MARAJÓ
MARAJÓ expedição
a Ilha do Marajó
organização
ana clara marin colaboração
luisa carrrasco orientação
luis o. de faria e silva
148 x 210 mm
tiragem 500
mapa capa pedro norberto
giulia ribeiro
MARAJÓ
expedição a Ilha do Marajó
workshop Arquiteturas Anfíbias
explorações e olhares através da arquitetura
“Há um arquipélago do marajó imaginário dentro de todos que, como eu, nasceram em um ambiente urbano”. Tunico
Quando eu era criança tive meu primeiro contato com a Ilha de Marajó e o município de Chaves. Um lugar isolado dos centros urbanos com localização geográfica muito especial. É encravado na contra costa da Ilha de Marajó, mais exatamente no encontro de dois poderosos: o rio Amazonas e o oceano Atlântico.
Meu pai nasceu no Marajó e, por esse motivo, minha vivência na ilha sempre foi intensa, me fazendo absorver muitos hábitos dessa cultura, que ainda hoje, é essencialmente regida pela natureza. Eles ainda pescam e caçam para comer, escrevem cartas para se comunicar, acendem velas para os santos, dormem e acordam no horário determinado pelo cair da noite e nascer do sol.
O prazer de fotografar intensificou ainda mais essa relação, me fazendo compreender quão essencial é o fazer coletivo para a sobrevivência humana pois, ainda que a ilha
possua vasta área territorial, predominam os latifúndios com atividade pecuarista, ocasionando baixa densidade demográfica e, consequentemente, o isolamento entre as comunidades marajoaras, sendo raros os investimentos na agricultura familiar. Esses fatores ocasionam a escassez de alimentos e tornam a atividade extrativista a principal fonte de alimento e renda da maior parte da população.
Considerando que tal atividade sofre forte influência sazonal, é possível compreender que em períodos de estiagem, ou durante as grandes cheias – época em que os peixes se refugiam nos campos marajoaras para se reproduzirem –, que compreendem cerca de seis meses do ano, a dificuldade de obter alimentos é ainda maior, sendo esses os momentos de maior necessidade de integração coletiva entre as pessoas que lá vivem. É comum após o retorno do “mato”, com a caça em mãos, o pai de família dividir o alimento
rio Amazonas / foto: antônio pedro
excedente entre seus vizinhos, pois até a capacidade de armazenamento de gêneros alimentícios, é comprometida em função de, pelo menos no município de Chaves, a maior parte da população não ter acesso a energia elétrica. Também, por essa razão, é alto o consumo de produtos enlatados e afins, que, com passar dos anos, tem elevado o número de pessoas com doenças como diabetes e hipertensão.
A partir da constatação dessa realidade, surge o desejo de promover ações no campo da cultura, educação e meio ambiente, capazes de auxiliar no desenvolvimento sócio-econômico do município, fazendo surgir a ONG Cururuar Fluvilab, que busca mediar a interação entre instituições como a Escola da Cidade, a Prefeitura Municipal de Chaves e as comunidades ribeirinhas do Marajó, em processos que ocasionem a melhoria da qualidade de vida das pessoas que habitam o arquipélago.
O Arquiteturas Anfíbias se configura como uma das primeiras investidas dessa relação, uma espécie de expedição, onde nos empenhamos na promoção da troca entre o saber acadêmico e o saber tradicional marajoara. Essa experiência propiciou aos expedicionários da Escola da Cidade vivenciarem uma realidade bastante adversa não que estão habituados na cidade de São Paulo. Navegar na contra costa do Marajó, na maioria das vezes, exige coragem e preparo físico para suportar o vertiginoso agito das águas do rio Amazonas próximo ao seu encontro com o mar.
