Dos filmes que ainda não fizemos LGBTQIA+ Santa Catarina
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Apoio
Nivea/All Out 2
Realização
Dos filmes que ainda não fizemos
Dos filmes que ainda não fizemos LGBTQIA+ Santa Catarina
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Dosfilmes queainda nãofizemos LGBTQIA+ SantaCatarina organizadopor
Mariana Somariva Rober Corrêa escritopor
Azânia Mahin Romão Nogueira Diana Dias Gabriel Maschio Mariana Soares Koettker Michelle Martins de Oliveira Pedro Maçalê Rafael Campagnaro Sílvia da Silva Willian Binsfeld
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
D722
Dos filmes que ainda não fizemos LGBTQIA+ Santa Catarina / organização Rober Corrêa e Mariana Somariva ; ilustrações Sílvia da Silva. – Florianópolis, SC : Estrela Guia, 2021. Dados eletrônicos (1 arquivo pdf.). ISBN 978-65-996493-1-8 1. Roteiros. 2. Roteiros cinematográficos. 3. Roteiros de filmes. 4. Escrita para audiovisual. 5. LGBTQIA+. I. Corrêa, Rober. II. Somariva, Mariana. III. Silva, Sílvia da. CDD 23. ed.: 808.23 Catalogação na fonte elaborada pela Bibliotecária Thayse Dal Molin Alérico CRB 9/1948.
Apoio
Realização
Coordenação Kelly Vieira Meira
Diagramação Caru Secco
Produção Patrícia Alves
Editoração Móbile
Oficinas de Roteiro Rober Corrêa
Expediente Estrela Guia Monica Siqueira Thaís Filó
Oficinas de editoração/diagramação Caru Secco Consultorias Amanda Tavares Fabiane Marques Mariana Somariva Rober Corrêa Ilustração Sílvia da Silva
Assessoria de comunicação Mariana Somariva Apoio All Out Realização Estrela Guia - Associação em Prol da Cidadania e dos Direitos Sexuais
Primeira edição, novembro de 2021 Primeira impressão, novembro de 2021
©2021. Esta obra encontra-se registrada nos termos e normas legais da Lei nº 9.610/1998 dos Direitos Autorais do Brasil. Conforme determinação legal, a obra não pode ser plagiada, utilizada, reproduzida ou divulgada sem a autorização de suas autorias.
dosfilmesqueaindanaofizemos@gmail.com
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Apresentação Partimos do entendimento do roteiro cinematográfico enquanto gênero literário. Trata-se de um tipo textual que possui características e sutilezas próprias que talvez, num primeiro momento, uma leitura desatenta não as perceba. É um processo de escrita que se constrói por imagens e que se cria por ações e, embora em diálogo com o texto dramático, possui aspectos particulares – enquanto do texto dramático se espera o palco, do roteiro cinematográfico se espera a tela. Desse modo, anseia-se geralmente uma encenação para uma peça e um filme para um roteiro, muito em virtude dos suportes aos quais ambos estão "pré-programados". Ocorre que, tanto peças teatrais quanto roteiros cinematográficos propiciam, para quem os lê, o efeito dramático também em seu primeiro e por vezes esquecido suporte: a palavra no papel (antes apenas físico, hoje também digital). Mas, se tanto o teatro quanto o cinema transgridem seus "suportes originários" em suas encenações ou filmes – em apresentações de rua, no emprego de multimeios, na própria virtualização provocada em massa pelo contexto pandêmico etc –, aqui procuramos explorar o roteiro no suporte livro, para que
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seja digerido pela/o/e leitor/a/e de forma igualmente potente. Para isso, buscamos compreender aquilo o que se espera de um roteiro (leia-se padrão master scenes) para depois elaborar estilos, particularidades, transcendências ou mesmo manutenções. O roteiro cinematográfico é um tipo textual recente na história da literatura. Mary Shelley ou Oscar Wilde teriam dificuldades em compreendê-lo, justamente por nunca o terem conhecido. O roteiro é fenômeno do século XX, criado e consolidado por um modelo de cinema industrial que perfaz a lógica ocidental, aristotélica e patriarcal tanto em seus aspectos narrativos quanto formais. Assim, novas jornadas, promessas, arquétipos e estruturas precisam ser criadas para que tomem o inconsciente coletivo ainda habitado por velhas normatividades e lógicas de invisibilização, excludência e subordinação. E essa é a maior virtude deste livro: colocar em relevo tais possibilidades de construção. Trata-se de um ato de coragem das autorias. Quando escrevemos, inevitavelmente nos expomos. O texto só pode sair do repertório e experiência de quem o escreve. Ao mesmo tempo, como lembra Syd Field, o que escrevemos hoje já estará velho amanhã e o que escreveremos amanhã, estará ultrapassado depois de amanhã. Tudo aqui publicado poderá ser escrutinado pelos/as/es leitores/as e, aquilo que hoje acreditamos estar atualizado e em consonância com nosso projeto político e estético, poderá também ser lido como desatualizado por gerações futuras. Quiçá os textos daqui envelheçam mal – e isso será um bom sinal –, sinal de que teremos vencido esse debate, que perceberemos novas camadas das estruturas e tecnologias que nos amarram e tentam condicionar e trabalharemos contra elas. Sinal de que ainda há espaço para novas prospecções e que esse futuro poderá ser minimamente menos caótico e desigual que nosso presente (para não falar do terrível passado, que aqui não será romantizado).
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No processo de construção e lapidação dos textos, as vivências LGBTQIA+ das autorias foram trazidas para o centro, de maneira mais ou menos explícita, na busca por evidenciar seus diversos atravessamentos. Não por imposição temática, mas por eleição orgânica das autorias. Questões como as de raça, classe social, sexualidade, sexo, gênero, escolaridade, territorialidade/localização, religiosidade e fé não se escondem aqui, não fogem – justamente porque não têm para onde fugir, nem muito menos o querem. Ao contrário, elas se mostram, irrompem fazendo questão de se expor, e desafiam. De fato, como já mostraram Kimberlé Crenshaw, Avtar Brah, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez e tantas outras, trata-se de sistemas de dominação tão entrelaçados e tão pungentes que não há mais a possibilidade de ficarem de fora do debate, nem de serem percebidos separadamente ou acriticamente. Da mesma forma, os textos deste livro permeiam as existências de gênero e sexualidade nos seus múltiplos entrecruzamentos, que em nossa realidade sociocultural têm produzido mais ou menos subjugação, mais ou menos dor, mais ou menos feridas, mas também movimentos insubmissos de libertação e cura. As autorias elucidam, então, o quão custoso, contraproducente e até antipolítico seria separar a vida da arte. Assim, desafiando a compreensão de cada universo com a profundidade – e também simpleza – que precisam ter, os roteiros deste livro trazem consigo a luminosidade da literatura e da vida, o que torna sua apreciação ainda mais instigante e oportuna.
Mariana Somariva e Rober Corrêa Primavera de 2021
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O reencontro
por Azânia Mahin Romão Nogueira Ficçao / Florianopolis (SC) Pagina 13"
Depois de dois anos na cidade, Toni retorna para casa e as coisas não estão como antes. Responsável por recuperar um pedaço de solo de sua terra, ela é convidada a se reencontrar com as tecnologias de experiência da vida. Ao fim, o que mais precisava estava com ela o tempo todo.
sementes do amanhã por Diana Dias Ficçao / Florianopolis (SC) Pagina 25"
Em um futuro próximo, pessoas são enterradas em sementes-urnas, os cemitérios foram substituídos por bosques e neles cada árvore é um caixão. Em um desses cemitérios, VivoI conhece um espírito que precisa de sua ajuda.
encontro com um ser mítico, resolve assumir uma nova identidade e explorar as possibilidades de uma vida livre, porém percebe que a liberdade tem o seu preço e que talvez seja alto demais para ele.
enquanto você dormia
por Mariana Soares Koettker Ficçao / São José (SC) Pagina 79"
Duas estudantes do mesmo curso, com realidades distintas, encontram- se no imaginário de uma delas após a outra tentar o suicídio. Enquanto Luma segue hospitalizada em condição grave, Marina passa a visitar os lugares que ela costumava frequentar. *Atenção: o texto pode ativar gatilhos - Centro de Valorização da Vida – Telefone: 141*
ondina
semelhanças
Manuel resolve seguir os passos do pai e se torna pescador para poder sair de casa e viver seus desejos. Após um
Duas desconhecidas pegam um ônibus para um destino em comum.
por Gabriel Maschio Ficçao / Florianopolis (SC) Pagina 55"
por Michelle Martins de Oliveira Ficçao / São José (SC) Pagina 91"
rádio griot volume 1: corpo encruzilhada.
por Pedro Maçalê Ficçao / Florianopolis (SC) Pagina 99"
Zuri, homem preto e trans, começa mais um dia de sua jornada. Às vezes, a simples ação de tomar um ônibus pode ser muito difícil para pessoas como ele. De qualquer forma, Ogum nunca abandona um de seus filhos. A semelhança com a realidade não é mera coincidência.
eu tive um sonho ruim e acordei gritando [me dá um abraço!] por Rafael Campagnaro Ficçao / Florianopolis (SC) Pagina 115"
A chegada da adolescência na vida de um garoto irá levantar questões que até então estavam confusas em sua cabeça. Para voltar a dormir tranquilamente, terá que enfrentar alguns traumas da sua infância e encontrar uma maneira de falar com sua mãe.
antônia
por Sílvia da Silva Ficçao / Curitiba (PR) & Florianopolis (SC) Pagina 125"
Uma garotinha vai morar com a Bisa numa cidade do interior do Paraná. Sua mãe foi embora para o garimpo ser cozinheira e sem data para voltar. Até que chega o Natal e todos se surpreendem com o retorno de sua mãe.
recursos humanos uma história de suspense/terror em três atos.
por Willian Binsfeld Ficçao / Florianopolis (SC) Pagina 179"
QUINTA-FEIRA: uma paixão não correspondida pelo chefe torna-se perigosa quando um maníaco está solto na cidade. SEXTA-FEIRA: um convite na última entrega da sexta-feira 13 pode mudar o destino das pessoas. SÁBADO: uma surpresa assustadora após um jantar romântico, será o desfecho da história?
O reencontro
Azânia Mahin Romão Nogueira
Faz muito tempo que o ser humano sabe que a gente é feito, essencialmente, de água. Faz pouco tempo que a gente entendeu que, pra ser água, é preciso fluir, sem represas, recipientes ou rótulos. E, da mesma forma que um rio também é nuvem e também é chuva, estamos aprendendo a viver a liberdade de apenas existir num futuro que não sabíamos que nos esperava.
CENA 01 EXTERNA | CENTRO DA CIDADE, RUA DE PEDESTRES | DIA Toni, 27 anos, tem a pele negra, cor de canela, os cabelos curtos, é alta e magra. Ela caminha pela rua em um ritmo mais lento do que as demais pessoas. Ela parece fluir pela multidão, preferindo desviar do povo a acelerar o passo. Sua respiração começa a ofegar e ela umedece os lábios com a língua. TONI (voice over) Mesmo estando em uma ilha, é da água que eu mais sinto falta... Toni para e coloca seus fones de ouvido. Escuta o som de água corrente, respira fundo e fecha os olhos.
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CENA 02 EXTERNA | BEIRA DO RIO | DIA Flashback Duas meninas negras de 12 anos andam na margem do rio. Uma delas, Toni, tem os cabelos lisos e longos, uma franja bem marcada e é magricela. A outra, Leni, com o tom de pele mais escuro, cabelos crespos, é gorda. Leni abre um sorriso e começa a correr. TONI Leni, me espera! Leni continua a correr e estica o braço para trás enquanto Toni acelera o passo em sua direção, finalmente alcançando-a. As duas param de correr e colocam os pés na água. LENI Você tem medo de se perder, Toni? A gente vem aqui todo dia! TONI Eu só quero ter você por perto LENI Você sabe que aqui nunca está sozinha CENA 03 INTERNA | QUARTO DE TONI NA CIDADE | NOITE Toni abre os olhos. AKAY (voice off) Você quer passar em algum lugar ou podemos ir direto? TONI Podemos ir assim que terminarmos aqui Toni umedece os lábios com a língua e fecha a mochila que está sobre a cama enquanto o irmão, Akay, coloca livros em uma outra. Akay tem 23 anos, a pele negra é mais escura
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do que a da irmã. Ele tem desenhos adornando sua barba e a lateral de seus cabelos. Apesar de ser mais novo do que Toni, eles aparentam ter a mesma idade e têm proporções corporais semelhantes. Ele pausa e bebe água de uma garrafa, oferecendo para a irmã em seguida. Toni rejeita a garrafa e Akay toma mais um gole. AKAY Não tem mesmo ninguém de quem você queira se despedir? TONI Não. Todas as pessoas com quem quero falar estão nos esperando em casa AKAY Então estamos prontos Akay e Toni colocam os mochilões nas costas e saem do quarto fechando a porta. A moradia é simples, um quarto de estudante despido de personalidade agora que sua antiga ocupante partiu. Toni retorna ao aposento e apaga a luz pela porta entreaberta, fechando-a novamente em seguida. CENA 04 INTERNA | COZINHA DA CASA DE FAMÍLIA DE TONI | DIA Akay e Toni chegam em casa. Enquanto o rapaz tira a mochila das costas, o pai deles abraça Toni, recebendo-a de volta ao lar. CENA 05 EXTERNA | FACHADA DA CASA DE FAMÍLIA DE TONI, JANELA DA COZINHA | FIM DE TARDE Toni está empoleirada na janela olhando para a direita. Suspira. Ela toma vários goles de água de um copo de cerâmica e volta a olhar para a direita. Olha mais uma vez para a direita e não repara quando uma pessoa se aproxima, vindo pela esquerda.
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LENI Achei que você ia estar dormindo depois de tantas horas de viagem Toni franze a testa, mas logo abre o sorriso e puxa Leni para abraçá-lo pela janela. TONI Peraí! Leni sorri enquanto sua amiga corre de dentro da casa para o seu lado, ganhando um segundo abraço. TONI O seu cabelo! Toni passa a mão pelo cabelo volumoso de Leni, acariciando atrás da orelha até a sua barba, que também tem desenhos feitos com navalha, como os de Akay. LENI Tô deixando crescer desde que você foi viajar TONI Essa barba é uma novidade... LENI Muitas coisas mudaram enquanto você ficou fora, mas outras estão do mesmo jeito. Como está a sua empolgação para a festa de hoje à noite? Tá todo mundo querendo te ver! TONI Eu não podia mais perder as nossas festas. Não tem nada parecido com isso na cidade LENI Mas é claro que não, isso é nosso, né? Bom, eu tenho que me arrumar. Nós nos encontramos lá, tá bem?
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CENA 06 EXTERNA | ESPAÇO ABERTO DA COMUNIDADE RURAL | NOITE Toni observa feliz o seu povo, que festeja. As pessoas dançam, conversam, comem e bebem. Uma grande fogueira ilumina o local bem como drones de energia elétrica. TONI (voice over) Estar em casa é como ser um rio que finalmente encontra seu oceano. Sem saber exatamente onde eu termino e nós começamos, cada célula do meu corpo absorve esse momento com saudade do que ainda não acabou... O olhar de Toni encontra Leni. A fogueira está entre os dois, mas não demora muito até que Leni também olha para Toni. Eles trocam um sorriso à distância e logo uma pessoa se aproxima de Leni. Tem a pele escura, usa óculos e tem tranças adornadas com contas no cabelo. Eles se abraçam e se beijam enquanto Toni observa a cena. Akay se aproxima da irmã e a empurra de leve com o ombro. AKAY Como está sendo estar de volta? TONI Eu estava com saudades AKAY Está pronta para começar o trabalho? TONI Eu estava com saudades disso também AKAY Que bom. Você lembra da dona Leandra? Ela está precisando de uma ajuda na horta do quarteirão dela TONI Amanhã eu passo por lá então
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CENA 07 EXTERNA | HORTA DO QUARTEIRÃO DE LEANDRA | DIA Toni ajeita sua bolsa de ferramentas no ombro enquanto caminha em direção à Leandra. A mulher tem cerca de cinquenta anos, os cabelos roxos e a pele negra tem sardas do sol. Leandra está com as mãos na cintura e olha para um dos canteiros da horta. TONI Bom dia, Leandra. Esse é o canteiro? LEANDRA É sim. Faz muito tempo que ele está abandonado. Tentamos algumas coisas, mas nenhuma reação da terra não Toni sorri e se agacha, toca a terra com as mãos, sentindo a textura em seus dedos. Abre a bolsa e finca palitos metálicos na terra. Olha para o aparelho em seu pulso. TONI Hm. Interessante. O solo parece estar equilibrado quimicamente. O que vocês tentaram plantar aqui? LEANDRA Nada demais, umas begônias e girassóis... TONI Certo. Eu vou voltar amanhã com alguns compostos. Acho que vamos recuperar rapidinho aqui CENA 08 EXTERNA | HORTA DO QUARTEIRÃO DE LEANDRA | DIA Toni chega na horta empurrando um carrinho de mão com composto orgânico. Com uma pá coloca o composto no canteiro e sorri satisfeita ao terminar o trabalho. CENA 09 EXTERNA | HORTA DO QUARTEIRÃO DE LEANDRA | DIA Toni se aproxima do canteiro e para coçando a cabeça.
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Se agacha, retirando os aparelhos para medir a qualidade do solo de sua bolsa. Faz a testagem do solo, observa o resultado em seu relógio e volta a encarar a terra. Ela torce a boca e olha para o lado, vendo outros canteiros produtivos. Volta a olhar para a terra na sua frente e solta um suspiro. CENA 10 EXTERNA | HORTA DO QUARTEIRÃO DE LEANDRA | DIA Toni abre a garrafa de fertilizante e sente o cheiro, fazendo uma careta enojada. Olha para o rótulo, fecha a garrafa e a sacode. Continua lendo as instruções e olha para os lados. Deixa a garrafa no chão e caminha em direção à estante de ferramentas. CENA 11 EXTERNA | ESTANTE DE FERRAMENTAS DA HORTA | DIA Toni pega o regador da estante de ferramentas, enche de água na torneira ao lado, caminha de volta para o canteiro. CENA 12 EXTERNA | HORTA DO QUARTEIRÃO DE LEANDRA | DIA Toni coloca o regador no chão, pega a garrafa de fertilizante, sacode brevemente e volta a ler o rótulo. Assente com a cabeça, abre a garrafa e despeja o pouco do fertilizante no regador. Para e confere a quantidade de fertilizante ainda na garrafa, voltando a despejar mais um pouco no regador. Fecha a garrafa e levanta o regador, balançando para tentar misturar a água e o fertilizante. Satisfeita, inclina o regador para espalhar a mistura no canteiro. O bico do regador cai e muita água molha um mesmo lugar. Toni rola os olhos irritada e, bufando, coloca o regador no chão. Pega o bico e o recoloca com força no regador, passando a mão no rosto, até que ela chega em seu nariz e Toni sente o cheiro desagradável do fertilizante. Faz uma careta. Termina de regar o canteiro e caminha para retornar o regador.
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CENA 13 EXTERNA | HORTA DO QUARTEIRÃO DE LEANDRA | DIA Toni encara a terra com as mãos na cintura, agacha-se com o olhar preocupado. Morde os lábios e toca a terra com cuidado. Passos se aproximam e Toni inclina o rosto para cima, recebendo Leni com um sorriso. Ele prontamente se agacha ao lado da amiga, olhando para a terra. LENI O que tá rolando? TONI Aparentemente, nada. Eu já apliquei tudo o que aprendi na cidade LENI E o que você pode fazer agora? TONI Quem sabe me lembrar de tudo o que eu aprendi aqui LENI Bom, com isso eu posso ajudar Os dois se levantam. CENA 14 EXTERNA | BEIRA DO RIO | DIA Leni e Toni se secam. Outras crianças e jovens se banham, cantam e dançam. Os dois caminham pela margem do rio. TONI A gente era exatamente assim, né? LENI Você fala como se fosse numa vida passada... TONI Eu achei que voltar pra casa seria um retorno no tempo também, mas não é bem assim
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LENI Só seria um retorno se a gente tivesse ficado parado, mas tudo segue em movimento. Você, eu, esse rio... TONI Eu não mudei tanto assim. Nem esse rio. CENA 15 EXTERNA | TRILHA | DIA Leni começa a correr. Toni sorri e corre atrás do amigo. Ela escorrega e cai, mas logo se levanta e volta a correr, sorrindo. CENA 16 EXTERNA | ESTRADA | DIA Leni espera por Toni que chega ainda correndo em seguida. Os dois dão risada e Toni passa os braços pelos ombros do amigo. LENI Você não chorou dessa vez TONI E eu definitivamente não sei mais correr nessa mata LENI Esse rio mudou. CENA 17 EXTERNA | HORTA DO QUARTEIRÃO DE LEANDRA | DIA Toni e Leandra caminham pela horta. TONI Dona Leandra, dois meses atrás comecei a cuidar do canteiro e eu usei todas as técnicas que aprendi no meu tempo fora. Tentei de tudo, sabe? LEANDRA É mesmo?
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TONI Tudo mesmo. LEANDRA E aí? Leandra para no meio do caminho, colhe ervas de outro canteiro olhando para Toni, na espera de sua resposta. TONI No começo, não tive muita resposta. Tava achando que tinha entendido tudo errado, que talvez não soubesse o que eu tava fazendo mesmo Leandra volta a caminhar e Toni a segue. Enquanto a mais nova gesticula, explicando o processo que passou, a mais velha escuta com um sorriso largo no rosto. TONI Tentei irrigação, compostagem, fertilização e mais um monte de testagem com aquelas coisas que aprendi a usar no curso LEANDRA E no final das contas foi mesmo uma dessas tecnologias que deu certo? TONI Foi sim. Mas foi uma das nossas... LEANDRA E o que foi? TONI Tempo. As duas param em frente ao canteiro e olham para ele. Mudas de girassol e begônias brotam da terra. FIM
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Sementes do Amanhã
Diana Dias
Cena 01 - Ext. Pátio da Funerária Sementes do Amanhã. Hora do almoço. VivoI, pessoa negra, alta, 23 anos, cabelo grande, funcionário da Funerária Sementes do Amanhã, usa o macacão da empresa. VivoI está sentado em uma mesa grande em um pátio aberto. Os lugares ao seu redor estão vazios. Na mesa, tem uma garrafa de suco de laranja e uma lancheira. Na ponta da mesa, há um pássaro pousado. VivoI tira uma parte do bolo que está em sua mão e põe à sua frente. Morde a parte que sobrou e observa o pássaro se aproximar e comer o outro pedaço de bolo. Olha para a esquerda e depois para a direita, verificando se tem alguém perto. Volta a olhar para o pássaro. VivoI Oii, Bili, como passou de ontem?........... Ventou bastante essa última noite, né?........ Eu quase não consegui dormir, mas nem foi tanto por causa do vento. Acho que foi mais nervosismo mesmo, sabe? VivoI morde outro pedaço do bolo e continua a falar enquanto mastiga. VivoI Estou pensando muito sobre amanhã. Vou completar sete anos de namoro. Você
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apareceria se eu fosse dar uma festa?....... O Lui também gostaria de te conhecer. Pássaro Bili voa. Passos se aproximam acompanhados de uma risada barulhenta. Colega de trabalho (O.S.) (debochado) Ainda falando com pássaros? VivoI Só com um em específico. Aquele que você acabou de espantar. Colega de trabalho, homem negro, forte, 30 anos, dreads longos. Veste o uniforme da funerária. Colega de trabalho Vamos. Deixa de besteira. Está quase acabando nosso horário de almoço. Já vai começar a reunião sobre a nova técnica de semeação e eu não quero tomar outra advertência. VivoI se levanta e acompanha o Colega de trabalho. Os dois começam a andar. Colega de trabalho Com tantas assistentes virtuais, por que você fica conversando só? VivoI Eu não estava só. Colega de trabalho Sério? O Pássaro? Ele nem pode te responder. VivoI Ah, não sei. Parece que ele me entende ou
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talvez só seja porque ele está vivo, sabe? Não é só uma caixinha preta de metal. Colega de trabalho Você é engraçado. Mas é sério, cara. Tem que parar de ficar conversando sozinho. A gente já trabalha em uma funerária. Não pega bem para nossa imagem. Inclusive, você sabe muito bem que o Jorge foi demitido por dizer que estava vendo espíritos aqui na empresa. Cena 02 - Ext. Pátio da Funerária Sementes do Amanhã. Hora do almoço. VivoI está sentado em uma mesa grande em um pátio aberto. Os lugares ao seu redor estão vazios. Na mesa, tem uma garrafa de suco de morango e uma lancheira. VivoI tira uma parte do pão que está em sua mão. Olha para cima e depois para os lados. Seu rosto fica pálido. Treme uma das pernas. Olha para os lados. Para. A mão que segura o pedaço de pão começa a tremer. Olha pra cima. Espera. Põe o pedaço de pão na boca e mastiga lentamente enquanto olha para os lados. Cena 03 - Ext. Rua em frente à Funerária Sementes do Amanhã. Fim de tarde. VivoI está na frente dos portões da empresa. Confere o horário em um dispositivo no punho. Olha para o outro lado da rua e avista Bili em cima do muro. VivoI atravessa a rua.
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VivoI Aí está você! Por onde cê teve hoje?........ Fiquei te esperando para almoçarmos juntos. Queria te contar o que planejei para hoje à noite. Estou com dúvidas ainda. Achei que você poderia me ... Bili voa, atravessa a rua até chegar na esquina e pousa em cima de um letreiro. VivoI se surpreende. VivoI Ei! Espera aí. Onde você está indo? O que aconteceu? Foi o pão? Eu juro. Da próxima vez, eu vou trazer algo melhor para você. VivoI caminha em direção ao letreiro. É uma placa fina de metal e vidro que está suspensa no ar. Nela, microleds geram uma propaganda luminosa dos serviços fornecidos pela funerária:
SEMENTES DO AMANHÃ o seu novo florescer VivoI Poxa, eu preciso conversar contigo. Por que você está fugindo?...... Espera, você não está fugindo. Você quer me mostrar algo? Por isso você não apareceu mais cedo? Para chamar minha atenção? Pássaro Bili voa. VivoI o segue. Cena 04 - Ext. Rua. Fim de tarde. Bili pousa sobre um muro. VivoI chega correndo e respira ofegante para recuperar o fôlego. Olha para o pássaro e
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depois ao redor. VivoI (incerto) Chegamos? VivoI se aproxima do muro e tenta chegar mais perto do pássaro. VivoI repara em uma tela digital presa à parede:
BOSQUE DA SAUDADE cultivamos a eternidade CEMITÉRIO VERDE VivoI O que tem aí dentro? Por que você me trouxe pra um cemitério? Bili voa para dentro do cemitério. Cena 05 - Ext. Entrada do Bosque da Saudade. Fim de tarde. VivoI anda até o portão, olha para dentro do bosque, empurra o portão e entra. Vai andando devagar olhando para as árvores tentando avistar Bili. Cena 06 - Ext. Bosque da Saudade. Fim de tarde. VivoI anda por uma estrada de lajotas brancas. Há árvores dos dois lados. VivoI (sussurra) Bili, cadê você? VivoI olha para as copas das árvores, depois para o chão perto delas e anda cada vez mais devagar para conseguir procurar melhor o pássaro. Nota que ao lado de cada árvore há placas de identificação e vê que mais à frente há algumas
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árvores com frutas. Caminha até elas. Para em frente a uma jabuticabeira e olha para a placa junto a ela. VivoI (V. O.) Plinia cauliflora. (olha para a árvore e volta a olhar a placa) Enzo L. Gama. (caminha e observa tanto as árvores quanto as placas) Malpighia emarginata, Fábio K. de Barros... Anacardium occidentale L., Daniel de Jesus ... Mangifera indica L., Octavia B. Franco... Psidium guajava, Sérgio A. de Nascimento... Eugenia uniflora, Silvia A. Gonzalez... VivoI para em frente a árvore de pitanga que está carregada de frutas. Estende o braço para alcançar uma das frutas. Para ao ouvir o canto de um pássaro. VivoI (vira a cabeça bruscamente) Bili? Bili voa entre as árvores e pousa em um pé de romã. VivoI corre para alcançá-lo. Cena 07 - Ext. Bosque da Saudade - Fim de tarde. VivoI para em frente a um pé de romã. Olha primeiro entre os galhos da árvore e depois para a placa de identificação na frente dela. VivoI Punica granatum. Danilo ... O vento sopra e mexe alguns galhos da árvore. VivoI se arrepia. Uma folha carregada pelo vento se prende ao rosto de VivoI. Wânio (V. O.) Oi. É Vivoum, certo?
