Feitiços

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FEITIÇOS


Título dos autor em nosso catålogo: Feitiços

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Roberto Ponciano

FEITIÇOS POEMAS & CONTOS DE FRAGRÂNCIAS ERÓTICAS


Copyright © 2007 Roberto Ponciano Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida, por qualquer meio ou forma, seja digital, fotocópia, gravação etc., nem apropriada ou estocada em banco de dados, sem a autorização do autor. Capa Demanda Editorial Ilustração

Editor Glauco de Oliveira Editor Assistente Bruno Torres Paraiso Direitos exclusivos desta edição Booklink Publicações Ltda. Caixa postal 33014 22440 970 Rio RJ Fone 21 2265 0748 www.booklink.com.br booklink@booklink.com.br C183 Ponciano, Roberto, 1968Feitiços / Roberto Ponciano. – Rio de Janeiro: Booklink, 2007. 176p. ; 21 cm. ISBN 85-88319-68-3 1. Poesia brasileira.2. Poema em prosa. 2. Conto brasileiro. I. Título. CDD 869.1


Prefácio Quem conhece o sindicalista, bacharel em direito, Roberto Ponciano guerreiro da luta, das passeatas, do enfrentamento, certamente não vislumbra o poeta erótico, o escritor visceral que ele é, tampouco imagina como este homem encontra tempo para escrever poemas tão bem pensados, que demandam tempo, concentração, garimpo minucioso de palavras, passos cuidadosos rumo ao centro de nosso coração e de nossa libido. Lambem as más línguas que o homem tende à pornografia – sexo impessoal, explícito – e a mulher, ao erotismo: delicadeza, fantasia, pele. Os textos ardentes de Ponciano negam com veemência essa vertente. Seus versos são feitos de terra, sangue, barro, sonhos, almas que se beijam, labirintos, preces, leite, saliva, rocha, grutas, esperma, barbas que arranham, almas que se beijam, beijos em pingos, dentes e mamilos que tornam o prazer físico um desfrutar permitido e transcendente. É erotismo puro (“espionas-me no banho e eu não vejo”) mas é poesia de homem: “Cada perna feminina que passa, bem torneada, é um território a ser invadido, um espaço a ser conquistado. Numa guerra onde um único homem morre mil vezes para renascer renovado, entrincheirado numa calcinha”. A poesia de Ponciano enebria e não se deixa decifrar, confunde: “Brincava com a inexistência do amor como se a vida música fosse. A absurda música dos amantes em volúpia de homens escravizados em êxtase que mendigavam seu carinho: mais que pão, mais que sangue, mais que Deus”. Dizem que o poeta é um fingidor da dor que deveras sente. Na comunhão de corpos, odores, sensações e prazeres que exalam de seus textos, as entrelinhas suplicam por amor.


“Como anjos caídos que perderam uma asa do par e agora diabolicamente unidos só podem voar abraçados ao mais alto céu do prazer”. O grande encanto de seus versos é que neles não nos deparamos com o poeta idealizador da mulher diáfana, devoradora e inacessível, nem com o amante traído imerso em lamúrias. Tampouco o garanhão que coleciona mulheres borboletas abatidas guardadas num armário de vidro como troféus. É o possível que emociona, a força grandiosa do sexo cotidiano, o arrebatamento e o esplendor de uma trepada realizada, livre, madura, sem preconceitos, sem medo de se perder nesse despojamento, nessa pequena morte onde entregamos ao outro a nossa vida, por alguns instantes, quando nos afastamos da consciência durante o gozo. Isto é o que a poesia de Roberto Ponciano grita na nossa cara: a liberdade da busca do prazer, sem culpas, sem medo e sem vergonha. A entrega plena. “Para que mulheres e homens ouçam e gozem e amem, sem nenhum pudor e qualquer arrependimento”, diz o poeta, “A cama é o santuário do prazer”. Que assim seja. Glória Horta Jornalista e poeta


Nota do autor Este livro de contos e poemas eróticos é disperso. Não segue ordem, cronologia, sistema. Como a vida, seu fluxo ininterrupto não tem um norte, uma reta a seguir. Momentos há de tranqüilidade e sutil transcendência. Em outros, abruptas cascatas e grutas. Aliás, grutas e reentrâncias, onde a água brota, como na vagina, suculenta reentrância primordial. Não encontrarás aqui, leitor, a congruência dogmática de quem tem certezas, somente fotografias indistintas. Uma série de instantâneos, onde aparecem vultos: Jorge Amado, Marx, Wilhelm Reich, Eduardo Galeano, Anatole France, Anais Ninn, Neruda, Lorca... Tudo indistinto, vagas fragrâncias apenas... Um livro escrito como uma série de cartas a amigos distantes. Um livro de sentidos e não de teorias. Então prove, cheire, lambuze-se. Nossos sentidos, nossa risada, nossa farra são a prova de nossa existência-resistência contra a tentativa de perda de nossa humanidade.

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Sumário Bela......................................................................... Almas gêmeas ............................................................... A quatro mãos ........................................................... Noite ...................................................................... Como...................................................................... Em ti .............................................................................. Encantadora de espíritos ........................................ Encantamento ..................................................................... Espumas do mar ....................................................... Felina...................................................................... Luz das sombras .................................................................. Moradia em teu peito .......................................................... Música do imponderável ..................................................... O mar ....................................................................... Olhos da noite.......................................................... Preciso ..................................................................... Renascer ................................................................ Tempestade ............................................................. Teu corpo .................................................................. Tu és única......................................................................... Tua ausência....................................................................... Tua tristeza em mim ................................................... Um momento ...................................................................... Dona da beleza e da dor....................................................

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Chinatown ............................................................. 55

Contos A feiticeira ........................................................................... Cataclismo............................................................... Um sorriso negro ................................................................. Pequena menina moça distraída na grama ....................... Revivescer ....................................................................... Afrodite e Xangô ........................................................ Ela achava que era um erro ........................................... O quarto recendia a vinho................................................. Valsinha ...........................................................................

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Bela Teu nome vem no vento e agita as cortinas És essência diáfana Uma fumaça de feminilidade cheirosa És forte e persistente como a terra e o sangue. Teu nome se torna um corpo em forma bela Pisas o barro com pés pequenos e finos. Estás na minha frente, na amplidão. É um sonho. Só existe tua forma e o espaço E é como se fosses um plano de existência Em torno do qual gravito: Mariposa entorpecido pela luz que me atrai Contra a qual me debato, E me machucas e me cortas E meu sangue desce em gotículas amarelas As quais lambes, libertando-me de todas as feridas. II Em meu sonho me conduzes E me levas a teus lugares secretos Somos cúmplices, Nem amantes, nem amigos, apenas cúmplices. Nosso crime nos levar a penar continuamente Em cenários de cortinas e véus,


Solitários, lado a lado, De pelos arrepiados, Miando como gatos Nesta eterna madrugada. Minha pele te arranha, Minha barba te tortura, Tuas unhas me incendeiam, Nossas línguas se misturam, E nos perdemos nesta noite insana. Como dois felinos boêmios e loucos A assombrar a vizinhança Que dorme enquanto vadiamos III Quando acordo, és só a brisa. Acaricias meu corpo. Teus dedos levemente tocam meus pelos, Escorregam pelos meus mamilos arrepiados, Brincam com a água que escorre no meu banho. Espionas-me e não te vejo. Vens em volteios novamente e beijas minha nuca Procuro-te, mas te esvais, Novamente de soslaio Invades o meu espaço sem que eu possa te agarrar. 12


Fluis por entre meus dedos Fecho os olhos e sinto-te por cada poro aberto. És então silêncio. Estás em cada canto da casa Brincando comigo e caçoando de mim. Deito e te deitas a meu lado, Tuas mãos a brincar nas gotas d’água Que escorrem por entre minhas coxas. Mas, como és vento e fuga não te posso tocar. Nada mais que refém sou. Nada mais que te sentir e desejar-te posso. Pois te vais quando queres, Para onde queres, Sem ao menos eu saber Quando um dia tua chuva de abril Voltará para me beijar em pingos.

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Almas gêmeas Nossas almas se beijam e nossos lábios se tocam. Teu corpo me procura em desespero E teu perfume invade o ar em torvelinho, Brincando com as substâncias em feitiços, Tatuando teu nome na minha carne, Enquanto vejo meu destino desenhado Em cada linha de tua mágica mão. Bruxa, brincas com meu corpo como se fora Um simples vodu em tuas garras, Com as quais escreves poesia em minha pele E injeta teu sangue em minhas veias Reduzindo-me a uma parte do teu ser. Como anjos caídos que perderam Uma asa do par e agora, diabolicamente unidos Podem voar abraçados Ao mais alto céu do prazer.

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A quatro mãos Cravo um soneto em teu corpo através da tua pele, para que ele te penetre fundo E germine em teu útero como orgasmos teatrais, dramáticos, imorredouros. Onde te debatas entre a entrega e a conquista, fêmea faminta de meu ser, Que consome a minha carne em desespero e dança, Rebolando sobre meu membro ereto em desesperada alegria, Como a febre de uma vida e a hora parada inexata de um dia. Escrevo meus delírios em teu seio como quem o abocanha, E mastigo teu mamilo em odes a tua beleza vespertina. Deslizo minha caneta em teus pelos que se aquecem, E tua gruta em inundações engole toda minha poesia. Entrego meus versos a tua boca para que mate tua fome E bebas meu sangue, vampira sôfrega de amor. Gritas desesperada em transe, como uma britadeira de cópulas, Que vão brotando como estrofes escritas a quatro mãos e pernas, Duas bocas que se castigam em línguas sempre loucas

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E xoxota em que estreitas a tocha que ilumina esta devassa caverna Em que te encontro perdida, nua, com frio, fome e sede, desalentada. Com lágrimas de amor, de prazer, de solidão, de arrepios. Então tomas do meu peito e solta tuas palavras de fogo sobre ele. Explode meu coração morto em mil ressurreições de paixão impoluta. Empunhas então a caneta de tua ligeira rebeldia E tracejas em mim um quadro de impagável loucura. Estou só, dentro de ti como quem navega os oceanos. Perdido de mim, apartado de tudo, frágil, quebradiço. Então me levas a passear por teu umbigo como em um jardim secreto Em que loucos de amor rebolamos pelo chão em posições amorais e geométricas, Até que o tempo cuide de reparar na gente E construa para nós uma redoma eterna, Onde nos mantenha como a impossível clareza, A impensável certeza, a escorreita simplicidade, A eternidade impossível de um fogo imorredouro Doce suicídio de amor em que renasço a cada dia.

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Noite Bebo as luzes das ruas com um trago morno e fugidio Traço o rumo da boêmia como se quisesse a noite só para mim. Aspiro o suor das danças com aroma da mistura de macho e fêmea em cio. Então toco nas lembranças envolvidas em canções de Gonzaguinha Sonho primaveril potente, que termina em festa e dança. Na vitória da alegria sobre a pobreza e a dor. Retorno sofrido das horas trabalhadas, Reluzindo nos bares às sextas à noite E resplandecendo no grito animalesco do orgasmo das mulheres possuídas. A conquista do espaço mais horizontal e mais fundo. A carícia que envolve e atenua todas as feridas. Cada perna feminina que passa, bem torneada, É um território a ser invadido, um espaço a ser conquistado. Numa guerra onde um único homem morre mil vezes Para renascer renovado, entrincheirado numa calcinha Prisão na qual ele flutua extenuado e satisfeito, Embebedado do néctar da juventude, Da caverna mais bela, mais úmida e recôndita, Mais apertada e profunda, 17


Aonde se esvai, como um marinheiro ao mar Sem tempo ao certo para retornar.

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Como Como posso estar ausente se nunca premiaste minha presença? Como posso te dar os carinhos que recusaste? Como lhe estender minha mão em teus cabelos se te encolhes ao meu toque? Como posso lhe dar o fogo de minha volúpia se preferes o silêncio imensurável da tua solidão? Como poderia ser o amado de um amor não pronunciado? Como navegar em teu corpo, se nunca em meu cais aportaste?

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Em ti Tua voz: Límpido cristal que atravessa Minha angústia e derruba Minha dor e solidão cortantes. Teu corpo: Pedaço de maçã madura Sede de mordida a abrir-te E beber-te o ventre a embriagar-me. Teus cabelos: Palha de milho maduro A refulgir ouro ao sol, E atar-me a mão Num desespero de te achar. Teu sexo Doce tortura que me enlaça E me derruba e me mata Fazendo-me renascer em sêmen Dentro de tua mata, Refeito em ti. Tua alma Pequeno grão ao vento,

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Chuva diáfana de primavera, Menina a fazer bem-me-quer, Mãe de la Plaza de Mayo, Força da simplicidade, Fúria que só tem a paz. Mulher, Que queres comigo? Se nada posso te dar; Senão este coração Que cortaste com tuas unhas de loba, Senão este sangue, Que bebes de noite, vampira. Senão este espírito Que vaga escravo dentro do teu útero.