A pacatez das localidades ribeirinhas do Marajó nem de longe lembra o alvoroço da grande São Paulo. Por outro lado, foi justamente o domínio da natureza no fluir temporal, que provocou encantamento no olhar entusiasmado dos viajantes. Esse entusiasmo passou a ser refletido nos olhos de cada marajoara que participou da vivência, lançando luz na forma de ver a si e seu próprio lugar. rio Amazonas / foto: antônio pedro
É importante observar que, por diversas vezes, pessoas que habitam lugares demasiadamente isolados, costumam sentir abandono e descaso, por parte do poder público e da sociedade como um todo. Na maioria dos casos, essa sensação acaba gerando a deturpação de valores mediante sua própria cultura e seu modo de vida. Cria-se a concepção de que o bem-estar reside no concreto armado das construções, nas camadas de asfalto das vias urbanas, nos medicamentos das drogarias, etc... A experiência vivida durante o Arquiteturas Anfíbias gerou inúmeras reflexões que permitiram aos participantes questionarem esse pensamento e a ressignificálo, constituindo valor aos recursos locais, bem como, ao conhecimento gerado pela própria natureza, que esculpe de forma laboriosa o terreno da ilha. A partir de então, pensando sempre em conjunto, foram projetadas diversas soluções viáveis sobre a construção de aparelhos públicos, enriquecidos pelo uso inteligente dos recursos naturais da
região. O resultado apresentado na sede da prefeitura de Chaves, aos gestores e membros da câmara de vereadores do município, foi uma gama de projetos de estruturação do núcleo central de Chaves, com base na realidade local e respeito ao fluxo da natureza, que denotam quão preciosa pode ser a união entre academia e administração pública.
Após o período de vivência no Marajó, o Arquiteturas
Anfíbias nos deixa o sentimento de que o encontro da boa vontade política, com a curiosidade científica e uma boa pitada de sonhos, é suficiente para realizar políticas públicas humanizadoras, capazes de atuar de forma eficaz e significativa na vida das pessoas.
Obrigada a Escola da Cidade, a Prefeitura Municipal de Chaves e a todos os que contribuíram na realização desse processo. Betânia Barbosa
rio Amazonas / foto: annabel melo
workshop arquiteturas anfíbias
espaço da cultura no Marajó/PA
julho/2018
alline nunes
ana clara marin
annabel melo
annick matalon
antonio faria
antônio valério (tunico)
antônio pedro
betânia barbosa
domenico potenza
eduardo amaral
giovana tak
giulio michelino
josé guilherme cury
ju castro
luis de faria e silva
luisa carrasco
manoela ambrosio
marina keiko
paulo von poser
pedro martins
rita buoro
victor minghini
participantes da viagem
A jornada ao Marajó começou como um gigante mistério. Nós, estudantes, tão acostumados a procurar e visitar as grandes obras arquitetônicas, nos vimos subitamente sem referências. Na verdade, eu acredito que mesmo os professores tinham em si essa ansiedade pelo desconhecido. A viagem, afinal, se deu pela intensa curiosidade sobre a cultura e ambiente que encontrávamos, pela investigação calorosa de espaços familiares, públicos e naturais.
Ao contrários das viagens itinerárias que todos nós havíamos realizados junto à Escola, essa se diferenciou pela compreensão da cultura pela vivência, e então, depois de imersos nesse ambiente, observar sua arquitetura.
A cultura no marajó deve e vem em primeiro plano, e as grandes obras arquitetônicas são as que necessariamente gritam essa cultura.
Luisa Carrasco paulo von poserEm julho de 2018, o workshop Arquiteturas
Anfíbias foi realizado por meio de uma
viagem à ilha do Marajó, no Pará.
A proposta da viagem foi a de um reconhecimento de possibilidades de projeto no estuário do rio Amazonas, sobretudo no que diz respeito aos seus espaços de Cultura, numa compreensão abrangente desta.
Assim, tivemos a oportunidade de observar a arquitetura e a maneira de lidar com a paisagem nas bordas das águas do caudaloso rio Amazonas, com sua diversidade de ecossistemas - contradizendo aquilo que se fala do bioma amazônico, por muito tempo equivocadamente apresentado como homogêneo e vazio. Luis de Faria e Silva
orla de chaves / pedro martinsA viagem foi uma ação combinada da Plataforma habita-cidade e curso de Pós-graduação Habitação e Cidade, da Associação Escola da Cidade, junto com a Prefeitura Municipal de Chaves, no Marajó, PA representando uma consolidação da aproximação entre as instituições envolvidas.
