Sagres - o Promontorium Sacrum, uma petrificada paisagem sagrada (SOARES, R., 2014)

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Revista Santuários Cultura, Arte, Romarias, Peregrinações, Paisagens e Pessoas Volume 1, Número 2, julho–dezembro 2014, ISSN 2183-3184 Cadernos Vox Musei Revista Internacional com comissão científica e revisão por pares (sistema de double blind review) Periodicidade: Semestral Revisão de submissões: arbitragem duplamente cega por pares académicos Direção: Luís Jorge Gonçalves, Mila Simões de Abreu, Ana Paula Fitas, João Paulo Queiroz, Moisés Espírito Santo, Jorge do Reis, Cláudia Matos Pereira, Leonardo Caravana Guelman, Manuel Calado Relações Públicas: Isabel Nunes Logística: Lurdes Santos Gestão financeira: Cristina Fernandes, Isabel Pereira, Andreia Tavares Propriedade: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa Capa: Desenho em grafite sobre papel, baseado em cabeça que pode representar o deus Endovélico, e o pedestal com parte da epígrafe dedicado a este deus. Ilustração: Cláudia Matos Pereira, 2014. Contracapa: Ara dedicada ao deus Endovélico (Original no Museu Nacional de Arqueologia, foto José Pessoa) Ante Rosto: Augusto Prima Porta (Museus do Vaticano). Por ocasião dos dois mil anos da morte de Augusto (19 de Agosto de 14) que promoveu a fusão entre romanos e indígenas e de que resultou o santuário ao deus Endovélico Logo do Congresso: Jorge dos Reis Projeto Gráfico: Jorge dos Reis Paginação: Inês Chambel

Organizadores:

Impressão: Editorial do Min. da Educação e Ciência Tiragem: 350 exemplares Depósito legal: 379932/14 PVP: 10€ ISSN: 2183-3184 ISBN: 978-989-8771-02-5 Edição Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL) / Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA) Instituto de Sociologia e Etnolgia das Religiões da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (ISER-FCSH-UNL) Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (IACS-UFF) Laboratório de Observação de Artes e Saberes (LOAS) Centro de Estudos do Endovelico (CEE) Câmara Municipal do Alandroal (CMA)/ Fórum Cultural Transfronteiriço Apoio Turismo do Alentejo + informações: santuarios.fba.ul.pt

Apoio:


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Comissão Executiva

Conselho Editorial/Comissão Científica

Luís Jorge Gonçalves, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes Mila Simões de Abreu, Portugal, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real Ana Paula Fitas, Portugal, Coordenadora do Centro de Estudos do Endovélico, Alandroal João Paulo Queiroz, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes Moisés Espírito Santo, Portugal, Faculdade de Ciências Socais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa Jorge dos Reis, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes Cláudia Matos Pereira, Brasil, Escola de Belas-Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro Leonardo Caravana Guelman, Brasil, Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense Manuel Calado, Brasil, IEPA — Instituto de Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado do Amapá Panayiotis Saraneopoulos, Grécia/Portugal, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes

Ana Paula Fitas, Portugal, Coordenadora do Centro de Estudos do Endovélico, Alandroal António Delgado, Portugal, Escola Superior de Arte e Design, Instituto Politécnico de Leiria Artur Ramos, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes Cláudia Matos Pereira, Brasil, Escola de Belas-Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro Cristiane de Andrade Buco, Brasil, IPHAN-Fortaleza Fernando António Baptista Pereira, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes Federico Trolleti, Itália, Universidade de Trento Ilídio Salteiro, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes Javier Marcos Arévalo, Espanha, Universidade da Estremadura João Brigola, Portugal, Universidade de Évora João Paulo Queiroz, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes Jorge do Reis, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes José Ignacio Homobono, Espanha, Universidade do País Basco José Júlio Garcia Arranz, Espanha, Universidade da Estremadura Leonardo Caravana Guelman, Brasil, Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense Luís Jorge Gonçalves, Portugal, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa / Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes Manuel Calado, Brasil, IEPA — Instituto de Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado do Amapá Maristela Salvatori, Brasil, Instituto de Artes, Universidade Federal de Rio Grande do Sul Mila Simões de Abreu, Portugal, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real Mirtes Barros, Brasil, Universidade Federal do Maranhão Moisés Espírito Santo, Portugal, Faculdade de Ciências Socais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa Nuno Sacramento, Reino Unido (Escócia), Scottish Sculpture Workshop, Aberdeen Panayiotis Saraneopoulos, Grécia/Portugal, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes Paula Ramos, Brasil, Instituto de Artes, Universidade Federal de Rio Grande do Sul Paulo Caetano, Portugal, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa Ruy Ventura, Portugal, Investigador Salvador Rodríguez Becerra, Espanha, Universidade de Sevilha