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Encantadora de espíritos Quando teus olhos me invadem, Sou de novo um menino, Frente a uma mulher de sonhos Que é feita só de eternidade. Encantadora de espíritos, Vais brincando de seduzir, Com uma malícia fresca, Que cheira à fruta madura, E soa à bossa nova. Então sonhas, são teus olhos. Tudo pára para te admirar. És a improvável imperfeição Corpo de música e deleite. Caminhas, pisas na areia. És praia, onda, beira, respingos de chuva e mar. Flutuas, Teu vestido branco não chega a tocar-te E o ar, que passa entre ele e a tua pele, sofregamente goza. A luz te invade. És feita só para a manhã como um pôr-do-sol. Deixas tudo absorto em te admirar

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Pois transcendes o desejo. És mais forte que o instinto. És o cheiro gostoso de chuva na terra, És sexo feito na água do mar, És amor juvenil e imaturo, Malícia da inocência, Indecência impúbere. Teu cheiro de fruta permanece em meus lábios E me ativa a fome e a saliva, Que bebes sempre quando tens sede. Quero aplacar minha dor em tua boca E saciar minha fome em tua gruta. Assim, entre perdido e louco, Quero te acompanhar pelas ruas Como se nada houvesse senão nossos passos. Quero te levar a meus sonhos E mostrar que a loucura é nada Comparada a tua beleza Explodindo em fogo dentro de mim.

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Encantamento Sua maior fé era não acreditar. Bruxa de maldades doces, De leitos desfeitos, De homens assombrados, De sexo faminto, De noites insones, Brincava com a inexistência do amor Como se a vida música fosse, A absurda música louca dos amantes em volúpia, De homens escravizados em êxtase Que mendigavam seu carinho: Mais que pão, Mais que sangue, Mais que Deus. Todas as pernas se enroscavam em sua cama, Pernas já sem vontade como a se ajoelhar, E por poucos minutos em seu leito de aranha, Que devora os machos em fúria Tornando-o zumbis de sua vagina, A vagarem pelo mundo assombrados, Descaminhos em fúria, Desta mulher revolta em vento Que trazia na linha de suas mãos Muitas encruzilhadas

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E nenhum encontro. Mas de tanto desacreditar na fé Acabou por recolher Um pequeno anjo caído expulso, Como um passarinho ferido de uma só asa. Um doce menino que não lhe pedia sexo Apenas beijo, E este era um abismo interminável Amargedon de delicadezas Onde se desfez todo o fel. E daquela bruxa o feitiço se fez um poema E um torvelinho de noites infindas. Sucumbiram os dois Que então, mortos, mais do que a morte poderia Um momento, uma parte da vida, Renasceram num corpo hermafrodita, Viracoxa, Como duas partes de um mesmo anjo feiticeiro Que com duas asas refeitas subiu para os céus e expulsou todo pecado, Desfez a vergonha e num ato sublime, Eterno de cópulas, Polvilhou a música para todo sempre Para que mulheres e homens ouçam e gozem e amem, Sem nenhum pudor e qualquer arrependimento. 25


Espumas do mar Espumas do meu mar, Bóiam marinas saltimbancas De barcos que semipartem sempre para lugar nenhum Ou para dentro desta água infinita Que ridiculariza e eterniza a morte Em pequenas vidas continuas e ininterruptas Que nadam em silêncios insuportáveis E cheiros hipnotizadores Que me levam à areia. Pé, areia, pé, sal, água, Areia, tatuí, areia, água, Pé, frio, pé, tornozelo, água, Pegadas de dois pés apenas Caminho sobre a areia, Caminho sobre o mar, Afogado em almas imorredouras Em silêncios nascedouros de vernizes, Aquarelas de flauta doce Em sóis vermelhos espargidos Em brumas que são quadros De homens que se pintaram em maresia, E sumiram dentro de agonias,

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De ondas que eternamente quebram Rindo do instante pequeno Em que contemplamos Fictos, olhos, perdidos pensamentos Lástimas, pele salpicada de barulhos Deste mar entrecortado, De Botafogos e Cáspios De Angras azuis perdidas Em águas calmas que me levam ao fundo E que me suicidam continuamente em afogamentos E sangrias desatadas Em barcas perdidas rumo ao inferno, Ao pensamento, ao desalento. Mar, dominador insaciável de meu sono Desejo ininterrupto, Instinto imaculado. Mar, bravio e calmo como cópula. Mar, nascentes desesperadas a te procurar, E desaguar como fêmeas no cio, Amazonas consumido em tua virilidade Pororocas de sêmen vicinais Nascimentos de mortes repetidas. 27


Mar. Em ti todo silêncio é múltiplo. É toda música é uma oração. Todos os deuses são teus E todos os homens joguetes de tuas marés. Essência escondida de nossos úberes Incontida permanência da natureza.

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Felina De noite me acordas Teu sexo em brasa já engole minha rocha. Sinto tua febre e teu suco E não sei se sonho ou ainda durmo. Voas em cima do meu corpo Teus dedos arrancam-me os pelos E tuas unhas cortam-me em sacrifício De tua boca, labaredas de fogo entoam nossa melodia. Gemes, felina caçadora dona da madrugada. Gritas em desespero. Teus olhos voam ausentes Teu corpo viaja nas luzes como em um calidoscópio És mais mulher e poderosa Sob a cama, santuário do prazer. Vejo-te então deusa E eu teu louvor te penetro Explodindo-te em mil pedaços Que cato e vou lambendo Com a fome de um náufrago E a perfeição de um artista. Cego hipnotizado por tua camisola branca, Numa transparência que me arrebata,

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Que esvoaça pelo quarto em festa E delírio e espelhos em que nos dividimos E nos encontramos em ângulos indecentes e obscenos, O que aumenta a fogueira Que crepita nossa pele morena. Rolamos sobre nossos corpos Minha cabeça no regaço de tuas pernas, Vou sugando o teu mel Enquanto danças com o seio E fala em línguas estranhas Até se calar, perdida de tudo Exangue, deitada, sem defesas. Veias pulsando, rios de sangue fervente Corpos a se confundir em um só: Leite a escorrer em teu ventre, Que beijo totalmente em desvario, Calmaria após a tempestade. A volúpia que te dou, Que te invade E te faz me morder Como a querer me engolir Para aplacar a fúria deste momento intenso Onde todo o meu universo Estava dentro de você. 30


Luz das sombras Tu és esta profunda e infinita gruta, Onde a água passeia para sempre bruxuleante e lívida, Translúcida e pura, Renovada e viva. Tu és o conjunto de vidas que vivem de ti, Que emergem de teu sonho, Que bóiam em tua complacência, Que dormem como pequenos desejos sonhando com tua carne, Que orbitam em torno de tua luz. Nós bichinhos minúsculos de tua claridade Como luas nos atiramos contra tua densidade E nos consumimos em tua explosão de Estrela Que atira tua nascente sobre o mundo Destruindo dúvidas, Submergindo críticas, Libertando prantos, Realizando preces. Tu és o seio do mundo, Gruta virginal de água e sal, Tu és este tempero que renova o mundo E descansa a alma. Tu és esta poesia remota Na qual corremos com a alma Como arco-íris em larva

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Sem jamais atingi-la ou encontrar. Tu és este mistério profundo Para sempre oculto dentro de teus olhos. Tu és esta música que brota De uma chama incomensurável oculta, Que aquece e consome E em labaredas renova Como uma cremação de medos E uma constipação de almas. Tu és esta água que bebo E que me lava os pulmões, E entorpece o meu sangue, E me atira no vento, Como se eu fosse apenas Uma folha a boiar neste teu deslumbrante ser.

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Moradia em teu peito Deixa que eu descanse esta noite em teu peito. Quero deitar num canto de teu coração e adormecer num sonho leve, Que seja breve como a tua fragrância, Que seja um instante repetido no dia a dia, Como o abrir e fechar de porta às oito horas Como a me esperar em meu eterno exílio Filho pródigo que volta voluntário Para me acolher em teus braços E te falar das batalhas e das fugas Que enredei durante mil noites Só para estar para sempre junto a ti. Rio, 21/5/99

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Música do imponderável Você é música do abismo Beirando o precipício O espaço horizontal que desafia tudo. Você é a música que paira sobre ele Você não se precipita nele, Antes crepita pelos ares Está em tudo No arrepio do mato verde E na canção das árvores excitadas pelo frio. Você é esta canção inigualável O ritmo das estações É primavera brotando em cada poro Pelos eriçados pelo desejo. Você é a dança das abelhas E o zumbido da fecundação Explodindo em cada amarelo que te persegue Em sorrisos breves, leves, profundos Em risadas alegres, pios, assobios, sussurros. Você é a fruta madura que cai no campo De gosto inigualável Pelo homem jamais provada. Você é este signo indecifrável

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Séculos em forma de mulher Caprichos e dengos a se enroscar Em seus cabelos como uma pequena abelha a zumbir. Você é uma corrida floresta adentro, A deitar-se com seu amado pelos campos, A brincar num cio infindo como onça, A pairar por entre árvores como pluma, A atirar-se paixão adentro como flecha. Você é esta música de tambores, De flauta doce e letra grave, Que fala muito mais quando cala E dissimula indiferente com os olhos. Você é o quente e incontido ritmo da mata.

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O mar O que trazes, ó mar? Saudades e brisa, Espuma e imigrantes. O teu sal banha a terra E teu mistério beija a noite e a lua. Os amantes buscam teu calor Onde beijas a costa E arranca dela o sêmen Para te multiplicar em cem línguas E nos enfeitiçar. A mirar teu canto eterno Como pequenos pedaços de gente A voar em tuas ondas Quando não há mais carne Somente profundidade e silêncio.

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Olhos da noite Pedinte, assim teus olhos se aventuram No flanco do meu apreço, Jóias de desejo amargo, Contam teus corte na pele De navalhas cega que decapitaram Mil vezes tua alegria menina, Hoje uma melancolia adulta Num corpo fatal de curvas E desejos, e seios de gula, E boca de emboscadas e labaredas. Teu olhar é um grande abismo, Uma ameaça de amor, Armadilha de tranças, Redondilhas, como risos, Como noites e chopes, e copos, e violão, e vozes, Tuas pupilas são estas tuas mil noites Que homens matariam para sobrevoar E para gritar acordados te devorando Teu cio cheiroso de cadela, Que negas e não entregas, E te ocultas dentro da tua alma imensa, Que esconde a devassidão mais pudica Que tua intimidade em borrasca Entrega em teus seios a quem a alcança.

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És teu mistério, mulher de silêncios. Teu cheiro é um tango letal No qual me enrosco em tuas pernas Para adivinhar o negrume viscoso. Deitas em meu peito de pelos Com tuas unhas de gemidos. E ásperas, toscas, rudes vilezas masculinas, Que amas e toleras, subvertendo os pecados E reinventando a mentira. Em teus olhos da noite, Que brilham sobre leitos desfeitos, Em que às vezes estou e de resto me cego, Por que te quero quando não te desejo, E quando te penetro já nem sei ao certo Que gosto de lua carrega, Para me ter quando estou tão longe E me encantar quando em ti penetro, Como um complemento de tuas pernas Duras torres em que carregas Estes encantos indecifráveis. Olhos da noite, tu és negrume Tu és perfume e suor. Tu, que tens o livro das bruxas E cabelos de serpentes marinhas Transformaste meu desejo num exílio.

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És mulher em significado amplo, Por isto mil segredos, Que não compreendo mais devoro, Como se mastigasse teu coração em cada orgasmo E com isto refizesse as noites, E hipnotizasse as dores, Quando festejo em tua cama.

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Preciso Preciso de um tempo em que minha vista se perca na beleza, Minha ética esteja pura e diáfana, Minha água seja tirada de uma cascata, E meu amor seja um bem querer de mar e sal. Preciso de uma casa em que caiba minha esperança, De um vento que não carregue tristezas, E de um sol que purifique minha dor. Preciso de um cachorro, manso. Preciso de uma fonte, um remanso. Preciso me desnudar sem pudície. Preciso transar sem culpas ou pressa, Preciso me levantar depressa, Para não perder o despertar do sol. Preciso que você não seja ausência, Que nossas conversas não tenham fantasmas, E que teu beijo baste para mim. Preciso, mais do que a vida. Reinventar minha existência assim.

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Renascer A névoa anuncia, há fumo no ar. Teu interior se agita e teus desejos começam a aflorar. Do topo do vulcão o calor anuncia a explosão Em carinhos e suspiros profundos Guardados em que lugar da alma saberá, Por tanto tempo adormecidos. Que este despertar é uma insanidade De beijos, de gritos, de luas e lençóis. De pernas trocadas entre suores e suspiros De suor bebido com volúpia, De línguas de fogo em labaredas, Vesúvios de cristal em ebulição, Feminilidade que jorra pela pele E queima toda crosta dura Que o tempo sem carinho criou, Escondeu esta larva que agora nos inunda em frenesi. A varar madrugada, correndo contra o tempo, A recuperar todo o prazer não vivido, Esquecido no medo Que esta tua ausência provocou em mim. Neste renascer de teu corpo. Tua alma liberta brinca em meus pelos E se transforma em magia e gozo, Como se tua casa fosse meu coração E o meu destino fosse tua alma.

