Roberto Müller | A cidade não mora mais em mim
Texto de Denise Carvalho, Ph.D.
O trabalho de Roberto Müller é singular em sua capacidade de condensar influências conceituais e reflexivas, revelando atuais tendências críticas e filosóficas da arte contemporânea. “A cidade não mora mais em mim” fala de uma crise existencial do ser humano em sua condição urbana. É como se a cidade tivesse escapado da imaginação e percepção subjectiva do artista, e se tornado, num desencadear desencorpado, o caos da disseminação auto-‐destrutiva. Essa não é mais a tal máquina robótica e orgânica de Deleuze e Guattari, capaz de transformar o molar no molecular. É algo diferente, a molécula infectada, sem cabeça e sem alma, empenhada na multiplicação viral e exponente de sua própria dispersão. Muito diferente da idéia da cidade no trabalho de Hélio Oiticica, em que havia um desejo de consolidar a percepção individual com o exterior mutável da sociedade urbana, Muller invoca no axioma do objeto detalhado, em sua execução, uma profunda reflexão crítica das atuais limitações conflitantes da experiência urbana. A prática conceitual de Müller objetifica as diferenças sociais, muitas destas relatadas pelos periódicos, outras vividas no cotidiano do artista. O Labirinto (2012) foi inspirado em plantas de apartamentos distribuídas nos sinais de trânsito. A simplicidade do objeto revela com clareza o confinamento das construções atuais mínimas e restritivas. O sol é para poucos (2016), baseado em matérias jornalísticas sobre as renovações urbanas, mostra um livro amarrado a um gabarito de metal. A rigidez nas entrelações dos materiais evoca a desconexão entre os moradores urbanos e a uniformidade de critérios nas prescrições legislativas que privilegiam alguns moradores em detrimento de outros. Nos arranha-‐céus localizados na orla do Balneário de Camburiú em Santa Catarina, o sol vai desaparendo minuto a minuto, marcado pela sombra das torres que se alastram verticalmente na areia. O livro como objeto de arte tem um enfoque importante na exposição, pois introduz o jogo de palavras como crítica a situações divergentes. Em vários de seus livros vê-‐se o teor reflexivo como nas questões da decadência cultural, na artificialidade do periodismo, e no crescente consumo de livros descartáveis, excessivamente decorativos mas ineptos em seu conteúdo educativo. As imagens, palavras e objetos utilizados nos livros são aplicados como poesia concreta visual, como outros artistas brasileiros o fizeram. No livro de arte vemos a estratégia da dissidência, do humor e da poesia. Em Müller, o livro traz um aspecto de reflexão na condição humana do espaço urbano, mostrando que tanto a leitura quanto a linguagem tem perdido sua importância, sua mensagem fatual ou filosófica, sua crítica, sua história. Do objeto que se lança fora (2015) vemos no interior de um livro um outro livro, este parcialmente queimado, aludindo a morte do livro como consumo na cultura inútil. Estes são os livros de auto-‐instrução, de receitas, de dietas, até mesmo os educionais e didáticos, da cultura e leitura descartáveis. Em Objeto (2016), baseado em outra descrição periodística, a situação piora ainda mais com a produção de coleções e bibliotecas meramente decorativas. A morte do livro é o
apagão da memória do conhecimento, criado pelo mercado da banalização da leitura com a morte do leitor. Este tipo de consumidor cria um buraco negro feito de informação redundante, expresso no livro-‐ objeto Que não tem clareza (2016), com textos sobrepostos e com um marcador em excesso, promovendo o consumo pelo consumo. Um contraste com o livro descartável é o livro eterno, a relíquia, de um sistema de ensino defasado. Em Sistema de ensino (2016) mostra um livro publicado há 50 anos atrás. O livro se encontra num bloco de gesso, dando vasão a ironia da frase popular, “O ensino está engessado” e, portanto, quebrado. Questão de pele (2018) mostra uma caixa com pele sintética de aparência macia, protegida por cacos de vidro transparentes. Os dois materiais nos dão repulsa e desejo, associando o desejo ao medo de tocar e se cortar, e nos fala das diferenças criadas pela discriminação e intolerância do outro, num mundo cada vez mais xenofóbico. No sistema de banalização da cultura, o ordinário virou jóia, como Objeto precioso (2018), composto por uma caixa de veludo vermelho com um círculo de aço galvanizado dourado. O acrécimo na demanda de materiais de segurança aumentou o seu valor econômico e no mercado da bolsa de valores. A ironia é que esta melhora deve-‐se ao excesso da violência, ampliando a demanda de produtos de segurança. Era uma vez (2017) fala da morte da sociabilidade comunitária com a edificação de condomínios isolados por grades eletrônicas e câmeras de segurança, relativo às torres panópticas de Bentham. A