1996 06 25 idn seminário os partidos e o sm

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http://web.archive.org/web/20030108183101/www.geocities.com/Capi tolHill/9219/IDN-96.htm "A posição dos Partidos sobre o serviço militar". Intervenção de Raimundo Narciso, em representação do Grupo Parlamentar do PS, no seminário promovido pelo Instituto de Defesa Nacional "A Prestação do Serviço Militar", em 25/06/1996. Instituto de Defesa Nacional Seminário: A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO MILITAR Lisboa, 25 de Junho de 1996 Raimundo Narciso Deputado do Partido Socialista, da Comissão de Defesa Nacional da Assembleia da República. Exmo Senhor Director do Instituto de Defesa Nacional - Senhor Almirante Fernando Machado da Silva Exmº Senhor moderador Senhor Coronel Ataíde Montez Exmos Senhores Na presente legislatura foram apresentados à Assembleia da República (AR), onze projectos de revisão constitucional. Cinco, dos partidos representados na AR, dois, subscritos por deputados do PS, três, da autoria de deputados do PSD e um, da iniciativa de um deputado do PCP. Relativamente às questões que se prendem com o serviço militar (SM) e mais concretamente com a desconstitucionalização da sua obrigatoriedade a situação é a seguinte: Os projectos de revisão do Partido Socialista, do Partido Social Democrata, e de três deputados do PS cujo primeiro


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subscritor é Cláudio Monteiro, propõem que o carácter obrigatório do SM deixe de figurar no texto constitucional. O projecto de cinco deputados do PSD cujo primeiro subscritor é o deputado Pedro Passos Coelho, constitucionaliza o princípio do serviço militar voluntário, os restantes projectos não propõem alterações à forma de prestação do SM consagrada na Constituição que é, como se sabe, o serviço militar obrigatório (SMO). A Constituição da República Portuguesa (CRP), na parte dedicada à organização do poder político, reserva um título, o décimo, à Defesa Nacional, que no ponto dois do artigo 276 - Defesa da Pátria, serviço militar e serviço cívico - consagra a obrigatoriedade do serviço militar ao afirmar que: "O serviço militar é obrigatório, nos termos e pelo período que a lei prescrever." É precisamente este ponto nuclear, que o PS se propõe alterar dando-lhe a redacção seguinte: "O serviço militar tem a natureza, a forma e a duração que a lei prescrever" A definição da prestação do serviço militar é remetida para a lei ordinária. Todas as alterações introduzidas pelo PS nos outros pontos deste artigo e no anterior, resultam da necessidade de harmonizar o texto da Constituição com esta alteração substancial. As alterações propostas pelo PSD e pelos três deputados do PS, do projecto acima referido, têm precisamente o mesmo alcance. Tal como o projecto do PS remetem para a lei ordinária a caracterização da forma de prestação do serviço militar. No projecto de revisão apresentado por cinco deputados do PSD, já referido, estes propõem para o ponto dois do artigo 276 da Constituição um texto com um alcance diferente e tem a redacção seguinte: " o serviço militar é voluntário, salvo na vigência de estado de guerra em que a lei pode determinar o princípio da mobilização geral."


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Nesta óptica a Constituição obrigaria ao princípio da voluntariedade da prestação do serviço militar e apenas para uma situação de guerra facultaria à lei ordinária a possibilidade de recorrer à conscrição. Este projecto de revisão em coerência com o seu objectivo propõe que o ponto dois do artigo 275 que estipula que "a organização das Forças Armadas se baseia no serviço militar obrigatório" passe a dizer que as Forças Armadas (FFAA) assentam numa "componente profissional e de voluntariado". Até este momento a comissão de revisão constitucional tratou apenas da parte relativa à regionalização e ao referendo, e só depois passará a examinar as restantes matérias. Os assuntos relacionados com o SM não foram ainda, por conseguinte, discutidos em sede de Comissão de Revisão. A revisão da Constituição exige o voto favorável de dois terços dos deputados em efectividade de serviço, como determina o seu artigo 286. Se levada a bom termo, como se espera, a Constituição passará a remeter para a lei ordinária, a natureza, a forma e a duração do SM. Os votos do PS e do PSD juntos poderão garantir a maioria qualificada exigida para a revisão da Constituição. Importa sublinhar que o facto do SMO deixar de ficar consagrado na Constituição (CRP) não implica que ele seja extinto ou suspenso. Sobre isso é a lei ordinária, que ditará a sentença. Será necessário alterar ou substituir a actual LSM e para isso é necessário encontrar uma maioria de votos favoráveis na AR. Tenha-se presente que sobre SM, por se tratar de matéria de reserva absoluta de competência da AR, só este órgão de soberania poderá legislar. Tenha-se em conta que retirar da CRP o carácter obrigatório do SM não questiona o dever e o direito que todo o cidadão português tem de defender a Pátria. O projecto do PS de alteração da CRP, mantém o pórtico do artigo 276º : Defesa da Pátria, serviço militar e serviço cívico e reafirma o ponto um deste artigo onde está consagrado que:


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"A defesa da Pátria é direito e dever fundamental de todos os portugueses." Para avaliarmos a posição do PS e do Governo da Nova Maioria na questão do SM não basta analisar o seu projecto de revisão constitucional. O programa do Governo e o discurso do ministro da Defesa Nacional no Instituto de Altos Estudos Militares, ao encerrar um seminário sobre o serviço militar, no dia 3 de Maio passado, esclarecem que o Governo encara a perspectiva da substituição do SMO pelo regime do serviço militar voluntário e o regime de contrato. Este importante seminário sobre o serviço militar promovido pelo IDN inscreve-se na concretização do programa do Governo que diz expressamente que "serão elaborados estudos e promovido um amplo debate quanto às condições organizativo-militares para a transição do actual sistema de recrutamento misto (voluntariado e conscrição) para um sistema de recrutamento voluntário a vigorar em tempo de paz." (Programa do Governo, ponto 3.4 do título Defesa Nacional) O ministro da Defesa Nacional no referido discurso referindo-se ao programa do Governo confirma que "...o modelo para que aponta é o de fazer assentar a estrutura das forças Armadas num sistema de recrutamento voluntário a vigorar em tempo de paz". O governo cumpre, assim, a promessa de promover um amplo debate na sociedade civil e na Instituição Militar sobre o SM e a reestruturação das FFAA, que está no seu propósito continuar, de modo a não serem tomadas decisões de importância estratégica como esta sem um amplo consenso nacional. A actualidade deste debate decorre não só das perspectivas de alteração da Constituição relativas ao SM mas também da necessidade urgente em rever a situação em que ele é actualmente prestado, mesmo no actual quadro constitucional. A lei 22/91 do SM ao acolher o conceito de serviço voluntário e por contrato e ao encurtar simultâneamente o serviço militar obrigatório para quatro meses criou um modelo de serviço militar misto que não se revelou adequado.


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Ficou-se a meio caminho de uma solução. Agora é necessário recuar ou avançar. É necessário passar o SMO de 4 para 9, 12 ou mais meses de duração ou suspendê-lo e passar para o sistema de voluntariado se entretanto houver um novo enquadramento constitucional que o permita. Qual é hoje a situação nas FFAA? 40% dos efectivos pertencem ao Quadro Permanente e são profissionais, 35% são militares do RV/RC e apenas 25% são do serviço efectivo normal (SEN) ou seja, do SMO. O número de militares conscritos tem vindo a ter um peso decrescente nas fileiras desde a implementação da Lei do Serviço Militar (LSM) de 1991 e hoje já são menos do que os militares voluntários. A situação do Exército é diferente da dos outros ramos. No Exército os militares do SEN representam ainda cerca de 36% mas na Marinha e na Força Aérea (FA) são apenas uma remniscência de 4 e 10% respectivamente. (1) Aliás a Marinha e a Força Aérea confrontadas com a austeridade orçamental provavelmente até agradecem que os dispensem de perder dinheiro com militares que não têm nem tempo nem preparação para prestar um serviço capaz. Como os quatro meses são manifestamente insuficientes todos os anos é necessário proceder à extensão do SEN para uma parte menor dos incorporados para mais alguns meses de permanência nas fileiras, de acordo com portaria do Governo, criando-se assim uma situação de desigualdade e injustiça. Por exemplo, de um contingente disponível de cerca de 12 mil jovens com aptidão para oficial e sargento, as FFAA apenas tem necessidade e incorporam 2700 ou seja 22%. Ao fazermos em 1996 a discussão que o governo do PSD não promoveu em 1991, antes de publicar a LSM, partimos duma situação de facto consumado caracterizada por um número maior de militares voluntários do que militares do SEN e por uma presença marginal dos militares do SMO no sistema de forças, em unidades combatentes. A situação destes não é aliás mais secundária porque devido a um sistema de incentivos pouco atraente, o Exército não tem conseguido atrair, na classe dos praças, o número suficiente de voluntários. Uma discussão sobre a passagem das actuais FFAA para umas assentes no SV/SC deve ter presente que isso já praticamente aconteceu na Marinha e na Força Aérea e que o próprio Exército já fez um largo caminho no