Santuários: Cultura, Arte, Romaria, Peregrinações, Paisagens e Pessoas

Santuários: Cultura, Arte, Romaria, Peregrinações, Paisagens e Pessoas

Luís Jorge Gonçalves

Luís Jorge Gonçalves

13-15

13-15

1. Artigos

1. Artigos

Reflexão Teórica sobre os aspectos simbólico e ritual durante a interpretação dos processos de produção de manufatos obtidos de matéria dura de origem animal

Theoretical reflection into the symbolic and ritual interpretation of production processes of artifacts from hard raw materials animals

Giacoma Petrullo & Jefferson

Crescencio Neri

Crescencio Neri

17-23

Giacoma Petrullo & Jefferson

17-23

Emblemas y jeroglíficos en la azulejería religiosa portuguesa del siglo XVIII: un ejemplo en la iglesia de Nossa Senhora da Conceição, en Vila Viçosa (Portugal)

Emblems and hieroglyphics in Portuguese religious tilework of the 18th century: an example in the Church of Nossa Senhora da Conceição, in Vila Viçosa (Portugal)

José Julio García Arranz

José Julio García Arranz

24-33

24-33

Nuevas tradiciones en el ámbito festivo transmoderno de Bilbao: del Santuario a la Ría del Nervión

New Traditions in the Trans-modern Festive Field: From the Sanctuary to the Stuary of Nervion

Juan António Rubio-Ardanaz

Juan António Rubio-Ardanaz

34-44

34-44

Museologia do cotidiano: a morada e o santuário. Entre a autoconsagração e o dar-se ao outro na mediação do Sagrado

Museology of the everyday: the home and the sanctuary. Between self consecration and dedication to the other in the mediation of the sacred

Leonardo Caravana Guelman

Leonardo Caravana Guelman

45-52

45-52


“Pé de Deus”, hoje gravura, ontem efeito das intempéries

The “Pé-de-Deus” (“Foot-of-God”) engraving in Oeiras, Piauí, Brazil

Luana Campos &

Luana Campos &

Cristiane de Andrade Buco

Cristiane de Andrade Buco

53-58

53-58

O culto e devoção à virgem mártir santa Eufémia no seu santuário em Penedono

The worship and devotion to the holy virgin martyr Euphemia in his sanctuary in Penedono

Luciano Moreira

Luciano Moreira

59-64

59-64

Uma Paisagem Sagrada: as cubas da “kûra” de Beja

A Sacred Landscape: The Cubas from the Kûra of Beja

Luís Ferro

Luís Ferro

65-74

65-74

Santuário do Endovélico: espaço de encontro de indígenas e romanos

Sanctuary of Endovelicus: meeting space for indigenous and Roman

Luís Jorge Gonçalves

Luís Jorge Gonçalves

75-81

75-81

Tïhtakariwaïn: um santuário rupestre no Tumucumaque brasileiro

Tïhtakariwaïn: rock art santuary in brazilien Tumucumaque

Manuel Calado

82-96

Manuel Calado

82-96

Romeiros de São Francisco do Canindé

Pilgrims from São Francisco do Canindé

Maria das Graças Tavares Silva,

Maria das Graças Tavares Silva,

Adriano de Araújo Lima, Nagylla

Adriano de Araújo Lima, Nagylla

Dias Oliveira, Maria Esterlian

Dias Oliveira, Maria Esterlian

Ferreira da Silva Alves &

Ferreira da Silva Alves &

Cinthia Moreira

Cinthia Moreira

97-101

97-101


Comunidade Quilombola de São Sebastião dos Pretos: A religiosidade de um povo expressada nas batidas dos tambores da Umbanda

Quilombola community of São Sebastião dos Pretos: the religion of a people expressed in beats of drums of Umbanda

Maria Esterlian Alves, Elane Sousa,

Cleber Lima do Nascimento, Gilva

Cleber Lima do Nascimento, Gilva

Alves Leitão & Cintya Moreira

Alves Leitão & Cintya Moreira

102-106

Maria Esterlian Alves, Elane Sousa,

102-106

Uma visão prospectiva na paisagem do Vale do Tejo

A prospective view of the landscape of the Tagus Valley

Mário Monteiro Benjamim

Mário Monteiro Benjamim

107-113

107-113

Caminhos do sagrado nas artes visuais: algumas anotações

Sacred Paths of the visual arts: some notes

Maristela Salvatori &

Maristela Salvatori &

Bernard Paquet

Bernard Paquet

114-117

114-117

Alguns apontamentos sobre a imagem do javali e o “Berrão” de Carlão, Alijó, Douro

Some notes on the image of the boar and the “Berrão” of Carlão, Alijó, Vila Real, Portugal

Mila Simões de Abreu

Mila Simões de Abreu

118-132

118-132

A natureza como Santuário na visão do caçador krikati

The nature as sanctuary in vision hunter krikati

MIRTES BARROS

MIRTES BARROS

133-138

133-138

Descoberta de um santuário lusitano-fenício a partir da toponímia, em Aljubarrota

Discovery of a Sanctuary LusitanoPhoenician from toponymy, in Aljubarrota

Moisés Espírito Santo

Moisés Espírito Santo

139-144

139-144

O santuário de S. Pedro em Portel: um exemplo de sincretismo religioso?