No âmbito de um acordo que une a capacidade de avançar com pesquisas e desenvolver saberes associados à transformação antrópica da paisagem, este bioma que representa um grande desafio para a perspectiva de um projeto humano brasileiro pode deixar para trás a série de equívocos a que se tem submetido nos últimos tempos a maior extensão tropical florestada do planeta. homogêneo e vazio. L.F.S
prefeito Bira / paulo von poserárea da visita_norte da ilha / paulo von poser caminho percorrido
macapá, primeiro destino da viagem, funcionou como um ponto de encontro, tanto dos integrantes do grupo, como deste com a cultura nortista
é a única capital estadual brasileira que não possui interligação por rodovia a outras capitais. acho que isso já diz o bastante.
Macapá. A orla de Macapá é produto da experimentação do “homem moderno” frente à força do rio Amazonas. Na procura de algo que contivesse aquele volume de água, toda a margem foi reconstruída, e em grande parte pavimentada, tornando a várzea de lama um espaço separado da cidade por pequenos muros, e atrás desses, Macapá abriga locais de convivência.
Próximo à margem, onde a cidade foi fundada, situase o Forte de São José de Macapá, que sediou por anos a base militar da região. Para além da simetria e construções de estilo colonial, o forte foi o início de uma reflexão sobre o intenso sistema de exploração da região do Amazonas. Luis de Faria e Silva
forte de são josé de macapá / annabel melo
Navegações. A navegação de Macapá em direção a Afuá durou um belo pôr do sol e sua madrugada seguinte. Havia uma ansiedade coletiva sobre o que seria estar naquele mar sem fim que é o Rio Amazonas e, pouco depois da partida, já nos encontrávamos no meio de um horizonte infinito que nos abraçava por todos os lados, onde o rio e a mata encontravam o céu.
Nas navegações, em uma profusão de redes armadas umas praticamente sobre as outras, num convívio intenso entre os participantes da vivência, e também com os marinheiros (marítimos), sobretudo estes sempre compartilhando visões e memórias, deixando o estuário do Amazonas e suas bordas povoarem as conversas e silêncios.
barco de linha / rita buoro espaço do barco para lazer / rita buororedes armadas no barco / annabel melo
Momentos especiais foram vividos enquanto se esperava a maré apropriada e com os movimentos
randômicos tanto da navegação como dos tripulantes e marítimos, rápidos no fechar das lonas quando das chuvas repentinas, surpreendentes no abri-las para a estiagem súbita, misteriosos quando da abordagem de pequenos barcos de onde vinham novos companheiros de viagem e alguns víveres. Luis de Faria e Silva
sr. manoel, marinheiro que nos acompanhou / alline nunes orvalindo filhos, barco no qual viajamos pela ilha / annabel meloparte de cima do barco usada para lazer / antônio pedro
desenho coletivoAFUÁ a nordeste do município de Chaves
38 mil habitantes
4,19 hab/km ²
podemos dizer que afuá está debruçada sobre as águas
Afuá. Afuá foi o primeiro município marajoara que visitamos. Chegamos estáticos e ansiosos, procurando absorver cada canto da paisagem. Verde, amarela e vermelha, Afuá estava se preparando para receber o grande festival do camarão quando chegamos, colorindo suas ruas. As construções em geral também dispõe de muitas cores, combinando a paleta das casas com as da floresta. A cidade de passarelas de madeira que acorda com músicas em seus auto-falantes nos recebeu de braços abertos. Luisa Carrasco e Ana Clara Marin
passarelas elevadas / alline nunes moradias / alline nunesalline nunes
alline nunes
um exemplo de casas coloridas comumente encontradas em afuá / ana clara marin
Relação com o rio. A cidade é extremamente próxima do rio, se organizando por passarelas e espaços públicos de madeira que contém o fluxo intenso de bicicletas, o forte comércio de peixes e proporcionam deques que se tornam praias de madeira onde se desfruta do sol e das águas. Apesar do contato com a água ser basicamente através desta praia de madeira (no qual permanece seca durante as marés baixas) e de passarelas para alcançar os barcos, a cidade não deixa de ter um vínculo fortíssimo com a floresta. Em nossas caminhadas, ouvimos histórias de plantas e óleos medicinais, caçadas em família e tivemos contato com a intensa produção de açaí em todos os cantos da cidade. Luisa Carrasco
meio de transporte / giovana tak
Vivência em Afuá. Chamou a atenção em Afuá o desenho dos espaços públicos com plataformas em madeira, bancos e estruturas de apoio. Há, na orla de Afuá, uma rampa longa em madeira utilizada como praia, comumente conhecida, inclusive, como “praia de madeira”. Na cidade, circulam pedestres e bicicletas nas vias em concreto armado e nas passarelas de madeira - o uso de automóveis é proibido. (...)