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VivoI tira a folha grudada do rosto, contrai a boca para segurar um sorriso e puxa seu uniforme para conseguir ler a identificação que está bordada no macacão. VivoI Não. Escreveram errado. Dificilmente percebem que coloram um i maiúsculo no lugar. Mas o certo é Vivol. Com L. VivoI sorri e olha para o lado, em direção a voz. Franze a testa ao ver nada além de mais árvores. As folhas do pé de romã ao lado se mexem, e VivoI se aproxima dele. Wânio (V. O.) Bom, o meu se fala Vânio, mas é com W. VivoI olha para a copa da árvore de romã e continua analisando-a até conseguir ver o chão. Observa a placa de identificação dela. VivoI Punica granatum. Wânio M. Santos. Cena 08 - Int. Sala do Casal. Noite. VivoI fecha a porta e a tranca com dificuldade por conta do peso das sacolas em seus braços. Anda ligeiro até a sala. Lui, homem negro, 25 anos, baixo, usa dreads curtos, nota a movimentação, abaixa o volume da televisão e se vira para VivoI. Lui Onde cê tava, amor? Já está ficando tarde. Comecei a ficar preocupado... Achei que você ia se atrasar. VivoI (levanta as sacolas) Decidi passar no mercado antes. Fiquei com
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vontade de cozinhar pra gente. Lui A gente não combinou de sair pra jantar? VivoI Sim, mas me deu vontade de comer mousse. Achei que seria uma ideia boa, que você iria gostar. Lui levanta do sofá, anda até VivoI, dá um selinho nele, pega as sacolas de compras e sorri. Lui Tem razão. Não sei se ia aguentar ficar sem comer até o restaurante. Vamos fazer logo esse doce. VivoI Acho melhor eu ir cozinhando enquanto você toma banho para não atrasarmos muito. Lui Certeza? VivoI Uhum, vai lá, amor. Deixa que eu cuido da cozinha. Lui devolve as sacolas de compras, sorri balançando a cabeça e vai em direção ao banheiro. Cena 09 - Int. Cozinha da casa do Casal. Noite. VivoI põe as sacolas em cima do balcão, apoia-se sobre ele com os cotovelos, esfrega as mãos no rosto parando com elas sob o nariz e a boca, inspira e expira com força, olha para o lado em direção a uma caixinha preta de metal. Ao
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fundo, ouve-se o som do chuveiro ligado. VivoI cruza seus dedos na frente do rosto e apoia a cabeça neles. VivoI Boa noite, ARIEL Uma luz brilha na caixinha preta. ARIEL (assistente virtual) Boa noite, VivoI VivoI Mostrar receita de mousse com calda de romã. A caixinha projeta um holograma com a receita pedida. ARIEL Aqui está, VivoI. Cena 10 - Int. Cozinha da Casa do Casal. Noite. VivoI quebra os ovos, separa a clara da gema. Põe o chocolate branco para derreter no micro-ondas. Mistura as claras em neve com o creme de chocolate. Divide tudo em taças de sobremesa e leva à geladeira. Põe a romã sobre a tábua. Hesita com a faca. Corta com força. Acende o fogo. A água e a groselha que estão na panela começam a ferver. Divide a mistura em outra panela. Pega uma das romãs e põe as sementes na primeira panela e mistura. Pega a outra romã e põe as sementes dessa na segunda panela e mistura. Põe a calda de romã de uma das panelas sobre alguns dos mousses e põe a outra calda sobre os que sobraram. Guarda as sobremesas na geladeira. Encosta no balcão e passa as mãos nas coxas enquanto suspira profundamente.
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Cena 11 - Int. Cozinha da Casa do Casal. Noite. Lui entra na cozinha usando um macacão social preto, ainda com o cabelo molhado e a toalha na mão. Lui Estou quase pronto, amor. E aí? Como está? VivoI Ah, ainda não esfriou bem. Lui Mas já dá para experimentar? VivoI Bom. Dá. Lui esfrega as mãos bem ligeiro, balançando o corpo e sorri. Lui Então bora comer um pouco, né? Lui vai até a geladeira. VivoI entra na frente dele. VivoI Meu bem, deixa que eu pego os mousses. Eu sei quais estão melhores. VivoI se vira e devagar vai até a geladeira, abre-a e escolhe duas taças de mousse. Lui vai até o armário e pega duas colheres. No meio da cozinha, VivoI troca uma das taças por uma das colheres que estão com Lui. Lui (olha para VivoI) Feliz aniversário, amor. Lui dá uma colherada na sobremesa e come com gosto.
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VivoI (olha para Lui e sussurra) Feliz aniversário. VivoI pega um pedaço do doce e come.
[TELA PRETA] [som das taças caindo no chão]
Cena 07.1 - Ext. Bosque da Saudade - Fim de tarde. Wânio (V. O.) Bom, o meu se fala Vânio, mas é com W. VivoI olha para a copa da árvore de romã e continua analisando-a até conseguir ver o chão. Observa a placa de identificação dela. VivoI Punica granatum. Wânio M. Santos. VivoI fica em silêncio, dá um passo para trás e levanta as sobrancelhas. Wânio (V. O.) Tá olhando o quê? Silêncio. Wânio (V. O.) Vai me deixar aqui falando sozinho? VivoI E-Eu estou te ouvindo. Wânio (V. O.)
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E eu também estou te ouvindo. VivoI Só que não devia. Era para você estar morto. Morto e enterrado na urna que alimenta essa árvore. Wânio (V. O.) Desculpe meus modos. É que hoje está sendo um dia difícil para mim. VivoI suspira, revira os olhos, cruza os braços e balança a cabeça. VivoI Ai, nem me fale. Hoje me bateu um nervosismo por conta de um jantar que marquei com meu namorado e, pra me distrair, acabei seguindo um amigo até aqui, mas me perdi dele também. Wânio (V. O.) Que coisa, hein? VivoI Mas o que aconteceu contigo? Cê já não está morto? Wânio (V. O.) Aniversário de morte. VivoI Nossa, meus pêsames. Eu... não... Nossa... Sinto muito. Silêncio. VivoI
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Cê tá aí ainda? Está tudo bem? Wânio (V. O.) Estou aqui sim. Estou bem. É só que... Deixa pra lá. VivoI Se quiser conversar, estou aqui. Wânio (V. O.) Gentileza da sua parte. VivoI Vamos, deixa disso. Posso me sentar na grama aqui ao lado? Wânio (V. O.) Faça as honras. VivoI confere o chão, agacha-se e senta de frente para a árvore. VivoI Ok, conta. O que houve? Silêncio. Wânio (V. O.) Eu estou aflito nesses últimos dias. A cada primavera que passa sinto como se eu tivesse me esquecendo de quem eu fui em vida. Tenho medo de esquecer completamente quem eu sou. VivoI Nossa, mas por que você acha que está acontecendo isso?
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Wânio (V. O.) Não é natural que um espírito fique na Terra depois que morre. VivoI Mas por que cê ainda continua aqui? Wânio (V. O.) Não é como se eu quisesse. Ainda tenho uma questão em aberto aqui. Acho que é isso que ainda está me prendendo. VivoI Que questão é essa? Wânio (V. O.) Bom, eu tive um companheiro quando estava vivo, Nilo. Nós éramos muito próximos. Nos amávamos. Nós passamos muitos anos juntos. Na verdade, eu diria que vivemos os melhores momentos de nossas vidas um com o outro. Mas houve um acidente. Eu já não consigo me lembrar direito. Tinha muito barulho. Estávamos de carro. Acho que era um show. Isso, estávamos indo para um show. A música do carro estava alta, estávamos cantando o tempo todo. Mas daí teve uma luz forte. Não lembro ao certo. Uma buzina. Acho que fui eu que buzinei. Eu só lembro que perdemos o controle. Não sei se a pista estava molhada ou se foi outra coisa, mas sofremos um acidente. Tinha caco de vidro por toda parte. E sangue. Tudo estava vermelho. Eu não conseguia me mexer. Eu não conseguia alcançar o Nilo. Ele não me ouvia também. Fiquei desesperado. Eu queria abraçar ele, pedir desculpa, dizer que ia
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ficar tudo bem, mas eu não conseguia me mexer. Quando eu recuperei a consciência, eu já estava aqui neste cemitério. Enterrado nessa cápsula. Dentro dessa sementeurna, sentindo meu corpo se decompondo lentamente e se transformando nessa planta. VivoI Nossa ... eu ... é... Não sei nem o que dizer. É ... O que aconteceu com o seu namorado? Wânio (V. O.) Eu fiquei louco, perdido, desesperado. Levei anos para perceber que o Nilo também tinha morrido naquele dia, que ele estava enterrado ao meu lado. VivoI se apoia na grama e inclina o corpo para ler a placa de identificação da árvore ao lado. VivoI Danilo, então o Nilo é o Danilo, seu namorado? Wânio (V. O.) Sim, isso mesmo. É ele. Meu amor. VivoI Mas e agora? O que aconteceu com o Danilo? Ele conseguiu ir para o outro plano? Wânio (V. O.) Assim como eu, ele também está preso no seu túmulo. Bom, acho que você pode falar com ele também... Nilo, você está aí? VivoI fica em silêncio, olha atentamente para a árvore do lado. Folhas balançam com a brisa.
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Danilo (V. O.) Oi, amor. Oi, VivoI. VivoI sorri e acena para a árvore. VivoI Oi, Danilo. Prazer em te conhecer e meus pêsames também. Wânio estava contando a história de vocês. Danilo (V. O.) Não pude deixar de ouvir vocês conversando. Nunca tinha visto alguém que conseguisse nos ouvir, mas também não quis me intrometer. Enfim, obrigado por parar para conversar. VivoI Que isso, não precisa agradecer. Eu também estava precisando conversar com alguém. Mas, então, sobre vocês, quer dizer que os dois estão aqui presos nesse cemitério de árvores? Mas vocês estão juntos. Não conseguem se despedir? Danilo (V. O.) Não conseguimos nos despedir em vida. Foi tudo tão de repente. Não pude dar nem sequer um abraço. Não se abandona assim o amor da sua vida, não tem como deixar isso para trás. Ainda mais sem se despedir direito, sem dar sequer um beijo. Eu não aguentaria, não conseguiria partir. Não desse jeito. Por isso ainda estamos presos aqui. Wânio (V. O.) Meu jovem, não é a mesma coisa. Não dá para se dizer adeus assim, de dentro de um
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túmulo. Ainda mais para alguém que você ama. Não tem como substituir um beijo. Como posso dizer adeus se nem posso dar um abraço? VivoI Então vocês estão condenados a isso. Vocês estão presos na terra, condenados a passarem o resto da eternidade um ao lado do outro sem poderem se despedir propriamente. Wânio (V. O.) E também estamos perdendo nossas memórias. Tenho medo de quando chegar o dia em que esqueceremos um do outro. VivoI Não, isso não pode acontecer. Se esquecerem um do outro, também esquecerão o porquê de ainda estarem aqui. Aí sim não haverá saída. Se vocês ainda se lembram, então ainda existe um caminho. Wânio (V. O.) Mas não temos como fazer nada presos aqui. VivoI Não, você não pode desistir. Nós temos que dar um jeito nisso. Danilo (V. O.) Só de você ter parado para nos ouvir já é o bastante. VivoI Não, eu não posso ficar aqui parado vendo
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vocês nessa situação. Temos que pensar em alguma coisa. Danilo (V. O.) Só que não tem nada que possamos fazer. Wânio (V. O.) Nilo, talvez a gente possa. Danilo (V. O.) Não, amor, já falamos sobre isso. VivoI Isso o quê? Tem algo que eu possa fazer? Wânio (V. O.) É que talvez de... Danilo (V. O.) Amor... VivoI Danilo, deixa ele me contar. Quem sabe eu possa ajudar? Danilo (V. O.) ok, vai, diga. Wânio (V. O.) Eu e Nilo não conseguimos deixar esse plano porque não conseguimos nos despedir direito e só não conseguimos isso porque não temos corpos, mas se conseguirmos alguém que nos empreste, só por alguns instantes, nós iríamos conseguir partir. VivoI Então vocês só precisam de dois corpos? 44
Por que vocês simplesmente não tomam os corpos dos dois primeiros que passarem por aqui? Danilo (V. O.) E forçar dois desconhecidos a se beijarem? Wânio (V. O.) Sem contar que não é simples assim, só pegar alguém que passe na nossa frente. Se desse certo, já teríamos feito. Infelizmente só tem um jeito de sairmos dessas árvores e entrarmos em outros corpos. VivoI Como assim? Wânio (V. O.) Para podermos sair de nossas árvores e entrarmos no corpo de alguém é preciso que antes a pessoa tenha comido alguma de nossas frutas. Isso cria um tipo de conexão entre nós. Então, primeiro a pessoa teria que comer uma das minhas romãs para que depois eu pudesse me conectar com ela. E por isso é tão difícil. O pessoal tem receio de comer frutas de árvores que crescem em cemitérios. Danilo (V. O.) Ainda mais quando a própria árvore é um caixão. Não tem nenhuma probabilidade de algum dia aparecerem duas pessoas aqui dispostas a comerem nossas romãs para criarmos um elo, para conversarmos, contarmos nossa situação e tudo mais.
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VivoI Eu trabalho com essas urnas. Eu posso garantir que as frutas que dão nessas árvores são mais seguras e saudáveis que a maioria das coisas que se vende nos mercados. Danilo (V. O.) Sim! Mas as pessoas ainda são muito supersticiosas. VivoI olha para o céu, confere a hora no dispositivo no punho. VivoI Sobre essa possessão, como ela funciona? Wânio (V. O.) Não, eu não usaria essa palavra. Ela é muito forte. É como se nós tivéssemos tomando o corpo de outra pessoa à força, não é isso que queremos. Eu diria que é mais como se a pessoa nos convidasse, como hóspedes. Só ficaríamos por alguns minutos, o suficiente para dar um tchau. VivoI Mas e o que acontece com o dono do corpo? Wânio (V. O.) É como se a pessoa estivesse dormindo. Tipo um sonâmbulo. Alguém que está dormindo, mas ainda consegue caminhar, e a pessoa pode acordar a hora que quiser. VivoI confere a hora no dispositivo. VivoI Pessoal, já está ficando tarde e eu combinei
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com o Lui de sair para jantar. Não quero me atrasar, mas acho que amanhã consigo vir aqui com ele. Talvez possamos ajudar vocês. Danilo (V. O.) Espera, como assim nos ajudar? VivoI Bom, vocês querem encontrar duas pessoas que se conhecem e se amam, que não seria estranho que elas se beijassem e que topariam comer as romãs. Acho que eu e Lui somos a melhor opção de vocês. Então posso trazer ele aqui amanhã, explicar tudo que aconteceu, entender melhor como isso funciona. Talvez de certo. Podemos fazer vocês finalmente terem a oportunidade de dizer adeus um ao outro. Danilo (V. O.) Sério? Isso ... isso seria incrível! Wânio (V. O.) Obrigado mesmo, VivoI. Você não sabe o quanto a gente é grato por isso. VivoI levanta, bate as mãos pelo corpo para tirar a grama e a terra. VivoI Não precisa agradecer, pessoal. Eu acho que só estou fazendo o certo, sabe, para ajudar vocês. Danilo (V. O.) Sério, obrigado. Mas é melhor mesmo você já ir indo para não se atrasar para o jantar. Vejo
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vocês amanhã. VivoI Nossa, sim, seria triste perder a hora no meu aniversário de namoro. Danilo (V. O.) Como assim aniversário? VivoI Sim, hoje eu e Lui vamos comemorar mais um ano juntos. Danilo (V. O.) Mas hoje é o dia do nosso aniversário de morte. Isso não pode ser por acaso. Coincidências assim não acontecem. Deve ter um motivo. VivoI Você acha? Mas não será que... Danilo (V. O.) Não, não podemos deixar essa data passar. Seria tão incrível se acontecesse hoje. Seria, não sei, romântico talvez. Os números estão ao nosso favor. VivoI Mas não tem como ser hoje. Eu preciso voltar para casa. Sem contar que nem eu e nem o Lui iríamos querer passar nossa noite aqui. Sem ofensas. Danilo (V. O.) Mas vocês não precisam voltar aqui hoje. Você pode levar as romãs e comerem elas onde se
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sentirem mais confortáveis. VivoI Seria uma opção, mas eu não conseguiria convencer o Lui a fazer isso sem vocês lá. Wânio (V. O.) Você não precisa fazer isso sozinho. Se vocês comerem a romã, apenas irão estabelecer um vínculo com a gente. Isso nos permitiria conversar, mesmo distante. Então poderíamos falar com o Lui todos juntos e, somente se ele topasse, iríamos poder continuar. VivoI Sendo assim, talvez seja possível. Poderíamos conversar todos juntos. Daí vamos poder acabar com o problema que ainda prende vocês na terra e ainda seria em um dia muito simbólico para todos. Wânio (V. O.) Então você topa fazer isso por nós? VivoI Sim, mas é óbvio que eu faria. Eu devo comer a romã agora ou levar para casa e dar para meu namorado primeiro? Wânio (V. O.) Não, para funcionar, você precisa fazer exatamente isso aqui.
[TELA PRETA] [som das taças caindo no chão]
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Cena 12 - Int. Cozinha da Casa do Casal. Noite. Lui abre os olhos lentamente, olha para baixo e fica alternando analisar a palma e o dorso de suas mãos. Olha para as taças de mousse quebradas no chão. Levanta a cabeça lentamente olhando o corpo do VivoI dos pés a cabeça. Lui Deu certo. VivoI (dá um sorriso malandro) Eu disse pra você confiar. Lui se aproxima de VivoI e passa a mão no rosto dele e acaricia o cabelo. Lui (segurando o sorriso) Depois de tanto tempo, finalmente posso te tocar de novo. VivoI Eu só vou precisar me acostumar com você sendo o mais baixinho agora. Lui Te amo. VivoI Pra sempre.
Se beijam intensamente.
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Se beijam intensamente.
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Se beijam intensamente.
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Se beijam intensamente.
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Cena 13 - Int. Cozinha da casa do Casal. Noite Lui e VivoI terminam o beijo. Lui afasta o rosto e começa a admirar o novo corpo do seu amor. Lui franze o cenho. Lui Já não era para ter acontecido alguma coisa? VivoI Como assim? Lui Sei lá. Achei que quando a gente se beijasse ia aparecer umas luzes, que talvez tocasse uma música celestial. Até cheguei a considerar que nossos corpos iam começar a flutuar. VivoI Não, não tem nada disso. Lui Nossa que sem graça, mas, ok, né... Lui sai dos braços do VivoI, ergue os ombros em desdém e anda pela cozinha olhando para o cantos. Lui Então, o combinado era possuir os corpos deles para nos despedirmos. O que a gente faz agora? Espera? VivoI (rindo) Não... Lui Tá, então o que a gente faz agora pra sair desses corpos? VivoI Nada, a gente não faz nada. Na verdade,
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eu vou tomar um banho e queimar esse uniforme ridículo. Não quero ver nada que me lembre aquele cemitério. Acho que também vou mudar esse cabelo. Não tem nada a ver comigo. Lui Como assim? Por que você vai fazer isso com o cabelo do VivoI? VivoI Esse não é mais o cabelo do VivoI. É o MEU cabelo. Lui Como assim? Do que você está falando? Por que você vai fazer isso? Já vacilamos em nem pedir permissão para possuirmos os corpos e você ainda vai fazer isso? Para quê? Esse cabelo nem vai ser seu. Estamos indo para outro plano. VivoI Não estamos indo a lugar nenhum. Lui Mas você falou que... Wânio, o que a gente fez? VivoI Nada. Lui Mas e agora? O que a gente faz? VivoI Nada. Apenas... aproveite seu novo florescer.
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Ondina
Gabriel Maschio
01 – EXT. PRAIA – DIA A areia da praia, a onda, o mar e o céu, onde pássaros voam. 02 – EXT. COSTA – DIA Dois barcos brancos sobre o azul. Navegam próximos, em paralelo: STO. ANTÔNIO e CONCEIÇÃO. Em cada um, há dois pescadores. PESCADOR 01 e PESCADOR 02 estão no CONCEIÇÃO, enquanto, no STO. ANTÔNIO, estão PESCADOR 03 e MANUEL, vinte e poucos anos, branco, esguio, sem barba, com o corte de cabelo vencido. Usa sandálias, camisas desbotadas e calças que eram de seu pai. Manuel admira o horizonte, onde os pássaros batem as asas e o céu se encontra com o mar. Cenho franzido, olhos ofuscados pelo sol. Volta o olhar para a costa: seus pais já estão miúdos, não os reconhece mais. É a primeira?
PESCADOR 01
MANUEL (confirma com a cabeça) É sim. PESCADOR 01 Logo a tua casa vai ser no mar e a viagem vai ser visitar eles. Manuel se recosta sobre o barco, pega de dentro do bolso um palheiro e uma caixinha de fósforos. Acende um fósforo, mas o respingo de uma onda o apaga. Todos os outros 03
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pescadores gargalham. PESCADOR 02 Tá aí a primeira lição do alto-mar! Manuel desiste, joga o fósforo apagado no mar e guarda os objetos no bolso sem rir. 03 – EXT. ALTO-MAR - DIA Os dois barcos passam sobre a água enquanto os pescadores arrumam os instrumentos de trabalho, separando as redes, fazendo nós para remendar alguns buracos e enfileirando os baldes. Manuel imita as ações dos outros pescadores, que trabalham numa sinfonia afinada. Pescador 03 (enquanto trabalham) O filho do Nicanor! Sou eu.
Manuel
Pescador 03 Homem bom. Pescador melhor ainda. É o que dizem.
Manuel
Pescador 03 Tu não aprendesse com ele? Aprendi, ué!
Manuel
Pescador 03 Então deve ser bom também. É o costume.... Te aceitei porque ele pediu. Disse que tu tava com bastante vontade de trabalhar... Manuel não responde, continua a arrumar a rede.
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Pescador 03 (cont.) Chega uma hora que tem que passar adiante. Deixar os filhos trabalhar pra nós. Manuel Meu pai ainda é novo. Eu que quis começar cedo mesmo. Pescador 03 Pra ajudar na casa. Bom! Manuel desvia o olhar. 04 – EXT. ALTO-MAR – ANTES DO DIA NASCER Agitação nos dois barcos. A luz da lua banha os pescadores. Eles estão prontos para começar a pesca e trocam instruções entre si. Ao sinal do Pescador 03, todos descem a rede juntos. Dois seguram um lado da rede de um barco, e os outros dois, do outro. Quando a rede está submersa, todos amarram suas extremidades no barco para fixá-la. Começam a remar enquanto a rede inicia o arrasto. 05 – EXT. EMBAIXO D’ÁGUA – ESCURO A rede dança entre os dois barcos, capturando peixes, moluscos, conchas e objetos estranhos. 06 – EXT. ALTO-MAR – SOL RACHANDO Os 04 pescadores descamisados puxam a rede para cima. Tarefa árdua. Estão todos cansados e suados depois de repetirem o mesmo movimento, o que parecia acontecer centenas de vezes em longas horas. Gritam instruções um para o outro. Manuel é o mais exausto de todos. Solta uma mão da rede para limpar a testa de suor. A rede escorrega um pouco do seu lado. Pescador 03 SEGURA! PUXA! Manuel volta a puxar a rede com as duas mãos.
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Os pescadores fixam a rede nos barcos através de amarrações para começar a seleção de pescados. Manuel não se sente bem. Tonteia. Está visivelmente fraco. Dá um passo para trás. Senta-se no banco da popa. Pescador 03 Anda, Manuel! Ajuda aqui, anda! Manuel não responde, abaixa a cabeça. Os sons ao seu redor se tornam turvos e distantes. Não consegue distinguir o que os pescadores estão conversando. Um savacu pousa na amurada do barco. Manuel se joga contra a amurada para espantá-lo e titubeia, fica pendurado com os braços para fora do barco, com o corpo mole. Encara o mar abaixo do barco. Não há nada, só azul. Levanta os olhos para o horizonte. Vê um reflexo de luz na água, um vulto branco formando espuma na água ao longe, do tamanho de um corpo humano. Força os olhos, mas o que havia visto desaparece. Ainda atordoado, Manuel não percebe quando dois braços saem da água e puxam os seus braços pendurados como iscas para o fundo do mar. 07 – EXT. EMBAIXO D’ÁGUA – DIA Manuel luta para se desvencilhar dos braços que o puxam. Já estão em relativa profundidade. As mãos fortes relaxam e o soltam. Manuel abre os olhos e enxerga um ser com tronco humano (cabeça careca, olhos escuros sem pupilas, lábios cor-desangue, pescoço, ombros, braços, mãos, mamilos, abdômen) e cauda de peixe (escamosa, cor-de-rosa). Possui grandes manchas pretas escamosas no topo da cabeça até o nariz, no pescoço, nos ombros e nas costas. Move-se com agilidade sobre-humana. O ser convida Manuel, com um sinal de mão, a seguilo. Manuel está em choque. O ser insiste, faz sinal com a
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cabeça. Manuel expulsa todo o ar restante em seus pulmões e inicia sua volta à superfície para respirar. 08 – EXT. ALTO-MAR – DIA Manuel irrompe a água em sua volta à superfície e puxa o ar para seus pulmões com avidez. Os pescadores gritam algo indistinguível. O Pescador 03 o ajuda a entrar no barco. Ao mesmo tempo em que a água que trouxe consigo espirra no fundo do barco, os sons ao seu redor deixam de ser turvos e distantes. Pescador 03 Tá maluco, rapaz? O que que eu ia dizer pro teu pai? Não vou carregar corpo nenhum não! Pescador 01 Que que aconteceu, homem? Pescador 02 Vai ver ele só foi dar um mergulho mesmo. Manuel (sem fôlego) Eu fui puxado! Anda! A gente precisa sair daqui! Tem um monstro aqui embaixo! É o quê?