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mesmo sentido. Duvido que, tendo isto em conta, possamos considerar que, de facto, as FFAA se possam considerar assentes na conscrição como obriga o ponto 2 do artigo 275 da Constituição. Parece-me que a passagem para o sistema assente no voluntariado já quase se consumou, subrepticiamente, em situação de duvidosa constitucionalidade. É talvez por isso que o CDS/PP apesar de não se propôr retirar a obrigatoriedade do SM do artigo 276 da Constituição considera, no entanto, conveniente limpar o número dois do artigo 275 da norma que determina que a organização das FFAA se baseia no SMO. O actual modelo de serviço militar misto com SEN reduzido corresponde a um modelo em que os voluntários e contratados são a base operacional permanente das FA com eles se constituindo o sistema de forças. O SMO em tempo de paz teria apenas o objectivo de instruir e treinar o contingente para constituir reservas e permitir eventual mobilização, se necessária. Num estudo de 1990 o general Loureiro dos Santos esclarecia este assunto e alertava para o equívoco que seria contar, neste modelo, com os conscritos para os encargos operacionais. É, no entanto, o que o Exército se vê obrigado a fazer nos últimos anos, não por equívoco mas por constrangimento, resultante da falta de praças no SV/SC em consequência das restrições financeiras que não permitem incentivos suficientemente atractivos. Exmº senhor Presidente do IDN Exmºs Senhores Mais do que exorcisar o passado ou culpar o governo do PSD pela decisão pouco reflectida de reduzir o SM a quatro meses, que não deixou de criar surpresa nos aliados da OTAN e conduziu a uma situação de duvidosa conformidade com a Constituição, importa reflectir sobre o futuro e determinar com fundamento qual o tipo de serviço militar que melhor serve o país. Como se sabe este problema da crescente substituição da conscrição por um recrutamento baseado no voluntariado não caiu do céu e não é só nosso. Ele é consequência das grandes alterações políticas e geoestratégicas decorrentes da implosão da União Soviética e dos regimes socialistas da


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Europa e consequentemente do fim da divisão do mundo em dois blocos inimigos. Com o fim da guerra fria as opiniões públicas dos países da OTAN e não só, exigiram menos despesas com armamentos e a defesa em geral. Entre 1985 e 1994 os Estados Unidos da América diminuiram os gastos com a defesa em 18% e reduziram os efectivos militares em 23%, a Alemanha (excluindo a ex-RDA) fez reduções de 25 e 23%, a Espanha diminui o orçamento com a defesa em 25% e o número de militares em 36%, Portugal fez também grandes reduções orçamentais e diminuiu neste período as suas tropas em 32%. Estas reduções verificaram-se em praticamente todos os países da OTAN. Por outro lado o tipo de ameaças mudou. O perigo de confrontação global das duas superpotências e seus aliados desapareceu. Havia o perigo de um conflito de alta intensidade. Perigo bem definido mas pouco provável. Agora há o perigo de conflitos de baixa e média intensidade, menos identificáveis mas com maior probabilidade de surgirem. Ameaças resultantes do terrorismo organizado, de nacionalismos exacerbados e de fundamentalismos étnicos ou religiosos, uns e outros estimulados, desencadeados e potenciados pela pobreza, pela ruína económica, pela grande desigualdade social dentro de cada país e entre países ricos e países pobres. A necessidade de grandes massas de exércitos foi substituida pela necessidade de forças menores, mais concentradas, com grande mobilidade e domínio das novas tecnologias e mais preparadas para o combate. Esta situação nova conduziu a grandes reestruturações das FFAA nomeadamente nos países ocidentais e teve reflexos no serviço militar. É devido à nova situação internacional que a Bélgica com oitenta mil militares em 1993 decidiu reduzi-los a metade até 1998 e substituiu a conscrição pelo sistema de voluntariado. A Holanda procedeu de forma idêntica. Abandonou a conscrição no contexto de um plano de redução de efectivos militares da ordem dos 40% até ao ano 2000 (2). Agora, para surpresa de muitos, a própria França, a pátria do SMO, decide abandoná-lo. A Espanha com uma percentagem elevada de conscritos programou elevar a taxa de profissionais dos actuais 37% para cerca de


