C A R T A A B E R T A AOS PARTICIPANTES DO 23º CONGRESSO DA A B M P A Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude - ABMP e a Rede Nacional Primeira Infância – RNPI dirigem-se aos participantes do 23º Congresso da ABMP para apresentar reflexões e assinalar temas que requerem especial atenção na área dos direitos da criança, especialmente no período da primeira infância (0 a 6 anos). É digno de registro que o Brasil conseguiu avanços extraordinários no arcabouço jurídico e nas políticas públicas relativamente aos direitos da criança e do adolescente e na estruturação do Sistema de Garantia de Direitos. É reconhecido, também, o papel relevante que a ABMP vem desempenhando nesse contexto. Sua atuação se mostra eficaz não apenas no aprimoramento do sistema de justiça para a garantia dos direitos, como também como efeito indutor de políticas públicas universalizantes, que estendam a prática dos direitos a todas as crianças, de sorte que a sociedade brasileira seja, progressivamente, menos excludente, mais inclusiva. A RNPI também vem fomentando a elaboração, o aprimoramento e integração das políticas e planos nacionais para as crianças até seis anos de idade. Sua atividade mais significativa, no momento, é a elaboração, com ampla participação social, do Plano Nacional pela Primeira Infância, com uma estratégia de construção e aprovação que venha a configurá-lo como Plano de Estado. No entanto, estas duas Organizações estão conscientes de que muito ainda há por fazer para que as crianças e adolescentes brasileiros estejam no pleno exercício de seus direitos fundamentais. E alertam que, na faixa etária de 0 a 18 anos, a primeira infância vem sendo menos vista e, consequentemente, seus direitos menos atendidos. É compreensível que os problemas que afetam a adolescência recebam maior atenção, dada a pressão social e a intensa presença na mídia. No entanto, eles não são mais graves nem mais ofensivos aos direitos desses cidadãos do que aqueles relativos à infância.
O que a psicologia, a psicanálise, a pedagogia, a pediatria e várias outras ciências vêm dizendo há mais de cinqüenta anos sobre o significado dos anos iniciais para o desenvolvimento da pessoa, a formação da personalidade, a construção das estruturas cognitivas, sociais e afetivas, que embasam todo o desenvolvimento posterior, vem sendo demonstrado pela neurociência. Das primeiras experiências decorrem os valores, as expectativas e os comportamentos ao longo da vida. Temos visto maior empenho em corrigir e reeducar quando o sofrimento e o desajuste já se instalaram, do que em cuidar e educar a partir dos momentos mais apropriados, que são os seis primeiros anos de vida. O respeito à criança de 0 a 6 anos como cidadã e sujeito capaz ainda engatinha em vários âmbitos, em diferentes políticas públicas: “Sob o manto do discurso tutelar, desafortunadamente as crianças continuam sendo minicidadãos com minidireitos” (Paulo Sérgio Pinheiro e Cecília Anicama, A Infância ainda em risco, em Le Monde Diplomatique, Brasil, ano 3, nº 28, novembro 2009). Em vista do acima exposto, a ABMP e a RNPI propõem os seguintes temas que carecem de reflexão aprofundada e de ação mais efetiva, e para os quais desejam contar com a participação dos participantes deste 23º Congresso: 1. Reforçar o princípio do direito. A razão fundamental das políticas públicas para a primeira infância não está em evitar problemas de adaptação social no futuro, nem obter ganhos econômicos maiores na vida adulta, mas porque a criança é cidadã, sujeito de direitos. Essa visão assegura o respeito à pessoa, descarta atitudes assistencialistas. Estas geram subserviência; aquela constrói a cidadania. 2. Ampliar o conceito de “direito à participação”, presente na Convenção dos Direitos da Criança, da ONU. O protagonismo infantil vai muito além de ser ouvido pelo juiz quando da separação dos pais. A participação da criança deve ter espaço na educação infantil, nos serviços de saúde, nas artes e na cultura, no desenho da cidade e dos espaços pelos quais ela transita. Não se rompem os velhos esquemas do adultocentrismo se as crianças não forem ouvidas, acolhidas como capazes de contribuir como crianças no desenho da vida. 3. Propugnar pela educação infantil de qualidade. O direito à educação infantil não se restringe nem se esgota no acesso à creche e à pré-escola, mas somente se cumpre ao participar da experiência educativa de qualidade. 4. Alcançar formas sempre mais cooperativas entre o MP e os órgãos governamentais responsáveis pelos serviços públicos de educação, saúde, assistência, evitando decisões administrativas de atendimento de demandas que cumprem a formalidade do acesso ao serviço, sem a qualidade que lhe dá sentido.
5. Desenvolver ação mais ampla e coordenada de combate às várias formas de violência contra a criança. 6. Criar estratégias de ação e especialidades nos novos âmbitos em que os direitos da criança precisam ser defendidos: os meios de comunicação, a propaganda mercadológica, a internet... 7. Reforçar e ampliar a política de apoio às famílias, para que exerçam seu papel primordial e insubstituível de primeiras cuidadoras e educadoras das crianças pequenas. 8. Apoiar mais intensivamente a universalização do registro civil de nascimento, de sorte que todas as crianças brasileiras sejam registradas ao nascer e tenham sua certidão, que as inscreve na cidadania. Finalmente, os signatários desta Carta encarecem a necessidade de preservar a infância, respeitando as etapas do desenvolvimento infantil. Que as tendências de antecipar exigências e expectativas que seriam mais apropriadas para idades posteriores sejam contrapostas por uma defesa firme do direito da criança ser criança, de brincar, de aprender ludicamente, de conviver em espaços de liberdade e expressão criativa. Antecipar a entrada no ensino fundamental para a idade de cinco anos é uma forma de reduzir a infância e impor exigências que acabarão por produzir efeito contrário do desejado: estresse, desinteresse pela escola, reprovação e abandono. Mas o efeito mais pernicioso se instala no íntimo da criança e esse dificilmente será reparado, porque criança sem infância é, na grande parte dos casos, adulto infeliz. Brasília, 5 de maio de 2010 Associação Brasileira de Magistrados,
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