Amores Urbanos – Robson Assis
Amores Urbanos Robson Assis
Contos (2008 – 2009) 1
Amores Urbanos – Robson Assis
Estou tomando a última xícara de café da madrugada de domingo para segunda. Seria poético, se não fosse trágico. Num poço de neurose sem fundo vivo meu último ano na casa dos vinte. Aqui está um pouco de mim e do que ouvi dizer sobre a vida. O que era pra ser um livro de contos pra vender na rua, quando a situação financeira melhorasse e eu pudesse bancar uma gráfica. Estava apenas esperando o melhor momento para publicar isso. Ainda não encontrei. É tudo ficção até que alguém prove o contrário. Robson Assis robsonc.assis@gmail.com 2
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A Nova Ordem do Caos ou "O dia em que João saiu de casa com uma 12 no punho" Ele descia a rua a milhão. Estava impregnado em seus olhos, claro como as brasas do inferno. A vingança era sua única sede. O ódio sua única verdade. Caminhava sobre as luzes dos postes e pessoas que devagar abriam suas janelas para ver o que acontecia lá fora. Aquele barulho, aquela agitação. Quem será o fulano dessa vez? Carregava consigo uma arma de pesado calibre numa das mãos, no outro, o corpo de um policial já desfigurado de tanto apanhar. Ele não sabia onde tudo aquilo iria acabar, talvez ele nem quisesse que tudo aquilo tivesse fim. Descia, acelerado, solitário e raivoso. Descia. Cansado da polícia, cansado da ordem que os homens de farda colocavam no seu bairro, a ordem fajuta que causava a morte de homens inocentes em detrimento de um grupo seleto de traficantes que sustentavam estatísticas como a mortalidade infantil e os índices de criminalidade. Ao pensar nisto, suas veias do rosto saltavam e pareciam linhas de trem furiosas que cortavam sua face de ponta a ponta. Suor, sangue, e dessa vez sem lágrimas, pelo menos de sua parte. Mais alguns metros à frente refletiu sobre o que estava fazendo. Parou, encostou num carro, largou a arma de canto. Esqueceu por alguns momentos o motivo de toda a cena miserável que lhe rodeava. Pôs a mão no rosto, para não mais enxergar a rua, nem a enxurrada de água que descia junto à guia. Ouviu barulho de carros, música. Quatro garotos desciam devagar com um Fusca, tocando uma música qualquer indecente e festiva, como as músicas de hoje o são. Colocou a mão sobre os ouvidos, não queria voltar. Olhou para a entrada estreita da favela, onde tinha parado. Outros garotos fumavam algo escondido num canto e sussurravam com medo. Largou seus braços, se livrou da água que batia violentamente contra sua face. Abordou o Fusca. Os garotos estranharam, mas pararam o carro. Um deles apontou uma faca. Quando viu o cano duplo, deixou cair o artefato entre os dedos. Abriu a porta de um dos lados. Disse um simples e furioso: Saiam! Os quatro, possivelmente menores de idade corriam como ratos pelas frestas escuras da favela. Olhou por dentro do carro. Viu que o som era de última geração, desses mais caros do que muitos daqueles barracos de palafita que estava acostumado a ver. Deu o primeiro tiro. O capô do carro, aberto, também condenava um alto-falante potente, destruído pelo segundo tiro. Soltou o freio de mão e deixou o carro descer. A despeito da cena que premeditava - ver o dito descer até o fim da rua, passar o cruzamento e ter um fim trágico, com sorte até explosivo - o automóvel desalinhado bateu no terceiro poste, após passar raspando um Golf estacionado na frente de um bar fechado. Deu um chute na cara do policial que carregava e prosseguiu. Inventava orações hereges durante o trajeto: "Deus dos fortes e justos, me dá alívio na morte de meus inimigos, me dá esperança na tragédia anunciada daqueles que querem o mal da humanidade. Me curvo perante sua bondade e apelo para que não tenha pena de meus adversários e os deixe padecer no conforto do esquecimento eterno. Pela morte cruel, indigna e pela putrefação das almas destes idiotas, Amém". Faltava algo perto de 300 metros para acabar a ladeira, viu uma travessa escura, a qual já havia morado quando menor, com seus pais. O lugar parecia uma ilha perdida no meio do inferno. Ali até gatos e cachorros viviam em harmonia, velhos sentavam na rua até tarde. Viu uma criança que brincava na garagem de casa, despreocupada, sem pensar em maldades alheias, como se estivesse vigiada por uma equipe de seguranças treinados pela CIA. E o fato de haver gente no mundo preocupada com maldade e cercada 24 horas diárias por homens armados e vidros blindados o trazia de volta à sua descomunal condição de monstro. Ao olhar pra frente, o pesadelo se fez real. Cerca de oito viaturas fechavam a rua que tinha apenas aquela saída. As travessas e ruazinhas não levavam ao mesmo local. Grande parte delas era sem saída. Um policial fala em um megafone, pede para que se entregue. Ele para. Olha pra trás, vê algumas luzes acesas, janelas entreabertas e olhos escondidos na escuridão daquela noite chuvosa. Olha para frente e larga o corpo por alguns instantes. 3
Amores Urbanos – Robson Assis A essa altura o corpo do policial parecia criar um rastro de gosma no chão. Desistiu do corpo que encarava como seu refém. Correu para trás de um carro. Alguns policiais que já corriam na frente foram atigidos por seus primeiros tiros. Os outros se seguravam atrás das portas de suas viaturas, com receio do maluco que tinha uma doze na mão. Abriu pelo quebra-vento aquele Gol 91, desvirou o volante, respirou. Tirou da cintura a Automática que havia levado. Soltou o freio de mão. O carro descia fielmente alinhado, como esperava. Ele, atrás, corria, gritava e atirava nos policiais que revidavam sobre o Gol, seu escudo. A essa hora, ele já devia saber no que havia se metido. Foi quando tomou um tiro no ombro e provou seu sangue pela primeira vez. Do cartucho de sua automática, saíram os tiros que derrubaram outros três policiais. As baixas da corporação já eram tantas que ele já nem sentia seu tiro, satisfeito do que estava fazendo, gargalhava sob um céu negro e pouco poético da periferia de São Paulo. Um homem cansado não consegue esperar por um outro dia de sossego. Fizeram de sua vida uma merda, o caos declarado, a guerra fria, ninguém se mexe, ninguém fala, ninguém se levanta. Era só mais um dia comum para ele. Mas naquele dia o senso comum lhe disse que seus ossos não suportariam sequer mais um dia sem poder provar a si mesmo a fragilidade do mundo e a força dos humanos comuns. Seu pesadelo terminou com 16 tiros no peito e um corpo que definhava em outra cova num cemitério da periferia paulistana. Os jornais do dia seguinte o entregavam como maluco. Alguns faziam referências a Serial Killers, filmes sobre psicopatas. Michael Meyers, Conspiração, Sociopatia, palavras que não faltaram nos periódicos daquela manhã cinzenta. Houve páginas de dedicação aos heróis que salvaram o mundo daquele terrorista e homenagem com presença do prefeito da cidade, cavalaria e salva de tiros. No outro dia de noite a biqueira pegava fogo, moleques continuavam a esmolar e furtar bolsas de tiazinhas para sustentar seus vícios, fogos de artifício durante o dia todo diziam que a quebrada tava fervendo, o estoque de entorpecentes na boca de fumo estava cheio. O contra-cheque da PM estava pronto, a parte deles feita. Policiais cretinos rezavam de noite para que ninguém mais se revoltavasse contra a ordem que eles mesmos estabeleceram. Nosso João só queria justiça.
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A Vida Continua Péu caminha de lá pra cá no centro movimentado da cidade. É só passar pelo Anhangabaú ao entardecer, naquele horário em que os office-boys se encontram com os vendedores de loja e carros escuros blindados para vê-lo passar com um saco de cola na mão, se der sorte no dia, ele até dorme num lugar coberto, com seu saquinho do lado, dividindo espaço com as baratas e o mau cheiro do centro velho de São Paulo. Sangue nos olhos desde recém-nascido, Péu não é de deixar qualquer oportunidade passar batido. É dia de show na Tiradentes, milhares de pessoas passam em direção ao local, portando garrafas de bebida, com os mais diversos estilos e cores, malandragens e odores. Ele espera embaixo do viaduto. Cinco garotos e uma garota passam na frente, se destacando dos outros três atrás. Péu cola na banca que restou pra trás e dá a multa: - Vai, boyzão, solta a moeda pra nós aí. - E aí, mano, suave? 4
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Nunca haviam trocado idéia com ele nestas horas. Geralmente o "boyzão" se caga, dá duas notas de 10, o relógio e sai andando. Péu fica surpreso com a idéia de um cara vir falar algo além de "calma, fica calmo, não precisa machucar ninguém". - Suave o que, tiozão? Solta o bagulho - Péu tenta outra vez intimidar - Então, mano, a gente não tem dinheiro não, tio, tamo indo pro show lá que é de graça. - É memo, e se achar? - ô, truta, a gente veio lá do Jd. Elba na leste, tamo osso memo. - Pode cre, mas e os moleque que passaram aí, tem nada também? - Tem nada, mano, compramos a bebida e viemos. - Pode cre, moleque, constou a idéia, vocês são pela ordem. - Firmeza então. - Mas aí, deixa um gole pra nós desse esquema aí? Péu pega uma garrafa 600ml que trazia consigo e enche da bebida dos meninos. Os outros três, mais adeptos a fazer amizades com alheios e anônimos, param pra conversar com Péu e abandonam o outro grupo que esperava mais à frente, destacado. Contam de onde vieram, que eram trabalhadores e também suavam frio com a polícia, mas por outro motivo, portavam entorpecentes e tapa da polícia de graça ninguém gostava. O grupo caminha até um dos bancos do Vale e se sentam junto. Conversam, bebem, fumam e começam a dar risada sobre os transeuntes e suas roupas esquisitas. Péu se sentia entre amigos, fato este que não sabia o que era desde 1998, quando o destino lhe tirou de maneira trágica o Bequinha, amigo de infância que, anos depois, ficou sabendo ser seu irmão de sangue por conta das peripécias de sua mãe. Diz sobre como veio parar na rua para assaltar playboys desse jeito, conta sobre a outra vida que tinha quando morava num barraco 2x2 na zona oeste e o que aconteceu quando incendiaram a favela em que morava, os primeiros dias na rua, o sopão, a caminhada até o centro e a vida complicada e cruel de hoje. Conta aos garotos a história de sua vida, desabafa toda sua raiva aos novos amigos. Logo terminam a garrafa de conhaque bruta que lhes descia o estômago em rasgos absurdos pela garganta. Já relativamente bem consigo mesmo por culpa da bebida, os garotos decidem ir embora para o show que ainda estava longe de começar, mas iriam encontrar seus outros amigos. Se despedem de Péu, que os cumprimenta e agradece por aquela meia hora em que estiveram perto e conseguiram o deixar com a mente distante de tudo o que vivia. - Firmeza, Péu, demorou, mano, a gente se tromba ainda por aí, cola lá no show?! - Que nada, boy. A vida continua por aqui, vou ficar no aguardo da vítima.
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O Opala Era outro dia como estas terças-feiras comuns. Renato tinha acabado de chegar do trabalho e estava a trocar idéia com os seus, no bar do Maurinho, ali mesmo, na vila. Dizia algo sobre como a Veraneio Cinza tinha passado quase tirando tinta de seu carro, com dois manos do lado de dentro. Imaginou em uma fração de segundos como estavam se sentindo aqueles dois, talvez sardinhas enlatadas fossem melhor tratadas e continuou a divagação sobre o que aconteceria se o carro amassasse. - Imagina se rala... Mano, sei lá, na hora é foda, o sangue sobe, acho que vou atrás. O Opalão era azul, com quase tudo original, a não ser o som que Tinho, como Renato era conhecido, havia instalado pra "manter o peso da caranga", segundo ele próprio. Pintura metálica, subwoofer, módulo de seis 5
Amores Urbanos – Robson Assis canais, tela de DVD. Se orgulhava até hoje pelo carro estar no principal cartaz daquela oficina de Tuning do centro da cidade. Tinho era um aficcionado pelo carro. Vivia por ele, trabalhava e honrava todas as suas dívidas, exceto se um acaso tornasse o veículo alvo da degradação do tempo. E todos os seis anos em que estava com o carro, jamais deixara sequer a lâmpada da seta quebrada por mais de dois dias. - Desce uma gelada que eu tô tenso, pede o malandro. De praxe, sai por instantes do bar, liga o som e se serve de um copo. Estava tocando aquele programa de rádio que todo mundo do bairro ouvia, então ele ajudava a transmitir aumentando o volume para que até as ruas mais distantes da vila pudessem escutar. Volta balbuciando palavras das músicas de Tupac e gesticulava aos amigos, como se fosse o próprio. Três cervejas e Nelsinho dichavava a história do Corinthians por pelo menos 15 minutos. Dizia sobre como ele foi parar na segunda divisão, a fraqueza da diretoria até a falta de firmeza da delegação. Tinho ouvia comovido a história de seu time do coração e trocava poucas palavras com o malandro, de tanta atenção que prestava ao que ouvia. Havia esquecido dos policiais, quando dois PM's entram pela porta: - Vai, mão pra cima, filho da puta, mão pra cima, vagabundo! A primeira frase do PM depois da geral e das perguntas-procedimento nos seis malandros que estavam no bar foi: "de quem que é essa porra desse carro aqui fora?". Tinho levanta a mão e a cabeça, trêmulo, mas de certa forma, acostumado com essa abordagem policial. Após vários gritos do PM, o primeiro tapa na cara. Tinho novamente abaixa a cabeça e ouve, sem negar nada do que lhe era questionado. O tempo foi passando, 20, 30 minutos e o policial "embarreirando", palavra com a qual ele contaria o fato na sexta-feira, quando estivesse no rolê com seus parceiros. O fardado caminhava a passos curtos, com um discurso sobre a moral e respeito, que onde eles moravam era um lixo e isso e aquilo, eram "todos vagabundos" e mais. Às vezes parava na frente de um dos suspeitos-de-crime-algum e "pedia" para levantar a cabeça, mandava outra sessão de descarrego de palavras chulas. Seguia o enquadro. Chamou então os malandros pra fora do bar e pediu para que Maurinho "gentilmente" fechasse as portas àquela hora. Encostados no muro, de braços pra trás, na rua relativamente vazia do boteco, os fulanos, entre eles Tinho, escutavam mais asneiras do PM. "Puta porco insuportável" era o que rondava a mente de todos. A Veraneio cinza estava parada, dois homens, um em pé e um de dentro do carro, faziam a contenção, enquanto o vacilão do PM, já menos tenso, andou perto do Opala de Tinho e, sem querer esbarrou o cassetete no retrovisor. - Não, caral..! - Sai espontâneo o grito de Tinho - Que foi, ladrão, você é maluco? - peita o policial, de encontro ao rapaz. - Nada mano, é que... - Mano? Você acha que tá falando com quem? Algumas cacetadas e gemidos de dor fizeram um dos PM's na Veraneio levantar e ir ajudar o outro policial a conter a ira. Uma daquelas cenas de filme em que os policias brincam de bom e mau. Tinho ainda estava no chão quando o policial manda os outros irem embora correndo, "que aquele ali não ia conseguir correr mesmo". Sentam o malandro de frente pro carro e quebram os dois retrovisores, lanternas traseiras e furam o pneu do carro. - Tá liberado, filho da puta. O rapaz, sentado no chão da calçada fria da vila, vê seu carro destruído pelos verdadeiros vândalos da ordem social. Além do estrago feito pela vistoria atrás de entorpecentes e armas, agora prejuízos concretos. Ele pega 6
Amores Urbanos – Robson Assis então, do chão, um caco de vidros caído de seu possante e joga na rua, em forma de lamentos. Pensou com seus botões em como seria melhor se eles tivessem apenas ralado seu carro.