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Tempestade Teus ventos e marés chegam até mim bravios. Mulher de tormenta, teu sexo em tempestade, De pelos ásperos e fruta ácida, Enche minha boca que te bebe E te mastiga mil vezes para dentro do meu peito, Como se fossemos raio e trovão Cavalo e amazonas a rebolar num cio infindo, Entre mil gemidos e gritos. Carne entrecortando-se molhada. Quando há um desespero De se afogar em teu líquido E sugar-te, e chupar-te, e colher teus cabelos Como fruta, com dó, com maestria, Com rima, com ritmo, com música, Com mil penetrações e desfalecimentos, Perdidos nas horas, viajantes do desejo, Esquecidos do mundo, Presos num universo próprio e pessoal, Mergulhados em cio e orgasmo, Como dois astros a reverberar na mesma órbita, Eternamente mergulhados no nosso próprio universo. Teus mamilos em meus dentes. Meus dedos te escavando. Teus grunhidos de loba fazendo minha rocha outra vez crescer

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E milhares de vezes mais devorá-la. Até me perder e viajar Num gozo impossível Místico, uno, indivisível.

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Teu corpo Com tua pêra dura Saciaste-me a sede. Ao provar teu seio Não mais pude Beber de outro leite. Teu corpo, fruta madura É imponente e firme. Se me prende com tuas pernas Adentro a terra como um mineiro E escavo-te sôfrego A buscar-te o ouro em gozo escarlate. Se tuas pupilas me olham Entro em teu espelho Esvaio em teu labirinto Meu ser e toco-te a nuca por dentro Encontrando, de tua alma, o ponto g. Se ris, todos se calam. A limpidez deste momento É como a brisa e o girassol Despetalando-se amarelo Como teus cabelos reverberando ao sol.

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Se choras, quero tuas lágrimas. Respingos do amor entre o mar e a terra. Gosto de sal de tua pele limpa Em que caminho sentindo o ar do amanhecer. Se te entregas, aprisiona-me. Sinto meu corpo febril, Como se me escapasse A alma pelo leite que te entrego. Escorrendo meu âmago como uma nascente Por entre tuas pernas roliças e molhadas. Terra dentro de ti Como a água por entre Tuas raízes a beber-me e secar-me. Mulher triunfadora. Vôo de inocência e ternura. Com tuas asas cortaste-me E comeste minha carne crua Cadela devoradora! Suas unhas ainda estão cheias do meu sangue. Preso em teu ventre Navego revolto teu rio toda noite.

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Então me cospes e novamente me suga, Despedaça e devora Nesta tua fome sem fim. Partido em mil pedaços O que restará de mim? Nada. Somente tuas garras em minhas costas E minha voz que suplica Para que me apertes, E que mil vezes me mate, Para que tantas vezes eu renasça Numa erupção dura e máscula A se aquietar somente dentro de ti.

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Tu és única Amei, muito amei, meu anjo. Inconstante fui, naveguei, perdi-me sem porto. Confesso que amei várias em tão diferentes corpos: Uns magros e esguios e fogosos Outros gordos e voluptuosos. Amei, troquei, trai, caí, pequei, penei. Sempre pensando em ti que não conhecia. Via tuas mãos em todos os toques destas mulheres E teu sorriso era a ausência demente que me fazia Enfrentar a noite dentro de outras com prazer e fúria. O que eu sabia antes de me ocorrer você? Sabia do fogo, da volúpia, de mordidas e orgasmos. Ainda nem sabia de tua ausência, Desenhada no meu ventre, profunda, Partida de mim mesmo que carrego Como uma penitência do amor verdadeiro. Ainda não sabia que um sorriso retido na retina Poderia ser uma prisão perpétua. Ainda não sabia que um cheiro pode ser uma maldição, Ficar retido em meu sangue de maneira, Que se reproduza em cada segundo do meu tempo, E o sinta em cada corpo de mulher que possuo

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Para me vingar de mim mesmo, exilado de ti, Minha pátria, minha vida. Foste para mim um pequeno instante de prazer, E como chegaste, sem alarde, partiste, Sem sequer olhar meu pranto cheio Que inundou tudo que ficou atrás de ti. Sem que notasses um homem com um copo na mão E um sorriso absurdo vazio. Tua partida foi tudo que me restou. Quando deito, ainda sinto teus cabelos pousarem. Inocentes e leves, no pelo dos meus peitos. Absurdamente não tinhas peso E flutuava a todo instante sobre meu sexo Entregava teu corpo como num parto E renascias num sonho: agarrada, saciada junto a mim. Eu era tolo, cego, não conseguia penetrar teus olhos Hoje eles são a única coisa que me resta na memória, Flutuando mil vezes no quarto como a informar teu espírito Onde quer que estejas, Da enorme tristeza que este único amor verdadeiro provocou em mim. 48


Tua ausência Estás apenas em meus sonhos, Meus sentidos ofegantes me acordam, Molhado de sexo e suor. Neles sou como um garanhão mergulhado em uma corrida noturna Selvagem busca por entre vales verdes de escarpas íngremes, Onde ondulam matos verdes como teus cabelos, Teus pelos são toques que me acariciam, esta visão louca Em que apareces como uma serpente devoradora Então acordo teso e relaxado mastigado em teu estômago. Brusca e louca mulher amada. Enfeitiçaste meu sonho e agora não posso dormir sem que te sintas, És uma angústia de tresloucada corrida, em que busco a distância E quanto mais longe vou Mais perto de ti estou sempre. Então se aproxima o dia como um ladrão, E me lambe e acorda e me dá a extensão de tua ausência E a dor não é a de um sonho. A realidade é um mundo onde não me sei.

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E estou acordado, de olhos vermelhos, De pelos eriçados, pronto para dar o bote. Vejo o teu fantasma, Com teu gosto e teu cheiro, Que me maltrata e foge, E me leva a outro sonho, No qual há espelhos de sonho Intermináveis mundos de estertor profundo. E sinto dor, E sangro, E já nem sei se é sonho. A minha única realidade é a tua ausência.

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Tua tristeza em mim Ah, se tuas lágrimas rolam por esta face linda E cobrem como pequenas cascatas lindas e doces Teu rosto de abril celeste dolorido, Ataca-me a tristeza de ver-te ferida Como uma pequena pardaleja caída em minhas mãos, Meus dedos acariciam-te o peito a te reanimar. Ah, se teus olhos se cobrem de um escuro dolorido, E vês do mundo somente a dor e a solidão, Cobrem-se os meus de uma indizível misericórdia, E dá-me a vontade de reter toda tua tristeza em meu corpo E fazer transfusão para ti de toda minha alegria, Para que de novo o sol inveje o brilho de teu sorriso. Ah, se teus pés se cansam de caminhar e param, E teus joelhos se machucam ao contato com a terra, Maldigo a pedra que te feriu e cortou, Como um ser sem pena de tua singela beleza, E de teu frágil equilíbrio de menina, E bendigo a campina fina que acolchoa teu corpo, E te descansa e vela teu sono, E do silêncio que te acolhe, Embevecido de tua transparência.

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A tua tristeza é razão de meu pranto, Comunica-se a mim com um simples olhar, Ou com um pobre pensamento a quilômetros de distância, Sinto tua voz rouca ecoar em minha mente, E quero ser um beijo de vento fresco nos teus lábios, Um banho de ervas alegres em teu corpo, Que te transborde novamente na mesma alegria que nos dá, Misericordiosa deusa da fecunda paixão, Pequena bailarina da brisa do meio-dia. Anjo caído, dona da festa e do desejo.

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Um momento Quando toco teu rosto e meus dedos Passeiam sobre teus lábios molhados Fazes de meus beijos brinquedos A bebericar saliva e suor salgados. Embriaga-me com o calor do teu cheiro Vou me enredando tonto e enamorado, O teu carinho é forte eficaz e sorrateiro Sou um pobre enfeitiçado a teu lado. Mas, desta escravidão, jamais, Irei querer tentar me libertar Irei fundo, quero querer mais. De ti ser um simples momento, A se perpetuar em música pelo ar, Como feliz aprendiz de teu sentimento.

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Dona da beleza e da dor Bela e única, seu sorriso resplandecente brilha como uma estrela de ternura Presença bruxuleante, oscilar de quasar, olho de água marinha e porte de pantera. Seus passos silentes hipnotizam e seduzem, cativantes olhos chamejantes, belos cristais Luzeiros diurnos que alumbram e reverberam o sol, espelhos de alma, cascata sussurrante Lua diurna distraída, diáfana presença de musa inquietante, sedutora canção de amor Bossa, nova perene como o sereno renovada Nascente de sensações, frescas e límpidas, céu de abril do Rio Desabrochar de flores da primavera, canção de amor de Vinícius Musa de olhos faiscantes, fogo austral, calor da terra e dança das horas Leve sussurro de amor, noite de nossos sonhos, presença suave feminina Perfume de primavera, sutil toque de magia, tudo es tu, tudo preenches Com sua singular forma de rosa branca, mulher, dona da beleza e da dor.

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Contos



A feiticeira Ela chegou num dia de tempestade. Enquanto as pessoas se trancavam em casa, encanadas num medo secular, trovões sacudiam as paredes, de maneira que o rio passeava por entre as ruas e todos eram só pavor. Quando ela entrou na cidade, com seu vestido curto colado no corpo, deixava ver, na transparência encharcada, o negror do bico dos seios e até o triângulo fogoso. Vinha calmamente caminhando pelo meio da rua, como se saísse da borrasca. Como uma Iemanjá de ventos ela tocou a procela e o estio se fez, o sol apareceu, radiante, sacudindo um arco-íris no meio dos cabelos negros dela. Nunca mais a cidade teve paz, dividida ao meio: os homens a amavam, a desejavam, queriam a carne dela; as mulheres a odiavam, se rasgavam com despeito. Ela foi morar numa pequena casa alugada no centro do vilarejo. Vivia de vender divindades, colares e miçangas que fazia, ora de cristais que lhe acorriam quando caminhava nas matas em derredor, ora de conchas de não se sabe que mar, se em profundezas do interior ela tinha se afundado. O padre a condenara. Jamais se confessara. O feitor dos pecados estava com o ouvido cheio de tantas mentiras. Nas confissões, homens que nunca a tocaram (e até algumas mulheres) mentiam, ou enlouqueciam, confundiam a realidade com o desejo atormentado e forte que sentiam, e teciam para o padre urdiduras de volúpias loucas, de três mil penetrações em mil buracos diferentes e línguas e braços. 57


Nunca ninguém, em verdade, na cidade a possuíra, embora quase todos a quisessem. O coronel Torquemada tentou. Primeiro se fez de capitalista, propôs casamento, estava disposto a separar-se da esposa, ofereceu jóias (sempre recusadas). Suando por todas as suas banhas, mil vezes entrara, duas mil vezes saíra da casa da feiticeira, sempre enjeitado ao tentar seduzi-la. Ele não podia admitir tal humilhação, afinal, quando queria uma mulher era só apontar um dedo, e se fosse uma camponesa então, só derrubá-la e montá-la como um burro, ou outro animal. Este animal jurássico, por fim, se cansou de pedir o que, por direito seria dele. Iria numa noite à casa de Bela (este era o nome dela, sempre que lhe perguntavam, ela apenas dizia Bela, Bela de nada...) e tomaria à força, com ajuda dos seus capangas, do corpo dela, como melhor lhe aprouvesse. Propósitos adivinhados por ela em seus tarôs. No dia que ele marcara para a desforra, adormeceu durante o dia com uma preguiça incomum e foi morto, com água quente no ouvido, pela beata mulher, que enlouqueceu e até hoje corre pelos caminhos deste mundo, como se perseguida pelo demo em pessoa. Depois tentou um playboy, comedor de meninas incautas, o gostosão da cidade. Todas as mulheres suspiravam por ele, por que ela não suspiraria? Perfumou-se, engravatou-se, poliu o carro, não se fez de rogado. Tentou de tudo e se apaixonou. E ficou bobo de amor, imprestável para as outras, sem nunca 58


ter tocado em bela. De tanta tristeza morreu tuberculoso e todos na cidade vêem sua alma entristecida, vagueando pelas noites com um único nome na boca: Bela. Um seminarista largou a batina, que já estava se incendiando em contato com o pênis, que ficou empedrecido de tanto desejo ao sentir o cheiro dela. Para não enlouquecer foi embora da cidade. Parou no primeiro bordel, comeu a cafetina, que se apaixonou, mas ficou ele tomado de um tesão tão grande que, quando não está dormindo, está fodendo, e, para isto ela teve que permitir que ele trepasse com todas as putas do bordel. Virou uma sensação na cidade e tem mulher que vem de longe para ver e experimentar, pois não há no mundo tesão igual. Entretanto, ele está sempre com um olhar tristonho e enjeitado, pois o cheiro de mar de Bela nunca lhe saiu das narinas. Outros enlouqueceram na cidade, casais se separaram, velhos se suicidaram, planos mil para conquistá-la. Estuprála, também pensaram, mas era impossível, pois seus santos sempre lhe iluminavam o caminho e ela, com um feitiço, matava ou enlouquecia o infeliz. Temida e poderosa, solitária, de peito fechado para o amor, encantada no seu espelho, fazia sexo consigo mesma, rolando pela cama durante as noites, um espelho frente a outro, como se amasse infinitas Belas... Um dia, depois de cinco anos, volta à cidade um simples rapaz que fora, a muito custo, estudar na capital. Voltou 59


