Simpósio Tarrafal

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SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE O TARRAFAL LOCAL: ANTIGO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DO TARRAFAL CABO VERDE (28/04/ a 01/05/2009)

Presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires, encerra o Simpósio Com o alto patrocínio do Presidente da República de Cabo Verde e do Ministério da Cultura de Cabo Verde, de Angola e Governo de Timor Leste, organizado pelo Fundação Amílcar Cabral e Fundação Mário Soares, contando com o apoio da Fundação Agostinho Neto, Fundação Eduardo dos Santos, Fundação Sagrada Esperança, Liga dos Antigos Combatentes de Angola e CODESRIA, realizou-se entre 28 de Abril e 01 de Maio de 2009, nas antigas instalações do Campo de Concentração do Tarrafal, um Simpósio Internacional sobre o Tarrafal com o objectivo de homenagear todos quantos sofreram neste local as agruras do fascismo e do colonialismo, quando se passam 35 anos do seu encerramento. Para tal, foram convidados os ex-presos sobreviventes e outras personalidades, tendo comparecido em grande número. As Palavras de Boas-Vindas foram proferidas pelo Coordenador da Comissão Organizadora do Simpósio, Dr. Álvaro Tavares.

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Na sessão de abertura, ouviram-se intervenções dos Ministros da Cultura de Cabo Verde, Dr. Manuel Veiga, de Angola, Dra. Rosa Cruz e Silva, da Guiné-Bissau, Dr. Aristides Ocante da Silva. De seguida, tomou a palavra o Primeiro-Ministro de Cabo Verde, Dr. José Maria Neves, que também homenageou algumas figuras da Vila do Tarrafal, pelo conforto moral e solidariedade prestados aos presos do Campo de Concentração durante os longos anos de reclusão. O Simpósio constou de 4 Painéis Temáticos. O Primeiro Painel, intitulado “A GERAÇÃO DA UTOPIA E O DEVER DE MEMÓRIA” foi iniciado com a intervenção do poeta Mário Fonseca que procedeu ao enquadramento político e ideológico do Movimento de Libertação Nacional nas Colónias Africanas de Portugal, destacando o papel dos seus Pais-Fundadores e primeiros dirigentes. Aurélio Santos, lutador antifascista português, na altura dirigente da Rádio Portugal Livre, hoje dirigente da URAP (União de Antifascistas Portugueses), foi o orador que se seguiu. O drama dos primeiros presos políticos portugueses enviados para este Campo da Morte Lenta, assim como a adesão do regime de Salazar aos princípios e práticas do Nazismo e do Fascismo foi a substância da sua intervenção. Recordou, porém, também, o modo como os restos mortais daqueles que pereceram no Campo foram recebidos em Portugal, depois da Vitória da Liberdade, com a eclosão do 25 de Abril de 1974. Outro lutador antifascista português, Raimundo Narciso, da Acção Revolucionária Armada (ARA), hoje presidente da Associação-Movimento Cívico “Não Apaguem a Memória”, concentrou-se sobre questões como o heroísmo dos resistentes portugueses e o modo abnegado como enfrentaram o horror do fascismo. Particularizou, porém, as figuras de Edmundo Pedro (hoje com 90 anos de idade) e seu pai, Gabriel Pedro, ambos deportados para o Tarrafal. Fez ainda referência à transformação do antigo Campo de Concentração do Tarrafal em Campo de Trabalho de Chão Bom, por determinação do então Ministro do Ultramar, Adriano Moreira. Lembrou os laços de solidariedade entre os combatentes antifascistas e os lutadores pelas independências das antigas colónias portuguesas. João Pedro Lourenço, Director do Museu da Escravatura de Angola, traçou um roteiro do Movimento de Libertação angolano, referindo, em especial, o papel daqueles que definiram o seu perfil e traçaram os seus caminhos. Aludiu a um certo “discurso revisionista” sobre o significado do Tarrafal daqueles que hoje procuram apresentar uma imagem “adocicada” do Campo de Concentração, adulterando cinicamente o seu significado. Seguiu-se a intervenção do historiador Julião de Sousa, da Guiné-Bissau, com uma retrospectiva do processo de criação do PAIGC, a partir de núcleos clandestinos em Bissau. Recordou o período e a forma de encaminhamento dos presos guineenses para o Campo de Concentração do Tarrafal. Fez uma pequena resenha da vida dos presos da Guiné-Bissau, mostrando a contradição entre a imagem que o regime procurava apresentar ao mundo e o que realmente se passava. Terminou recordando a decisão do

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Assistência na sala de conferências que foi uma das alas da prisão então Governador da Guiné de retirar do Campo os prisioneiros da Guiné-Bissau, voltando alguns a ser encarcerados. Teve também lugar a intervenção da historiadora Nélida Brito, concentrando-se no período do Campo de Concentração desde a sua fundação, em 1936, até ao seu primeiro encerramento, em 1954. Deu muito realce às cerimónias fúnebres dos prisioneiros mortos. O historiador português Fernando Rosas fez uma profunda reflexão sobre alguns conceitos e ideias que estruturam os factos históricos da libertação nacional e social, dando-lhe sentido e vida. Não deixou, porém, de recusar pretensões revisionistas que se tentam fazer da história, banalizando e até mesmo desresponsabilizando a ditadura fascista, ao ponto de, inclusive, se consagrar o nome de Salazar numa praça da terra onde nasceu, precisamente na data da comemoração do 25 de Abril deste ano. A resistência esteve sempre presente e activa até 1974. Abordando o tema da hegemonia da memória, em jeito de remate, concluiu: “Ninguém é dono da memória. Ninguém tem o direito de se colocar como o seu intérprete exclusivo”. Ouviu-se seguidamente o testemunho de um antigo preso do Campo de Concentração do Tarrafal, Carlos Tavares, cabo-verdiano. No período da Tarde, decorreu o Segundo Painel, intitulado “OS IDEIAIS E PRINCÍPIOS”, moderado pelo Presidente da Fundação Amílcar Cabral, Dr. Corsino Fortes.

