramento – diapiro salino (Fíguls et al., 2007; Fíguls et al., 2010). A produção de sal em épocas pré-romanas tem vindo a ser proposta, com algumas reservas, em alguns arqueossítios do nosso país, designadamente no povoado do Neolítico Médio/Final da Praia do Forte Novo, em Quarteira/Loulé (Rocha e Barros, 1999); no povoado do Neolítico Final/Calcolítico inicial (primeira metade do 3.º milénio cal a.C.) da Ponta da Passadeira (Soares, 2000b; 2001; 2008), implantado na margem esquerda do Tejo, sobre uma restinga arenosa da margem sul da desembocadura do esteiro da Moita “e dedicado, muito provavelmente, à exploração de sal, por evaporação ao fogo da água estuarina e cristalização do sal em recipientes cerâmicos, que uma vez fragmentados originaram extensas entulheiras” (Soares, 2008, p. 356), “a vocação do local para a salicultura remonta, pelo menos, aos finais do IV milénio BC, como indicam os resultados da análise polínica do paleossapal, ao revelarem a existência de um meio de elevada salinidade” (ob. cit., p. 361); no povoado do Neolítico/Calcolítico do Monte da Foz 1 e 9, em Benavente/Santarém (Coelho, 2005); e no povoado do Neolítico Final/Calcolítico (finais do 4.º/inícios do 3.º milénio a.C.) do Monte da Quinta 2, na margem esquerda do vale do Sorraia, em Benavente, implantado num braço da ria flandriana do paleoestuário do Tejo, sob a influência, à época, de águas salgadas. Mais uma vez, a briquetage foi a técnica extractiva documentada neste sítio (Valera et al., 2006). Também em territórios espanhóis têm sido exumados indícios de actividades salineiras pré-romanas, particularmente no já referido sítio do Neolítico Médio (4500-3500 a.C.) de Cardona, Barcelona (Fíguls et al., 2007; Fíguls et al., 2010); no povoado do Neolítico Final (3000 a.C.) de La Marismilla, em Sevilha (Escacena Carrasco et al., 1996); no povoado calcolítico/campaniforme (2500-2150 a.C.) de Molino Sanchon II, no complexo lacustre de Villafáfila, em Zamora (Delibes de Castro et al., 2007); no sítio calcolítico de Las Salinas de Espartinas (Ciempozuelos/Madrid), onde foram registadas três pequenas estruturas elípticas de argila endurecida, com aproximadamente 1 x 1,20 m de diâmetro, interpretas como “balsas” de decantação por se encontrarem associadas a estruturas de combustão e a grandes vasos cerâmicos troncocónicos, presumivelmente utilizados como contentores de água salgada (Valiente Cánovas e Ramos, 2009); no povoado calcolítico/campaniforme de Fuente Camacho (Granada), onde foram registados diversos recipientes cerâmicos de grande capacidade e perfil aberto, produzidos com pastas grosseiras e acabamentos pouco cuidados, associados a abundante material orgânico carbonizado e densos níveis de cinzas, evidências
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que, no seu conjunto, sugerem a produção de sal pela técnica da briquetage (Terán e Morgado, no prelo, apud Terán, 2011, p. 79). Relativamente a cronologias da Idade do Bronze e no âmbito peninsular, até à data apenas foi identificado um presumível arqueossítio dedicado à produção salineira. Trata-se do povoado da 1.ª Idade do Bronze de Santioste, no Otero de Sariegos, em Zamora, Espanha (Delibes de Castro et al., 1998). O sítio registou três fases. A primeira (2460-2200 a.C.) caracterizou-se pela produção de sal pela evaporação térmica da água salgada, contida em grandes recipientes cerâmicos expostos ao fogo, bem documentado pela presença de densos níveis de cinzas. Segundo os investigadores, também será de admitir a hipótese de decantação da água salgada em covas impermeabilizadas com argila. Durante a segunda e a terceira fase (entre os finais do 3.º e os meados do 2.º milénio a.C.), foram registadas estruturas de combustão mais complexas – verdadeiros fornos. Estão em causa três câmaras de combustão rectangulares, com aproximadamente 1,5 x 0,5 m, escavadas paralelamente em solo margoso, revestidas com argila e cujo interior apresentou abundantes cinzas e carvões. Contrariamente ao mundo centro-europeu, onde se tem vindo a documentar um verdadeiro boom na produção de sal ao longo do 1.º milénio a.C. (particularmente na Áustria, Alemanha e França), na Península Ibérica, além dos residuais ecos da literatura clássica, os indícios para a exploração do sal durante a Idade do Ferro são muito escassos. Esta estranha incoerência, relativamente à natural evolução e complexificação das sociedades protohistóricas, além das indirectas mas exuberantes evidências a partir do século I d.C. (complexos de salga de preparados piscícolas), deverá ser explicada pela própria mudança nas estratégias de extracção do sal – abandono das técnicas de evaporação ígnea, de pequena escala e com carácter de consumo local, em favor da insolação, a par da concentração produtiva em especializados centros produtores, beneficiando de condições mais favoráveis e com áreas de exploração mais extensas, permitindo mesmo o aforro de excedentes produtivos. Em determinadas áreas estuarinas, com melhor potencial extractivo, a exploração do sal em salinas poderá ter tido manifestações mais precoces e rudimentares, particularmente ao longo da Idade do Bronze. Contudo, esta mudança, não obstante reflectir-se na produção de maiores quantidades de sal, implica uma menor expressão no registo arqueológico, pois as salinas implantam-se em zonas estuarinas, expostas a dinâmicas de marés, sendo as suas precárias “estruturas” rapidamente dissolvidas pela erosão ambiental e “temporal” – muros de terra batida, eventualmente contida em caixilhos de madeira.
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Em suma, e no que respeita às envolventes da área de estudo do presente trabalho, o sal encontra-se comprovadamente explorado no paleoestuário do Tejo desde o Neolítico Final e, de forma indirecta, no Sado, pelo menos desde Época Romana, não sendo de excluir uma produção, mais rudimentar e de menor escala, em épocas anteriores, tendo em conta a sua particular qualidade e facilidade de extracção nestas paragens. Relativamente à Idade do Ferro e à produção de ânforas pré-romanas (admitindo a sua eventual conexão com as primeiras salgas), “para o actual território português, só temos indícios, ainda pouco claros e de incerta datação, do fabrico de ânforas e, consequentemente, da exportação de um qualquer produto, em Alcácer do Sal” (Fabião, 1993, p. 126). Também neste particular, a Arrábida parece constituir uma realidade periférica, relativamente aos grandes centros de desenvolvimento, todavia com acesso directo ao mar e aos seus recursos. Por outro lado, mesmo que lateral em relação à via de circulação entre o Sado e o Tejo (mais interior), a Arrábida beneficiaria, contudo, da sua evidente proximidade, dominando efectivamente a entrada (e saída) do Sado. Ora, se seguirmos uma lógica histórico-evolutiva, considerando a importância e expressão arqueológica da produção de preparados piscícolas na viragem para a nossa Era, contando que se tratava de uma indústria necessariamente dependente de grandes quantidades de sal (insubstituível ingrediente conservante), e mesmo na total ausência de suporte arqueográfico da sua extracção, será de admitir que a salicultura já constituiria uma efectiva realidade nos finais da Idade do Bronze, desenvolvendo-se com a complexificação das sociedades indígenas e dos seus esquemas produtivos, atraindo, mais tarde, outros reconhecidos “investidores” – “como é óbvio, só um conhecimento prévio da região e contactos anteriores com a população indígena pode justificar esta presença de fenícios do «Círculo do Estreito» no estuário do Sado” (Arruda, 1999-2000, p. 98). Segundo Ana Margarida Arruda, terá sido na Idade do Bronze e Idade do Ferro que a actividade salineira se estabeleceu em definitivo, concomitantemente com a crescente importância da criação de gado e da conservação da sua carne (Arruda e Vilaça, 2006, p. 47).
Fig. 140 – O Galeão do Sal “Zé Mário” na estacada palafítica de Abul (foto de R. Soares).
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114
6.6.