doutor, graças às economias da mãe e de seu próprio esforço sobre-humano em trabalhar em tudo que pudesse. Logo que chegou foi avisado que jamais olhasse nos olhos de Bela, pois estaria enfeitiçado para sempre. Mas a desobediência era seu destino e este lhe sorriu quando um dia, ao ir pescar, encontrou com ela encantando peixes e colhendo-os no rio. Ela o olhou, mas ele não se alterou. Continuou com seu olhar sombrio e tristonho, de quem não tem nada mais na vida que sua própria consciência e esta bem mais vale que ouro. E pensou consigo mesmo: Esta é a bruxa? Que mulher comum! E este pensamento surdo atordoou Bela que o adivinhara pela indiferença. Ele passou por ela, como se ela fosse mais uma das pedras do caminho, e, pela primeira vez, depois dos séculos que ela vivera, ela se perturbou com um homem. Naquela noite não conseguiu fazer amor com os espelhos. Seus dedos não lhe davam prazer, senão dor. Seu sexo estava teso e ela se sentia rígida e irritada. Fez então um feitiço e atirou contra ele. Inútil, era um menino tão distraído, que o feitiço não deu conta dele, e foi acertar o vigário, que louco de amor, largou batina e ficou uma semana cantando serenatas, dia e noite à porta de Bela, escandalizando a cidade, até que ela entendesse o mal-feito e desfizesse o bruxedo. Então ela se perfumou de mar e jasmim, colocou seu vestido mais simples e belo, alinhou os cabelos e foi à praça, 60


onde sabia, o encontraria. Lá chegou, e ele distraído, como sempre. Tão ausente ele estava que ela teve que se sentar ao lado dele no banco para que ele a notasse. O cheiro dela entrava por seu nariz e ele não se perturbava. Não sabia como aquele homem podia não querer tocá-la. Pensou, talvez ele fosse gay e ia quase se levantando, quando ele falou um oi. Ela se zangou.Como? Só oi! Pensava ela. Era impossível alguém imune a feitiços. Então ela fez uma coisa que seus quatro séculos de vida jamais pensaram em fazer, suas muitas cidades e andanças, tomou da boca deste doce menino e beijou, para que o encantasse. A cabeça de Bela viu espelhos se quebrarem no mesmo instante e os dois foram arrebatados por um tufão junto com a praça inteira. Ninguém mais na cidade teve notícias dos dois desaparecidos. Na verdade ele era o prometido dela, coisa que o tarô, que tudo a ela avisara, disto jamais dissera, pois o amor é sempre um ladrão sem vergonha e imprevisível. Ao se tocarem, todos os segredos foram contados, seus corpos se consumiram em fogo e seus espíritos transformaram-se me estrelas loucas insones, posto que orbitam fazendo amor, em milhões de gozos escarlate por toda eternidade.

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Cataclismo

Os olhos dele pairavam embevecidos pelo negro forte e dominador que emanava das estrelas que ela tinha na face. Os cabelos dela, trigo ao vento, dominavam o ar e levavam o cheiro dela até a alma dele. Ele sequer a mirava, tinha medo desta feminilidade forte que enchia seus pulmões e o fazia ser um fiel, pouco mais que um crédulo desta deusa que a tudo encantava. A simples presença dela era mágica, música e encantamento. Os pequenos pés de menina, desenhos inverossímeis flutuavam acariciando o chão como se terra e ser fossem um só elemento, como se fosse o solo em seu corpo, miríade de sonhos, simplicidade da perfeição. Um apaixonado acovardado pela intensidade deste fogo que o consumia e o cegava e calava, e o fazia sonhar, noite após noite com os mesmos lençóis, o mesmo cetim azul escarlate, onde esta ninfa em panos brancos se entregava, em lagos, em rios, em mares, em água, em muita água, em cristalina e corrente água, em fresca, fria, volátil, forte, construtiva, destruidora água. A voz era de água; suas frases eram nascentes; seus pensamentos cataratas; seu corpo um remanso e sua feminilidade um maremoto adormecido, que só a alquimia perfeita do corpo do amado, para sempre e desde sempre esperado, podia fazer eclodir; desbarrancando margens, destroçando dúvidas, submergindo folhas mortas, recriando ilhas ignotas, alimentando chuvas, redesenhando solos. Um dia ele driblaria aquele torpor e lhe diria que era ele. 62


Sim, ele o elemento fogo, a descongelar Icebergs, e devastar dúvidas, e inundar cidades, e recriar o tempo para que ela fosse só mulher. Mulher, destino duro e mortificador. Mulher de cama, tantas vezes penetrada, tantas vezes morreria, égua em cavalgada, para renascer outra, absoluta, triunfante num poema obscuro, recriando a ternura, bagunçando a meiguice, vivendo toda a sua dualidade de cadela e santa, beijo e cópula, amizade e volúpia. Mulher amada, infinitamente e profundamente amada, mulher que engoliria com seu corpo o frágil ser homem e faria dele um universo em êxtase, em equilíbrio e dança, em febril perda de sentidos, em pueril aventura diabólica, em viril desespero de comer, de engolir, de mastigar aquela carne feminina, de sentir o sangue de ambos correr numa única veia, até se perderem os fluxos de maneira que um coração só comandaria os ritmos, e este ritmo louco e único seria a única coisa que faria sentido. Sim, ele lhe tocaria o ventre, o útero, despudoramente com fervor religioso. E ao tentar dominá-la seria vencido. Depois mil vezes derrotado, mil vezes mortificado, mil vezes ensandecido e, por fim, como uma menino, em seu regaço adormecido. Seu rosto naqueles seios, pequenos caroços de fruta, restos de melaço a serem sugados, a melarem o céu da boca, a desafiar a lógica com suas pontas duras a acusar arrepios de um corpo que ferve no caos do amor. E todos os

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outros cataclismos aconteceriam entre estes dois corpos, vulcões, terremotos, batalhas sangrentas em que ambos morreriam para o mundo e renasceriam num espaço inexistente, numa dimensão de pensamentos e desejos somente, de fantasia erótica, de despudorado tesão, de imaculado querer, de inesgotável gozo, de repetida cópula, de inumeráveis posições, de tigresa e gato, de cadela e potro, de dragão e frágil donzela, de puta veterana e de adolescente insaciável. A vida então seria mais perfeita que a poesia, e nos olhos deles poderia se adivinhar o significado de tudo.

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Um sorriso negro Clara, como o próprio nome dizia era branca de dar dó. Loura, de cabelos e pelos pubianos claros, descendente direta de italianos, mais parecia uma aparição nestas plagas tropicais. Por conta de sua pele muita alva tinha que se guardar do sol. Era de uma beleza transparente, embora a pele fosse por demais clara, o porte de mulher alta e altiva compensava, com metro e oitenta de altura, seus cabelos, milharal em profusão, seus seios duros como rocha, pontas de fruta madura a dar água nas bocas masculinas, suas pernas redondas e torneadas naturalmente e reforçadas por anos de balé e ginástica, olhos azuis da cor do mar, como um fantasma de outra terra a vagar por entre a morenice do Rio. Clara, esta filha da Europa, cresceu diretamente no preconceito. O pai viera para o Brasil com um capital inicial para fazer fortuna. Construiu um hotel, voltou para a Itália e se casou para não se misturar. Tanto pai, quanto mãe tinham horror a negros, e, embora não fossem de grande formação cultural, tentavam ostentá-la a custa de muitos discos de ópera (jamais escutados), jantares, aparições, etc. Agora que o preconceito era politicamente incorreto era ruminado apenas nas paredes internas do apartamento onde Clara fora gerada (sem prazer) e criada com excessivos mimos. Na verdade, Clara era uma decepção disfarçada para o pai, que queria um macho para continuar a estirpe. Não pode ter mais que uma menina e acabou por lhe dedicar amor, depois de enterrar sua

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decepção em inúmeras tentativas infrutíferas de gerar um varão. Os anos se passaram e Clara já não era uma criança. Aos dezenove anos, virgem não mais era. Sexo para ela era uma brincadeira constante e escondida dos pais, ora com primos, ora com namorados, sempre brancos (pelo menos aparentemente) devido ao preconceito da família, que agora formava uma verdadeira colônia de primos e irmãos. Quando abriam a boca para emitir seus preconceitos mais parecia tocar aquela velha e famosa música: “Madame diz que a raça não melhora/ E que a vida piora por causa do samba/ Madame diz que o samba tem pecado/que o samba coitado devia acabar/ Madame diz que o samba tem cachaça, mistura de raça, mistura de cor...” Na verdade, nestas várias brincadeiras sexuais, Clara sempre se achou dona e senhora. Nenhum homem conseguira encantá-la, ela, por sua vez, sempre deixava seus parceiros tontos. Um dia, já cursando faculdade (onde teve que disfarçar seu preconceito) acabou por ir a um samba em Madureira. Coisa imaginável para Clara. A vida inteira num apartamento na Zona Sul, a primeira vez que transpunha o túnel ia parar num samba, pagode estilo antigo; tocado na quadra da Portela pelo pessoal da Velha Guarda. Samba com cavaquinho, violão, melodia e afinação. Ela não teve como deixar de reparar o cantor, um 66


belo negro de quase um metro e noventa, corpo torneado pela capoeira, um bamba. Rosto de traços finos, como um príncipe de Angola, voz de timbre forte e melodioso. Ela começou a se mexer quase sem saber. Sambava (e, o pior, bem!) para surpresa dos amigos de faculdade. O negro a enfeitiçava enquanto cantava. “Se um dia, meu coração for consultado/ Para saber se andou errado/ Será difícil negar...”. Clara começava a desprender sua alma e via seu preconceito sem música e cor escorregar por seus passos e se dissipar em samba e suor. Ela olhava para aquele negro de uma forma diferente, com fome, com um desejo que já não era mais de brincar, mas com um desejo de ser essencialmente mulher, como se nada mais houvesse, preparada para num instante ter todo seu mundo submerso nos braços fortes e no membro duro que se adivinhava naquele corpanzil másculo que tão docemente tocava o violão. Ele começou a dedilhar sambas seguidos, um mais belo que o outro, dominando a noite em amor e poesia. Um feiticeiro d’áfrica que chegava e conduzia o corpo antes frio dela para as noites quentes da mata, para ser amada em redes e matos, e águas mil, cachoeiras e praias. Nos olhos dela havia batuque, magia negra, calor negro. Era uma branca repentinamente de alma negra. Quando a música parou, ela olhou para onde estava seu cantor, com súplica. Ele a olhou, seus olhos tocaram faíscas da alma. Retiraram-se 67


sorrateiramente como fugitivos sem que o mundo percebesse e quinze minutos depois estavam numa banheira de hidromassagem de um hotel vizinho. Ela sendo conduzida por aquela mão negra, máscula, calosa, forte e carinhosa, a todas as grutas onde realmente se escondia o prazer; e onde ela nunca havia viajado. Como se tivessem todo o tempo do mundo ele tocava cada pedaço da pele dela como se fosse um pedaço e complementação da pele negra dele, como a terra negra é complementação da árvore que nela se alça. A boca de gazela de língua fina dela sentia o gosto da pele dele, e aquele gosto másculo lhe dava fome, até que ensandecida de desejo. Acabou por abocanhar o pau viril, duro e latejante dele, como uma amante louca, com tal tesão e carinho que ele teve que se controlar para não gozar antes que pudesse penetrá-la. Ela sentiu toda a rigidez máscula dele e nunca desejou tanto um homem dentro de si como naquela hora. Mas não era qualquer homem, era seu poeta negro, boêmio, musical, da fine estirpe da malandragem sambista carioca. Ele entreabriu as pernas dela e as colocou entrelaçadas sobre a sua cintura. Estava sentado dentro da banheira. Mas, em lugar de meter com ela, ele a puxou pela cintura para cima com força e sentoua na beira da banheira até equilibrar aquela pequena fruta de cabelo loiro onde sua boca grande, de lábios grossos e língua áspera e quente, como a de um cão de caça, pudesse tocá-la. 68