Pescador 03
Pescador 01 (gargalhando) Monstro! Pescador 02 (preocupado) Monstro? Manuel Metade gente, metade peixe. Me puxou pro fundo. Uns dez metros de fundura. É melhor a gente sair daqui rápido.
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Pescador 02 É a Ondina! Nunca ouviu falar? Dizem mesmo que vive por aqui. Ela quer te levar pra fazer amor! O Pescador 02 faz um gesto obsceno com as mãos e o quadril num vai-e-vem desengonçado. O pescador 01 gargalha ainda mais alto. Pescador 03 Deixa de bobiça! O menino tá quase dez horas sem comer. Já tá vendo coisa! Tava tonto e caiu. Manuel! Levanta logo e ajuda a remar. Vamos embora que já pegamos o suficiente. Mais um peixe e o barco afunda. Manuel se levanta e pega o remo. Antes de iniciar, olha para trás à procura de Ondina, esperançoso. Nada à vista. Volta os olhos para a frente e rema. 09 – EXT. BAÍA NORTE, FLORIANÓPOLIS – DIA Os dois barcos navegam em sincronia. Manuel se espanta ao avistar a Ponte Hercílio Luz. Os dois barcos passam por debaixo da ponte. 10 – EXT. PORTO DE FLORIANÓPOLIS – DIA Atividades portuárias. Embarcações atracando, marinheiros puxando a vela, burocratas conferindo cargas, estivadores fazendo descargas. Cargas e descargas de madeira, café, farinha, açúcar, cachaça, óleo de baleia, frutas e peixes. Os dois barcos se aproximam do cais para a descarga. Manuel e Pescador 02 desembarcam. Pescador 01 e Pescador 03 lhes passam os baldes de pescados. Os baldes estão transbordando e sendo carregados por Manuel em direção à Alfândega. Manuel é só mais um no meio da multidão. Suspira e observa
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o movimento da área portuária de Florianópolis: pessoas de todos os tipos circulam por entre barracas e comércios, bares, pensões. Há um palco montado no meio do largo, mas nenhuma apresentação em progresso. Os outros pescadores o alcançam. Pescador 03 Vamos que agora a bucha é vender! Traz os baldes. 11 – EXT. LARGO DA MATRIZ - DIA O grupo passa de barraca em barraca para oferecer os pescados. Todos carregavam os baldes, menos Pescador 03, que fazia a barganha. Pescador 03 Fresquinhos! Pegamos agorinha ali na Baía das Tijucas! Comerciante 01 Quanto tem aí? Pescador 03 Quanto quiser! Se quiser mais, a gente volta e pesca! 12 – EXT. LARGO DA MATRIZ - DIA COMERCIANTE 02 aperta os olhos de um peixe apresentado nas mãos de Pescador 03. Comerciante 02 É de hoje mesmo? Pescador 03 Capaz de ainda tá respirando um tantinho! 13 – EXT. LARGO DA MATRIZ – DIA Comerciante 03 Não, não. Comprei esses aí hoje de
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manhãzinha lá na Freguesia e ainda não vendi nada! Pescador 03 Não vendeu por isso! Tão com cara de ontem. Parece até que pegaram na Lagoa. Olha esses aqui, olha! Pegamos ali em Anhatomirim. É venda na certa! 14 – EXT. LARGO DA MATRIZ – DIA Os baldes estão quase vazios e Manuel já não carrega mais nenhum. O grupo se direciona a um EXPORTADOR, muito bem vestido, para tentar vender os últimos. Manuel assiste a um MALABARISTA, preto, que se apresenta em frente ao palco instalado no largo. Os transeuntes continuam a passar como se isso não lhes fosse novidade, mas Manuel se entretém. Manuel olha em direção ao seu grupo e nota que os pescadores estão tão concentrados na conversa com o Exportador que nem percebem sua ausência. Manuel observa o malabarista: as mãos ágeis, os braços fortes, o sorriso. Os pescadores se aproximam de Manuel. Pescador 03 Tá feito! Tudo vendido. Sorte de principiante, hein! Não é sempre assim, não se acostuma. Tá aqui a tua parte. Pescador 03 entrega algumas cédulas e moedas de cruzeiro a Manuel. Pescador 03 Aproveita a noite. Partimos amanhã cedinho!
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Os três pescadores partem juntos em direção às ruas. Manuel olha para as moedas em sua mão, escolhe a de menor valor e deposita dentro da boina virada de cabeça para baixo na frente do malabarista, que pisca o olho em retribuição. Manuel caminha em direção às ruas ulteriores à Beira-Mar. 15 – EXT. RUA CONSELHEIRO MAFRA – DIA Manuel caminha pela rua descobrindo comércios, prédios públicos, bares e inferninhos. MERETRIZ, meia-idade, roupas rotas, aborda Manuel. Meretriz Chegando agora, galego? Manuel desvia sem responder e continua a caminhar. Em uma esquina está VICENTE, vinte e poucos anos, camisa jogada sobre o ombro, a calça baixa mostrando mais do que devia, um cigarro virgem na mão, recostado numa parede suja. Seus olhares se encontram por alguns segundos. Vicente sorri de canto de boca. Manuel caminha em sua direção, mas passa reto. Vicente o observa. Vicente Ô, meu querido! Tem fogo? Manuel se volta para Vicente. Tenho.
Manuel
Manuel vasculha o bolso, encontra a caixa de fósforos e entrega a Vicente. Vicente Isso aqui tá encharcado, homem!
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Manuel Ah, eu tive um acidente no caminho... Vicente No caminho de onde? De onde vem esse pescador? Manuel Nem de perto nem de longe. Como tu sabes que eu sou pescador? Pelo seu cheiro...
Vicente
Manuel Eu podia ser comerciante. Vicente Não sapecado do sol assim. Vicente passa a mão no ombro de Manuel, que se sente desconfortável e olha ao seu redor. Vicente (cont.) Ninguém se importa.... Quer subir comigo e procurar por um fogo? Manuel olha para a portinha escondida ao dobrar a esquina e consente pelo silêncio. 16 – INT. ESCADA DO INFERNINHO – DIA Manuel sobe a escada que liga a portinha exterior a um corredor apertado com algumas portas. Vicente conduz o caminho sem olhar para trás e entra na última porta. 17 – INT. QUARTO DE VICENTE – DIA Vicente tranca a porta após Manuel entrar. O quarto é pequeno e simples: uma cama, uma banqueta, um roupeiro e uma janela com uma cortina feita de um lençol vermelho. Vicente coloca o cigarro em cima da banqueta, onde uma caixa de fósforos repousa.
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Pra depois.
Vicente
Vicente se senta na cama e observa Manuel inseguro. Resolve se levantar e se aproximar de Manuel, que não recusa a aproximação. Os dois se encaram, sem desviar o olhar. As bocas se aproximam. Vicente beija o canto da boca de Manuel. Manuel segura o corpo de Vicente contra o seu. Desabotoa a calça de Vicente e a puxa para baixo. Não se contendo, joga Vicente em cima da cama e monta em cima, explorando o corpo de Vicente com sede e pressa. 18 – INT. QUARTO DE VICENTE – NOITE Vicente, nu, joga a bituca do cigarro pela janela. O lençol da cama está todo bagunçado sob Manuel, que observa Vicente, também nu. Vicente olha pela janela. Vicente Se tu for bem aqui no cantinho, dá de ver o mar. Uma parte. Mas não dá de ver nenhuma Ondina não. Nunca vi. Não é coisa da tua cabeça? Nunca naveguei pelo mar também. Manuel Nunca? Nenhum cliente seu nunca te levou pra dar uma volta? Vicente ri. Vicente Claro que não. E nem você vai me levar. Manuel Quem disse? Tu ficaria bonito remando num barco. Melhor que não mesmo. A Ondina com certeza te carregaria pra longe de mim.
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Vicente descarta a fala de Manuel com um movimento da cabeça e se senta na cama ao lado de Manuel. Vicente É assim que você pretende me pagar? Com um passeio no mar? Manuel fecha a cara. Manuel Não. Não pretendo voltar pro mar. Vicente E vai ficar aonde? Manuel Tem algum quarto sobrando aqui? Vicente gargalha. Vicente Tá falando pra valer? Manuel Se não é ruim pra ti, não vai ser pra mim. Vicente para de sorrir. Mas é ruim.
Vicente
Manuel Não pode ser tão ruim. Tu pode fazer o que der na telha. Vicente Tá certo, então! O Luiz do quarto da frente saiu essa semana. Disse que consegue ganhar a mesma coisa fazendo malabarismo na rua. Quero ver até quando... Mas eu posso tentar te colocar no lugar dele.
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Te agradeço. Vou mijar.
Manuel Vicente
Vicente sai do quarto sem colocar nenhuma roupa. Manuel se levanta e procura suas roupas. Encontra-as no chão, cheira-as e resolve não vesti-las. Vai até o roupeiro do quarto e abre as portas. Está quase vazio: poucas camisas e uma calça. Dobrado no fundo está algo cor-de-rosa, que Manuel descobre ser um vestido ao desdobrar. Vicente retorna ao quarto e encontra Manuel com o vestido na mão. Manuel Tem alguma mulher que mora aqui? Vicente sorri. Não... É meu.
Vicente
Manuel se espanta. Teu?
Manuel
Vicente Veste! Quero ver como fica. É da cor da Ondina, não é não? 19 – EXT. CONSELHEIRO MAFRA – NOITE Manuel e Vicente desfilam pela rua. Os dois estão de vestido e sandália. Manuel com o vestido cor-de-rosa e Vicente com um preto. Vicente está fumando. A rua está movimentada. Os bares estão cheios, e as luzes dos inferninhos, acesas. As pessoas notam e apontam para os dois com tom de curiosidade, deboche e desejo.
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Desconhecido As madames estão sozinhas? Manuel se intimida, mas Vicente está no comando e resolve ignorá-lo. Manuel Como que tu sabe quem quer? Vicente Por instinto. Como tu sabia que eu queria quando me viu na rua? Manuel sorri. 20 – EXT. PALÁCIO ROSADO – NOITE Vicente continua a mostrar as ruas do centro para Manuel. Um conhecido de Vicente o reconhece do outro lado da rua. Conhecido Olha a Vivi, olha! Tá bonita! Quem é essa aí? Vicente acena. Vicente Tá boa, querida? Essa aqui...? É Ondina. Mas não é pro teu bico! Todos riem e seguem adiante. Manuel Quem que mora nesse castelo aí? Vicente Esse é o palácio do governador. Manuel Tu sabe quem é o governador? Vicente Ah, é um dos Ramos.
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Um dos?
Manuel
Vicente É, não lembro qual. Tem vários. Vai passando de pai pra filho. Igual a pesca na tua família. Manuel E teu pai? Também fazia o que tu faz? Vicente muda o tom. Vicente Não... Ali é a igreja. A gente não passa por ali em respeito. Vamos dar a volta. 21 – EXT. LARGO DA MATRIZ – NOITE O largo está vazio. Só o palco adormece no sereno. Manuel e Vicente se aproximam do palco, no centro. Vicente Dá uma respirada aqui. Se depois tu mudar de ideia, sabe onde me encontrar. E, se eu não tiver ocupado, pode ir dormir comigo. Tá certo.
Manuel
Vicente beija Manuel nos lábios e caminha em direção às ruas. Manuel senta no palco subindo com o apoio dos pulsos. Levanta o vestido e retira de dentro da cueca um palheiro e uma caixa de fósforos. Acende o palheiro e fuma. Manuel observa o mar. Há pouca atividade no porto. Quando termina, desce do palco, joga a bituca no chão e pisa em cima para apagá-la. DESCONHECIDO 02 se aproxima vindo do porto. Pela vestimenta, parece um portuário.
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Desconhecido 02 Boa noite, madama! Quer provar um pouco do mar? Manuel Eu já conheço o gosto do mar. O homem mostra uma moeda. Desconhecido 02 E isso aqui, conhece? 22 – EXT. ATRÁS DA CATEDRAL – NOITE Manuel ajoelhado na frente do Desconhecido 02. Depois de terminar, Desconhecido 02 abotoa a calça e dá as costas a Manuel. Manuel se levanta com o apoio da parede. Desconhecido 02 Achei que vocês não faziam perto da igreja. Manuel Quem é que vai contar pro padre? Tu? Desconhecido 02 fica sério e sai. 23 – INT. VENDA DA ESQUINA – DIA Manuel entra na venda. Um grupo de senhores jogando dominó numa mesa ao canto começa a cochichar. Manuel se dirige ao DONO DA VENDA atrás do balcão, senhor com cabelo ralo, camisa aberta, palito na boca e um pano de louça sobre um dos ombros. Tem fumo? Não tem.
Manuel Dono da Venda
Manuel E aqueles fumos ali atrás de ti são o
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quê? Dono da Venda Pra ti não tem. O grupo de senhores na mesa murmura em concordância. Manuel, contrariado, sai da venda. 24 – EXT. CONSELHEIRO MAFRA –DIA Manuel caminha na rua à procura de outra venda. Um POLICIAL esbarra nele propositalmente e o aborda, com a voz grave. Policial Esqueceu o vestido hoje, foi? Manuel dá um passo atrás. Policial Quê que é? De dia, tu não é tão metida, né? Manuel muda de direção e caminha de volta, alerta. 25 – EXT. ATRÁS DE ALGUM PRÉDIO – NOITE Desconhecido 03 está de quatro e Manuel está atrás dele ajoelhado com o vestido levantado até a cintura. Depois de terminar, Manuel se levanta, abaixa o vestido e ajuda o Desconhecido 03 a se levantar. Desconhecido 03 dá um soco com muita força no rosto de Manuel e o força a ficar de quatro para ele. Manuel está de quatro para Desconhecido 03, mas demonstra desconforto com sua posição. Desconhecido 03, que é mais forte do que Manuel, não se importa com seu desconforto. Manuel tenta se soltar das mãos do Desconhecido 03. Me solta...
Manuel
Desconhecido 03 Cala a boca. Tu não quer ser
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mulherzinha? Então cala a boca. Desconhecido 03 termina, abotoa a calça e chuta o estômago de Manuel, sua genitália e seu traseiro. Desconhecido 03 Seu imundo! Desconhecido 03 sai correndo. 26 – EXT. PORTO DE FLORIANÓPOLIS – AMANHECENDO Manuel tropeça até o guarda-corpo do cais. Seu rosto está rosado e inchado, sua boca sangrando. Recosta-se sobre o guarda-corpo e escorrega até o chão. Manuel observa o mar e o horizonte. 27 – EXT. PORTO DE FLORIANÓPOLIS – DIA Vicente corre ao encontro de Manuel, que está desacordado no chão e encostado no guarda-corpo do cais. Transeuntes ignoram os dois. Vicente consegue acordar Manuel e o ajuda a se erguer. Vicente coloca um dos braços de Manuel sobre seus ombros e eles caminham em direção às ruas. 28 – INT. QUARTO DE VICENTE – NOITE Manuel está deitado na cama, e Vicente está do seu lado, fazendo cafuné na sua cabeça. Manuel parece ter recebido cuidados. Os dois se encaram. Manuel Vamos fugir daqui? E ir pra onde?
Vicente
Manuel A gente pega um barco, eu te ensino a remar. Eu pesco a nossa comida e a gente navega por aí.... Sem destino.
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Não daria certo.
Vicente
Manuel Por quê? Eu gosto de ti e eu sinto que tu gosta de mim. Boiar por aí... sem dar satisfação pra ninguém. Vicente Eu não dou satisfação pra ninguém! Não daria certo, querido. Aqui é o meu lugar. Da mesma forma que você sente o mar como casa, eu sinto a terra, a noite. Eu tô sempre aqui pra quem é do mar. Um porto de carinho pra quem traz um navio de carência. Manuel Um porto de safadeza... Vicente Também! Se é isso o que vocês querem... Manuel Como tu consegue? Vicente desvia o olhar para longe. Vicente É o que é. Não gosto de pensar muito sobre isso. Eu não sei fazer outra coisa. Se eu soubesse pescar como tu, já taria bem longe daqui, conhecendo lugares de que nem nunca ouvi falar, aceitando todas as propostas de trabalho, do mesmo jeito que eu já faço agora. Manuel Eu não gosto de pescar. Só aprendi
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porque meu pai queria me ensinar e era o único jeito de eu ficar longe de casa. Vicente Nem sempre longe de casa é melhor. Não quando se é um filhinho da mamãe. Pois pra mim, é!
Manuel
Vicente Volta pra casa, Manuel. Deixa tua mãe cuidar de ti e deixa ela escolher uma mulher pra tu casar e cuidar de ti. Ainda é melhor que isso aqui. E, de vez em quando, vem me visitar, matar a saudade. Manuel olha pro chão, pensativo. Vicente Fica aí, descansa. Aqui tem a maresia da janela pra te fazer melhor. Vou usar teu quarto. Aproveita e põe os pensamentos no lugar. Vicente beija a testa de Manuel e sai. 29 – INT. QUARTO DE VICENTE – AMANHECENDO Manuel está diante da janela, no canto, observando a fresta de mar disponível na vista. A cortina de lençol vermelho o engole. 30 – EXT. PORTO DE FLORIANÓPOLIS – DIA As atividades no porto estão intensas. Manuel tenta convencer um MARINHEIRO de algo, mas o som está abafado pelas vozes e pelos barulhos de caixas e pelo mar. Os ombros caídos e a cabeça baixa de Manuel dão a entender que não foi bem-sucedido.
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Manuel avista o Exportador que conversara com o seu grupo de pescadores dias atrás. Aproxima-se dele e o aborda. Manuel Bom dia! Como vai o senhor? Eu gostaria de humildemente oferecer os meus serviços. Eu sou pescador. Um bom pescador. Exportador Não tô precisado. Exportador tenta se desvencilhar de Manuel, mas Manuel insiste. Manuel Posso fazer qualquer outra coisa também. Eu sou forte. Sei cozinhar alguma coisa. Posso limpar. Posso fazer o que o senhor quiser! Exportador Meu rapaz, me dá licença? Manuel!?
Pescador 02
Pescador 02 surge da embarcação do Exportador ao notar Manuel. Manuel e Exportador se viram em sua direção. Pescador 02 É o Manuel mesmo! A gente achou que tu tava é morto uma hora dessas! Pescador 02 gargalha. Exportador Tu conhece esse rapaz? Pescador 02 Ô! A gente trabalhou junto e tudo! A minha casa fica três ruas pra dentro
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da casa dele. O que aconteceu contigo, homem? Manuel Eu me perdi. Mas agora quero voltar pra casa. Pescador 02 A gente tá indo pra mais longe, mas é caminho! Ô capitão! Deixa o Manuel vir com a gente! Ele é boa gente e trabalhador. Não vai fugir do serviço não! Exportador analisa Manuel de cima a baixo, contrariado. Exportador Embarca então, rapaz. Começa limpando os peixes. Manuel sobe na embarcação e cumprimenta Pescador 02. Pescador 02 Teu pai vai ter um troço quando te ver. 31 – EXT. PORTO DE FLORIANÓPOLIS – DIA A embarcação deixa o cais principal, e Manuel deixa Florianópolis para trás. Ao se virar para o porto, Manuel avista a janela do quarto de Vicente ao longe. Vicente, no canto da janela, observa o mar. O vento embala a cortina de lençol vermelho. Manuel discerne Vicente pousar as mãos sobre os olhos para tentar enxergar melhor à distância. Depois, Vicente solta os braços e desiste. 32 – EXT. ALTO-MAR – DIA A embarcação segue seu rumo no caminho de volta. Manuel observa as águas, o horizonte e o céu. Parece estar à procura de algo.
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Inesperadamente, um savacu pousa na amurada da embarcação. O rosto de Manuel se anima ao ver o pássaro. Manuel dispara em direção ao pássaro, que toma voo antes de ele o alcançar. Manuel não diminui sua velocidade, alça-se sobre a amurada e mergulha no mar. Pescador 02 MANUEL! Agora lascou! 33 – EXT. EMBAIXO D’ÁGUA – DIA Manuel mergulha em direção ao azul, cada vez mais escuro. FIM
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Enquanto você dormia
Mariana Soares Koettker
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Este roteiro pode conter gatilhos emocionais. CENA 1: INT. SALA DE AULA. ANOITECER. ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL Marina entra na sala de aula do seu curso de faculdade, escolhe uma carteira próxima a Catu, a quem brevemente cumprimenta. Retira o material - caderno, caneta e celular da bolsa de couro. Barulho de estudantes conversando. MARINA Oi. CATU Oi, você soube da Luma? MARINA Não. CATU Está hospitalizada. Tomou comprimidos. Marina para um instante de mexer em sua bolsa e dá atenção à colega, com seus olhos arregalados e boca entreaberta. CATU Você sabia que ela era apaixonada por você? MARINA Sobre o que você está falando, Catu?
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Professor entra em sala e inicia sua aula. PROFESSOR Boa noite, pessoal. Vamos parar com a conversa paralela e podem abrir o livro História do Design Gráfico, na página 249. Marina, ainda imóvel, com o estojo de canetas na mão, aos poucos retoma os movimentos. CENA 2: RUA MOVIMENTADA, ENTARDECER CHUVOSO, ILUMINAÇÃO NATURAL Pessoas indo e vindo com guarda-chuvas. Marina sai do prédio do trabalho, olha o relógio de pulso, que marca 18:30h, e caminha atravessando o centro da cidade para o prédio da faculdade. No meio dos transeuntes, franze a sobrancelha e se estica na ponta dos pés tentando ver por cima dos guarda-chuvas. MARINA (Chama baixinho) Luma? (Grita) Luma! CENA 3: INT. SALA DE AULA. ANOITECER. ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL MARINA Catu, eu tenho certeza que vi ela. Estava caminhando no centro. CATU Impossível, Marina. A Luma ainda tá internada.
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CENA 4: EXT. RUA FACHADA DE BAR. ILUMINAÇÃO NATURAL. ANOITECER PRA NOITE Marina caminha devagar pela cidade, com olhar vago. Para em frente à fachada de um bar. Estica a cabeça tentando espiar a movimentação interna pela vidraça. Uma sineta toca quando ela abre a porta. Entra no bar. CENA 5: INT. BAR SALOON. BALCÃO, NOITE. ILUMINAÇÃO QUENTE ARTIFICIAL Marina se senta em uma das banquetas altas de couro no balcão feito inteiramente de madeira. Movimenta a cabeça para o lado, observa o senhor sentado dois bancos após o seu. MARINA Uma cerveja por favor. BARMAN Sim. O atendente serve a cerveja, amendoins e guardanapos. Marina recebe a cerveja. MARINA A Luma trabalha aqui? BARMAN Sim, mas não está trabalhando hoje. Marina toma um gole da cerveja na long neck sem se servir no copo. Gira o banco para trás, sai do balcão com a cerveja e o guardanapo na mão e se senta em uma mesa mais afastada no canto do bar.
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CENA 6: INT. BAR SALOON. MESA NO CANTO, NOITE. ILUMINAÇÃO QUENTE ARTIFICIAL Marina, sentada na mesa, inclinada para frente, com os dois braços apoiados na mesa, dá um gole na cerveja e fica com olhar na garrafa. O ambiente fica nevoado pela fumaça das maquinas de gelo seco. Luma, vestindo botas largas, regata preta com algo estampado brilhante na frente e calça jeans preta estonada, justa, toalha de louça no ombro, vem de trás do balcão, coloca uma bolacha embaixo da garrafa de cerveja, sorri e se senta com Marina. LUMA Que bom que você veio. Eu estava querendo te ver. Marina, com a boca entreaberta e olhos quase arregalados, aconchega-se na cadeira, mas não tira os olhos de Luma. MARINA Você está bem? LUMA Eu sabia que você se importava. As duas colegas continuam se olhando com leve sorriso uma para a outra. Marina desvia os olhos para baixo, mas continua sorrindo. MARINA Por que nós nunca conversamos? Luma olha para as mãos de Marina, que está segurando a long neck de cerveja e, com seus dedos, toca de leve os dedos entrelaçados de Marina em volta da garrafa, pega a cerveja e toma um gole olhando pra Marina.
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LUMA Não importa. Nós estamos conversando agora. CENA 7: INT. SALA DE AULA. ANOITECER. ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL Os estudantes e o professor arrumam a mochila e vão saindo da sala aos poucos. Marina está sentada ao lado de Catu, que guarda o material na mochila apressada. MARINA Como está a Luma? Teve notícias? CATU Não sei direito, mas parece que não teve alteração. Ela segue na UTI desacordada. MARINA Você vai visitar? CATU Sim, ela não tem muitos familiares. A mãe dela é falecida e ela foi criada pelo pai e pelos irmãos em Grão Pará, uma cidade do interior. MARINA Onde ela mora aqui? CATU Num prédio no centro ao lado do colégio Atlantis. Uma vez fumei um cigarro na casa dela depois que voltamos do bar onde ela trabalha. Ela tava com uma amiga minha. Tem um terraço bem legal. Vou nessa, amiga. Tô de carona. Marina fica sozinha arrumando suas coisas. Luma entra na sala e se senta na carteira. Marina para tudo que está fazendo e olha para a colega:
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MARINA Eu estou ficando louca? Você é uma assombração? Luma sorri de leve. LUMA Você não está ficando louca. Você também vai me visitar? Marina olha para Luma e afirma que sim com a cabeça. CENA 8: EXT. FACHADA DE PRÉDIO ENTARDECER. ILUMINAÇÃO NATURAL. Marina está parada em frente a um prédio alto, simples e antigo, mas bem cuidado, estreito, espremido entre outros prédios menores numa rua agitada do centro da cidade. Marina olha para cima, no último andar, onde vê folhas de plantas em um terraço. Um morador, saindo do prédio, segura o portão. MORADOR Moça, você vai entrar? MARINA Sim. Marina, determinada, segura o portão aberto, entra e fecha o portão atrás de si. CENA 9: INT. HALL DO ANDAR. ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL E NATURAL Há 6 portas no último andar do prédio. Marina se aproxima de uma das portas com um capacho com Darth Vader desenhado. Sua cabeça quase encosta na porta. A outra porta se abre. Um cachorrinho na coleira late e cheira os pés de Marina.
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VIZINHO Está procurando pela moça que mora aí? MARINA Sim, a Luma. VIZINHO Você a conhece? MARINA Sou colega dela. VIZINHO Eu a encontrei desacordada, com a porta aberta, chamei a ambulância. Como ela está? MARINA Não sei dizer ao certo. VIZINHO Estou com a chave do apartamento, mas vou viajar. Posso deixar com você? MARINA Pode ser. Assim que eu tiver notícias, eu aviso. CENA 10: INT. APTO LUMA/SALA E COZINHA CONJUGADAS. ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL QUENTE - NOITE Marina abre a porta, acende o abajur e entra no apartamento. Pé ante pé, olha em volta, fecha a porta atrás de si. O apartamento parece levemente bagunçado, com comprimidos no chão em frente ao sofá. Repara nos fardos de Coca-Cola armazenados no corredor perto da bancada que divide a sala e a cozinha. Marina se ajoelha, junta o remédio e coloca no frasco. Recolhe o prato e o copo em cima da mesinha de centro em frente à TV, leva até à pia, limpa o cinzeiro que infesta o apartamento com cheiro de cigarro. Pega um pijama que está no sofá. Anda em direção ao quarto.