Transição Bronze Final/Idade do Ferro: os novos dados “Estranhos numa terra (quase) estranha”. Ana Margarida Arruda, 2008
No contexto da transição Bronze Final/Idade do Ferro, torna-se essencial a detecção de elementos atribuíveis aos primeiros contactos “orientalizantes” e, num segundo momento, à fixação de populações exógenas, nomeadamente fenícias. Em regiões onde estes elementos não são tão evidentes, ou se encontram totalmente ausentes, os investigadores vão resistindo com expressões compostas como “Bronze Final/Ferro Inicial”. Porém, autores como Almagro-Gorbea fazem recuar a evidência dos contactos pré-fenícios, particularmente de origem greco-micénica, introduzindo expressões como “Proto-Orientalizante” e “Précolonial”, reportando-se a um momento prévio ao período “Orientalizante” (Aubert, 1992; Almagro-Gorbea, 1993). “Estranhamente, ou talvez não”, é do Centro de Portugal, mais especificamente do seu interior, que são provenientes os mais numerosos artefactos de origem mediterrânea, relacionáveis com os primeiros contactos pré-coloniais (Arruda, 2008, p. 357). Esta manifesta assimetria, entre os dados disponíveis para o Bronze Final do Centro-Norte e do Sul de Portugal, pode explicar-se pela própria “geografia da investigação”, encontrando-se o sul, até à data, mais deficitário de sistemáticos projectos de investigação. De facto, e contrariando uma lógica de contiguidade geográfica e cultural, a proximidade do extremo oriental do Algarve, relativamente à região da Ría de Huelva, ainda não se consubstanciou no registo arqueológico português. No que diz respeito à Península de Setúbal, há muito que esta região vinha a denunciar alguns garantidos indícios “orientalizantes” em contextos da fase final da Idade do Bronze, a par de indirectas evidências para “navegações mediterrâneas para o Atlântico durante o Bronze Final. Um dos sítios é particularmente famoso, sendo sistematicamente trazido à colação na discussão do fenómeno pré-colonial” – trata-se do “clássico” monumento funerário da Roça do Casal do Meio (Arruda, 2008, p. 360). Por outro lado, “as realidades detectadas em Alcácer do Sal, Setúbal e Abul são testemunhos indesmentíveis da presença de populações de origem oriental nesta região. O estuário do Sado pode assim ser considerado um espaço colonial fenício por excelência” (Arruda, 1999-2000, p. 97). Se por um lado, estes indícios pré-coloniais são tendencialmente residuais, relativamente
à
totalidade
dos
artefactos
exumados,
por
outro,
correspondem,
maioritariamente, a objectos de adorno (contas de pasta vítrea, pinças e, sobretudo, fíbulas). Estes materiais, associados a datações radiocarbónicas, têm permitido aferir cronologias em A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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torno dos séculos XI-X a.C. (Arruda, 2008, p. 357) – “com efeito, não existem, nem no Alentejo interior nem no Algarve, quaisquer materiais que possamos relacionar com presenças orientais ou mesmo atlânticas em época anterior ao século IX a.C. E mesmo no litoral ocidental, concretamente no estuário do Tejo (Quinta do Marcelo) ou na Península de Setúbal (Roça do Casal do Meio) o que existe deixa antever que foi apenas no século X que houve vinculação aos circuitos de intercâmbio que em grande parte formataram o final da Idade do Bronze” (ob. cit., p. 366-367), situação também verificada na região da Andaluzia Ocidental. “A presença de artefactos de âmbito mediterrâneo no Sul do território actualmente português em momento anterior à instalação de colonos fenícios na fachada atlântica peninsular é actualmente indiscutível” (ob. cit., p. 367). Segundo Ana Margarida Arruda, considerando os dados cronométricos de Huelva, tudo indica que os materiais orientais verificados no sul da Península Ibérica se inscrevem num modelo “MCS” – Modo de Contacto Sistemático (Arruda, 2008, p. 357, cf. Alvar, 2000, p. 28), e que as gentes instaladas em Huelva teriam origem na fachada sírio-palestiniana, tendo sido, no caso português, o Rio Tejo o primeiro pólo de aportagem de colonos orientais durante a Idade do Ferro (Arruda, 2005a e b). Se considerarmos as circunstâncias da investigação e se entendermos a Península da Arrábida (e o próprio Sado) como o primeiro acidente geográfico na rota do sul, a partir do eixo Mediterrâneo-Atlântico de Sagres, “a maior quebra de direcção do litoral ocidental português” (Ribeiro, 2004, p. 55), é de admitir que a região tenha beneficiado de precoces contactos exploratórios, anteriores aos tenuemente verificados no baixo curso do Tejo – “esta tardia e pouco intensa presença traduzirá alguma marginalidade, mas deverá esperar-se que os novos projectos em curso na região possam iluminar muitos pontos obscuros do Bronze Final do Sul de Portugal” (Arruda, 2008, p. 368). A questão tartéssica tem sido recorrentemente trazida à colação como modelo de interpretação para a formação social do Bronze Final do Sudoeste peninsular e das mudanças verificadas nas sociedades indígenas, face às novas realidades emergentes da instalação colonial fenícia. Assim, foram surgindo propostas que concebem a realidade tartéssica como o resultado de um intenso processo de hierarquização social e de complexificação do povoamento nas sociedades indígenas, “galopante” no sentido de um novo mundo urbano de fundo estatizante (Mataloto, no prelo, cf. Aubet, 1991; 1995; Almagro, 1996; Mederos e Harrison, 1996; Parreira, 1998; Soares e Silva, 1998; Torres, 2002). Outros, focados sobretudo nos dados da Andaluzia, sublinham, talvez com algum exagero, o papel da
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colonização fenícia como catalisador do desenvolvimento das sociedades indígenas (Mataloto, no prelo, cf. Barceló, 1995; Escacena, 1995, 2005; Wagner, 1993). Na verdade, a transição Bronze Final/Idade do Ferro continua mal esclarecida um pouco por todo o Sudoeste Peninsular. A região da Arrábida não foge à regra, antes pelo contrário: os dados aqui apresentados, por terem sido produzidos, quase exclusivamente, em prospecções de superfície, dificilmente poderiam resolver esta questão. Ainda assim, recentes descobertas de evidências correspondentes à 1.ª Idade do Ferro podem vir a fornecer informações que nos permitam melhor compreender esta transição e os eventuais circuitos orientalizantes que a precederam, designadamente nos contextos do estuário do Sado. Relativamente aos estímulos “orientalizantes”, a região da Arrábida há algum tempo que havia documentado precoces contactos com o mundo mediterrâneo, particularmente no espólio metálico do “(re)monumento” funerário da Roça do Casal do Meio (Spindler et al., 1973-74). Recorde-se que a fíbula exumada nesta necrópole, de inspiração mediterrânea, foi datada de 1004-835 a.C. (Senna-Martinez, 2010, p. 19, cf. Vilaça e Cunha, 2004, p. 52). Mais recentemente, nos trabalhos de prospecção realizados no âmbito da nova Carta Arqueológica de Sesimbra (Calado et al., 2009), foram identificados, finalmente, os primeiros e inequívocos indícios de presença humana atribuível à 1.ª Idade do Ferro. Em boa verdade, a Idade do Ferro sesimbrense já tinha sido comprovada na necrópole do Casalão, por Eduardo da Cunha Serrão. À época, o autor enquadrou o achado na 2.ª Idade do Ferro (Serrão, 1994, p. 58), mas tendo em conta as características formais das sepulturas e o espólio artefactual exumado, constituído por um conjunto de objectos de bronze na tradição do Bronze Final da Roça do Casal do Meio (mola espiralada de fíbula, anel e pinça), além de uma lâmina de faca afalcatada em ferro e de alguns fragmentos de hematite (minério de ferro), tudo parece indicar uma fase mais antiga, dentro da 1.ª Idade do Ferro (Fabião, 1992, p. 141-143; Calado et al., 2009, p. 31). Trata-se de um conjunto de cinco sepulturas independentes, de planta sub-rectangular, estruturadas com grandes e toscas lajes de calcário, “em tudo idênticas às tumulações do Bronze Final” (Fabião, 1992, p. 141). Também na Arrábida, a fase pré-romana parece totalmente ausente. Apesar de, normalmente, serem de fácil identificação, ainda não foram documentados quaisquer vestígios correspondentes à 2.ª Idade do Ferro. Os sítios agora identificados, de cronologias relativas enquadráveis na 1.ª Idade do Ferro, manifestaram-se, sobretudo, em ocupações de grutas, abertas ao mar e com entradas conspícuas na paisagem: a Lapa da Cova (vertente sul da Serra do Risco) – uma grande cavidade de acesso ascendente, aberta na cota dos 260 m da mais elevada arriba calcária da A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Europa continental; a Lapa da Janela I (Vale das Lapas/Serra da Azóia) – conjunto de pequenas cavidades, algumas interligadas, de acesso ascendente segundo uma orientação preferencial de 225º, com cerca de 20 m de profundidade máxima e cerca de 3 m de altura média. Registou cerâmica brunida e bordos exvertidos (Calado et al., 2009, p. 115). A sua implantação, morfologia e materiais de superfície admitem, provisoriamente, uma vocação sagrada, na linha da Lapa da Cova. Nas vertentes e fundo de vale do Vale das Lapas também foi reunido um conjunto de materiais cerâmicos de cor clara, bastante erodidos, nos quais se pôde isolar duas asas de rolo; a Lapa do Forte do Cavalo A (Sesimbra) – ampla cavidade de acesso descendente, com cerca de 30 m de comprimento, por 20 m de largura e 8 m de altura máximas, onde foram assinalados fragmentos de cerâmica manual e a torno, incluindo bordos (Calado et al., 2009, p. 119); a “Cara do Cabo” (Cabo Espichel) – dois pequenos abrigos abertos na falésia do Espichel, onde foram registados fragmentos de cerâmica manual e a torno (Calado et al., 2009, p. 105). De estranhar o facto de, na notável jazida arqueológica da Lapa do Fumo (Serra dos Pinheirinhos), onde foi registada uma quase completa sequência de ocupação, desde o Neolítico Antigo “até hoje”, não ter sido observado qualquer indício de presença humana atribuível à 1.ª Idade do Ferro (Serrão, 1958, 1973, 1975). Estes vestígios cavernícolas, tendencialmente rituais, foram complementados por inéditas notícias do “quotidiano dos vivos”. Em causa, um conjunto de achados identificados na Serra da Achada, na vertente nascente do vale de Sesimbra, mais concretamente no sítio da Meia Velha. Trata-se de uma extensa rechã, cortada por falésias abruptas, com uma série de abrigos na base. Da sua extremidade sul é possível controlar toda a baía de Sesimbra. A sua caracterização cronológica partiu de um conjunto de observações: restos de muros de aparelho calcário à face do solo actual, desenhando um ângulo recto, a que se associaram fragmentos de cerâmica manual e a torno, nomeadamente uma asa de rolo e bordos exvertidos (Calado et al., 2009, p. 123). Também na povoação de Pedreiras (Sesimbra), no sítio da Casa Nova, foi identificado um conjunto artefactual com cerâmica manual, eventualmente atribuível ao Bronze Final (bordos simples e fundos planos) e abundante cerâmica a torno, de pastas claras, destacando-se um bordo exvertido (1.ª Idade do Ferro? – Calado et al., 2009, p. 89). Estas duas estações de ar livre implantam-se em plataformas abertas e com potencial agrícola, enquadrando-se, “sem dificuldades, no padrão bem representado nas áreas limítrofes, como a Península de Lisboa ou o Alentejo Central” (ob. cit., p. 30). De acrescentar, ainda, que estes dois sítios de habitat implantaram-se nas imediações da Lapa da Cova, a sensivelmente 1.5/2 km deste “santuário natural”. Aprioristicamente, e tendo em conta os dados disponíveis, a menor intensidade da A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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presença humana nos inícios da Idade do Ferro da Arrábida, relativamente à exuberância verificada nos finais da Idade do Bronze, é compatível com a falência do modelo sócioeconómico e político-administrativo vigente (Calado et al., 2009, p. 30). Este colapso, que marcou o fim da Idade do Bronze, também foi registado no Alentejo Central, onde “verificamos que a chegada do comércio fenício (e, certamente, de novos valores culturais e novas realidades políticas) implicou uma profunda reorganização do povoamento. Os grandes castros de altura, esvaziaram-se, na sua maioria. A população parece ter-se fragmentado em pequenas unidades de produção, dispersas pelos territórios, em instalações abertas, sem condições naturais nem artificiais de defesa. Uma aparente antecipação da Pax Romana. Falta, porém, determinar os mecanismos de coesão desse novo modelo de povoamento que, aliás, prosperou e floresceu durante alguns séculos” (ob. cit., p. 30). Por fim, a Arrábida poderá ser apercebida como a última manifestação, a ocidente, dos cânones paisagísticos do Mediterrâneo, significando uma cénica “finisterra”, uma verdadeira “muralha” natural entre o mundo mediterrâneo e o mundo atlântico, um território de charneira paisagística e ambiental, razoavelmente bem definida, designadamente no seu clima e coberto vegetal. É de presumir que este quadro não tenha passado indiferente aos primeiros visitantes orientais, que naturalmente se terão identificado com esta paisagem de referência, com a sua ambiência e com a sagrada quietude das suas paragens (“Estranhos numa terra (quase) estranha” – Arruda, 2008) – “com os enrugamentos calcários cavalgantes sobranceiros ao litoral, despenhando-se por escarpas brutais num mar de rara serenidade, franjada de baías luminosas fechadas por promontórios intransponíveis, ela é o único troço verdadeiramente mediterrâneo da costa portuguesa, tanto pela arquitectura do terreno, dobrado e cortado de grandes deslocações, como pelas águas tépidas, tranquilas e abrigadas, que mais parecem um mar interior” (Ribeiro, 1986, p. 125).