Ao sentir aquela língua, primeiro em seus pequenos e grandes lábios, depois arranhando levemente e lambendo seu clitóris, antes vagarosamente, depois com mais vigor, finalmente a penetrando, como se a língua fora um pênis de tamanho mediano. Clara começou a gozar na boca do seu homem, aumentando a loucura de ambos. Aquele negro levou a louríssima italiana a orgasmos múltiplos somente com uma boca hábil e sensibilidade em sabê-la guiar até onde seus limites terminam, onde corpo e espírito se encontram no prazer de dar. Ela gritava, gemia, estava desesperada, beliscava, mordia, não tinha mais onde se agarrar e perdeu a conta dos orgasmos que teve naquela hora em que foi magistralmente lambida e chupada por seu homem. Quase desfalecida. Edson (este era o nome dele), desceu Clara vagarosamente escorregando o corpo dela no dele para que sentisse a rigidez do corpo dele. Depois ele encostou a entrada da bocetinha dela em seu pênis, que já lhe dava dor de tão duro, e deixou que ela se ajeitasse. Ela sentiu medo, achou que aquela pau era muito grande e, não fosse a enorme vontade de satisfazer aquele homem, teria fugido. Foi sentando aos poucos, se ajeitando, deixando que o pau a penetrasse e comesse pouco a pouco até que preenchesse todos os espaços de seu buraquinho, até que não sobrasse nenhuma fresta, abraçados, boca a boca, seladas, um beijo imortal e eterno, sentindo um a respiração do outro, 69


só podiam se mexer vagarosamente, e ainda assim, um prazer selvagem tomou conta dela depois que ela sentiu que o membro de seu amado havia chegado ao fundo de sua vagina, e toda vez que ele o estocava, lhe tocava o útero encontrara o ponto g, provocando arrepio, delírio, alucinações. De tal maneira que, quando ela sentiu o jorro quente do gozo de seu macho sentiu-se como uma pequena cadela perdida na rua e chorou consumida nos estertores do prazer. Era a primeira de infindáveis transas naquela noite. Esqueceu-se, Clara, do mundo; de telefonar, de voltar para casa. O dia amanheceu no subúrbio distante com ela deitada na cama, com seu homem em suas pernas, nada mais importando no mundo se não dar para ele, sempre, a toda hora, quando tivesse vontade, roçando seus pentelhos no corpo dele. Ele com sofreguidão metendo naquela mulher que ele sabia conhecer há tantos milênios que nenhum segundo dali para frente qualquer sentido faria sem ela. O rádio tocava: “O Neguinho gostou da filha da madame, que nós chamamos de sinhá, Senhorita também gostou do neguinho, mas o neguinho não tem dinheiro para gastar, A madame tem preconceito de cor, mas não pode evitar este amor...” 70


Pequena menina moça distraída na grama

Eu não entendia o que queria dizer o verbo reverberar até o dia em que te vi. Então foi fácil. Significava o sol nos seus cabelos, até o som do brilho solar em ti era de reverberar. Eras musicalidade e leveza. Parecia que bailavas ao brilho solar, mas apenas te espreguiçavas, teu corpo perfeito, de felina, na grama sob o sol. Eras o encantamento de um pequeno momento que, distraído, esquecesse de passar. Dava a ti mil carícias de longe, sem que pudesses adivinhá-las, meu olhar ia de ponta a ponta do teu corpo, sem se atrever a apertá-la, apenas passeava como a brisa, que com a ponta dos dedos arrepiava um a um os seus pequenos finos pelos de gata. Teu rosto, breve como teu sorriso, era como um soneto, leve e profundo, como os pequenos sons de tua risada sutil, que pareciam adivinhar com propriedade sempre começo e fim. Rolavas preguiçosamente pela relva acariciado um livro, folha a folha, com o pensamento solto, distante em teus sonhos femininos (que não ouso confessar que sei, para que teu rosto não se enrubesça, ao te revelar que descobri os segredos que fazem altear teus pequenos seios de forma de pêra, os bicos duros como uma haste que de pronto se desprendera da árvore da adolescência e se aventurasse na divina essência de ser mulher). Olhava teus contornos arredondados e distraídos, tuas pequenas maçãs, fim de tua cintura e costas divinais, que

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distraidamente se arrebitavam ao sol e me faziam ser uma pequena formiga que se aventurasse durante anos naqueles morros, explorando-os, de cima a baixo, subindo por teus pés, contornando tuas coxas roliças como se eu fosse cócegas, com cuidado para não ser espremido em seus sensuais apertos de uma perna com a outra, até alcançar o cimo e te dar uma pequena mordida, como para te avisar da minha existência. Ouço o vento... Não... É tua respiração, um ondular em suspiros... Aprofundada em devaneios, sem que te apercebesses de mim, eu, que queria tanto estar no espaço mais recôndito e escondido destes teus sonhos acordada, em que te entregas e te perdes, totalmente, como mulher-amante, de uma maneira divinal e ilimitada, de um jeito tal que, na realidade, nunca ninguém pôde te surpreender.

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Revivescer Patrícia já nem acreditava mais no amor. De sua vida, como uma impressão em escala de tons cinza, este sentimento já não mais fazia parte. O dia era uma sucessão de folhas rasgadas no calendário, e trabalhar, e cursos, e diplomas, e promoções, e ocasiões sociais formais, com que ela preenchia seu tempo e pensava poder enganar sua vida. E assim ia vivendo, se dizendo feliz. Morava só, às vezes visitava pai e mãe, aquele papo careta, marido e filhos, do que desistira. Sexo, só furtivamente, meio com namorados rápidos ou flertes, que não deixavam marcas. Já estava na casa dos trinta e pensava paixão como algo adolescente e que jamais tornaria ocorrer em sua vida. Daquela doce menina com cachos de cabelos meio castanhos, meio dourados, caindo pelas costas, não sobrara muito do riso, só da beleza, na verdade uma beleza acre e autoritária que afastava tudo que se aproximava. E assim ia, de cargo em cargo, de jantar em jantar, de trabalho em trabalho, sem parar, sem pensar mais em desejo, como uma cama sempre arrumada, nunca mais desfeita para o amor, sem cheiros de amor consumado, um quarto com odor de vazio, uma vida em linha reta, igual, sucessiva, previsível. Um dia fora obrigada a ir a uma festa de aniversário de um chefe, numa casa de veraneio. Vontade tinha nenhuma, mas seria uma desfeita. Era um chefe nada formal, e na festa havia muita dança e bebida. Ela bebeu, socialmente, ela dançou, socialmente, ela sorriu, socialmente, ela se sentou,

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socialmente, ela conversou, socialmente, ela falou socialmente, ela olhou, socialmente. Tudo tão contido que era possível medir num paquímetro suas atitudes e criar um tratado de engenharia só sobre tal comportamento. Era de uma geometria reta, onde tudo se encaixava, aresta por aresta. Lado por lado, sem espaços para curvas em seus risos, sem abismos para enganos em suas certezas. Era tão coerente que dela a certeza se envergonhava por lhe ser inferior. Era uma pessoa calculada, arquitetada, que não via o luar ou o vento, nem se dava da conta de alento ou do tempo. Todos saíram para continuar a festa numa boate. Ela não quis ir. Aceitou o convite de uma amiga, que tinha uma casa perto, para dormir. Esta amiga se chamava Alessandra, tinha um irmão chamado Omar. Depois, Alessandra voltou para festa deixando os dois a sós. Foi um total desconforto no ar. Enquanto Patrícia estava bem vestida da cabeça aos pés, parecendo uma boneca embalsamada, Omar era um desequilíbrio só. Uma calça jeans puída, uma camisa de mangas curtas, um tênis, simpatia no rosto, sorrisos sempre na pele morena. Ela se sentou e pediu a ele uma toalha, pois queria tomar banho para dormir. Ele pegou a toalha e um violão. Ela saiu do banho com uma bermuda bem comportada e uma camisa de mangas compridas. Ele já estava tocando. Era uma melodia linda e ela não pôde deixar de dar atenção, soava assim: 74


“Quem passou por esta vida e não viveu, Pode ser mais mas sabe menos do que eu, Porque a vida só se dá para quem se deu Para quem amou, para quem chorou, para quem sofreu. Quem nunca curtiu uma paixão, Nunca vai ter nada não...” Ela sentou-se numa cadeira longe dele e perto da lareira apagada, murmurou: – Bonito... – É Vinícius. – Não sabia... Depois um silêncio, outra música. “Eu sem você não tenho porque Porque sem você, não sei nem chorar...” Patrícia estava realmente tocada pela música. Ele sabia cantar muito bem, tocar melhor ainda e o repertório era sensível e lindo. Ela não conhecia praticamente nenhuma, mas ali, sozinha, foi se deixando levar pela emoção e, quando deu por conta, estava sentada, com as pernas dobradas ao lado do corpo, no chão, próximo da cadeira onde ele tocava. Omar estava visivelmente fascinado com ela. Ela era muito linda, de uma beleza glacial, bem verdade, mas era. Ele tocava 75


o violão e seus olhos se tocavam e a música se fazia mais linda e a voz se fazia mais meiga, como que um canto de primavera saindo viril de dentro de seu peito: “Um dia Marcela se achou e se deu, Seu corpo se vida me amou foi meu Das dores, vencida, nasceu a mulher Que sabe o porquê, Que se abre e se vê... ...Os homens, por pressa, por medo de amar Passaram por ela, sem nada encontrar Levaram comigo, o engano de quem não viu Nem sabe do que fugiu Da estrada, da estrela. Ficaram comigo, seus nervos se dando aos meus...” Ele agora dedilhava o violão levemente como a tocar no corpo daquela mulher tão próxima. Seus olhos se encontravam com os dela todo instante. O verde mar dos olhos dela, deixavam de ser glaciais e passavam a ser de uma profundidade dos oceanos, em chuvas estivais, levemente molhados de lágrimas com cheiro de terra e ela percebia... apenas percebia... percebia como se ele fosse uma parte esquecida do ser dela, uma parte sensível semimorta como Lázaro... as notas do

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violão, a poesia lhe dizia agora, aquela mulher maravilhosa e esquecida da vida, levanta, toma de teu amor e anda... “Você é mais bonita que a flor, Quem dera a primavera da flor Tivesse toda esta beleza. Perfume da natureza Numa forma de mulher” E ele cantou esta estrofe já navegando nas águas dos olhos dela. Agora os olhares não mais se desviavam, se tocavam intensamente, se falavam surdamente, se incendiavam loucamente... “Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar... ... E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos...” Ela o interrompeu, com um leve toque no violão. Ele parou e nada fez. Ela levemente afastou o violão e debruçou-se sobre ele. Nunca houvera para ela um desconhecido tão conhecido. Sem saber sua profissão, procedência, diplomas, títulos... estava intuitiva e instintiva como antes jamais houvera... sentia 77


o cheiro de seu macho, e se comportava como uma fêmea da espécie... Começou a lambê-lo, como uma cria... E a pele dele tinha gosto de suor, gosto de macho... Um aroma diferente, que a arrepiou de um jeito que ela pensou que fossem tremer as paredes juntas, desconjuntar seus alicerces, mas eram as pernas dela que suavam e tremiam... Ele não ousava sequer tocá-la, observava paralisado, enfeitiçado, como a olhar uma deusa glacial. Logo ela lhe tomou a boca e perderam em horas de beijos angustiosos sem fim. Na verdade, perderam a noção do tempo e do espaço. Rolavam por entre tapetes até parar em milhões de beijos num capacho. Ela se sentia como uma garota. Ele não era seu amante, não!!! Era seu namorado!! E como esta palavra suava doce: namorado. – Você quer me namorar? – ela perguntou. – Sim, para sempre... Eram palavras desconexas, absolutas, de um amor adolescente atrasado, e que chegava profundo e sem aviso. As roupas foram saindo praticamente sozinhas, e iam voando pela sala como pedaços de pudície e medo abandonados. Mas não tinham pressa em se penetrar, em se encontrar corpo dentro de corpo. Tinham até receio de quebrar o encanto. Suas línguas brincavam soltas, em mil beijos e pequenos chupões, descobrindo coxas, pelos, seios, virilhas, bicos de

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peito, queixos, covinhas do rosto, demoravam-se em ouvidos e pescoços num tesão que parecia ia lhes fazer invadir o espaço e sair dos seus próprios corpos para descobrir transubstanciados a alquimia daquele momento mais que perfeito. A penetração veio calma e profunda. Ela sentiu dor, como há tempos não sentia, gritou alto e rasgou as costas dele com as unhas. Era uma emoção renovada, parecia uma novata e ele um menino perdido. Ele desculpou-se, beijou-a, beijou-a, beijou-a, beijou-a, beijou-a, na boca, nos olhos, no pescoço, nos seios. E ela o puxava para dentro, como a querer devorálo, aranha glacial. O sexo dela torcia e apertava o membro duro dele com um desespero de apocalipses. E ele sentia que estava mergulhado nela, sem mais limites, tocando-a no mais íntimo, num momento de pura mágica, na mais delicada emoção corporal que os dois já sentiram. Era como se ele estivesse no corpo dela e ela dentro dele, num mimetismo sobrenatural, onde a vontade dos dois era uma só, como espíritos amalgamados. Ele se derretia e se entregava, ela voava embaixo dele. Havia uma mistura de prazer, dor, entrega, malícia, ingenuidade, amor, safadeza, sal, pimenta, açúcar, uma alquimia que fazia o quarto cheirar a bruxedos e os amantes embriagarem-se no mais doce cheiro que já sentiram, que era o dos seus corpos molhados de sexo misturados em perfume. O orgasmo veio lento, mas violento, numa súbita

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explosão conjunta que os fez perderem-se de si mesmos, neste terremoto, cataclismo, vulcão, nada os salvava; gritos, urros, beijos, mordidas, beliscões, nada, nada os fazia pisar a terra; habitaram por minutos uma dimensão cósmica, onde eram deuses sem pecados, nascidos um do ventre do outro, numa fome angustiante que fez renovar seguidas vezes esta penetração. A irmã de Omar voltou da rua e os surpreendeu assim, numa conjunção tão profunda, num tão estertor que eles sequer a perceberam. Ela voltou e ficou na rede da varanda a esperar. Horas se passaram em torvelinho. Nada parecia parálos. Alessandra adormeceu, foi acordada pelos primeiros raios de sol do dia. Qual não foi sua surpresa ao entrar em casa e ver a porta do quarto trancada. Os amantes não deram por si ou pelo mundo. Só Osmar saiu durante a tarde para pegar comida e novamente se trancar no quarto. Era domingo. A vida não voltou ao normal na segunda. Patrícia não era a mesma. Seu olhar glacial se derreteu. Hematomas no seu braço a denunciavam, fora uma alegria e gentilezas anormais. Olheiras passaram a se ver nela e um ar ausente e meio abobalhado. Trocou seu apartamento solitário por uma casa comum com cachorros e tudo mais de uma vida a dois; e noites de uma guerra carnal que a consome e a torna sempre uma outra pessoa, cada vez mais alegre, e que só conta seus

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anos pelo dia que conheceu aquela canção, que agora cantarola sem parar: “ Quem passou por esta vida e não viveu... Não há dor pior do que a descrença. Mesmo o amor que não compensa É melhor que a solidão...”