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CENA 11: INT. APTO LUMA/QUARTO. ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL FRIA NOITE Olha em volta. Acende a luz no interruptor ao lado da porta. Estende a colcha por cima da cama revirada. Segura um porta-retratos que está em cima da mesa de cabeceira. Na foto, 3 homens e Luma. Um deles tem barba branca. Todos estão sérios. Marina sorri. Ela abre o guarda-roupa, coloca o pijama na gaveta e passa a mão por um vestido pendurado no cabide. Aproxima o rosto e sente o perfume. LUMA Gostou? Marina solta o vestido rapidamente e se vira. Luma está encostada na entrada da porta do quarto, com os braços cruzados, sorrindo para Marina. LUMA Eu uso com aquelas botas. Luma sacode uma caixinha de Mentos e coloca uma bala na boca. MARINA Sim. Gostei. Quer dizer...me desculpa. Só quis organizar um pouco pra quando você voltar. LUMA Não tem problema. Você avisou que vinha me visitar. Você quer ver o terraço? CENA 12: INT. TERRAÇO LUMA. ILUMINAÇÃO NATURAL LUZES DA RUA E DE OUTROS APTOS - NOITE Marina sobe uma escada caracol, passa pela porta em
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direção ao terraço, olha o espaço, desce novamente a escada e volta com uma jarra de água e molha plantas secas. Bitucas de cigarro estão espalhadas nos cantos. Se debruça no parapeito e olha a paisagem. Respira fundo. O vento mexe os cabelos de Marina. Ela se senta no terraço, encostada na parede, e olha para o céu. Luma está sentada ao lado de Marina. Marina não se assusta. Sorri sem abrir a boca. LUMA (Sorrindo) Quem deixou você entrar? MARINA Você me convidou. E achei necessário vir. LUMA Necessário pra você ou pra mim? MARINA Pra nós duas. Luma estende a mão para Marina, que entrelaça sua mão na dela, vira a cabeça para o lado, ficando mais próxima do rosto de Luma, que imediatamente beija Marina, puxando-a pra si. As duas se afastam e se olham. Barulho de mensagem no celular. Marina olha o celular. Na tela: CATU: Oi só pra avisar que a Luma acordou. :) Estamos indo pro hospital. MARINA Estou indo praí.
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PERSONAGENS Luma: 29 anos, cabelos avermelhados, claros, compridos, sardas, lábios grossos, estatura mediana, lésbica não aberta, tímida, humor ácido, mas meiga, viciada em coca cola, cigarro e bala Mentos, nascida no interior, criada pelo pai e dois irmãos, mãe falecida. Veio para a capital trabalhar com compuação e estuda no período noturno. Faz hora extra em um bar trabalhando de barista. Marina: 25 anos, cabelos castanhos, alta, lábios finos, muitos amigos, vários de longa data, sociável, sem muitos conflitos internos, morando com os pais, leva uma vida com oportunidades. Tem uma bolsa na faculdade para manter seus pequenos consumos de fim de semana. Catu: Amiga sociável de todos na sala. Alta, cabelos curtos, lisos e castanho escuro. Vizinho de Luma: Aproximadamente 50 anos, calça cáqui, camisa branca de botão, cachorrinho.
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In memorian. A sua dor tem saída. Busque ajuda.
Serviços de saúde CAPS e Unidades Básicas de Saúde (Saúde da família, Postos e Centros de Saúde). Centro de Valorização da Vida – CVV Telefone: 141 (ligação paga) ou www.cvv.org.br para chat, Skype, e-mail e mais informações sobre ligação gratuita. Emergência SAMU 192, UPA, Pronto Socorro e Hospitais.
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Semelhanças
Michelle Martins de Oliveira
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CENA 1 ∙ INTERNO / FIM DE TARDE / RODOVIÁRIA FLORIANÓPOLIS Rodoviária com poucas pessoas, barulhos de despedidas, risadas de adolescentes e jovens. Surge uma moça com olhar perdido, sozinha, carregando uma mochila e, nos braços, um caderno personalizado, com desenhos de personagens de animações. É Jana, 23 anos, alta, cerca de 1,80m, magra, branca, com a pele um pouco bronzeada, unhas com esmalte rosa levemente lascado, blusa solta, calça jeans, tênis allstar, cabelos ondulados até a cintura, tingidos de loiro, que ela cuida para que não encoste em nada. Jana usa uma pulseira em que está escrito “História”. Surge uma moça, chamada Cláudia, de 48 anos. Jana e Cláudia se sentam nas cadeiras dentro da rodoviária, uma ao lado da outra. CLAÚDIA: Demora demais, né? Sempre atrasados. JANA (enquanto coloca o cabelo para trás da orelha): Não sabia. Primeira vez que vou viajar sozinha tão distante de ônibus. Geralmente ia de carro. CLÁUDIA: Fica tranquila. Faço sempre essa viagem no fim do ano. Vão quase sempre as mesmas pessoas. A gente vai sempre se encontrar com os parentes que moram longe. JANA: Reencontrar a família é bom, né? Eu também vou aproveitar para ver minha família e também vou fazer uma pesquisa sobre minha árvore genealógica.
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*Atenção, auto viação catarinense Florianópolis-Lages está no ponto* CENA 2 ∙ INTERNO / FIM DE TARDE / ÔNIBUS Todos dentro do ônibus olham para Jana com estranheza. Jana esbarra nos assentos do ônibus, levantando as mãos e o cabelo. Abre o caderno assim que se senta na poltrona do ônibus, pega um lápis de sua mochila, quase risca o assento. Jana começa a escrever enquanto olha pela janela com um olhar distante. É verão e o ar está ligado. Cláudia senta nas poltronas ao lado de Jana, do outro lado do corredor. JANA (para Cláudia): Esse ar não está muito forte? ClÁUDIA (apontando): É só apertar esse botãozinho ali em cima que o ar não vai direto na sua cabeça, menina. JANA: Obrigada, viu? Jana arranha sua calça, guarda o caderno, amassando-o. Olha para a janela e acena para ninguém. Com o ônibus em movimento, Jana desconfortavelmente se movimenta e olha para o chão, vê um pingente e o junta. JANA (para o moço no bando da frente): É seu? MOÇO: Não, não. Esse pingente deve ter caído há tempo. Sabe como é, né? Nunca limpam. JANA: Ah! É bonito né? Moço balança a cabeça. Jana coloca o pingente em seu colar, que já tem outros pingentes. Sente um arrepio no mesmo instante. Jana olha as casas e pessoas festejando em uma delas.
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CENA 3 ∙ INTERNO / NOITE / ÔNIBUS Jana está agitada. Pega o caderno, vira para trás e encontra uma jovem parecida com ela, mas com os cabelos castanhos. Elas se olham e começam a conversar. Diana, 23 anos, cerca de 1,80, magra, branca, nada bronzeada, unhas sem esmalte, blusa de banda de rock, calça de lycra, tênis allstar, cabelos ondulados channel. Carrega uma mochila vermelha e um colar com um pentagrama. JANA: Oi, você percebeu que somos parecidas? DIANA: Sim, mas fiquei com vergonha de ir conversar com você. Percebi seu cabelo brilhar, que lindo. Quais as chances de, em uma viagem como essas, encontrar alguém tão parecida comigo? JANA: (ri enquanto afofa o cabelo:) Qual seu nome? DIANA: Sou a Diana e você? JANA: Meu nome é Jana... Que legal, nossos nomes significam lua. Bom, na verdade eu sendo lua e você deusa romana da lua. DIANA: Como você sabe disso? Que interessante. Eu sabia da origem do meu nome, mas não do seu. JANA: E me conta como seus pais escolheram esse nome? DIANA: Não, fui eu que escolhi. JANA: Que legal! DIANA: Foi por causa da Mulher Maravilha. Eu adoro. Alguns trovões. Tempestade na estrada. Janelas embassadas. JANA: Trovões tem a ver com a Mulher Maravilha, né? (Ambas riem).
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JANA: Você também gosta de histórias em quadrinhos? DIANA: Eu gosto mais dos filmes. Adoro Doutor Estranho. É interessante pensar que seja possível controlar o tempo. Ou mesmo voltar no tempo. JANA: Eu também adoro e, às vezes, me sinto em um universo paralelo, e em algum lugar há uma outra de mim vivendo, e poderia ser você. Somos tão parecidas né. DIANA: Também achei o mesmo. Eu gosto da ideia de multiversos. Em algum lugar, eu nunca teria morado sozinha com 14 anos e teria nascido naquelas famílias de comercial de margarina, sabe? JANA: Eu também queria. Minha família é muito certinha e tenho muitos parentescos confusos. Nem sei quais culturas seguir. É um pouco louco para mim, mas não sei o que é morar sozinha na adolescência. Sinto muito. DIANA: É complicado. Aliás é sobre família minha viagem. Vou encontrar alguém da família. Não sei quem é. Somente encontrei debaixo da minha porta um bilhete escrito: “A vida nunca é completa sem seus desafios. Venha conhecer sua história familiar. Uma pessoa da sua família vai te encontrar na rodoviária hoje”. JANA: Que loucura! DIANA: Tem muitas coisas na minha vida que ninguém sabe. JANA: Que interessante esse mistério sobre seu parente. Eu só vou encontrar minha vó mesmo. DIANA: Bom, acredito que a maioria daqui também esteja indo encontrar suas famílias. Interior de Santa Catarina não costuma ser um lugar turístico... Se bem que já fui em hotel fazenda com um antigo namorado.
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CENA 4 ∙ EXTERNO / NOITE / LAGES Assim que os passageiros descem em Lages, Jana, Diana e Cláudia caminham na mesma direção. DIANA: Será que tem algum mercadinho aqui por perto? Preciso de repelente. Os mosquitos daqui são diferentes dos de Floripa. CLAUDIA: O mercado aqui fecha às 22h. Tranquilo chegares. Vó de Jana está esperando na rodoviária. Jana vai ao encontro da vó e elas se abraçam. Vó de Jana é Jaciara, 70 anos, 1,70 m de altura. Veste saia cigana colorida estampada, usa brincos de argola grandes, óculos grossos, tem cabelo castanho ondulado, olhos escuros, olheiras profundas. Carrega um colar com o pingente por baixo da blusa e usa batom bordô em seus lábios. JACIARA: Oi, minha filha, você está tão linda, que cabelo lindo, como o de sua mãe. Que saudade. E como foi a viagem? JANA: Obrigada, vovó. Conheci uma moça no ônibus incrível. Foi legal a viagem. Diana passa repelente e vai em direção às duas. JACIARA (grita): Diana. JANA: Vovó, essa é a moça que conheci no ônibus. Vocês se conhecem? JACIARA: É ela que estou esperando. JANA (espantada): Calma, não consigo acreditar nisso. JACIARA: Diana, sou sua vó. JANA: Como? JACIARA: Diana era meu bebê. Foi morar em
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Florianópolis com o ex-marido da sua mãe Jana, da mãe de vocês. Que engraçado terem se dado bem. Jana começa a mexer no cabelo de forma agressiva, puxando os fios. JANA: Como assim? Preciso que você me explique isso. JACIARA: Quando vocês tinham três anos, seus pais se separaram e foi decidido que seu pai ficaria com o menino e sua mãe com a menina para poder ensinar as tarefas de cada um. JANA: Diana, você é? É verdade tudo isso? Você ficou com o papai? DIANA: Sim, até os 14 anos, quando ele me expulsou de casa. Jana e Diana se abraçam. Jaciara abraça as duas. CENA 5 ∙ INTERNO / MADRUGADA / COZINHA DE JACIARA Cozinha de Jaciara tem panelas de barro, “penduricalhos”, vassoura de palha, tijolos à vista, fogão a lenha, estátua de Afrodite, velas rosas, potes de mel e rosas. JACIARA: Vocês gostariam de um chá? Para janta temos bastante carne, duas galinhas caipiras e um risoto bem gostoso feito pela vovó. Diana, estás com um olhar fundo, uma boa comida vai fazer bem. JANA: Estou chocada com todas essas informações. Tenho muito o que conversar com a Diana. Vou mostrar meu quarto antigo para ela. Está cheio de cartazes. É como uma volta no tempo real. Ainda tenho apliques e tic tacs que mamãe me colocava, por isso dou tanta atenção ao meu cabelo. Lembro do cuidado que ela
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tinha com meus cachinhos. DIANA: Eu tenho um álbum de fotos que tem um cachinho meu cortado e colado nele.
CENA 6 INTERNO/ MADRUGADA / COZINHA DE JACIARA Jaciara arruma a mesa e sorri ao pegar um pingente igual ao que Jana encontrou no ônibus. Jaciara pega um caderno e uma caneta na estante, escreve “pedido concluído”. Ela acende um isqueiro, queima o papel e o joga na pia.
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Rádio GRIOT Volume 1: Corpo Encruzilhada. Pedro Maçalê
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eu tive um sonho ruim e acordei gritando [me dá um abraço!] Rafael Campagnaro
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1 . interna > quarto > manhã ney fernando, 13, está dormindo em sua cama. lentamente abre os olhos, volta a fechá-los. o quarto aos poucos vai ficando cada vez mais claro. ele se espreguiça lentamente e senta na cama. percorre o olhar pelo quarto, espreguiça-se novamente. levanta, caminha até a janela e abre as cortinas. o dia está ensolarado. os galos da vizinhança estão cacarejando [voice off]. vai até o microsystem, coloca o volume no mínimo e aperta o play. a fita k7 pirata da madonna começa a rodar: holiday, celebrate… caminha meio dançando até o guarda-roupa, arruma o poster do cazuza que está com um dos cantos descolado, abre a porta. dentro do guarda-roupa, só encontra suzy, uma antiga boneca ‘fala-neném’ [ela tem os cabelos emaranhados e seu vestido está um pouco sujo e amarelado, seus lábios e unhas estão pintados com canetinha vermelha]. ney arregala os olhos!
fica paralisado!
ney suzy?!? como você veio parar aqui? fecha os olhos, respira profundamente, conta nos dedos até dez e fecha lentamente a porta. ney eu devo estar sonhando / só posso estar sonhando! respira profundamente mais uma vez e abre a porta novamente. a boneca ainda continua lá.
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suzy estou com medo! fica comigo? lentamente, ney olha em todas as direções e pausadamente entra no guarda-roupa, pega a boneca e a segura em seu colo. ney [gaguejando] nã-não-pre-e-ci-is-sa-t-t-ter-medo-d-do-su-z-zy-zy. as portas se fecham violentamente. o poster do cazuza cai sobre o tapete. o telefone toca na cozinha [voice off] mãe [voice off] alô? tudo bem. ele está sim. quem gostaria? ney, telefone. é um tal de gilberto… ney [voice off] e agora, suzy? [grita] já vou... 2 . interna > quarto > manhã ney está dormindo. agita-se debaixo das cobertas. acorda quando cai da cama. depois de se desvencilhar das cobertas, olha a sua frente e vê suzy. suzy sinto tanto sua falta! vamos brincar? ney leva seu dedo indicador até os lábios, faz sinal de silêncio. ney [sussurrando] shhhhh! fale mais baixo, suzy! alguém pode nos ouvir, ninguém pode ficar sabendo… suzy me dá um abraço! rapidamente ney pega a boneca e lhe dá um abraço.
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ney [sussurrando] todos já estão acordados, hoje é domingo, não podemos brincar! já te falei isso! ...e hoje depois da missa irei ao encontro de jovens da igreja. ney abre a porta do guarda-roupa, coloca a boneca escondida atrás de suas blusas, fecha a porta e tranca. arruma o poster novamente, segura na fitinha de nossa senhora aparecida que está amarrada na chave. ney me ajuda, minha nossa senhora, que hoje to precisando! faz o sinal da cruz e fecha os olhos por alguns instantes. 3 . externa > rua > tarde ney sai do pavilhão da igreja e vira à esquerda, caminha por uma viela pouco movimentada. quando passa por um terreno baldio, vê que algumas crianças brincam. três meninas e um menino pulam elástico. observa atento. o menino reconhece ney [é o filho da vizinha] e com um aceno o convida para pular também. 4 . externa > terreno baldio > tarde ney nossa! faz muito tempo que não pulo. vamos ver se ainda lembro... menino é igual a andar de bicicleta, não tem como esquecer! olha só: pula para dentro, para fora, para dentro, pisa no elástico, pisa para fora e cruza o elástico. começa meio desajeitado, mas logo entra no ritmo. fazem duplas. todos querem pular com ney. suas longas pernas permitem que ele alcance o ‘nível 4’ da brincadeira [elástico na
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cintura]. todos se divertem horrores. ney e o menino trocam olhares de cumplicidade. o sol já está quase se pondo no horizonte. ney gente, foi muito divertido brincar com vocês! mas agora preciso ir... menino ah não! fica mais! [puxando ney pela mão] vamos fazer uma última rodada. 5 . externa > terreno baldio > noite mais uma rodada da brincadeira se inicia. e outra. e outra. e outra… ney gente! agora é sério! preciso mesmo ir. minha mãe vai me matar se me atrasar pro jantar. dá tchau a todos. o menino se aproxima. menino promete que não conta pra ninguém que eu tava pulando elástico? meu pai não gosta que brinque com coisas de meninas. ney sei muito bem como é. pode ter certeza que não conto para ninguém. quando você quiser pular elástico pode ir lá casa... agora eu realmente preciso ir. eles se abraçam meio desajeitados. 6 . externa > rua > noite já é noite e as ruas do bairro estão desertas. ney caminha pelo lado mais escuro da rua e dá uns pulos no ar, como se ainda estivesse pulando os elásticos. corre, salta e acelera os passos para não se atrasar para o jantar.
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7 . interna > cozinha > noite ney chega em casa enquanto sua mãe coloca o jantar na mesa. mãe pensei que iria jantar fora hoje. ney é que ficamos ajudando a professora arrumar o salão... tio ou será que ele estava dando uma voltinha com alguma rapariga? quando vai trazer a gatinha pra gente conhecer? [silêncio constrangedor] mãe corre lá, lava as mãos que já está tudo pronto. a família está reunida em volta da mesa, todos já estão orando: pai nosso, que estais no céu… ney volta apressado do banheiro, secando as mãos na camiseta. mãe e filho trocam olhares. 8 . interna > sala de aula > dia nublado e tempestuoso a sala de aula está vazia, as luzes estão apagadas, chove intensamente e as janelas vibram com a forte ventania. ney está sentado em uma carteira no meio da sala quando um relâmpago ilumina a penumbra do ambiente. [voice over] diferentes vozes vão se empilhando e aumentando de acordo com a intensidade da tempestade. gay-fernando, gayzinho, menininha, viadinho, frutinha, marica, gay, VIADO, filhinho-da-mamãe, viadão, bicha, bichinha, afetado, bichona, barbie, MACHUCADA, poc, pão com ovo, amulerzinha, mariquinha, florzô, TRAVECA, baitola, boneca, baitolinha, queima-rosca, ré no kibe, leva vara, leva fumo, FRESCO, semi-fêmea, tinker bell, DESMUNHECADA, afeminada, florzinha, gayzão, desnorteado, homossexual, BIBA, erro da natureza, bi-
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lholha, perdido, desencaminhado, vaidosa, PINTOSA, delicada, boiola, ABERRAÇÃO, ………...………. “prefiro um filho morto a um filho homossexual”. um forte raio quebra uma enorme árvore. seus galhos quebram os vidros das janelas. o ruído torna-se ensurdecedor. ney
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhh hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh hhhh!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
9 . interna > quarto > madrugada ney acorda com seu grito. senta-se abruptamente na cama. ainda está meio ofegante quando sua mãe entra no quarto. mãe que aconteceu, meu fiho? está tudo bem? ney agora acho que está tudo bem, foi apenas outro pesa-
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delo… mãe outro? ney sim... tem ocorrido com certa frequência, acho que tem a ver com algo que preciso te falar… é que… é que... [segura as mãos da mãe] então, mãe, sabe o gilberto? mãe ahammm, aquele seu amigo que ligou hoje? ney isso... ele mesmo. na verdade, ele não é só mais um amigo, nós estamos... lentamente a porta do guarda-roupa abre fazendo um ruído. suzy cai sobre o tapete. suzy me dá um abraço! 10 . externa > terreno baldio > madrugada de lua cheia ney fernando está sozinho num grande terreno baldio, é noite de lua cheia. ele veste uma enorme camiseta vermelha que quase chega até seus joelhos, está descalço e tem as unhas do pé pintadas de preto. olha para a camiseta numa tentativa de lembrar-se daquela roupa, franze as sobrancelhas, não consegue recordar, dá de ombros, como quem não se importa. começa a olhar ao seu redor, a luz da lua está muito forte. ele começa a caminhar vagarosamente pelo terreno. uma enorme caixa cai do céu nos fundos do terreno, fazendo um estrondo ensurdecedor. ney olha diretamente na direção. fica imóvel. pausadamente começa a andar na direção da caixa. não consegue identificar exatamente o que é, apenas vê uma enorme caixa retangular. lentamente se aproxima, até chegar perto o suficiente para identificar que aquele objeto é o seu guarda-roupa. o poster do cazuza ainda continua com um dos
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cantos descolado e na fechadura vê a fitinha de nossa senhora amarrada na chave. fica paralisado. está ofegante. começa a olhar ao redor procurando algo que o auxilie a abrir as portas, logo avista um longo galho de árvore. vai até o galho, se abaixa e pega o galho. seus braços e mãos tremem. delicadamente, com o auxílio do galho, abre as portas do guarda-roupa. seu interior está repleto de cabides com uniformes escolares. observa os uniformes e então se afasta um pouco. suzy logo aparece caminhando em sua direção fumando um cigarro. ela passa o cigarro para ney. ele dá uma tragada, ney cof, cof, cof... depois joga a bituca nos uniformes, dão alguns passos para trás e observam. aos poucos os uniformes começam a queimar. o fogo vai aumentando gradativamente, até que todo o guarda-roupa se encontre em chamas. ney está imóvel e contempla aquela cena. se aproxima de suzy e a segura em seu colo. ney me dá um abraço! personagens [em ordem de aparição]: ney fernando guarda-roupa suzy menino mãe tio realização: estrela guia - associação em prol da cidadania e dos direitos sexuais apoio: all out 124
11 . externa > terreno baldio > noite ney e suzy estão deitados no gramado observando as estrelas. de repente, um enorme disco voador aparece no céu. luzes coloridas começam a piscar, um feixe de luz rosa desce sobre eles. despertador toca [voice over] trim, trim, trim…
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Antônia
Sílvia da Silva
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1- EXT. RODOVIÁRIA, GUAÍRA - DIA Tarde, pôr do sol, 17h, rodoviária com poucas pessoas transitando. Tio Cauê (32) e Daniel (06), irmão de Antônia (10), vão à lanchonete. No banco, Antônia está deitada no colo da mãe Juraci (40), que faz um carinho no cabelo da filha, segura sua mão, entrelaça os dedos, segura bem forte. Elas se olham. Cauê e Daniel caminham na direção delas. O ônibus encosta. (placa: Guaíra para Porto Velho – saída 17:35h). ANTÔNIA (10) Morena, 1,20m de altura, cabelos pretos, com cachinhos, olhos castanho-escuros. Está vestindo calça preta, camiseta branca e casaco de veludo verde e tênis branco chineizinho.
Se eu fosse a senhora, eu ficava aqui. Por que a senhora precisa ir na casa do tio Mario, mãe? Eu e o Daniel não podemos ir? A Bisa Chica tem uma casa bem grande, cheia de quartos. Tem um para cada um de nós. Eu vou ter um quarto só meu de verdade! Você pode ficar no meu quarto comigo. JURACI (40) Morena, 1,67m de altura, cabelo solto, médio, preto, liso, olhos esverdeados. Está de calça jeans, camisa azul claro, casaco branco, sapato preto. É mãe de quatro filhos. Após sua separação, duas filhas passaram a morar com as tias. Antônia e Daniel foram morar com a Bisa Chica no interior.
Logo eu volto, Antônia. Vocês precisam estudar.
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Para ser alguém nessa vida, é preciso estudar, aprender a ler e escrever. Cuidem da sua Bisa Chica, ela está velhinha, obedecem ela e se comportem. A mãe ama vocês. Vou sentir muitas saudades. (semi-sorriso com lágrimas, para Daniel) E você, meu garotinho lindo? A mãe volta bem rapidinho. O que vai querer de presente? Uma capa de Super-Homem você gosta? Come bastante para você crescer e ficar um homem lindo. DANIEL (06) Moreno, 0,90m de altura, cabelo preto, enrolado, com cachinhos, olhos castanho-escuro. Está de agasalho cinza, tênis azul.
Você volta na semana que vem? (abraça a mãe e chora) Eu não quero que você vá! O motorista pode me levar junto? Pergunta, mãe? Eu queria ir junto! CAUÊ (32) Moreno, 1,80m de altura, cabelo preto, liso, olhos azuis. Veste calça social marrom, camisa colorida. Casado com Luci, tem dois filhos pequenos. Mora na mesma cidade que a Bisa Chica.
Chegou a hora, mana. Manda um abraço no pessoal lá. Abraça a Mara. (entrega um pacote com lanche e uma bebida) Isso é para você fazer um lanche no caminho. A viagem vai ser longa. Juraci Entrega a passagem para o motorista na porta do ônibus. Não quero ninguém chorando!! Só um pouquinho! (entra no ônibus chorando)
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2- EXT. RODOVIARIA, GUAÍRA - DIA O ônibus sai da plataforma. Juraci está na janela. Algumas pessoas transitam, cachorros, lanchonete com pessoas, ônibus, taxis. O ônibus parte, e pessoas acenam de dentro e na plataforma. Cauê Tchau, mana. Manda abraços. Boa viagem. Vamos, Antônia e Daniel, para casa. Agora vamos voltar que deve ter um jantar esperando a gente. Depois tenho que voltar pra casa. Ah, não fiquem triste. Sua mãe vai voltar logo. Vocês vão estudar, brincar, conhecer a cidade. Tem um monte de crianças aqui. Antônia Tchau! Por que ela tem que ir? Eu queria ir junto, não quero estudar mais. Eu já sei escrever meu nome. (chora e segura a mão de Daniel) Daniel Ela foi embora? Antônia, você viu que tinha lugares no ônibus? A gente poderia ter ido junto. A mãe falou que não tinha lugar no ônibus. (chora) Antônia Tinha mesmo. Acho que tem escola em Porto Velho. Por que a gente tem que ficar aqui? Tio, tem escola onde a mãe foi? Cauê Não sei, acho que não. Lá só tem mato. Vem, vamos para o carro crianças! Oh! O tio também está triste . Sabia que eu vi a Bisa fazendo um doce de leite hoje cedo?