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Os Primeiros Dias da Primavera A garotinha segura uma pomba branca que tenta a todo custo escapar de suas mãos. Não entende o que é um enterro, não entende que sua mãe está dentro daquele caixão e que jamais voltará. Morta em tiroteio entre bandidos e policiais: lugar errado, hora errada, a história de suas vidas. O cemitério São Luis cheirava mal como os outros lugares. O padre discursa, sua família pequena chora exaustivamente ao lado do caixão, jogam flores, se negam a acreditar. A vida é dura para quem nasce aqui. Um dia ela vai entender quando ver que existe gente de verdade que tem aquele iate da novela, compra roupas em lojas mil vezes mais caras que o barraco em que ela vive, às vezes mais caras que sua própria vida, é o que parece sugerir o mundo. A vida real falha com a gente. Dois funcionários se encarregam de destinar o caixão ao seu devido buraco, vizinho de outros corpos e histórias, algumas inocentes, outras tão culpadas quanto a própria morte. Seu pai joga uma flor e ajoelha, aos prantos, a garotinha ainda não entende nada até que começam a jogar terra sobre o leito final de sua mãe. Ela vai até perto e olha para o pai procurando explicação. As primeiras lágrimas saem de seus olhos como o ácido sobre a rosa mais pura. Nunca havia pensado sobre a morte, sobre a existência ou a falta dela. Talvez a vida fosse outra dali pra frente. A terra cobria cada vez mais o caixão de madeira de sua mãe. Chorava insuportavelmente durante um sol negro de um dos primeiros dias da primavera. Só então soltou sem jeito a pomba branca, que voou livre sobre o céu azul esperança do Parque Santo Antônio.
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Os Incautos do Centro Velho I Na rua é tudo tão complicado. Pra domir, o de sempre. Cobertor que ganhei de meu tio Mané, em 2001. Herança, por assim dizer. Eu devia ter uns 13 anos. Já perdi as contas. Não vejo muito futuro na minha frente. Não sou o bacana que pensa em aplicar em fundos de investimento e levar a vida com a aposentadoria aos 60 anos. Eu não faço idéia do que significa investir. Mas tava na capa do jornal algo sobre isso. Leio sempre na banca a maravilha do mundo em que não participo. Meu tio Mané sempre se revoltava: "Covardes", ele dizia puto da vida. E ainda terminava "Neco, a gente é pobre, miserável, você sabe disso. Mas vou te contar, tem dias que, mesmo na rua, não me sinto mais solitário do que era quando tinha uma vida média". Nunca entendi direito as coisas que ele dizia. Morreu no frio. Mas não de frio. Acho que era novembro, o shopping Light já estava com iluminação de natal. Terça-feira o pessoal daquela Kombi vinha dar sopa perto do escadão do Viaduto do Chá. Lembro como se fosse um sonho estranho. Dessa vez vieram com eles um pessoal diferente com uma câmera, uns seis deles. Um povo assustado, nem desceram da Kombi, sequer abriram a porta. Seu Nelson veio conversar com a gente. Disse que eram de uma faculdade, estudavam jornalismo, estavam fazendo uma reportagem sobre a distribuição de comida nas ruas. De longe, e com a normal cara de insatisfeito, Mané ouvia tudo. A palavra "câmera", para ele era um trauma, dizia. Eram todos uns mentirosos, falsos, hipócritas. Naquela época eu nem imaginava o que era ser hipócrita. Anos depois fiquei sabendo que meu tio apareceu uma vez na televisão, quando foi espancado por um bando 7
Amores Urbanos – Robson Assis de bacanas em uma travessa da Paulista, três ou quatro anos antes de morrer. Os boys foram soltos, ele não recebeu nem médico. Apareceu ao vivo, todo arrebentado em pleno meio-dia. Foi tido como derrotado pela galera do Anhangabaú. Como se houvesse qualquer vencedor entre nós. - Mas eles não vão falar nada comigo não, disse meu tio. - Po, Mané, calma, eles são gente fina, vieram na boa, estão com a gente. - É o cacete, vamo ver se alguém desce com câmera aqui, disse já gritando e apontando para a Van, poucos metros à frente. - Tá bom, deixa pra lá, eu falo com eles, seu Nelson finalizava a idéia. De dentro do carro, Maurinho, do terceiro ano, provavelmente ouvia Mané dizendo tudo. Esse moleque era maluco. Depois fiquei sabendo, o maluco era lá do Brooklyn. Mas da parte boa, sabe. Abriu a porta e fingia estar apenas ajeitando a câmera, mesmo que todo mundo já tivesse visto a luz vermelha acesa. Mané apontava de longe e ainda dava pra ouvir os gritos dos outros. "Fecha a porta, Mau, que merda!". Meu tio correu em disparda pra cima do moleque. Tirou a câmera da mão dele, afastou todo mundo. Deitou o fulano no chão e distribuiu. Jogou a câmera com força umas 3 vezes na cara, o garotão ensanguentado, já tinha parado de reagir há um bom tempo. Os gêmeos, que estavam segurando o pessoal da sopa, soltaram, apavorados. Seguraram os braços de meu tio, que chorava e tremia muito, não se sabe o porquê. Mané voltou a correr quando uma viatura parou em cima do viaduto e viu a confusão. Os policiais desciam a milhão os degraus, pulando lances de escada, pareciam uns animais caçando uma presa. Só os mais velhos ficaram no local e ainda assim, foram agredidos até Seu Nelson dizer que eles não tinham nada a ver e comentar sobre meu tio. Eu, que já tinha corrido, fingia dormir do lado oposto de onde estava o tumulto, mas conseguia ver tudo. Outra vez os policiais farejaram sua caça e foram atrás. O camburão deu a volta e fechou a rua na saída do terminal bandeira. Alguns dizem ter visto meu tio com algemas, outros dizem que ele apanhou como um cão e havia tomado um tiro nas costas. Bem que eu havia ouvido uns disparos no dia. A única certeza que tive ao acordar no outro dia de manhã foi a de que jamais veria meu tio novamente. Mas algo dele parece ainda estar em mim. Talvez o espírito de lutar pelo que temos, mesmo sem termos nada, é o que me faz sobreviver dia após dia, sozinho, no inferno do centro de São Paulo.
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Um Dia em Comum com o Resto do Mundo São quatro e trinta e cinco da manhã. Meus olhos quase não conseguem abrir, mas ninguém me mandou ficar acordado até tarde. Com aquele monte de policial na rua não dava pra dormir direito. Certeza que subiam a avenida principal na captura de alguém. O problema era a gritaria dentro dos becos, os avisos e o silêncio que se fazia quando se ouvia vozes de PMs. Fiquei da laje vendo tudo, enquanto Aninha, minha esposa, já na cama, reclamava. E agora essa de acordar, tudo bem. Naquele momento, desligar o despertador parece a tarefa mais árdua do mundo, mas quando chega a hora do rush a gente esquece disso e percebe que tem coisa pior para enfrentar. Finalmente consigo me sentar na cama. No disco que coloco no rádio, um Herbert Viana mais jovem e esperançoso canta: "Da cama pro banho, do banho pra sala, o sono persiste, o sol já não tarda, a vida insiste em seguir um velho ritual que sempre segue a tantos outros, o mesmo pão comido aos poucos", quando ouço esse trecho escovando os dentes e me olhando no espelho, pergunto a mim mesmo se o pessoal da rádio pensa nessas coisas.
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Amores Urbanos – Robson Assis São cinco e dois da manhã quando coloco os dois pés para fora de casa e desço a Principal, para pegar o primeiro ônibus da viagem. Nesta caminhada passo por algumas marcas de pneu no asfalto e lembro da polícia do dia anterior. Até que hora teriam ficado infernizando? Mão no bolso e sigo em frente. Mais lá embaixo, vejo a fila quase vazia de ônibus e três garotos esperando o ônibus sentido bairro, dormindo cobertos com suas próprias blusas com marcas de skate que até hoje, vergonhosamente desconheço. Eles entram em um carro, talvez o primeiro do dia para aqueles lados. Eu continuo de pé, na fila. - Moço, que horas são, por favor? - Me pergunta uma senhora de óculos e voz doce. - Cinco e quarenta, senhora. - Obrigado, viu. Tá uma demora esses ônibus, né? É lei. Se você informar a hora para uma tiazinha e vocês estiverem em filas, salas de espera ou dentro de elevadores, ela vai emendar alguma conversa. Dando um pouco mais de corda, descobri que a senhora estava indo ao médico e pretendia chegar bem cedo. Disse sobre suas filhas, seus netos, mostrou fotos. Fui conversando com ela até o Hospital do Servidor Público, no final da Ibirapuera. Depois disso sentou um fulano que dormiu até às seis e cinquenta, quando chegamos no ponto final. Tive que acordar o cara. Isso, depois de ser acordado por outro que do banco de trás me deu dois tapinhas nas costas, indicando o ponto de chegada. Desço a Praça da Sé tranquilamente, ainda me dá tempo de parar no boteco do Barba para tomar um café, comprar um maço de cigarros, trocar duas palavras sobre a quebra da invencibilidade do Corinthians na Série B. Chego no prédio dez minutos antes de meu horário. Faço uma brincadeira com Dona Ana, secretária, e vou para a sala. O dia passa seco. Almoço no Barba, pra variar. Na quarta-feira ele faz a melhor feijuca do centro de São Paulo. Relatórios, arquivos, faço de tudo nessa empresa. Tenho até dois cargos, mas, óbvio, como em qualquer organização de cunho capitalista, recebo apenas por um deles. Já são quatro e vinte e daqui a pouco volto para o ponto que me entregou aqui pouco depois do sol nascer. Acho que não existe nada mais contrastante do que ver o pôr-do-sol de cima do viaduto do chá. É uma cena lindíssima, gostaria que alguém fotografasse um dia. Ao mesmo tempo em que correm contra a morte os meninos com o saco de cola na mão e as meninas que limpam vidros de carro atrás de trocados. Apertei um pouco o passo, cheguei no terminal Às seis da tarde.A fila já ganhava proporções que poucos podem imaginar. Duas, três filas de espera. Os ônibus chegam, lotam e saem. As filas só aumentam. As tiazinhas pensam no absurdo que é pegar um ônibus, várias pessoas conversam e sorriem, como se aquilo fosse bonito, ou realmente engraçado. Estranho jeito de levar a vida esse tipo de gente, eu acho. Não consegue entrar no ônibus porque está muito lotado, sorri. É maltratado pela balconista do banco, sorri. Vai entender. Dessa vez, talvez pelo horário, não consigo lugar para sentar. Vou ao lado da porta, entre a escada de saída e o corredor. Ali é tranquilo. É impressionante como todos os dias eu acho que venho no coleitov mais lotado da cidade. Cada dia um pior. O sistema de transporte da cidade é ridículo, milhares de pessoas e três linhas para o mesmo lugar. Um celular toca funk enquanto dois caras conversam sobre alguma garota em comum. Nesta hora, pensei na conspiração que rege o mundo: Ou estou sendo muito zoado por alguém que criou essa merda toda, ou é tudo verdade e as pessoas são realmente vazias. Esqueço isso quando vejo uma morena caminhar em plena Avenida santo amaro, com uma saia de seda e um decote que faria qualquer ser humano ter o mais primitivo dos desejos carnais. Dei risada quando lembrei que também sou vazio. Desço no final, pego outro coletivo ou pouco mais cheio, talvez por ser menor. Pelo menos chego em casa rápido. Vejo a bolsa de Aninha jogada no sofá e imagino que acabou de chegar. Ouço o fogão ligado e a televisão da sala na novela das sete e minha linda mulher assitindo entre a cozinha e a sala. Ela não é a Julia Roberts, mas nem se fosse eu a amaria tanto. 9
Amores Urbanos – Robson Assis Ainda um pouco suado - não do trabalho, da condução - chego ao seu lado e lhe dou um beijo no rosto, um abraço. Ela pergunta o que eu tenho. Respondo: amor. E ela ri, caminhando para a cozinha e terminando nossa comida. Também dou risada, nem eu mesmo acredito em mim. Mas acho que, sem o amor, nada destes dias tensos e dessa correria maluca por sobrevivência, iria funcionar muito bem. Neste momento olho para o relógio que marca vinte e três e quarenta e oito. Minha princesa dorme e eu tenho algumas horas de sono para esquecer um pouco toda essa polícia, essa condução, esse capitalismo e essa gente doida - incluindo eu mesmo - do mundo em que vivo. Poucas coisas na vida conseguem dizer "Eu te amo" com tanta propriedade como ver sua garota dormindo ao seu lado. É tanta responsabilidade, tanta mente em parafuso, tanta maluquice, relatório, intriga, briga, desigualdade, maldade e tortura social que às vezes esquecemos de sentir uma simples saudade.