deque com quiosques / rita
buoro pracinhas elevadas / ana clara marinOuvimos relatos de algumas marés altas que cobrem os caminhos e inundam as casas da vila e, o que poderia ser visto como contratempo, começa a ser encarado como oportunidade de explorar novos espaços públicos, nos quais os habitantes passeiam pela vila inundada se divertindo. A resiliência é encarada como forma de festa.
Ocasionalmente, algumas marés altíssimas, chamadas “lançantes”, acabam por cobrir os caminhos em Afuá quando, inclusive, inundam as casas da vila; mas o que poderia ser visto como contratempo ou problema é encarado como oportunidade ou momento para se brincar – nessas situações, os habitantes passeiam pela vila inundada, brincando com a água, e, inclusive, em pequenas embarcações navegam nessa condição excepcional. Revela-se, assim, resiliência urbana na forma de festa. Luis de Faria e Silva
Sumaúma. O maior contato do grupo com a Floresta Amazônica foi em Afuá. Tomamos uma pequena lancha para outro canto do município, que abrigava somente algumas poucas casas e uma escola pública abandonada. No final de uma trilha enlameada, encontramos uma clareira que abrigava a Sumaúma, ou a Muralha, como os locais a chamavam.
Foi ali, chegando na clareira, o momento mais silencioso da viagem. É que não tinha o que falar. A sumaúma parece, para nós presos nos prédios paulistas, um milagre amazônico. Luisa Carrasco
grupo mostrando a escala da raíz da árvore altura da árvore / alline nunes
paulo von poserToda a enorme extensão da ilha do Marajó preserva condições de escassa acessibilidade que protegem seu equilíbrio natural original, exceto nas áreas onde a presença de assentamentos humanos recém-construídos é maior. Nestes territórios, a simplicidade dos assentamentos tradicionais é sobreposta pelas contradições de uma modernidade agora completamente globalizada, que anulam a harmonia dessas paisagens, até torná-la totalmente desvinculada das próprias razões que a geraram.
“Existem muitos ecossistemas que já são habitáveis e existem muitas civilizações que os utilizam: a própria imagem do Jardim do Éden nada mais é do que um ecossistema habitado sem esforço de adaptação. O paraíso apresenta-se, na verdade, como uma imagem de uma morada humana perfeita: aqui não é necessária proteção climática e, portanto, nenhuma construção, nenhum trabalho para produzir alimentos, não há necessidade de defesa, sendo uma imagem que se mantém com grande sucesso, dos jardins imperiais do Oriente ao Club Mediterranée. Mas o Jardim do Éden é uma instituição frágil: basta introduzir um novo
base das casas feitas de concreto e revestida de azulejo / alline nunes muxarabi de madeira _ fechamento / alline nunesconstruções de diferentes materialidades / rita buoro
conhecimento ou usar objetos existentes (por exemplo, uma folha de figo) de uma nova maneira, e o processo de deterioração começa. E é completamente impossível prever uma expansão: no Jardim do Éden, a explosão demográfica leva apenas à expulsão. O Jardim do Éden é, portanto, um ecossistema habitável antes do pecado original. Após a intervenção humana, torna-se um ecossistema melhorado, mas esta melhoria é, ao mesmo tempo, o primeiro estágio de um processo de decadência. Não se melhora um ecossistema (no que se refere à habitabilidade) sem pagar um preço, o de acelerar o processo de destruição de tal sistema”. Domenico Potenza
casa de concreto / ana clara marin depósito de madeiras a céu aberto / ana clara marinconstrução
Obra pública de expansão concebida pela secretaria de infra estrutura do município de Afuá.