placa de mármore impressa com o relato de um menino anuncia esta alienação das gerações futuras, e a lança centrada no mármore acentua o pânico da ameaça constante no imaginário urbano. Quanto mais empregamos formas de discriminação e tirania ao outro, mais cultivamos uma sociedade de medo. Como já dizia Emannuel Levinas, precisamos compreender o outro através da alteridade necessária para uma mudança nas relações sociais. No modelo Levinasiano, a subjetividade ética e sua interrelação com a política favorece uma maior compreensão e aceitação das diferenças. É em busca da fraternização com o outro que podemos conquistar os parâmetros que levam a justiça. Onde Estou (2018) é um baleiro com balas, e impresso em seu envólucro está a palavra “perdida.” O trabalho é um jogo de palavras que referencia as balas perdidas nos tiroteios sem fronteiras, um exemplo do quadro Hobbesiano, onde a falta de um governo atuante impele a volta a um estado natural. A situação da violência no Brasil tomou conta até do próprio governo, com a perda da intervenção comunitária e a insignificância de uma bala perdida. A balinha que a gente chupa e descarta passa a ser uma reflexão ao ínfimo valor da vida. A exposição de Roberto Müller reflete nessa dualidade: no pessimismo Hobbesiano, em que há uma reversão do social para um estado caótico e sem governo, e no otimismo Levinasiano, possível através da justiça social e de um governo humanitário. A opção vai depender de todos nós. Outubro 2018
CURRICULUM
Roberto Müller
Natural de São Paulo, 1964 -‐ Vive e trabalha no Rio de Janeiro Graduado em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula – Rio de Janeiro Foi assistente da escultora Iole de Freitas – 1992 a 1997 Integrou grupo de estudos: Grupo Alice – Rio de Janeiro – 2011 a 2012 Exposições Individuais 2018 – A cidade não mora mais em mim -‐ Centro Cultural Justiça Federal, Rio de Janeiro -‐ RJ 2017 -‐ Cicatrizes Urbanas – Sesc São Luís, São Luís -‐ MA 2017 -‐ Cicatrizes Urbanas -‐ Espaço Cultural Correios Niterói, Niterói -‐ RJ 2017 -‐ Indagações e Atravessamentos – Galeria de Arte da UFF, Niterói -‐ RJ 2016 -‐ Cicatrizes Urbanas – Galeria J. Inácio, Aracaju -‐ SE 2016 -‐ Cicatrizes Urbanas – Biblioteca Pública Luiz de Bessa, Belo Horizonte -‐ MG 2015 -‐ Do cotidiano das cidades – Paço dos Açorianos, Porto Alegre -‐ RS 2015 -‐ Outro lado da cidade – Espaço Piloto – Universidade de Brasília -‐ UnB, Brasília -‐ DF 2015 -‐ Derivações, sobre as palavras nas cidades – Galeria de Arte Sesc Sergipe, Aracaju -‐ SE 2015 -‐ Derivações -‐ Galeria da Faculdade de Artes Visuais / Universidade Federal de Goiás, Goiânia -‐ GO 2014 -‐ Invasão -‐ Somos dois e somos muitos -‐ Sesc Paço da Liberdade, Curitiba -‐ PR 2014 -‐ Derivações -‐ Galeria Municipal de Arte Victor Kursancew, Joinville -‐ SC 2013 -‐ Urbanidade -‐ Sesc Londrina, Londrina -‐ PR 2013 -‐ Derivações -‐ Centro Cultural Justiça Federal, Rio de Janeiro -‐ RJ -‐ Curadoria Marcelo Campos 2012 -‐ Museu de Arte Contemporânea de Mato Grosso do Sul, MARCO, Campo Grande -‐ MS 2012 -‐ Museu de Arte de Goiânia, MAG -‐ Goiânia -‐ GO 2011 -‐ Centro Cultural Fase, Petrópolis -‐ RJ Exposições Coletivas 2018 -‐ A Outra Feira de Arte – Casa Contemporânea, São Paulo – SP 2016 -‐ 19º Edital de Incentivo à Produção Chico Lisboa -‐ Museu de Arte do RS, Porto Alegre -‐ RS 2016 -‐ 3º Salão de Arte Contemporânea de Ponta Grossa, Ponta Grossa-‐ PR 2015 -‐ 22º Salão de Artes Plásticas de Praia Grande, Praia Grande – SP ( prêmio aquisição ) 2015 -‐ 43º Salão de Arte Contemporânea Luiz Sacilotto, Santo André -‐ SP 2014 -‐ Passageiro Efêmero -‐ Sec. de Cultura de Guarulhos -‐ Biblioteca Monteiro Lobato, Guarulhos -‐ SP 2014 -‐ Programa de Exposições -‐ Museu de Arte de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto -‐ SP 2013 -‐ 12º Salão de Artes Visuais de Guarulhos, Guarulhos -‐ SP ( menção honrosa ) 2013 -‐ 45º Salão de Arte Contemporânea de Piracicaba, Piracicaba -‐ SP 2013 -‐ 12º Salão Nacional de Arte de Jataí, Jataí -‐ GO 2013 -‐ 4º Salão dos Artistas sem Galeria, -‐ Galeria Zipper e Casa Xiclet, São Paulo -‐ SP 2012 -‐ XI Bienal do Recôncavo, São Félix -‐ BA 2012 -‐ 3º Prêmio Belvedere Paraty de Arte Contemporânea, Paraty -‐ RJ 2012 -‐ Salão de Arte de Mato Grosso do Sul, Campo Grande -‐ MS ( prêmio aquisição ) 2012 -‐ 6B -‐ Centro Cultural Justiça Federal, Rio de Janeiro -‐ RJ 2012 -‐ Fio Condutor, Galeria Graphos : Brasil, Rio de Janeiro -‐ RJ 2012 -‐ 21º Encontro de Artes Plásticas de Atibaia, Atibaia -‐ SP 2012 -‐ Mostra Panorama Terra, Centro Cultural Brasil Argentina, Rio de Janeiro -‐ RJ 2011-‐ Assim sem Você, Galeria Oscar Cruz, São Paulo – SP 2011 -‐ Desvenda, Museu Murillo de La Greca, SPA das Artes, Recife-‐PE 2011 -‐ 36º Salão de Arte de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto -‐ SP