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Paranóia Passional Helena estava cansada. Não suportava mais aquelas homenagens que recebia na igreja da Graça Celestial, que freqüentava no Jd. Monte Azul. Seu casamento era, deveras, o mais duradouro de todas as jovens do local, ela sabia disso, não eram necessários os semestrais buquês de rosa e as declarações de amigos e conhecidos ao final do culto. No próximo mês, seria aniversário dos dois, ela não queria nem imaginar. Mas dessa vez, Jucilene, amiga do casal, falara tão a fundo sobre o relacionamento que fez Helena suspeitar. Ao sair do culto agradeceu a todos e viu de longe o cochicho de seu marido Carlinhos com a amiga. A adrenalina de poder enxergar os dois sem ser vista lhe fez saltar os olhos para um bilhete que Jucilene deixara no bolso de seu marido. No caminho a pé entre as subidas e descidas de terra do bairro, o casal falava sobre como era bom estar juntos por tanto tempo e serem felicitados assim sempre. E Helena dizia tudo de maneira tão jocosa, que desta vez quem desconfiou foi Carlinhos, mas ainda assim não queria perder tempo e seguiu até em casa sem questionar. Ao chegar, Helena o colocou contra a parede. Ele, receoso, viu a garota tirar botão por botão de sua camisa ao mesmo tempo que mordia a língua. - Agora não, Leninha. - Mas hoje a gente tem que comemorar, retruca a moça. - To muito cansado, querida, depois a gente vê isso melhor. Claro que jamais desconfiou da esperteza da garota com quem se casou. Era uma menina simples demais para bolar planos mirabolantes. Helena o viu colocar as roupas no canto do quarto, como de praxe, e entrar no banheiro resmungando algo. Correu para o quarto e apanhou o bilhete no bolso do rapaz. Um papel amassado e dobrado quatro vezes dizia: “Carlinhos, é muito perigoso fazer o que fizemos no meio do culto. Se a Helena perceber vai melar tudo. Amanhã passo no seu trabalho às 18h30. Lá conversamos melhor. Ju.” Fez questão de guardar o bilhete do jeito que encontrou. Finalmente, viu que não era apenas ela que estava cansada de seu relacionamento. E então as horas extras que ele dizia ter acumulado e nunca recebido começaram a fazer sentido, assim como as noites de sábado em que dizia estar no inventário. A traição de seu marido começava a se desenhar, bem na sua frente. Naquela noite, não dormiu, o sangue fervilhava vingança. Havia esquecido todas as 10
Amores Urbanos – Robson Assis Carlinhos acordou, saiu às 5h20 da madrugada de sexta, era sua rotina. Era o dia de pagar as contas, levou o dinheiro que sempre guardava nos cantos escondidos de sua casa. No caminho encontrou o bando que mais assustava os moradores da região. Julinho, Neca, Alemão e o pior deles, Garrincha. Esse último, parou e desceu do carro, encarando nosso personagem. Aos berros trocava com Carlinhos: - Ce ta me tirando, doidão? Diz o furioso. - Não, responde Carlinhos temeroso pelo dinheiro que portava. - Ah, e eu sou bobo então, sou bobo né.. Isso que ce ta me dizendo? - Mas o que foi? Eu não fiz nada absolutame.. - To te zuando, mermão – dizia o malandro já rindo da cara do outro com seus parceiros – Vamo ali tomar uma breja pra finalizar essa noite, vamo! - Não, que isso, preciso trabalhar ainda, mas valeu. - Porra, to falando pra vir com a gente, maluco! Após ver a arma na cintura de Garrincha e o estado ora tranqüilo, ora caótico do malandro, decidiu ir com eles e inventar qualquer desculpa para o atraso. No boteco do Jé, tomou algumas doses de cachaça barata e saiu tropeçando na cadeira em que estava. Garrincha e Alemão, cumprimentaram o rapaz que às 6h30 partia sentido centro. - Ele gelou, mano, mancada – Diz Alemão. - Mancada? Mancada é trabalhar pros outro. Um dia zicado abre os olhos da gente. E todos na mesa riram fervorosamente ao ver Carlinhos tropeçar outra vez na guia em frente ao bar. Como há muito não bebia por conta de sua religião, Carlinhos percebeu a merda que tinha acabado de fazer. Completamente bêbado, sentou no final do escadão e chorou. Precisava contar a Helena sobre seu plano com Jucilene, precisava pedir demissão. Mesmo se passasse fome, se sentiria mais vivo. Havia, então, tomado uma decisão. Queria viver. Helena acordara às 7 e meia com um ar estranho entre a angústia e a sede de vingança, desceu à padaria. No caminho, ao passar pelo bar do Jé, viu malandros assobiando, bêbados, dizendo palavras chulas em relação à ela. Virou a cara e neste segundo, enquanto olhava para o outro lado, pela primeira vez se permitiu olhar de volta os fulanos que bebiam de maneira incessante. “Chega aí, morena, tem um lugar aqui pra você”, grita Alemão. Ela dá outros três passos e volta ao bar. Entra, finge não ver os rapazes na mesa, que a olham como Lobos que cercam uma presa. Compra um maço de cigarros, fato este que não fazia desde os 17 anos, quando era uma garota rebelde, e pergunta ao Jé se tem fósforos. “Mas ela não é aquela mina da igreja?” se perguntam aos cochichos os quatro malandros. Quando Jé se vira para pegar os fósforos: - Aqui, morena, pode acender aqui – Alemão estende o braço com o isqueiro para a moça. Ela acende. Olha para os rapazes durantes três segundos e solta os cabelos. Os quatro se sentem num filme em câmera lenta. Ela se senta, olha para os rostos apavorados dos boquiabertos malandros. Se serve de um copo de cerveja. - E então? Pergunta a garota enquanto dá seu primeiro gole. Nenhum daqueles jamais havia visto aquilo. Afinal, eles infernizam a vida de milhares de garotas do bairro. Nenhuma delas, a não ser as mais conhecidas e atiradas, nunca ousou virar o rosto, olhar para eles. E a que menos esperavam, a crente, como chamavam, se voltou, sentou à mesa e pegou uma cerveja. Após três vezes perguntando para si mesmo se estava bêbado demais, Garrincha despertou: 11
Amores Urbanos – Robson Assis - É, morena, ce é gata demais. Qual é a sua graça, meu bem? - A que você quiser, responde uma Helena quase inconcebível de sensualidade. Carlinhos acabara de acordar na guia. Não sabe como havia dormido, nem como tinha parado ali. Olhou para os lados e notou o desprezo das pessoas no ponto de ônibus, como se fossem testemunhas vivas da degradação da pior das espécies. Procurou sua bolsa e não encontrou. Só então percebeu no que havia se metido. Levaram seu dinheiro e o que restava de sua moral. Ele decidiu ir pra casa, encontrar sua mulher, dizer que queria outra vida, em outro lugar e assim falar sobre seu segredo com Jucilene. Andou com a cabeça fervendo até chegar na rua de sua casa. Pensava em seu trabalho, nas desculpas que teria de arrumar, na reação de sua esposa para o que iria lhe oeferecer. Abriu a porta de casa e deu de cara com Alemão fumando um cigarro no sofá. Não entendeu nada. “Como o filho da puta sabe onde eu moro?”, o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça. Olhando surpreso e calado para o malandro, Carlinhos recobra os pensamentos e começa ouvir barulhos parecidos com sexo. Antes de pensar em Helena, vê sair de seu quarto Garrincha puxando o zíper das calças e, antes que ele fechasse a porta, nosso personagem tem a visão certa do inferno: Julinho e Neca sobre sua mulher, em movimentos bruscos e posições que jamais imaginara. Caiu de ombros como um derrotado. Não pensou em Helena, ou em qualquer um dos quatro malandros que invadiram sua casa. Temos agora outro personagem em busca de vingança. Garrincha tentou entrar no quarto para avisar os três na cama, mas era tarde demais. Carlinhos já havia se levantado e não pensou duas vezes quando viu a arma em cima da mesa: “Porra!” Deu um grito que assustou Dona Maria, vizinha da casa, que ao mesmo tempo parou de lavar a louça para ouvir o alvoroço. Saía então do quarto uma Helena de cabelos bagunçados, camisola amassada e maquiagem estragada, mesmo àquela hora da manhã. Carlinhos jamais ousou imaginar a cena. Os outros dois, medrosos, vestiam rápido suas roupas, podia se ver na fresta da porta entreaberta. - Helena, o que você está fazendo? Diz Carlinhos desesperado. - Diz você, o que você tem feito com a vaca da Jucilene no meio do culto? Arregalou os olhos. Como será que sua esposa descobrira o tal segredo dos dois? Mesmo assim abriu um sorriso desesperançoso por imaginar o que ela estava pensando. - O que você sabe? - Sei que ela anda te mandando uns bilhetinhos. Que vocês fazem coisas escondidas no meio do culto. No meio do culto, Carlos? - Ela trabalha numa imobiliária, você sabia disso? - Dane-se, e eu quero lá saber onde essa piranha trabalha? Retruca Helena. - Chega! Carlinhos interrompe com um grito como da primeira vez. Carlinhos estava mais cansado do que com raiva. Em uma manhã que seria comum, teve sua vida toda despedaçada. Agora estava apenas nervoso e cansado. Então alinhou os malandros ao lado de sua esposa. A arma que tinha nas mãos era a única dos quatro. Pensou bastante antes de tomar a decisão e deu o primeiro e único tiro da história. Em sua própria cabeça. Os malandros saíram em disparada, afinal, quem acreditaria na versão deles? Além disso, Neca era foragido da polícia. No último Dia das Mães deixou o presídio em que estava e não voltou mais. Correram sem perceber Dona Maria que da janela ouviu o disparo e se abaixou, mas ainda conseguiu ver os quatro em disparada e ligar rapidamente para a polícia. Helena, em estado deplorável, gritava de horror pela cena que presenciara. Ao lado de seu marido ensangüentado, leva às mãos a arma que o matou e faz o mesmo. Não conseguiria explicar nem a si mesma o que havia feito nesta manhã. A polícia chega e encontra os dois corpos sobrepostos. Dona Maria não consegue explicar nada aos oficiais. 12
Amores Urbanos – Robson Assis O dia inteiro se passa, os dois vão ao IML, amigos da igreja preparam o velório, mas não conseguem falar com Jucilene, que às 18h45 espera Carlinhos e não entende nada por ele não aparecer. Pergunta na portaria, descobre que o amigo havia faltado no trabalho. Deixou um recado ao porteiro do prédio, para ser entregue ao amigo junto a um documento: ”Carlinhos, a casa nova está pronta! Como não sei quando vou te ver novamente, na semana que vem, na data do aniversário de vocês, eu entrego a chave. Este documento do envelope é a escritura. Achei que gostaria de ver. A Helena ainda nem desconfia de nada! Ela quase nos viu ontem, mas sem dúvida a hora que souber da casa nova vai ficar muito feliz! Beijos, Ju.” O envelope nunca saiu da gaveta do porteiro.
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I am on the Highway to Hell “Eu amo isso, mas eu odeio o gosto que tem”, dizia o Dave Grohl na música que tocava na jukiebox do bar mais sujo de santo amaro. Tudo relacionado. Meus melhores amigos eram uma dose de conhaque barato e a cerveja que enchia metade do copo. Uma depressão que hora ou outra me consome a cocaína dos meninos da mesa ao lado. Eles, alegres, pedem outra cerveja e trocam o som. Agora a canção mais antiga do que eu diz “garotas só querem se divertir”. Desconfio do tanto de cerveja desperdiçada dos garotos que brindam ao nada com extrema excitação. Volto a olhar a garrafa, medi-la, compará-la às outras mais caras. Peço outra dose e já nem vejo o que o garçom colocou na minha bebida. Mas dane-se, a essa hora o cara do The Who (lembro que sou péssimo para lembrar nomes depois de alguns copos) canta “substitua coca por gim” e eu adiciono o “, foda-se” à frase dele.. A noite passa, vejo entrar no bar milhares de corpos distintos, camisetas vulgares e cabelos estranhos, que deixariam qualquer mãe decepcionada. Não ligo. As pessoas são quem elas foram ensinadas a ser e ponto final. Quando o cara atrás do balcão não consegue mais olhar pra mim sem ter um resquício de nojo, peço o que seria minha a última dose. Uma garota senta-se do meu lado. Vejo 3 vultos coloridos e sorridentes na minha frente, encostando no meu ombro, me desafiando a lembrar dela. Digo quatro nomes e, claramente, ela começa a se irritar. Com a irritação tudo ficou mais claro. Era Cidinha, dos tempos do colégio. Era a garota feia mais bem arrumada do Cyro Augusto Bernardes. Devo ter namorado ela naquela época, talvez só não quisesse me lembrar. Conversamos algum tempo, enquanto a tontura ia passando. Descobri que ela morava sozinha ali perto. Fomos até sua casa, sentamos no sofá e nos beijamos. Aquele clima das partes mais picantes da novela das 8 tomando conta do ar, ela se levantou como se estivesse tirando a roupa. Nesse meio tempo, uma garrafa na estante me chamou atenção. verde quase fluorescente, letras garrafais “GREEN DEVIL”. Tomamos algumas doses, transamos algumas vezes. Ela foi dormir e um ar psicótico me fez ir até a cozinha pegar uma faca e riscar meu braço com uma faca pontuda o bastante para me fazer sangrar. Era o demônio verde, sobre o corpo de um ser que acabava de sair do bar. Voltei ao quarto e degolei a cabeça da vagabunda, cortei-lhe os membros, joguei pela janela, na madrugada que parecia explodir em minha mente. Sobrava meu sangue pelo chão e um quarto da garrafa que iria satisfazer as horas que ali me restassem. Só fui imaginar que suspeitariam de algo horas depois quando derrubaram a porta e me encontraram morto ao lado da garrafa vazia e com o AC DC cantando, “eu estou na estrada para o inferno” 13
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Amores Urbanos I Sérgião estava perto dos 64 anos. Morava sozinho, em um hotel de pouco luxo, desses que encontramos no centro da cidade. Teve uma história familiar um tanto quanto trágica para descrever de maneira simples, o que fazia dele um destes seres humanos que não aparentam em nada o que realmente lhes passa na mente. Era vendedor de anúncios para um jornal de bairro. Vivia uma vida relativamente confortável com as comissões que o trabalho lhe proporcionava. Toda semana tinha dinheiro de sobra para gastar com suas garotas no “Elas American Bar”, uma boate que ficava no porão de uma casa vizinha ao hotel onde morava. Em uma sexta-feira normal, Sérgião vestiu seu terno mais fino, gostava de parecer multimilionário para suas garotas. Andava lentamente a caminho do bar, quando viu uma moça que aparentava 25 anos, jogada em um jardim de rua, ensangüentada e com uma saia vermelha curta e suja de barro. Continuou caminhando, mas a consciência lhe fez voltar e ir de encontro à garota. Ao chegar mais perto, viu que era uma das suas “amigas” do bar. - Sara, o que aconteceu com você, meu Deus? perguntou três vezes até que ela esboçasse alguma reação. - Me bateram, eles me bateram, respondia a menina chorando e aos berros. Ele a segurou pelo braço, ela se afastou repentinamente, com pânico no olhar. Sérgião levantou o rosto trêmulo de Sara e viu as marcas de dor da pequena. - Quer ajuda, vem comigo, você me conhece! - Não vou lugar nenhum. - Vamos, sobe comigo em casa, lá você está segura. Quando a menina se levantou, Sérgião imaginou que usar palavras como “casa” e “segura” têm um valor enorme em situações como essa. Carregou a menina até seu apartamento. Lá chegando levou Sara ao banheiro, cuidou de alguns dos ferimentos que não eram tão graves, mas, sem dúvida, machucavam. Mas ainda assim, deu um jeito para sentir o perfume de Sara, que sempre o encantava. Obviamente, não quis tentar nada além de ajudar a moça. Ela não parava de chorar e cantarolar quase sussurrando o que parecia uma música infantil. - Sara, você está em casa agora, me diz o que houve, afinal. - “la-la-la”, ela fingia não ouvir as perguntas. Sérgião disse que ela precisava de um banho. Arrumou o chuveiro, pegou uma toalha e saiu do banheiro, fechando a porta. Assim que saiu, Sara abriu a porta e disse, cabisbaixa: - Os cara da 15, eu tava devendo pros cara da 15, Sérgião. - Porra, Sara, voltou a usar essa merda? Disse Sérgião, nervoso por saber que a garota havia voltado a se drogar na rua XV de Novembro. Ela ficou calada por alguns instantes. - Eu sei, to errada. Me desculpa, só que.. Valeu pela ajuda. - Vai tomar banho, depois a gente conversa. Sérgião havia realmente ficado fulo da vida. Sempre que vai ao bar, diz à elas que pode ajudar no que precisarem, mas que não peçam dinheiro para comprar drogas, jamais. Sabia que muitas delas, como Sara, já haviam, usado, mas pedia para que não o deixassem saber que estavam envolvidas com isso, caso contrário perderiam o cliente. Ele sentou no sofá e ligou a TV, tentava ver o final do jornal sem pensar no assunto. Parou e esticou as pernas, olhando pro teto. Tirou os sapatos, sabia que não voltaria no ‘Elas’ aquela noite por culpa de Sara. Deu um suspiro alto, quando sentiu os passos da menina pararem à sua frente. Olhou, Sara veio nua ao seu encontro. Entendeu porque pensou que a garota jogada na grama só parecia ter 25 anos. “Ela tem mesmo 19?!”, pensou consigo. - Vai comer, tem yakissoba na mesa, diz Sérgião, nervoso, ao mesmo tempo em que olhava as pernas de Sara, que faz uma cara terrível e vai à cozinha. 14
Amores Urbanos – Robson Assis Ela termina e volta à sala como estava da primeira vez. Dessa vez, ela senta ao lado de Sérgião, no sofá, cruzando as pernas e se espreguiçando. A esta hora, Sérgião já não quer mais só conversar. E ela sabe disso. No outro dia, Sérgião acordou ao lado de Sara. Passaram o final de semana juntos. Passaram duas semanas juntos. Passaram 3 meses juntos. Sara dizia que queria casar. Ele pediu que ela fosse embora. Não gostava disso, Sérgião se apegava fácil à garotas com a vida como a dela. Aos gritos histéricos, Sara partiu. Sérgião soube que ela novamente se envolveu com tráfico, novamente foi espancada, chegou a ser presa. Ele foi à cadeia, pagou fiança. Ela foi à casa de Sérgião, que abriu a porta pensando no único pedido que havia feito ao delegado, para que não dissesse à moça quem a havia tirado de lá. Nos milésimos de segundo em que a porta se abria, refletiu um pouco sobre o poder de sedução feminina e em como ela conseguiria fácil aquela informação. - Por que você fez isso? Disse Sara. - Te quero longe daqui, mas te amo, Sérgião responde sem medo do que a depressão poderia lhe reservar. Ela vai embora e deixa a porta aberta, deixando de propósito cair no chão seu cachecol carregado daquele perfume que ele sentira no corpo machucado da moça, quando da vez em que a ajudou… Sérgião nunca mais ouvira falar sobre Sara.