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7.
A Arrábida: entre o Tejo e o Sado, entre Atlântico e o Mediterrâneo, entre o litoral e o interior “(...) ela é o único troço verdadeiramente mediterrâneo da costa portuguesa, tanto pela arquitectura do terreno, dobrado e cortado de grandes deslocações, como pelas águas tépidas, tranquilas e abrigadas, que mais parecem um mar interior”. Orlando Ribeiro, 1986
No Ocidente, o desenvolvimento civilizacional processou-se na região circummediterrânea e de forma intrinsecamente ligada ao mar... tal não aconteceu por acaso. Efectivamente, os processos de geodinâmica interna foram progressivamente promovendo condições para o florescimento de “espaços vitais”, verdadeiros “ninhos” de desenvolvimento populacional, servindo de berço a sucessivas civilizações, de certa forma herdeiras umas das outras e com limitadas influências exteriores (Braudel, 1998). Desde cedo, estas civilizações aprenderam a olhar o mar, não como um elemento separador, mas antes como uma via de comunicação por excelência. Assim, torna-se possível afirmar que o mar foi o principal denominador comum destas gentes e que o desenvolvimento civilizacional se processou a par da intensificação da exploração do meio marinho. 7.1.
Navegando em “Mares de Bronze” – o “síndrome do marinheiro” “São maus descobridores os que pensam que não existe terra porque só podem ver o mar”. Francis Bacon, O Progresso do Conhecimento “Desde a noite dos tempos que o homem se perdeu na água, porque ela é, por definição, alimento, fonte de subsistência e desafio à separação. Isto é, campo e estrada – o barco ou o navio sendo, mais do que metaforicamente, o arado do mar”. Francisco Alves
O meio aquático constitui um verdadeiro paradoxo cultural e ambiental. Ainda hoje, numa época de navegação global, o espaço aquático é tido como uma imponderável barreira física, um ambiente não controlado e pleno de surpresas, perigos e tragédias. No Passado, o alcance deste sentimento seria exponencialmente superior, todavia, rios, lagos e mares significaram uma potencial via de comunicação e de aproximação entre as sociedades, ao invés de as dividir (Tranoy, 1995). O acto pelo qual o Homem se “fez ao mar” constituiu um verdadeiro exercício de selecção cultural, um empreendimento de recursos que não se esgotou, tão-somente, na construção de uma embarcação adequada a um determinado objectivo. O advento e evolução da navegação inspirou-se e repercutiu-se na subsistência, na indústria, no comércio ou na guerra, produzindo uma variedade de materiais e artefactos altamente específicos desta empresa – cultura material especializada. O grau de especialização é também variável ao longo do tempo e conforme as culturas. Para aferir o verdadeiro alcance e importância das navegações, em cada época e sociedade, o registo arqueológico tem vindo a revelar indubitáveis provas destas actividades, A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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particularmente relativas às primeiras grandes viagens marítimas, verdadeiras pontes tecnológicas onde o contacto terrestre era, por vezes, fisicamente impraticável. Neste ponto, além das matérias-primas, dos artefactos (e/ou dos seus modelos) e dos seus circuitos de circulação, há que considerar, em definitivo, os homens que os transportavam – os marinheiros, os verdadeiros interlocutores deste processo de contacto e comunicação que foi muito além dos bens materiais, promovendo o trânsito de um amplo pacote de impulsos e influxos: mentais, culturais, tecnológicos e genéticos. Desde cedo, as primárias actividades piscatórias foram dando entrada no registo arqueológico, indirectamente pelos indícios de consumo alimentar, pela descoberta de raras embarcações e, sobretudo, de artefactos como pesos de rede e poitas, arpões e anzóis. Estes últimos, inicialmente simples, talhados em osso, madeira ou conchas, tornaram-se progressivamente mais sofisticados, designadamente com o recurso a materiais metálicos. Destes, merecem aqui destaque os conhecidos para o Calcolítico regional da Arrábida: um fragmento de anzol de “cobre”, de secção quadrangular, identificado na escavação da Lapa da Furada (Cardoso e Cunha, 1995), e, mais para oriente, na Pré-Arrábida de São Luís, os vários anzóis de “cobre” identificados no povoado da Rotura (Gonçalves, 1971). Dominando visualmente um vale de solos férteis e uma portela para o mar, aberta ao longo da várzea da Comenda (o “caminho do peixe” – Gonçalves, 1966, p. 9), este sítio de habitat revelou uma significativa actividade piscatória e de recolecção de recursos marinhos, sobretudo malacológicos – «o Castro, em si, é oculto por uma vegetação rasteira e forte, cheio de pequenas barreiras, naturais ou artificiais, e quase completamente coberto por inúmeros restos de animais marinhos» (ob. cit., p. 9), sobretudo conchas de moluscos, na sua grande maioria de amêijoas, mas também mexilhões, navalhas e lapas, além de diversas vértebras e osteólitos de peixes (dourada e pargo) e segmentos de crustáceos (lagosta, santola e outros) (Gonçalves, 1971, p. 40). De referir, ainda, a ocorrência de “restos de cetáceos não identificados” (ob. cit., p. 79), realidade que, a par dos grandes anzóis observados, atesta a importância da pesca de mar – “corvinas, atuns ou toninhas, atendendo às dimensões, excessivas para pargos ou douradas” (Cardoso, 2000, p. 57). Por enquanto ausentes em contextos da Arrábida, mas bem documentados em diversos sítios do Bronze Final do Ocidente Peninsular, os pesos de rede sobre seixos, com entalhes laterais e de expedita facilidade de execução, poderão vir a ser documentados em expectáveis escavações. Esta manifesta “relação com o mar” e os meios estuarinos do Calcolítico da Estremadura Portuguesa, aparentemente atenuada durante a 1.ª Idade do Bronze (Daveau, A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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1980; Senna-Martinez, 1994a), poderá ter sido retomada no Bronze Final, até por via da circulação dos “modelos metálicos atlânticos”. Relativamente às embarcações, estas implicam estruturas projectadas e construídas para resistir a forças muito mais complexas do que os transportes terrestres. Neste sentido, os métodos e as técnicas de construção naval representam, muitas vezes, a vanguarda tecnológica de uma sociedade, tão simplesmente pelo facto de não haver paralelo para tão grande exigência criativa – veja-se os casos fenício e grego. Enquanto cultura material especializada, as embarcações constituem uma copiosa fonte informativa acerca das sociedades que as produziram, enquanto a construção naval implica uma complexa actividade social que envolve desenvolvimento, organização, cooperação e investimento no longo prazo. Por outro lado, as embarcações também devem ser consideradas enquanto “símbolos”, transmissores por excelência de ideologias e expressões sociais, incluindo a tradição dentro da qual foram construídas. A génese e evolução tipológica das embarcações e das respectivas técnicas de construção e de navegação dependeram, na maior parte dos casos, dos condicionalismos geográficos e ambientais, dos recursos disponíveis, do grau de evolução técnica e económica das sociedades e do fim a que se destinavam. A transição da utilização de barcos de pesca para barcos de transporte e comunicação foi, muito provavelmente, um passo natural de um longo devir que se manifesta até à actualidade. Em âmbitos mediterrâneos, nos finais da Idade do Bronze e na Idade do Ferro, a navegação de cabotagem era seguramente complementada por uma “regular” navegação de “alto-mar”, implicando mareações nocturnas, realidades comprovadas, por exemplo, pela presença fenícia nas ilhas de Sicília, Sardenha e Ibiza – “de facto, tanto Hesíodo como Homero descrevem viagens de vários dias sem escalas intermédias e, mais tarde, Estrabão menciona que no Mediterrâneo se navegava no mar alto” (Arruda, 1999-2000, p. 27). Relativamente à navegação nocturna, além das referências luminosas em terra (faróis) e da iluminação das próprias embarcações, é justo recordar que os fenícios já conheciam a Ursa Maior, recorrendo naturalmente à Estrela Polar nas suas viagens (Arruda, 1999-2000, p. 27), pelo que os gregos conheciam esta estrela por “Kochab” – a estrela fenícia (Arruda e Vilaça, 2006, p. 36). Contudo, a exposta costa atlântica, recortada ao longo da fachada ocidental da Península Ibérica, reúne características bem diferenciadas dos mares interiores do Mediterrâneo. Em Portugal, as actuais condições do ambiente marítimo não serão muito diferentes das verificadas em tempos mais remotos. Hoje, regista-se uma considerável A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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agitação marítima, com uma predominância dos quadrantes norte-noroeste, que a sul do Cabo Espichel, durante 70% do ano, produz uma ondulação média na ordem de 1 m de altura, atingindo cerca de 4 m durante 2% do ano. Quanto aos ventos, no presente predomina a “nortada”, ou seja, um regime de ventos que sopram do quadrante norte-noroeste, particularmente intensos a partir do fim da tarde, amainando de madrugada, tanto no Inverno como no Verão, sendo especialmente intensos na zona dos cabos (Carvoeiro, Roca, Espichel e São Vicente). No Inverno, pela influência dos sistemas frontais, sentem-se as rajadas de sudoeste. As correntes, na actualidade, correm predominantemente de norte para sul, com velocidades médias na ordem dos 0.2-0.5 nós, não afectando significativamente a navegação, sendo que, na desembocadura do Tejo e do Sado, as correntes variam com a influência das marés. As condições de visibilidade na navegação são muito condicionadas pelas neblinas de condensação das madrugadas e manhãs de Verão, dissipando-se com o gradual calor do dia (Arruda, 1999-2000, p. 23-25). Todavia, parte destas genéricas condições pode ter sido desigual durante a Pré e a Proto-História, tendo em conta a natural evolução e as transformações climáticas, designadamente a provável diminuição no efeito de upwelling costeiro, traduzida na não existência de um regime de “nortada” e em diferenças nas correntes marítimas (Soares, 1997). Assim, se o Mediterrâneo facilitou uma navegação “motrizada” por velas e remos, já os vigorosos mares do Norte e Atlântico implicaram, sobretudo, uma navegação à vista, de cabotagem larga (Arruda e Vilaça, 2006, p. 35-36), onde a vela terá assumido uma preponderância vital. Porém, na costa ocidental da Península, considerando a predominância dos ventos do quadrante norte durante praticamente todo o ano, a navegação à vela (panos quadrangulares) apenas é beneficiada nas rotas provenientes de norte. Recorde-se que, só com o advento da bolineira vela triangular (latina) se tornou possível navegar contra o vento – mareações em bordos diagonais (“bolinas”) que afrontam os ventos até perto dos 12º, ou com “largos” laterais, perpendiculares à linha proa-popa. Assim, a propulsão combinada de velas e remos seria obrigatória na navegação em épocas proto-históricas, sobretudo nas rotas provenientes de sul, contudo extremamente beneficiadas no trajecto de retorno. Em zonas estuarinas e ribeirinhas, além das correntes, as embarcações (de baixo calado, monóxilas e jangadas), moviam-se por meio de remos, pagaias, varas e pela sirga – técnica de reboque de uma embarcação por meio de cabos puxados das margens, através da força de homens e/ou animais. A informação relativa às navegações proto-históricas, sobretudo de origens mediterrâneas, aos seus promotores e às suas progressivas manifestações em paisagens A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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ibéricas, fundamentou-se, à partida, nas fontes clássicas – Hesíodo, Homero, Heródoto, Avieno,
entre
outros.