The Sanctuary of Saint Peter in Portel, an example of religious syncretism?

Natália Maria Lopes Nunes

Natália Maria Lopes Nunes

145-149

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Folia de Reis: Território sacrário

Folia de Reis: Territory tabernacle

Neide Marinho

Neide Marinho

150-155

150-155

Pragmatismo e Robustez: marca das igrejas luso-brasileiras no Rio Grande do Sul, Brasil

Pragmatism and Robustness (Strength): marks of LusoBrazilian churches in Rio Grande do Sul

Paula Ramos

Paula Ramos

156-161

156-161

Um Santuário Suíço nos Açores: Dos lagos suíços para a lagoa das Furnas, a migração de uma paisagem

A Swiss sanctuary in the Azores: From the Swiss lakes to Furna´s lagoon, the migration of a lanscape

Pedro Maurício de Loureiro

Pedro Maurício de Loureiro

Costa Borges

Costa Borges

162-170

162-170

Uma imagem é uma imagem, mas…O processo de humanização das imagens da Senhora da Saúde

An image is an image, but… The process of humanization of images of Lady of Health

Pedro Pereira

Pedro Pereira

171-175

171-175

Religiosidade e espacialidade no Sertão da Bahia - Brasil: o exemplo do Santuário da Santa Cruz de Monte Santo

Religiosity and spatiality in the backwoods of Bahia-Brazil: the example of the sanctuary of Santa Cruz de Monte Santo

Raimundo Pinheiro Venancio Filho &

Raimundo Pinheiro Venancio Filho &

Maria Helena Ochi Flexor

Maria Helena Ochi Flexor

176-183

176-183

Tradição e cultura na escolha do lugar da cerimônia do casamento

Tradition and culture in choice of place of wedding ceremony

Raquel Lage Tuma, Maria

Elisabeth Alves Mesquita, Carlos

Elisabeth Alves Mesquita, Carlos

Eduardo Santos Maia

Eduardo Santos Maia

184-188

184-188

Raquel Lage Tuma, Maria


Sagres – o Promontorium Sacrum: uma petrificada paisagem sagrada

Sagres – the Promontorium Sacrum: a petrified sacred landscape

Ricardo Soares

Ricardo Soares

189-197

189-197

Salve Rainha: Maria entre a vida e o dogma através da arte

Hail Queen: Mary between life and dogma through art

Rodrigo Portella

Rodrigo Portella

198-208

198-208

A lenda do Senhor das Chagas e a “construção” do santuário de Sesimbra

The legend of Senhor das Chagas and the built of Sesimbra’s santuary

Ruy Ventura

Ruy Ventura

209-222

209-222

Santuarios y apariciones marianas en Andalucía (España)

Shrines and Marian Apparitions in Andalusia (Spain)

Salvador Rodríguez Becerra

Salvador Rodríguez Becerra

223-226

223-226

Desenho, Memória e Simplicidade Visual: O Painel de Desenhos de Siza Vieira sobre S. Pedro e S. Paulo, na Basílica da Santíssima Trindade do Santuário de Fátima Shakil Yussuf Rahim & Ana Leonor

Drawing, Memory and Visual Simplicity: Drawings Panel of Siza Vieira about St. Peter and St. Paul, in the Basilica of the Most Holy Trinity of the Sanctuary of Fátima

Madeira Rodrigues

Shakil Yussuf Rahim & Ana Leonor

227-235

Madeira Rodrigues

227-235

A procissão de São Cristóvão em um local sui generis

The procession of Saint Christopher in a sui generis site

Sigrid Hoppe

Sigrid Hoppe

236-239

236-239

O Santuário de Frei Damião de Bozzano no Convento de São Félix da Cantalice, em Recife- Pernambuco-Brasil

The Sanctuary of Fray Damian Bozzano in the Convent of St. Felix of Cantalice in Recife-Pernambuco-Brazil

Sylvana Brandão de Aguiar

Sylvana Brandão de Aguiar

240-244

240-244


Festas e ofícios, entre uma e outra romaria incelenças são entoadas afirmando identidades Valdir Nunes dos Santos

Festivals and crafts, between one and another pilgrimage “incelenças” between are sung affirming identities