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As Flores Malditas - A decisão foi sua, o dinheiro era pra semana passada. - Calma, mano, me dá mais uns dias, a gente é irmão, truta, por fav... Dona Maria ouviu o disparo como se tivesse sido dentro da sua casa, mas não era. Três ruas acima, na boca do Tiziu, Sandrinho, seu filho, acabara de morrer na mão de traficantes para quem devia dinheiro do crack que havia tentado vender na última festinha da zona norte, com o pessoalzinho da USP. Não conseguiu vender nem metade. Seu vício o fez usar a festa toda, sem miséria. É como se colocassem um crocodilo para tomar conta de um açougue. Naquele momento Maria, mãe/pai de família, sozinha, havia tirado a mente da TV por alguns instantes. Foi como se o tiro lhe dissesse que havia algo errado na ordem natural das coisas. Levantou, bebeu água, voltou a sentar na frente do aparelho e tentou se distrair. Certa aflição a rondava, não podia imaginar o que era. Assistia a cena do casal romântico, na época o Tarcísio e a Glória, mas nem eles a prendiam mais a atenção. Percebe que seu maço estava acabando quando acende o primeiro cigarro, vício adquirido após a derrocada de Sandrinho, seu filho, nas drogas, pelas várias vezes que o buscou em lugares distantes, metido em encrencas com a polícia, ou largado após uma boa surra. Sempre se segurava para não ir, tinha dito a si mesma que jamais aceitaria uma coisa dessas em sua casa. Mas nunca tinha jeito, Dona Maria era mãe. E ao lembrar destes dias, de seu filho, da perdição, do primeiro dia em que dormiu chorando quando ele passou um tempo na recuperação paga pelos tios lá de Brasília, da raiva quando expulsou o menino de casa quando ele "noiou" o radinho da sala, ela surtou em silêncio, apertou uma das almofadas do sofá com força, como se fosse rasgála. Parou. Aumentou o volume da TV, talvez fosse isso. Continuou a prestar atenção com certo desprendimento, muitas vezes sem ouvir o que diziam os atores. Parecia olhar mais o relógio do que a própria TV. Finalmente acabou o capítulo. Desligou a TV, arrumou objetos jogados na sala, pegou o boné que Sandrinho havia esquecido e levou ao quarto do rapaz, sentou em sua cama e chorou um pouco. Estava infeliz com a vida que levava, não entendia porque seu filho tinha de se envolver com gente errada, como conseguia se viciar daquele jeito tão triste em compostos químicos que não sabia nem de onde vinham. 15
Amores Urbanos – Robson Assis Secou as lágrimas, foi até seu quarto. Em um silêncio quase mortal, arrumou a cama de casal que, após a morte de seu marido quatro anos atrás, dividia apenas com suas mágoas e os pensamentos de esperança que enchiam o quarto de uma luz que não existia em nenhum outro lugar do mundo. Se deitou e em exatos seis minutos após a oração levantou e decidiu que não ia conseguir dormir. Talvez esperar o filho, e que dessa vez ele não tenha feito na errado de novo. Voltou a sala, ligou a TV para desbaratinar o tempo que passava ali. Fumou os dois últimos cigarros do maço. O Jornal trazia algumas notícias de fazendas invadidas por sem-terra cansados de esperar a reforma agrária, crises econômicas quebrando bancos, nada que entendesse muito. Já passava das 11 da noite, seu filho não voltava. Talvez dormisse fora, como em outras ocasiões, mas o estado de alerta dizia que não era bem isso o que tinha acontecido. Trancou a porta e foi até o bar sem perceber o movimento na travessa, ruas acima de sua casa. Pediu um Lucky Strike, "pra dar sorte", sonhava. Percebeu que os presentes a entreolhavam com desânimo e certo receio. Saiu sem entender nada. Antes de cruzar o farol, percebeu o movimento. Caminhou pra ver o que era, tinha muita gente na rua e aquela sensação estranha ficava cada vez mais forte com os passos em direção ao tumulto. Aqueles que fechavam a roda sobre o ocorrido olharam pra trás e deram espaço à ela. Todos saíam aos poucos quando viam Dona Maria se aproximando, até que ela conseguiu ver o corpo de seu filho com um tiro no peito. Ajoelhou, colocou as mãos no rosto e finalmente desabou em prantos. No outro dia, Pilé, um dos meninos envolvidos com o tráfico da região em que morava estava no enterro. Era 'amigo' do finado e sentiu que devia estar lá para presenciar os últimos momentos do corpo do rapaz. Comprou uma rosa na entrada do cemitério e entrou com ela. Parecia mesmo triste, mas conformado e entendedor da situação. Dona Maria o conhecia, sabia de seu envolvimento na boca de fumo. Viu ele de longe, mas não conseguia dizer qualquer palavra desde que acordou. Ao lado do caixão, Dona Maria ouviu o padre encaminhar a alma de seu filho para os céus. E viu os parentes e conhecidos jogarem as flores sobre seu corpo. Quando Pilé se aproximou, Dona Maria pegou a flor de sua mão e disse não querer que seu filho subisse ao céu com lembranças dos dias negros que passou neste universo. Pilé ouviu e deu as costas num êxtase momentaneo que o dividia entre a raiva e o discernimento das palavras que aquela mulher acabara de lhe dizer. Dona Maria pisou e viu as pétalas se desfazerem na terra daquele lugar que voltaria anos depois apenas para lembrar seu filho nas datas comemorativas que mais gostava quando pequeno, como seu aniversário, a Páscoa e o Natal. Dona Maria era mãe. E mais uma vez - ou pela última vez - livrou Sandrinho das flores malditas.
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Entre as Ruínas Outra noite, tive um sonho. Estava eu, de fraldas, engatinhando no andar de um prédio qualquer. Meus pais choravam descontrolados tentando sem sucesso forçar a porta corta-fogo do lugar onde estávamos. Eu engatinhava. E ouvia estrondos me dizendo que algo sombrio estava para acontecer. Porém, como eu disse, estava de fraldas, não podia imaginar o que significava "sombrio". Minha mãe parecia chorar mais a cada instante que passava. Meu pai a consolava, mas seus olhos tremendo não mentiam, estava também muito triste por algo que eu ainda não temia. O barulho realmente aumentou alguns minutos depois. Lembro de um zunido, um barulho de sirene, pessoas que não paravam de falar, gritar com espanto. Só assim percebi que o temor daqueles que estavam lá embaixo era o mesmo de meus pais. De repente, um pedaço do teto se 16
Amores Urbanos – Robson Assis despedaça ao meu lado. Ao olhar pra cima, ver de onde vinha aquilo, minha mãe me tomou nos braços e apertou tão forte que eu mal podia respirar. Pobre pedaço de teto. Estilhaçado no chão e sem nenhum amigo. Eu, pelo menos estava com meus pais. A essa hora, estávamos todos na janela, olhando um círculo imenso de pessoas que nos olhavam de volta. Parei para prestar atenção em uma senhora parecida com a minha vó. Chorava e colocava a mão sobre o rosto. Pobre senhora. Por que, afinal, estava tão triste? Meu pai batia ansiosamente o punho na parede, enquanto subia uma escada branca que saía de um caminhão vermelho meio distante do prédio. Os bombeiros estavam lá. Isso me lembrava dos carrinhos que eu ia brincar quando chegasse em casa. Outro pedaço de teto caiu. Esse, infelizmente não parou no chão. Desceu até o andar de baixo, onde havia mais gente gritando. Povo maluco esse. A escada chega ao nosso andar, mas não consegue alcançar a janela. Um bombeiro grita para que meus pais me joguem até eles. Minha mãe insiste que não. Meu pai a deixa em prantos quando berra que não há outro jeito. Ele me dá um beijo, minha mãe me agarra forte, naquilo que parecia ser a última vez que me abraçaria. Eu voei um metro e meio sobre o céu gelado de São Paulo. Caí nas mãos de uma mulher que suava e certamente estava com tanto medo quanto meus pais. Ela me abraça e me beija. Consigo olhar de volta para o prédio. Onde estão eles? Ah, sim. Se abraçavam, diziam coisas um ao outro em prantos, se beijavam. Voltaram a se abraçar e pelo que pareceu, durante dois dos segundos mais importantes de minha vida, jamais se soltariam. Nessa hora, creio que o teto cansou de perder pedaços e caiu inteiro sobre eles. A moça que me segurava virou meu rosto. E eu, agora sim, entendido da situação, olhei para o bombeiro que estava atrás de mim e só consegui dizer "pais!". Enquanto a escada voltava ao caminhão, uma lágrima de dor me escorreu pelo olho e desabou no chão, junto com o prédio onde estavam meus pais.