Ulteriormente,
estes
residuais
ecos
bibliográficos
foram
complementados por abordagens toponímico-etimológicas e, em parte, confirmados pela Arqueologia, materializando-os pela exumação de vestígios físicos. Todavia, os dados arqueológicos coligidos são na globalidade escassos e insuficientes para compreender a real dimensão e alcance social destas manifestações náuticas. Acresce o facto de a tradição arqueológica, dita “terrestre”, não considerar, geralmente, a influência dos marinheiros nas trocas de longa distância, sobretudo de produtos de prestígio, e na disseminação de conceitos intelectuais, sendo que, os homens do mar constituem, em boa verdade, os directos responsáveis por esses processos. Por outro lado, há que considerar, em definitivo, o estudo da paisagem marítima (seascape), ou seja, paisagem de mar e costa, associando a navegação marítima à arqueologia da paisagem, no sentido de compreender como é que o mar foi apercebido a partir de terra e vice-versa – a paisagem marítima como um conceito ideológico (Cosgrove, 1998, p. 15). Além da carência de uma investigação sistemática e dirigida, particularmente lacunar no caso português, pesa a natureza de curta preservação no tempo e no espaço dos materiais empregues nestas actividades: madeiras, cordame de fibras vegetais entrançadas, barro, musgo prensado, peles, ossos, bexigas de animais, têxteis, etc. Contudo, as mesmas forças ambientais que causam uma constante sequência de perdas no registo arqueológico, conjuram-se muitas vezes para preservá-lo em condições extraordinárias – material cultural assimilado em sedimentos anaeróbios de leitos de rios, lagos ou mares. Estas especiais condições podem revelar uma imagem de alta resolução das actividades do Passado. Nas Ilhas Britânicas, e para ambientes atlânticos, as excepcionais descobertas e consequente investigação dos “barcos de pranchas” tem vindo a revelar-se fundamental, tanto mais que a informação disponível, relativa às características das proto-embarcações da Idade do Bronze, terá sido sobretudo registada em suportes iconográficos (Bradley, 1997; Kristiansen, 2004; Van de Noort, 2006). Parte daqui a razão pela qual, no âmbito do presente trabalho, foi dado particular enfoque à temática dos “sewn-plank boats” britânicos (Wright, 1990; Wright et al., 2001; Clark, 2004a; 2004b; MacGrail, 1997), as principais referências materiais para as embarcações da Idade do Bronze atlântico no actual panorama da investigação. Justamente, na Grã-Bretanha, as últimas décadas têm sido profícuas em trabalhos arqueológicos relativos às antigas navegações oceânicas, particularmente no decorrer da Idade do Bronze, numa linha de investigação necessariamente independente da seguida para o A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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espaço mediterrâneo – diferentes mares, diferentes realidades e opções. Estes trabalhos têm vindo a explorar alguns dos raros vestígios de embarcações deste período, além de revisitaram os respectivos contextos arqueológicos e paisagísticos. Assim, importa referir um conjunto de achados, sobretudo localizados no estuário e foz do Rio Humber, no nordeste de Inglaterra: os cinco barcos de casco empranchado identificados em North Ferriby, a partir de 1937, cronologicamente enquadráveis entre a 1.ª Idade do Bronze e os inícios da Idade do Ferro (Wright, 1990; Wright et al., 2001); a prancha isolada de Kilnsea, do Bronze Médio (Van de Noort et al., 1999); e os vestígios de outra embarcação descoberta em Brigg, esta datada do Bronze Final (McGrail, 2001, p. 190). A par dos achados do Rio Humber, foram assinaladas outras embarcações desta tipologia em Inglaterra, destacando-se o barco de Dover, identificado em 1992 e datado do Bronze Médio – 1575-1520 cal a.C. (Clark, 2004a; 2004b), além de outros vestígios assinalados em Caldicot (Bronze Médio) e Goldcliff, no País de Gales, estes últimos enquadráveis em cronologias do Bronze Final (MacGrail, 2001, p. 190). Em Caergwrle (Clwyd), também foi registada uma pequena embarcação da Idade do Bronze, interpretada, por alguns autores, como um modelo de uma embarcação maior (Denford e Farrell, 1980). Relativamente à mais recente descoberta – o barco de Dover – esta gerou um projecto de recriação à escala, recorrendo a técnicas e ferramentas antigas, como machados e enxós de bronze, com a supervisão técnica de um experimentado carpinteiro naval, Brian Cumby. O projecto de construção ao vivo e com a participação “hands-on” do público, a iniciar em Abril de 2012, tem sede numa oficina do National Maritime Museum Cornwall, em Falmouth (Inglaterra), durará cerca de cinco meses e é coordenado cientificamente pelo Professor Robert Van de Noort, da Universidade de Exeter, ao abrigo do Arts and Humanities Research Council, financiado pelo Conselho da Europa, e a culminar na exposição 2012BC: Cornwall and the Sea in the Bronze Age at the National Maritime Museum Cornwall (13 de Abril - 30 de Setembro, 2012). O projecto conta, ainda, com uma equipa multidisciplinar de arqueólogos e engenheiros da Universidade de Southampton e da Oxford Brookes University. Além de recuperar o processo construtivo, o projecto de investigação pretende explorar e experimentar a navegabilidade destas embarcações em alto-mar (http://boat1550bc.meshs.fr). Recorde-se que, em Hjortspring, na Dinamarca, um projecto análogo, desenvolvido entre 1997 e 2008, reconstruiu e experimentou uma embarcação, se bem que muito mais tardia (350 a.C.), mas essencialmente similar, demonstrando que estes barcos estariam adaptados a concretizar viagens marítimas (http://www.hjortspring.dk).