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Intervenção do Dr. Mário Soares cuja Fundação organizou a exposição exposta numa das antigas celas

O primeiro orador foi Luzolo Kiala, de Angola, que explanou sobre o tema “Da clandestinidade ao Tarrafal”, traçando o percurso do chamado “Processo dos 50”. Ouviu-se também a comunicação da Professora Aurora Ferreira, numa análise daquilo que denominou “A Recolha de Testemunhos e de Histórias de Vida”. O último orador deste Painel foi o ex-tarrafalista Justino Pinto de Andrade, com uma exposição e análise ao percurso dos angolanos, destacando as diversas faixas etárias a que pertenciam, os sucessivos grupos de chegada, filiações político-partidárias no momento da entrada, libertações, geografia sócio-cultural das prisões, também uma análise por profissões. Terminou recordando o momento da libertação dos últimos presos angolanos, saídos simultaneamente com os últimos presos políticos caboverdianos. Neste Painel, ouviram-se os testemunhos dos ex-presos Luís Fonseca e Jaime Schofied, de Cabo Verde, Karamó Sanhá e Mário Soares, da Guiné-Bissau. O Terceiro Painel, no período da Manhã do dia 30 de Abril, denominado “CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS”, foi moderado pelo Ministro da Cultura da Guiné-Bissau. O Embaixador Onésimo Silveira começou por lembrar o seu relacionamento pessoal com alguns dos presos angolanos do Tarrafal e suas famílias. Falou, depois, da problemática dos direitos humanos, integrando-a na luta dos povos pela sua emancipação. Antes, porém, fez uma incursão teórica nos desenvolvimentos do Estado de Direito.

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Álvaro Tavares da PR de CV e organizador do Simpósio, ao centro. À esquerda Alfredo Caldeira da Fundação Mário Soares.

O jurista angolano João Pinto traçou a dimensão poética de Agostinho Neto e o seu impulso à Luta de Libertação Nacional. O sociólogo Carlos Cardoso trouxe ao Simpósio uma mensagem de solidariedade e apoio do CODESRIA, que representou. O sociólogo Victor Kajibanga analisou o facto de os Movimentos de Libertação terem descurado a questão da democracia e os direitos humanos. Esboçou um perfil dos Estados e das classes dirigentes africanas no período pós-independência. O também sociólogo Paulo de Carvalho interveio para falar sobre “Cidadania e Direitos Humanos na Angola Contemporânea”, descrevendo a evolução política desde a independência e o modo como se foram produzindo alterações no que respeita aos direitos humanos. Domingos Abrantes, resistente português, lançou um olhar sobre o passado e a luta dos resistentes comunistas portugueses, destacando o papel daqueles que foram deportados para o Tarrafal. Dany Landim, professora de história, cabo-verdiana, fez uma resenha histórica do Campo e insistiu na necessidade de serem reforçados os conteúdos históricos sobre a resistência e a luta de libertação. A historiadora portuguesa, Irene Pimentel, estabeleceu a relação entre a memória e a história. Recordou a necessidade de se distinguir um “Campo de Concentração” de um “Campo de Extermínio” e procedeu à caracterização do Campo de Concentração do Tarrafal. 5


Coffee breack numa das antigas celas comuns.

Ouviram-se testemunhos de Edmundo Pedro, de Portugal, Fernando Tavares, Eulália Freire (Nha Beba), e Pedro Martins, de Cabo Verde, bem como Manuel Pedro Pacavira, de Angola “QUE FUTURO PARA O CAMPO DO TARRAFAL?” foi o quadro em que se inseriu o Quarto Painel, no período da Tarde, com 4 intervenções: José Vicente Lopes, de Cabo Verde, apresentou a sua “Recolha de Testemunhos”; Antoninho Baptista, de Timor-Leste, falou sobre o “Arquivo & Museu da Resistência Timorense”; Alfredo Caldeira, de Portugal, desenvolveu a questão do “Dever de Memória” e do direito à memória, sublinhando que memória sem liberdade e democracia é tão só propaganda; Carlos Carvalho, Presidente do Instituto de Investigação e Património Cultural de Cabo Verde, apresentou o “Projecto do Ministério da Cultura de Cabo Verde sobre o Campo de Concentração do Tarrafal”. Este Painel foi moderado pelo Ministro da Cultura de Cabo Verde. O último dia do Simpósio constou da sessão de encerramento, que foi presidida por Sua Excelência o Presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires, e teve também a honrosa presença de Sua Excelência o Dr. Mário Soares, ex-Presidente da República de Portugal, que dedicaram aos presentes palavras de agradecimento e regozijo pela forma como decorreram os trabalhos, estimulando à consecução dos objectivos pretendidos.

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No cemitério dos presos políticos do Campo de Concentração (32 portugueses, 2 angolanos e 2 guineenses)

A Análise Geral do Simpósio permitiu extrair as seguintes Recomendações: •

Destapar e colocar em espaço de memória os outros “Tarrafais” espalhados pelo mundo, e em particular nos países integrantes da CPLP, tais como Ilha das Galinhas, na Guiné-Bissau, Campos de S. Nicolau, Missonbo e Colónia Penal do Bié, em Angola, Machava, em Moçambique, Vikeke e Ataúro, em Timor-Leste, e Tarrafal de S. Nicolau, em Cabo Verde;

Manifestar o seu repúdio pela crescente utilização de campos de concentração e de tortura em conflitos recentes;

Legislação apropriada e multinacional (Portugal, Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau) para garantir o carácter perene da importância do Campo de Concentração do Tarrafal, para que o seu destino não dependa das vicissitudes e vontades circunstanciais dos respectivos governos;

Assegurar a integridade das instalações de Campo, tal como se encontravam no momento da sua libertação;

Que o Campo se torne um espaço de memória de todos aqueles que aqui sofreram, fazendo dele um espaço memorial da conquista da Liberdade;

Que seja criado, dentro do Campo de Concentração do Tarrafal, um Museu da Resistência e da Liberdade;

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• •

Que se crie dentro do Campo um Centro Internacional de pesquisa da Luta pelas Independências; Criar no espaço envolvente do Campo, áreas dedicadas às Crianças e à Juventude para que elas possam apreender melhor a História;

Criar nos terrenos adjacentes ao Campo valências capazes de assegurar a sustentabilidade do Campo;

Inserir nos compêndios escolares mais matérias sobre a História e as Lutas de Libertação Nacional dos nossos países;

O Simpósio apela aos governos de Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau e Portugal para que assegurem os encargos de edificação e manutenção do Campo de Concentração do Tarrafal como Memorial da Luta comum dos nossos povos.