245-249

Valdir Nunes dos Santos

245-249

Os Santuários como espaços de devoção: São José de Ribamar, no Maranhão

The Sanctuaries as places of devotion: São José de Ribamar, no Maranhão

Wherlyshe Morais

Wherlyshe Morais

250-254

250-254

2. Estudos

2. Estudos

Centro de Estudos do Endovélico. Classificação do vale sagrado do Lucefecit: Teatro de Santuários (Endovélico e Boa Nova)

Studies Center of Endovélico. Sacred valley Lucefecit classification: theatre of sanctuary (Endovélico and Boa Nova)

MANUEL Lapão

MANUEL Lapão

256-257

256-257

3. Santuários, instruções aos autores

3. Santuários, instructions to authors

Manual de estilo da Santuários — meta-artigo

Style guide of Santuários — meta-paper

259-268

259-268

Chamada de trabalhos: II Congresso Santuários 2015

Call for papers: II Santuários Congress 2015

269-272

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Sagres – o Promontorium Sacrum: uma petrificada paisagem sagrada Sagres – the Promontorium Sacrum: a petrified sacred landscape

Ricardo Soares*

Abstract: The territory of Promontory Sagres (Sagres, Vila do Bispo, Portugal) expresses a remote, continuous and intense magical-religious vocation and exploration, operating since the beginning of its human occupation until nowadays, reality we intend to emerge throw a shared and complementary speech, between archaeological research and historical interpretation, among our menhirs and the cult of Saint Vincent... Keywords: promontory / sacralization / monumentalization / Megalithism / Sagres.

*Portugal, Arqueólogo, Câmara Municipal de Vila do Bispo. E-mail: arqueo.mike@gmail.com Artigo completo submetido a 3 de junho e aceite a 14 de junho de 2014

Introdução: a sacralização de distintas paisagens naturais Na sua maior parte, os estudos dedicados aos antigos cultos focam-se, particularmente, nas divindades e/ ou nos templos edificados, subvalorizando, regra geral, as paisagens e outros aspectos ambientais, potencialmente determinantes para os fenómenos de sacralização de loci naturais. Desde sempre, o Homem foi atraído por determinadas paisagens naturais, carregadas de peculiares forças ingénitas. Estes locais, contemplativos, místicos, geralmente ermos, particularmente nascentes, quedas-d’água, pegos, recortes de rio, cumes de montanha, cavernas, afloramentos, rochedos e promontórios, foram sacralizados e monumentalizados enquanto suportes de discursos simbólicos e de construções mentais, autênticos recipientes de memórias colectivas de loco-identidades culturais. Sítios que adquirem sentido para além dos sentidos. Arquitecturas espirituais que se edificam sobre pilares naturais e humanos, numa teia de símbolos, mitos e rituais que investem a paisagem de multi-significâncias. Neste contexto, desde a aurora da Humanidade que as paisagens de Sagres acolheram cultos mágico-religiosos, que por lá se fixaram pela atracção da finisterra, evoluindo para discursos religiosos, petrificando-se nos menires, vingando nos tempos, cristianizando-se, santificando-se, edificando-se em templos, expandindo-se em procissões, romarias e peregrinações, migrando e globalizando-se... 1. A atracção da finisterra e o culto dos promontórios Os promontórios constituem-se como significativas paisagens especiais. Misteriosos acidentes geográficos que apartam os mares, as terras e o céu. Autênticos monumentos geológicos. Naturais templos numinosos e hierofânicos. Ainda hoje, nos mais proeminentes recortes da crusta terrestre, os cabos atraem numerosos visitantes, numa ‘vertigem’ pela finisterra, num inexplicável apelo pelos extremos do mundo, numa demanda pelo horizonte infinito, onde o sol, a lua e todo o séquito de astros morre e renasce do mar. 189

Soares, Ricardo (2014) “Sagres – o Promontorium Sacrum: uma petrificada paisagem sagrada.”

Resumo: O território do Promontório de Sagres (Sagres, Vila do Bispo) manifesta uma remota, intensa e contínua vocação e exploração mágico-religiosa, desde os primórdios da sua ocupação humana até aos nossos dias, realidade que se pretende aqui aflorar, por via de um discurso partilhado e complementar, entre a investigação arqueológica e a leitura histórica, entre os nossos menires e o culto de São Vicente... Palavras chave: promontório, sacralização, monumentalização, Megalitismo, Sagres.


Soares, Ricardo (2014) “Sagres – o Promontorium Sacrum: uma petrificada paisagem sagrada.”

