short story

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Arvoredos, lagos, fontes, jardins, pomares, bosques, campos, pinhais, ninhos, folhas, glicínias, plátanos, begónias, orquídeas, maçãs, pêras, papoilas, andorinhas, rosas, narcisos, cravos, tulipas.


A Floresta Sophia de Mello Breyner Andresen

Era uma vez uma quinta toda cercada de muros. Tinha arvoredos maravilhosos e antigos, lagos, fontes, jardins, pomares, bosques, campos e um grande parque seguido por um pinhal que avançava quase até ao mar. A quinta ficava nos arredores duma cidade. O seu pesado portão era de ferro forjado pintado de verde. Quem entrava via logo uma grande casa rodeada por tílias altíssimas cujas folhas, dum lado verdes e de outro lado quase brancas, palpitavam na brisa. Era nessa casa que morava Isabel. Isabel nesse tempo tinha onze anos e por isso ia todos os dias da semana ao colégio, baloiçando a sua pasta cheia de livros ora numa mão ora na outra. Mas às quatro horas voltava para casa, lanchava a correr e saía para a quinta. Isabel não tinha irmãos e por isso sabia brincar sozinha e conversar com as árvores, com as pedras e com as flores. Todos os dias ela percorria a quinta. No Outono apanhava castanhas esmagando com o pé os ouriços verdes. No Inverno colhia violetas e camélias. Na Primavera trepava às cerejeiras para comer as primeiras cerejas doces, escuras e vermelhas. E também subia às árvores onde todos os anos havia ninhos, ninhos redondos feitos de ervas, folhas secas e penas e que tinham lá dentro quatro ovos verdes sarapin-

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tados de castanho. Caminhava entre o ela ia aos sítios onde não podia ir só. Pois trigo que era como um doce mar, aéreo a porta da estufa, a porta do galinheiro e e leve. Às vezes passava horas a ler sob o a porta da adega estavam sempre fechacaramanchão onde as flores lilases das das à chave. Na estufa enorme, sob o glicínias pendiam em grandes cachos telhado de vidro caiado, o ar era húmido perfumados rodeados de abee quente. Aí cresciam as lhas. Ou caminhava devagar Avencas maravilhosas, finas avencas maravilhosas, na luz verde do parque escu- e leves, as begónias roxas, as finas e leves, as begónias tando o rumor das altas copas orquídeas verdes roxas, as orquídeas verdes dos plátanos. E conhecia o e sarapintadas com o seu lugar onde, escondidos entre as ervas e ar de bichos venenosos, e outras plantas folhas, cresciam os morangos selvagens. e flores que tinham nomes esquisitos Em geral Isabel brincava sozinha. Mas escritos numa placa de alumínio atada às vezes passeava com o velho jardineiro aos seus pés com ráfia. chamado Tomé que era seu grande amigo. No galinheiro Isabel distribuía o milho Tomé ensinava-lhe os nomes das árvores e logo uma multidão de galinhas a cere das flores e Isabel ajudava-o a regar e a cava cacarejando. Então ela gritava «Peru arrancar ervas más. E também com Tomé velho». E o peru logo respondia inchando

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todas as penas: «Glu, glu, glu». E havia as manhãs à cozinha grandes cestos sempre uma nova ninhada de pintos cheios de fruta: primeiro eram cerejas amarelos e castanhos. Isabel apanhava- e morangos, depois pêssegos, ameixas e -os do chão com muito cuidado, rode- pêras. Um pouco mais tarde apareciam ando com as duas mãos o leva calor das figos e uvas. Então começava o Outono. suas penas onde palpitava um pequeno Os dias ficavam mais curtos e mais doirados, as vinhas eram vindimadas, dos coração rápido e aflito. Tomé, depois levava-a à adega. Lá den- castanheiros caíam os primeiros ouriços tro tudo estava escuro. Isabel gritava verdes, nos jardins havia dálias e crisân«Hu!» e logo uma revoada de morcegos se temos, o chão cobria-se de folhas amadesprendia das paredes. Então ela atava relas e secas que se desprendiam uma um lenço à cabeça para que os morce- a uma dos altos galhos das árvores que gos não se prendessem nos seus cabelos. tombavam lentamente dando voltas no Havia ali grandes tabuleiros de madeira ar. De repente um grande vento cinzento onde as pêras e as maçãs acabavam de varria a quinta, ouvia-se ao longo o ronco amadurecer depois de colhidas. E por furioso do mar e começava o Inverno. isso a adega cheirava sempre a Outono. Chovia sem parar durante uma semana. Tomé tirava dos tabuleiros a maçã mais Quando parava de chover começava o vermelha para Isabel. A casca fina esta- frio. Apareciam muito brancas as prilava entre os dentes e a polpa era doce meiras camélias. Cada dia era mais curto e fresca, branca e dura. do que o da véspera. Os plátanos e as Isabel conhecia bem tílias, despidos das suas todas essas coisas maravi- As vinhas eram vindimadas, dos folhas, erguiam no céu lhosas. Cada ano repetia castanheiros caíam os primeiros pálido os seus galhos nus. de novo as suas quatro ouriços verdes, nos jardins havia Até que a água dos tanestações. Era a Primavera dálias e crisântemos. ques gelava e de manhã, que enchia as árvores de quando Isabel ia para o leves folhagens verdes, e espalhava nos colégio, os caminhos estavam cheios campos a multidão de papoilas. Então de geada. as andorinhas voltavam e tudo se enchia No Inverno, nos dias de chuva, Isabel de flores que baloiçavam docemente nas passava as suas tardes em casa. brisas transparentes. Depois o Verão Naquela casa tudo era enorme: as porchegava, os dias cresciam, o ar povoava- tas, as janelas, a copa, os quartos, as salas, -se de perfumes, as abelhas zumbiam as escadas, os corredores. em roda dos cachos de glicínias. Rosas, Mas a maior divisão da casa era o grande narcisos, cravos e tulipas desabrochavam átrio onde no Natal se armava o pinheiro. nos canteiros. O jardineiro levava todas À roda desse átrio ficavam as salas:a sala