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57% até ao ano 2000 e prosseguir a redução dos seus efectivos globais em mais 20% até àquela data.(3) É óbvio que as decisões que devemos adoptar devem decorrer da análise da situação específica do nosso país, da sua geografia, com uma parte continental e dois arquipélagos, do espaço marítimo que temos de controlar, dos vizinhos e da história recente das FFAA. É necessário ter em conta a situação precária das FFAA no que diz respeito ao equipamento, ter em conta o desinvestimento dos últimos anos, o atraso tecnológico em muitas áreas e a pouca margem de manobra para rentabilizar os reduzidos meios financeiros de que dispõem. Na questão do SM não nos podemos guiar por modas mas também não devemos fechar os olhos às razões que levam outros países a optar pelo voluntariado ou pela profissionalização das suas FFAA. Não gostaria nesta minha intervenção de me limitar a análises mais ou menos descomprometidas com as decisões que provavelmente em breve será necessário tomar. Pretendo afirmar uma opção e, nos limites de tempo que me é concedido, fundamentá-la. Sou favorável à substituição do SMO pelo serviço militar voluntário em tempo de paz. Sou favorável à exploração do modelo SV/SC que tem estado a ser levantado que não é, em todo o caso, o modelo que corresponde a umas forças armadas profissionais, como no Reino Unido, por exemplo. Numas FFAA profissionais os praças podem permanecer até 20 ou mesmo 22 anos nas fileiras e têm os problemas familiares e outros comuns ao QP, enquanto no sistema SV/SC que se experimenta em Portugal, os praças tem um tecto de permanência nas fileiras de três e cinco anos no voluntariado e no sistema de contrato, respectivamente. Concordo que este modelo de serviço militar enferma de algumas fragilidades. Mas todos os modelos enfermam de alguma desvantagem. Parece-me ser apesar disso o que se apresenta mais adequado às missões que legalmente estão atribuidas às nossas FFAA. Não o considero melhor por uma questão filosófica, na esteira liberal anglo-saxónica, ou por "laxismo", face a uma imaginária intrínseca


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obrigação que todo o cidadão teria, em qualquer circunstância, mesmo na ausência de ameaças credíveis, de prestar um serviço militar. Defendo que todo o cidadão tem o dever e o direito de defender a Pátria, nomeadamente com armas na mão, nas FFAA, numa situação de perigo para o país. Defendo o recurso ao SMO sempre e quando uma ameaça razoável o torne indispensável. E defenderei o regresso a ele se uma alternativa assente no voluntariado for tentada e não se vier a revelar consistente. Tenho também consciência que não é fácil levar a bom termo a grande transformação que tal decisão implica, para o Exército. Muitos problemas surgirão mas, estou certo, ao alcance das capacidades dos quadros das FFAA e dos órgãos de soberania. A minha defesa de um modelo de FFAA, assente em militares voluntários e num corpo profissional, o Quadro Permanente (QP), não reside apenas na sua melhor adequação às missões externas, de defesa colectiva no âmbito da OTAN ou da UEO, em acções humanitárias ou de paz como hoje sucede com a UNAVEM III em Angola, com a IFOR na Bósnia-Herzegovina, ou na cooperação técnico-militar que desenvolvemos com assinalável êxito nos PALOP. Reside também na convicção que este modelo de SM permie ter umas FFAA mais eficazes na defesa do território na actual situação internacional. Gostaria de analisar algumas objecções que habitualmente se levantam ao fim da conscrição. Uma destas objecções afirma que FFAA assentes no SV/SC são mais adequadas às chamadas novas missões, cumprem melhor as missões externas de projecção de poder, missões secundárias mas não servem para a sua missão principal e prioritária a defesa do território contra uma agressão ou ameaça externa nomeadamente por não permitirem o crescimento de forças por mobilização que a conscrição faculta. Reconheço que este argumento tem aparentemente consistência. No entanto, esta crítica, feito um melhor exame, não me parece suficientemente pertinente. A realidade mostra que, no actual quadro internacional, a participação das nossas FFAA nestas designadas novas missões, consideradas do interesse