Tarrafal, a 01 de Maio de 2009

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Discurso do Primeiro Ministro da República de Cabo Verde Dr. JOSÉ MARIA NEVES na abertura do Simpósio Internacional sobre o Campo de Concentração do Tarrafal Tarrafal, aos 28 de Abril 2009 Em Agosto de 2006, sob meu impulso, o Conselho de Ministros aprovou a Resolução nº 32/2006, que reconhece o ex-Campo de Concentração do Tarrafal e suas respectivas dependências como Património Nacional da Republica de Cabo Verde. A mesma Resolução consagra o dia 29 de Outubro como o Dia da Resistência Antifascista em Cabo Verde. Foi, efectivamente, a 29 de Outubro de 1936, que chegaram ao então Campo de Concentração do Tarrafal, criado em Abril do mesmo ano, os primeiros prisioneiros políticos de Portugal: homens temperados na luta antifascista e imbuídos dos ideais mais nobres, quais sejam os da liberdade e da dignidade da pessoa humana. Naquela altura, também sugeri que se organizasse um simpósio internacional que testemunhasse a dimensão deste Campo de Concentração, a um tempo, cárcere e espaço de luta contra o fascismo e pela independência de povos colonizados de África, «aldeia da morte» e um mundo de determinação e de vontade de vencer e de esperança na liberdade. Benditos àqueles – Fundação Amílcar Cabral e Ministério da Cultura de Cabo Verde, com os apoios das Fundações Mário Soares, Sagrada Esperança e José Eduardo dos Santos – que, sob o Alto Patrocínio de Sua Excelência o Senhor Presidente da República, organizaram este importante encontro de reflexão sobre o “Longo Caminho para a Liberdade”, como escreveu Nelson Mandela, depois de 27 anos de prisão, a lutar contra o apartheid e pela dignidade do povo sul-africano. Temos de continuar a trabalhar para que este que foi um dos mais sinistros Campos de Concentração do Salazarismo e que, hoje, é património Nacional de Cabo Verde, seja também reconhecido como Património da Humanidade. É que nestas paredes estão guardadas histórias de pessoas e de povos de Angola, de Cabo Verde, da Guine Bissau, de Portugal, escritas com suor, sangue e lágrimas, que adubaram o chão da luta e fermentaram os ideais da independência nas ex – colónias portuguesas e da resistência antifascista em Portugal. Este Campo é Património de toda uma Humanidade em luta contra o fascismo e todas as formas de totalitarismo. É um dever de memória recordar e homenagear todos aqueles que foram encarcerados neste campo de morte lenta, aqueles que morreram e rasgaram a estrada de emancipação dos povos e da conquista da liberdade e da democracia. Recordar para lembrar a todos que houve momentos tenebrosos da história da humanidade, em que alguns tiranos despojaram milhões de pessoas da liberdade de viver, de amar e de construir.

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Recordar que houve homens tão infelizes que, com crueldade, mataram e destruíram a esperança de outros homens. Recordar para que nunca mais seja consentida tamanha barbárie. Este encontro é, pois, uma homenagem ao futuro. Um futuro que queremos que seja de liberdade e de felicidade para todos, onde os Campos de Concentração serão apenas museus para lembrar um passado longínquo, que não se repetirá jamais. Quero, também, lembrar aqui as pessoas que acabo de homenagear pelos relevantes serviços prestados à causa da liberdade. Estas mulheres e estes homens que, com profundo sentido de solidariedade, apoiaram os ex-presos do Campo de Concentração do Tarrafal, trazendo-lhes, muitas vezes, o carinho e a amizade tão importantes em momentos de angústia e de desespero. Quero aproveitar esta oportunidade para apelar a todos os Governos dos países da CPLP para transformarmos este ex – Campo de Concentração do Tarrafal num Museu de Resistência Antifascista e de luta Anti-colonial para, como já disse, lembrarmos a história de um passado que, de um lado, nos envergonha e não queremos que se repita jamais, mas, de outro, nos engrandece, porque houve homens e mulheres que não se calaram perante as injustiças e as arbitrariedades e legaram-nos a coragem de continuar a lutar e a vontade de vencer, sempre. É que uma visita a este Campo permite-nos, no silêncio das nossas reflexões, avaliar a crueldade do fascismo e do colonialismo português e os sacrifícios consentidos por homens e mulheres, compatriotas nossos, pela causa da liberdade e da independência. Precisamente 38 anos após a criação do Campo de Concentração do Tarrafal, a 25 de Abril de 1974, acontece a Revolução dos Cravos, em Portugal, que pôs fim ao regime colonial fascista e abriu caminho à independência das ex-colonias portuguesas e à instauração da democracia em Portugal. Tudo resultado das lutas clandestinas e armadas de libertação nacional em Angola, Cabo Vede, Guine Bissau, Moçambique e São Tome e Príncipe e a resistência antifascista em Portugal. Hoje, 35 anos depois do 25 de Abril e 34 anos após às independências, estamos aqui para fazer o balanço. Afinal, caros camaradas e amigos, valeu a pena. Edmundo Pedro, diga a todos os teus companheiros de combate e de cárcere, que valeu a pena! Luandino Vieira, escreva em todos os livros do mundo para que o mundo inteiro saiba que valeu a pena. Luís Fonseca, fale aos diplomatas, aqueles que decidem nos fora internacionais, que estamos aqui, firmes, para continuar a caminhada, para construirmos um futuro de paz, tolerância, liberdade, democracia e dignidade para todos.

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Quero que os nossos irmãos da Guiné-bissau anunciem em todas as tabancas, em todas as ilhas, para que todos oiçam que Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane e tantos outros que são nossos heróis, não morreram em vão. Estamos aqui, nós os herdeiros desta luta heróica, para continuá-la, hoje, num novo contexto, sempre pela dignidade dos nossos povos, pelo desenvolvimento dos nossos países, para manter inapagável o facho da liberdade que ajudaram a acender. Em África, cinco pátrias: Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tome e Príncipe são filhos desta luta. Temos ainda um longo caminho para cumprir o Testamento dos Combatentes da Liberdade. Temos de continuar a trabalhar para consolidar o Estado de Direito Democrático nos nossos países, para definir uma agenda de desenvolvimento que nos permite continuar a investir na educação, na saúde, na segurança social, no combate à pobreza, às desigualdades sociais e a todas as formas de descriminação e de exclusão social. A Guiné Bissau precisa, hoje, mais do que nunca, do nosso apoio e da nossa solidariedade. A paz, a estabilidade e a segurança são condições necessárias para a refundação do Estado e a reconstrução nacional. A definição das estratégias para a gestão desse processo caberá às lideranças guineenses. Mas nós podemos ser os credores da Guiné Bissau nesta que é uma nova fase de luta pela liberdade e dignidade na Pátria de Amílcar Cabral Se, ontem, em contextos muito mais difíceis, enfrentamos as balas e as prisões e as arbitrariedades dos inimigos da liberdade, hoje, libertos das amarras da ditadura, podemos ir mais longe e andar mais depressa. As fragilidades no processo de construção de estados fortes e capazes, os conflitos intestinos, as debilidades das políticas públicas, particularmente na área social, os problemas socio-económicos que ainda enfrentamos, são naturais em estados recém libertos de um longo período colonial que desestruturou o tecido económico e social e perturbou o normal desenvolvimento institucional nos nossos países. Assumindo plenamente as nossas responsabilidades políticas em tudo o que terá acontecido após a independência, teremos de continuar a luta para que os ideais mais nobres e o Testamento dos Combatentes da Liberdade sejam plenamente cumpridos. Vivemos momentos dolorosos de crise. Crise de valores, crise de paradigmas, crise económica e social. Novos valores, novos paradigmas estão em gestação. Mas os ideais por que lutaram os nossos camaradas que viveram os anos dolorosos de cárcere, esses continuam perenes: a liberdade, a democracia e a dignidade da pessoa humana estarão sempre no âmago de todas as nossas batalhas.

