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Toda a invenção na arte é um evento singular no tempo, não tem evolução. Com a passagem do tempo, diferentes variações do mesmo tema vão sendo compostas à volta dessa invenção, por vezes de forma mais perspicaz, outras vezes mais insípida, mas raramente com a mesma força do original. Assim continua até que, depois de terem sido realizadas durante um longo período de tempo, esta obra de arte se torne tão automático-mecânica na sua performance que a mente deixe de responder ao tema esgotado; aí o tempo é o certo para uma nova invenção. O assim chamado aspecto técnico é, no entanto, inseparável do aspecto artístico, e com isto não se quer descartar de forma leve as possíveis associações entre ambos apenas com algumas catchwords. De qualquer forma, Gutenberg, o inventor do sistema de impressão de tipos móveis, imprimiu alguns livros com este método, que tem o estatuto de acontecimento mais importante na arte do livro. A isso se seguem alguns séculos que não produziram invenções fundamentais no nosso campo (até à invenção da fotografia). O que encontramos, mais ou menos, na arte de imprimir são variações mestras acompanhadas
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por melhoramentos técnicos na produção dos instrumentos. A mesma coisa aconteceu com uma segunda invenção do campo visual — com a fotografia. O momento em que deixamos de estar num pedestal, é o momento em que temos que admitir que os primeiros daguerreótipos não são coisas primitivas e mal-amanhadas, mas sim uma das maiores realizações no campo da arte fotográfica. É algo tacanho pensar que a máquina sozinha, isto quer dizer que se suplanta os processos manuais por mecânicos, é fundamental para a mudança da aparência e forma das coisas. Em primeiro lugar é o consumidor que determina a mudança pelas suas exigências; refiro-me ao estrato da sociedade que fornece a “encomenda”. Hoje não é um círculo estreito, uma pequena camada superior, mas “Todas” as massas. A ideia que move as massas hoje em dia chama-se materialismo, mas o que caracteriza precisamente o tempo presente é a desmaterialização. Um exemplo: a correspondência cresce, o número de cartas cresce, a quantidade de papel escrito e material já utilizado aumenta, depois a chamada telefónica alivia a pressão. Depois vem o crescimento sucessivo das redes de comunicação e cresce o volume de comunicações; depois a rádio atenua o fardo. A quantidade de material usado
está a diminuir, estamos a desmaterializar, quantidades enormes de material estão a ser suplantadas por energias livres. Este é um sinal do nosso tempo. Que género de conclusões podemos tirar destas observações em relação à nossa área de actividade? Avanço com as seguintes analogias:
Invenções no campo da comunicação generalizada
Discurso articulado
Andar erecto
Escrita
Roda
Imprensa de Gutenberg
Veículos puxados por força animal
?
Carro com motor
?
Avião
Exponho estas analogias de forma a demonstrar que enquanto o livro é por necessidade um objecto para segurar com as mãos, com isto se quer dizer que ainda não está suplantado por gravações sonoras ou imagens falantes, teremos que esperar dia a dia por invenções fundamentais no campo da produção livreira, para aí podermos alcançar o standard desse tempo. As indicações presentes são de que esta invenção
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Invenções no campo do pensamento comunicativo
básica é expectável no campo vizinho da colotipia. Este processo envolve uma máquina que transfere para filme a tipografia composta , uma máquina de impressão que copia o negativo para papel sensível. Assim o enorme peso da tipografia e o balde da tinta desaparecem, e assim novamente temos a desmaterialização. O aspecto mais importante é que o estilo de produção da palavra e da ilustração está sujeito a só um e o mesmo processo — para a colotipia e a fotografia. Até ao presente não tem havido qualquer tipo de representação tão completamente compreensível para toda a gente como a fotografia. Assim estamos perante uma forma de livro em que a representação é mais importante que o alfabeto. Conhecemos dois tipos de escrita: um símbolo para cada ideia = hieróglifo (na China de hoje) e um símbolo para cada som = letra. O progresso da letra em relação ao hieróglifo é relativo. O hieróglifo é é internacional: ou seja, o mesmo é dizer que se um russo, um alemão ou um americano imprime na sua memória os símbolos (imagens) de ideias, ele consegue ler Chinês ou Egípcio (silenciosamente), sem adquirir conhecimento da língua, porque a língua e a escrita são cada uma um padrão em si mesma. Isto é uma vantagem que o livro escrito perdeu. Por isso acredito que o próximo livro será representado de forma plástica. Podemos dizer que (1) O livro hieroglífico é internacional (pelo menos nas suas potencialidades), (2) o livro escrito é nacional e (3) o livro que há-de vir é a-nacional: de forma a compreendê-lo será preciso, no mínimo, aprender.