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Por seu turno, as três primeiras embarcações identificadas em North Ferriby (F1, F2 e F3) foram recentemente re-datadas pela desconfiança nos anteriores resultados, presumivelmente contaminados pelo “cocktail” químico de conservação administrado nas últimas décadas. Assim, a original datação correspondente ao “Bronze Médio”, recuou para os inícios do 2.º milénio a.C., no dealbar da Idade do Bronze, sendo a datação da embarcação F3 a mais antiga obtida, até então, para os barcos construídos em pranchas conhecidos na Europa Ocidental – 2030-1780 cal a.C. (Wright et al., 2001). Entretanto, um dos mais recentes exemplares identificados (F4) foi datado dos inícios da Idade do Ferro (Switsur e Wright, 1989), o que atesta uma contínua exploração geoestratégica daquelas águas e portos. Os referidos achados têm sido capitais para a percepção do real alcance das embarcações nas transformações sócio-económicas, particularmente registadas nos alvores da Idade do Bronze, designadamente pelo seu impacto nas trocas de longa distância em torno de 2000 cal a.C. Estamos perante embarcações assinaladas, sobretudo, em Inglaterra e no País de Gales, tendo paralelos na Noruega, Finlândia e em algumas regiões da Índia. São construídas em longas tábuas de carvalho e de bétula, provenientes de árvores actualmente já extintas, com perfurações chanfradas e “costuradas” por meio de entrançados de fibras vegetais de salgueiro e teixo, travadas por cunhas de madeira e calafetadas com musgo prensado. Esta técnica supera a ausência de pregos, há época ainda não inventados. As pranchas eram assentes num sistema integral de quilha e travessas que conferia rigidez ao casco, que poderia atingir os 16 m de comprimento (MacGrail, 2001). Algumas destas embarcações apresentaram inequívocos estigmas de ferramentas metálicas, como machados, enxós e escopros (Van de Noort, 2003, p. 405). No que respeita à sua génese e utilização, a discussão encontra-se em aberto. Inicialmente, estas embarcações deverão ter sido utilizadas apenas como transporte ribeirinho e inter-estuarino, sendo posteriormente aperfeiçoadas para uma navegação mais “aventureira”, de costa e alto-mar. Não sendo consideradas, aprioristicamente, embarcações de mar, os barcos de casco empranchado reúnem suficientes características para admitir uma navegação mais afoita, tirando partido de condições meteorológicas favoráveis, nomeadamente na travessia de grandes canais e em viagens pelo Mar do Norte. E. V. Wright (1990), partindo do modelo de F1, sugere uma travessia do canal de Dover em menos de cinco horas, com uma velocidade média de 5 nós, ou uma viagem até à costa holandesa em pouco mais de 24 horas, partindo de Spurn Point, na desembocadura do estuário do Rio Humber. O mesmo autor calcula uma capacidade de carga máxima da ordem das 11 A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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toneladas, provavelmente utilizada no transporte de mercadorias a granel, incluindo animais e passageiros. É de notar que, a maior parte destas embarcações foi identificada perto da costa, em ambientes estuarinos, em contextos “entre-marés”, contrastando com a distribuição dos vestígios
de
embarcações
pré-históricas
(sobretudo
monóxilas),
preferencialmente
identificadas em interiores braços de rio, mais a montante (Van de Noort, 1996). Esta realidade também foi proposta para o contexto português, relativamente à comparação entre as pirogas monóxilas identificadas no nosso país, talhadas para navegar nos rios e esteiros de estuários, e os hippoi e gauloi, mais adequados para marear nos grandes estuários e costa (Carvalho e Freire, 2007, p. 7). As escavações levadas a cabo em Ferriby, entre 1978-1980, registaram uma considerável quantidade de lascas de madeira de carvalho com marcas de ferramentas de bronze, além de uma grande peça de madeira de carvalho, salgueiro e bétula, cujas datações apontaram para um período entre o 3.º e o final do 2.º milénio a.C. (McGrail 1997, p. 58). Estas evidências sugerem que as embarcações foram construídas e/ou remodeladas/reparadas em North Ferriby, o que torna o sítio no mais antigo estaleiro conhecido no mundo. Neste contexto, torna-se justo propor que a construção naval, a manutenção/reparação e, sobretudo, a própria marinharia, requeriam habilidades tecnológicas muito específicas, tão ou mais especializadas que a metalurgia. Este é um ponto tido como importante no presente discurso. Tendo em conta a importância geoestratégica do sítio de Kilnsea, enquanto porto de excelência na desembocadura do estuário do Humber, importante via fluvial de penetração para os territórios do interior e, sobretudo, ponto de partida (e de chegada) da travessia para a Europa continental, torna-se admissível considerar que a sua paisagem costeira terá adquirido uma dimensão e um especial significado simbólico-ritual no quotidiano daquelas gentes marítimas da Idade do Bronze – o mar como limite físico, marco paisagístico, fronteira social, cultural, política e religiosa, um autêntico mare clausum somente passível de ser transposto por meio das embarcações de pranchas. Cruzar esta barreira poderá ter significado uma viagem espiritual, um ritual iniciático para os jovens membros das elites da Grã-Bretanha. Assim sendo, as tripulações das embarcações, enquanto comitivas altamente especializadas, ganhariam um distinto estatuto de prestígio social por via dos laços de lealdade desenvolvidos no mar, essenciais na estabilidade do futuro poder político (Van de Noort, 2003, p. 412). As frotas e os seus marinheiros afirmar-se-iam como destacados agentes na veiculação de mercadorias de prestígio, de impulsos culturais, de conhecimentos de vanguarda e de legitimação do poder das elites. A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Porém, navegar o mar não constitui um empreendimento necessariamente mais arrojado e perigoso que navegar o rio. Por exemplo, ainda hoje, o Rio Humber é tido como um dos mais traiçoeiros do mundo. Com uma largura máxima de 14 km, um traçado labiríntico e de difícil praticabilidade, com fortes correntes e bancos de areia em constante mutabilidade, o Humber requer uma pilotagem precisa e experimentada (Pethick, 1990). A paisagem terrestre torna-se, assim, capital para uma navegação à vista, propiciando referências visuais para a pilotagem e para a marcação dos canais navegáveis do labirinto estuarino. Neste sentido, a literatura clássica foi sugerindo o posicionamento de monumentos enquanto útil ferramenta para os processos de navegação e pilotagem durante a Idade do Bronze do Mediterrâneo (Severin, 1987). Em suma, o registo artefactual das Ilhas Britânicas valida a indiscutível realidade da navegação marítima nas trocas de longa distância, desde o Neolítico Final/Calcolítico e, em particular, durante a Idade do Bronze, propiciando a dispersão de modelos culturais. Estes itens exógenos têm vindo a ser frequentemente exumados, nomeadamente na região de Wessex, mas também noutros lugares da Grã-Bretanha e Europa Continental, em ambas as costas do Mar do Norte e Mar da Irlanda, sobretudo em ricos contextos funerários. Trata-se de um valioso pacote de artefactos importados, associados à ascensão social de elites em comunidades pré e proto-históricas, estabelecendo e legitimando o seu emergente poder, além de significarem uma clara manifestação do desenvolvimento sócio-económico e da respectiva cultura material (Bradley, 1984). Torna-se pois plausível que o novo tipo de barco, surgido nas Ilhas Britânicas em torno de 2000 cal a.C., tenha permitido a manutenção e expansão das elites e das suas redes de troca de bens de prestígio, através do Canal Inglês, Mar da Irlanda e em todo o Mar do Norte. Estas embarcações terão proporcionado novas janelas de oportunidade para o acesso aos bens, ideias e conhecimentos, estimulando novas expressões de status social, político, religioso e tecnológico, numa ruptura com as seculares sociais tribais. Os resultados dos estudos sobre as embarcações norte-atlânticas da Idade do Bronze configuram, deste modo, uma situação muito distante, quer em termos técnicos, quer de eficácia, relativamente aos modelos conhecidos para o Mediterrâneo, nomeadamente para os incontornáveis dados dos naufrágios turco dos cabos de Ulu Burun (século XIII a.C. – Pulak, 1988; 1994; Bass et al. 1989) e Gelidonya (século XII a.C. – Bass, 1967, 2005), e do naufrágio do Cabo Giglio, na Etrúria (século VII a.C. – Bound e Vallintine, 1983). Por outro lado, se o Mediterrâneo da Idade do Bronze se encontra relativamente bem estudado, numa perspectiva sobre as antigas navegações (Aubet, 1994), descontando as A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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naturais limitações desta investigação, já as peninsulares costas atlânticas continuam deficitárias de trabalhos direccionados para estas realidades. Ainda assim, para a Idade do Ferro e em Portugal, de referir a descoberta, na “Baixa Pombalina” de Lisboa, na Rua dos Correeiros, de um fragmento cerâmico apresentando uma representação estilizada de uma embarcação de proa e popa proeminentes, com um leme traseiro e um mastro central, passível de enquadramento na tipologia dos hippoi fenícios (ver fig. 145 – Amaro, 1995, apud Arruda, 1999-2000, p. 28; Arruda e Vilaça, 2006, p. 39). Também na Quinta do Almaraz, em Almada, foram exumados dois fragmentos cerâmicos apresentando representações iconográficas de embarcações presumivelmente enquadráveis nesta tipologia (ver fig. 145 – Barros in Cardoso, 2004, apud Arruda e Vilaça, 2006, p. 39). Os hippoi tinham como principal característica identificativa a sua proa esculpida (prótomo) numa “carranca” em forma de busto de cavalo – a origem do nome “hippoi”. Podendo atingir os 8-10 m de comprimento, estas embarcações “redondas” eram propulsionadas pela força braçal (remos) e pelo vento (velas quadradas), sendo presumivelmente utilizadas na pesca e navegação costeira; enquanto os gauloi podiam atingir os 25 m de comprimento e “calar” até aos 2 m (Arruda, 1999-2000, p. 26; Arruda e Vilaça, 2000, p. 38). Mais a sul, no Esteiro da Galé, a 2 km para montante da foz do Rio Mira, Estácio da Veiga terá documentado uma “piroga” monóxila5 (Veiga, 1891, p. 142) a que atribuiu uma cronologia romana ou pré-romana. Porém, o achado foi totalmente destruído antes de poder ser removido, nada chegando aos nossos dias, o que poderia ter permitido o seu melhor esclarecimento tipológico e cronológico. O mesmo investigador também refere achados deste tipo em Peniche, sendo de igual modo inconclusivos (Arruda e Vilaça, 2006, p. 41). No Rio Lima, perto de Lanheses, foram registadas, entre 2002 e 2003, duas pirogas monóxilas datadas entre o século 4.º e o século 2.º a.C. (Alves e Rieth, 2007). Perto do Castro Gueifães (Matosinhos), mais uma notícia de um destes “avistamentos” (Filgueiras, 1980, apud Arruda e Vilaça, 2006, p. 41). Estas embarcações, não obstante o seu primitivismo, manifestam um amplo espectro crono-geográfico. “As Gauloi e as Hippoi deveriam ter sido as naves utilizadas com maior frequência na navegação costeira e em altura, e os barcos de pele e as canoas monóxilas na navegação costeira e fluvial” (Carvalho e Freire, 2007, p. 7). Posto isto, e na ausência de evidências directas para remotas actividades marinheiras, há que procurar outros indícios, nem sempre tão óbvios. Por exemplo, antes e após o advento
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Apontamento facultado por Rui Parreira, o qual se agradece.