Há muito que assim acontece! Individualmente ou colectivamente, em peregrinações ou romarias, o ser Humano foi marcando, a ‘pé-posto’, a sua espiritualidade nas ‘rotas dos cabos’. Poderíamos apontar uma série de evidências que atestam, em toda a ‘esfera de Atlas’, uma muito remota preferência pelos promontórios, enquanto privilegiados palcos de cultos mágico-religiosos. Por exemplo, em Portugal, o Cabo da Roca foi descrito por Plínio o Velho como loca sacra, monumentalizado com recintos de culto e altares de pedra (séc. I d.C. – Naturalis Historia, Livro IV). Na Arrábida, o Cabo Espichel foi designado como “Sacrum”, desta feita por Pomponius Mela (séc. I d.C. – De Chorographia, Livro III). E, claro, o extremo sudoeste da Europa – Sagres –, inevitavelmente sacralizado, até toponimicamente, como um perpétuo altar de pedra, investido de uma omnipotência que se perde nas origens... Muito para além do tempo histórico, nos confins da Pré-história, a Arqueologia tem vindo a reconhecer e a materializar alguns vibrantes ecos destes fenómenos de sacralização de diferenciadas paisagens naturais, designadamente em ‘grutas-necrópole’ e ‘grutas-santuário’, abertas nos carsos de diversos promontórios. As grutas, enquanto espaços produzidos por acção da Natureza, foram utilizadas desde o dealbar da humanidade, como abrigos e, sobretudo, enquanto propícias sedes de exéquias e depósitos votivos. Nestes espaços, após a morte, os corpos foram devolvidos ao ‘maternal ventre da terra’, em posição fetal, acompanhados de relíquias votivas. A procura destes locais, ermos e inóspitos, para práticas de cariz funerário, converte-os em santuários subterrâneos, nos quais, presumivelmente, se procurava o contacto com o transcendente, com as forças da fertilidade, e se recriavam metáforas para a origem da vida e para os mistérios da morte. Neste sentido, estes ocos profundos, escuros e geralmente húmidos, poderiam configurar o submundo uterino da terra fértil, um umbilical espaço de eterno retorno, onde as águas subterrâneas poderiam simbolizar um transcendente poder de purificação, infiltração e comunicação com o mundo inferior e com o ‘além’ (Soares 2013: 67-71). 2. O Promontorium Sacrum: referências clássicas e ‘baptismo toponímico’ Desde muito cedo, na História da sua Humanidade, a região de Vila do Bispo foi escolhida como base de implantação de remotas comunidades que nestas extremas paisagens decidiram fixar-se, legando-nos, à guarda do tempo, numerosos e diversificados vestígios arqueológicos – verdadeiras provas materiais e definidos rastos culturais da sua longínqua presença. Não será exagero afirmar que o nosso território se revela como um genuíno ‘Museu vivo de História Natural e Humana’, com uma riqueza de apontamentos, produzidos e perfeitamente organizados numa arquitectura paisagística de referência, numa admirável ‘simbiose’ entre a Natureza e o Homem. A historiografia permite-nos recuar, até ao séc. IV a.C., para lá resgatar as primeiras referências conhecidas, relativas à região de Sagres. Na sua Historia Universal, o historiador grego Éforo de Cime ‘baptiza’ esta finisterra como Hieron Akroterion, designação grega traduzida para o latim, no séc. I d.C., como Promontorium Sacrum (Plínio o Velho, Naturalis Historia) – o Promontório Sagrado! Posto isto, podemos desde já estabelecer uma primeira conclusão: há cerca de 2400 anos (pelo menos) a região de Sagres já se encontrava fixada, toponimicamente, como um território de propensão sagrada! Na última década do séc. II a.C., o geógrafo grego Artemidoro de Éfeso visita a Península Ibérica, afirmando ter estado precisamente no Cabo Sacrum, descrevendo as suas exploratórias viagens numa Geographia tida como perdida. O conhecimento da obra de Artemidoro chegou-nos pela mão de outros autores da Antiguidade, posteriores, que a ela, directa ou indirectamente, aludiram ou dela rebuscaram 190


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Revista Santuários, Cultura, Arte, Romarias, Peregrinações, Paisagens e Pessoas. ISSN 2183-3184. Vol. 1 (2): 189-197.

Fig. 1. Cordão circular (R. Soares, 2014) Fig. 2. Antropomorfismo (R. Soares, 2012)


Soares, Ricardo (2014) “Sagres – o Promontorium Sacrum: uma petrificada paisagem sagrada.”