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Vocês gostam? Eu gosto de fazer gemada com ovos! Vamos subir, criançada! Vocês vão em cima. Segura seu irmão, Antônia. Tio Cauê coloca as crianças na caçamba de uma Rural, entra no carro e arranca. 3- INT. CASA, COZINHA DA BISA CHICA - NOITE Casa de madeira, cozinha com algumas imagens de santos na parede, um poço de água pintado de azul, mesa com cadeiras vermelhas, armário vermelho, fogão vermelho. Cauê traz uma caixa e alguns doces. Jantar servido, tem uma sopa, pães, suco. Bisa Chica está mexendo nos talheres, pensativa. BISA CHICA (73) Senhora branca, 1,74m de altura, magra, olhos claros, cabelos com tranças, viúva. Veste um vestido florido claro, chinela de tecido.
Que bom que chegaram. Acabei de arrumar a mesa. Fiz uma sopa de jantar. Hoje será uma noite diferente, casa nova. Suas irmãs Dineia (16) e Isabel (14) estão bem com suas tias. E vocês dois... logo vocês vão para a escola aprender a ler e escrever. Cauê (coloca uma caixa na mesa) Essas coisas aqui depois a senhora encontra um canto aí no armário. São coisas da mana. Quero ver quem vai aprender primeiro a fazer continhas. Eu gosto de sobrinhos inteligentes pra trabalhar no bar com o tio. (olha para a Vó Chica, mexe a sobrancelhas e se serve) A mana vai viajar três dias. Porto Velho é longe. Os manos vão cuidar dela. Fica tranquila, vó.
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Antônia (espera a Bisa Chica servir) Falta muito tempo para o Natal? A mãe disse que volta no Natal. Hum, que cheiro bom. Vou comer tudo, Bisa Chica. Eu gosto de batata e pão. Daniel Eu gosto de pão, sopa só um pouquinho. Posso pegar o suco? Antônia também vai querer suco, Bisa Chica! (mexe no cabelo) 4- INT. CASA, COZINHA DA BISA CHICA - DIA Bisa Chica passa café. Mesa com pães cobertos, doces de abóbora e manteiga sobre a mesa. Pega canequinhas para as crianças, uma de cada cor. Arruma a mesa. Antônia aparece na cozinha, descabelada. Lá fora o galo canta, galinhas cacarejam, passarinhos cantam. Bisa Chica Bom dia, Antônia. Você acorda cedo?! Vem ajudar a Bisa a arrumar a mesa. Coloca a caneca azul para o Daniel e a vermelha para você. Depois vai acordar seu irmão. Vamos tomar café. Hoje é o último dia de férias. Aproveitem pra brincar. Amanhã começa as aulas. Antônia Bisa, eu já fui nessa escola. Ela é pequena, mas tem uma quadra bem grande. Lá em Foz do Iguaçu era muito grande tudo. Eu tenho umas amigas aqui, a filha da DEOZINA (42), a DENISE (09) e a CRIS (11). Tem os meninos que eu conheço das férias passada, o NEGUINHO (08), o ADILSON (10) e aquele que é filho daquela mulher ... a ... a ... Não lembro o nome dela ... que carrega leite, Bisa! A ... a Dona
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DIRCE (48), a ANINHA (10) filha da MARINA (50). Mas estou mesmo é com saudade da mãe, Bisa. Bisa Chica Antônia, hoje é dia de alegria. A sua mãe logo vai voltar e você vai estar grande. Eu não sabia que você tinha uma memória assim. Lembra das crianças das férias passada! Aqui no Rio Bonito está cheio de criançada. E o Daniel? Oh! Oh! Ohhhhh! Daniel, vem tomar café, menino. Já está tarde. Daniel chega na porta da cozinha, com olhos arregalados. Daniel Aqui tem touro, Bisa. Escutei um touro na janela, bem grande! Muhhhhhh! Muhhhhhh! Muhhhhhh! Eu não vou dormir mais naquele quarto, vou ficar com a Antônia. Bisa Chica Que touro, menino? É vaca! Nunca viu vaca, não? Tem um pasto aqui do lado de casa. Depois a Bisa vai mostrar as vacas. As vacas não gostam de roupas vermelhas, sabiam? Tem as galinhas com os pintinhos. Elas correm atrás das crianças se tentar pegar os filhinhos dela, hein! Vamos tomar café. Quem gosta de pão, bolo? Tem chá e leite! Temos o domingo inteiro para ver as coisas. A horta deve ter alguma fruta lá também. Quem vai colher com a Bisa Chica? 5- EXT. QUINTAL DA CASA DA BISA CHICA - DIA Um paiol pequeno de madeira, fechado. Quintal de chão
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batido/terra, flores em torno da casa, galinhas, horta, uma mesa de madeira debaixo do pé de manga, bancos e cadeiras de madeira e uma horta. Antônia vê algumas mangas no chão, cheio de folhas caídas. Pega uma manga, cheira, limpa na camiseta e morde. Come, come mais, rosto lambuzado, olha para cima e sobe na árvore. Antônia Vou pegar aquelas grandes lá em cima, Bisa Chica! Nossa, tem muitas mangas. Eu amo manga. Bisa Chica Antônia, se você tomou leite, você não pode chupar manga. Manga com leite dá congestão, é um veneno, mata. Antônia Eu tomei chá, Bisa Chica. Só um pouquinho de leite não faz mal, não! Vou tomar água depois. Daniel está sentado no banco olhando as vacas. Daniel Os touros fazem xixi por onde, Bisa Chica? Não tem pipi? Bisa Daniel, isso aí é vaca. Os touros têm bagre pendurados, umas bolas no meio das pernas! Você está vendo? Não, né? Eita, menino da cidade não sabe nada das coisas. Vai chupar manga com a Antônia, vão! Vão! Vão! Não quero ver vocês na rua, hein! Brinquem aqui dentro do quintal. Se o homem do saco preto pegar vocês na rua, ele leva embora.
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6- INT. CASA, QUARTO DA BISA CHICA - NOITE Uma cama de madeira, tapete no chão feito de retalhos, um bidê com altar, alguns santos, velas, caixa de fósforo. Na parede, a bandeira do Divino Espírito Santo, imagens de santos pendurados e fotografias dos tios segurando bacias de alumínio com pepitas de ouro. Bisa Chica abre as portas do guarda-roupa: camisas, vestidos floridos, lenços. Pega as mantas: a colorida e a xadrez. Antônia observa o quarto. Segura o travesseiro, abraça forte e cheira. Daniel segura os lençóis. Bisa Chica Daniel, você vai dormir aqui no quarto do lado da Bisa Chica. A Antônia vai dormir no quarto da sala. Tem uma cama bem gostosa lá e a penteadeira da sua mãe agora é sua, para guardar as suas roupas. O que você acha? Antônia O que é aquele pano com fitinhas colorida, que tem um passarinho branco na ponta, ali na parede, Bisa Chica? Nossa! A penteadeira, Bisa Chica? Eu vou arrumar meu material da escola, minhas roupas, cabe tuuudo. Eu nem tenho perfume, Bisa! Vamos ter que comprar, né!? Eu não tenho medo de dormir lá longe, né? Daniel Bisa Chica, eu quero dormir com a senhora. Aquele touro pode vir na janela me comer. Vai comer você, Antônia, se ficar sozinha naquele quarto. Bisa Chica Parem de falar baboseira, menino. É vaca, não é touro. Não vai te comer, Antônia. Que crianças medrosas.
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Isso que dá morar na cidade. Tudo criança assustada. Antônia, aquilo não é um pano, é a bandeira do Divino Espírito Santo. Se você tiver fé, o Divino cura e realiza seus desejos. 7- INT. CASA, QUARTO DE ANTÔNIA - DIA Bolsa no chão, cama de casal, tapete colorido. Antônia acorda, se espreguiça, senta na cama, olha para o quarto. Tem um quadro com anjos voando. Puxa a gaveta da penteadeira, pega o uniforme, se troca rápido. Calça os tênis, arruma o cabelo e pega a bolsa. Abre, retira um caderno e um lápis. Abre o caderno e escreve AMOR em letra de forma. Vai escrevendo e falando baixinho
A M O R. Desenha um coração, fecha o caderno e guarda na bolsa. Sai do quarto. 8- INT. CASA, COZINHA DA BISA CHICA - DIA Janelas abertas, porta aberta, dia de sol. Bisa Chica está mexendo no baú de compras. Antônia entra com Daniel. Sentam, olham a mesa, observam a Bisa Chica arrumar as coisas. Tomam café juntos. Antônia (pega a caneca azul) Hoje eu quero tomar café nessa caneca, Bisa Chica! Ela é tão bonita, parece esmalte azul. Quem pintou essa caneca? A vermelha também é pintada de esmalte? Deixa eu ficar com a azul, Daniel? Eu peguei primeiro. Daniel A azul é a minha caneca, Antônia. A Bisa Chica falou
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que a azul é minha. Eu quero a minha caneca. Bisa Chica Mas, pera lá, Antônia, você não gosta do vermelho? As meninas adoram. Parece com morango. Deixa seu irmão com a cor azul para ele. Os homens gostam de azul. Antônia Eu também gosto de azul, de verde, de vermelho. Acho que eu gosto de todas as cores, Bisa Chica. Hoje é o primeiro dia de aula. Será que vou ter bastante amigos? Bisa, tem muitos alunos lá? Hoje a senhora vai levar a gente? 9- EXT. RUA - DIA Poucas pessoas caminham. Passam alguns carros, carroças de cavalo. Algumas crianças saem de casa vestidas com uniformes a caminho da escola. Bisa Chica caminha com as crianças. Vizinhos observam eles. Cumprimentam algumas pessoas na rua. Bisa Chica A Bisa Chica só vai hoje. Tenho muitas coisas para fazer em casa. Vocês vão ir sozinhos a partir de amanhã. Aqui não tem perigo. Todo mundo se conhece. Tem a casa da comadre Leonilda do lado da escola. Antônia Vamos mais rápido, Daniel, para a gente não chegar atrasados. (segura a mão de Daniel) Nossa! Todas as casa parece que tem manga, Bisa Chica. A senhora está vendo? O mundo das mangas.
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Daniel Bisa Chica, e se a gente se perder? (olha para a Bisa Chica) Tem muitos cachorros na rua, né? Eu não tenho medo. 10- EXT. PÁTIO DA ESCOLA - DIA Cheio de crianças, grupinhos nos cantos da escola. Pais chegando até o portão. Zeladora a postos para receber as crianças. Toca o sinal para a entrada. A Diretora Mirtes e os professores chegam no pátio. DONA MIRTES (50) Morena, 1,64m de altura, cabelo solto, grande, preto, liso, olhos castanhos. Veste saia preta, camisa branca e casaco preto, sapato preto.
Bom dia, crianças. Por favor, todos em filas aqui. Vamos fazer filas por ano: primeiro e segundo ano, desse lado. Terceiro e quarto ano, do outro lado. Vamos! Vamos! Que saudades de vocês!! Precisamos organizar as entradas. As salas estão marcadas acima das portas com os números de cada ano. Prestem atenção. Antônia Essa escola é pequena, Daniel, te falei. Eu já vim aqui com a prima uma vez brincar na quadra. Tinha uma festa junina, tinha uma fogueira bem grande. Sabia que tem gente que anda na brasa no dia da fogueira de Santo João? É verdade. E não queima o pé. Depois vou te levar na quadra, na hora do recreio, tá? Me encontra aqui no pátio quando bater o sinal. Você fica aqui na fila do primeiro ano. Eu vou na fila do terceiro.
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Daniel Fica comigo aqui na fila para entrar na sala, Antônia? E se eu não conseguir te encontrar? Antônia Me espera na sua sala. Eu vou te buscar. 11- INT. SALA DE AULA - DIA Paredes metade verde-clara em baixo e metade branca em cima. Chão de taco, lousa grande, mesa de madeira do professor, umas 30 carteiras, uma parede com janelas de fora a fora. Antônia senta na primeira carteira, perto da janela. Professora Fátima chega. Falação/agitação. FÁTIMA (32) Morena, 1,70m de altura, cabelo encaracolado, médio, castanho, olhos castanho-claros. Está de calça jeans, camisa clara de florzinhas, bota marrom.
Bom dia, sejam todos bem-vindos! Sou a professora Fátima. Vamos estudar esse ano juntos!! Estou muito feliz e animada em receber vocês! Quem está animado para esse ano levanta a mão!! Crianças (agitadas) Sim! He! He!! Eu! Eu! Eu! Eu! Eu! Euuuuuuuuuuu! Euuuuuuuuuu! Fátima (entusiasmada) Conheço quase todo mundo aqui. Temos carinhas novas. Paulo, Douglas, Claudinha! Antônia, agora vai estudar aqui? A professora conhece seus pais, viu? Seja bemvinda! Vamos pegar um caderno, lápis e borracha! E vamos escrever o cabeçalho.
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Alguém lembra como faz? Ainda lembram? Ou esqueceram tudo nessas férias? Eu vou ser professora de duas disciplinas, matemática e artes. Vamos começar com artes. A professora vira e escreve na lousa. As crianças copiam no caderno:
Escola Glória Xavier Mendonça, Rio Bonito, 16 de Janeiro, 1989 Professora: Fátima Feitosa. Aluno (a): CLAUDIA (09) Estava com saudades da escola. Você é a Antônia, né? Nome diferente. Não tem nenhuma Antônia aqui. Tem outra Cláudia na nossa sala, a Claudinha, filha da dona Cida. Você é a filha da Juraci? Minha mãe conhece sua mãe. A dona Chica vai na nossa venda fazer compras. Quer ser minha amiga? Antônia (balança a cabeça com sinal de sim.) Oi! A escola é legal. A professora mora do lado da casa da Bisa. Bate o sinal para o recreio. 12- EXT. PÁTIO DA ESCOLA - DIA Hora do lanche, fila para a merenda, fila para pegar os pratos.
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O cardápio é arroz e molho de almôndegas. Tem duas mesas verdes, grandes, com bancos verdes e de madeira, onde as crianças fazem os lanches. Antônia encontra Daniel no pátio. Antônia Vamos pegar a merenda? Daniel Só um pouquinho! 13- EXT. QUADRA DE ESPORTES - DIA Antônia e Daniel chegam na quadra de esportes, onde as crianças brincam. Antônia Puxa! Que legal essa quadra. Quero brincar. Vamos, Daniel, pedir para brincar de bola. Eles estão brincando de queima. Daniel Vamos! Vou no seu time. VALTER (11) Moreno, 1,40m de altura, cabelo curto preto, olhos castanhos, gordinho esta de conjunto de moletom azul marinho, tênis preto com detalhe branco.
Oh! Só vamos brincar de queima um pouquinho. Depois é futebol, hein? Joga a bola para tentar queimar o Adilson. Adilson pega a bola e joga na direção de Valter novamente, com mais força. ADILSON (12) Moreno, 1,44m de altura, cabelo médio, liso, preto, olhos castanhos, magro, está de calça de moletom preta, blusa vermelha, tênis conga preto.
Ah! Segura essa então! Oh! Joga fraco, cara, assim machuca! Não sabe brincar, não?
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Bundão! Crianças Haaaaa! BUND BUND BUND
Haaaaa!! B U N D Ã O!! Ã O!! Ã O!! Ã O!!
Valter Ah é? Então parou a brincadeira. Agora quero ver quem é bom no futebol. Vamos fazer os times! Eu e o Adilson escolhemos quem vai jogar! Adilson O Douglas e o Neguinho vêm pra cá! Antônia Eu quero brincar. O Daniel também! Vamos lá!! Valter Você sabe jogar? Iiiii, menina nem sabe jogar futebol. Quero ver então! Vai pro time do Adilson. Não quero menina no meu time. Mulher não sabe jogar não. Vai! Adilson!! Se ferrôôô!! Haaaaa! Haaaaa! Adilson Vem pra cá vocês dois então. O Daniel vai no gol e você fica na defesa. Eu, Douglas e o Neguinho vamos pro ataque. Vamos começar, Valter. Estamos com o time mais fraco. Antônia (Para Daniel) Vai! Vai! Solta a bola pra mim, tá? Antônia pega a bola, sai driblando os meninos. Passa a bola
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para o Adilson. Adilson Ohh!! Ohh! Ela sabe jogar mesmo, Haaaa! Toma, Valter. Toma, Valter! Haaaa! Quem se ferrouuu foi vocês!! Não quis ela no seu time! Haaaa! Haaaa! Antônia sai com a bola, cruza entre os meninos, passa para o Douglas. Douglas recebe a bola, joga de primeira para o gol. As crianças comemoram. 14- INT. COZINHA DA ESCOLA - DIA Cozinheiras limpam a cantina, conversam e sorriem. Cozinheira – DONA DORIVA (43) Morena clara, 1,70m de altura, magra, cabelo castanho, curto, liso, olhos castanhos, calça branca, camisa branca e avental.
Estava com saudades dessa criançada. Uma alegria. Ser criança é libertador, aprender a escrever, ler, ser letrado! Brincar, descobrir o mundo. (limpando o balcão da cantina) No nosso tempo, a gente já trabalhava na roça ajudando o pai e a mãe. Cozinheira – DONA TEREZA (48) Morena clara, 1,74m de altura, cabelo castanho médio liso, olhos castanhos, calça branca, camisa branca e avental.
Quando eu era criança, a gente tinha os embornal de algodão. Estudar era muito difícil. (lavando a louça da merenda) A gente morava na fazenda. A escola era muito longe. Acordava de madrugada, tinha aquela neblina, os pastos tudo molhado de orvalho. A vida não era tão boa assim como dessa criançada de hoje em dia.
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15- EXT. RUA DA ESCOLA - DIA Alunos caminham pela rua, voltando para casa. Valter vai jogando bolinha de gude na rua com Neguinho. Jogam valendo. Antônia e Daniel caminham juntos, acompanhando o jogo. Valter Quem perder a jogada, perde a bolinha de gude, hein? Vamos jogar valendo, hein? Vou começar então. Vou te dar uma chance. Oh! Neguinho, se eu ganhar, a bolinha é minha. Nem adianta ficar chorando. Neguinho Tá! Só tenho três, vamos! Eu que vou ganhar, cara. Lá vai! Neguinho mira na bolinha, joga e erra. Valter mira e acerta de primeira. Comemoram. Antônia e Daniel observam. Antônia Amanhã vou trazer as minhas. Daniel Esse Valter é bom. 16- INT. CASA, COZINHA DA BISA CHICA - DIA Fogão a lenha, uma mesa pequena, louça suja na pia, três cadeiras. Tem panelas, tampas e colheres penduradas na parede; uns ramos de erva cidreira, tranças de alho penduradas, cebolas. A cozinha é uma instalação de coisas. As portas e as janelas estão abertas. As cortinas, amarradas. Hora do almoço. Faz calor. Bisa Chica cozinha. Bisa Chica (mexendo no feijão, arrumando as panelas no fogão) Crianças!
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Como foi a aula? Venham aqui contar pra Bisa! Se comportaram? Antônia, a Bisa vai ensinar você a cuidar da casa. Vai arrumar as camas, lavar as louças, depois limpar a casa. Barrer a casa, bem limpinho viu! Mulher só casa se souber cuidar de casa! Nenhum marido gosta de mulher que não sabe cuidar da casa! Antônia Eu não quero casar, Bisa. (em pé, coloca a bolsa na mesa) Daniel também vai aprender, né? Porque ele está lá fora brincando. Eu só gosto de lavar louça. Não gosto de fazer outros serviços de casa. 17- EXT. QUINTAL DA CASA DA BISA CHICA - DIA Daniel brinca de bolinha de gude, joga sozinho de um lado para o outro no quintal. Daniel Vou acertar bem na mosca! NEGUINHO (08 ) Moreno, 1m de altura, cabelo preto, enrolado, raspadinho, bem baixinho, olhos castanho-escuros. Está de shorts marrom, camiseta amarela, chinelo havaianas preto.
Ei, vizinho! Ei! Daniel olha para os lados procurando de onde vem a voz. NEGUINHO Aqui na cerca! Estou aqui, cara, trepado na cerca, olha pra trás. Vamos jogar bolinha de gude à tarde aqui no quintal de casa depois do almoço? Minha mãe só deixa eu brincar aqui na frente.
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Vem aqui depois, joia? Daniel Sim, daqui a pouco chego aí! (faz sinal de joia.) Bisa Chica Vem. Daniel. Tá pronto o almoço! A Bisa vai começar a fazer o pão. Depois a Antônia vai aprender a cilindrar. Daniel também! 18 - EXT. RUA FRENTE DA CASA DE NEGUINHO - TARDE Gente, carros e bicicletas passam. Neguinho e Douglas estão na frente de casa jogando biroquinha no quintal. Daniel chega para brincar. Neguinho Vou fazer as caçapinhas. O Daniel vai vir jogar. Sabia? Ele está na minha sala. DOUGLAS (13) Branco, 1,10m de altura, cabelo médio, ruivo liso, olhos castanhoclaro. Está de shorts florido, camiseta verde claro, chinelo havaianas azul.
O Daniel irmão da Antônia? Ela está na minha sala. Sentou lá na frente! Eu que não sento lá na frente, perto da professora... Você viu ela jogando futebol? Deu uns lé nos piá que foi bonito de ver. Ela joga mesmo, cara! Como ela aprendeu? Tem que chamar ela pro nosso time amanhã. Daniel E aí! Posso brincar? Tenho duas bolinhas de gude. 19- INT. CASA DA BISA CHICA - TARDE Casa bagunçada, louças na mesa, pia cheia de panelas. Bisa Chica coloca água nas bacias, uma bacia para lavar e outra para enxaguar a louça.
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Bisa Chica Vou deixar preparado as louças aqui para você lavar, Antônia. Depois barre a casa. Não quero você batendo perna na rua. Hoje vou carpir a horta. Está cheia de mato. Vi uma cobra perto do pé de banana. Ela se escondeu debaixo das folhas secas. Antônia lava a louça rapidamente. Antônia Cobra?! E se ela vir aqui dentro, Bisa Chica? Bisa Chica Acho que era cobra cega. Não vem aqui dentro não. As galinhas vão achar ela logo logo! 20- INT. CASA, QUARTO DE ANTÔNIA - TARDE Antônia abre a gaveta da penteadeira. Do fundo, ela puxa um saquinho de tecido, onde guarda algumas bolinhas de gude. Escolhe algumas e coloca no bolso. Antônia (grita) Bisa Chica, vou buscar o Daniel na rua. Já volto. Ele foi ali na casa da Adália, a mulher do Mané, brincar com o Neguinho. 21- INT. CASA, QUARTO DE BISA CHICA - TARDE Ao lado da janela, tem uma máquina de costura, onde Bisa Chica trabalha num tecido xadrez laranja com branco. Bisa Chica (grita) Vai o quê? Tô fazendo um presente pra você e o Daniel. Não demora para voltar. Seu irmão não pode ficar na casa dos estranhos assim. (resmunga)
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Parece que não tem casa. 22- EXT. QUINTAL, FRENTE DA CASA DE NEGUINHO - TARDE Chão de terra. Os meninos brincam agachados o “jogo de biroquinha”. Neguinho, Douglas e Daniel estão arrumando para iniciar a partida. Antônia chega e se interessa pelo jogo. Os meninos ensinam a Antônia o jogo. Antônia E aí? O que vocês estão fazendo? Como joga isso? Também quero brincar. Posso? Daniel, a Bisa Chica falou pra gente voltar logo, mas vamos brincar rapidinho!! Neguinho É assim: todo mundo joga, um por vez, na última caçapinha. Quem acertar a caçapa começa o jogo. Se você acertar todas as biroquinhas, ganha todas as burquinhas de quem está jogando. E, se você errar, é o outro que joga, até voltar na sua vez. Faz assim até completar as 4 biroquinhas. Pode ir matando as burquinhas no caminho e vai ganhando também. Entendeu? Antônia Mais ou menos. Esse jogo eu não conhecia. É diferente, mas é legal. Vamos jogar a primeira partida sem valer para eu aprender! Depois a gente joga valendo, tá? Daniel Vamos. Eu já aprendi. Douglas Eu vou começar! Hoje tem bastante gente. Uma partida sem valer para esquentar.
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Antônia Depois sou eu! (acerta a caçapinha) Uhuu! Uhuu! Pena que essa não está valendo ... Antônia (sorri para Daniel) Depois te dou uma burquinha! Vamos! Estou começando a gostar desse jogo, Daniel! Daniel Eu só tenho mais uma burquinha, Antônia ... Dá uma pra mim para eu jogar? Empresta uma bolinha. Se eu ganhar, te pago.
Bisa Chica (caminha na rua procurando as crianças) Tonha! Tonha! Daniel! Crianças! Já pra dentro! Onde se viu ficar na rua uma hora dessa! Mas pera lá! Antônia Ei! Valeu! Tenho que ir embora. Vem Daniel, a Bisa Chica está chamando a gente. Daniel Ei! Amanhã a gente volta a brincar. Bisa Chica vê Antônia jogando, no meio dos meninos. Bisa Chica Mas onde se viu uma coisa dessa, meu Deus? A Juraci educou tudo errado essas crianças. Mas eu quero ver vocês na rua novamente.
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Eu tenho uma varinha de marmelo que vocês vão experimentar logo, logo se ficarem vindo na rua! 23- INT. CASA, BANHEIRO DA BISA CHICA - NOITE A crianças tomam banho e dão risadas. Bisa Chica vai até a porta do banheiro e conversa com as crianças, que não param de falar entre si. Bisa Chica Depois que vocês tomarem banho, vão fazer um lanche. Antônia, você precisa tomar jeito de menina. Não pode ficar na rua no meio dos meninos. Menina direita fica dentro de casa. Desse jeito vou ligar pra sua mãe. Ou melhor, ela vai me ligar. Se você continuar assim ela nem vai mais voltar, já vou falar pra ela ficar lá mesmo. Antônia Bisa Chica, eu estava brincando. Eu ganhei o jogo. Tive muita sorte, não é, Daniel? Ganhei de todos eles. Haaa! Haaa! Foi S O R T E. Nem sabia brincar direito daquele jogo. Saudade da mãe (fica chateada) Falta muito tempo para o Natal? Daniel (Com o olhar rebaixado) Eu também queria a mãe. Bisa Chica Saiam daí e se troquem. Esse banho está muito enrolado! Vamos fazer um lanche. Depois, todo mundo pra cama. Amanhã tem aula
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cedo. 24- EXT. RUA, CAMINHO DA ESCOLA - DIA Antônia e Daniel vão sozinhos para a escola. A cidade quase vazia. Dá para ver a mulher do leite vindo, lá na curva, perto da casa do Cuca. Alguns cachorros na rua, crianças indo para a escola. Valter passa por eles e começam a caminhar juntos até a escola. Antônia Vem, Daniel. Vamos andar rápido. Hoje quero chegar antes dos meninos na quadra. Daniel Quero jogar no seu time. Você me chama? Pede para o Adilson me chamar? Antônia Primeiro o Adilson vai me chamar e depois falo para ele chamar o Robertinho. Depois a gente chama você. Vamos! Quem chegar por último é mulher do Padre! Valter Ei! Ei! Me esperem. Vou com vocês. Hoje vim mais cedo pra jogar. Valter sai correndo para alcançá-los. 25- EXT. RUA, CAMINHO DA ESCOLA - DIA Cidade, poucas pessoas, pracinha, um bêbado no banco dormindo, pessoas andando indo para trabalho, para a roça. Passam alguns carros, gente de bicicleta. Dona Dirce, entregadora de leite, passa de bicicleta. Toninho, abrindo o mercado, vê Antônia e Daniel. O posto telefônico está sendo aberto por Maria (25).