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Discurso da Ministra da Cultura de Angola

Participantes angolanos. Embaixador Manuel Pacavira e atrás, sua filha Celestina Pacavira.

É com grande honra e satisfação que me dirijo a este magno auditório do Simpósio Internacional Sobre o Campo de Concentração do Tarrafal na sua cerimónia de abertura. Em primeiro lugar quero manifestar o nosso regozijo por esta iniciativa da Fundação Amílcar Cabral e do Governo de Cabo-Verde, que nos congrega neste magno evento, que se destina a revisitar o tema da luta de libertação nacional dos países africanos de língua portuguesa. Aqui, destacamos os valorosos combatentes pelas independências das ex-colónias portuguesas que nele estiveram encarcerados. Ao convite formulado pela Fundação Amílcar Cabral e pelo Ministério da Cultura de Cabo-Verde para nos associarmos a esta iniciativa, o Governo de Angola correspondeu ao apelo, seguindo as orientações de Sua Excelência o Presidente da República, José Eduardo dos Santos, implicando-se nos esforços para a concretização do programa que nos propomos desenvolver no decorrer das várias sessões previstas. O presente Simpósio é uma excelente oportunidade de confraternização social entre os combatentes pelas liberdades dos povos, que poderão rever companheiros de causa e de sofrimento com a convicção firme de que valeu a pena, porque o sonho de construir sociedades justas e democráticas é cada vez mais evidente nos nossos países. É também um momento de passagem de testemunho e de transmissão de conhecimentos 12


entre as gerações envolvidas nas lutas de libertação nacional e aquelas que beneficiam dos resultados desse processo, estando presente a mensagem de que é preciso consolidar as conquistas e participar activamente no exercício da cidadania, visando uma sociedade cada vez mais virada para a valorização dos direitos humanos. Em Angola desde a segunda metade do Século XIX que as ideias nacionalistas tinham-se enraizado na comunidade africana da sociedade colonial, que através da imprensa e da literatura apelavam para construção de um “país novo”. Os nacionalistas da década de 1940-1960 respondem a esse apelo iniciando-se com as organizações e políticas e ao processo de luta directa contra o regime colonial. Nas Ex-colónias portuguesas, as suas elites estando submetidos a um mesmo regime colonial, souberam no contexto de cada um dos países encontrar uma resposta que mais se coadunasse com os interesses do seu povo. A divisa era a recuperação da dignidade, da liberdade que se violava em todos os actos administrativos, políticos e outros da potência colonial. Foi justamente este exercício de contrariar a política colonial de submissão e descaracterização dos valores culturais dos povos que levou Portugal a criar os mecanismos mais rudes e retrógrados de repressão contra os nossos povos. O Campo de Concentração do Tarrafal é um dos exemplos paradigmáticos. A ideia de enviar para o exílio forçado, os altos dignitários do poder e da aristocracia africana e dos seus pares é muito antiga nos espaços do dito Império Português. Razões de vária índole explicarão a razão porque Cabo-Verde foi a escolha do poder em Lisboa para enviar os elementos mais activos da oposição africana contra a edificação do Império. Estávamos em finais do Século XIX, mais precisamente no ano de 1892 quando chegou a Cabo-Verde um alto dignitário do Bié, pois este havia combatido com todas as suas forças as tentativas de ocupação do seu território. Ndunduma e várias famílias bienas foram deportadas para esta Ilha de Santiago e foram submetidos ao trabalho forçado designadamente na construção de estradas. Faleceu em 1898 e foi sepultado neste chão de Cabo-Verde. No século XX a prática é reiterada, porém são criadas estruturas penais, em que o Campo de Concentração do Tarrafal se revela eficaz nos desígnios do colonizador. Vimos nesta senda a prisão sucessiva dos nacionalistas de Angola, Cabo-Verde e Guiné Bissau, que em plena acção política, ainda que na clandestinidade, viram as suas redes sistematicamente desmanteladas.

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Mário Fonseca (Cabo Verde), Manuel Pedro Pacavira (Angola), Patrícia Tavares (Cabo Verde)

Bissau, que em plena acção política, ainda que na clandestinidade, viram as suas redes nacionalistas de Angola, Cabo-Verde e Guiné sistematicamente desmanteladas. As vicissitudes a que estiveram sujeitos os nacionalistas que neste evento vamos homenagear, pelo alto espírito de sacrifício manifestado, pelo nível do seu desempenho nesta luta de libertar o país, é matéria que os próprios darão o seu testemunho no decorrer das sessões programadas. Auguramos deste modo que as nossas expectativas se cumpram em razão do interesse que todos comungamos em tornar mais conhecida esta matéria, de modo a que o legado dos nossos mais velhos nos sirva de exemplo na conduta a seguir na nossa sociedade global e democrática.

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Intervenção do presidente da direcção

do Movimento Não Apaguem a Memória! Raimundo Narciso (Portugal) 29 de Abril de 2009

O Campo de Concentração do Tarrafal ganhou no imaginário dos que em Portugal lutavam contra o regime fascista um lugar à parte como símbolo da pior repressão da ditadura que dominou o nosso país durante meio século. Em Portugal tínhamos o forte de Peniche, o forte de Caxias, o Aljube, e sobretudo a sede da PIDE na Rua António Maria Cardoso em Lisboa como locais da repressão e da tortura a que dificilmente escapavam os que em Portugal mais se destacavam na luta por uma vida melhor, pela liberdade e pela democracia. Mas a todos esses locais se sobrepunha, na imaginação dos anti-fascistas, como centro do horror, o campo de concentração do Tarrafal. E esse lugar longínquo agigantava-se pela distância, que adensa o desconhecido, pelas notícias da exposição à insalubridade, à doença, à humilhação, ao sadismo de quem controlava a vida e a morte dos presos políticos. Hoje estou aqui, onde se situava essa prisão, num simpósio internacional com o alto patrocínio do Senhor Presidente da República da República de Cabo Verde, num território que conquistou a independência com a luta do seu povo apesar deste e de outros Tarrafais. Estou aqui pela primeira vez, a conhecer a bela ilha de Santiago, a observar a acolhedora vila do Tarrafal a refazer as ideias feitas sobre esta parte de África, terra no meio de tanto mar, a comprovar que todas as terras, são boas ou más conforme o uso que delas os homens fazem. Conheci o Tarrafal, pelas imagens que dele me deram, dois antigos prisioneiros para mim muito especiais. O primeiro testemunho foi-me dado por Francisco Miguel. Encontrava-me em 1968 a viver na clandestinidade, como quadro do PCP, escondido no anonimato da grande cidade de Lisboa, quando recebi na casa clandestina que alugara, Francisco Miguel membro do Comité Central do PCP, que aos 60 não se resignou a viver na emigração e insistiu em regressar clandestinamente a Portugal para lutar contra a ditadura fascista, e em lutar na organização que estávamos a criar para a realização de acções armadas e que veio a ser a Acção revolucionária Armada – ARA