notícias. Muito recentemente, esta clássica visita ganhou mais verosimilhança, pois reconheceu-se um fragmento do supostamente perdido texto, num papiro encontrado no Egipto, em Antaiúpolis (Moret, 2003; Alarcão, 2010). Estrabão será um dos autores que, no séc. I a.C., fará referência ao texto de Artemidoro. No livro III da sua Geographia, volta a denominar a Ponta de Sagres como Hieron Akroterion, descrevendo-o da seguinte forma e referindo-se aos seus predecessores, Éforo e Artemidoro: É a elevação mais ocidental, não da Europa mas de toda a terra habitada (…) Artemidoro afirma que esteve neste lugar que o assemelha a um navio (…) Assegura que não se vê lá nenhum santuário nem altar a Héracles (nisto mente Éforo), dele ou de algum outro deus, mas que em muitos sítios há grupos de três e quatro pedras, que são pelos visitantes voltadas, em virtude de um costume ancestral, e deslocadas, depois deles fazerem libações; e que não está permitido fazer sacrifícios nem aceder de noite ao lugar, por dizer-se que nessa altura é ocupado pelos deuses, mas os que chegam para contemplá-la pernoitam numa aldeia próxima e logo pela manhã, seguem até lá, levando consigo água que este lugar carece (Estrabão, Geographia, III, 1, 4-5, apud Loução, 2011). Estas linhas permitem-nos fixar mais alguns sugestivos considerandos: ainda no séc. II a.C., aquando da insigne visita de Artemidoro, algo de muito especial se passava sobre a plataforma deste nosso Cabo... “um costume ancestral”, um ritual antigo que implicava libações a ‘deuses de pedra’. De destacar que Estrabão desmente Éforo, quando este refere a existência, no Promontório de Sagres, de um templo ou altar dedicado a Héracles ou a qualquer outra divindade. Porém, temos de ter em conta que a informação de Éforo terá sido produzida no séc. IV a.C., enquanto Artemidoro terá visitado o local cerca de 300 anos depois, no séc. I a.C. Nesta perspectiva, não será de excluir a hipótese de o referido santuário, mencionado pelo mais antigo dos dois autores, ter sido entretanto destruído ou passado despercebido aquando da visita de Artemidoro. Relativamente aos relatados “grupos de três e quatro pedras”, e no contexto do presente trabalho, trata-se de um assunto bem mais interessante! Tendo em conta a actual panorâmica dos nossos conhecimentos e as evidências materiais ainda disponíveis, a interpretação mais óbvia e coerente, para estas pedras, será a que as remete para os nossos persistentes e ainda copiosos menires! 3. Megalitismo de Vila do Bispo: referências arqueológicas Se entenderemos o megalitismo menírico enquanto manifestação mágico-religiosa, o território de Sagres encontra-se comprovadamente sacralizado pelo menos desde o Neolítico Antigo – inícios do VI milénio a.C. (Gomes 1994: 339; Gomes, 1997: 176). Justamente, neste canto do mundo, foi erguida uma das maiores concentrações de menires conhecidas em toda a Europa. No Levantamento Arqueológico do Concelho de Vila do Bispo, publicado em 1987 por Mário Varela Gomes e Carlos Tavares da Silva (Gomes e Silva 1987), foram inventariados 121 menires na região. Em 2005, João Velhinho publica o levantamento Menires de Vila do Bispo (Velhinho 2005), exaustivo trabalho onde se encontram cartografados, georreferenciados, fotografados e descritos 267 menires. Considerando a expectável probabilidade de novas descobertas e o facto de a região de Vila do Bispo ter sido explorada, até muito recentemente, como o ‘celeiro do Algarve’, suportando uma extensa e intensiva actividade agrícola, há que admitir que os menires que resistiram até aos nossos dias constituem apenas uma ínfima parte de um todo entretanto perdido, a ponta de um imenso ‘iceberg de pedra’ que poderá ter atingido uma inigualável dimensão. Além da descontextualização por deslocamento e da destruição por fracturação, causadas pela inten192


4. Sacralização megalítica: menires, monumentais ‘Homens de Pedra’ O universo simbólico, associado aos monumentos meníricos, continua encriptado na pétrea distância dos tempos e dos preconceitos. Locais de descanso para a alma dos mortos, pára-raios, calendários solares, ídolos aos quais se prestariam cultos e sacrifícios, memoriais de tratados, de alianças, de feitos de 193