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Dona Dirce (50) Morena clara, 1,70m de altura, um pouco obesa, cabelo preto, amarrado, usa chapéu de palha, saia por cima da calça camisa xadrez, bota.
Bom dia, Toninho. Hoje só vai ficar com uma garrafa de leite? Pega duas, rapaz! A vaca deu cria e tem muito leite e está gordo, bonito de ver. TONINHO (55) Moreno claro, 1,85m de altura, senhor com barriga, calvo, calça social cinza, camisa branca, caneta bic na orelha, palito de dente na boca, chinela de couro marrom.
Bom dia, dona Dirce. Está bonito mesmo. Deixa duas garrafas então. (fala com Antônia e Daniel, que passam na frente do mercado) Já indo para a escola, crianças? Não está muito cedo? Isso que é gostar de estudar. Toninho olha para o Posto Telefônico, ao lado do mercado. Fala baixo perto de Maria. Toninho Está sabendo, Maria? Essas crianças deixadas pelos pais, coitadinhos. Essa menina, Antônia, fica no meio dos meninos. Dizem que joga futebol! O zelador estava me contando. Veio aqui buscar umas coisas no mercado. O pai fica por aí; a mãe, ninguém sabe! Maria Bom dia, crianças! Não fiquem correndo. Depois vão cair e chegar suados e sujos na escola. (Para Toninho) Bom dia, Toninho. Não sabia, fica no meio dos meninos? Vixiiii!
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Toninho Essa menina! Só o que faltava mesmo ... mulher agora joga futebol. Já tão falando na escola que ela vai na quadra de futebol. É igual a professora Fátima. Essa mué joga igual um omi. Gosto de ver ela jogando. É até bonito de assistir. Como que pode gostar de futebol? Essa menina nem deve ter boneca para brincar. Tem que vim aqui comprar, né, Maria? Fala pra Dona Chica! Haaaa! Haaa! Coitada da Dona Chica, criar filhos dos outros não é fácil. Onde se viu casal se disquitar. O mundo está perdido mesmo. Mas também trabalhar nessa cidade, que parece o fim do mundo. Viver não é fácil. Antônia Bom dia, Maria. Sabia que eu consigo correr? Sou muito rápida! Maria Dá um recado para a Dona Chica que a sua mãe vai ligar hoje às 15h aqui no Posto Telefônico. Daniel começa a caminhar, resmungando baixo sobre Maria. Daniel Ela fica olhando a gente. 26- EXT. ESCOLA, QUADRA DE FUTEBOL - DIA Antônia deixa a bolsa no chão, amarra o cabelo. Fica olhando para ver quem chegou. Tem um monte de crianças correndo, outras conversando. Brincam de pega-pega. Valter abre a mochila, pega a bola, vai ao encontro dos meninos do outro lado da quadra. Segura a bola na cintura, de costas para Antônia. 152
Antônia (grita do outro lado da quadra) E aí? Vamos jogar? Vamos fazer os times. Oh! Quem quiser jogar vem pra cá, vem pra cá! Valter A gente sai com a bola. Pode começar a chamar, Antônia. Vamos ver esse seu time se é bom mesmo. Antônia Vamos lá. Douglas, Adilson, o Neguinho... falta um! Denise! Ei! Quer jogar? Você e o Daniel. Quem vai no gol? E o outro vai na defesa, junto com o Neguinho. A gente no contra-ataque! Vamos, vamos! Chama seu time, Valter, antes da aula começar. DENISE (08) Branca, 1,20m de altura, cabelo médio castanho-claro enrolado, olhos verdes, usa óculos redondo, gordinha, veste calça de tecido mole, camiseta clara, tênis verde.
Oi! Ah! Eu quero brincar sim. Pode ser em qualquer lugar. Na defesa, acho que sou boa. O Daniel, que é menor, vai no gol! 27- EXT. ESCOLA, QUADRA DE FUTEBOL - DIA Jogo acontecendo, algumas crianças observam as meninas na quadra, jogando com os meninos. Elas jogam cartas no canto da quadra e cochicham uma na orelha da outra. Fátima aparece na quadra. Fátima Sinal estragou, crianças. Vamos formar as filas para entrar nas salas de aula. Passa a bola pra mim, Valter, joga a bola aqui! Gosto de bater balãozinho.
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Vamos, galerinha! Valter Nossa! Nossa! Quantos balãozinhos! Segura essa Douglas, quero ver você fazer mais! Antônia Nossa! Noooossa! Ela joga futebol também! Vamos, Daniel. Hoje tem aula de matemática. Gosto da professora Fátima. Ela é engraçada. Ela sabe pilotar moto! Eu já vi! Quando eu crescer, eu também quero aprender. Daniel Não gosto muito de matemática. Gosto de educação física com o professor Silvio. 28- INT. SALA DE AULA - DIA Aula de português. Professora Otília escreve na lousa o cabeçalho. DONA OTÍLIA (60)
Morena clara, 1,70m de altura, cabelo curto, preto, olhos castanhos, calça social marrom, camisa rosa, sandália marrom.
Escola Glória Xavier Mendonça, Rio Bonito, 16 de Janeiro, 1989 Professora: Otília Aluno (a): Otília pega um livro, folheia e para em uma página. Otília Hoje vamos ter aula de ditar palavras. Vou ditar a história, e vocês escrevem. Vai valer
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pontos esse exercício. Vamos testar a pontuação. Em 1500, quando o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares ... Antônia copia o que está escrito no quadro, começa a escrever, levanta a mão. Antônia O Brasil foi descoberto? Mas não tem mais ninguém no mundo? Só tem aqui no Brasil a gente, os índios e os negros, minha mãe falou! Lá onde ela foi no garimpo só tem índios, sabia, professora? Otília Não, Antônia, a professora vai explicar. Calma. Escreve o ditado. A sua mãe foi trabalhar na terra dos índios. Esse lugar é muito longe. Mas ela está em outro lugar, não é o mesmo dessa história que estou ditando. Vamos continuar. Vírgula! Antônia É para escrever vírgula? O que é vírgula? Crianças da sala Haaa! Haaa! Haaa! Adilson Vírgula é uma pontuação, um C pequenininho ao contrário, Antônia. Otília Continuando, crianças. Pelo visto vocês deixaram os livros de lado, dormindo nas férias, né? A cama dos livros! Nessa época, o Brasil tinha muita mata virgem,
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Pau-Brasil, muitos bichos, as terras com muitas riquezas minerais... Claudia Professora, num é epóca que fala? Crianças da sala Haaa! Haaa! Haaa! Antônia Não, Cláudia, é época! Bate o sinal e as crianças comemoram. Otília Vamos terminar o ditado na próxima aula. Vai valer pontos. Estudem sobre as pontuações. Parece que vocês não estão lendo o livro de português em casa. Crianças Arrumaram o sinal, professora! Eeeeee! Eeeeee! Eeeeee! Crianças pegam as mochilas e saem da sala. 29- INT. CASA, COZINHA DA BISA CHICA - TARDE Louça suja. Bisa Chica escuta rádio. Rádio: música Ney Matogrosso - América do Sul Deus salve América do Sul Desperta, o claro e amado sol . Deixa correr qualquer rio Que alegre esse sertão Essa terra morena, esse calor Esse campo, essa força tropical Desperta América do Sul... Antônia lava a louça do almoço bem rápido. Brinca com a água, mergulha as mãos dentro das bacias. Bisa Chica faz
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um virado de feijão com cebola, carne frita e farofa. Escuta a música tocando, chacoalha a cabeça. Bisa Chica Esse cantor parece um bicho! Eu gosto dele, é um passarinho do mato. Até orna Ney Mato - Mato Grosso! Seu vô gostava de forró. Música dos gaúchos Começa a tocar Ala Pucha - Os Serranos Ala pucha, tchê não se assustemo' Que no perigo a bala vem nóis se abaixemo' Ala pucha, tchê não se assustemo' Que no perigo a bala vem nóis se abaixemo' Se a bala vem por baixo, eu salto pra cima Se a bala vem por cima, me atiro pra baixo Se a bala vem no meio, e rolo pra qualquer lado E saio dando pulo mais do que tatu faqueado Bisa Chica Minha mãe falava quando eu era criança que, quando os homens estiverem virando mulher e as mulheres virando homem, é sinal que o mundo está pra acabar. Antônia Quando isso vai acontecer? Por que, Bisa Chica? Os homens não gostam de ser homens e as mulheres não gostam de ser mulheres? Como vão fazer isso? Meu pai vai vestir camisinha? A mãe achou umas camisinhas uma vez na mala dele de viagem. Por que ele usa camisinha, Bisa Chica? Ele queria virar mulher?
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Ficar de barriga de fora? A mãe jogou tudo fora! Podia ter me dado. Ia servir certinho pra mim. Bisa Chica Eles vão aparecer no mundo pro fim dos tempos. É do Diabo, a perdição, o mundo está perdido mesmo. Seu pai não usa camisinha, menina. Pare de falar bobagem. Fica Inventando essas histórias. Fica jogando bola com os meninos que você vai ver o que vai acontecer com você! Antônia O mundo então não vai acabar, né, Bisa Chica? Bom mesmo é que aqui no Rio Bonito ninguém quer virar homem nem virar mulher. Antônia sobe na cadeira, pendura algumas panelas na parede, guarda os copos, tampas. Olha para seus braços, pernas, barriga e fica pensativa. Bisa Chica É! É! E o seu irmão já foi para a rua. Esse menino não tem jeito. Antônia A louça está limpa. Vou procurar ele lá fora! Maria (V.O) Dona Chica! Dona Chica! Tem telefone para a senhora. É a Juraci! Vai retornar daqui 10 minutos. Bisa Chica Opa! Já vai! Antônia não vai de novo brincar com os meninos, hein!
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Vai buscar seu irmão e vorta pra dentro de casa. Lugar de menina é dentro de casa. Vou falar com sua mãe. Já volto. Vamos ver as notícias de lá! Se você ver seu tio Cauê, fala para ele passar no posto de telefone. Antônia Vou esperar a senhora voltar. (arruma as bacias na mesa, enxuga as mãos) Vou brincar no meu quarto. 30- INT. CASA, QUARTO DE ANTÔNIA - TARDE Antônia se observa no espelho, tira a camiseta, se olha, veste a camiseta, amarra o cabelo. Abre a gaveta da penteadeira, vai até a porta e verifica que está sozinha em casa. Volta, pega o saco de tecido. Tem umas bolinhas de gude. Esparrama sobre a cama e começa a brincar de planetas. Coloca na cama várias burquinhas e olha para elas contra a luz do sol. Antônia Nossa, que planeta legal! Tem planeta azul claro, azul escuro, com listra branca, tem verde, marrom, as paraguayas. Quem mora nesses lugares? Preciso ganhar mais. Essa vou guardar na minha coleção. Não vou perder não. É muito bonita. (escolhe outras e coloca no bolso) Cauê aparece na porta do quarto de Antônia. Cauê Antônia, o tio passou aqui rapidinho! Cadê a Vó Chica?
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Antônia Ela foi falar com a mãe no posto telefônico. Vai lá falar com a mãe! A Bisa Chica não deixa a gente ir... 31- INT. POSTO TELEFÔNICO - TARDE Uma mesa com um telefone cinza, um banco de couro preto e bloco de anotações. Maria, sentada, faz anotações o bloco. Um banco de couro preto, Maria Posto Telefônico, alô, Rio Bonito, boa tarde! Ah! Juraci! Só um momento. Ela acabou de chegar. Vou passar para ela. Bisa Chica Alô! Alô! Deus te abençoe. Quanto tempo, fia! Como está aí? Seus irmãos? Você está bem? Nós estamos com muitas saudades, as crianças... Juraci (V.0.) Vó Chica, que saudades! Estamos bem, onde estamos é no meio da mata, tem muita gente aqui, mas estamos bem. É difícil sair para ligar. Lá na mata não tem telefone, tenho que vir para Porto Velho. Vó Chica, os meninos têm bastante conhecidos aqui. Estão fazendo bastante ouro. Quem sabe a gente fica tudo rico, hein?! E as crianças? Tô com tanta saudade. Não sei se fiz certo de vir, mas quero comprar uma casa. O Cauê está aí? Queria falar com ele também. Cauê chega no Posto, vai na porta da cabine, acena para a Bisa Chica. Cauê Quero falar com ela!!!
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Bisa Chica Você foi muito corajosa. Vai conseguir realizar seu sonho sim. Reza para o Divino Espírito Santo te ajudar a realizar esse sonho da casa. O Cauê chegou aqui. Quer falar rapidinho com ele? Cauê (entra na cabine) Bença, vó Chica. Deixa eu prosear com a mana! Cauê pela o telefone. Bisa Chica sai. Fica esperando ele sentada no banco. Cauê Mana!! Eita, que saudade! Mué estava preocupado. Você não ligou. Ficamos sem saber o que fazer. Escutei no rádio que é perigoso onde vocês estão. E os manos estão fazendo ouro aí? Também tenho vontade de ir. Deixo a minha mué com as crianças perto da Vó e fico com vocês. Juraci Cauê, bom escutar a sua voz. Saudade mano, saudades das crianças, meu coração não sei se vai aguentar. Deixa eu te contar: Aqui não tem lei. Cada um se protege como pode. A polícia já entrou umas vezes no garimpo. Sai atirando e apreendendo o material das balsas para os garimpeiros não garimpar. Já fugimos umas vezes aqui. Ficamos escondidos na mata uns dias. Cauê Nossa! Achava que era mais fácil pegar ouro na mata! Juraci Então, como estava te falando, depois que a polícia
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foi embora nós voltamos para a balsa. Estou trabalhando na cozinha. Aqui é muito bonito. Tem muitos pássaros, mas não sei como vou voltar. Descobriram ouro perto de uma cachoeira. Eu tive um sonho, uma revelação de onde estava o ouro. Uma voz falou no sonho! O pessoal não quis acreditar muito, mas a hora que viram o ouro! Agora estão me respeitando. Fizeram latas de leite ninho cheia de ouro, coisa mais linda de ver. Estou guardando o que eu ganho dos meninos. Acho que logo vou comprar a minha casa. E as crianças? Cauê A vó Chica está cuidando. Quase não vejo eles. Fico trabalhando no bar e volto para a minha casa. Mas aqui no Rio Bonito todo mundo cuida da vida de todo mundo. Haaaa! Haaaa!! Gente fifi!! Sabe, né? Se cuida e me avisa se você acha seguro eu ir pra trabalhar também. Juraci Cauê, vou demorar pra voltar. Ajuda a cuidar das crianças. Não fala para a vó Chica. Anota um número se precisar de mim ou acontecer algo com as crianças. Nesse número eles entregam os recados. Não passa para Ninguém. É perigoso. É 36 – 7788. Fica bem. Um abraço! Deixa eu falar novamente com a Vó e me despedir. Cauê faz um gesto para chamar a vó, que se levanta e pega o telefone. Juraci Vó Chica! A senhora sabe da importância de cuidar
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dos meus filhos pra mim, né? Nem tenho como agradecer. Logo vamos ter a nossa casa. Me fala das crianças? Tenho que desligar logo. Bisa Chica Alô! Alô! Esse negócio de telefone, como é que dá certo de falar com você? Você está tão longe, menina. Estão bem! A Antônia às vezes foge para brincar com os meninos. Essa menina vai virar machofêmea! Juraci Vó, criança é criança! Que conversa é essa? Antônia é uma garotinha peralta, é esperta. Brincar é viver, ter saúde. Lembra da gente criança? Nunca tinha tempo para brincar. Eu consegui estudar até a terceira série. A gente tinha que trabalhar com o pai na roça. Eita tempo difícil né, vó Chica? Um dia eu volto. Preciso comprar uma casa para ficar junto dos meus filhos. Obrigada por cuidar das crianças. Lembra que elas são crianças! Não são adultas! Bisa Chica Enquanto eu estiver viva eu cuido deles, se Deus me der forças. Fiz um vestido para a Antônia. Eles mandaram lembranças. A Antônia fica perguntando quando vai ser o Natal! Ela está te esperando, fala isso quase todo o dia: falta muito, Bisa Chica?? Haa! Haa! Tchau, se cuida, manda lembranças para seus irmãos. 32- EXT. QUINTAL DA BISA CHICA, GALINHEIRO - TARDE Bisa Chica caminha no galinheiro, arruma a casa das galinhas, coloca quirera de milho. Galinheiro está cheio de galinhas.
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Bisa Chica vê Daniel e Antônia no quintal da vizinha ao lado. Pega uma vara na mão. Luzia, filha da vizinha, vê e avisa as crianças. LUZIA (13) Morena clara, 1,60m de altura, cabelo curto, enrolado, veste um vestidinho cor goiaba, chinelo rosa. Irmã de Neguinho.
Antônia! Antônia! Corre! A sua Bisa Chica está vindo te buscar de vara! Vem aqui por dentro. Tem um portão que sai na sua casa. Corre... Antônia Tchau, meninos! Vou pra casa! Daniel Oi Bisa Chica, deixa eu ficar aqui, tô brincando. Ah! A senhora é ruim! Bisa Chica O que você disse, menino? Mas pera lá, te dou umas varadas e quero ver você me responder novamente. Pra dentro agora! (bate com a vara no chão). Chega de rua! Cadê o homem do saco preto? Está vindo lá na curva, vai pegar todas as crianças que ficam na rua. Crianças arregalam os olhos, cada um vai para sua casa. Neguinho Por que ela não pode brincar com a gente? Os adultos são ruins. Quando eu crescer vou fazer o que eu quiser.
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33- INT. CASA DA BISA CHICA, BANHEIRO - NOITE Antônia e Daniel tomam banho juntos. Passam sabonete no chão, escorregam, brincam, dão risadas, cheios de sabão nos cabelos. Bisa coloca o vestido e o shorts em cima do vaso. Bisa Chica (V.O) A mãe de vocês está bem. Disse que está com saudades de vocês. Ah! Tem uma surpresa para vocês! Quero que experimentem as roupas que eu costurei. Antônia, você vai começar a vestir roupas de menina. Fiz um vestido pra ir na aula e um shorts para o Daniel. Antônia Ela vai vir no Natal mesmo? Esse vestido já é presente do Natal? Falta pouco tempo, então. Estou entendendo tudooo! (pega o vestido, olha, sorri e experimenta) Tem alcinhas para amarrar. Arruma pra mim, Bisa Chica! A senhora que fez? Bisa Chica Sim, aprendi a costurar com a minha mãe. Gosto de costurar à mão. A Bisa vai te ensinar. Daniel O shorts ficou um pouco apertado, Bisa Chica, mas serve. A mãe vai trazer a roupa do Super-Homem, sabia? Bisa Chica Pronto, agora vou tomar banho. Depois vamos lanchar para dormir. (abraça eles)
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34- INT. CASA DA BISA CHICA, ACESSO AO BANHEIRO - NOITE Bisa toma banho. As crianças espiam ela pelo buraco do banheiro. Crianças esperam a bisa entrar no banheiro, falam baixinho Daniel Ei! Vamos olhar no buraco? Vê a Bisa Chica tomar banho! Antônia Nossaaa! Nossaaaa! Ainda bem que eu não sou igual ela! Ela tem peito, um monte de cabelo lá! Por que será? Daniel (com olho arregalado e cara de espanto) Nossa! Credo! Psiuuu! (faz sinal com a mão para Antônia para irem para o quarto) 35- INT. ESCOLA, SALA DE AULA - DIA Antônia está um pouco sem jeito com o vestido. Tenta ficar concentrada na professora. As meninas olham para ela. Valter empurra a carteira dele para bem perto da cadeira de Antônia, desamarra uma alça do vestido, fica rindo. Antônia tenta amarrar sozinha, não consegue. Vai até a professora Fátima. Antônia Professora Fátima, amarra pra mim? A professora arruma. Antônia volta para a carteira, puxa a cadeira longe do Valter, olha para ele com cara bem brava. Antônia Valter, se você desamarrar novamente é porque você gosta de vestido!
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Valter (encosta perto da cadeira de Antônia) Eu gosto do seu vestido. Valter desamarra a outra alça do vestido, fica rindo. Alguns meninos também dão risadas. Antônia Seu chato, você é muito chato. E tem vontade de vestir vestido, é isso? Você falou que gosta do meu vestido? Oh! Oh! Professora Fátima. Fátima O que é isso, Valter? Está pensando o quê? Na próxima vez, te troco de carteira. Amanhã vou trazer um vestido na aula e deixar em cima da minha mesa. O primeiro engraçadinho vai vestir o vestido e quero ver como vocês vão se sentir. Você gostaria que alguém tirasse alguma roupa sua na aula? Ou em algum outro lugar? Ninguém pode fazer isso com vocês! Muito menos com um amiguinho ou amiguinha! Criança 1 Eu que não fiz isso professora! Criança 2 Eu também não, o Valter que fez isso! Antônia (chateada com a situação) Nunca mais venho de vestido na escola. Vou contar tudo para minha Bisa Chica. 36- INT. CASA, QUARTO DE ANTÔNIA - TARDE Antônia tira o vestido e o esconde debaixo da cama. Chora.
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Antônia (fala sozinha olhando para o espelho) Nunca mais quero usar esse vestido. Eu odeio o Valter. Ele é muito chato. (pega as burquinhas, brinca na cama) Daniel entra no quarto. Daniel O que você está fazendo? Antônia Brincando de planetas! Quer brincar comigo? Daniel Nossa! Quantas burquinhas você tem! Dá umas pra mim!! Antônia Deixa eu ver, escolher aqui. Só se você lavar a louça pra mim um dia. Só eu que lavo as louças, você fica brincando. Tem umas que não é para você pegar, hein! Deixa eu ver. Bisa Chica aparece na porta. Bisa Chica Ah! Hoje vocês estão dentro de casa. Que bom! Vem aprender a rezar a Salve Rainha! Antônia Bisa Chica, eu não vou mais estudar de vestido. Tem um menino que fica desamarrando meu vestido. Nunca mais vou colocar ele. Bisa Chica Mas onde se viu uma coisa dessa! Vou conversar com a mãe desse menino. Pode deixar!
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TEMPOOOOOOOO... T E M P O Vento, nuvens, sol, chuva, frio, primavera, verão! Telefonemas de Juraci. N A T A L Chegando Natal! 37- INT. CASA, COZINHA DA BISA CHICA - TARDE EnfeiteS de Natal. Bisa, Antônia e Daniel limpam a cozinha. Cadeiras erguidas na mesa. Preparam tudo para receber os parentes. Antônia escorrega na água com Daniel. Bisa joga água no chão, esfrega. Pega balde de água e com uma caneca joga água nas paredes. Daniel joga água em Antônia. Bisa Chica Quero essa casa um brilho!
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Daniel Ei, Antônia! Está com calor, né? Quer se refrescar? Daniel joga água em Antônia, que escorrega e cai no chão ao tentar se desviar. Antônia Ai! Ai!! Bisa Chica Antônia do céu! Deixa eu ver isso. Fica aprontando procê ver. Desse jeito sua mãe não vai voltar. Vão crescer sem mãe e sem pai! Vem, vamos da um jeito nisso. 38- EXT. FARMÁCIA - TARDE Senhor José Pezinho olha o corte pequeno no queixo. Bisa Chica está com o semblante assustado. JOSÉ PEZINHO (55)
Branco, 1,80m de altura, cabelo curto e branco, com uma barba branca curta, calça social cinza, camisa listrada azul claro, sapatos pretos, tem uma deficiência nos pés.
Como você se chama, garotinha? Antônia (pálida, com os olhos arregalados) Meu nome é Antônia. José Pezinho Você queria ter duas bocas, é? Vou ter que costurar uma! (sorri) Se não ninguém vai aguentar uma criança tão falante, né? Brincadeira do tio. É um machucadinho. (dá 5 pontinhos no corte)
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39- INT. CASA, COZINHA DA BISA CHICA - NOITE A Bisa ferve leite. Antônia está sentada, de cabeça baixa. Mexe nas canecas. Daniel observa a irmã. Bisa Chica Toma esse leite aqui, já está com açúcar. Amanhã você vai estar melhor. Bem no Natal, hein, Antônia. Imagina se você quebra o queixo! Vamos rezar e agradecer. Isso foi um milagre você estar viva. Amanhã você vai rezar e colocar uma fita na bandeira do Divino Espírito Santo. Assim sua mãe nunca vai voltar. Você só faz coisas erradas! Vai rezar! Antônia (toma o leite pensativa) Ela disse que voltava. (levanta e vai para o quarto) 40- EXT. PORTÃO DA CASA DA BISA CHICA - MADRUGADA Encosta um taxi no portão. Juraci desce do carro e tira as muitas malas e bolsas. Juraci Graças a Deus cheguei! Bisa Chica aparece na janela. Bisa Chica Meu Deus! É um milagre de Deus! Você está viva, minha fia! Pensei que você nunca mais ia voltar. Graças a Deus! Juraci Resolvi fazer uma surpresa para vocês. A viagem foi longa, mas consegui chegar a tempo para essa festa linda.
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Bisa Chica Está magrinha, Juraci, mas está bonita. Parece que estou em um sonho. Meu Deus, que surpresa boa. Vem entra. Juraci Trouxe presente para cada um! Graças a Deus eu consegui voltar. Muitas vezes pensei que eu iria morrer. Tenho muitas coisas para contar. Trouxe uma coisa especial para a senhora. Cadê as crianças? 41- INT. CASA, COZINHA DA BISA CHICA – MADRUGADA Bisa Chica chacoalha uma caixinha. Bisa Chica O que é isso? Um relógio? Hum, o que será, hein? Não precisa se preocupar comigo, fia. Abre, pega um colar com uma pepita de ouro de pingente. Bisa Chica Nossa! Que coisa mais linda, nunca vi isso assim. Muito obrigada, gostei muito. (abraça Juraci) Daniel aparece na cozinha. Está sonolento. Fica surpreso ao ver a mãe. Juraci Acordou com as conversas, meu filho? (chora e abraça Daniel) Meu menino já está um homenzinho! Esses cachinhos da mãe! Ai! Meu filho, que saudades, me dá um beijo, muitos beijinhos. A mãe trouxe para você... Quer uma chance para adivinhar?