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Francisco

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Miguel já tinha passado mais de 21 anos preso, nove dos quais no Tarrafal. De Junho de 1940 a Janeiro de 1946 e de Janeiro de 1951 a Janeiro de 1954. Enquanto não alugou uma casa apropriada para viver com identidade falsa viveu comigo e a minha mulher cerca de um mês, esta foi a oportunidade para me falar da sua vida de luta, das suas quatro fugas da prisão em Portugal a última das quais no célebre automóvel blindado de Salazar, oferecido pela Alemanha nazi, e que passara a fazer parte dos veículos da prisão do Forte de Caxias, para me falar dos seu martírio no campo de concentração do Tarrafal, da tortura que era a “frigideira” e de tudo o que hoje é bem conhecido e tornava a vida neste campo uma morte em vida. Era um homem de rara coragem e espartano na sua vida pessoal. Teve a singularidade de ser o último preso político português a deixar o Tarrafal. Por aqui viveu ainda seis meses sozinho no limitado território do campo até à sua partida para Lisboa. Foi a minha primeira informação dada por quem viveu o Tarrafal por dentro e que está ilustrada nos seus dois livros de memórias (2). Outra fonte indirecta do meu conhecimento da vida no campo do Tarrafal foi Edmundo Pedro aqui presente a participar neste simpósio já com a bonita idade de 90 anos e que foi um dos estreantes do Campo, em 29 de Setembro de 1936. De entre tantos jovens aqui sacrificados ele era o mais jovem deles, com 17 anos, e com a singularidade de aqui estar preso com o seu pai, Gabriel Pedro, também ele homem de indómita coragem. Dos seus relatos e da leitura empolgante do seu livro “Memórias. Um combate pela Liberdade”(3) fica-se com um retrato vivo do que foi a vida, o sofrimento, a coragem, a tenacidade na luta pelas grandes causas da esmagadora maioria dos presos que souberam resistir com dignidade exemplar às mais brutais tentativas morais e físicas para os vergarem aos ditames do fascismo. Ele falará aqui bem melhor que eu dessa experiência de luta e do heroísmo dos que aqui souberam resistir, por isso apenas evocarei a memória do seu pai Gabriel Pedro outro dos estreantes deste campo prisão. Gabriel Pedro é outro exemplo de inaudita coragem, e determinação na luta contra o regime do “Estado Novo”. Participou com o filho e outros prisioneiros numa tentativa de fuga do campo que, como as outras, não teve sucesso. Conheci-o em 1970 num encontro clandestino numa noite de Outubro de 1970 junto ao Porto de Lisboa para um reconhecimento que nos permitisse executar daí a dias com outros companheiros, a primeira acção armada da ARA, a sabotagem do navio Cunene o mais moderno da frota mercante portuguesa de então, dedicado à logística das guerras coloniais. Gabriel Pedro estava então a viver com a mulher e a filha em Paris, 16


depois de uma vida de luta e prisões, toda ela um calvário de sofrimentos. Mas a sua determinação em combater o inimigo de sempre levou-o a pedir para participar na primeira acção armada da ARA, em que teve, aliás, uma participação decisiva, tanto mais de admirar porquanto se tratava de um homem que já tinha 70 anos de idade.

A criação do campo de concentração do Tarrafal surge num contexto histórico de Portugal que remonta a 1926, ao golpe militar de 28 de Maio, que pôs fim à 1ª República portuguesa, iniciada em 1910 e que impôs uma ditadura que viria a dominar Portugal durante quase meio século. O ditador Salazar era um admirador do fascismo de Mussolini e apoiante de Hitler. Era no entanto um fascista sui-generis. Ex-seminarista muito ligado à Igreja era um académico rural, de mentalidade retrógrada, mais dado à violência mortificante sim mas dissimulada, até porque noutro contexto, do que aos brutais morticínios de Hitler ou às atléticas demonstrações de terror do Duce italiano. A onda fascista na Europa deu asas ao regime de Salazar e em 1936 o golpe militar de Franco que a breve trecho, com o apoio de Mussolini e Hitler venceu e pôs fim à República em Espanha, deu novo alento e arrogância ao fascismo de sacristia de Salazar que colaborou activamente nas chacinas dos franquistas espanhóis não apenas durante a guerra civil mas depois na perseguição e entrega a Franco de espanhóis que tinham procurado refugio em Portugal. O regime saído do golpe militar de 28 de Maio de 1926 não se consolidou pacificamente e sofreu sucessivos sobressaltos o maior dos quais terá sido o protagonizado pelo General Sousa Dias (4). Ele é o chefe da revolta de 3 de Fevereiro de 1927 no Porto e volta a ser o chefe da revolta da Ilha da Madeira em 1931, com os seus prolongamentos nos Açores e na Guiné. À fase das revoltas republicanas e militares – o reviralho - seguem-se ainda ameaças vindas dos sectores operários anarco-sindicalistas e comunistas como é o caso da tentativa de greve geral e levantamento armado de 18 de Janeiro de 1934 com particular incidência entre os operários vidreiros da Marinha Grande. Depois é a vez de grandes movimentações e greves operárias nos anos 40 dirigidas pelo PCP. Preocupado com a resistência interna ao auto denominado Estado Novo e sentindo as costas quentes com o fascismo em maré alta na Europa a ditadura portuguesa engrossa a repressão e decide-se pela criação do campo de concentração na Achada Grande do Tarrafal. Não foi único, outros campos prisionais foram criados em Angola e 17