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sa lavoura, estes monumentos também foram alvo de reutilização para construção urbana, redução do seu calcário para cal, para não falar da alheia apropriação destinada ao embelezamento de propriedades privadas. Ainda assim, muito restou, tratando-se, em diversos aspectos, de um exemplar conjunto menírico. Não despiciendo o fundamental contributo dos já referidos autores clássicos (entre muitos outros que não importa trazer à colação, no âmbito do presente texto), a investigação arqueológica, no território hoje abrangido pelo Concelho de Vila do Bispo, foi inaugurada, de forma verdadeiramente científica e pioneira, apenas nos finais do século XIX, com Estacio da Veiga. Porém e estranhamente, nas suas visitas à região, não descuidando a exemplar qualidade da sua metodologia científica, Estacio da Veiga não documenta um único menir em Vila do Bispo. Tal lacuna só poderá ser explicada pelo facto do distinto arqueólogo, face à dimensão hercúlea do seu projecto, ter distribuído tarefas a informadores e colectores locais. Acreditamos que, se Estacio da Veiga tivesse tido a oportunidade de desenvolver prospecções pessoais, dificilmente lhe teriam passado despercebidos alguns dos mais significativos vestígios deste nosso património menírico, evidentemente numeroso e expressivo. Na verdade, naquela época, os menires ainda eram uns ‘notáveis desconhecidos’. Com base no “Relatorio e mappas ácêrca dos edifícios que devem ser classificados monumentos nacionaes” (Veiga 1886: 87-88), Estacio refere que, em 1880, apenas se encontravam inventariados três menires em todo o território nacional, todos no concelho de Vila Velha do Rodão. Na mesma época e por comparação, em França já se registavam 1638 menires (ob. cit.: 24). No Algarve, terminados os trabalhos de campo para a Carta Archeologica (1877-1878), publicada nas suas Antiguidades Monumentaes do Algarve - tempos prehistoricos (Veiga, 1886; 1887; 1889; 1891), Estacio adenda somente mais cinco exemplares concretos ao ‘inventário menírico nacional’, todos na zona de Silves, levantando então a seguinte questão: Serviriam essas pyramides e menhirs de demarcação de um determinado territorio, ou cada um d’esses monumentos ficaria representando um feito memoravel ou uma consagração de piedosa lembrança? Não o sei dizer (Veiga 1891: 233-235). Ainda assim, recuperando os “grupos de três e quatro pedras” de Artemidoro e de Estrabão, o nosso ilustre pioneiro como que ‘pressentiu’ a real existência de uma presença megalítica na área de Sagres, referindo-a, com as devidas reservas, na qualidade de “antas ou dolmens (destruidos), que mui presumptivamente existiram sobre o solo” (Veiga 1886: 99). Ao contrário das antas, há muito justamente integradas na agenda da investigação arqueológica nacional, será apenas nos anos sessenta, do século XX, que os menires se tornarão alvos efectivos de uma sistemática divulgação no nosso País, resultando num consequente boom de descoberta, notavelmente profícuo no Barlavento Algarvio. Os menires de Vila do Bispo têm vindo a revelar-se, com base na informação entretanto produzida, como um conjunto claramente individualizado no contexto europeu, designadamente no que respeita ao seu número, ao suporte material em que foram produzidos (calcário e arenito), às decorações neles inscritas, aos povoados associados... à sua ‘personalidade’.


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guerra (Almeida 1979: 14, apud Calado 2004: 49), toda uma incrível panóplia de interpretações alvitradas sobre o significado destas esculturas. Sobre os menires de Vila do Bispo, ainda paira uma redutora e excessiva ‘obsessão sexual’, aligeirada por significâncias invocadoras de cultos de fertilidade/fecundidade, integradas no contexto da emergência das primeiras sociedades agro-pastorís: elipses segmentadas interpretadas como grãos de trigo, mas também como vulvas; semi-elipses como púbis e mamilos; linhas ondulantes como nascentes de água, cursos de rio, esperma... enfim! O carácter fálico dos menires conquistou, nesta região, uma particular proeminência, sobretudo graças aos recorrentes cordões definidos no seu topo, decifrados como ‘glandes fálicas’ (Figura 1). Numa perspectiva mais moderada, porque não admitir simplificadas representações de cabeças humanas? (Gomes 1997b: 256). Reflexo do gradual aumento demográfico, propiciado pela sedentarização neolítica e pelos excedentes alimentares da produção agro-pecuária, as sociedades, originalmente igualitárias, complexificam-se estruturalmente, exigindo uma nova organização social e emergentes discursos de poder. O fenómeno megalítico poderá ser precisamente entendido como a materialização de um discurso ideológico que irá agregar as comunidades, tendencialmente neolíticas, em torno de um mega-objectivo comum, de um monumental empreendimento colectivo. O Homem é um ser gregário, dependente de propósitos colectivos, de linhas de comando grupal, de necessárias estruturas de orientação e contenção de esforços e tenções sociais – a génese de todos os discursos de poder! Genericamente, o Megalitismo caracteriza-se pela monumentalização da paisagem com o recurso a grandes blocos de pedra, enquanto expressão cultural, mágico-religiosa e territorial. Recorrentes em todo o mundo, em diversas culturas e em todos os tempos, os menires ocorrem isolados, agrupados em alinhamentos ou em recintos. Os menires podem, justamente, ser interpretados como a primeira manifestação do Homem na paisagem, a sua própria personificação cultural num virgem palco natural (Figura 2): o Homem sedentário que se apropria de territórios, transformando-os, cultivando-os, marcando-os com marcos identitários de propriedade cultural – “o Homem torna-se a medida de todas as coisas” (Calado 1997: 296). Considerando este esquema interpretativo, os menires, enquanto representações de figuras humanas, não figurariam, necessariamente, indivíduos concretos: potenciais esculturas antropomórficas representativas de distintos antepassados, de personagens míticos, de heróis fundadores ou mesmo de divindades, sendo, por extensão, relacionáveis com a emergência de linhagens, numa conjuntura de forte coesão social que monumentos desta ordem de grandeza parecem reflectir (Calado 2004: 241). Esta tese antropomórfica reforça-se, com cabal substância, na própria evolução destes monumentos – as ‘estátuas-menir’ (Bueno-Ramírez 1990; Gomes, 1997b; Caubet 2002; Calado 2004: 47). No caso de Vila do Bispo, a tradição oral ainda hoje produz eco de uma antiga lenda, de pedras envoltas em ‘sebastiânicos nevoeiros’ (ver texto seguinte!). O pesado investimento necessário à deslocação, afeiçoamento e erecção de tantos menires poderá ser explicado por uma motivação de ordem simbólica. Ao contrário de uma muralha, em si mesma também revestida de simbolismo visual, enquanto estrutura de pedra que defende um povoado, as suas gentes e os seus bens, a justificação prática para um empreendimento megalítico será menos lógica do ponto de vista funcional. Ou seja, a monumentalização das paisagens, a sua marcação com o recurso a grande pedras, implicaria, necessariamente, um discurso de poder, uma liderança tendencialmente espiritual, 194