Construção de passarelas em concreto armado em três diferentes travessias, com os valores de 278, 105 e 10 metros de extensão.
Obra iniciada em Maio de 2018 com previsão de 180 dias e valor de contrato inicial de R$ 819.686,95.
Dados disponíveis em <afua.gov.pa.br> acesso em Fev. 2019
da passarela / ana clara marin fundação / rita buorofôrmas de madeira para a concretagem / ana clara marin
onde estavam os elementos da cultura material e imaterial marajoara em chaves? quanto mais perguntava menos entendia. tornei-me um chato perguntador que não sabia ouvir as respostas. tunico
desenho coletivo em cima do barco estacionado / alline nunes
Chaves. Em Chaves, o rio Amazonas é particularmente intenso: na maré baixa o rio recua aproximadamente 150 metros e o município ganha uma enorme praia de lama, onde acontecem muitas das atividades sociais e culturais.
Em suas praias o rio deposita frequentemente troncos de árvores arrancadas, sobretudo pela força das pororocas, fenômeno em que uma grande onda se forma em função de a força das águas oceânicas circunstancialmente vencerem a força do rio-mar Amazonas e avançarem rio acima, revolvendo as suas margens, removendo terras, assoreando e modificando as áreas litorâneas. Luis de Faria e Silva
orla mais distante do centro / annabel melo troncos trazidos pelas marés / annabel meloTrapiche. A porta de entrada e saída do município de Chaves se dá por seu trapiche que funciona não só como uma espécie de porto para a cidade, mas também como o único abrigo do sol presente em sua extensa praia. Por estar localizado em uma área central, o movimento em seu entorno é extremamente presente, sendo tocado também pelo constante movimento das marés que alagam completamente a orla, inundando toda a parte de baixo do trapiche, comumente usada pelos moradores. Ana Clara Marin
embaixo do trapiche / rita buoro trapiche como o unico lugar de abrigo na orla / rita buorobarcos esperando a maré alta / annabel melo
praça central chaves / antônio pedro
Cidade Chaves. A falta de árvores pela cidade, torna-a extremamente quente durante o dia. Apesar do clima bastante quente e úmido, o número de casas de alvenaria existentes com acabamentos inadequados para as elevadas temperaturas continua a crescer, revelando uma valorização destas como símbolo de status e não por conforto térmico ou custo de construção. Ana Clara Marin
mercado / giovana tak casa exemplo das características de chaves / ana clara marin
Muro. Os muros de contenção junto aos barrancos de Chaves-Sede, esforço de conter a força das águas, construídos, sobretudo junto à área central da cidade, já demonstram que não terão jamais capacidade de reverter o que parece ser destino traçado de transformação contínua das margens marajoaras. Já houve quarteirões que se desmancharam ao longo do tempo - algo a que se referem alguns moradores antigos e que está presente na memória da cidade.
Como imaginar transformações que resultem em belas ruínas, destino aparentemente certo do que se estabelece nas margens daquele trecho do Amazonas?
Essa parece ser uma questão colocada pelos ciclos da Natureza naquela região onde é inevitável imaginar que, eventualmente, em algum dia a cidade ali estabelecida terá que mudar de lugar, aceitando essa relação com águas tão monumentais, que já modificaram a paisagem no período de vida de muitos dos antigos moradores. Luis de Faria e Silva
extensão do muro pela orla / luis de faria e silva
moradores se apropriando do muro / rita buoro
Ave Marela. Em meus caminhos uma voz expressiva sempre ouvia “Ave Amarela!!! E de quando em quando uma saudação em francês, sempre um sorriso, entre uma fagulha e outra da sua solda elétrica, uma expressão característica, se referindo sempre a “vizinha”, curioso me aproximei e comecei a ouvir.
Ave Amarela sempre me chamou de “Mestre” ou “Vossa Excelência “, eu menino do Grupo Escolar
Magalhães Barata (um tesouro material que deveria ser transformado em centro cultural) ouvia atento. Falava de
peixes com nomes sonoros, das marés, de lugares que ainda não conheci na ilha Mexiana, de suas aventuras, de redes de pesca, de como era possível consertar isto ou aquilo no telhado do ginásio poliesportivo Gicamor
Pereira da Trindade, entre uma piada e outra contava de como tudo tinha mudado em poucos anos em Chaves.