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nacional, são prováveis. Já a defesa do terriório contra uma invasão estrangeira que exige um grande crescimento de forças é muito menos provável. A última vez que fomos invadidos foi acerca de dois séculos pelas forças napoleónicas e a situação mudou muito daí para cá. Os países, para dominarem outros, recorrem pouco à conquista territorial. Entretanto as missões externas não só são prováveis como são hoje uma realidade concreta, bem nossa conhecida. Há que ter em conta esta dualidade: missão principal improvável missões secundárias prováveis ou certas. Mas o problema não se queda por aqui. E reside em saber se um SMO de quatro meses ou pouco mais, dá preparação militar que sirva para o crescimento de verdadeiras forças combatentes ou se for necessário mobilizar esses contingentes não se tem que prepará-los praticamente do zero. Um Exército baseado no SV/SC melhor preparado pode, também e talvez melhor, preparar crescimento de forças e preparar a população para a resistência a um invasor admitindo-se que uma eventual ameaça não surge e se concretiza dum momento para o outro. Um interessante estudo elaborado pelo Instituto de Altos Estudos Militares sobre O NOVO CONCEITO DE SERVIÇO MILITAR no fim do ano passado parece chegar precisamente a esta conclusão. Outro argumento contra o sistema de voluntariado é a questão de princípio ou de filosofia política dos que consideram que o serviço militar deve ser um dever institucionalizado. Em contraposição à institucionalização do dever de prestação de serviço militar está no Reino Unido arreigada a prevalência da liberdade individual. Gerard Bonnardot, num estudo sobre a conscrição e o exército profissional, no Reino Unido,(4) considera que desde 1679, com o acto institucional do habeas corpus, ao garantir o primado da liberdade individual em matéria de justiça, se tornou juridicamente inaceitável o constrangimento físico para assegurar a defesa do país, fora de circunstâncias excepcionais, como a de perigo de guerra. Para realizar esta missão essencial à sobrevivência da colectividade, deve ser suficientemente desenvolvida na sociedade a vontade de defesa para suscitar um número suficiente de voluntários. Isto é, o Estado tem de


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oferecer boas condições materiais e assegurar que a profissão de militar é, não apenas uma função razoavelmente bem remunerada, mas uma função de elevado prestígio. Assim os cidadãos do RU e também os dos EUA não consideram ser um dever seu prepararem-se militarmente para a guerra em tempo de paz e o mesmo consideram os respectivos órgãos de soberania. Não teço estas considerações para que passemos artificialmente a imitar os ingleses mas para sublinhar a coêxistência de formas diferentes de entender uma mesma situação o que sucede igualmente na nossa sociedade. O SM voluntario inspira vários receios aos que defendem a concepção do dever institucional do SMO. Um desses receios é o de que a juventude e, ao longo do tempo a população, percam não apenas o sentido da necessidade de defesa como também fique truncada na sua formação cívica. É a ideia de que só se é verdadeiramente homem, no sentido de cidadão, depois de se ir à tropa. Sem dúvida que a passagem pelas fileiras fortalece o espírito de defesa e fornece formação cívica e disciplina. E isso é bom. Mas são funções que podem ou devem ser desempenhadas pela escola. Sem prejuizo do alcance institucional da conscrição parece-me conveniente ter presente que o SMO tem ao longo deste século abrangido apenas uma restrita minoria da população Ele deixa de fora dessa aprendizagem cívica metade dos jovens, as raparigas. Mas nunca, fora dos períodos de guerra ou de ameaça séria dela, durante a 1ª e a 2ª Guerra mundial e durante as guerras coloniais, o SMO foi universal para os jovens do sexo masculino. Os contingentes anuais têm andado em média à volta de cem mil jovens, destes são apurados pouco mais de metade e por fim são incorporados aqueles de que as Forças Armadas necessitam. Nunca houve a preocupação de incorporar todo o contingente apurado para dar formação cívica à população. Nem os orçamentos davam para tais veleidades. Outra preocupação decorrente do fim do SMO é a de que as FFAA nacionais, agora com base em voluntários se vão transformando numa Força Armada mercenária.