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Medo Faltava apenas uma noite. Tínhamos bolado o plano todo. Eu e o Neguinho, parceiro que cresceu comigo aqui na João do Galo e era quem concordava quando eu lamentava a falta de oportunidade da vida. Essa noite ele tava no barraco. Ficamos trocando uma idéia até 6h da manhã, acertando os últimos detalhes. Sofia Avelar era uma mulher de meia-idade, divorciada pela segunda vez e de família rica. Além disso, era muito gostosa. Tinha um filho pequeno também, o Diego Garcia Avelar. Um mês de estudo sobre essa daí nos deixou conhecê-la mais do que a própria família inteira sabe sobre sua vida. Sabíamos os melhores amigos, lugares que freqüentava, rotinas. O Neguinho sabia o dia-a-dia direitinho. Precisa ver ele contando, coisa de novela. A gente já tinha combinado: a cena do seqüestro era sem morte, sem pânico pra ninguém. Pegava a safada, levava pro barraco, ligava pra casa dos pais, exigia grana. Avisava que ia matar se não fosse no mesmo dia. Já era. Acordamos umas 8h de um domingo ensolarado. Era o dia. Chegamos na rua Domingos Souza lá pelas 10h. O carro estava estacionado. A dona ainda não havia saído. Voltamos com o Passat preto até o quarteirão de trás. Tava tenso ali dentro, confesso. O neguinho botou o Marvin Gaye no rádio e deu pra dar uma relaxada, mas no fim não acabou amenizando em nada. Sofia saiu de casa às 12h45, provavelmente depois de almoçar. Seguimos o carro até ela parar. Coloquei a cabeça pro lado de fora: “Parque dos Pinheiros?”, pensei. Nunca tinha nem passado perto daquele lugar, parecia muito feliz em relação à vida que eu levava. 17
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As horas começaram a passar. Eu e meu parceiro comemos dois dogs e bebemos uma Coca 2 litros. Já começávamos a ficar injuriados com a cena: - Olha lá, mano! Essa vaca só sai daí oito hora da noite, Cacá!, dizia o neguinho. - Relaxa, maluco, uma hora ela vai embora, segura essa tua onda aí. Dez minutos depois, ela começou a recolher os brinquedos do filho, que vinha adormecido em seus braços. Ela, cheia destes potes de lego na outra mão, parecia reclamar de algo. Malditos Ricos, mal sabem a vida que levam. Ela chegou no carro. O Neguinho já tinha parado a caranga emparelhado com o Vectra cinza, quando eu desci do carro e encostei a faca no pescoço: - Quietinha, dona, ou você já era! Pega esse teu filho aí e entra no carro, vamo logo, porra! A caixa de lego espalhou no banco de trás do Vectra. O Neguinho parou o carro na ladeira do morro, até onde dava pra ir. Eu segui o resto a pé. No domingo, a essa hora, ninguém de bem caminha tranqüilo pela favela. Entrei. Joguei o moleque no canto, perto de um buraco onde passava uma água cheia de lodo. A dama, sozinha no outro (e único) cômodo. O lance da família já tinha dado errado. Todo mundo tinha viajado pro Litoral. Deixamos a vadia no quarto uns dias. Esquecemos ela lá. Dávamos comida de manhã e de noite. Falávamos muito pouco dentro do barraco. O moleque era chato demais. Chorava pra caralho. A gente colocava um pão e ele recusava. Colocava leite puro e ele recusava. Deixamos de dar comida. Faziam uns 8 dias que eles tavam lá, eu rodava a favela pra ver se pegava alguma coisa de polícia. O Neguinho tava sozinho e o moleque caiu na besteira de chorar. Quando cheguei, a cena já tava feita. Um monte de terra, do lado do barraco e um sussurro de choro da mãe, dentro do quarto, me dizia tudo. O Neguinho furou o moleque inteiro, degolou com faca de cozinha, abriu um buraco e jogou os pedaços dentro. “Ele não parava, Cacá, mereceu mano, é hora da gente terminar essa merda logo”, dizia o Neguinho afobado. Eu não disse nada. Sentei, com as mãos na cabeça, fiquei um tempão ali, pensando sem pensar em nada. Na mesma noite, o parceiro assistia o jornal de boca aberta, na televisão velha: - Ela sumiu. Não pode ter largado tudo! Não mesmo! - dizia aos prantos uma mãe de rosto inchado e aparência bastante cansada. Ao que o âncora diz: - O carro de Sofia Avelar, filha do empresário Santoja Gomes Avelar foi encontrado nas proximidades do Parque dos Pinheiros, possivelmente de onde seqüestradores levaram ela e seu filho de 4 anos, Diego. A polícia diz ter indícios de que o cativeiro estaria na favela do João do Galo, zona sul. Eu e Neguinho pasmos, não tiramos os olhos da TV. Nem nos falamos durante o comercial. Até que o jornal voltou com uma notícia sobre a crise econômica da indústria têxtil no Japão. - E AGORA MANO? – Eu já alterava a voz. - NUM SEI CARALHO, NUM SEI. - VAMO LIGAR! - PORRA NENHUMA, TÁ MALUCO, OS GAMBÉ VEM PRA CÁ NA HORA - E O QUE VOCÊ QUER FAZER? - MATA ESSA DESGRAÇADA. 18
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Ela provavelmente dormia, pois não fazia nenhum barulho. Ouvimos sirenes. Saí e fui ver o que era. Abri a porta devagar e espionei. Lá embaixo, mais de 10 viaturas cercavam a entrada da favela. Homens armados subiam a ladeira como cães. - FUDEU, NEGUINHO – Disse eu que, ao olhar pra trás, vi o filho da puta tentando sair por cima do telhado pelo lado escuro do barranco. Eu tremia e suava frio. Eles bateram na porta e gritaram que estava acabado, para que eu me rendesse. Estava ainda quieto e já com a arma na mão, quando ouvi o coturno que derrubou a porta e os três fardados que estilhaçaram as costas do Neguinho, que tinha dado o primeiro tiro, em uma tentativa de reação repentina. O tiroteio foi pesado, eu já abria a porta do outro cômodo em meio ao caos da situação. Sofia estava sentada, com a cabeça entre os joelhos, parecia aterrorizada. Um instante menor do que todos os outros fez com que me arrependesse de tudo o que havia feito à moça. Eu havia levado um tiro de raspão no ombro e ao cair, me esfolei na porra dos vasos de barro no chão de concreto. Peguei a faca. Ela me olhou. Quando a levantei e segurei a arma em sua garganta, desmaiou. Mais tiros. Dessa vez não foi um coturno quem abriu a porta. Foram balas de fuzil. Quando ouvi os primeiros disparos, fechei os olhos. E dali pra frente não vi mais nada.
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Crime Organizado Mais que Profissional - Trim! - Alô?! - Olá, sr. Anderson Vilela, muito boa tarde! - Boa tarde! - Meu nome é Pompeu, da agência StolenYou, de furto de casas e apartamentos. Tudo bem com o senhor? - Opa! Tudo certo! – diz o outro sem entender direito o que o telefonista disse após o nome da empresa. - Sr. Anderson, deixe-me só confirmar seus dados. Sua casa fica na Al. Tenente Mario Pastorelli, 25, Jd. Bonaventura. - Certo! (?!?!) - Este telefone é 5687-4456 e seu celular 4665-7789. Ok? - Isso mesmo! (?!!?) - Sua filiação é de Carlos Godói Vilela e Maria Aparecida Vilela, residentes na Rua dos Macaús, 37. Sua esposa chama-se Claudete Rodrigues Vilela e suas filhas Clara e Judith Vilela, de 13 e 15 anos, respectivamente, estudantes da Escola Amador Rodrigues, no centro. - Está certo! Quem é você? - Sr. Anderson, não sei se o senhor conhece nossos serviços. Somos uma empresa de roubo a casas, carros, flats e executamos serviços de seqüestro também. - QUÊ??? - É isso mesmo, sr. Anderson. Nossos profissionais são treinados em campos construídos ao norte das Guianas Francesas e recebem auxílio psicológico e treinamento intensivo de autoridades do FBI, CIA, Hamas, Scotland Yard, entre outros serviços de inteligência da Irlanda e Coréia do Sul. - Tá, tá, tá. Você acha que eu sou um idiota? - De maneira alguma, senhor. Estou aqui apenas para lhe oferecer nossos serviços. Eu vou estar lhe passando agora nossos planos, para que o senhor possa escolher a forma mais cômoda de ser furtado, sem maiores problemas, agressões ou qualquer outro descontentamento por parte do senhor ou da sua família, ok? - Você está me dizendo que vão roubar minha casa? - Exatamente. Por volta das 23h20, desta sexta. Estou apenas tentando fazer as coisas da maneira mais eficiente para mim e para o senhor, certo sr. Anderson? 19
Amores Urbanos – Robson Assis
Ele desliga o telefone, que toca instantes depois. - Sr. Anderson, sabia que aconteceria isto e o capítulo 3 de meu manual diz como devo proceder para tanto. Está bem claro: “Ignorar maus-tratos do cliente em primeira instância”. Mas, quando da reincidência deste artigo, outro trecho diz: “Convocar equipe Hard”. O senhor conhece nossa equipe Hard, sr. Anderson? - Não! Escuta aqui, seu filho da puta, você acha mesmo que... - Senhor, por favor, não comece a me insultar. Não é política da StolenYou amedrontá-lo, mas lembre-se que temos seus dados, endereço e, neste momento, vários de nossos profissionais estão vigiando sua família, apenas por segurança. - SEGURANÇA???? - Isso mesmo. Ainda por segurança, nossa conversa está sendo gravada e repassada em conexão IPC-12 para a base central, na Guiana Francesa. Mas vamos ao que interessa não é mesmo sr. Anderson? - Você é tão burro! Eu tenho identificador de chamadas e vou lhe denunciar agora. Que trote mais imbecil. Anderson desliga pela segunda vez e disca 190. Seu celular toca. - Por favor, não tente isso, sr. Anderson. Ao fazer a denúncia, a polícia possivelmente vai acionar o GOE, que virá até o meu escritório e não vai encontrar evidência alguma de que eu tenha ligado para o senhor. - Que idiota!! - o 190 continua chamando. - Senhor Anderson, abra a persiana bege da janela da sala, na sua frente. Nessa hora, Anderson tem sua primeira sensação de pavor real, deixando cair no chão o telefone que chamava a polícia. Como ele sabia da persiana? Como ele sabia da persiana bege? Como ele sabia da persiana bege na sua frente? Caminhou e abriu a janela se escondendo. - Acalme-se, sr. Anderson. Vê um cartão de visita preto e branco do lado esquerdo do vidro? - Vejo. - Pegue-o. Nele estão nossos telefones da central, email, assim como endereço do site e da comunidade do orkut. Pode guardá-lo. - Você não está falando sério, está? - O senhor pode ver um furgão escuro, na esquina? - Sim. - Estão lhe vigiando. - Não olhe agora. Uma mulher está no terceiro andar do condomínio Guarani, aí em frente a sua casa. Ela o vigia também. Assim que olhar diretamente para ela, ela vai piscar para o senhor. - É. Piscou. Diga. O que você quer de mim? - Sr. Anderson. Vou apenas pedir para que escolha um destes planos. No Plano BigHard, o senhor pode permanecer armado em sua casa e chamar a polícia, se quiser. Nossa equipe Hard será acionada e vai invadir sua casa em horário e dia não estabelecidos. Neste plano nós levamos todos os pertences de valor da casa e não nos responsabilizamos por vítimas fatais. - E como saberão que estou desarmado? - O Furgão da esquina está equipado com rastreador de artefatos explosivos, armas e munição em geral. Eu peço que o senhor levante a poltrona do sofá. Lá, vai encontrar um saco marrom onde deve colocar todos as armas que possuir em sua residência. - Um.. Um momento - Anderson treme outra vez. Ao pegar o saco marrom, ele corre até o quarto, tira sua arma da gaveta de cuecas, recolhe as balas e as coloca no saco. Volta à sala e pensa no que está fazendo. Nesta hora, Anderson desconecta a linha do telefone e quebra o celular, querendo muito que tudo aquilo fosse mentira. Senta no sofá, temeroso. Olha para os lados ofegante, quando ouve a voz novamente, desta vez, ela parecia vir de uma espécie de home-theater.
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Amores Urbanos – Robson Assis - Sr. Anderson. Por favor, não subestime nossa empresa. Agora eu estou falando de um sistema interno de escuta, conversação e transferência de imagens, instalado em sua residência na semana passada, que ficará ativo apenas até a data do serviço. Anderson Chora e grita: - POR QUE EU? - O senhor foi indicado por um ex-funcionário da Reality Consulting, empresa em que o senhor trabalha. Não posso revelar sua identidade, mas hoje ele faz parte da nossa equipe de colaboradores. - Tá, me diz o que fazer com esta sacola. - Vê a tampa de esgoto na frente da garagem? Ele está aberta. Apenas jogue lá dentro e volte para dentro de casa. Anderson seca as lágrimas e atende o pedido. - Sr. Anderson. O sensor acusa munição e uma pequena arma calibre 22, na gaveta do armário da Judith. O senhor pode pegar para nós? Provavelmente é do novo namorado dela, o Carlos. - Impossível, ela não tem namorado. Nós saberíamos. Não tem nenhuma arma lá. - Senhor, caso opte por deixar a munição e a arma no local e algum dos membros da equipe receber um tiro ou for machucado de qualquer maneira, a StolenYou sente-se livre em praticar maus-tratos e tortura com todas as pessoas da sua família, na sua frente. - Espere mais um pouco – Ele caminha até o quarto da filha e encontra a arma. Desta vez ele treme, mas de um ódio repentino, abafado pela voz que vinha de minúsculas, mas potentes, caixas de som instaladas pela casa. - Sr. Anderson, não fique com medo. Somos profissionais e não temos intenção alguma de fazer mal ao senhor ou à sua família. - Ok. O que faço com isso? – Anderson volta a chorar. - Enrole em alguma toalha e jogue no esgoto, onde deixou a outra. Ele novamente atende o pedido. - Certo. Fala dos planos. Tem o Hard e os outros? - O outro chamamos Medium. Neste, o senhor paga à StolenYou uma determinada quantia e tem direito de ficar com 20% de seus bens. É como se o senhor os comprasse novamente. A equipe que fará o trabalho tem um perfil mais humano e chega no local com armas leves, apenas por precaução. - Tem mais? - Temos um último, o plano light. Neste, o senhor aceita o furto completo de todos os eletrodomésticos da casa, além do carro e parte da mobília que nos interessar. A equipe que faz este serviço é treinada em escolas de Londres e é bastante cuidadosa, o que facilita a negociação. - E se eu chamar a polícia agora. O que acontece com você? - Como eu lhe disse, eles vão estar acionando o GOE, Grupo de Operações Especiais. Depois disso, vão rastrear a ligação e chegar até o escritório de onde falo. Como não vão encontrar indícios, vão fazer um inquérito, milhões de perguntas e depois me liberar. - E se encontrarem alguma pista? - Eles podem me prender. O fato não é esse. Caso tudo dê errado e eu vá preso, a StolenYou tem um time de mais de 4500 funcionários só no Estado de São Paulo. No mundo inteiro, somam-se 150 mil pessoas treinadas para serem presas e substituídas, caso algo falhe, como o senhor está prevendo. - Para que tanto? - Nós somos uma multinacional respeitada mundialmente, mas apenas na área de crime organizado. Talvez por isso o senhor nunca tenha ouvido falar de nós. A StolenYou visa apenas facilitar a relação ladrão-vítima, que hoje em dia tornou-se muito violenta e desonesta, o senhor não concorda? - Concordo. - Agora é só escolher, senhor Anderson. Lembrando que estamos também com uma promoção para o Plano Light, onde o senhor e sua família são trancados no lugar da casa que desejarem, desde que não possua janela nem telefone... - Ok... 21
Amores Urbanos – Robson Assis - E levam inteiramente como cortesia, uma mala térmica da StolenYou para ser usada durante o processo de assalto. Esta mala vem com 6 latas de cerveja, dois refrigerantes de 2l da sua preferência, 30 coxinhas de festa, 10 kibes e 15 esfihas de carne, além de pratos, copos e guardanapos, para que o senhor tenha conforto enquanto é assaltado. - Entendi. E por isso eu não pago nada, certo? - O senhor já estará pagando muito caro. Este é um brinde da StolenYou para o senhor. - Certo, fico com esse. - Ok. Deixe-me só completar a ficha. Qual o melhor horário para o senhor? - Pode ser hoje, às 23h mesmo. - Certo, sr. Anderson. Caso o senhor queira encomendar algum de nossos serviços, no site temos uma lista na qual o senhor pode escolher o que deseja. Entre os mais executados estão: Assassinatos por vingança, seqüestros de mentira e sustos terroristas. - Tá bom. Tá bom, Pompeu. - O senhor pode indicar cinco pessoas para participar de nosso cadastro e ter alguns benefícios. Quem o senhor quer indicar, sr. Anderson? - Não, por enquanto não. - Então ta certo, hoje às 23h. Está anotado aqui. Quais os refrigerantes o senhor prefere? - Pode ser Coca e Guaraná mesmo. - Ok. Anotado. Eu só peço para que, 10 minutos antes do horário marcado o senhor deixe as portas de sua casa livres para o acesso de nossa equipe. - Certo, certo, combinado então, Pompeu. - Tudo bem então, sr. Anderson?! - Sim, certo, obrigadão! Tchau! - A StolenYou é que agradece a sua preferência. *Os gerúndios são propositais.