Um dia me convidou para subir no andar superior da sua oficina de serralheria, subi os poucos degraus de madeira e encontrei mais uma dimensão da cultura em Chaves, nas paredes esqueletos de animais,
coleção de ossos do ave marela / giovana takespadas, uma coleção de objetos desconhecidos ou transformados pelo tempo dos homens, um gabinete de curiosidades, ou na descrição de Frank Lestingan uma “oficina do cosmógrafo”. Tunico
Valtinho. Valter Abdon foi o cerimonialista na posse do Prefeito e de sua equipe de Secretários Municipais no início de janeiro de 2018. Eu, o perplexo representante da pasta de Turismo, Cultura e Desporto, fui atropelado por Valter Abdon, sua presença nos faz respirar cultura. Dançarino, parteiro, ator, cerimonialista, compositor e professor, surpreende, atropelam e apaixona no primeiro contato. Intenso, teimoso defensor da cultura marajoara chaviense, a do vaqueiro e do pescador, mestre de ofício, contador de histórias, sabedor dos segredos de plantas e ervas medicinais, cavaleiro defensor do Boi bumba “Pingo de Ouro”.
Convidei para compor minha equipe, em nosso abraço constante, sempre completava minhas frases e argumentos, uma de suas sabedorias, de alma livre e solta, fazia o quem entendia e sentia ser o melhor para a cultura do município de Chaves.
Um Tesouro vivo.
Tunico
valtinho / giovana takparticipantes da viagem junto com valtinho, betânia, tunico, ju e ana
Vila historicamente importante do município, exemplo significativo de comunidade ribeirinha, estabelecida junto ao rio de mesmo nome, entremeada por dois igarapés.
praça central com igreja / ana clara marin
Arapixi. A ida a Arapixi foi cercada de anseios e mistérios que contribuíram para a criação imaginária da vila. A maré morta que nos recebeu em Chaves, não nos deixou atravessar suas águas durante a noite, nos obrigando a pegar o barco pela manhã, mais uma vez nos deixando a mercê do grande ciclo das marés. A viagem foi iniciada na manhã seguinte, dia no qual permanecemos no barco esperando a maré alta do fim da tarde para adentrar ao rio Arapixi. O meticuloso rio que adentra a ilha do marajó nos guia até a porta da vila, sendo ela uma praça central com uma igreja, primeiro sinal do homem em meio a floresta. (...)
annabel melo foto aérea da vila de arapixibarcos menores param em qualquer lugar / alline nunes
(...) A vila de Arapixi não abraça o rio Amazonas, trazendo uma relação particular das construções com o igarapé que a cerca. A demora para chegar a este local, apesar da distância não ser longa, revela um certo grau de isolamento em relação a baía da ilha, no qual a única maneira de chegar é por barcos (exceto nas épocas de maré baixa quando é possível atravessar por dentro da ilha de carro ou moto), tornando-os o meio de transporte mais importante da região que acaba por ser responsável não somente no transporte de pessoas como também no abastecimento da vila .
Ana Clara Marinatracadouro para barcos / luis de faria e silva
proximidade das construções com o rio / alline nunes
Morar em Arapixi. Mesmo instaladas em terras acima do nível das águas altas, as casas do Arapixi são construídas um pouco elevadas do solo e é perceptível que os espaços entre as construções são frequentemente encharcados - grandes cheias são insinuadas como razão das pequenas palafitas e fica a impressão de terras eventualmente alagáveis, transformadas intermitentemente em charcos. Luis de Faria e Silva
casas encontradas em arapixi / ana clara marin marina keikomanoela ambrosio
passarelas que ligam as casas / ana clara marin
palafitas a beira do rio Arapixi / ana clara marinFestivais. Os festivais nas aglomerações humanas visitadas no Marajó - Festival do Vaqueiro-Pescador em Chaves, Festa de Santo Antônio no Arapixi, Festival do Camarão em Afuá - deram um novo tempero à experiência da viagem. De origem religiosa, evidenciada atualmente apenas no nome da festa do Arapixi, os festejos compõem atividades ligadas ao cotidiano dos lugares - corridas de cavalos, rodeios e pescarias em Chaves, a lembrança da fartura do camarão em Afuá (que paradoxalmente não tem muito camarão nos seus restaurantes durante o evento), dividem a atenção com apresentações de cantores e músicos de ritmos da região do Pará e mesmo de outras partes do Brasil, com um aspecto que faz pensar nos carnavais de rua, com muita embriaguez e pouco cuidado. É uma Amazônia pop que se desvela, sobretudo em Chaves e em Afuá, com produtos de camelôs em profusão, música excessivamente alta mesmo quando não há o menor sentido para tanto, clima de frenesi, exceção talvez para o evento no Arapixi, de menor escala e talvez por isso menos transformado pelos meios de comunicação de massas, ainda que não imune a eles.