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de jantar com a sua mesa interminável: sala de baile. A casa era tão grande que a sala de estar onde se tomava o chá nas nunca ninguém lá ia. Talvez os criados às tardes de Inverno: a sala do piano onde vezes a limpassem quando Isabel estava Isabel experimentava um por um o som no colégio. Mas desde a sua infância misterioso das teclas brancas e ela só tinha visto pretas: a biblioteca com as estan- Primeiro eram cerejas e moran- aquela sala desates cheias de livros de capas duras gos, depois pêssegos, ameixas bitada e com as com sombrios desenhos doirados e e pêras. Um pouco mais tarde janelas fechadas. com uma grande mesa onde estava apareciam figos e uvas. Às vezes, nas tarpousado o globo do mundo: a sala des de chuva, Isabel vermelha para onde entravam as visitas: ia explorar a sala de baile. Entreabria com a sala dos jogos onde Isabel fazia cas- custo uma das portadas e um fio de luz telos de cartas sobre a mesa do pano iluminava a penumbra. Então surgiam verde, ou construía com as pedras do os móveis cobertos de panos brancos, as mah-jong e do dominó maravilhosas pesadas cortinas de damasco vermelho, cidades habitadas só pelos cavalos do os grandes espelhos líquidos como um jogo de xadrez: a sala de bilhar onde ela lago, as estátuas de mármore, brancas, fazia rolar as bolas de marfim vermelhas imóveis e mudas, e o grande tapete azul e brancas tentando acertar nos sacos de cheio de rosas encarnadas. Sobre todas rede. Mas a sala mais misteriosa era a estas coisas pairava um grande sono,

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um pesado silêncio como se fosse ali o palácio da Princesa Adormecida. Um dia, pensava Isabel, chegaria um cavaleiro. Ele tocaria lá fora a sua trompeta de caça e as patas do seu cavalo fariam rolar as pequenas pedras soltas do pátio. Depois havia de se ouvir nas escadas de granito da entrada o tilintar das suas esporas de prata. Então num momento como tocada por um relâmpago a sala de baile acordaria. O piano começaria a tocar sozinho, nos castiçais uma mão invisível acenderia todas as velas, os panos brancos cairiam dos móveis e um perfume de rosas invadiria a sala, e as estátuas, uma por uma, sorrindo desceriam do seu pedestal. Mas até esse dia era preciso esperar. Era preciso que a sala continuasse muda, imóvel, sozinha, mergulhada em silêncio e penumbra. E por isso Isabel tornava a encostar a portada da janela, corria o duro fecho de ferro, e saía levemente, sem fazer nenhum barulho, pé ante pé. Do outro lado da casa ficavam a cozinha, a copa e a rouparia. Aí havia sempre barulho e agitação e as criadas iam e vinham, lavando, arrumando, cozinhando e

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conversando. Nesse lado da casa a pessoa mais importante era a cozinheira, sempre ocupadíssima, rodeada de carnes, ovos, legumes e galinhas. No Verão ela mexia num enorme tacho o doce de morangos, no Outono fazia marmelada que ficava durante muitos dias a secar ao sol da varanda virada para o Sul. No Natal, assava os perus recheados de castanhas e farófia, na Páscoa metia no forno os cabritos perfumados de ervas. Trazia sempre um molho de chaves pendurado da cintura e era ela que reinava na despensa, reino misterioso e sombrio onde pairava um perfume de baunilha e canela. A cozinheira tinha muito mau génio e resmungava todo o dia com a sua aju-

danta, a Emília, que descacava as batatas, lavava os tachos e depenava as galinhas. Mas quando estava bem disposta dava a Isabel magníficos presentes: às vezes eram pequenos bolos redondos e doirados, ainda quentes acabados de sair do forno. Outras vezes eram barras de duro chocolate de fazer bolos que ela guardava na despensa, ou uvas passas e figos secos. Assim Isabel conhecia bem todas as coisas daquela casa: sabia que no Natal havia sempre um primeiro carregado de luzes e bolos de vidro no meio do átrio. Sabia que na Páscoa se escondiam no jardim de buxo os ovos pintados. E sabia que no dia dos seus anos havia visitas e presentes.

— Faltam dois meses para o Natal. — pensava ela. Ou então o jardineiro dizia: — Para o mês que vem já há cerejas. Ou: — Para a semana já há tulipas. Mas um dia aconteceu uma coisa extraordinária e diferente.

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