Hoje em dia temos duas dimensões para a palavra. Como som é uma função do tempo e a representação é uma função do espaço. O livro que há-de vir terá que ser ambos. Desta forma o automatismo do livro actual será ultrapassado; porque para uma visão da vida que nos chegou de forma mais ou menos automática, tal é inconcebível para as nossas mentes e somos deixados a sufocar no vazio. A tarefa energética que a art deve conseguir é transmutar o vazio em espaço isto é, em algo que as nossas mentes podem agarrar como uma unidade organizada. Com as mundaças na linguagem, em construção
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O livro tradicional foi rasgado em páginas separadas, Imensamente aum e ntado , color i do para maior intensidade e trazido para as ruas como um poster.
e em estilo, o aspecto visual do livro também muda. Antes da guerra, a matéria impressa europeia parecia mais ou menos igual em todos os países. Na Amé-
rica, havia uma nova mentalidade optimista preocupada com o dia-a-dia, centrada nas impressões imediatas, e isto começou a criar uma nova forma de impressão. Foi aí que a ênfase mudou e a palavra passou a ser a ilustração da imagem em vez do contrário, como na Europa. Além do mais, a técnica altamente desenvolvida de processo fotomecânico teve uma contribuição particular; e assim a fotomontagem foi inventada. A Europa pós-Guerra, céptica e espantada, cultiva uma linguagem gritante, berrante; cada um deve agarrar-se ao que tem e aturar de tudo. Palavras como “atracção” e “truque” estão-se a tornar nas cathwords do tempo. A aparência do livro é caracterizada por (1) painel tipográfico fragmentado, (2) fotomontagem e tipomontagem. Todos estes factos são como um avião. Antes da guerra e da nossa revolução levava-nos ao longo da pista até ao ponto de descolagem. Agora já nascemos no ar e a nossa fé no futuro está no avião — isto que dizer nestes factos. A ideia de livro “simultâneo” teve origem na era de pré-guerra e apercebida depois de uma moda. Refiro um poema de Blaise Cendrars, tipograficamente desenhado por Sonia Delaunay-Terk, escrito
numa tira de papel dobrado com 1,5 metros de comprimento; por isso foi uma experimentação como uma nova forma de livro para a poesia. As linhas do poema estão impressas a cores, de acordo com o conteúdo e mudam de cor consoante o significado. Em Inglaterra, durante a guerra, o grupo Vortex publicou o seu trabalho BLAST, grande e elementar na sua apresentação e quase exclusivamente composto em blocos de letras. Hoje isto tornou-se o aspecto internacional e moderno de toda a matéria impressa. Na Alemanha, o prospecto para o pequeno portfolio de Grozs, de nome Neue Jugend, produzido em 1917, é um importante documento da nova tipografia.
des massas, as massas semi-letradas, que se tornaram a audiência. A revolução no nosso país foi bem sucedida numa enorme tarefa educacional e propagandística. O livro tradicional foi rasgado em páginas separadas, imensamente aumentado, colorido para maior intensidade e trazido para as ruas como um poster. Em contraste com o póster americano, criado para pessoas que apenas o olham rapidamente enquanto passam depressa nos seus automóveis, o nosso foi feito para pessoas que o olham de perto e o lêm várias vezes e tiram daí um sentido. Se hoje um determinado número de posters fosse reproduzido no tamanho de um livro manuseável, depois arranjado de acordo com o tema e objectivo, o resultado poderia ser o mais original dos livros. Por causa da necessidade de rapidez e a grande falta de possibilidades de impressão, o melhor trabalho era maiorita-
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Connosco na Rússia, o novo movimento começou em 1908, e desde o seu primeiro dia uniu pintores e poetas. Praticamente nenhum livro de poesia aparecia sem a contribuição de um pintor. Os poemas eram escritos e ilustrados com lápis litográfico ou gravados em madeira. Os próprios poetas compunham tipograficamente páginas inteiras. Entre os que trabalhavam de outra forma, estavam os poetas Khlebnikov, Kruchenykh, Mayakovsky, Asseyev, assim como os pintores Rozanova, Goncharova, Malevich, Popova, Burlyuk, etc. Estes era cópias de luxo, não numeradas, eram baratas, não cozidas, com capas moles, que nós consideramos hoje em dia, apesar da sua urbanidade, como arte popular. Durante o período da revolução uma energia latente acumulava-se na nossa jovem geração de artistas, que meramente esperava o grande mandato do povo para ser publicada e para se desenrolar. São as gran-