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A História do Prato Ou “Ensinando Decepções de Amor para Crianças” Eu era um prato. Muito, muito vazio. Era apenas um prato. E vivia no meio de uma praia onde o vento era bem forte, quando o convinha. Certo dia, alguém chamado amor veio encher-lhe de vida. E por um bom tempo ele viveu bem e sem grandes preocupações, estava completo. O amor geralmente ficava ao lado do prato em todas as horas – difíceis ou não – de sua até então explicável existência. Isso talvez tenha provocado no amor, de alguma maneira, um descontentamento, um cansaço de estar ali e viver de um jeito só, a ver o outro feliz, sobre a areia. Numa segunda-feira, o amor disse que havia encontrado a felicidade. Só que o prato não fazia mais parte disso tudo. E disse adeus ao outro, já caminhando em sentido oposto pela praia. Chegou até a rua e sumiu ao longe. Não havia mais como o parar, era sua decisão. Um mês se passou. E não gosto de lembrar como é forte a solidão neste lugar depois que o amor foi embora. O prato ficou só. Alguns amigos tentam alegrá-lo, enchem-no com a areia da praia, cobrem com tolhas de banho. Mas quando chega a noite, o vento é tão forte que consegue tirar tudo de cima dele, deixando-o novamente vazio e desgraçado do mundo. Hoje o prato não busca ninguém que o encha de novo, senão o amor, que o trouxe tudo, desprendimento, esperança e alívio. O prato só não sabia que o tal amor carregava em sim tanta dor e angustia. 22
Amores Urbanos – Robson Assis
Dilemas de um Escritor É necessário um grande motivo para escrever belas frases e poesias. É preciso sentir o calor de uma manhã, olhando para algum lago e espantando os mosquitos do ouvido, enquanto se ouve um beija-flor fazer um barulho qualquer que um beija-flor faça. Mas é também doloroso escrever cartas quando não se tem para quem escrever. Uma fuga indecisa, letras que aparecem na caneta e somem do coração. E você termina escrevendo o maior e mais brilhante conjunto de versos de amor que possivelmente ninguém vai ler. Escrever é negócio para malucos. Existem os que escrevem para externar suas loucuras, outros para colocá-las em debate. E há ainda os que, como eu, não conseguem dizer nada do que sentem verbalmente. E isso, caros, está bem cotado na lista de mal do século XX. (Spleen!) Olho pra tela e vejo sair uma frases que vão se juntando e formando outras que falam sobre o barulho dos carros na estrada de Itapecerica, sobre meus pais que a essa hora dormem o 8º sono e do vizinho safado do andar de cima que fica empurrando o sofá às 23h26 de uma terça. Tenha dó. Todas elas fazem sentido e convergem sempre para o último parágrafo do texto que, no final, sempre tenho a impressão de estar curto. Bato os pés quando não consigo escrever nada. Fico alucinado e abrindo portas, procurando saídas. É a falta que me faz o calor de uma manhã, a vista de algum lago, um mosquito a me azucrinar o ouvido e um beijaflor a fazer um barulho qualquer que um beija-flor faça.
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Os Últimos Tragos da Noite Era umas três da manhã já. Eu passava ali em frente ao Inocoop, saindo da quermesse na sexta/sábado mais alucinante do começo das festas de inverno. Estava a pé. Na mente, pelo menos seis doses daquela batida açucarada, alguns tragos no baseado do Peu e meia dúzia de garotas que passaram por mim durante a festa. Voltava tranqüilo, sobravam 3 cigarros no maço que acabaria logo que chegasse em casa. Primeiro trago – Ver luz em meio à escuridão absoluta Antes de chegar na avenida, acendo o primeiro e sigo em frente. Um gato preto corre sobre o muro de uma das poucas casas que espreitam a rua. Eu olho para o alto e sigo em frente, sem pensar em sorte ou azar, decido esquecer o gato. Outros passos mais largos no trecho sem iluminação. Nessa hora ouço o barulho de um tapa bem dado. Não quero parar, encaro o chão e continuo a caminhada. Outro tapa, sem dúvida vindo de trás daquele fusca abandonado. - Cuzão pra caralho hein moleque, cadê você agora, tio? - Me deixa em paz, truta, pelo amor de Deus. - Truta é o caral... Um grito mais alto me fez perceber a voz do Estrela, vizinho meu, amigo de infância, hoje meio distante. Parei e olhei pra trás, boné branco, camisa larga, ele mesmo. Voltei alguns passos, cumprimentei o malandro. Ele estava com uma arma na mão. Falou seco, disse meu nome na frente daquele filho bastardo da favela, o Zeca, endividado no tráfico e, neste momento em uma péssima situação. Já tinha visto o Zeca na festa. Passou olhando para os lados afoito, como quem precisasse fugir. Ao mesmo tempo tinha aquele ar de superioridade que todo nóia aparenta. “Eu uso, vocês não usam”, isso sempre me deixou puto. Mesmo assim, a cara ensangüentada e os dentes quebrados daquele maluco não faziam me sentir 23
Amores Urbanos – Robson Assis muito bem. Pedi ao rude do Estrela pra parar, a polícia ia chegar logo, algumas janelas do prédio já olhavam para a rua como se esperassem a viatura chegar. - Pode crer, vamo embora. Quando ele apontou a arma para o golpe final, segurei seu braço. Uma criança olhava de uma janela da sala, mostrei pra ele, a garotinha se escondeu rápido quando viu que a percebemos. Barulho de sirenes, corremos em direção à viela dos apês, ninguém acha ninguém ali, ainda por cima, ia cortar meu caminho. Só não fui por lá antes pela hora, mas no risco iminente, corremos para lá. - Porra, Leco, devia ter matado aquele filho da puta, mano. - Nada, Estrela, desencana. Os homi já tomaram conta da cena. Você podia ta lá essas hora. - Vai vendo nénão, tiu. Ce apareceu na hora certa memo, ó mano. - Miliano né, truta, sabia que ia dar bosta ali, melhor chegar junto. - Firmeza então, aqui ta no seguro, só descer pela mureta, ce ta ligado né? Vou ter que chegar ali na lojinha - Isso memo, moleque, vai com Deus nessa caminhada aí.. - Nóis. Vi ele subir por alguns buracos tortos e entrar numa casa em que, provavelmente, todos dormiam. Salvei a vida do pilantra do Zeca, mas livrei meu parceiro de ir pra cadeia à toa. Era algo sensitivo o que eu tinha com o crime, nunca me envolvi diretamente, mas era coisa de vidente mesmo. Eu podia sentir a hostilidade com que os outros nos olhavam das janelas, mesmo se escondendo atrás das frestas, o mal-cheiro dos policiais subindo a rua com os canos das armas pra fora, o clima de terror que tomava a menininha quando viu que era ela quem estávamos olhando. Mesmo assim, salvei a vida de um filho da puta que conseguiu escalar o inferno até voltar à Terra. Segundo trago – Quando calar é a melhor sentença Atravesso o bairro praticamente inteiro sem tropeçar para não chamar a atenção. Ao chegar na avenida escura, beirando o matagal, voltei a respirar. Tornei a pegar o maço magro e abduzir outro cigarro. Subo a rua, vejo as árvores, as pedras espalhadas na rua, desenhos de amarelinha no chão e o que tudo aquilo representa para crianças com duas décadas de idade a menos que eu. As luzes vez ou outra aparecem, em postes tão sombrios quanto nossa própria realidade. Chego ao topo da rua. Pensei algumas vezes antes de decidir o caminho futuro que me levaria para casa. Fui em direção à outra avenida, lembrei de alguns enquadros e policiais no acelero da madrugada, preferi voltar pelo campão. A chegada até lá é tranqüila, pelo menos uns seis condomínios. Portões automáticos, carros do ano, guardas com quepe. A pseudo-segurança deles me faz rir sozinho em alguns instantes. Um casal se beija atrás do carro, próximo ao muro, do lado oposto aos condomínios. Não tem luz ali, eles se beijam entrelaçados, provavelmente seminus . Consigo ouvir os barulhinhos, risadinhas e sussurros. Não se consegue esonder nada na madrugada. O silêncio da noite nos faz perceber o quanto somos vulneráveis. Sigo caminhando, fumo à meia-vida. Ao chegar no campão, apenas algumas lâmpadas acesas do lado de fora das casas na vila ao lado. Atravesso o caminho de pedras que dá para a rua sem saída e me deixa mais perto de casa. Chego na rua, finalmente algo para ver. Um cheiro de alumínio queimado me faz olhar para trás e ver garotos abaixados na escada que dava para as casas, fumando crack e desperdiçando suas juventudes agora já predestinadas a um ponto sem volta. Um deles coloca a cabeça pra fora, pára um pouco e volta, quando vê que sigo meu caminho. “Fique em paz, irmãozinho”, penso com meus botões. Finalmente, a ladeira. Os bares da esquina já estavam fechados. Antes de cruzar a rua, um gato sai de uma casa e passa correndo na minha frente. Isso me chama atenção para a única casa com a luz ligada naquele horário. Novamente barulho de tapas e alguns gritos, bem mais altos do que aqueles com os quais identifiquei a voz do Estrela, meia hora atrás. Passo pela casa e vou embora. Passos adiante, o barulho de portão se abrindo me faz parar. 24
Amores Urbanos – Robson Assis
- Você vai aprender, sua safada. – Mais um tapa na mulher. A raiva que tenho diante dessas situações deve ser igual em qualquer ser humano homem. Ver uma mulher apanhar, provavelmente do marido, é absurdo de se ver. Penso em ir até lá ver o que acontece, mas dessa vez não consigo. Apenas páro no final da rua e observo os tapas. Muitas vezes o marido bate sem culpa, mas como saber? A lei da quebrada é um pouco diferente da habitual lei dos homens de que homem não bate em mulher. Ladrão bate em mulher, mas se ela tiver um bom motivo para apanhar como qualquer outro filho da puta. Ainda assim desconfio do tom de voz do fulano. Tento voltar para ajudar ou coisa parecida. Mas antes de pensar completamente nisso, as luzes da rua começam a acender. Zé povinho na madrugada é como lésbica no show da Simone. Abro um sorriso pela comparação e termino de descer a rua. Resolver assuntos alheios é uma das coisas que, sem dúvida, não nos faz mais completos. Segundo trago e meio – A respiração, a liberdade instantânea O Peu tinha me deixado umas bagas de maconha, tinha certeza disso, estava em algum dos meus bolsos e eu as procurava freneticamente, afinal, viver uma vida e não dar uns pegas atrás da estação é como não viver uma vida. Bato em todos os compartimentos da blusa e finalmente encontro. Me sento atrás da pilastra. A estação fechada e, de frente para a entrada, penso nas pessoas que em meia hora estariam ali esperando abrir para pegar o primeiro trem do dia. Penso durante uma prensada, Prenso durante um pensamento. Trava linguístico assim. Uma viatura passa com faroletes na avenida, mas não conseguem me ver. Esqueço do mundo naquele lugar. O cigarro de maconha começa a tomar formas estranhas e gargalho ao pensar nisso. Provavelmente não me lembrarei o motivo desse riso daqui a dois minutos, mas a vida é melhor assim, vivida de momento. É um tipo de sensação que todos deveriam experimentar: Não ligar para o que os outros dizem ou pensam e mandar o mundo se ferrar sozinho. Terceiro trago – Ninguém quer salvar o Estrela Finalmente me levanto, após um êxtase de alegria e a companhia de outros gatos que, já havia percebido, só me traziam desgraças quando passavam. O efeito ainda não tinha passado, mas já estava controlável, como se diz por aí. Volto à rua, ao convencional, ao mundo dos fantoches. Abraço a idéia de que nada é completo sem a minha presença. Não sei como cheguei até esse pensamento, mas essa era a tese final. Após acender o derradeiro cigarro da noite, atravesso à rua, em direção à barraquinha. Ali, cobradores de ônibus de turno matinal dividem lugares nas cadeiras com bebuns de dias inteiros e outros loucos que voltam de qualquer lugar. Um lugar simples, salgadinhos de borracha pendurados, batata frita e pipoca e os mais diversos tipos de bebida forte que você quiser encontrar. - Ô, Leco, fala aí, qual a boa? – Diz o dono, que conversava com pessoas das cadeiras. - Fala Denis, suave? Vê aquele bombeirinho caprichado no limão! – Digo como bom e satisfeito cliente. Pago o fulano, cumprimento dois ou três rostos conhecidos e me despeço de Denis. Subo a rua e tomo em rápidos goles o drink. Dois nóias da quebrada dormem na calçada da rua, perto do bar já fechado. Estão sempre ali, discutindo e roubando pedestres. Lembro da Dona Cida, que roubaram um relógio ameaçando com um pedaço de pau. Me volta a raiva e jogo uma pedra de longe. Erro, mas tanto faz, a vida dos dois já não deve durar até o natal. Ao passar pela escola, outro casal conversava. Ele sobre a moto, ela de capacete na mão. Silenciosos, nem sei se falavam alguma coisa. Provavelmente sim, mas com a presença de um estranho, param a conversa. Ouço o assobio. Cumprimento Pilé, amigo da vila também. Perguntou se os caras ficaram lá, respondi que não. Ofereceu uma carona, mas disse que não era preciso, já estava do lado de casa. 25
Amores Urbanos – Robson Assis Já rua de casa, o churrasquinho do Chico cheirava de longe. Havia umas 15 pessoas na barraca, dia de alegria para Chicó. Se eu pedisse dois espetos, certeza que ele me dava aquela dose de Ypioca. Paro no pico, encontro meus parceiros. Peço dois queijos passando do ponto. Ele já me oferece a pinga dizendo “para abrir o apetite”. Conto a eles tudo o que me aconteceu na volta da quermesse. Eles não acreditam que ainda faço esses roles a pé e não comprei uma moto. Talvez nem tenham prestado muita atenção em tudo, só no fato de que voltei a pé de lá. Estão todos alucinadamente longe. Meu sono também já me pede algum esforço. Termino o cigarro e a dose oferecida pelo Chico. Peço para ele embalar os queijos e me despeço dos malandros. A noite é cheia dessas surpresas que não podemos controlar. Sigo a pé até a entrada da vila. Paro ao ouvir alguém me chamar lá do Chico, mas não volto, digo apenas um “amanhã a gente troca idéia” e olho pra frente com o barulho infernal de pneu e um carro na contra-mão. Três fulanos descem do Opala, entre eles, Zeca, ainda com a cara cheia de sangue. Pega na minha mão trêmula e diz algo como “valeu pelo salve lá no Inocoop”. Conto que me assustei, não se pára ninguém assim na madrugada. Sinto ouvir um rangido dentro do carro, mas não presto muita atenção, os malandros estão na frente. Zeca, com um veneno irremediável nos olhos, diz que Estrela é um filho da puta, pois pensava que o tráfico era todo dele. Peço para ele parar, porque nesse ponto discordávamos. Precisava ir embora. Ao bater o olho no Chico, nem uma alma viva. Tremo novamente, mas dessa vez, sem medo. Ao entrarem no carro para seguir a caminhada, vejo que havia mais alguém lá dentro. Enfaixado e amarrado, mas eles fecham a porta. Zeca, no piloto, pede para abrir a janela de trás. Estrela estava lá dentro. Tomado por um repentino estado de fúria e medo, corro atrás do carro alguns instantes e os vejo ir embora. Pego o celular para chamar a polícia. Lembro então de onde estava e de toda a situação que circundava a possível morte de meu amigo. Corro na vila, chamo meus parceiros. Ninguém quer salvar o rude Estrela. - Porra, como assim, vão deixar o maluco morrer memo? - Ce num sabe nem metade da história, Leco, os mano tão na idéia certa. Fico sabendo de pelo menos quatro histórias de desrespeito envolvendo Estrela e me coloco desolado no chão, sem saber no que pensar. Ele vai morrer pelo bem do lugar em que ele mesmo vive. E isso nenhum canal de TV vai conseguir entender. Volto para casa a pensar nas leis de sobrevivência deste lugar em que nasci e me criei. Sento no sofá, um copo de água para reacalmar a dor e a notícia do dia seguinte. Esta era só mais uma noite em nossas vidas. Talvez a última de Estrela. Um tiro dispara ao longe, eu paro por alguns segundos. Minha reação fria pede para que vá dormir e espere para ouvir as notícias com um falso espanto no outro dia. Talvez seja melhor assim. A quebrada silencia e eu continuo contando gatos pretos até adormecer.