Fig. 3. Menir tombado no Cerro do Camacho, com inscrições 'cristãs' (R. Soares, 2014)

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uma estrutura mental de ordem mágico-religiosa: uma remota e perdida ‘religião megalítica’, com líderes espirituais (anciãos e/ou xamãs) e objectos de culto, materializados na forma de menires. Tanto no vizinho Alentejo Central, como na nossa região, as escavações dos alvéolos de implantação dos menires têm permitido exumar, em diversos casos e entre outros artefactos, recorrentes fragmentos de mós manuais. Geralmente fragmentárias, ou seja, uma parte de um todo, estas peças remetem para os povoados, para o mundo quotidiano da vida rural, para a importância do cereal e da sua moagem. Estes indícios artefactuais levam-nos a presumir que os menires foram erguidos por comunidades de pastores-agricultores, dedução reforçada por outra recorrente evidência arqueológica: no Alentejo Central, além dos fragmentos de mó, a mais repetida iconografia gravada nos monumentos representa, justamente, o báculo ou cajado de pastor. Este distante e subjectivo universo dos significados, o reportório simbólico que as primeiras gentes neolíticas atribuíram aos seus inaugurais monumentos e às decorações neles inscritas, constituirá, para sempre, um fértil campo para a imaginação, de impossível descodificação pela científica investigação arqueológica. 5. Resistência material e imaterial: ‘menires-cruzeiro’ na ‘Rota Vicentina’ A apropriação, integração, continuidade, renovação e reutilização de antigos cultos e de precedentes santuários, encontra-se amiúde documentada, designadamente por distintos fenómenos de herança natural, de complexificação social, de contágio cultural, de conquista territorial e de aculturação. Por exemplo, a Romanização não se traduziu, necessariamente, numa expectável superioridade religiosa – na ‘evangelização’ dos ‘povos bárbaros’. Pelo contrário! A civilização romana acabou por espontaneamente assimilar inúmeras divindades exóticas, indígenas, que depois de ‘maquilhadas’, num processo de interpretatio, acabam por conquistar um digno altar no profuso panteão romano, junto dos seus novos pares e de forma igualitária. Tal já se tinha verificado com os Gregos e voltará a repetir-se, com reverberações bem mais actuais, com a Cristianização. Precisamente aqui, em terras do Alandroal, sobre as paisagens do Lucefecit, a investigação arqueológica, conduzida por irremediáveis instintos da natureza humana, revelou um extraordinário acto de fé romana por um deus indígena – o deus Endovélico e o santuário da Rocha da Mina (Calado 1993). Também na região de Sagres, foram documentados alguns interessantes exemplos de respeitosos reaproveitamentos de monumentos meníricos. No Padrão (Raposeira), foi registada uma posterior apropriação de um monumento menírico (Figura 2), originalmente pré-histórico, reinvestido na qualidade de ‘guardião’ de duas necrópoles: uma de Época Romana e outra da Alta Idade Média (Gomes 2011). Enquanto, no topo do Cerro do Camacho (Vila do Bispo), encontra-se um menir tombado, mas particularmente interessante. Dominante sobre a paisagem que ‘desagua’ em Sagres, além da decoração pré-histórica, é possível observar um conjunto de inscrições de épocas mais recentes (Figura 3): uma cruz incisa, outra cruz formada por cinco círculos em relevo (as cinco chagas de Cristo!), uma data gravada (1644) e uma inscrição onde se pode ler “Lisboa”. Trata-se, portanto, de um reconduzido monumento pré-histórico que perpassa os tempos, acumulando mensagens num palimpsesto simbólico, sendo hoje, a mais marcante, aquela que nos remete para o culto cristão – um ‘menir-cruzeiro’ na ‘rota do Cabo de São Vicente’.

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