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Afrodite e Xangô Balzaquiana; decidida, inteligente, culta, bela. Anarquista no temperamento e na ideologia. Não destas anarcóides de classe média que pensam que anarquia é fazer uma tatuagem e colocar um piercing. Mas daquelas que lêem Bakunin, Proudhoun e sabe a história das comunas anarquistas na Rússia e na Espanha Vermelhas. Prega e acredita no amor livre, pratica-o. Já estudara todo Reich, com muito prazer e passou a práxis das idéias dele. Saiu sem culpa de um casamento entediante com um médico asséptico e passou a comer todos os homens que desejava, sem peias ou compromisso. Permanecia com um enquanto lhe desse gosto, passava para outro tão logo sua libido se gastasse. Poderosa e ativa, devorava os homens e sua inteligência e atitude os amedrontava. Era uma lenda e seu mito precedia sua presença. Psicanalista revolucionária, vivia de tratar a alma dos outros. Para ela a análise não era um esporte de ricos. Trabalhava voluntariamente em muitas favelas, preferencialmente entre as mulheres, ensinando a elas a arte e o direito de gozar, o orgasmo como forma de libertação. O direito essencial das mulheres a igualdade absoluta de direitos, de inteligência e formação, de oportunidade e voz com relação aos homens. Para que os homens não mais fossem seus capatazes, donos e algozes, mas sim seus parceiros, cúmplices e irmãos. Impossível conquistá-la. Não era caçada, caçava. Cunhou o apelido de Miliciana por causa de seus trabalhos entre as

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comunidades carentes e, logo, logo, ninguém mais a chamava de Clarisse, senão de Miliciana. Um nome tirado de uma novela espanhola, de uma mulher que vivera uma vida tão intensa quanto ela. Sem preconceitos de classe ou cor, amava livremente aquele homem que desejasse. Alta, 1.80, branca, olhos claros, corpo estonteante, sua presença assustava. Sorria sozinha, ainda com as lembranças de seu último homem, um rapaz que ela iniciara realmente nos prazeres de Afrodite, devorando-o, escondida na sala do almoxarifado de um Centro Comunitário, como a aparição da própria deusa grega que escolhesse um mortal qualquer para satisfazer seus prazeres. O nome dele era Antônio, um pouco mais alto que ela; forte naturalmente da vida dura que levara, como pobre para sobreviver, trabalhando desde criança, muito negro, luzidio, era atraente. Tinha 17 anos, era ainda um menino e na verdade era virgem. Ela sabia disto. Pagava a ele para ajudá-la em seu trabalho na Comunidade da Rocinha que lhe rendia muito pouco dinheiro, mas dava a ela uma satisfação imensa. Ela sempre flagrara o olhar entre envergonhado e com tesão dele no corpo maravilhoso dela. Passeando pelo umbigo sempre à mostra. Ele escondia o rosto. A Miliciana olhava para o pau dele. Era grande, um pau negro, pulsante e virginal, e ela o antevia crescendo na calça. Ela fixava o olhar no membro dele e desde a primeira vez, resolvera desvirginá-lo. Nada planejou, apenas esperaria o momento. Numa das 83


terapias coletivas feitas no fim de semana, o Centro Comunitário estava vazio e eles ficaram com a chave para guardar as coisas. No pequeno almoxarifado, vários objetos da comunidade ficavam empilhados. Antônio estava ajudando a levar colchonetes, que serviram para a terapia respiratória reicheana, àquele espaço vazio, Clarisse fechou a porta atrás de si quando entraram. Tonho surpreendeu-se, mas, quando deu por si, ela já o havia derrubado no colchão, o corpo maravilhoso dela, os cabelos longuíssimos percorrendo seu peito, as mãos por cima da calça, fizeram com que ele ejaculasse, excitado e nervoso com a surpresa, antes mesmo que ela começasse as carícias mais intensas. Ela beijou a boca assustada dele, como quem tem nas mãos um pequeno pássaro indefeso e com frio, que esperasse morte caso não receba o calor de uma boa samaritana, e lhe falou de forma doce e carinhosa: – Calma! Antônio, completamente surpreendido pelo ímpeto de Clarisse, estava completamente enredado pelos fios de Ariadne daquela deusa. Ela o deitou nos colchonetes, como se ele fosse sua presa, da mulher aranha fatal, deusa do sexo e do amor. Naquele momento de luxúria primeira, com todo o cuidado e carinhos lascivos, obscenos, impudicos. Ajoelhou-se com as pernas entreabertas por sobre ele, com a luxuriosa rosa do sexo quase encostada no rosto dele. Com malícia e habilidade retirou o pau latejante dele de dentro da prisão que a calça havia se


transformado. O membro luzidio e negro, roliço, duro, pulsante, era grosso e grande como ela imaginava. Ainda estava melado pelo leite emanado do espanto dele, mas, mesmo tendo acabado de gozar, permanecia duro. Com a maestria que possuía, Clarisse, a Afrodite anarquista, começou a lamber todo o sumo, sentir o gosto do sêmen na boca e, com a língua, sorvendo, tomou todo o suco derramado. Deixou o pau de Antônio sem nenhum vestígio do recente orgasmo. Isto o excitara ainda mais. Como uma gata, esgueirara seu corpo até a boca de Antônio, e sem que pedisse, só com a linguagem corporal, ele começou a sugar aquela flor cerúlea, rosácea, com odores divinais. Esfregando-se na boca de Antônio, os lábios grossos de negro, a língua vigorosa e rápida, o lamber forte juvenil, começou a enlouquecê-la. Ao mesmo tempo ela engolia quase toda grande vara dele. O pau enchia toda a boca de Clarisse, ela o sugava, tirava da boca, mordiscava, lambia, descia até a base, beijava cuidadosamente, brincando com a língua nas bolas, de maneira, que Antônio, quase sem controle, já estava a ponto de gozar novamente. Sentindo este momento, Clarisse parou de sugá-lo, retirou sua xotinha da boca dele e foi novamente se esgueirando, roçando a pele fina no corpo másculo, juvenil e musculoso dele, de maneira a colocar a bocetinha de encontro ao pau latejante. Ele levantou o corpo levemente de maneira que pudesse segurar a cintura dela. O pau era


muito grosso, e a grutinha de Clarisse bem apertada, a penetração era vagarosa e difícil. Clarisse controlava completamente a descida, inclusive a intensidade, para que ele desta vez não jorrasse antes que ela se satisfizesse. O pau muito grosso ia esticando os lábios da vagina e a enlouquecia. Ele também sentia a xoxota como uma boca muito forte e macia, fruta pegajosa e boa que fosse aos poucos engolindo o enorme pau. O pau descia um centímetro, ela recuava, o que o fazia implorar que ela descesse mais. Foi conquistando aquele pau centímetro a centímetro, aumentando o tesão e o fogo de ambos, que já estavam prestes a explodir. Ele tinha mãos fortes de trabalhador, mãos de proletário. Puxou com força o corpo dela pela cintura e como estivesse muito molhada, ela finalmente cedeu. A vara era longa e tocou o útero da Afrodite encarnada, que se arrepiou, um calor crispou todo o corpo dela. A bocetinha tinha o espaço exato para engolir todo o pau de maneira que nada faltasse, que nenhum espaço ficasse vazio. Assim, cada movimento de ida e vinda, onde ela fazia com que o pau saísse todo e retornasse, parecia que ia efetivamente consumir ambos totalmente. Estavam inebriados e não conseguiriam retardar por muito tempo o orgasmo. De pernas abertas ela se arqueou sobre ele. As peles grudadas, a derme clara e fina dela sobre a derme escura e grossa dele, os pequenos lábios rosáceos dela dando-se a boca grossa dele. O cabelo longo dela alisava 86


o rosto dele, um beijo de entrega, o prazer de um invadindo o corpo do outro, até que houve uma explosão, simultânea. Gritos, ais, sussurros, palavrões. Ela o surpreendia, pedia, aos berros: “me fode, me fode meu grande garanhão negro, rasga tua putinha, me come com força, vai, vai, mais, me fode”, e realmente parecia que ela seria dividida ao meio naquele ímpeto tresloucado, onde se inundou de sêmen e todo seu corpo ficou arrepiado, os pelos eriçados do mais sublime prazer. Aquele prazer completo e total que é mais forte do que qualquer droga jamais inventada. Bêbados, embriagados um do outro. Ela pensou que ele estava exausto. Mas agora era a vez de Antônio assumir um papel de Deus africano, de Xangô guerreiro, orixá da justiça, espada vingadora forte em defesa dos fracos, viril entidade negra de África. Jogou Afrodite no colchão e num ímpeto, abrindo suas pernas com os braços e suspendendo-a e dependurando as pernas dela em seu ombro, surpreendeu-a com uma penetração forte, que no início chegou a ser um pouco dolorosa, mas que logo se mostrou extremamente delirante. Antônio que não havia se desgastado muito embaixo de Clarisse, agora, com uma arremetida de um bicho feroz assaltava o corpo dela. Suas estocadas eram fortes, faziam vibrar todo o corpo dela e arrancar gritos de delírio da experiente mulher. Nem parecia um garoto recém iniciado nas artes de Eros. Mais parecia um Deus vindo das

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matas da África, trazendo em seu ombro um Leão que houvera acabado de matar numa luta furiosa, e agora cobrava de sua amante os tributos de carinhos devidos aos grandes heróis. Ele queria sentir o máximo de prazer e proporcionar também. O pau saia todo e entrava até o fundo da caverna apertada dela. Roçava. arranhava, na entrada roçava no clitóris, no fundo tocava no útero. Ele sugava avidamente, chegava a morder o seio e o ombro dela. Ela cravava as unhas nele que nem sentia a dor. Era um embate furioso de amor. Um poderoso Deus de Ébano entrando e saindo daquela mestra do amor, fodendo ardentemente aquela mulher divinamente safada. Ela trazendo do fundo dele toda a libido que ele carregava. Uma energia mística envolvia os corpos, não era uma trepada comum, eles faziam o amor com fúria carinhosa, com uma consumação que parecia um amargedom, parecia o último momento do mundo, Antônio descobria um rio invadido por larvas de vulcão dentro de si, e a única coisa que queria era desaguar para o oceano daquela diva, para aquele útero que o acolhia e que parecia enovelá-lo. Um instante que seria tatuado para sempre em sua alma, o cheiro silvestre daquela rosinha selvagem que impregnaria para sempre seu nariz, e que lhe voltaria toda vez que fosse foder uma mulher. Depois de gozar duas vezes, ele podia mais confiantemente comer Clarissse com toda sua potência. Sentia que demoraria a gozar, e queria 88


prolongar a sensação de estar dentro daquela mulher. Abaixou as pernas dela de seu ombro para que ela ficasse confortável e pôs suas mãos em concha embaixo daquela bunda maravilhosa, premindo-a contra ele. Acariciou a esfera macia dividida em duas, completamente lambuzada pelo mel dos dois, e descobriu o orifício anal. Com seus dedos longos, instintivamente, aproveitou a lubrificação, que o próprio sexo dos dois proporcionava, e introduziu quase que inteiramente o dedo dentro daquele cuzinho. Clarisse enlouqueceu, fodida pela frente, ao se mexer, para se afastar do pau, sentia o dedo avançar por trás de si. Quando se afastava do dedo, sentia o pau comendo sua xota. Isto a deixou fora de si, quente, com movimentos convulsivos. A loucura dela contaminou Antônio e logo ambos partilhavam mais uma vez de um desvario em gozo. Ele nem mais tirava o pau. Afundava-o bem forte para senti-lo tocar o útero e deixava que ela rebolasse em desvario enquanto gritava: “vou morrer, me mata amor, me mata de prazer”. Ele sucumbiu aos gritos, ao corpo, aos carinhos, e este orgasmo foi mais do que uma pequena morte, parecia que um fogo os consumiu e eles perderam a razão. Clarisse chorou de prazer. Antônio perdeu o fôlego e a fala. Em casa, recostada, tomando um bom vinho branco, Clarisse lembrava a iniciação daquele garoto de ouro, daquele Orixá encarnado que ainda tinha muito que aprender e que lhe proporcionaria ainda extremos prazeres nos próximos 89


meses, nos quais dedicaria uma boa parte em ensinar-lhe as artes de Afrodite a seu belo Xangô. Todos os requintes dos prazeres da cama. Era um touro imenso, forte, negro, impávido. Era diamante que precisava ser lapidado. Aprender a retardar o momento da explosão. Aprender a sugar uma mulher com maestria, como se deve. Começando com um beijo tímido na boca, para depois celebrar todo o belo corpo, da nuca a bunda, marcando o caminho com beijos e mordidas na linha da coluna, no umbigo, cintura, para só depois de prepará-la, de fazer jorrar o mel do prazer por entre as pernas. Então, aí, sim, poder sorver o prêmio, o néctar da bocetinha, jorrando em borbotões por conta de um homem que conhecia os mistérios do corpo da mulher. Seria um prazer este tempo de ensinamento, em que se daria e comeria também seu homem, Ariadne devoradora, que após ter consumido tudo que queria de seus homens, deixava-os, melhor preparados para outras mulheres. Eles ficavam com a lembrança sem igual dela para sempre na cabeça, como a aparição de uma deusa a um mortal, um presente dos céus, uma dádiva da vida para quem teve o privilégio de prová-la. Clarisse sorriu, com os dedos entre as pernas, bolinava o clitóris lembrando dele. Logo, logo ela mataria esta saudade que sua grutinha encantada sentia.