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Os Corvos da Berrini Às 12h, eles começam a sair de seus prédios e caçar alimento. Restaurantes requintados, mesas postas, garçons educados, conversas simples acerca de qualquer assunto para esquecer o trabalho que em 15 minutos os absorverá novamente. O Ray-Ban da propaganda eles estão usando. Da família de classe média alta vieram para se manter estáveis e comedidos como foram seus antepassados. Desajustado mesmo é o menino que engraxa sapatos em frente à padaria. Como se pode levar uma vida destas? Eles desfilam seus sapatos de couro e sua elegância quase que endeusada, em frente a uma trupe de estudantes que passa entregando questionários para seu trabalho de conclusão de curso, para quem sabe anos depois vestir um terno como aquele, ter uma mesa só sua, com uma foto da família, um carrão importado na 26
Amores Urbanos – Robson Assis garagem do prédio, um apartamento no Brooklyn, outro Ray-Ban medíocre na Avenida Berrini. O sonho de muitos é a realidade patética de poucos. Eles sobem. O habitat fica deserto por pelo menos outras cinco horas. É quando começam a descer novamente os corvos, a caminho de suas casas. os óculos deram lugar a pastas também escuras e bolsas cheias de algo que reluz parecendo ouro. Carros caros, ônibus fretados, luzes brancas, amarelas, o dia começa a fechar sua cara, a rua enche de corvos. Eles e seus ternos escuros parecem zumbis de gravata descendo escadas em direção à rua violenta que os espera de braços abertos. Demora algum tempo, a avenida se vê novamente esvaida de motivação e dá lugar ao fracasso, nada de madames, motoristas, gorjetas. No lugar da cordialidade, a hostilidade. No lugar do garoto com a pasta cheia de currículos, jovens que vendem drogas meninas que atravessam com seus bebês próximo à Chucri Zaidan. Os corvos abominam os povos e voltam para suas casas baseadas na arquitetura das cidades modelo de grandes emissoras de TV. Os meninos, ainda na avenida, choram calor materno e adoecem à luz de entorpecentes macabros. Os corvos voltam a dormir para que no outro dia esqueçam que onde vivem, acima dos óculos, maletas e laptops, há também um pouco de imperfeição.
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Nós, os Não Ricos Sono, trânsito, lentidão. O que dizer da vida de um pobre desmazelado no meio do bolo que acorda mais cedo do que queria, percorre quilômetros até seu trabalho para se manter vivo. É uma desgraça, mas temos que aceitar, não há quem viva sem trabalhar. Os poucos, vencedores ilimitados de si mesmos vivem nas sarjetas a esmolar o pão que o Roberto Justus comeu, amassou e jogou no lixo. Max Weber diria entender o caso. O fascínio da vida só pode ser completo com o trabalho. No ocidente, mais ainda. Quem não trabalha em um escritório é visto com maus olhos, louco, desbravador, ou simplesmente não é visto. Digo isso pelos meus pais que de todos os trabalhos que tive até então, só se lembram de quando fui estagiário numa Multinacional da Berrini. As corporações trazem até você uma isca para continuar vivo. É como aquele desenho, em que o personagem segura uma cenoura em frente ao cavalo para que ele continue o caminho. O problema é que nunca alcançamos nosso sucesso naquilo que queremos dentro de empresas que não nos querem, senão simplesmente para manter um quadro de funcionários "satisfeitos". Outro dia, imaginei, em um segundo das dez horas que me restam no meu local de trabalho. E se eu morresse amanhã? E se eu morresse na minha cadeira, sentado, sem ar, olhando o teto? O que sobraria de minhas histórias, de minha correria por um futuro digno para posteriores relações conjugais, de meus estudos, os discos que tenho, as habilidades, os livros que li simplesmente para ter assunto. O fato é que perdemos muitas horas de nosso tempo fazendo o que não queremos fazer. Pelo menos nós, os não-ricos, sabemos que servimos a escravidão deste sistema operacional que rege todas as coisas. Quer dizer, muitas vezes não sabemos e jamais vamos tocar no assunto. O capitalismo fez o ser humano ceder sua própria vida a conquistas, riquezas acumuladas e bens de consumo. Deixar a herança para outro, perpetuar a classe dominante, abandonar os excluídos, vai ficar tudo bem. Eu não acreditaria nisso tão piamente assim. E a engrenagem segue esmagando a massa. 27
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Finais de Semana Nefastos Às vezes, eu sinto que simplesmente concorro contra minha própria ascensão. Às vezes sou meu contra ego personificado, mas esqueço isso aos sábados de madrugada, quando enquadro um casal saindo do motel, parado no farol, na esquina do Hospital com a Esfiha Chic. Aquele dia, estava com minhas duas filhas: Berê e Neguinha, uma PT e uma 357, mas nem precisei usar nenhuma delas. Ele, quarentão, ela no máximo 21. Corpo esbelto o da Patrícia. Só consegui ver depois que joguei o fulano pra fora do carro. Ele caiu de cabeça na guia. "Traumatismo", disse aquele repórter novo do jornal. As recordações daquela noite são inesquecíveis. Carrão, Augusta, Motel. Ela veio comigo. Nem imaginava ter perdido o marido. Mas Patty queria mesmo era a grana do pilantra. Dono de joalheria, bonitão, família rica. Agora é uma viúva sem filhos e cheia da grana. Quer sair comigo essa noite. Mas sabe como é, hoje é sábado...
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Divino, o Comédia Dan era envolvidão desde moleque. Conhecia todo mundo da quebrada, desde as tiazinhas que comentavam sobre a vida dos outros até os pivetes E essa sexta tava da hora. Já tinha arrastado umas minas pra casinha, vendido mais que a cota de farinha que tinha. Chegou a negar vender mais para um comédia, já tinha reservado umas cápsulas para clientes da semana. Tudo dando certo, samba lotado, rua fechada de motos e suspeitos para a polícia. Uma viatura passa perto e não pára. Ele sorri desordeiro e com os olhos vermelhos. Divino chega no bar e o chama de canto. Sobem a rua umas três casas. Três tiros são disparados. Correria, o bando de moto consegue pegar Divino lá em cima. Com um tique nervoso, o cara tentava morder o pescoço de maneira incontrolável. Também movia o queixo demais. Perguntaram o que havia acontecido. Na Constituição da favela não se mata antes de saber o que aconteceu. "Sei lá, mano, ele não me vendeu". "Porra, você faz do samba esse inferno e ainda mata o malandro por cocaína?" Foi levado ao júri popular. Manchete: Divino dos Anjos, 33, encontrado morto na região do Capão Redondo, São Paulo. Em seu peito, os assassinos escreveram à faca: COMÉDIA.
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Manifesto pela Simplicidade Ser alguém mais simples. Acho que é o que falta para todos nós. Por que teorizar sobre o que não pode ser tocado como os sentimentos. Sejamos portanto menos complexos e mais felizes. Esqueça as teorias de Darwin e seja alguém melhor para o mundo mesmo com Murphy dizendo que você vai se ferrar no final. Carregue seus fardos, esqueça limites, ultrapasse abismos numa pernada só, todos nós podemos. A falta de simplicidade é que faz do mundo um lugar tão obscuro e com pessoas de pensamentos tão incongruentes e muitas vezes maléficos. Desse ponto nos resta a escolha de esquecer os podres, só assim eles se auto-excluem e sermos mais livres em nossas tão absurdas e curtas vidas.
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Amores Urbanos – Robson Assis Não sei quem sou, não sei porque estou aqui e nem o que tudo isto quer dizer, mas os 13 velhinhos que habitam minha cabeça alterando meu destino dizem para que eu deixe isso de lado e faça da vida algo mais agradável do que simplesmente raciocinar fundo e descobrir a chave da vida. Sejamos livres de amarras! O mais belo do mundo está no que se pode tocar, no que é palpável. Sejamos livres para pensar em nosso futuro sem premeditar o que seremos daqui há 10 ou 12 anos. O conceito envelhecido de viver é se sustentar, ter uma vida média, viver num local mediano, ter filhos, uma casa bacana, geladeira e TV a cabo. Talvez ter tudo isso não faça diferença se você se tornar um escravo de seus afazeres, um pau mandado da vida em sociedade. Portanto, amigo, seja livre para decidir o que lhe traz bem. Mas cuidado! Seja verdadeiro consigo mesmo. O que tem sabor de vitória para os outros pode amargar sua boca com a derrota. Seja simples a ponto de não pensar nos outros para tomar suas decisões e mais ainda para ajudá-los quando precisarem. Pois estamos todos no mesmo local, sem saber para onde vamos, sequer de onde viemos. Sejamos livres, amigos, para festejar com requinte o bolo de fubá e o guaraná Dolly em cima da laje da casa. Não existe maneira melhor de aproveitar a vida do que ter uma infinita grandeza de espírito e mesmo na adversidade, saber respeitar que seu destino pode não ter sido igual ao dos filhos do Roberto Justus, mas que vc pode ter muito mais do que eles em pensamento e vontade. Respirar a vida não é para todos. Portanto, sejamos nós, simples.