cartaz oficial do festival do camarão 2018 / <afua.pa.gov.br> acesso em Fev. 2019Até que ponto essas festividades são resistências de uma forma intrínseca da Cultura local? Será essa excitação uma sobrevivência de algo que, quanto às festividades na América do Sul, diz um viajante italiano que percorreu a Amazônia e o vale do Orinoco no final do século XIX: que durariam dois a três dias e quando do dia final, dia do “enterro” (ou “enterro dos ossos”, como se diz em São Paulo), dia em que o hábito seria o de acabar “com as provisões que porventura tenham sobrado dos dias precedentes, (...) [haveria] pessoas que se sentiriam diminuídas caso não pudessem se embebedar em dia tão solene” (STRADELLI, 2009, pág. 85). Percebe-se, de qualquer maneira, o quanto são importantes os festivais como manifestações locais, palco de exposição de anseios e valores.
Quando acabam as festividades, o sossego retorna e o transe de esquecimento dá lugar ao ritmo dos ciclos naturais ilusoriamente abafados pelo tumulto. Domenico
Potenza festival do vaqueiro e do pescador_competição do maior peixe / rita buoroComo pensar o espaço da Cultura no Marajó, na Amazônia? O artista plástico e professor Paulo Von Poser, que foi um dos professores envolvidos na viagem (foi, inclusive, definido como o seu “braço”, ou seja, alavanca da produção - produção de desenhos individuais e coletivos, numa apreensão sempre generosa da essência dos lugares), nos últimos momentos da vivência, declarou - e aqui deixo registrado - que o lugar da Cultura é todo o lugar e lugar nenhum, provocando a lembrança de que a Cultura está nas pessoas, nos ritmos, no inesperado. Acabou por reverberar uma reflexão sobre a construção da ferrovia Madeira-Mamoré como trágico momento de ilusão da imposição de vontades humanas desconectadas da natureza: “(...) é possível perceber, nesse trânsito sutil entre natureza e cultura (...), o fascínio que advém do espanto, os atrativos secretos da escuridão e do medo, a força primitiva de lugares inomináveis, os sentimentos solitários ante a infinitude ‘natural’, a surpresa permanente como nova rotina (...)” (HARDMAN, 1988, pág. 100). Luis de Faria e Silva
barco de macapá para afuá / annabel melo
apresentação dos projetos do workshop para o prefeito e seus vereadores no palácio municipal
Projeto. Por que lutar com as águas se elas são a essência daquele lugar? Esse foi o princípio básico das intuições de projeto que foram desenvolvidas pelos integrantes da oficina
“Arquitetura Anfíbias” no que se refere aos espaços públicos de Chaves-Sede. Luis de Faria e Silva
palácio municipal de chaves / domenico potenza escolinha cedida para espaço de trabalho / domenico potenzamapa de chaves com divisões de trabalho / domenico potenza
área mais afastada do centro com poucas construções
Projetos. Acessos para a praia, sombras e apoio para lazer na proximidade das águas, além de estratégias para configurar piscinas intermitentes foram pensados de maneira a que possam ser remontados quando desfeitos pelas marés e também relocados. Na área central, arquibancadas e recepção da cidade se reconfiguram de maneira a se tornarem mais efetivas como quebra-marés, com geometria apropriada e com usos combinados de escadas e sombreadores, ainda que não
esteja descartada a ideia de que em algum dia se tornarão ruínas (alguns trechos caídos do muro já apresentam esse aspecto e poderiam ser absorvidos e tratados como tal).