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É de... Super... Hein? Daniel Mãe! (abraça a mãe, senta no seu colo, segura o presente e abre. É fantasia de Super-Homem) Nossa! Nossa!! Posso ir na escola assim? Juraci Se tiver o dia da fantasia, pode. No carnaval também pode! Pode usar como você quiser! É sua essa roupa. O voo é todo seu, meu menino! E a Antônia? Vai chamar ela, Daniel! 42- EXT. CASA DA BISA - QUINTAL - TARDE Muitos pés transitando, começa uma chuva de bolas, crianças correndo, pegando as bolas. Antônia pega uma bola e chuta para cima. Antônia corre no jardim, vê muitas crianças brincando. Abre os braços como se pudesse voar! Corre muito e pula! Corre! Antônia pega uma bola e chuta para cima. Daniel Antônia! Antônia! Acorda! Você não vai acreditar! A mãe chegou! A mãe chegou! Antônia (Acorda assustada) Nossa, quantas bolas naquele lugar! Daniel, o que foi? A mãe? Onde você viu a mãe. Você também tava sonhando?
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Daniel Antônia, não estou sonhando. É verdade. Vem na cozinha. Antônia levanta rápido da cama e sai do quarto. 43- INT. CASA, COZINHA DA BISA CHICA - MADRUGADA Bisa e Juraci estão sentadas de frente uma para a outra. Bisa está com o cabelo solto, bagunçado, de camisola. Juraci, com as malas no chão e sacolas na mesa com presentes. Antônia (parada na porta da cozinha, olha sua mãe) Eu sabia que a senhora iria voltar. Eu sabia! Juraci (vira na cadeira e vê Antônia. Sorri. Seus olhos estão cheios de lágrimas) Minha garotinha, vem abraçar a mãe! As duas se abraçam. Você é uma mocinha, bundudinha igual a mim! (Dá uns tapinhas na bunda de Antônia) Juraci olha bem para Antônia, segura suas mãos, elas entrelaçam os dedos e se olham. Juraci Que bom que você sabia que a mãe ia voltar. Trouxe uma coisa muito especial para você! Um walkman para você escutar músicas. Já conhece? Antônia Um presente! Uauu! Um walkman de verdade! Nossa!
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Que legal!! Vou poder levar na aula? Bisa Chica Vamos dormir. Sua mãe deve estar cansada da viagem. Vamos ter muito tempo para saber das coisas. Você quer dormir na sala, Juraci? Juraci Hoje eu quero dormir com... deixa eu ver com quem... (olha para as crianças) hummmm.... Com esses dois bichinhos lindos!!! (abraça as crianças) 44- INT. CASA, QUARTO DE ANTÔNIA - MADRUGADA Juraci está na cama de Antônia e as crianças coladas nela, uma de cada lado. Daniel abraça a mãe, dorme rapidinho, suspira fundo. Antônia se mexe muito na cama, resmunga algumas palavras. 45- INT. CASA, BANHEIRO – NOITE - SONHO Antônia e Isabel estão no banheiro, tomando banho. Logo percebem que estão sem toalhas. Isabel pede para a tia Laís trazer. Antônia quer se enxugar com a camiseta. Laís, esposa do Cauê, tia de Antônia, entra no banheiro com uma toalha e enrola na Antônia. Isabel (14) Morena clara, 1,68m de altura, cabelo grande liso, preto, olhos castanhos.
(Se enxágua, vai pegar a toalha, percebe que não está ali) Eu pedi para a tia trazer as toalhas! Antônia Não precisa. Eu enxugo com a minha camiseta mesmo. Não chama a tia, por favor.
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LAÍS (35) Morena clara, 1,65m de altura, cabelo preto liso, olhos castanhos, magra, veste uma blusinha de algodão, um shorts, chinelo.
Vem com a tia, vem! Antônia (Começa a chorar) Não quero ir. Me deixa aqui, tia. Laís leva Antônia no quarto. Tem outras primas lá. Tira a toalha de Antônia. Laís Deixa eu passar talco na sua pereca. Agora vamos ver se ela é diferente das meninas! ESTRANHA JOGA FUTEBOL BURQUINHA É MACHO FÊMEA SIM 46- INT. CASA, QUARTO DE ANTÔNIA - MADRUGADA Antônia acorda suada e gritando. Paraaa! Paraa!! Juraci Acorda, Antônia! Minha filha, você está suando. O que foi, querida? Conta pra mãe. Antônia (abraça a mãe, chora muito) Mãe, o que é ser macho fêmea? Juraci É... É... Algo que você não precisa saber agora. Essa palavra nem existe, mas tem pessoas diferentes da gente.
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E precisamos respeitar. Outro dia te explico. Me abraça. Você teve um pesadelo? Vem aqui, dorme nos meus braços, minha querida filha. 47- EXT. QUINTAL - DIA Antônia brinca de casinha com o Daniel. Bisa Chica e Juraci conversam sentadas debaixo do pé de manga. Juraci Vou comprar nossa casa, Bisa. Trabalhei muito para conseguir uma quantidade de ouro. A grama de ouro está com preço bom, vou na cidade vender, procurar uma casa para comprar e ficar com meus filhos. O que a senhora está precisando? Quer morar com a gente? Quero uma casa bem grande, maior do que a da senhora. Haaaa! Haaaa! Bisa Chica Eu não entendo disso de ouro, minha fia. Mas tem tanto assim que vai comprar a sua casa? Vamos rezar para o Divino Espírito Santo, agradecer. Juraci Podemos colocar até dente de ouro, Hahahaha! O Mário colocou, acredita? O mano é louco, fez muito ouro lá, comprou uma fazenda em Giparaná, perto da madrinha Dinalda. Ele está bem. Ficou amigo dos índios. Ele é bicho do mato mesmo. Antônia (para Daniel, com uma caixa de papelão) Vamos arrumar a casinha. Faz os quartos. Vou fazer a cozinha!
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Pega os tijolos ali. Vou fazer as divisões. Aqui é o fogão. Daniel (pega mexericas e sal, coloca em um pires) Aqui é a nossa comidinha. Antônia Tenho essas duas bonequinhas, a azul é minha. Essa peladinha é sua, Daniel. Veste ela. Daniel (tem um saquinho com roupinhas) Vou colocar essa roupa aqui nessa boneca! Ei! A minha boneca chama Andreia, igual o nome da prima. E a sua, Antônia? Antônia A minha chama Aninha. Ela gosta de voar! Daniel Estou escutando uma ventania, escuta! Uhuuuuuu! Uhuuuuuu! Uhuuuuuu! É o fim dos tempos! Antônia pega uma bola. Antônia Agora eu sou D E U S! Deus Bolaaaa! Em cada gomo de bola, as pessoas vão se transformar em alguma coisa! Agora você é uma capivara eu sou um jacaré! Daniel Eu que sou jacaré!
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Antônia Tá! Eu vou ser um grilo, igual o que meu tio me chama! E vou pular muito alto! FIM
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Recursos humanos
Uma história de suspense/terror em três atos.
Willian Binsfeld
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QUINTA-FEIRA PERSONAGENS Tatianna, 38 anos Mulher cisgênero, grande, branca, cabelos castanhos ondulados. Possui formação superior em gestão de recursos humanos e trabalha no RH da empresa familiar Arantes Engenharia, das 13:00hs às 19:00hs, em alguma “cidade grande” ou centro urbano do Sul/Sudeste brasileiro. Seus mais de dez anos de trabalho formal lhe renderam um padrão de vida de classe média. Possui carro próprio e aluga um apartamento de dois quartos em algum bairro próximo ao centro da cidade. Durante sua infância, sofreu bullying por estar fora dos padrões de feminilidade das suas amigas. Era uma criança grande que não gostava de bonecas. Tatianna tornou-se uma mulher ansiosa e racista. Não que Tatianna admita isso ou até mesmo agrida uma pessoa negra ou parda, mas ela acredita no conceito de meritocracia e que as pessoas têm as mesmas condições de acesso às oportunidades na vida independente da sua cor, por isso considera que cotas são um privilégio desnecessário, e o grande problema da eficiência do Estado é sustentar gente preguiçosa.
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Sr. Ronaldo Arantes Filho, 45 anos Homem cisgênero, branco, parrudo, cabelos embranquecidos naturalmente. É formado em engenharia civil em alguma universidade brasileira privada de alto padrão. Atua como diretor da empresa de construção civil da sua família, cargo que ocupa desde o falecimento de seu pai há 5 anos atrás. É casado há mais de 20 anos com sua esposa, descendente de alguma família de elite do Sul/Sudeste brasileiro. Como exemplo de cristão, frequenta a igreja regularmente, sendo conhecido na comunidade. Também é pai de duas filhas: uma adolescente e uma criança. Costuma praticar esportes nos finais de semana, sendo tênis o seu favorito. Não dispensa eventos sociais e está sempre bem alinhado. Uma característica muito forte é gostar de perfumes marcantes/intensos. André, 26 anos Homem negro, magro, altura mediana e cabelos curtos. Acaba de mudar-se do interior para a cidade grande em busca de melhores oportunidades de emprego após concluir sua formação técnica em segurança do trabalho. Seus pais são aposentados e não podem sustentá-lo, o que o levou a trabalhar desde muito jovem e a não ter medo de enfrentar novos desafios ou situações inusitadas. Coragem de encarar riscos é sua característica. Adelina (Lina), 52 anos Mulher branca, diarista, que trabalha toda quinta-feira limpando e cozinhando para Tatianna. Maníaco do Centro, sem informações Procurado por múltiplos homicídios.
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QUINTA-FEIRA - Cena 01 INTERNA | SALA APARTAMENTO TATIANNA | MANHÃ
Tatianna entra no apartamento ofegante, suada, com roupas de ginástica, fones de ouvido e a chave do seu carro em uma das mãos. Ela deixa as chaves em cima do móvel na sala, tira os fones de ouvido e confere o odor de suas axilas fazendo uma careta. Tira seus sapatos, deixando-os ao lado da porta de entrada e caminha em direção à cozinha, onde há um rádio ligado.
QUINTA-FEIRA - Cena 02 INTERNA | COZINHA APARTAMENTO TATIANNA | MANHÃ
Tatianna entra na cozinha e para em frente à geladeira, abre a porta, retira uma garrafa de água saborizada e dá um gole vigoroso e demorado, esvaziando a garrafa enquanto se refresca em frente à porta aberta da geladeira. No rádio da cozinha, ouve-se uma narração. Tatianna aumenta o volume para ouvir melhor. RÁDIO Na semana passada, um funcionário do mercado central encontrou o corpo de Suzana de Almeida, de 32 anos, abandonado em um estacionamento do centro da cidade. O médico legista confirmou a causa da morte como asfixia por estrangulamento. Há indícios de que Suzana seja a oitava vítima do Maníaco do Centro. … E agora confira as ofertas do Super Atacadão, economia certa para você, cliente amigo. Tatianna fecha a porta da geladeira e leva um susto, dando um pulo para trás ao encarar Lina, que está em pé à sua frente com uma faca de corte em mãos. Lina sorri e fala friamente.
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LINA Já chegou, Dona Tatianna? Finalizei a faxina e já já o almoço fica pronto. TATIANNA Credo, que susto Lina. Tudo bem. Você pode deixar as porções separadas nos tupperware, como você fez semana passada. Hoje eu não tenho tempo para comer em casa. É quinta-feira, lembra? Tatianna sai da cozinha.
QUINTA-FEIRA - Cena 03 INTERNA | QUARTO TATIANNA | MANHÃ
Tatianna está em seu quarto de roupão e toalha cobrindo os cabelos úmidos. Ela abre o armário e encara um seção com diversos lenços coloridos e retira um lenço amarelo intenso. Segura o lenço com as mãos como se fosse uma joia. TATIANNA Aí está você… Ela coloca o lenço amarelo sob a cama onde estão suas roupas. Para por alguns instantes e admira sua escolha. Perfeito, ótima escolha… Ele vai adorar!
QUINTA-FEIRA - Cena 04 INTERNA | SALA APARTAMENTO TATIANNA | MANHÃ
Tatianna entra na sala do apartamento abotoando a camisa e usando óculos de armação grossa, maquiagem. Está vestida com calça social, sapatos fechados e seu lenço de tecido fino amarelo intenso no pescoço.
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TATIANNA LINAAAA… Preciso correr, mas vou deixar o pagamento da semana em cima da mesa, tá bom? Lina chega rápido à sala e se depara com Tatianna procurando algo em sua bolsa. LINA Nossa, Dona Tatianna! Como você está linda, toda produzida! TATIANNA Obrigada, Lina. É que hoje é quinta-feira, dia que o Sr. Ronaldo dá treinamento para os novos funcionários. Sabe como é, quando o patrão está por perto… Bom, preciso ir se não me atraso.. Tchau, até a próxima quinta-feira. Tatianna deixa algumas notas de dinheiro em cima da mesa, pega sua bolsa e as chaves do carro em cima do móvel, acena para Lina e anda em direção à porta de saída do apartamento. LINA Tchau, Tatianna… ESPERA! Tatianna para, segura a maçaneta da porta e encara Lina, que, após alguns instantes, conclui. Cuidado hoje, tá? A cidade anda perigosa… TATIANNA Tudo bem, tudo bem, eu sei me cuidar, Lina… Tchau… 185
Tatianna sai do apartamento e fecha a porta.
QUINTA-FEIRA - Cena 05 INTERNA | CARRO DE TATIANNA | TARDE Tatianna se desloca para seu trabalho de carro. Chega ao estacionamento aberto, que está semideserto, com apenas alguns carros estacionados. Ela para em uma vaga disponível, abre o porta-luva do carro e retira um batom vermelho. Vira o retrovisor em sua direção, retoca o batom, ajusta a posição do seu lenço amarelo no pescoço e encara seu reflexo no retrovisor. TATIANNA Bom dia, Sr. Ronaldo. Como vai? Sua turma já está lhe esperando na sala de treinamento. Tatianna engrossa a voz para imitar o Sr. Ronaldo. Olá, Tatianna, que belo dia, e você está mais linda do que nunca! Eu adoraria vê-la arrumada assim mais vezes. Que tal jantarmos juntos hoje? Seria um prazer, Sr. Ronaldo! Tatianna sorri para o espelho retrovisor, pega sua bolsa no banco do carona, abre a porta e sai do carro.
QUINTA-FEIRA - Cena 06 INTERNA | LOCAL DE TRABALHO DE TATIANNA - SALA DO RH | TARDE
Tatianna está sentada atrás de sua mesa no departamento de RH da empresa Arantes Engenharia. Sob a mesa, há quatro blocos de formulários com cores diferentes. Atrás de sua cadeira, há um quadro com uma pintura do fundador
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da empresa e pai do Sr. Ronaldo Filho. A sala é ampla e em frente à sua mesa há algumas cadeiras com braço escolar. Algumas estão ocupadas por pessoas que preenchem, cada qual, o seu formulário colorido. Tatianna faz anotações em sua agenda quando André entra pela porta principal e para em frente a sua mesa. ANDRÉ Boa tarde moça. Meu nome é André. Estou aqui para uma entrevista de emprego. Tatianna para o que está fazendo, analisa André de cima a baixo e o encara com os olhos acima da armação dos óculos por alguns instantes. Em seguida, ela aponta para o bloco de formulários laranja onde lê-se: SERVENTE DE OBRA. TATIANNA Formulário laranja. Preencha todas as informações que nós entraremos em contato se você for selecionado. (Pausa) Você é alfabetizado? Porque, se você tiver alguma dificuldade de leitura, me avise que vejo como posso ajudá-lo. ANDRÉ Ok moça, mas o formulário laranja é para servente de pedreiro e eu estou aqui por outra vaga, a de técnico em segurança no trabalho. Soube que vocês estavam contratando, como acabei de chegar na... TATIANNA Uhum (Tatianna limpa a garganta) Mas para essa vaga você precisa comprovar sua formação, tá? Além de ter experiência na área, é claro...
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ANDRÉ Sim, formação eu tenho sim e posso comprovar. Agora, a experiência é que eu preciso adquirir. É por isso que eu estou aqui me candidatando para esta vaga. Tatianna suspira, pisca lentamente os olhos, volta a encarar André por cima da armação dos seus óculos e aponta para o bloco de formulários azuis. TATIANNA Formulário azul.. Você pode sentar ali e preencher as informações. E, SE você for selecionado, precisará trazer os comprovantes da sua formação, incluindo seu diploma. Tatianna volta para suas anotações. ANDRÉ Você tem uma caneta? Tatianna encara André novamente por alguns instantes, suspira, abre uma gaveta à sua direita que contém várias canetas novas e algumas usadas. Ela retira uma caneta usada com a ponta amassada e com desdém alcança para André, que pega o formulário e a caneta e senta-se em uma das cadeiras disponíveis. Ele encara Tatianna por alguns instantes e começa a preencher seu formulário.
QUINTA-FEIRA - Cena 07 INTERNA | LOCAL DE TRABALHO TATIANNA - SALA DO RH | TARDE
Tatianna observa o Sr. Ronaldo chegando pela porta principal e apressa-se para abri-la e cumprimentar o Sr. Ronaldo com um enorme sorriso no rosto.
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TATIANNA Boa tarde, Sr. Ronaldo. Tudo bem? A turma já está esperando o Sr. RONALDO Boa tarde, Tatianna. Ele olha em direção ao lenço amarelo chamativo no pescoço de Tatianna com uma expressão séria. TATIANNA Gostou do lenço, Sr. Ronaldo? Foi presente do seu pai. Não dá para acreditar que já se passaram cinco anos, né? Um grande homem que deixou todo esse legado para você. Quanta responsabilidade! Os dois olham em direção ao retrato do pai de Ronaldo na parede por alguns segundos. RONALDO Verdade, Tatianna. E você usa esse lenço toda quinta-feira. Achei que fazia parte do seu uniforme até. Bom, preciso ir… Tem uma sala me esperando... Ronaldo olha para Tatianna com o cenho franzido, percorre o restante da sala com o olhar e dirige-se à sala de treinamento.
QUINTA-FEIRA - Cena 08 INTERNA | LANCHONETE | TARDE
Tatianna entra numa lanchonete e senta-se na cadeira de frente para o balcão principal. Deixa sua bolsa em cima
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do balcão com a chave do seu carro pendurada na alça. Na TV atrás do balcão, passa o noticiário com a manchete que destaca a procura pelo Maníaco do Centro. Tatianna chama o garçom. TATIANNA Traz uma água saborizada e dois croissants de chocolate, por favor. Ahhh e aumenta o volume da TV um pouco... TV Continuam as buscas pelo marginal também conhecido como Maníaco do Centro. As autoridades informam que o suspeito é um homem jovem, negro, com histórico de violência, que ronda o centro da cidade em busca de suas vítimas, todas mulheres. A pergunta que se mantém é: quais seriam as suas motivações? Dispersa, Tatianna desvia o olhar para o outro lado do balcão e enxerga André, que está sentado tomando um café na extremidade oposta. Ele imediatamente a reconhece e a encara, sorri e caminha em sua direção. Tatianna levanta, pega sua bolsa apressadamente e retira uma nota de sua carteira, deixa em cima do balcão e caminha em direção à saída da lanchonete, sem perceber que a chave do seu carro caiu no chão. André segue Tatianna até a saída da lanchonete. ANDRÉ Moça, ei, moça… André acena para Tatianna, que sai correndo para a rua, distanciando-se dele, até virar a esquina e desaparecer.
QUINTA-FEIRA - Cena 09 INTERNA | LOCAL DE TRABALHO DE TATIANNA - SALA DO RH| NOITE
Tatianna está sozinha na sala do RH da empresa. As únicas 190
luzes acesas são as duas em cima de sua mesa e a da fresta embaixo da porta da sala de treinamento, onde encontrase o Sr. Ronaldo. Tatianna caminha em direção à sala de treinamento, bate na porta com a falange dos dedos. TATIANNA Sr. Ronaldo, precisa de mais alguma coisa? RONALDO (O.S.) Não, tudo bem Tatianna. Pode ir para casa que eu fecho tudo aqui. TATIANNA Ok, Então, tudo bem… Até semana que vem, boa noite! Tatianna fecha os olhos como se estivesse com dor. RONALDO (O. S.) Boa noite. Tatianna suspira, encolhe os ombros, caminha vagarosamente até sua mesa, pega sua bolsa, afrouxa o lenço amarelo em seu pescoço e, cabisbaixa, anda em direção à porta de saída.
QUINTA-FEIRA - Cena 10 EXTERNA | ENTRADA DO ESTACIONAMENTO | NOITE
Tatianna caminha em direção ao estacionamento. O local está praticamente vazio e mal iluminado. Do outro lado da rua, ela observa André, que a encara e acena. Tatianna assustase e caminha ainda mais rápido em direção ao seu carro e para quando chega em frente à porta do motorista. Afobada, ela procura as chaves em sua bolsa e não as encontra. Olha nervosamente por cima do capô do carro procurando por André, mas não avista ninguém. Repentinamente, Tatianna sente uma forte pressão em seu pescoço, uma mão aperta o lenço amarelo enforcando-a. 191
Tatianna luta desesperadamente tentando atingir o seu agressor, mas ele é mais forte e, aos poucos, Tatianna perde suas forças e para de se debater.
QUINTA-FEIRA - Cena 11 INTERNA | ALUCINAÇÃO NO LOCAL DE TRABALHO TATIANNA | NOITE
Tatianna e Sr. Ronaldo estão sozinhos na sala pouco iluminada do RH da empresa, sentados um em frente ao outro numa cama redonda que gira lentamente, enquanto uma fumaça leve e branca sobe pelo chão. Os dois se encaram por alguns instantes e se abraçam fortemente. TATIANNA Ronaldo, esse perfume… Como eu amo… RONALDO Eu sempre te desejei, Tatianna… Esse perfume era para você. Como não percebeu isso antes? TATIANNA Então me beija… Suas bocas se tocam e eles se beijam apaixonadamente.
QUINTA-FEIRA - Cena 12 EXTERNA | FLASHBACK | PARQUE AO LADO DE UMA RODOVIA | TARDE
Tatianna criança está isolada, sentada no chão de um parque ao lado de uma rodovia. Olha um grupo de crianças loiras brincando de boneca no extremo oposto do parque, enquanto ouve-se uma voz distante. CARLA PEREZ (V.O.) De que adianta essas campanhas demagógicas se
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essas crianças continuam aqui na estrada e com fome. Todos os pequeninos merecem proteção, alimentação, amor e paz. Um caminhão passa na rodovia e buzina alto.
QUINTA-FEIRA - Cena 13 EXTERNA | ESTACIONAMENTO | NOITE
Tatianna acorda com um suspiro forte. André está abaixado à sua frente e a agita com suas mãos. Assustada e trêmula, Tatianna balança a cabeça para os lados e dá um soco na cara de André. Rapidamente ela se arrasta pelo chão na direção contrária e para ao encontrar um obstáculo no chão. Atônita, Tatianna congela e observa que o obstáculo é o corpo do Sr. Ronaldo caído no chão com a cabeça ensanguentada e um lenço amarelo preso em uma das mãos. Tatianna leva a mão ao seu pescoço e percebe a falta do seu lenço. André se aproxima aos poucos e Tatianna o abraça soluçando em lágrimas. ANDRÉ Calma.. Tudo bem… Vai ficar tudo bem… Acabou agora… André retira as chaves do carro de Tatianna do bolso e passa para as mãos de Tatianna, que aumenta a intensidade do choro, treme, soluça e abraça fortemente.
QUINTA-FEIRA - Cena 14 INTERNA | ESTÚDIO DE GRAVAÇÃO DE JORNAL | JORNAL DA NOITE
Dois âncoras preparam-se para entrar ao vivo em algum telejornal nacional.
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ÂNCORA 01 E termina a caçada ao Maníaco do Centro. O empresário e engenheiro Ronaldo Arantes Filho é o principal suspeito de pelo menos 8 homicídios nos últimos cinco anos como o Maníaco do Centro. ÂNCORA 02 A dúvida que fica é: como um pai de família, cidadão modelo e membro ativo da comunidade se transforma em criminoso? Para nos ajudar a entender o que leva um cidadão comum a praticar esses crimes, convidamos o especialista em comportamento Dr. Hernandes Siqueira. Boa noite Dr. Hernandes...
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SEXTA-FEIRA PERSONAGENS Dri, 19 anos Jovem negre não binárie, estatura mediana, cabelo curto e raspado nas laterais. Filhe de mãe solo e trabalhadora doméstica, Dri foi registrada na certidão de nascimento como Adriana, mas nunca se reconheceu nesse nome e aos 14 anos entendeu-se como uma pessoa não-binária, mas não se importa com uso dos pronomes masculinos ou femininos. O processo de aceitação foi difícil e levou alguns anos, mas, durante esse tempo, pôde contar com o apoio da sua mãe, inclusive quando fez a retificação dos seus documentos. Uma das suas maiores características é ser uma pessoa bemhumorada e, mesmo com as adversidades da vida, busca saída cômica ou otimista. Dri mora atualmente com sua mãe em uma pequena casa alugada na periferia da cidade. Sempre estudou em colégio público e trabalhou desde muito cedo para ajudar nas contas de casa. Seu maior desejo é fazer faculdade e conquistar melhores condições de vida para si e sua mãe. Atualmente trabalha com entregas de bicicleta de domingo a sexta-feira para pagar o cursinho pré-vestibular, que faz aos sábados. Natasha Heinz, entre 20/25 anos Mulher jovem, branca, filha única de pais herdeiros do engenho de açúcar e álcool Cruzeiro do Sul. Sempre estudou em colégios privados e nunca precisou trabalhar ou fazer algum serviço doméstico. Atualmente cursa administração em alguma faculdade de elite com intuito de assumir os negócios da família. Mora com seus pais na mansão da sua família no bairro mais nobre da cidade.
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Regina Heinz, idade não informada Mulher branca, loira, aparenta ter entre 50/60 anos, mas não é possível definir sua idade devido à intensidade de intervenções cirúrgicas em seu rosto. Mãe de Natasha e esposa de Olavo. Aparenta estar em outra frequência de realidade devido à mistura matinal de ansiolíticos e álcool. Olavo Heinz, idade não informada Homem branco, aparenta ter entre 55/60 anos. É o patriarca da família e herdeiro do engenho Cruzeiro do Sul. Costuma falar pouco e cede a todos os desejos da sua filha Natasha.
SEXTA-FEIRA - Cena 01 EXTERNA | FLORESTA/MATA | NOITE
Homem jovem e vestido com roupas de época puídas corre na mata durante à noite, fugindo de uma perseguição. À distância, ouve-se cachorros latindo e algumas luzes tremularem no horizonte. O homem para ao tropeçar e quase cair num penhasco a sua frente. Ele olha ao redor e busca uma saída, enquanto as luzes e os latidos se aproximam. Desesperado, o homem olha para as estrelas acima, respira fundo, fala algo em alguma língua desconhecida e salta no escuro penhasco. O grupo que o perseguia chega à borda do penhasco e tenta iluminá-lo sem encontrar o fundo. Um integrante do grupo joga uma tocha em chamas no penhasco. Ela se apaga antes de chegar ao fundo. HOMEM 01 Ele caiu, com certeza. O rastro termina aqui. O homem aponta sua luminária para um arbusto amassado. HOMEM 02 Mais um que não aguentou… Eles vão ficar furiosos!
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HOMEM 03 Não tem problema, onde morre um nasce cinco… Pegamo outro pra eles. Os homens partem por uma trilha mata adentro.