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As FFAA passariam a ser alimentadas não por cidadãos que se sentem a cumprir um dever patriótico de defesa mas por pessoas que se dispõem a participar na defesa militar a troco de dinheiro. Tudo isto, nalguma medida, pode suceder. Não o nego. Depende da educação nas FFAA, depende do enquadramento que a nação, a sociedade civil, os poderes instituidos reservarem às suas FFAA. Prestígio ou desconsideração? Justa remuneração ou salários em atraso? Formação cívica e dignificação ou maus tratos e desprezo? É por aí que o carácter e a qualidade da Instituição Militar passará. Não é crível que seja melhor para a qualidade das FFAA que o SM seja prestado por quem é coagido, levado para o quartel à força ou por quem vai por sua livre vontade ainda que atraído por uma remuneração condigna e outras eventuais regalias ou prestígio social. Se o critério de qualidade fosse o da coacção que seríamos levados a pensar dos militares do QP, que estão na Instituição Militar por sua livre vontade? Coloca-se ainda a questão do isolamento das FFAA que resultaria da falta anual dos seus conscritos, o povo que todos os anos entrega os seus filhos à Instituição Militar e transforma esta numa emanação da nação. Consumar-se-ia o isolamento da Instituição Militar relativamente à sociedade civil e fragilizar-se-ia ao ponto de poder ser instrumentalizada políticamente e virada contra os poderes democráticos numa situação de crise política grave. Perigos destes não radicam no voluntariado mas em muitos outros factores que têm a ver com a democraticidade da sociedade civil e com a vida interna nas FFAA, com a formação dos seus quadros, com os critérios de avaliação do mérito e consequentemente de promoção, com a existência ou não de missões que relacionem as unidades e os militares com a sociedade civil. No mundo da comunicação dos nossos dias não é crível o isolamento das FFAA pela cessação do SMO. Contra a suspensão do SMO tem-se esgrimido também o argumento da tradição e da História. O serviço militar obrigatório, igual e universal tem uma origem recente. Em Portugal a sua constitucionalização ocorre em 1911 mas, como já foi dito, o carácter geral só em tempo de guerra ou de perigo de guerra teve lugar.


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O SM obrigatório e universal, entendido como a nação em armas, tem sido atribuido à revolução francesa e mais concretamente à necessidade que Napoleão teve de levantar exércitos suficientemente numerosos para enfrentar a Europa monárquica coligada contra a França republicana e burguesa. O exército napoleónico revelou a sua superioridade não apenas pela excelência do seu condutor, um dos maiores cabos de guerra da História, mas também porque o exército, constituido pelos camponeses em armas, defendia os seus interesses, a terra da nobreza e do clero que lhes tinha sido entregue pela revolução. Daqui surge o carácter popular, nacional e de esquerda atribuido ao SMO. Mas mesmo estas referências não são universalmente aceites. Patrick Balkany relator especial da Comissão de Finanças, da Economia e do Plano encarregado pela Assembleia Nacional francesa de elaborar um estudo sobre o custo da substituição da conscrição pelo recrutamento de profissionais nas Forças Armadas francesas afirma nas conclusões do seu relatório, apresentado em Fevereiro de 1996, que o SMO tem em França apenas um século de existência e que o general De Gaulle sublinhava que a França dispunha de umas Forças Armadas profissionais de cerca de cem mil homens desde Henrique IV, no fim do século XVII. E considera que a conscrição enfrentou muitas vezes a hostilidade do povo francês, nomeadamente sob a Revolução e que o SMO é mais uma tradição germânica que a França se viu constrangida a imitar. Isto mostra-nos a precaridade de certos fundamentos a favor ou contra a conscrição e aconselha-nos a relativizá-los face à análise mais aprofundada dos condicionalismos nacionais e dos desafios da realidade em permanente mutação. Em contraponto com a França temos a tradição anglo-saxónica. A Inglaterra desde a revolução burguesa de 1663, em três séculos de história, adoptou o recurso da conscrição apenas durante trinta anos. Durante a 1ª e 2ª Guerra Mundial e na sequência desta até 1963. Os EUA da América, adoptaram FA profissionais desde a independêndia, excepto em curtos períodos, Guerra da Secessão, 1ª e 2ª Guerra Mundial e depois, durante a guerra fria até ao fim da guerra do Vietnam.