Moçambique. Aliás a prática do desterro para as colónias não era nova. Aqui mesmo em Cabo Verde morrera desterrado o já referido General Sousa Dias, em 1932 em S. Vicente (4). O Campo do Tarrafal vinha na linha dos campos de concentração hitlerianos ainda que, é claro, não se possam estabelecer comparações do Tarrafal com os campos de extermínio nazis. O Presídio de Chão Bom do Tarrafal foi inaugurado em 29 de Outubro de 1936 com a chegada de 152 presos políticos. As suas profissões e origem social, dão uma importante indicação das camadas da população que mais enfrentam o regime e concitam a sua sanha persecutória. A maioria dos presos políticos que inauguram o presídio são muito jovens e entre eles estão 51 marinheiros da revolta de 8 de Setembro de 1936 dos navios Dão, Afonso de Albuquerque e Bartolomeu Dias, e 57 operários da tentativa de greve geral de 18 de Janeiro de 1934 contra a legislação de controlo dos sindicatos que o chamado “Estado Novo” então publicara (5). Predominam os operários, estão dirigentes políticos comunistas, anarquistas, quadros revolucionários do movimento sindical. Entre eles estão alguns dos principais ou futuros dirigentes políticos da esquerda revolucionária. Bento Gonçalves secretário-geral do PCP, Mário Castelhano dirigente anarcosindicalista, Júlio Fogaça, Pedro Soares quadros comunistas, Edmundo Pedro e Sérgio Vilarigues, quadros da juventude comunista. Um conjunto de documentos do dossiê da PIDE que consultei no arquivo nacional da Torre do Tombo (6) oferece-nos um retrato eloquente a vários títulos dos presos políticos existentes neste campo no ano de 1939 e que anexarei a esta intervenção. Faculta a identidade de todos os presos, profissões, idades, indicação dos que morreram nesse ano, situação jurídico/prisional, revela-nos o movimento impressionante dos presos doentes, dos dias de castigo infringidos a cada um na tristemente célebre “frigideira”. Num desses documentos de arquivo, um relatório da sub-delegação da PIDE de Cabo Verde para a delegação de Angola e a sede em Lisboa fica-se a saber que no início de 1939 existiam no Campo 187 presos, que a eles juntaram-se durante esse ano mais 27, um saiu e outro faleceu, Fernando Alcobia. No fim de 1939 existiam no campo 212 presos. Eu acrescentaria 212 vivos e 11 mortos, tantos eram os que aqui faleceram desde a abertura do campo 2 anos antes. De facto no campo do Tarrafal o 1º ano de vida foi o maior ano de morte. Em 1937 morreram, melhor seria dizer, foram

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mortos, com violência física e psicológica e falta de assistência médica sete presos do total de 32 que viriam a morrer neste campo, os dois últimos dos quais em 1948. Da totalidade dos presos existentes em 1939, 53% são proletários, 23 % são trabalhadores dos serviços, 20% são marinheiros, 3% são estudantes 1 é oficial das forças armadas e 1 é advogado. Não podemos extrapolar estas percentagens para a totalidade dos presos políticos nas prisões portuguesas no fim dos anos 30 nem esta amostragem pode retratar com fidelidade o envolvimento de outras camadas da população na resistência ao regime, mas em todo o caso estes números são eloquentes sobre quem se abatia a pior repressão e sobre quem naturalmente mais lutava contra o poder em Portugal. Se 212 eram os presos em 1939 a totalidade dos portugueses que passaram pelo campo do Tarrafal chegou aos 340. Para o fim do regime a composição social das camadas em luta contra ele altera-se bastante. Nos anos 60 e até 1974 apesar de a participação peso e determinação de luta do proletariado industrial e agrícola ser incontornável aumenta muito o peso dos estudantes, de intelectuais, de camadas média da população. Um factor novo e decisivo para a queda mais rápida do regime é a guerra colonial. Se a luta dos portugueses e entre eles uma parte dos militares contra as guerras coloniais ajuda os movimentos de libertação das colónias a acelerar a sua vitória a luta dos povos de Cabo Verde e Guiné Bissau, de Angola e Moçambique, pela sua independência teve a maior importância para acelerar a queda do regime português. Este campo de Chão Bom no Tarrafal, ao irmanar na repressão portugueses e africanos das ex-colónias portuguesas foi aliás o exemplo paradigmático de que a luta de uns era também a luta dos outros. O exame à situação jurídico-criminal dos presos do Tarrafal no ano de 1939 é também reveladora de como o Estado Novo não se poupava a fazer leis que dessem uma imagem de legalidade à ditadura. Vejamos o que se passava com a situação dos presos em 1939 através de um relatório do arquivo da PIDE na Torre do Tombo.. Dos 212 presos do presídio do Tarrafal 124 encontravam-se em cumprimento de pena mas 34 já a tinham cumprido. Entre eles estão já conhecidos ou futuros dirigentes comunistas como Alberto Araújo, Júlio Fogaça, Militão Ribeiro, Sérgio Vilarigues, Américo de Sousa. 29 presos não tinham sido julgados como era o caso de Edmundo Pedro inscrito neste rol, e 20 estavam presos sem julgamento nem processo. Havia ainda 3 presos com processo no Tribunal Militar Especial e 2 com processo pendente. 19


Neste inventário geral de 1939 ficamos ainda a saber que para dirigir e guardar o Campo e os presos Lisboa colocara aqui um director o capitão João da Silva, o terceiro director desde o início do campo, e que para aqui bem executar as ordens de Salazar tinha feito um estágio na Alemanha nazi. O director tinha um adjunto, também capitão e a seguir na hierarquia surgia um médico o célebre Esmeraldo Prata que os presos consideravam mais assassino que médico. Na estrutura seguia-se o chefe dos guardas Henrique Sá Seichas e 17 guardas. O restante pessoal era constituído por um enfermeiro, um motorista, um lampianista, uma profissão que a electricidade fez desaparecer e um servente. Além desta estrutura interna de 25 elementos havia ainda nas proximidades da colónia penal o quartel da 1º companhia indígena de Infantaria Expedicionária de Angola sob o comando do capitão Numa Pompílio Correia com funções de guarda e vigilância dos presos. Presos sem julgamento, sem processo, ou com a pena cumprida são bem o exemplo de como as leis apesar de feitas à medida da conveniência dos próceres do Estado Novo eram normas que o Governo e a PIDE cumpriam ou não cumpriam conforme as conveniências. No já referido arquivo da PIDE e também no de Oliveira Salazar estão abertos ao público muitas centenas de documentos sobre o Tarrafal quer relativos ao primeiro quer ao segundo período da sua existência. A reabertura do campo é feita pela portaria nº 18.539, assinada pelo ministro do Ultramar, Adriano Moreira e publicada no Diário do Governo com a data de 17 de Junho de 1961 cujo primeiro ponto diz “É instituído em Chão Bom um campo de trabalho”. Nela se refere que “o pessoal necessário ao funcionamento do campo deverá ser recrutado em regime de comissão entre os servidores da província de Angola que suportará todos os encargos.” Como curiosidade registe-se que o Ministro que metia num campo de concentração os seus adversários políticos pôde usufruir no regime democrático português da oportunidade de ter uma carreira política e chegar a ser deputado. A guarda aos presos nesta segunda vida do Campo do Chão Bom ficará a cargo de um pelotão de infantaria do comando de um tenente, com 3 sargentos e 26 praças aquartelado no Tarrafal. Não menos interessante é o ofício do Director da PIDE da