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dos metais, o Homem recorreu a poitas e âncoras de pedra para fixar as embarcações nas suas primárias actividades. Estão em causa blocos de pedra, geralmente de grosseira forma trapezoidal, circular ou triangular, apresentando perfurações no lado menor (1, 2 ou 3) ou entalhes laterais para a passagem do cordame de fixação. O recurso ao metal em âncoras só se encontra documentado a partir do séc. VII a.C., enquanto a utilização da pedra é registada de forma continuada até aos dias de hoje, com variadíssimos casos de reutilização como poitas de fundeadouro, o que levanta grandes dificuldades de contextualização e datação. Consciente da sua importância, Honor Frost elaborou uma tipologia para as âncoras líticas recuperadas por toda a orla do Mediterrâneo, procurando esboçar um mapa das rotas percorridas por embarcações desde a Idade do Bronze (Frost, 1972; 1985). O estudo destas peças líticas permite identificar os fundeadouros e os “proto-portos” dos primeiros navegantes, oferecendo dados fundamentais acerca da dimensão das embarcações que fixavam, da sua proveniência e do carácter das navegações que praticavam – cabotagem ou alto-mar. A utilização de âncoras de pedra encontra-se documentada, por exemplo, no já referido naufrágio do Bronze Final do promontório de Ulu Burun (Turquia), onde foram assinaladas sete grandes âncoras líticas (Pulak, 1994). Também em Portugal têm sido identificados diversos casos, sobretudo trazidos “à tona” por pescadores e mergulhadores. Foi o caso do exemplar recuperado por mergulhadores ao largo do Farol da Guia, em Cascais (fig. 149). Trata-se de uma âncora lítica de dois orifícios, de forma trapezoidal bastante alargada, que pela sua tipologia foi enquadrada na segunda metade do 1.º milénio a.C. (Carvalho e Freire, 2007, p. 6, cf. Frost, 1970). No Museu do Mar Rei D. Carlos (Cascais), onde foi depositada, também se pode observar outro exemplar, de forma triangular e um orifício, recuperada no Algarve nos anos de 1980 (fig. 150 – Carvalho e Freire, 2007, p. 6). De facto, até à data, parece ter sido nas costas algarvias que se identificou o maior número destas peças, designadamente em Albufeira (Simplício, 1999, p. 8-9). Ainda que muitas vezes descontextualizados, lá vão surgindo diversos exemplares expostos em alguns museus. Também no Sado (Carvalho e Freire, 2007, p. 7) e na Arrábida (mergulhos promovidos pela Câmara de Sesimbra) têm surgido notícias acerca destes objectos, porém não foi possível, até ao momento do fecho do presente texto, precisar melhor estas últimas informações orais. A par das âncoras líticas, também as pedras de lastro podem oferecer uma imagem das dimensões, envergadura e capacidade de carga de uma embarcação. Em casos de naufrágio, nada restando da estrutura decomposta de uma nave, o conjunto lítico de lastro pode esboçar, A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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ainda que muito tenuemente, o seu negativo morfológico. Por outro lado, a análise das características geológicas das pedras de lastro pode indicar, pelo menos, o último porto em que a embarcação descarregou, pois a carga útil, após o desembarque e na ausência de nova carga, era substituída por uma carga de lastro, permitindo estabilidade na viagem de regresso. Estes conjuntos líticos eram frequentemente abandonados junto dos portos, facto que pode constituir uma boa base de trabalho para futuras prospecções, tanto na linha de praia, como no leito subaquático do Portinho da Arrábida, com vista à identificação de pedras roladas, de volumetria média e fora de contexto geológico, expectáveis evidências que, sendo atestadas pela Geologia, poderiam indicar origens exógenas. Por seu turno, temos os portos e as respectivas estruturas portuárias: estacadas, passadiços e cais palafíticos, molhes e pontões de pedra, etc. Um porto é, por definição, um local de abrigo, surgidouro, ancoradouro e varadouro de embarcações, podendo também designar, por extensão, a povoação estabelecida a partir deste – “pensamos que as características morfológicas de um porto são de tal modo importantes que a análise de tipo arqueológico que delas se possa fazer transcende os contextos culturais e geográficos” (Blot e Blot, 2003, p. 54-61). Para épocas pré e proto-históricas, são escassos os vestígios directos que tenham perdurado até aos nossos dias, tanto pela própria natureza dos materiais empregues na sua construção, como pela acção da hidrodinâmica fluvio-marítima, causadora de destruição pela erosão e ocultação pela sedimentação. No entanto, a utilização náutica de um sítio naturalmente abrigado deixa sempre vestígios no fundo aquático, desde a simples poita, âncora, pedras de lastro ou total naufrágio, passando por objectos acidentalmente perdidos ou deliberadamente lançados “borda fora”. O facto de um sítio ter funcionado como desembarcadouro não implica, necessariamente, a presença de estruturas, não lhe retirando, ainda assim, a identidade fundacional de um futuro porto. “Nestes casos o que o arqueólogo busca é por vezes uma memoria atestando a demanda sistemática desse local, quer como apoio (aguada, provisões alimentares, escala técnica para reparações), quer em termos de trocas, isto é, de comércio, de contactos de gente” (ob. cit., p. 51). Na detecção destes “proto-portos” há que procurar, “não elementos construídos, mas sim “talhados” na rocha de abrigos costeiros, ou, ainda, aproveitando rochas à flor das águas, recifes paralelos à costa e até ilhas costeiras, funcionando como abrigos susceptíveis de receber este tratamento rudimentar” (Blot e Blot, 2003, p. 61, cf. Frost, 1972). Esta lógica, aplicada à costa portuguesa, poderá ser válida para sítios como a Ilha do Pessegueiro A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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(Sines) e praia do Martinhal (Sagres/Vila do Bispo) onde, ainda hoje, as suas cénicas ilhas rochosas continuam a proporcionar abrigo ao ancoradouro (Blot e Blot, 2003, p. 54). Este modelo também poderá ser extensível à Arrábida, se associarmos a Pedra da Anicha ao Portinho da Arrábida (ver figs. 152-156). Se na Idade do Bronze navegamos em “mares de conjecturas”, ainda assim a investigação arqueológica assinalou alguns prováveis vestígios de estruturas portuárias préromanas no nosso território: em Santa Olaia, na foz do Mondego (Figueira da Foz – Rocha, 1905, apud Arruda, 1999-2000, p. 30; Arruda e Vilaça, 2006, p. 43); em Abul, na margem direita do Sado, entre Setúbal e Alcácer do Sal, onde foram descobertas estruturas interpretadas como arquitecturas portuárias datadas da segunda metade do séc. VII a.C. (Mayet e Silva, 2000; Arruda e Vilaça, 2006, p. 43); a que poderão ainda acrescentar-se as evidências verificadas em Cacilhas, na base de Almaraz (Barros, 1998, apud Arruda, 19992000, p. 30; Arruda e Vilaça, 2006, p. 44). Com a intensificação das rotas marítimas, as tradicionais técnicas de orientação tornaram-se insuficientes. À orientação visual pelas naturais referências físicas da costa (eventualmente cromatizadas), por corpos celestes, pelo avistamento de aves, por sinais de fumo e por reflexos solares, o engenho humano acrescentou os “ciclopes de luz” – os faróis (e outras estruturas de sinalização à navegação). Em Portugal, mais precisamente em Alcabideche (Cascais), alguns autores (Arruda, 1999-2000, p. 29; Arruda e Vilaça 2006, p. 44-45; Fabião, 2009, p. 66) admitem a existência de uma destas antigas estruturas de sinalética náutica – o Espigão das Ruivas. Trata-se de um alto rochedo situado a sul do Cabo da Roca, proporcionando uma pequena plataforma de implantação onde foram registados indícios de ocupação enquadráveis na Idade do Ferro e Período Romano (base de dados Endovélico). O sítio registou a ocorrência de cerâmica diversa, nomeadamente sigillata, uma argola de bronze e um anel, além de uma sepultura violada de tipo “cista” (ob. cit.), o que nos pode remeter para cronologias da Idade do Bronze. Os trabalhos realizados (Cardoso, 1991; Cardoso e Encarnação, 1993) revelaram uma invulgar estrutura de planta rectangular e discreta entidade, associada a abundantes vestígios de fogo (carvões). A reduzida dimensão da plataforma, praticamente ocupada pela referida estrutura (mesmo descontando alguma erosão a que terá sido sujeita), as características e cota de implantação da estrutura e a abundância de carvões associados, constituem características que, no seu conjunto, não permitem outras leituras senão a sua função enquanto estrutura de apoio à navegação nocturna, contrariando a original interpretação dos escavadores: um templo dedicado ao sol e à lua, em relação com o pequeno porto de abrigo na sua adjacência – A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Porto Touro (Arruda, 1999-2000, p. 29; Arruda e Vilaça, 2006, p. 44-45). Na Arrábida, precisamente no Cabo Espichel, Estrabão, na sua Geographia, faz referência, no século I a.C. (podendo ser eventualmente anterior), a uma torre com funções de farol (Blot e Blot, 2003, p. 60). Também no pequeno cabo do Outão, em Setúbal, promontório que “defende” a linha da barra do Sado, “Jorge de Alarcão, ao que parece guiado por sugestão de V. Mantas (Mantas, 1996), chamou a atenção para a provável existência de um elemento de sinalização desse tipo na zona do Outão, marcando a entrada do estuário do Sado” (Alarcão, 2004, p. 317-325, apud Fabião, 2009, p. 66).
Fig. 141 – A hipotética reconstituição da chegada de uma embarcação de casco empranchado (F1) a North Ferriby/Inglaterra (seg. John Craig, in Wright, 1990).
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Fig. 142 – Planos dos barcos de Dover, Ferriby e Brigg para comparação (in Clark, 2004b).
Fig. 143 – Localização das embarcações de casco empranchado em Inglaterra e Gales (in Clark, 2004b).
Fig. 144 – The Dover boat under sail? (in Clark, 2004b).
Fig. 145 – Representações estilizadas de embarcações da 1.ª Idade do Ferro assinaladas em Portugal: a 1.ª e a 2.ª imagem referem-se a um fragmento cerâmico identificado na Rua dos Correeiros, em Lisboa (seg. Amaro, 1995, apud Arruda, 19992000, p. 28; Arruda e Vilaça, 2006, p. 39); a 2.ª e a 3.ª imagem reportam-se a dois fragmentos cerâmicos registados na Quinta do Almaraz, em Almada (seg. Barros in Cardoso, 2004, apud Arruda e Vilaça, 2006, p. 39).
Fig. 147 – Poita do norte de Portugal (seg. Baldaque da Silva, 1891, in Simplício, 1999, p. 8).
Fig. 146 – Tabela de âncoras líticas mediterrâneas (seg. Linder e Raban, 1975, in Simplício, 1999, p. 7). Fig. 148 – Anzol de “cobre” da Lapa da Furada (seg. Cardoso e Cunha, 1995, p. 16).
Fig. 149 – Âncora lítica de 2 orifícios recuperada na Guia, em Cascais (seg. Carvalho e Freire, 2007, p. 6).
Fig. 150 – Âncora lítica de 1 orifício recuperada no Algarve (seg. Carvalho e Freire, 2007, p. 6).
7.2.