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Ela achava que era um erro Ela achava que ele era um erro, um total equívoco. Absolutamente impossível para ela, distinto, um homem de outro diapasão. Arrumadinho, mauricinho, perfumado. Um erro, uma chatice conhecê-lo. Aquela conversa longa já a fazia dormir. Despediam-se não sem enfado, quando uma língua veio de soslaio em seu pescoço. Ela estava distraída, se arrepiou e se contraiu se defendendo. Mas logo uma dentada leve em sua nuca e uma série de beijinhos espalhados no pescoço e costas a fizeram estremecer. Como podia? Um erro transmutado em acerto? Transubstanciação da água em vinho? Como podia aquela aparência tão servil, amanuense, ter assim, num paradoxo toda aquela fome selvagem. Sim, porque beijava bem. Alternava, vários tipos, leves, longos, duros, molhados, leves, breves... nos pontos certos, nas horas inexatas e ela desfalecia. Não queria, mas calava, consentia... Era um erro? Pelo menos um erro cheiroso. Ela sentia como uma felina o cheiro dele. Como uma fêmea, bem mulherzinha ali, sendo mordiscada e beijada por seu macho e ia se deixando esvair num turbilhão de impulsos e delírios. Ele era o contrário do que ela queria. Arrumado, sem boinas, sem cavanhaque, ou camisetas pintadas com jargões, o extremo oposto de seu paradigma de macho. Mas, agora, arrancando a camisa dele e sentindo os pelos dele, as pintas, nada mais pensava. Saboreava com a língua a pele dele peluda e perfumada, lambia e era

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lambida. Ali ela era uma pantera, devorando pedacinho por pedacinho e sendo devorada. Ela agora de costas, a língua dele na linha das costas dela, até ela o sentir beijando a dobra dos joelhos. Que arrepio, meu deus! Uma mordiscada na bunda. Agora o volume por dentro das calças roçando a polpa. Ela se virou de frente e o puxou para si. Beijava a boca dele. E que beijo bom. Longo, duradouro, intenso, profundo, gostoso. Sensação boa, excitante. Ela se sentia inundada. Sem perceber o apalpou. Duro, palpitante. Como podia ser assim? Tão intenso se aparentava tanta docilidade? Ela agora estava deitada, de pernas abertas e dobradas e o deixava roçar,ainda vestido, no corpo dela. As peças caiam aos poucos, entre beijos no ventre, mordidinhas, suspiros, palavras indecentes. Cheiros, fluidos, o quarto inundado pelo cio dos amantes... Ela o desejava, e como. Ela só de blusa, levantada e de calcinha, ele já nu, desnudado por ela. E a boca dele, carnuda, suculenta, os lábios, grossos, a língua áspera, brincando com a calcinha, pequena. A calcinha de lado, a língua nos lábios da rosinha dela. Ela estava doida, seu sumo saía aos borbotões, sentia a xotinha beijada como se fosse a boca, suspirava, estremecia, todos os poros abertos,

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arrepiados e gozava loucamente com aquele homem no meio de suas pernas. Ainda gozando sentiu ele entrar nela. Sem pedir licença, como seu macho, como seu gato selvagem, duro, de uma vez, mas sem dor. Ela estava inundada. A sensação dura, quente, forte, viril de ser penetrada sem dó, de uma vez, toda, no fundo, intensamente a desfaleceu. Ela o abraçou, tomou sua boca, fechou os olhos. E ele a escavava, ia, voltava, entrava, os dois rebolavam, dançavam, ela era a sua casa. Perdeu os sentidos e o controle, dançava loucamente no cio e foi sentindo o leite quente e abundante, gritou, se abriu mais, o sentiu tocá-la lá dentro... Estava exangue, entregue, ele ainda dentro dela, os dois se beijando... Um erro... um erro delicioso, maravilhoso... Como era gostoso errar.

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O quarto recendia a vinho

O quarto recendia a vinho. A pele dele, rude, curtida de sol, seus modos viris, que contrastavam com sua cultura, davam um amálgama que a atraía. Ela dissimulava, aparentava demonstrar repulsa. Só que este afastamento em vez de fazêlo desistir, apenas o estimulava a caçá-la, a procurar o caminho, a janela para a alma. Aquela mulher era uma casa fechada, mas, por uma fresta o sol quente das manhãs acariciava lentamente seu interior... Ele buscava adentrar, espreitando os desvãos, esperando os descuidos e, no íntimo sabia, que quando tivesse a chance, as paredes tremeriam; as veias quentes da casa, nutridas pelo vulcão oculto e misterioso, iriam derreter todo tédio. Ela tomou um rum, sentiu o cheiro dele e como a naja encantada pela música, ficou a mirá-lo. E dissimulou, saiu de perto, sem sair da sala, sentou, mas não buscou os olhos dela, perscrutou o corpo e devorou com os olhos com uma intensidade que conseguiu que ela corasse. Embora fosse um impulso herege que também a molhou e aqueceu. Ela temia, a fresta parecia querer se abrir. Ele caminhou, rodeando-a como um lobo na matilha. Ele perguntou, indagou, puxou assunto enquanto ela ficou calada. Num descuido dela, ele a beijou no pescoço. Ela encolheu-se arrepiada e o empurrou, mas ele segurou

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a mão dela que se deixou ficar, e o fluxo das mãos mostrou dois corações acelerados, meio perdidos em quatro paredes; muito próximos, tão distantes, um muro a saltar e ele ladrão gatuno já se esgueirando por esta barreira. As mãos dele firmemente pegaram a cintura dela e quase que machucaram, ela resistiu mas veio, e aí o toque de peles, a mão dele, a boca sofregamente no pescoço e a língua queimando a pele dela abriu uma janela. Ela fugiu, mas se sentou no sofá. Estava assustada, agora era caça e não sabia se queria ser caçada. Ela pensou que ele se sentaria a seu lado, mas estava enganada, ele se ajoelhou entre as suas pernas e começou a beijar o corpo dela, ela empurrava o rosto dele, mas as mãos dela já suavam e iam sentindo o contato daquele corpo quente e desejado; a janela se abria mais, o sol aquecia, a gele ia se derretendo, formando um rio caudaloso que silenciosamente começava a escorrer todo para o meio das suas pernas... Sem que sequer ela o notasse, ele mordiscou-lhe a barriga e ela suspirou... Aí não era mais ela, e os beijos que ela começou a dar nele, nos olhos, no rosto, no pescoço, até alcançar a boca, foram tão intensos que ela sequer notou que os braços deles (quais braços eram de quem?), nós atados, se desvencilhavam apressadamente da roupa, pele querendo pele, suor querendo suor, calor querendo calor. Os corpos dançavam um sobre outro, serpenteando, ondulando, com gula, sem pressa, roçando, arfando, pedindo, mordendo...Ela já não mais resistia.

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O ventre estava em brasa, tinha pressa, urgência e gula, o queria dentro. Ele também a queria, queria seu regato, sua gruta. Mais queria mais que isto, a queria com alma, inteira. Sabia que o caminho mais seguro é o mais longo e começou a percorrê-lo. Língua áspera e grande pelo pescoço até o vão dos seios, ajoelhado por cima dela, ela a puxando para dentro de si e ele resistindo. A ponta da língua experimentou um e outro bico do seio, beijou, lambeu levemente cada botãozinho e começou a sugar cada pêra dura. Sentia o gosto, o cheiro dela e o prazer que ela sentia parecia estar no corpo dele. Ela pedia, exigia, o queria dentro, mas ele a castigava agora. Desceu lambendo cada pedacinho, dos seios até o umbigo, beijando, lambendo, chupando e mordiscando, as mãos que também a acariciavam sentiam os pelos dela eriçados e um leve toque de um dos dedos no botão do clitóris mostrava a seiva da grutinha já inundado. Ele brincou como um vadio no umbigo dela, mordiscou. Ela agora não mais exigia, suplicava, queria ser dele, queria ser invadida, penetrada, comida. Os sentidos dela estavam embriagados, ele era seu rum, o corpo quente, a gruta inundada, os pelos eriçados, suspirava, arfava, ardia por dentro, sentia vontade, sentia até dor de tanto tesão. De olhos fechados sentiu quando a boca dele tocou de leve o botão de sua rosinha mais recôndita. Levemente a língua áspera foi passeando por seus lábios e subitamente entrou na sua grutinha, ela começou a se revirar

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e a movimentar sua xotinha para cima e para baixo para sentir aquela boca, que a lambia, sugava, beijava. Um arrepio forte, o sumo descia aos borbotões e sentia que seu macho bebia o sugo dela. Perdida, envolvida, começou a gemer e gritar despudorada, perdeu a noção do espaço, todo seu corpo emanava luz e calor e um gozo forte, longo duradouro a deixou mole no leito. Quando deu por si, seu caçador e dono na hora já a beijava na boca e com força penetrava de uma só vez aquela grutinha que era agora uma nascente em profusão. Ela recobrou a vontade, mexia-se junto com ele, sentia as estocadas de seu homem com as mãos no quadril e na bunda dele e comprimia os músculos vaginais para sentir mais estreitamente o contato do pau empedrado, duro, pulsante. Seus movimentos deixaram de ser mecânicos, eram uma dança descontrolada, onde o ritmo dos dois era único e parecia que o prazer de um era o prazer do outro, ela sentia cada movimento daquele pau, e queria tudo, todo o pau dentro dela a tocando bem fundo e a comendo, a boca gulosa dele na dela, a pele colada, grudada, tudo ao mesmo tempo de forma louca. Ela se soltou ainda mais, começou a gritar, os dois arfavam e diziam segredos indecentes um ao outro, pois estavam gozando juntos, este gozo para ela ainda era muito mais forte e intenso e ela se sentia completamente tomada, comida e amada. Ela recebeu o leite quente hipersensível e seu frenesi foi tão intenso que lágrimas chegaram a sair dos

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seus olhos. Mole, satisfeita, amada, dolorida, ela o apertou, abraรงou e beijou, estava entregue, agora queria mais, se complementarem como cada fosse uma parte do um, por toda a noite.