Projetos. Acessos para a praia, sombras e apoio para lazer na proximidade das águas, além de estratégias para configurar piscinas intermitentes foram pensados de maneira a que possam ser remontados quando desfeitos pelas marés e também relocados. Na área central, arquibancadas e recepção da cidade se reconfiguram de maneira a se tornarem mais efetivas como quebra-marés, com geometria apropriada e com usos combinados de escadas e sombreadores, ainda que não esteja descartada a ideia de que em algum dia se tornarão ruínas (alguns trechos caídos do muro já apresentam esse aspecto e poderiam ser absorvidos e tratados como tal).
A velha escola que se propõe que seja convertida no que se decidiu chamar de Casa da Memória, lugar onde se poderá recontar as coisas da região e que um dia, quiçá, será reabsorvido pelo Amazonas que está na origem de tudo o que ali se percebe e recebe.
Também junto às casas chaveenses, entremeadas de águas empoçadas como no Arapixi, a ideia é a de garantir charcos com a função de jardins remediadores, componentes de uma rede sanitária que mais cedo ou mais tarde terá que ser enfrentada. Defende-se que
estruturas para conexão da cidade com o rio / grupo
coleta das áreas alagadiças para armazenamento e uso / grupo 2
área majoritariamente residencial
esses canais serpenteiem os quintais das casas, facilitando também a entrada dos ventos alísios tão presentes na orla, deixando-a fresca, e que poderá também melhorar as condições de conforto nas áreas mais interiores, hoje frequentemente abafadas. Aponta-se para um raciocínio renovado sobre a infraestrutura em Chaves, combinando caminhos existentes, com algumas redes, e sistema sanitário remediador de quintais verdes e produtivos.
Nos caminhos centrais, onde está o comércio local, sugere-se a cobertura dos mesmos com pérgolas de madeira, que poderão receber coberturas de lonas para sombreamento, como acontece em cidades no sul da Espanha, e plantas trepadeiras.
A área no entorno da cidade, equivalente ao que seria antigamente um rossio, foi imaginada como base para produção de alimentos e retiros de gado vindo tanto do interior como das ilhas, com produção de leite e derivados, mas também com agroflorestas associadas ao sistema sanitário, que terão nelas um destino adequado para vários insumos atualmente descartados
A série de propostas aqui sintetizada tem a perspectiva de configurar um projeto educativo. Assim, a cidade ensina através de seus espaços públicos e da inteligência associada à sensibilidade que nela se materializam em estruturas para permitir a presença humana, sempre em uma interação profunda com os ciclos naturais, até mesmo com a consciência da finitude da existência. Luis de Faria e Silva
estacionamento para barcos igarapé Miri / grupo 1
área próxima ao igarapé Miri, usado como estacionamento de barcos
estudo das áreas alagadiças com reservatórios / grupo 2
estudo da hidrografia de chaves / paulo von poserO Brasil é muito grande. As pessoas são mais ainda. Sai de casa, vai ver gente, vai falar com gente, vai ouvir gente. Para de ter tanto medo, medo de tudo. A gente não é o que acha que é, a gente é o que é. E entre essas coisas tem um abismo. Começa a olhar pra você com o que você é e não o que te falta. E trabalha com o que você é e não com a imagem que você faz de si ou que acha que os outros fazem. A sensação engraçada da viagem toda é o vento. É o vento esses choques na pele. Lembra disso. Essa sensação não tá por aí, foi só aqui. Volto com a sensação de que tudo mudou. Tudo aqui dentro mudou de lugar. Coincidências não são nada mais do que um aviso de que alguma coisa maior tá acontecendo. Isso foi uma aviso. O mágico. Os amantes. O enforcado. “As únicas cartas que eu conheço são a do moço de cabeça pra baixo e a do amor”. Isso é uma coincidência. Annabel Melo
“muralha” / annabel melo
janela do barco / annabel melo