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Isto é, a Grã Bretanha e os EUA viram-se obrigadas a impôr, com maior ou menor aceitação por parte da população, a obrigatoriedade (e universalidade) do SM, nos períodos de guerra ou de perigo de guerra. Por último analisarei brevemente a objecção de que o SV/SC é muito mais caro e incomportável para um país de poucos recursos como é o nosso caso. A questão dos custos é uma questão séria e não está, tanto quanto é do meu conhecimento, suficientemente estudada entre nós. Diga-se de passagem que é um estudo muito difícil de se fazer e de resultados inseguros. Porque é necessário analisar custos directos e custos indirectos. Custos contabilizados no Ministério da Defesa e fora dele. Postos de trabalho que se perdem e postos de trabalho que se criam. Por outro lado é necessário avaliar o impacte da extinção da conscrição no contexto da reestruturação das FFAA a que inevitavelmente está ligada. Tenho ouvido dizer com alguma frequência que um militar do SV/SC custa cinco vezes mais do que um praça do SEN. É uma afirmação sem fundamento. O estudo do IAEM já referido compara os custos da situação actual com uma situação de extinção do SEN e conclui que a substituição do modelo actual por um assente no SV/SC custaria apenas mais 20%. Mas os autores manifestam a "sensibilidade" de que um estudo mais aprofundado revelaria que os custos do SV/SC não seriam superiores ao do actual sistema. Os cálculos feitos abrangem os custos de recenceamento, selecção, saúde, remunerações, alimentação, fardamento, funcionamento, munições e transportes. Um estudo da Comissão de Finanças da Assembleia Nacional francesa de que foi relator o já referido deputado Patrick Balkany, sobre os custos da passagem das FFAA francesas que se baseiam no sistema misto de recrutamento para a situação de FFAA profissionais, um estudo muito interessante, conclui que se conseguirá, numa situação estabilizada uma diminuição de custos da ordem de 15% do orçamento da Defesa. No entanto é necessário ter em conta que a reestruturação das FFAA francesas prevê com o fim da conscrição uma redução de efectivos do Exército da ordem dos 45%, de 236 mil homens para 130 ou 135 mil.(5) Em definitivo há que ter em conta a relação custos/eficácia e não é segura a conclusão apriorística de que para um mesmo produto final umas Forças


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Armadas baseadas no SV/SC sejam mais caras do que umas FFAA assentes na conscrição. Serão talvez mais baratas. Termino reafirmando a minha convicção na superioridade da solução baseada no voluntariado, no actual contexto nacional e internacional. Uma convicção em todo o caso provisória pois é evidente que faltam alguns estudos mais aprofundados sobre as consequências de uma mudança que é afinal estruturante das FFAA. Parece-me que é necessário conduzir e participar neste debate nacional sem preconceitos nem radicalismos que nada justifica. Parece-me necessária uma atitude que não desaproveite a tradição e preserve a identidade mas que se abra à mudança. O mundo não pára e lembrando a afirmação do senhor coronel Mira Vaz, cuja intervenção, hoje de manhã muito apreciei, gostaria de dizer que talvez "estas FFAA já tenham morrido" mas eu daria a esta afirmação o entendimento de que desde a sua origem, as nossas FFAA terão morrido várias vezes, ao longo da História, mas para se transformarem noutras mais adequadas aos tempos e afinal sempre as mesmas. Trabalhemos pois, com pontos de vista eventualmernte diferentes, para uma melhor Defesa Nacional e para umas FFAA mais modernas e prestigiadas . Notas: (1) dados fornecidos pelos Estados Maiores dos ramos, este ano, à Comissão de Defesa e referentes a 1 de Janeiro de 1996, excepto os da Força Aérea que são de 1995. (2) Revista Española de Defensa nº 95, Janeiro de 1996 "Un modelo mixto de Ejércitos" pag 25 e 26. (3) Idem "La reforma belga y holandesa" RD p. 27. (4) "De la conscription à l'armée de métier: le cas britannique" Défense Nationale, Maio de 1992. (5) "Rapport D'Information" pág. 59, Edição da "Assemblée Nationale" de 22Fev96.


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Outras fontes consultadas. The Military Balance 1995/96 - IISS. Memento DĂŠfense-dĂŠsarmement 1994/95 - GRIP. Lisboa, 25 de Junho de 1996.


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