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Valsinha Todos os dias eram iguais. Trabalhavam juntos no mesmo emprego entediante já fazia sete anos. Eram dois seres humanos murchos, sem graça, grises como as paredes daquele Departamento de Pessoal. Conversavam o essencial, ordens, resoluções, metas, aumento de produtividade, competência, números, cifras, determinações, artigos de lei, parágrafos, alíneas. Carcaças de ser humano ambulantes. Todavia eram jovens. Enterrados naquela vida mesquinha, ambos, esperavam o fim de semana para reificarem suas vidas. Mas tudo parecia ser um ciclo e o tempo se repetir. O domingo era a espera da segunda e a segunda uma corrida louca até o sábado, para depois, no domingo esperar o serviço de segunda. Vinícius tinha uma vida insonsa. Sem cor, sem brilho, sem poesia, sem sentido. Acumulava alguns bens naquela chefia intermediária e fazia dívidas para virar escravo de seus bens. Trabalhava quase 10 horas por dia, durante três horas era escravo da prestação do apartamento, durante duas horas era escravo do carro, mais duas horas de escravidão à prestação dos móveis, celular, aparelho de eletrodoméstico, condomínio, TV a cabo e sobravam duas horas extras para ele trabalhar para o lazer. Na verdade um lazer que era quase um trabalho, programado nos mínimos detalhes, nos locais tumultuados onde as pessoas se estressavam mais do que descansavam, por estarem todas presas na mesma indústria de turismo que exportava engarrafamentos, falta d´água, tumulto de gente

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nos locais onde se ia “descansar”. Na alma ele sentia um imenso vazio, uma tremenda falta de sentido no viver, ele não fruía a vida que fluía. Ana tinha uma vida sem graça, sem cor, sem brilho, sem poesia, sem sentido. Acumulava alguns bens naquela gerência e fazia dívidas que a tornavam escrava de seus bens. Trabalhava cerca de 10 horas por dia, durante três horas era escrava da prestação do apartamento, durante duas horas era escrava da prestação da casa de campo, mais duas horas de escravidão ao dízimo da igreja, móveis, celular, eletrodomésticos, roupas de grife e sobravam duas horas para ela trabalhar extra e ter uma “reserva”. Lazer, não tinha. Sua dedicação a uma seita seca de corpo, que obscurecia a alma e negava os sentidos, não deixava. Sua vida passava na terra à espera de uma vida no além túmulo, prometida por um pastor 171, que enriquecia enganando os fiéis com uma pregação neurótica de deformação da vida. Passavam 10 horas juntos por dia. Mais tempo do que passavam com seus familiares, mais tempo que Vinícius passava com seus amigos, mais tempo do que Ana passava na igreja. Ana era chefe dele e ambos comandavam todo um setor de funcionários, sombrios, tristonhos, sempre preocupados em não perder o emprego e em ter o suficiente para continuar a viverem escravizados por seus bens. Nunca se dando conta de que trabalhavam amordaçados aos bens 100


que em tese deveriam melhorar a vida deles, mas que, no fundo, serviam para fazer com que eles mais tempo perdessem num trabalho de números, glosas, retificações que se renovava mês a mês, tudo sempre sem nenhum sentido. Acostumaramse a presença um do outro. Ana era linda. Ainda que fosse evangélica, e que sua religião mortificasse os sentidos, nos seus vestidos longos ainda reverberava alguma alegria e uma ponta de sensualidade. Sempre muito bem vestida, não sorria, nem brincava muito. A sequidão de sua vida amorosa gerava uma mulher que, tirando as ordens que proferia, pouco falava, quase não brincava e nem sorria. No início ela sentiu-se atraída por ele e, quase sem sentir, por muitas vezes deixou-se ficar olhando para ele, examinando o corpo, o peito forte, os braços torneados. Com o tempo, ela mesmo começou a notar esta atração e a reprimiu. Enterrou no fundo da alma, nada mais demonstrou, embora por dentro uma fagulha ainda vivesse muito próxima daquele palheiro que é uma mulher mal amada. Vinícius era mais moleque, ainda sorria e brincava, embora ficasse sério ao lado dela. A beleza dela na verdade o assustava e inibia. Junto a uma beleza de Atenas, o talhe sério, a forma rígida de ser e executar o serviço da chefe fez com que ele reprimisse o desejo e olhasse para os olhos dela escondendo a atração, quando antes olhava para o início dos seios que discretamente sobravam dos vestidos. Dias iguais, horas iguais. Vidas comuns. Estressado, 101


mortificado, Vinícius num verão qualquer não fez como nas outras férias. Não foi para as praias badaladas da moda, nem para as cidades de veraneio cheias. Em crise, cansado daquela vida, durante vinte dias exilou-se numa pequena casinhola de uma cidadezinha qualquer, levou os velhos CDs do Clube da Esquina e de Bossa Nova, que durante a adolescência gostara tanto, e que, com a juventude, envergonhado, largara de lado para se entregar à moda. Era agora um homem da moda, um homem mais pensamentos próprios, que para estar de bem com os outros não mais se encontrará. Àquela música que antes fizera tanto sentido, que o fazia refletir na vida e buscar um caminho, um canto, um refúgio, um sentido humano, fora abandonada junto com o sentido que ele antes pensara dar a existência. Neste mês, lendo seu xará, o Poetinha amadorado, Vinícius de Moraes, escutando suas músicas, mais as belas músicas existencialistas do Clube da Esquina, começou a tomar pé de uma nova vida. Precisava renascer, precisava recomeçar. Retomar seus projetos, procurar algo que desse sentido a sua existência. Precisava trabalhar, é verdade, pois necessitava comer, mas trabalharia menos e agora se dava conta, por menos coisas. Pela primeira vez vira que ficara escravo das coisas e de coisas que não valiam à pena, pois não contavam nem como alegria nem como dor. Ser humano e que conta, e destes, ele havia realmente se afastado. Pois a vida yuppie que levava nada mais era do que 102


estar só no meio da multidão. Que realmente importava? Uma coisa ele sabia. Ana importava. Ele a amava desde a primeira vez que a vira e todos estes anos reprimira este amor para não comprometer seu trabalho e sua posição. Agora, agora FODA-SE! Que se danem os comentários jocosos, a possibilidade de perder o cargo e procurar outro emprego, até o medo de ser rejeitado. Ele iria recomeçar sua vida, e a primeira coisa que faria seria recuperar estes sete anos jogados fora, deixando aquela mulher maravilhosa, Atenas rediviva murchar numa seita escrota que mortificava moralisticamente a carne. Ana sentira falta dele estes vinte dias de férias. Na verdade ela se acostumara com ele. A presença sem contato físico. A dissimulação de ambos do interesse mútuo de um pelo outro. As discussões de trabalho intermináveis que substituíam palavras simples como “você é linda”, ou “eu te amo”. E eis que ele retorna. Mudado, vestido em mangas de camisa, em lugar do conservador terno com gravata. Barba mal-feita, expressão vagabunda no olhar. Ao chegar ela o cumprimenta com um bom dia e recebe de volta um “bom dia, você está mais linda do que nunca hoje”, em alto e bom som, que surpreendeu toda o escritório e provocou os primeiros comentários maliciosos. Durante o dia ele nunca desviou o olhar dela. Olhava profundamente nos olhos. Quando ela estava próxima, de forma intensa olhava para o vão dos seios e, quando ela se 103


virava para sair, sentia-se envolvida com o olhar dele, que beliscava a bunda carnuda, redonda e dura dela. Ela sentiase meio perdida por aquele assédio calado que ela sempre quis sofrer, mas que agora, de certa maneira a ofendia. Vinícius estava em plena caça. E ela acuada, não sabia como agir. Durante os últimos sete anos, tivera só um namorado da igreja, quatro anos de amofinação de um velho fanático que sofria de ejaculação precoce e com a qual chegou a casar com a bênção conservadora e neurótica de sua família. Só a religião fez com que aquela situação durasse quatro anos, ao fim deles, mais marcada e neurotizada, sem nunca ter gozado, sem saber o que era um orgasmo, mais medo ainda tinha dos homens. Mas Vinícius era algo que a envolvia. Ela sempre quisera no fundo que ele a cercasse, a cortejasse, a envolvesse, o olhar de menino pedinte, o desleixo negligente que se observava nele, mesmo quando arrumado, prometiam a ela que se fosse ele, e não o obreiro brocha, seu homem, ela teria sido feliz. Quase no sim do expediente chegam flores, belas e apaixonantes rosas vermelhas, que causaram alvoroço no serviço e que surpreenderam e gelaram a espinha dela. Num cartão muito bonito, bem escolhido, com motivos florais, havia apenas duas palavras: Te Amo, sem assinatura. Ela automaticamente olhou para ele. Não poderia ser outro, era óbvio. Sufocada, esteve por chorar, desarmada e sem saber o que fazer. Neste mesmo dia teria que novamente se reunir com 104


ele para traçarem algumas metas, agora que ele voltara das férias e ela temia e desejava isto. O que aconteceria? Pensava ela... E sua cabeça dava voltas e sua vista se turvava. As pernas bambearam e ela temeu desfalecer. E, se não fosse ele??? Se fosse outro... Aí seria pior... Ela temia, mas queria que fosse ele. Na verdade, nem sabia bem o que podia acontecer. O tempo passou, todos foram embora, no andar vazio, portas fechadas, só permaneceram ambos, como sempre. Só que, de todas as outras vezes, desejos negados, não estavam ali um homem e uma mulher, mais um chefe e uma gerente. Desta vez não. Chegou a hora da reunião, eles se fecharam na pequena sala de Ana, Vinícius trancou a porta para que ela não fosse aberta por fora. Antes que ela começasse a falar, Vinícius, de forma surpreendente, ligou um pequeno aparelho sonoro que ele mesmo trouxera e coloca Valsinha, música que ela desconhecia, mas que agora era o enredo daquela paixão: “Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar, Olho de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar (...)” De forma surpreendente e abrupta, ele acolheu o corpo macio dela no seu e começou a dançar a música como se fosse valsa. Ana protestou, não quis. Vinícius estava sendo até um 105


pouco rude, resolvido, apertou a mão dela e não aceitou recusa e ela foi dançando. Primeiro dura, protestando, depois se largando em passos harmônicos com ele, onde a cabeça dela se afundava no ombro dele e as coxas de ambos se entrelaçavam, fazendo com que um rio que há muito fora represado jorrasse como tormenta em busca do mar dela, da saída, da comunicação mais íntima do corpo dela. Ela ainda mais ficou assustada, mais a força daquele desejo terrivelmente era mais forte do que ela imaginara. O beijo primeiro foi conseqüência, doce, intenso, profundo, línguas de fogo enroladas, pernas enroscadas, corpos se roçando, dançando, no ritmo da música sem que eles percebessem. Ela murmurou: – As rosas, o cartão... – Eu sempre te amei – Ele respondeu. Colheu nos braços e a sentou na mesa de reunião. Aquilo a reanimou a lutar... No trabalho... Ela sabia o que ele queria... Estava quase desfalecida, semi-entregue, mas a parte neurótica dela não queria a parte são aflorando assim... E o emprego? Sua moral? Seu pecado em estar ali, com aquele homem agarrando-se a ela e posicionando o corpo dele entre as coxas dela. Com as mãos ela tentou empurrá-lo. Vinícius estava resoluto. Não a machucaria, não forçaria, não seria um estupro; mas sabia, no fundo, que aquela mulher reprimida, tanto tempo negada em sua essência de mulher, precisaria de luta, de calor do corpo para aflorar, florescer e se entregar. 106


Era uma luta não declarada. Sem golpes fortes. O corpo dele no meio das pernas dela, as mãos dela o empurrando, a boca fechada dela, a boca dele beijando o pescoço, mordiscando a orelha, palavras doces de amor, mordida na nuca, e aquela luta ia virando um jogo, tanto que, sem que percebesse, Ana o expulsava com as mãos e o enlaçava com as pernas. Até que os braços dela que antes expulsaram, agora acariciavam o cabelo daquele homem tão amado neste momento mais do que esperado. As bocas novamente unidas perderam-se em dezenas de beijos. Sentada, com as pernas trançadas nele, ela nem mais parecia aquela crentezinha reprimida; pelo contrário, uma tigresa saltava de dentro de seu peito e ia tomando conta de seus atos. Sentia sua xoxota molhada, jorrando, esperando ser comida, pela primeira vez com competência, e ansiava. Vinícius, de forma áspera, mais carinhosa, já subira o vestido, e baixara as alças dele. Brincava nos mamilos dela, beijavaos, sugava, como frutas do pé tanto tempo desejadas e agora finalmente colhidas. Ela quase chorava de prazer e antevia no volume da calça aquele pau que vira já em seus sonhos censurados, roçando, pedindo para ser libertado. Surpreendentemente ela abriu a calça e libertou o pau dele, com ele entre suas mãos ela colocou a calcinha de lado e o apontou para a entrada da grutinha. Muito molhada, num só gesto e ato, abrupto, intenso, único, ele a penetrou de uma única vez. Ela não sentiu dor, estava tomada de prazer. 107


Apoiada na mesa, na altura certa para ser bem comida, os movimentos intensos dele, de entrar e sair, cheio de desejo, mais os beijos profundos, as mordidas, as chupadas, iam levando Ana a caminhos que antes ela desconhecera. Perdera o medo, gemia, pela primeira vez na vida um homem a fazia gemer, e a intensidade do prazer que fazia seu corpo tremer já a levara a gritar, nem sequer questionaram se do lado de fora da sala alguém seria capaz de ouvi-los. Sem cuidados, sem peias, gritaram gozaram juntos. Ela arranhou as costas dele, ele inundou a bocetinha dela. Beijaram-se. Confidenciaram-se a paixão secreta e foram dormir juntos nesta noite, na casa dele. A vida recomeçou, no dia seguinte e nos outros, diferentes, mais contente, mais intensa, com outro sentido. O sentido do prazer, o sentido do amor, de uma mulher que se realizava com um ser amado, com este ser amado que encontrava nesta mulher um refúgio e um caminho. O pastor da Seita Neuróticos Inimigos do Corpo perdeu uma fiel, posto que Ana aprendera a gozar com todo o desespero e força por todos os poros e buracos de seu ser, enquanto Vinícius recuperara um sentido na sua vida. Um dava sustento para a alegria do outro, fodiam todo o tempo, em todos os lugares possíveis, se amavam de forma obscena, proibida e maravilhosa. Como na música do grande poeta: “E o mundo compreendeu, e o dia amanheceu em paz”. 108



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