“Derivações” é um conceito que poderia ser aplicado a diversos modos de produção das obras de arte contemporânea. Roberto Müller cria vínculos com as heranças da pop art e da arte conceitual agora recodificadas. Tais derivações, nas obras de Müller, afirmam que a pop e o conceitualismo deixaram como legado discussões sobre a imagem, os modos de repetição, as estratégias de circulação e as vinculações. No uso da palavra, Roberto Müller observa slogans, poemas, relatos, ativando conceitos que fazem parte do cotidiano das mídias e das cidades ou a declarações mais subjetivadas, advindas do relato. Ao mesmo tempo, temos a criação vinculando imagem e narrativas que antes freqüentavam lugares distintos. “Das ruínas e da morte” parte de fotografias que apresentam construções antigas. A partir da impressão das fotos em ladrilhos, Roberto destrói a cerâmica deflagrando ainda mais a aparência da ruína. Ao lado, um texto que ora pode tratar de um bairro, ora de uma vegetação, por exemplo. Em baixo, uma placa de localização. Nesta mistura, neste jogo de dispositivos, os trabalhos de Roberto Müller presentificam uma espécie de quebra-‐ cabeça, mantendo imagens e legendas em flutuação. Em “Por favor não perturbe” ou “O Ministério da Saúde não adverte”, o banal das frases -‐ mais do que gastas pela disseminação exaustiva -‐ se apresenta. O ato politicamente correto imposto à indústria de cigarros e a obviedade dos recados para as camareiras nos hotéis são apropriados pelo artista. Para efeito deslocado na relação entre imagem e significação, o artista modifica as fotos, altera a lógica e coloca, por exemplo, nos cigarros, imagens de populações de rua, menores abandonados, carros dispensando fumaças tóxicas. Evidencia-‐se uma brecha nas políticas públicas, na administração dos problemas sociais. No recado das portas de hotéis, os mendigos. Há nesta manipulação de imagens, uma certa culpabilidade da classe media, fato muito discutido desde os anos 70, quando a divisão entre morro e asfalto, no Rio de Janeiro, precisava ser problematizada. “Mineirinho”, conto clássico de Clarice Lispector, localizava os citados conflitos, mostrando uma narradora preocupara em manter a segurança de seus filhos, mas aterrorizada pela quantidade de tiros disparados pelo policial contra o marginal da época. Além do interesse em manipular mensagens publicitárias, Roberto Müller também utiliza-‐se dos modos de produção comuns aos displays e anúncios. Vemos cortes a laser, impressões em metacrilato, acabamentos impecáveis. Esta reificação estética deve ser entendida como escolha conceitual. Hal Foster nos explica que toda critica é passível de reificação do conteúdo a ser criticado. Ou seja, usar os elementos que são de denúncia, na arte, cria uma inevitável estetização daqueles elementos, conferindo-‐lhes beleza, no mesmo átimo de tempo em que se está produzindo sua destruição. A isto chamamos de herança. A arte contemporânea eclipsa seus referentes, embaçando possíveis localizações históricas. Com isso, vemos pinturas que se utilizam dos gestos expressivos, esculturas abstrato-‐geométricas, efeitos impressionistas em fotografias. Nas obras de Roberto Müller, os elementos da cultura de massa se apresentam como herança pop, alavancadas na relação entre palavra e significado que fora apresentada na arte conceitual. Em “Ato ou efeito de observar”, outra seara é aberta., Roberto Müller utiliza-‐se da definição dicionarizada do significado de observar, mas obstaculiza a leitura, mantendo o escrito coberto por uma placa. Entrevemos o que está dito numa brecha lateral, num intervalo. Tal qual no buraco da fechadura ativado por Duchamp no Etant Donné, aqui o espectador se torna intruso. Pensar a imagem e sua circulação, as legendas e suas aderências à informação lança o trabalho de Roberto Müller num exercício de dissociação, fazendo da materialidade o objeto precioso, como na série “Jóia rara”. Ainda assim, o endereçamento de tais elementos a produtos, arquiteturas históricas ou às sarjetas das cidades torna-‐se, cada vez mais, um modo de tratar os dispositivos. Para Foucault, o dispositivo é um jogo de poder servindo para a castração, o controle, a regra. Na arte, pensar os dispositivos é, antes, observar a flutuação de conceitos que perpassa por evidências imagéticas e objetuais. Olhar uma fotografia, observar uma cena na rua, consumir produtos produzem cisões nos sujeitos. Podemos exercitar certa cegueira, deixar-‐se inerte e inatingível aos anúncios. Ainda assim, há algo inapreensível, como comenta outro filósofo, Giorgio Agamben, no momento em que consumimos as mesmas imagens e giramos em volta da máquina. O jogo que se apresenta na arte trata, então, de um processo ambíguo com mensagens fortemente destinadas a subjetivação em ambientes, cubos brancos, que estimulam o oposto, contribuindo para uma dessubjetivação. Vivemos num tempo impossível de se contar segredos.
Marcelo Campos