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“província” de Angola ao Inspector da PIDE em Cabo Verde um mês depois. Nele se recomenda que “de futuro o presídio que foi criado no Tarrafal, deve ser sempre designado pelo seu nome oficial que conforme a portaria nº 18.539 de 17 de Junho findo [ 1961, portanto] é “Campo de Trabalho de Chão Bom”. Mas a máquina burocrática padece de algumas desafinações. O Governador Geral de Angola, General Deslandes, com os carimbos de confidencial e urgente interpela o Ministro do Ultramar Adriano Moreira. Refere que 50 cidadãos (brancos e mestiços) detidos à ordem da PIDE em Luanda vão ser “removidos” para Chão Bom em Cabo Verde - sem prévio julgamento ou simples formação de culpa – e faz o reparo de que “são actos que salvo melhor opinião, não têm apoio legal.” Receia o Governador de Angola no mesmo ofício que o julgamento necessário para respeitar a lei deveria ser em Lisboa pois receia as consequências do julgamento em Luanda e tendo em conta a situação económica e social de alguns teme ainda que a “removê-los” para Chão Bom em situação ilegal eles possam recorrer ao habeas corpus. Três anos depois um ofício da delegação da Pide de Angola, de 22 de Abril de 1964, para o director em Lisboa tratando da inconveniência da transferência de presos da Guiné para Chão Bom em Cabo Verde dá colateralmente a informação de que no campo de prisioneiros do Cubango em Angola se encontram 874 presos. Número impressionante e revelador das centenas e milhares de presos espalhados por diferentes campos e por todas as colónias portuguesas para reprimir os movimentos de libertação das colónias. Grande parte desta correspondência entre delegações da PIDE e entre a PIDE e o director do Campo de Chão Bom ocupa-se da censura à correspondência entre os presos e suas famílias, ao desvio dessa imprensa, a tentativas para impedirem visitas de família a presos que não dão sinais de arrependimento e consideram “completamente irrecuperáveis”, do desvio de livros e até de dinheiro enviado aos presos. Em 3 de Dezembro de 1968 o director da prisão de Chão Bom, Eduardo Vieira Fontes, comunica ao chefe da subdelegação da PIDE de Cabo Verde que lhe vai “remeter os livros e discos que vieram endereçados ao recluso José Vieira Mateus da Graça, (o escritor Luandino Vieira) e foram interceptados devido ao seu conteúdo de carácter político-subversivo.” E que livros e discos eram esses que poderiam atentar contra o novo rumo que a PIDE queria impor ao espírito de Luandino Vieira? Era a Praça da Canção de Manuel Alegre, 21


“ O sentido e a forma da Poesia Neo-realista” de Eduardo Lourenço e o disco de Adriano Correia de Oliveira “Trova do vento que passa”. (7) Luandino Vieira, aliás, ocupa a longamente a atenção do director do campo e da PIDE que sonega e espia a sua correspondência nomeadamente com o seu advogado em Lisboa, Joaquim Pires de Lima. Os anos 70 ocupam importante parte deste lote de documentos do arquivo da PIDE. Assim a 14 de Maio de 1970 um relatório do director da prisão do Tarrafal informa que por despacho do ministro do Ultramar foram para aqui enviados mais 14 angolanos com penas de 6 a 10 anos. Entre eles estão Aldemiro da Conceição, Alcino de Carvalho Borges, Alberto Correia Neto, Justino Pinto de Andrade, Vicente Pinto de Andrade, Eduardo Santana Valentim, Gilberto Saraiva de Carvalho, Jaime Gaspar Cohen. Muita desta documentação revela a permanente pressão psicológica sobre os presos, os constantes arbítrios e prepotências a que são submetidos. Em Agosto de 1970 o director da prisão de Chão Bom e a PIDE procuram a melhor maneira, sem dar muito nas vistas para o exterior, de impedir que a mãe de Eduardo Santana Valentim visitasse o filho aqui condenado a 10 anos de prisão apesar de a senhora já estar em Cabo Verde depois de uma longa viagem de Luanda para Lisboa e de Lisboa para aqui. E porque querem recusar a visita? Porque, e passo a citar “o preso tem espírito orgulhoso e irreverente sobre o qual se terá de exercer a nossa acção de esclarecimento” e “o isolamento da família e o exercício de uma apertada censura em que se inclui a interdição de noticiário e leitura de temas políticos, subversivos e sociais - reivindicativos têm sido óptimos meios de recuperação social dos internados.” Dizer isto aqui, hoje, é absolutamente risível mas há 39 anos estas mesquinhas e odiosas considerações eram verdadeiras sentenças sobre a vida dos presos que aqui estavam por lutarem pela liberdade dos seus países. A consciência da necessidade de preservação da Memória das lutas travadas contra o fascismo e contra o colonialismo é um tema actual em Portugal mas também na Europa e, como este simpósio bem comprova, na República de Cabo Verde. Importa sublinhar que aqui a tomada de consciência dessa importância leva ao empenhamento das autoridades, do próprio Presidente da República e do Governo o que não é frequente suceder noutros países.