O Sado e o “Porto(inho)” da Arrábida “A Arrábida é a maior quebra de direcção do litoral ocidental português”. Orlando Ribeiro, 2004
De facto, considerando a incontornável realidade decorrente da epígrafe supracitada, ou seja: que qualquer embarcação proveniente de sul, depois de dobrar o Cabo de São Vicente/Sagres e seguindo para norte, necessariamente à vista da costa, incorre na inevitabilidade de “esbarrar” no litoral da Arrábida – acidente orógeno que conduz naturalmente os marinheiros para a convidativa placidez das águas do Sado6. À margem desta “intemporal” observação, e por hora, ainda não existem dados arqueológicos, na forma de directos indicadores, relativos a antigas embarcações ou estruturas de apoio à navegação na costa da Arrábida. Contudo, a sua aparente ausência não deverá implicar uma total inexistência. A actual “invisibilidade arqueográfica” destas actividades deverá prender-se com a falta de uma investigação dirigida, que por muito aprofundada que seja, nunca poderá garantir sucesso nestas submersas matérias. Tendo em conta os seus progressivos fenómenos de assoreamento, o paleoestuário do Rio Sado terá conhecido uma antiga e muito mais vasta configuração, cuja navegabilidade propiciou, seguramente, actividades náuticas, nomeadamente durante a Proto-História, melhor documentadas (ainda que de forma indirecta) no decorrer da Idade do Ferro e época romana. Os dados disponíveis parecem indicar que, no decorrer da Idade do Ferro, a foz do Sado se fixaria nas margens da Herdade do Pinheiro (Silva, 1990, p. 121), enquanto a península de Tróia seria menos prolongada, terminando no seu núcleo romano – “Caldeira”. Até aos anos de 1970, o Sado foi navegável até ao interior alentejano, tendo em Porto de Rei o seu porto-limite de navegabilidade, a cerca de 46 km da foz atlântica. Constitui um vasto complexo hidrográfico, com cerca de 70 km de extensão no seu troço vestibular, intimamente relacionado com a Serra da Arrábida que o limita a norte (Arruda, 1999-2000, p. 21). Na sua antiga configuração litoral, de estuário mais vasto, Alcácer do Sal terá assumido funções de terminus fluvio-portuário, com navegação directa até ao litoral (à imagem de Santarém para o paleoestuário do Tejo). Na sua desembocadura, Caetobriga (Setúbal) e a Tróia romana terão assumido um papel de terminus oceano-portuário. Nas décadas de 60/70 do século passado, ainda era possível observar a regular circulação de grandes embarcações tradicionais, de considerável calado e aparelhando velas “caranguejas” (quadrangulares), designadamente Hiates, Laitaus e, sobretudo, Galeões do 6
Caso o destino seja o Tejo, e em alternativa à entrada no estuário do Sado, a Arrábida proporciona excelentes pontos de escala com abrigados fundeadouros, particularmente nas suas duas principais baías – Sesimbra e Portinho da Arrábida. De facto, entre o Cabo de São Vicente/Sagres e a Arrábida são escassos os possíveis pontos de escala e abrigo: Foz do Mira, Ilha do Pessegueiro, Sines, Melides (provável porto no interior de um antigo braço de mar, hoje transformado em lagoa).
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Sal. Estas serviam as grandes herdades do Baixo Sado e asseguravam o transporte fluvial e a comunicação entre estes centros produtores e os entrepostos portuários de Alcácer e de Setúbal, entretanto e progressivamente condenadas à substituição pela camionagem e caminhos-de-ferro. De entre as cargas que transportavam destaca-se o sal e os cereais, sobretudo o arroz. Este modelo poderá ter tido uma génese bem remota, à imagem do documentado noutras paragens, designadamente no Rio Humber, na Grã-Bretanha (vide supra). Estudos paleoambientais, nomeadamente palinológicos, proporcionaram importantes informações para a interpretação do sítio inter-estuarino de North Ferriby. Tendo em conta que o pólen arbóreo já se manifestava relativamente raro durante a Idade do Bronze, a área deverá ter sido desmatada para pastagem e cultivo extensivos, o que demonstra que a exploração agropecuária do sapal e do seu ambiente estuarino já era uma realidade durante este período (Wright e Churchill, 1965). Na área de North Ferriby, também foram identificadas numerosas pegadas “fossilizadas” de animais, atribuídas a uma extensa actividade de pastoreio nas suas ricas pastagens (Van de Noort e Fletcher, 2000). Posto isto, e regressando em definitivo à Arrábida e à sua envolvente, o Sado e o Portinho ter-se-ão afigurado, desde cedo e muito naturalmente, como privilegiados pontos de contacto com o Oceano, a meio caminho entre o mundo mediterrâneo e o mundo atlântico, ligando-os numa efectiva “placa giratória”, colectora, aglutinadora e (re)distribuidora de novos modelos/valores culturais e tecnológicos. Mesmo na ausência de provas directas, o Portinho da Arrábida oferece-nos um conjunto de sugestivos indícios para uma remota actividade portuária. Desde logo o próprio topónimo “Portinho” e as suas características naturais e geomorfológicas; o fácil acesso a uma franca disponibilidade loco-regional de recursos naturais, destacando-se a proximidade de fontes de água, boa capacidade de solos, boas áreas de pastoreio, facilidade na recolecção marisqueira e abundância e diversidade pesqueira e cinegética; o povoado do Bronze Final da Serra da Cela, implantado de forma demasiado óbvia enquanto presumível estrutura de apoio, domínio e controlo sobre o ancoradouro e as suas vias de aproximação; a proximidade à grande via do Sado e às ribeirinhas implantações orientalizantes de Abul e Alcácer (e Caetobriga?), além das suas suspeitáveis áreas de produção agro-pecuária e salineira; por último, as evidências arqueológicas do complexo de salga de produtos piscícolas do Creiro (estabelecimento de fundação romana, laborando entre o século I e o século V d.C., reactivado no século XII, já em época islâmica – Silva e Coelho-Soares, 1987), arqueossítio que comprova a actividade portuária no Portinho desde, pelo menos, época romana. A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Assim, o Portinho, controlado pelo povoado da Serra da Cela, e a presumível rede de povoamento da Idade do Bronze no seu hinterland, deveriam ser beneficiados por contactos que a relativa marginalidade das suas gentes doutro modo dificilmente aspiraria – a excepcionalidade do caso da Roça do Casal do Meio pode ser vista agora desta perspectiva. Neste sentido, o Portinho surge como o melhor candidato a um “porto” do Bronze Final, em directa relação, qual “porta do mar”, com a principal zona de povoamento coevo identificada na Arrábida, implantado ao longo de uma área definida entre este, a Serra do Risco e Pedreiras. Esta “porta”, aberta a sul, ligava a Arrábida à grande via fluvial do Sado, ao Atlântico e, através deste, ao Mediterrâneo. Era defendida directamente pela Serra da Cela e controlada pela “atalaia” de Valongo, no topo da Arrábida. Papel análogo e complementar, mas já para a Idade do Ferro, poderá ter sido desempenhado pela baía de Sesimbra, em cujo hinterland aparentemente se desenvolveu o principal povoamento atribuível a este período. Justamente e a este propósito, parece aflorar uma verdadeira “diferenciação territorial”, marcada a partir dos dois principais pólos portuários da Serra da Arrábida – a baía de Sesimbra e a baía do Portinho (ver fig. 9). Desenvolvendo esta ideia, tendo por base os dados disponíveis, parece que o povoamento indígena do Bronze Final se relacionou claramente com o Portinho da Arrábida (a “porta do mar”, o “caminho do peixe”); enquanto, na 1.ª Idade do Ferro, os dois núcleos de povoamento identificados parecem concentrar-se na vertente nascente do vale de Sesimbra, sobre a sua baía: um primeiro no sopé da Serra da Achada, no sítio da Meia Velha, dominando visualmente a baía e distando perto de 3 km da necrópole de cistas da “1.ª Idade do Ferro” (?) do Casalão, no topo da “nascente” do vale; e o segundo, mais interior, nas Pedreiras – Casa Nova. De acrescentar que ambos os sítios fixaram-se a pouco mais de 1 km da Lapa da Cova. Nesta ordem de ideias, de referir, ainda, que no “povoado portuário” da Serra da Cela, os materiais identificados à superfície, passíveis de enquadramento em cronologias da Idade do Ferro, são muito residuais (um bordo exvertido e um fundo em “pé de anel”, no total de quatro fragmentos), face à totalidade de uma boa amostra de materiais relativos ao Bronze Final. Segundo Ana Margarida Arruda, alguns sítios da costa portuguesa apresentam boas condições portuárias de ordem natural, com baías e enseadas onde as embarcações podiam fundear ou atracar, protegidas dos ventos e correntes marítimas. Estas favoráveis condições seriam naturalmente exploradas pelas comunidades indígenas, sobretudo nas suas actividades mais primárias, restando-nos saber se estes potenciais portos se associam a áreas com interesse económico, particularmente para os comerciantes fenícios (Arruda, 1999-2000, p. A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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30). Em épocas em que os transportes terrestres eram lentos, onerosos, inseguros ou totalmente impraticáveis ou inexistentes, os pequenos portos terão assumido, assim, uma fundamental importância para as locais economias de subsistência. É neste contexto, e segundo esta perspectiva, que o presente discurso pretende enquadrar o “Porto(inho) da Arrábida” – “dada a importância dos portos no abastecimento dos centros urbanos mais próximos, não podíamos deixar de lado esses enclaves costeiros que, tanto em contexto fluvial, como oceânico numa versão estuarina, funcionam como órgãos vitais para o desenvolvimento, ou mesmo para a formação dos centros urbanos” (Blot e Blot, 2003, p. 55). Porém, o assoreamento da foz do Sado, em marcha desde o Neolítico Médio, intensificado em picos de desenvolvimento populacional documentados em época romana e perto do século XV (Blot e Blot, 2003, p. 40-42), terá sedimentado os presumíveis vestígios arqueológicos precedentemente produzidos ao longo das margens estuarinas e foz deste rio. Este fenómeno é bem evidente na praia do Portinho. Hoje, é fácil observar, a partir dos panorâmicos miradouros da encosta sul da Arrábida, uma extensa e alongada língua de areia que se arrasta de montante, a partir da praia da Figueirinha, até ao “golfo” do Portinho, e que ao longo dos últimos anos tem visivelmente crescido, aflorando na maré-baixa sob a forma de ilha (“cabeço”). Assim, quaisquer indícios de antigas actividades náuticas na praia do Portinho, a existirem, encontram-se bem ocultos pelas areias transportadas da bacia do Sado. Ainda assim, e recuperando uma sugestiva observação que, por muito remota que seja, merece neste contexto um futuro esclarecimento: na linha de praia do Portinho desenha-se um “conveniente” alinhamento pétreo, formado por um conjunto de grandes blocos calcários que, independentemente de ter tido uma origem geológica (rolamento da vertente da Serra) ou antrópica, facilmente poderá ter servido para o apoio portuário – pequeno “pontão” (fig. 153). Em suma, o Portinho da Arrábida (e provavelmente, numa segunda fase, também Sesimbra), terá constituído, não só um privilegiado “caminho do peixe” (Gonçalves, 1966, p. 9) dirigido ao interior da “Península da Arrábida”, mas também, e sobretudo, um pólo de contactos e dinâmicas que a ainda ténue evidência arqueológica começa a revelar. Os bem documentados contactos orientalizantes, direccionados prioritariamente ao estuário do Sado (Arruda, 1999-2000, p. 98), podem bem ter começado pelo litoral da Arrábida, ainda que de forma “silenciosa” em termos de registo arqueológico, tanto mais que as características tipológicas dos bronzes da Roça do Casal do Meio parecem remeter para um precoce contacto mediterrâneo. Uma primeira contribuição para o esclarecimento desta questão pode bem passar pelo estudo arqueometalúrgico das ligas constituintes destas peças, A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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o que poderá permitir diferencia-las, quer como cópias indígenas, quer como importações (Valério, et al. 2012).