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mente feito à mão; era estandardizado, conciso no seu texto e mais adequado ao método de duplicação mecanicamente mais simples. As leis do estado eram impressas da mesma forma, como picture-books desdobráveis, as ordens do exército da mesma forma que brochuras com capa mole. No fim da Guerra Civil (1920) foi-nos dada a oportunidade, usando meios mecânicos primitivos, de atingir os nossos objectivos pessoais no campo do design de livros. Em Vitebsk produzimos um trabalho intitulado Unovis, usando maquina de escrever, litografia, gravura, linogravura. Nesse trabalho, escrevi: “A Bíblia de Gutenberg foi impressa apenas com letras. mas a Bíblia do nosso tempo não pode ser representada apenas por letras. O livro encontra o seu canal para o cérebro através dos olhos, não através dos ouvidos: nesse canal as ondas viajam com muito maior velocidade e pressão que no canal acústico. Alguém pode falar apenas pela boca, mas as facilidade de expressão do livro tomam muitas outras formas. Com o começo do período de reconstrução por volta de 1922, a produção do livro também aumenta rapidamente. Os nossos melhores artistas assumem o problema do design de livros. No início de 1922 nós publicamos, com o poeta Ilya Ehrenburg, o periódico Veshch (“Objecto”), impresso em Berlim. Graças à elevada fasquia da tecnologia alemã, realizámos com sucesso algumas das nossas ideias sobre o Livro. Assim, o picture-book “Of Two Squares” (“De Dois Quadrados”), finalizado no nosso período criativo de 1920, é também impresso (e o livro de Mayakovsky também) de maneira a que a forma do livro em si tenha um aspecto funcional por manter um propósito específico. Nesse mesmo período os nossos artistas obtiveram as facilidades técnicas da impressão. A State Publishing House e outros estabelecimentos de impressão publicavam livros, que desde aí veio a ser algo apreciado em diversas exibições internacional na Europa. Camaradas Popova, Rodchenko, Klutsis, Syenkin, Stepanova e Gan dedicaram-se ao livro. Alguns deles trabalharam mesmo em projectos de impressão, em parceria com o compositor e a máquina (Gan e muitos outros). O nível de respeito pela actual arte de imprimir, que é adquirida por favor este tipo de actividades, é mostrado através do facto de todos os nomes dos compositores e distribuidores de qualquer livro estão listados numa página especial. Assim na área da impressão existe um número de trabalhadores que cultivam uma relação muito consciente com a sua arte.
A maioria dos artistas fazem montagens — com fotografias e inscrições da autoria destes — coladas em páginas inteiras, que depois são reproduzidas fotograficamente para impressão. Desta forma desenvolve-se uma técnica eficiente e simples, fácil de manusear, e por isso pode cair facilmente numa rotina enfadonha. Mas, se entregue a mãos poderosas, poder-se-á tornar o método mais bem sucedido na área da poesia visual. No início dizíamos que o poder expressivo de toda a invenção na arte é um fenómeno isolado e não tem evolução. A invenção da pintura de cavalete produziu excelentes obras de arte, mas a sua eficácia perdeu-se. O cinema e a revista ilustrada triunfaram. Regozijávamos os novos média, que nos colocou a tecnologia ao nosso dispor. Sabemos que estar em contacto estreito com eventos a nível mundial e estar a par do progresso do desenvolvimento social, que com o perpétuo refinamento do nosso nervo óptico, com a mestria do material plástico, com a construção do avião e o seu espaço, com a força que mantém a inventividade em estado de ebulição, com todos esses novos bens, sabemos que finalmente poderemos dar nova eficácia ao livro enquanto obra de arte.
Resumido de Gutenberg-Jahrbuch (Mainz, 1926/7)
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Ainda assim, neste presente dia e tempo continuamos sem essa nova forma de livro como corpo; continua a ser uma capa com uma sobre-capa, com espinha, e páginas 1, 2, 3… Continuamos a ter a mesma coisa no teatro também. Até agora, no nosso país, até a mais recente produção teatral têm sido representadas no estilo de teatro tipo “caixilho de fotografia”, com o público acomodado nas cadeiras, nas caixas, nos círculos, todos em frente à cortina. O palco, no entanto, ficou liberto do cenário pintado; o palco pintado em perspectiva extinguiu-se. Nesse mesmo “caixilho de fotografia”, um espaço físico tridimensional nasceu, para o desenvolvimento máximo da quarta dimensão, o movimento vivo. Este teatro recém-nascido explode com a antiga concepção de teatro. Talvez o novo trabalho dentro do livro ainda não está na fase de explodir com a forma tradicional de este se apresentar, mas devemos ter aprendido por agora como reconhecer a tendência. Não obstante das crises que a produção livreira está a sofrer, em comum com outras áreas de produção, o “glaciar” do livro está a crescer de ano para ano. O livro está-se a tornar a obra de arte mais monumental: já não é apenas algo acariciado pelas mãos de alguns bibliófilos mas, pelo contrário, está a ser consumido por centenas de milhares de pessoas pobres. Isto também explica a dominância, neste nosso período de transição, da revista ilustrada. Além disso, apareceu no nosso país uma corrente de livros ilustrados para crianças, fazendo aumentar os periódicos ilustrados. Através da leitura, as nossas crianças estão a adquirir uma linguagem plástica nova; elas estão a crescer com uma relação diferente com o mundo, o espaço, a forma e a cor; elas concerteza que criarão um outro livro. Nós, no entanto, estamos satisfeitos se nos nossos livros a evolução lírica e épica dos nossos tempos tomarem forma.