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Em Portugal, como noutras latitudes, a defesa da preservação da Memória com os objectivos que aqui nos reúnem, confronta outras correntes de opinião. Umas não negam essa importância mas não a valorizam suficientemente. Outras correntes de opinião, estão contra a defesa desse património histórico e cívico. Tais correntes já se vê, têm como principais defensores, ou quem tenha cadastro neste tipo de crimes, ou sectores que se identificam no fundo com as ideologias que conduziram a tais tragédias e que em nova oportunidade estariam prontas para soluções da mesma natureza como aliás se viu recentemente na Guerra do Iraque, nas práticas de Guantânamo ou Abhu Graib para citar só os locais mais conhecidos. O Movimento Não Apaguem Memória sustenta ter grande importância cívica e política a defesa desta memória que no caso Português passa pela preservação de locais tão emblemáticos como por exemplo o da Sede da PIDE/DGS em Lisboa, a antiga cadeia do Aljube, os fortes-prisão de Peniche e Caxias, com soluções adequadas e naturalmente diferentes. Que valores estão em causa afinal neste debate que atravessa Portugal, a Europa e a América Latina e também certamente Cabo Verde. Pois o da defesa da Liberdade, dos direitos humanos, da justiça, da solidariedade. Em Portugal os que defendem a preservação da memória, e não apenas em palavras mas em actos, querem fortalecer a consciência dos portugueses com as lições do passado para que não possa regressar, ainda que sob novas formas e disfarces, o triunfo das ideias que almejam, à custa da liberdade e da dignidade humana, uma repartição da riqueza que dê a poucos uma vida de escandalosa opulência e à esmagadora maioria a pobreza, a insegurança e o desespero. O Movimento Não Apaguem a Memória surgiu há 4 anos em protesto contra a transformação da sede da PIDE em Lisboa num condomínio privado de luxo sem que o Estado português tivesse tido a preocupação de intervir no sentido da preservação da memória do local. A nossa associação tem como razão de ser a preservação da memória da luta da resistência à ditadura fascista, e o colonialismo e pela liberdade e procura cooperar com quem tenha os mesmos objectivos. Pretendemos que os principais símbolos da opressão e da luta contra ela sejam condigna e adequadamente preservados. Procuramos, de acordo com as nossas possibilidades, exercer o magistério da influência junto do Governo, das autarquias, das instituições do Estado português para que 23


adoptem uma política de preservação da memória que honre o país e a democracia e que seja uma componente da preservação da nossa identidade. Vimos, aliás, consagrado tal desiderato numa Resolução Parlamentar (nº 24/2008 de 16 de Junho) de nossa iniciativa, sob a forma de recomendação da Assembleia da República ao Governo para que exerça o dever de Memória e que teve o apoio, raro, de todos os grupos parlamentares. Temos tido insucessos e êxitos. Entre estes merece especial relevo a assinatura no passado dia 25 de Abril de um protocolo com a Câmara Municipal de Lisboa, na presença do seu presidente, do ministro da Justiça, ele próprio um antigo preso político, e do ministro das Finanças que tem por objectivo o apoio •

à criação de um museu da resistência e da liberdade na antiga e simbólica cadeia de presos políticos do Aljube, em Lisboa;

à realização de um memorial às vítimas da PIDE junto do local onde se encontrava a sua sede em Lisboa;

à criação de um roteiro cultural na cidade de Lisboa dos locais mais simbólicos da repressão da ditadura e das lutas mais importantes contra ela;

à realização de uma exposição, durante um ano, denominada “A voz das

vítimas” no edifício da antiga cadeia do Aljube, no âmbito das Comemorações •

Nacionais do Centenário da República em parceria com a Fundação Mário

Soares e o Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. O Campo de Concentração do Tarrafal também mereceu do Movimento Não Apaguem a Memória especial atenção. Realizámos um colóquio internacional para assinalar o aniversário da abertura do Campo de Chão Bom, em 29 de Outubro de 2008, com o apoio do presidente da Assembleia da República, do Ministro da Justiça, do ministro da Cultura e da Fundação Mário Soares. Apraz-nos sublinhar a presença que muito nos honrou de antigos presos do Tarrafal, como o diplomata Luís Fonseca e Maria da Luz Boal de Cabo Verde, o embaixador da Guiné Bissau em Lisboa, Constantino Lopes da Costa, o embaixador de Angola em Roma, Manuel Pedro Pacavira o Professor Universitário Justino Pinto de Andrade, de Angola além dos ex-tarrafalistas portugueses Edmundo Pedro, aqui presente e Joaquim de Sousa Teixeira, falecido entretanto. Os projectos que as autoridades da República de Cabo Verde planeiam para o antigo Campo de Concentração do Tarrafal onde europeus e africanos tanto sofreram têm uma

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grande importância para Cabo Verde mas também para Portugal, Angola e Guiné onde cidadãos e até alguns actuais dirigentes do Estado estivem presos. O Campo do Tarrafal evoca momentos importantes da história comum a estes países. Por isso achamos que comum deve ser também o esforço e o empenho para levar avante neste importante projecto e em particular por parte de Portugal, que como membro da União Europeia tem a obrigação de procurar envolver também a Europa nesta evocação histórica comum aos dois continentes. Por fim queria agradecer à Fundação Amílcar Cabral e à Presidência da República de Cabo Verde que lhe deu o seu alto patrocínio a distinção que para nós representa o convite feito ao Movimento Não Apaguem a Memória! para participarmos neste importante simpósio internacional. Esta iniciativa revela como a Fundação Amílcar Cabral, a Presidência e o Governo da Cabo Verde têm a viva percepção da importância da preservação da memória deste local de sofrimento e luta de portugueses e cidadãos de Angola, Guiné e Cabo Verde irmanados no combate ao fascismo e ao colonialismo e pela independência dos seus países. Este simpósio com o patrocínio das autoridades de Cabo Verde no presente, assim como a luta comum no passado, de homens e mulheres do país colonizador e de homens e mulheres dos países então colonizados são o exemplo impressivo de que o que une ou separa os Homens não são as fronteiras dos Estados ou da cor da pele, não são as fronteiras da raça ou da cultura. O que separa ou une os Homens é a sua atitude perante o outro, perante o seu semelhante, é o seu posicionamento perante a solidariedade, a justiça social, a dignidade humana, a liberdade. Notas (1) Acção Revolucionária Armada- ARA – Raimundo Narciso, Editorial D. Quixote 1970 . (1) As explosões que abalaram o fascismo Jaime Serra Edições Avante – 1969 (2)– Francisco Miguel “Uma vida na Revolução” A Opinião Fev 1977 e Das Prisões à Liberdade Edições Avante 1986. (2)– Memórias Um Combate pela Liberdade 1º Volume Edmundo Pedro. Editora Âncora Jan 2007 (4)- Em Memória do General Adalberto Gastão de Sousa Dias revista militar Dez 2005 http://www.revistamilitar.pt/modules/articles/article.php?id=3

(5) http://www.pcp.pt/index.php? option=com_content&task=view&id=17317&Itemid=195 (6) http://ttonline.dgarq.gov.pt/dserve.exe? dsqServer=calm6&dsqIni=Dserve.ini&dsqApp=Archive&dsqCmd=ImageView.tcl&dsqDb=Images&dsq Image=PIDE\E\9129\1\PT-TT-PIDE-E-9129-1_c0027.jpg

(7) http://ttonline.dgarq.gov.pt/dserve.exe? dsqServer=calm6&dsqIni=Dserve.ini&dsqApp=Archive&dsqCmd=ImageView.tcl&dsq Db=Images&dsqImage=PIDE\DA\C\1\1623B\PT-TT-PIDE-DA-C-1-1623B_c0107.jpg

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