SEXTA-FEIRA - Cena 02 EXTERNA | RUA DE ACESSO À MANSÃO DA FAMÍLIA HEINZ | FINAL DE TARDE
Dri pedala em direção à rua de acesso à Mansão da família Heinz. Ela veste calça jeans, tênis esportivo, camiseta e em suas costas leva uma bolsa de entrega de comida por aplicativo. Nos fones de ouvido, toca seu podcast favorito. PODCAST Sabe como é, família, o sistema prisional brasileiro é depósito pro nosso povo. O que aconteceu com o André foi mais uma prova disso. O cara acabou com o gigante do Maníaco do Centro com apenas uma pedra na mão, no maior estilo Davi e Golias, ta ligado? Mas, aí, quem foi parar na delegacia? O cara que salvou a mina.. Se não fosse a vítima - uma mulher branca - esperar junto dele até liberarem o André, ele já tinha feito parte do sistema. Nosso herói vira bandido num instante, e fica por isso mesmo... Cuidado, cuidado, família!! Não fique de bobeira nesta sexta-feira 13. O vilão pode tá do teu lado. No busão, no trabalho ou até mesmo ouvindo esse podcast... Então, segue o som para espantar qualquer maldição!
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Dri sorri, desliga o som quando chega em frente ao portão de acesso à Mansão. Ela observa o tamanho do grandioso portão e toca o interfone. Passam-se alguns segundos sem resposta e de repente o portão se abre com um estalo mecânico. Dri olha para os lados desconfiada e pedala hesitante pela rua de acesso à mansão. Quando chega na entrada principal da mansão, ela observa o tamanho do jardim e o trajeto longo do portão até o casarão. Dri encosta a bicicleta na parede da mansão e caminha em direção à porta. Procura uma campainha ou interfone e, repentinamente, a porta se abre. Natasha aparece sorridente com seus cabelos loiros soltos, vestida de azul claro e carregando uma bolsa carteira de grife nas mãos. NATASHA Oi, que bom que você chegou, eu estou morta fome! Vou pagar no cartão de crédito, ok? Natasha estende a mão com o cartão de crédito black em direção a Dri, que a observa atentamente enquanto retira a maquininha da mochila de entrega. Você não fala não? DRI Sim, é claro que eu falo… Inclusive, vou pedir para você me avaliar depois no app. Combinado? Dri alcança a maquininha de cartão para Natasha, que sorri maliciosamente. NATASHA E que tipo de avaliação você acha que merece?
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As duas sorriem. DRI Aquela que você achar melhor… Essa é minha última entrega. Se puder caprichar nessa avaliação, eu agradeço. Dri entrega o pacote para Natasha, que está digitando no celular. NATASHA Pronto, avaliada. Natasha sorri, pega o pacote e para em frente à porta. Obrigada, você fez minha sexta-feira mais feliz agora. Eu REALMENTE estou com fome. DRI Imagina, é só o meu trabalho… Então, até a próxima? Dri sorri timidamente, coloca a bolsa de entrega nas costas e caminha em direção à sua bicicleta. Natasha vai atrás de Dri e grita. NATASHA HEEEYY... Você disse que era a sua última entrega, né? ... Não quer entrar um pouco e me fazer companhia? Dri hesita por uns instantes e observa Natasha, que prossegue ao notar a demora de Dri. Meus pais saíram e odeio ficar sozinha nessa casa… Ainda mais numa sexta-feira 13… Por favor, vai?
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Natasha faz biquinho e encara Dri, que sorri. DRI Tá bom, tá bom… Mas eu não posso ficar muito tempo porque amanhã tenho aula e daqui até minha casa é o maior rolê... Natasha pula na direção de Dri, abraçando-a e gritando NATASHA OBRIGADAAAA! OBRIGADAAAA! Vamos sair daqui... Juntas elas entram na mansão, e a porta principal se fecha.
SEXTA-FEIRA - Cena 03 INTERNA | MANSÃO DA FAMÍLIA HEINZ - SALÃO PRINCIPAL | NOITE
Dri e Natasha entram na Mansão e caminham por um gigantesco salão principal em direção à cozinha. Ao fundo, vê-se uma escadaria branca de acesso para o segundo piso. Dri observa o espaço impressionado, com os olhos bem abertos. NATASHA Gostou? Essa casa pertence a minha família há gerações, desde que os primeiros Heinz chegaram no Brasil… Isso faz tipo, muuuuuito tempo, acho que tudo aqui ainda era colônia, sabe? Eu acho um exagero, mas meus pais insistem que é uma tradição da família há gerações e devemos mostrar respeito pelas "tradições" blá, blá, blá... DRI Acho que deve é dar muito trabalho pra limpar tudo
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isso! (Risos) NATASHA Acho que sim. Para isso, temos uma equipe que ajuda. A cozinha é aqui. Natasha aponta para uma porta aberta, e elas entram na cozinha.
SEXTA-FEIRA - Cena 04 INTERNA | MANSÃO DA FAMÍLIA HEINZ - COZINHA | NOITE
A espaçosa cozinha da mansão possui uma bancada central e armários laterais. Natasha deixa o pacote de entrega em cima da bancada, caminha até uma pequena adega no armário principal e retira uma garrafa de vinho, olha o rótulo, pega um saca-rolhas na gaveta ao lado da adega e abre a garrafa de costas para Dri. Natasha abre outra porta do armário, retira duas taças grandes, vira-se e caminha em direção a Dri, que está sentada em um banco alto em frente à bancada principal. NATASHA Você gosta de Malbec ou Cabernet Sauvignon? DRI Sim, se for alcóolico, tanto faz. Dri sorri nervosamente, pega uma das taças e espera Natasha começar a beber para tomar o primeiro gole. Elas se encaram por alguns instantes e sorriem.
SEXTA-FEIRA - Cena 05 INTERNA | MANSÃO DA FAMÍLIA HEINZ - COZINHA | NOITE
Dri e Natasha estão sentadas uma ao lado da outra na cozinha da mansão. À sua frente, algumas garrafas de vinho vazias. 201
NATASHA Aí eu pensei: por que não fazer isso em New York? No Brasil é tão comum… Eu quase fui presa. Ainda bem que estava com meus documentos na bolsa... As duas riem ebriamente. Dri sente o efeito da vertigem alcoólica e apoia-se na bancada balançando a cabeça lentamente. DRI Nossa acho que cheguei no meu limite… Onde fica o banheiro? NATASHA Sabe o salão principal? O banheiro social fica no canto esquerdo, perto da escada… Consegue achar? DRI Acho que sim... Dri levanta-se e cambaleia em direção à saída da cozinha, desequilibra-se e busca apoio na bancada, sem sucesso, cai no chão e sente seu celular quebrando no bolso da calça. Ela tenta gritar por ajuda, mas as palavras saem estranhas da sua boca. Antes de perder a consciência, ela observa dois vultos desconhecidos entrarem na cozinha e caminharem em sua direção.
SEXTA-FEIRA - Cena 06 INTERNA | SUBSOLO DA MANSÃO DA FAMÍLIA HEINZ - BIOMBO HOSPITALAR | NOITE
Dri desperta e, conforme recupera sua consciência, tenta levar a mão ao rosto e percebe que está amarrada em uma
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maca em algum lugar desconhecido, cercado por cortinas de hospital (como um biombo para troca de roupas). Ela gira a cabeça para esquerda e observa que, ao seu lado, há uma pequena mesa com uma bandeja prateada cheia de instrumentos cirúrgicos. Com um pouco de dificuldade, gira a cabeça para direita e avista um equipamento estranho, parecido com aqueles usados para hemodiálise, e uma saída de gás para oxigênio ao lado. Barulhos mecânicos fora de sincronia, similares ao som de equipamentos de monitoramento cardíaco de hospitais tocam ao fundo. Aos poucos, Dri recupera o movimento dos braços e pernas e agita-se tentando, sem sucesso, soltar-se das amarras que prendem seus braços e pernas na maca. Ouvem-se passos caminhando em sua direção. Regina abre as cortinas do biombo e caminha ao encontro de Dri. REGINA Olá, criatura, que bom, que bom, você despertou… Shhh… Calma, vai ficar tudo bem… Logo logo passa o efeito do remédio… O seu tipo é muito forte, se recupera rápido… Vamos explicar tudo para você. Não se preocupe que você será muito útil... … AAAMOOOOOOORRRR, a criatura acordou!!! Ouve-se um barulho de passos apressados descendo uma escada metálica, e Olavo chega no biombo e vai ao encontro de Regina, que está ao lado da maca e encara Dri. OLAVO Magnífico! Olavo pega uma pequena lanterna da bandeja ao lado, segura a pálpebra de Dri com uma das mãos e com a outra direciona o feixe de luz no olho de Dri.
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Parece saudável, mas só teremos certeza depois dos exames... A Natasha foi buscar os remédios e logo começamos a extração, então vamos aproveitar esse tempo e explicar tudo… Faz parte do protocolo. REGINA Meu bem, deixa eu fazer essa parte, vai… Adoro ver a cara deles... Regina alisa o rosto suado e tenso de Dri. Em seguida, abaixa-se e destrava as rodas da maca. Olavo posiciona-se atrás da maca e a empurra para fora do biombo. Regina o segue.
SEXTA-FEIRA - Cena 07 INTERNA | SUBSOLO DA MANSÃO DA FAMÍLIA HEINZ - PORÃO | NOITE
Ao sair do último biombo em frente a uma escada de ferro, Dri (presa à maca), Olavo e Regina deslocam-se por um imenso porão cinza sem janelas. Do seu lado direito, Dri observa outros biombos iguais ao que ela estava - alguns com cortinas abertas. Em um dos biombos, vê-se uma maca onde uma pessoa negra, com aparência de velha, flácida e sem vida repousa conectada a um equipamento de hemodiálise por pequenos tubos coloridos. O grupo para ao chegar em frente a uma parede de concreto lotada de pequenos quadros. Na parte superior da parede, há um pequeno letreiro de madeira onde lê-se: Safra Heinz de Bragança 1600 - 2020. Dri vasculha a parede com o olhar e observa no canto superior esquerdo pequenos quadros pintados à mão. Conforme avança o olhar para a direita e para baixo, ela vê outros pequenos quadros com outras molduras e algumas fotografias coloridas mais modernas. As imagens retratadas na parede seguem um padrão
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semelhante: há no centro algumas caixas e alguns garrafões de vinho e, ao redor das caixas, várias pessoas brancas bem vestidas. Abaixo de cada quadro, uma data indica o ano de registro. Dri reconhece alguns rostos presentes na maioria das imagens, desde as mais antigas até as mais novas, com destaque para os membros da família Heinz (Natasha, Regina e Olavo), além de alguns políticos conhecidos, como Floriano Peixoto, Michel Temer e General Heleno. Nas imagens mais novas, há presença também de José, Gilberto Kassab e Aécio Neves. Dri vira sua cabeça para o lado esquerdo e vomita no chão. Olavo e Regina gargalham com a cena. OLAVO Calma, criatura. Não sei se chamo de minha querida ou devo dizer meu querido. Sei lá como devo te chamar, mas não precisa ficar ansiosa… Logo logo você fará parte dessa… linda história. Faça as honras, meu bem. Olavo afasta-se da maca, deixando espaço para Regina se aproximar. Regina olha para os quadros e, em seguida, olha para Dri com olhar de superioridade. REGINA Nossa família ajudou a construir isso que vocês chamam de “Brasil”. Chegamos aqui junto com os portugueses há muitos, muitos anos atrás. Buscávamos um produto com mais qualidade, sem toda aquela porcaria suja do sangue europeu do século XVI. É claro que precisávamos de ajuda, então, para dominar o território, combinamos de deixar os selvagens para a igreja e nos concentramos naquilo que é o negócio mais lucrativo até hoje: a importação e exportação do melhor sangue Africano,
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Afrobrasileiro, Afroamérindio, como você preferir catalogar. Comercializamos todos os tipos. Regina aponta orgulhosa para a parede e sorri. Veja só como o seu tipo nos serve há centenas de anos e com tanta qualidade. E, com isso, você pode ficar orgulhosa.Fazer parte disso é uma honra para poucos. Afinal, as melhores safras e os produtos mais selecionados são sempre os da família brasileira mais tradicional, a nossa é claro! Regina sorri maliciosamente enquanto encara Dri. DRI Vocês… Vocês… Vocês são loucos? Ninguém vai sugar meu sangue aqui… Olavo suspira e chama atenção de Regina apontando para Dri. OLAVO Ela já consegue falar? Cadê a Natasha com os sedativos? Regina, leva ela para a baia de extração que eu vou atrás da Natasha, antes que essa criatura não pare mais de falar... Olavo agita as mãos em cima da cabeça e caminha em direção à escada de ferro.
SEXTA-FEIRA - Cena 08 INTERNA | SUBSOLO DA MANSÃO DA FAMÍLIA HEINZ - BIOMBO HOSPITALAR | NOITE
Regina posiciona a maca com Dri no meio do biombo, vai até
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as cortinas e para antes de fechá-las. REGINA Fique tranquila, minha querida, ninguém vai “sugar o seu sangue”. Não usamos mais esse tipo de técnica animalesca… Contamos com os mais modernos purificadores sanguíneos, afinal nosso produto tem controle de qualidade internacionalmente reconhecido. Regina aponta para o equipamento de hemodiálise, sai, fecha as cortinas sorrindo alegremente. Em seguida, ouvemse seus passos subindo a escada de ferro para fora do porão. Suada e assustada, Dri fica sozinha no biombo e tenta com dificuldades empurrar seu corpo mais próximo à mesa com utensílios cirúrgicos. Com ajuda da sua cabeça, ela empurra a bandeja sob a mesa até derrubá-la em cima da maca. Os utensílios espalham-se sob a maca, mas Dri finalmente alcança um bisturi com sua mão esquerda. Com dificuldade, ela consegue cortar uma das amarras e libertar a mão esquerda. Em seguida, solta as demais amarras e sai da maca. Ela se apoia na maca até se equilibrar em pé, quando ouve passos descendo as escadas em sua direção. Dri pega a bandeja dos utensílios no chão com as duas mãos e posiciona-se ao lado da cortina em frente à maca. Regina abre as cortinas e Dri acerta-lhe a cara com a bandeja. Regina cai no chão. DRI Vadiaaaa sugadora de sangue! Dri pula em cima do corpo de Regina e bate a bandeja em sua cara repetidas vezes até cansar. Ela se levanta e fica parada em frente ao corpo de Regina. Dri respira fundo, olha para os dois lados pensando no que fazer, então empurra o corpo de Regina para dentro do biombo, mexe nos bolsos de Regina e encontra um celular, porém, sem sinal. Ela guarda o
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aparelho no bolso e fecha as cortinas ao sair para o porão.
SEXTA-FEIRA - Cena 09 INTERNA | SUBSOLO DA MANSÃO DA FAMÍLIA HEINZ - PORÃO | NOITE
Dri entra em um dos biombos vizinhos, onde uma pessoa negra, velha, flácida e quase sem vida repousa sobre uma maca, conectada ao equipamento de hemodiálise e ao respirador cardíaco. Dri agita o corpo, que não responde. Ela procura o interruptor dos equipamentos e desliga-os. DRI Desculpa, ninguém merece passar por isso… Eles vão pagar, cada um deles vai pagar... O corpo na maca dá um último suspiro e para de respirar. Dri abaixa a cabeça em sinal de respeito e direciona o olhar para a pequena mesa ao lado da maca. Nela há alguns utensílios cirúrgicos, álcool em gel, um cutelo e um isqueiro. Dri coloca o isqueiro no bolso, pega o cutelo com uma das mãos e o álcool em gel com a outra. Ela sai do biombo e caminha até a escada de ferro. Sobe alguns degraus e derrama um pouco do álcool na escada, enquanto retorna para o porão. Dri posiciona-se atrás das cortinas do segundo biombo quando ouve passos se aproximando. A porta do porão se abre e Olavo começa a descer as escadas. OLAVO Meu bem, a Natasha chegou, podemos começar a extração… Olavo desce os primeiros degraus, mas se desequilibra escorregando no álcool em gel e desaba escada abaixo. Dri sai do biombo com o cutelo nas mãos em posição de ataque e corre na direção de Olavo, que tenta se levantar do chão,
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sem sucesso. Ele olha em direção a Dri a tempo de vê-la acertá-lo no pescoço diretamente na veia jugular. OLAVO AAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHH!!!! O sangue escuro de Olavo jorra pelo chão. Dri lhe acerta mais duas vezes, até o corpo sem vida cair no chão. Apressada e ensanguentada, Dri corre de biombo em biombo abrindo os registros de gás. No último biombo, ela pega um bisturi e guarda no bolso traseiro da sua calça. Ao chegar em frente à escada de ferro, ela pula sobre o corpo de Olavo e sobe cuidadosamente as escadas em direção à saída do porão.
SEXTA-FEIRA - Cena 10 INTERNA | MANSÃO DA FAMÍLIA HEINZ - SALÃO PRINCIPAL | NOITE
Dri chega correndo ao salão principal onde Natasha está. As duas encaram-se por alguns instantes. NATASHA Onde estão meus pais? Natasha solta o pacote que carregava em suas mãos e caminha em direção à Dri, que recua para as escadas do salão principal. DRI Eu só quero ir para casa… Seus pais estão lá embaixo. Alguns instantes de silêncio. Natasha sorri maliciosamente e avança em direção a Dri, que corre escada acima, mas Natasha a segura antes que elas cheguem ao segundo piso. NATASHA Jamais vou te deixar ir numa boa...
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Natasha tenta morder o pescoço de Dri, mas acaba acertando seu braço esquerdo. Imediatamente Dri retira o bisturi do seu bolso e enfia no olho de Natasha, que recua e cai das escadas em direção ao saguão principal. Dri observa Natasha caída no chão, retira o isqueiro do bolso e acende a chama. DRI Vocês não farão isso com mais ninguém! Dri solta o isqueiro em direção a Natasha e corre para o corredor no final da escada, antes que tudo abaixo exploda.
SEXTA-FEIRA - Cena 11 INTERNA | MANSÃO DA FAMÍLIA HEINZ - CORREDOR PISO SUPERIOR | NOITE
Dri acorda no corredor da mansão tossindo por causa da fumaça da explosão. Abaixo tudo está pegando fogo. Ela rasteja desorientada até uma das portas do corredor. Entra em um dos quartos e fecha a porta em seguida.
SEXTA-FEIRA - Cena 12 INTERNA | MANSÃO DA FAMÍLIA HEINZ - QUARTO PISO SUPERIOR | NOITE Dri recupera o fôlego sentada em frente à porta do quarto. Levanta-se e caminha até a sacada do quarto, olha para baixo, calculando a distância até o chão, e volta para o quarto em direção ao closet. Ela retira alguns lençóis do closet e vê uma mala de couro ao fundo. Retira a mala, que está pesada e cheia. Ao abri-la, depara-se com alguns maços de notas de dólares, euros e reais, além de algumas joias. DRI Puta que pariu! Dri pega dois lençóis e os amarra como uma espécie de
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corda. O fogo invade o quarto pela porta. Apressadamente, Dri pendura a mala de couro sob o ombro, amarra o lençol/ corda na sacada e desce pendurada até o chão.
SEXTA-FEIRA - Cena 13 EXTERNA | TERRENO DA MANSÃO DA FAMÍLIA HEINZ | NOITE
Dri caminha trôpega pelo quintal da mansão em direção ao bosque no fundo do terreno. Às suas costas, a mansão desaba em chamas. Sorrindo, em estado de choque e com o olhar distante, Dri atravessa o bosque agarrada à bolsa de couro. Ela chega na rua asfaltada que dá acesso à Mansão Heinz. Olha para a fumaça no final da rua e caminha na direção contrária quando sente uma vibração em seu bolso. Imediatamente Dri pega o celular do bolso e digita um número de telefone. DRI Alô, mãe? MÃE DE DRI Dri, é você minha filha? Onde você está? Fiquei tão preocupada. Onde você andou? DRI Mãe, mãe… Calma… Tá tudo bem. Logo eu chego em casa… Mãe… Liga pro seu Antônio e diz que a partir de amanhã você não trabalha mais lá! MÃE DE DRI Como assim, tá doida? O que você bebeu?
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DRI Bebi nada… Ainda não... Dri encara apreensiva a mordida em seu ombro esquerdo.
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SÁBADO PERSONAGENS Médica, 40/50 anos Mulher negra, por volta de 40/50 anos de idade, médica do SUS. Jovem, 20/30 anos Mulher branca, jovem, trabalha como secretária em alguma empresa do centro da cidade. Usa uniforme social em sua profissão.
SÁBADO - Cena 01 INTERNA| RESTAURANTE NO CENTRO DA CIDADE | NOITE
Tatianna sozinha, sentada numa mesa próxima à janela do restaurante, visivelmente ansiosa, balança a perna e estala os dedos das mãos. À sua frente, um copo e uma garrafa de água saborizada. Ela abre a garrafa, enche o copo e dá um gole demorado. André entra no restaurante e enxerga Tatianna sentada ao fundo, próxima à janela, acenando. André caminha em sua direção. ANDRÉ Oi, Tati, você tá bem? André abaixa, dá um beijo na bochecha de Tatianna, que enrubesce, e senta-se à sua frente. TATIANNA Estou melhor... Tatianna toma mais um demorado gole da água saborizada. Obrigado por ter vindo. Eu não queria ficar sozinha
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hoje… ANDRÉ Imagina, não é esforço nenhum… Ainda mais depois de tudo que aconteceu. Eu ainda não acredito que o maníaco do Olavo conseguiu um Habeas Corpus e voltou para casa. Eu não vou te deixar sozinha hoje. Eles se encaram em silêncio por alguns instantes. E aí? Você já pediu alguma coisa para comer? TATIANNA Não, ainda não… Eu estava te esperando. ANDRÉ Então me diz, além dessa água colorida, o que você gosta de comer? Tatianna sorri alegremente para André.
SÁBADO - Cena 02 INTERNA| CONSULTÓRIO MÉDICO DO SUS | NOITE
Dri sentada na cadeira do consultório médico encarando a porta entreaberta que dá acesso à recepção. Na recepção, ouve-se um pequeno rádio tocar. RÁDIO Foi encerrada hoje a busca por sobreviventes do incêndio à Mansão Heiz. Os corpos de Olavo, Regina e sua filha Natasha seguem desaparecidos. O mistério sobre a mansão continua. Além de macas e equipamentos hospitalares, foram encontradas diversas garrafas com sangue humano envasado. Acompanhe a nossa programação e fique por dentro
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das principais notícias da cidade e região. Rádio Galo lô lô! A médica entra na sala, e Dri assusta-se pulando da cadeira. MÉDICA Desculpa. Está tudo bem. Pode se sentar... A médica senta-se em frente a Dri e abre uma pasta de papel com alguns exames. Dri, aparentemente está tudo bem com a sua saúde. Você é uma pessoa jovem e saudável. Pelo menos é isso que indicam os seus exames. Agora, quanto a essa mordida de cachorro no seu ombro… É importante limpar e cuidar para não infeccionar. Tem certeza que ele estava vacinado? Se não, é importante que você tome a vacina antirrábica, combinado? Dri encara atônita o pescoço da médica e delicadamente lambe seus próprios lábios. Dri, você está me ouvindo? Você entendeu o que eu falei? Dri balança a cabeça de um lado para o outro e encara a médica. DRI Sim, doutora, te ouvi perfeitamente… Tenho certeza que essa cachorra era vacinada… Não é bem isso que me preocupa. Dri levanta-se e caminha em direção à porta do consultório. Então é isso, né, doutora?
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Não tem muito o que ser feito… Obrigada. A médica analisa a pasta de exames e ergue a cabeça para olhar Dri, que já havia saído do consultório.
SÁBADO - Cena 03 EXTERNA | RUA POUCO MOVIMENTADA NO CENTRO DA CIDADE | NOITE
André caminha ao lado de Tatianna pela calçada numa noite fria em alguma rua do centro da cidade à noite. ANDRÉ Você foi muito corajosa mesmo. Eu não acredito que você deixou seu carro em algum estacionamento de novo. Os dois riem. TATIANNA Ai, André, eu nem pensei… Quando percebi, já tinha feito, aí fiquei com vergonha de sair de lá… Obrigada por me fazer companhia, prometo que dou uma carona... (V.O.) AAAAHHHH ME SOLTA! ANDRÉ O que foi isso? Você ouviu? Parece que veio dali... Tatianna, pega seu telefone e liga pra polícia agora! André caminha em direção ao grito enquanto olha para Tatianna. Assustada, com suas mãos trêmulas, Tatianna
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procura o telefone em sua bolsa e segue André com cautela. TATIANNA Cuidado, André… Pode ser perigoso.
SÁBADO - Cena 04 EXTERNA | RUA SEM SAÍDA | NOITE
André e Tatianna caminham para uma rua sem saída ladeada por edifícios. Na entrada da rua, uma caçamba de lixo impede a visão do fundo. Ao se aproximarem da caçamba, os dois avistam um vulto emergindo das sombras da rua. André põe-se em posição de ataque, Tatianna abaixa-se, e o vulto aparece como uma mulher jovem correndo em prantos, descabelada e com a camisa de uniforme de empresa desabotoada. André congela, a mulher o alcança e o abraça trêmula. JOVEM Ele… Ele… Ele tinha uma faca... A mulher solta André. Ele tinha uma faca… E de repente… De repente…. A mulher leva as mãos ao rosto e começa a soluçar caindo em lágrimas. Tatianna se aproxima e a abraça. TATIANNA Calma, você não está sozinha. Nós vamos te ajudar, e eu já chamei a polícia...
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Tatiana olha para André e ergue os ombros enquanto acalma a mulher. ANDRÉ Leva ela pra lá que eu vou ver o que aconteceu ali... TATIANNA Tá bom, tá bom… Mas cuidado... André pega um pedaço de madeira ao lado da caçamba de lixo e caminha em direção ao fundo da rua quando avista Dri abaixada sobre um corpo de um homem branco caído na rua. André para atônito, Dri também para, solta o corpo do homem, põe-se em pé e vira-se para encarar André. DRI Ele ia machucar ela… Dri aponta para o corpo no chão. André observa que é o Sr. Olavo que está caído ensanguentado no chão. ANDRÉ Eu sei. Ele mereceu... Alguns instantes de silêncio enquanto os dois se encaram. É melhor você ir embora daqui agora. A polícia chega daqui a pouco… Vai ser difícil explicar toda essa merda pra eles... Dri caminha em direção ao portão de um dos edifícios que ladeiam a rua e para olhando para André. DRI Obrigada.
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Dri entra no edifício. André encara o corpo caído no chão por alguns instantes, balança a cabeça e vira-se correndo em direção à saída da rua.
FIM, SERÁ?
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Impresso em 2021 Papel Cartao Duo Design & Polén Soft 90g Fontes Work Sans
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Dos filmes que ainda não fizemos
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os filmes ue ainda ão fizemos LGBTQIA+ Santa Catarina
“Dos filmes que ainda não fizemos LGBTQIA+ Santa Catarina" reúne roteiros cinematográficos de autorias LGBTQIA+ catarinenses, desenvolvidos a partir de uma série de encontros e oficinas de escrita e editoração.
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