Fig. 151 – A presumível rota das navegações proto-históricas Mediterrâneo-Arrábida-Sado (imagem editada em Google Earth).
A Arrábida no Bronze Final – a Paisagem e o Homem
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Fig. 152 – Vista nascente da linha de praia do Portinho da Arrábida e Pedra da Anicha (foto de R. Soares).
Fig. 153 – Vista poente da linha de praia do Portinho, com a Serra da Cela à direita e um sugestivo alinhamento pétreo, bem visível no canto inferior esquerdo da imagem (foto de R. Soares).
Fig. 154 – Praia da Ilha do Pessegueiro/Sines (foto de R. Soares).
Fig. 155 – Praia do Martinhal/Sagres (foto de R. Soares).
Fig. 156 – Vista poente da enseada do Portinho da Arrábida, com a Serra da Cela ao centro da imagem e o actual fundeadouro na sua “sombra” (foto de R. Soares).
Designação do Sítio
Tipo de sítio
Cronologias
Vestígios
Bibliografia
Coordenadas geográficas
Terras do Risco/Meio Marmitas Pedreiras (Serra do Risco/Sesimbra)
Grande povoado aberto/complexo de “casais-agrícolas”
- Bronze Final
- Cerâmica manual: bordos simples, fundos planos, carenas, mamilos, perfurações - Elemento de foice em sílex
- Calado et al., 2009
38°27'38.05"N 9° 2'5.54"W
Castelo dos Mouros (Serra da Arrábida/Setúbal)
Povoado fortificado de altura
- Calcolítico Final(?) - Bronze Final - “Finais da Idade do Ferro/Período Republicano(?)”
- Cerâmica campaniforme com decoração incisa(?) - Cerâmica manual do Bronze Final: bordo simples, fundos planos, carenas e mamilos
- Rasteiro, 1897 - Silva e Soares, 1986 - Silva e Gomes, 1992 - Ferreira et al., 1993 - Cardoso, 2000 - Calado et al., 2009
38°29'17.32"N 8°59'50.54"W
Serra da Cela (Serra da Arrábida/Setúbal)
Povoado fortificado de altura/“portuário”(?)
- Bronze Final - Idade do Ferro
- Seixos e lascas talhados em quartzito e quartzo leitoso, percutor em basalto, movente discóide - Cerâmica manual: bordos simples, fundos planos, perfis em “S”, taças carenadas, mamilos, perfurações, brunidos não ornatados - Cerâmica a torno: pastas claras, depuradas, um bordo exvertido e um fundo em “pé de anel”
- Costa, 1907 - Ferreira et al., 1993 - Ricardo Soares, 2009
38°28'22.77"N 8°59'12.54"W
Valongo I (Serra da Arrábida/Setúbal)
Povoado fortificado de cumeada
- Bronze Final
- Cerâmica manual: carenas, perfil em “S” - Fragmento de braçal de arqueiro (ocasional)
- Inédito
38°29'39.93"N 8°58'20.05"W
Valongo II – “Atalaia” (Serra da Arrábida/Setúbal)
“Posto de atalaia”
- Bronze Final
- Cerâmica manual
- Inédito
38°29'31.85"N 8°58'27.94"W
Bico dos Agulhões (Serra da Arrábida/Setúbal)
“Posto de Atalaia”(?) Povoado?
- Bronze Final(?) - Idade do Ferro(?) - Republicano(?)
- Cerâmica manual - Cerâmica a torno: bordos exvertidos - Estrutura(?)
- Base de Dados Endovélico
38°27'29.97"N 9° 0'37.84"W
Quinta do Picheleiro (Serra da Arrábida/Setúbal)
“Casal agrícola”
- Bronze Final
- Cerâmica manual: fragmento de bojo com arranque de mamilo, bordo simples - Elemento de foice em sílex
- Inédito
38°30'26.79"N 8°58'31.78"W
Ouriços 2 (Terras do Risco)
Povoado
- Neolítico Final/Calcolítico
- Fragmentos de cerâmica manual - Lascas de quartzo e quartzito
- Calado et al., 2009, p. 99
38°27'29.06"N 9° 1'33.20"W
Meia Velha (Serra da Achada/Sesimbra)
Estação de ar livre
- Bronze Final - 1.ª Idade do Ferro
- Cerâmica manual - Cerâmica a torno: asa de rolo e bordos exvertidos - Restos de muros de aparelho calcário, desenhando um ângulo recto
- Calado et al., 2009, p. 123
38°26'31.18"N 9° 5'1.52"W
Casa Nova (Pedreiras/Sesimbra)
Estação de ar livre
- Bronze Final - 1.ª Idade do Ferro
- Cerâmica manual: bordos simples e fundos planos - Cerâmica a torno de pastas claras: bordos exvertidos - Estrutura pétrea de cronologia e função indeterminadas
- Calado et al., 2009, p. 89
38°27'4.60"N 9° 3'50.29"W
Caetobriga (Setúbal) – Colina de Santa Maria (área urbana)
Povoado
- Bronze Final - 1.ª Idade do Ferro
- Cerâmica manual de feição indígena - Cerâmica “orientalizante” de engobe vermelho - Cerâmica ibero-turdetana e ânforas iberopúnicas
- Silva e Soares, 1978; 1986 - Silva, 1990 - Silva e Gomes, 1992 - Ferreira et al., 1993 - Arruda, 1999-2000 - Cardoso, 2000 - Soares, 2000
38°31'26.05"N 8°53'13.50"W
Roça do Casal do Meio (Terras do Risco/Sesimbra)
Necrópole Tholos
- Neolítico Final/Calcolítico - Bronze Final
- Dois enterramentos - Três recipientes de cerâmica manual: vaso bicónico com reticula brunida e duas taças carenadas - Objectos de bronze: fíbula, anel, colchete de cinturão e duas pinças - Pente de marfim - Duas cabras e dois carneiros (depósito votivo)
- Spindler et al., 1973-74 - Silva e Soares, 1986 - Serrão, 1994 - Silva e Gomes, 1992 - Arruda, 1999-2000 - Vilaça e Cunha, 2005
38°27'46.29"N 9° 2'13.12"W
- Harrison, 2007 - Calado et al., 2009 Lapa do Fumo (Serra dos Pinheirinhos/ Sesimbra)
Gruta-santuário(?) Necrópole
- Neolítico Antigo - Neolítico Final - Calcolítico - Bronze Médio - Bronze Final - Medieval
- Espólio osteológico - Cerca de 20 vasos com “ornatos brunidos”
- Serrão, 1958, 1973, 1975, 1994 - Silva e Soares, 1986 - Calado et al., 2009
38°26'2.07"N 9° 8'39.56"W
Lapa da Furada/Piolho (Serra da Azóia/Sesimbra)
Gruta-santuário(?) Necrópole
- Calcolítico - Bronze Médio - Bronze Final(?)
- Ossuário de deposição secundária - Cerâmica manual da Idade do Bronze: taças carenadas, perfis em “S”, fundos planos, “tronco-cónicos”, “cepilhados”, bordos exvertidos, lábios digitados, cordões plásticos
- Serrão, 1962, 1994 - Cardoso, 1993, 1997 - Cardoso e Cunha, 1996 - Calado et al., 2009
38°25'45.88"N 9°10'28.24"W
Gruta do Médico (Vale do Solitário/Serra da Arrábida/Setúbal)
Gruta-santuário(?) Necrópole
- Bronze Final
- Cerâmica manual: bordo simples, fundo plano e brunidos - Vestígios osteológicos humanos (duas vértebras lombares e dentes)
- Inédito
38°28'6.57"N 8°59'50.89"W
Lapa da Cova (Serra do Risco/Sesimbra)
Gruta-santuário
- Bronze Final - 1.ª Idade do Ferro
- Cerâmica manual, incluindo um mamilo alongado no acesso poente - Cerâmica a torno, sobretudo grandes recipientes - Artefactos de bronze e ouro - Contas de colar em diversos materiais
- Inédito
38°26'25.66"N 9° 3'51.44"W
Abrigo do Cabo de Ares (Serra da Achada/Sesimbra)
Lapa/abrigo
- Bronze Final
- Cerâmica manual
- Inédito
38°26'24.45"N 9° 3'53.24"W
Lapa do Forte do Cavalo (A) (Sesimbra)
Gruta-santuário(?) Necrópole(?)
- Bronze Final - 1.ª Idade do Ferro
- Cerâmica manual - Cerâmica a torno, incluindo bordos
- Calado et al., 2009, p. 119
38°26'6.62"N 9° 7'15.42"W
Lapa da Janela I (Vale das Lapas/ Serra da Azóia/Sesimbra)
Gruta-santuário(?)
- Bronze Final - 1.ª Idade do Ferro
- Cerâmica brunida - Cerâmica a torno: bordos exvertidos e asas de rolo
- Calado et al., 2009, p. 115
38°25'36.26"N 9°10'33.31"W
Lapa da Janela II (Vale das Lapas/ Serra da Azóia/Sesimbra)
Gruta-santuário(?)
- Pré/Proto-História (?)
- Lascas de sílex e quartzito - Cerâmica manual
- Calado et al., 2009, p. 115
38°25'39.40"N 9°10'33.14"W
Lapa do Mosquito (Sesimbra)
Gruta-santuário(?)
- Pré/Proto-História
- Cerâmica manual
- Calado et al., 2009, p. 121
“Cara do Cabo Cabo Espichel (Azóia/Sesimbra)
Abrigos
- Bronze Final(?) - 1.ª Idade do Ferro (?)
- Cerâmica manual - Cerâmica a torno
- Calado et al., 2009, p. 105
Algar das Aranhas (Serra da Arrábida/Setúbal)
Algar/grutasantuário(?)
- Em desobstrução: cronologia desconhecida mas em provável relação como o povoado de Valongo
(?)
- Inédito
Abrigo de Valongo (Serra da Arrábida/Setúbal)
Abrigo
- Bronze Final(?)
- Cerâmica manual decorada
- Inédito
38°29'38.64"N 8°58'4.25"W
Tabela dos sítios tratados no âmbito do presente trabalho.
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