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Negra Ângela Faz pelo menos uns cinco anos, eu não sei mais o que é amor de verdade. Tentei, era moleque, 15 anos nas costas e uma idéia relativa sobre o que era viver. Quem estava certo? O mano baleado depois de deixar sua filhinha na escola e recusar a entregar seu carro do ano na mão de assaltantes? Observava os ladrões da quebrada, sempre percebi os olhares frios que tinham, as atitudes de tomavam, as conversas que levavam. E foi assim que, aos 18 anos, conheci uma PT. A “Pistola Taurus” é minha amiga desde o primeiro assalto, naquele posto de gasolina 24 horas que só o Bequinha pra me fazer a cabeça mesmo. Fomos os dois, três da manhã, segurança rendido, dinheiro na sacola, escondido no porta-pizza da moto, pra não chamar atenção. Me rendeu um apelido, tempos mais tarde. Me chamam Del, acho que de “Delivery”. Custa entender que são inteligentes os caras, mesmo os do crime. O fato é que tempos depois me envolvi na biqueira do Messias, nome bem sugestivo, mas ao contrário de Deus, o Messias da Atlântico não queria ver ninguém fugir da droga, afinal, nóia é clientela. Naquela sexta-feira eu tava com muita grana. Foram três assaltos de leve durante a semana, mas deu pra encher a geladeira de casa e sobrou uma moeda. Peguei minha Hornet nova e subi em direção ao samba do Tevez. Passei antes na casa do Preto Célio pra acertar umas paradas com ele e ficar suave no samba. Meu truta de muito tempo atrás, eu que dei o apelido de Preto Célio. Estávamos distantes por brigas entre amigos de nossos amigos, não valia a pena desfazer uma amizade. Bati no portão, ele saiu sem camisa, mais magro do que nunca. Fazia uns meses que não o via, o cara tava só a carcaça. Meia hora de conversa o diagnóstico: AIDS. Não era pra menos. Sempre que perguntava sobre ele, me diziam que estava no Treme-treme, aquele prédio do centro que tem mais putas por andar do que tijolos na parede. Nem pra se cuidar. Conversamos mais de uma hora, até me esqueci do samba. Me contou sobre sua prima que veio do Nordeste morar com ele, mas a notícia passou despercebida pelos meus ouvidos, até quando saiu pela porta da casa dele uma garota morena, descalça, saia comprida e negros cabelos encaracolados tão brilhantes que achei ser um anjo. Parei naquele olhar de criança, me senti 29
Amores Urbanos – Robson Assis novamente com 15 anos. Ouviu nossa conversa por algum tempo, até que Célio percebeu sua presença e nos apresentou. Quando ela apertou minha mão, lembrei daquele filme que o Bola me emprestou semana passada, do Ray Charles. O cara era cego e sabia a beleza de alguém apenas pelo contato e pela maciez da mão da mina. Não quis soltar, mas pelo meu senso moral involuntário, larguei a mão da pequena. Começou a me contar sobre Ângela, que quis vir pra São Paulo conhecer a cidade, mas acabou se apaixonando por tudo aqui e, mesmo com a pobreza de seu primo, tinha resolvido ficar. Tinha diploma de faculdade, mas trabalhava como secretária na Berrini, estava se virando da maneira que podia. A garota entrou, continuamos, mas a paisagem da beleza de Ângela não queria sair da minha mente. Para não fazer besteira, achei melhor esquecer e disse a ele que ia subir, disse que deixei o Bequinha esperando no samba. Mentira, ele estava lá, mas não me esperava. Isso era só para apressar a coisa toda. - Firmeza, aí, valeu mesmo ter colado aqui pra trocar idéia, truta - Diz Célio - É ‘nóis’, mano, não vamos desfazer amizade por nada. - Pode crer - Aí, lamento a doença, mano, mas fica com Deus. Depois de um abraço fraterno, sinto que ele estava tremendo, talvez chorando. Ângela, agora na porta, via tudo. Quando disse tchau a ela, Célio perguntou se eu não a levaria comigo para o samba. Claro que dei um tempo, pra fingir estar pensando duas vezes sobre o assunto. Aceitei e ela foi se vestir. Recomendou que não a envolvesse em nenhuma fita e só mais tarde fui saber que ele disse também à garota que eu era um cara gente fina, que ela poderia confiar em mim. Fumava um cigarro do lado de fora, esperando a moça. Prefiro não descrever a sensação que tive quando a vi sair pelo portão. Ela subiu na moto e fomos pra lá. Ao chegar, o lugar estava lotado. Motos pela rua inteira, para todos os gostos, carros rebaixados, gente bebendo e a banda tocando. A polícia vinha até a rua e virava uma esquina antes. O samba estava no contrato com a PM. Entramos no bar e, por sorte, havia uma mesa um pouco destacada do som, perto do balcão, perfeito. Começamos a conversar, ela me disse sobre a vida que levava no nordeste, a seca, as plantações perdidas, seu estudo, sua nova vida em São Paulo. Era alguém que pensava muito além de mim. Meu destino estava traçado. Um dia, neste mesmo bar conheceria uma menina e engravidaria a coitada. Pagaria pensão e morreria baleado em um assalto, ou na cadeia, sem mal conhecer meu filho. Ela havia me mostrado que viver poderia ser um desafio mais bacana do que levar coisas que não nos pertencem ou aterrorizar casais de ricos nos faróis. Após três cervejas, ela estava solta. Se levantou e foi dançar na roda. Fiquei apenas admirando de longe, primeiro a beleza de Ângela, depois a vida que incendiava a menina. Pensei várias vezes sobre os assaltos, sobre o crime, talvez fosse mesmo hora de mudar. Só após muito tempo sem conhecer alguém interessante é que repensamos novamente a vida. As garotas que frequentavam o bar, ao perceber o afastamento da moça, chegavam na mesa, se sentavam, cumprimentavam, mas eu não me importava mais. Não queria mais uma noite com nenhuma delas. Eu queria Ângela. Ela me olhava sorrindo sarcásticamente a cada mina que se aproximava. Um tempo depois, voltou à mesa. - Famoso você, não é? - Que nada, essas minas ficam em cima de todo mundo, sempre. - E você não gosta disso? - Não quando tenho alguém mais interessante comigo. A menina pegou seu copo para beber e olhou para o lado, encabulada. Outros 10 minutos de conversa e estávamos nos beijando na mesa. Não queria seguir os impulsos normais: Embebedar a menina, levá-la para outro lugar, depois pra casa, sair de madrugada, após o sexo. Queria só continuar ali, um tempo. 30
Amores Urbanos – Robson Assis Bequinha se aproximou da mesa dizendo que tinha uma treta lá fora dos trutas do Célio. Só não disse que eles queriam pegar a gente. Falei que não queria ver, que podia deixar eles se matarem sozinhos. Saem os primeiros tiros. Ângela se assusta e corre em direção ao fundo do bar. Vou atrás dela e digo para esperar ali e não sair, não importa o que acontecesse. Algumas balas acertam dentro do bar. Me escondo atrás da parede e vejo quem está atirando. Três fulanos. Bequinha, do outro lado, acerta um deles. Os outros se escondem e começam a fuzilar dentro do bar. Acabam as balas deles, que tentam sair correndo. Levanto e digo para que parem. Faço-os ajoelhar e pedir perdão a Deus. Minha última cartada no crime. Depois disso, prometo que paro e fico com Ângela. Serei eu feliz para sempre com essa mina? Não sei, mas pelo menos ela me fez ver o mundo com cores tão novas e é assim que vai ser. Por ela esqueço tudo isso, arrumo um emprego justo, viro gente comum. Esqueço todas as mulheres que me idolatram pela grana e pelo poder que isso lhes confere. Termino o trabalho e entro no bar, para buscála, dizer a ela tudo o que pensei enquanto executava os dois malditos do lado de fora. Ângela estava escondida atrás do balcão, mas numa posição estranha. Havia sido baleada. Procuro Bequinha e vejo que desce a rua correndo, sem avisar. Saio pelo portão com ela nos braços. Jogo a PT na mata. Não há mais ninguém na rua, chamo uma ambulância. Meu anjo sangra demais e quando a vejo subir na maca, desacordada, tenho um espasmo de terror. Naquele dia lembro de ter ido até o Hospital Campo Limpo chorando muito e sem capacete. Não avisei o Célio, era tarde e ele não podia se preocupar com isso. Se tivesse tempo para me casar com ela, ter alguns filhos que fossem pessoas bacanas quando crescessem, ou se pelo menos eu tivesse tempo de dizer a ela que queria mudar de vida e por causa dela, seria tudo muito diferente. Esta cela de presídio e os outros 49 presos aqui dentro convivendo com ratos e a podridão dos canos de esgoto que respingam aqui dentro, não têm nenhuma relação com a vida que eu tinha para levar ao lado dela, muito menos com seus cabelos negros, muito menos com seu rebolado aquele dia no samba. Ângela foi um anjo que veio à Terra apenas me dizer que o mundo pode ser um lugar melhor se eu quiser que ele seja. Em três horas conseguiu colocar lentes gigantes em minha visão limitada. E assim foi embora, na cama de um hospital da periferia abandonada de São Paulo. A vida continuou pra mim, com mais raiva do que antes, com menos esperança do que antes e hoje conto isso enquanto ouço gritos e lamúria na cela do lado. Morador efetivo da 325-B já não me importo com a morte, sequer com a vida, perdi minha PT, perdi o amor da minha vida. Hoje, mesmo com os pensamentos novos e incandescentes que Ângela um dia plantou em minha mente, a comida azeda deste lugar e o ódio encubado destas paredes me fazem acreditar piamente que dias melhores não virão.
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Se não Houver Amanhã Eu não quero dizer que nós dois daríamos certo. Que a vida seria justa com um namoro estável e um casamento infalível. Conheço muitos casais assim e nada me parece mais ultrajante. Sabemos que dormir com uma mágoa no peito é uma sensação arrebatadora para o coração, às vezes humilhante, mas é o que nos torna fortes e sábios. Ela é linda, tem um coração imenso, um jeito de falar que me faz lembrar que a vida vai além do meu coração comunista e das minhas bandeiras negras que imagino penduradas na parede deste quarto. Estamos distantes, mas parecemos tão perto. Eu olho para o teto, as luzes apagadas, tudo faz o mundo girar pouco agradável. Além da dor física do leito, existe uma dor de não poder tocá-la o rosto e sentir seu sorriso se fazer com um carinho. Querida, tudo é tão triste para mim. Me sinto amarrado, sem saber sobre o que será de nós. Sabe aquela caverna de Platão, a qual sempre me lembro quando falamos sobre alienação? De certa forma, me sinto assim, sem saber sobre o mundo que acontece lá fora. Um médico abre a porta, eu o olho como quem suplica pela vida. Será que ele vai dizer algo, ou vai fazer como os outros, conferir a prancheta na ponta da cama, sacudir a cabeça negativamente e dar de ombros, 31
Amores Urbanos – Robson Assis como quem pouco se importa? Segunda opção. Mas antes dele sair, eu digo algo que o faz parar de cabeça baixa segurando a porta: - É um caminho sem volta, não é doutor? Julio encosta a porta e se volta para falar comigo. Era alto, uma barba rala, mas bem cobreposta, parecia que plantava cuidadosamente cada fio de cabelo sobre suas bochechas. Sentou ao meu lado, lembrei daquele monte de seriados sobre plantões médicos engraçados em que a recepcionista é amante do diretor do hospital. "Ele realmente parece um ator", penso comigo. Um ator em um hospital público num bairro perdido da cidade. Põe a mão sobre meu peito, como um amigo. - Não vem ninguém te ver?, diz Julio, espantado. - Não doutor, hoje não, talvez amanhã. - E se não houver amanhã? Viro a cabeça. Parecia Nietzsche ou Augusto dos Anjos falando ao meu lado, enterrando palavras fúnebres sobre tudo o que via. Ao menos era sincero. Lembrei dela, pedi ao médico que abrisse a janela. Comecei dizendo que havia uma pessoa De outro lado da cidade e que talvez não pudesse vir me ver. E além do pessoal de casa, talvez fosse a única que realmente se importasse. Tinha os cabelos escuros, a pele branca, era alta, era linda. Tive dias com ela que de tão perfeitos pareciam que o mundo inteiro havia parado apenas para nós. - Mais triste que minha situação neste quarto de hospital é lembrar de uma citação de Paulo Coelho dizendo que "Quando você quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que você realize o seu desejo”. Autoajuda suicida, não? Ele riu. Prossegui. Nunca soube direito quem eu era. Minha vida até então havia sido decerto frustrante. E com ela tudo parecia fazer certo sentido. Aquilo vez ou outra me causava medo, mas os dias faziam esquecer. Alguém disse uma vez que é melhor pensar na morte quando chegar o fim da vida. Filósofos e suas anedotas. Aquela frase tinha um fundo trágico e eu o vivenciava naquele instante exato, dentro de um quarto de hospital, sozinho. Fazia frio em São Paulo. A madrugada era sempre gelada, mas com aquele vento que passava por nós e subia em direção ao outro bairro no final da subida, a noite se tornava algo horrível para alguém que debilitado segurava o pranto e contava suas histórias ao doutor. Pedi para me levantar. Ele insistiu que ficasse na cama, mas sabia que fazia parte daquele instante me deixar fazer tudo o que me viesse à mente. Julio me agasalhou. Dois casacos pesados de lá grossa cobriam meu corpo que de negro, mais aparentava amarelo e pálido. Me acompanhou até a janela. Fez com que eu segurasse no corrimão. Não, eu queria sentar. Fiquei na cadeira encostada à janela, bem próximo daquele frio que não doía mais do que a falta De meu amor. Comecei a procurar as estrelas que gostávamos de ver no céu, encontrei uma apenas. E dela não desgrudava meu olhar sereno e febril. Continuava contando ao médico sobre meu amor e a dor que causava em um homem a falta da mulher que se ama. Ele estava ressabiado com algo. Olhei no relógio, estava perto das 5 da manhã. Julio disse que saía mais cedo que os outros funcionários, perguntei a que horas saíam os outros, afinal, quase não aparecia ninguém no meu quarto. Ele me respondeu que só largavam o turno com o amanhecer do sol. Eu disse que podia ir embora, ali eu ficaria bem. Que mal faria um cidadão em meu estado? Até a mim mesmo ficava complicado tentar qualquer brutalidade. - Vou dar um jeito de não me jogar da janela, pode ir, cara. Eu tenho esperança. Confiou em mim. Pobre homem. Se eu me matasse esta noite ele não saberia o que fazer no outro dia. Ficaria tenso, marcaria sessões com psicólogos e terapeutas, sua garota o daria a maior força do mundo e no mês seguinte, talvez ele nem lembrasse meu nome. Estava realmente com uns pensamentos malucos naquela noite, 32
Amores Urbanos – Robson Assis mas nada que deixasse entrar o suicídio em minha mente. Suicídio é fuga. E eu não queria algo tão deprimente assim em minha história. Voltei a olhar nossa estrela. Lembrei das coisas que ela me dizia, como me tranquilizava em noites de domingo, como seu beijo era doce e reconfortante. Fechava os olhos e tentava sem sucesso senti-la mais próxima. Hoje eu era só lágrimas e um vazio que dominava o quarto por inteiro, fazendo com que eu me sentisse sozinho num planeta desabitado. Tudo se fazia triste em meu coração. "Talvez ela venha amanhã, se o amanhã houver". Eu lembrava da frase do médico e metia a mão na cabeça. Como eu queria um cigarro. Quando as coisas apertam é que um viciado sabe que jamais vai deixar de ser um viciado. Ela não gostava desse vício, mas ignorava, às vezes até fingia gostar. E eu colocava os dedos sobre a boca, fingindo fumar. Fechei então a janela e me arrastei até o corredor daquele hospital, para tentar mudar o foco da mente. Não havia ninguém à vista, eu começo a caminhar e me acostumar com as pernas. Olho alguns quartos em volta, todos vazios, com as luzes apagadas. "Não é possível", penso. Abro algumas portas, nada, sequer uma alma penada além de mim, que caminhava pelos corredores como um fantasma. Finalmente já quase no final, um quarto com a luz ligada. Uma senhora abre a porta desesperada, provavelmente achando que eu era um médico. Quando percebe o apoiador com o qual me mantinha de pé, fica desamparada. Começa a me explicar que ele, Seu Vicente, deitado imóvel e com uma respiração fraca sob a cama, não tinha mais jeito. “Esse último andar é para os que não vão conseguir sair do hospital caminhando”, ela disse. Assustado e um pouco irritado com aquele pessimismo da senhora, pergunto o porquê. Ela me fala que perdeu três irmãos neste mesmo lugar. "Os médicos sobem poucas vezes, nada dizem e o final é sempre o mesmo. É como um pré-IML". Quando revelo que também estou naquele andar, ela faz um sinal da cruz, me olhando nos olhos com se estivesse olhando um corpo já sem vida. Volto ao quarto de onde saí, desta vez mais rápido. Sento na cadeira ao lado da janela. A estrela havia sumido. O dia começava a clarear, mais pessoas caminhavam na rua, o barulho de carros já não era tão tímido quanto o da noite. Meu amor vinha ainda hoje me ver, depois do trabalho. O dia teria de passar inteiro diante de meus olhos até que pudesse ver aquele sorriso atravessar esta porta. Não queria uma tarde inteira com ela, não queria viajar para a Londres com meu amor, nem uma noite de sexo em um quarto de hotel em Dubai. Se ela abrisse a porta e me desse um sorriso, Deus, talvez fosse hora de me levar. Começo a dormir e a única coisa que peço é que meu mundo não acabe antes daquele sorriso cruzar a porta. Se houver um só amanhã e um só sorriso aberto, poderei dizer que tudo valeu a pena.
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De Olhos Fechados O relógio marcava quatro da madrugada. Gostava de acordar mais cedo para tomar um café da manhã sossegado, cansado, assistindo o primeiro jornal do dia, antes de sair para o mundo que já acontecia naquele momento. Saí de casa e caminhei pela rua escura até o ponto de ônibus. Garotos voltavam de algum lugar conversando alto e rindo. Encostei na parede, começando a jornada ao trabalho, no outro extremo da cidade. O coletivo já ia relativamente lotado às 4h30. 'Relativamente' é quando se consegue ficar imóvel sem ser perturbado. Lotado é quando a coisa lembra realmente uma lata de sardinha. Ia em meu lugar de pé, ouvindo Tupac no tocador de música. Changes. As coisas que mudaram, que não mudaram, sentia meu cotidiano triste, refletia sobre o dia anterior e prestava atenção no sono dos que, com sorte, conseguiam lugar para ir sentados até o centro da cidade. 33
Amores Urbanos – Robson Assis Passando o cruzamento com a Espraiada, pela avenida Santo Amaro, já não cabia mais ninguém naquele veículo. O motorista sabia disso. O cobrador sabia disso. os cento e poucos passageiros encurrlados nas entre os balaústres de metal sabiam disso. Dali pra frente começavam a descer os que trabalhavam no Brooklyn e no Itaim, ia melhorar. Feito. Acreditei por um segundo que pudesse viver um dia inteiro de olhos fechados. Era fácil, nossa rotina pode ser contada. De olhos fechados eu poderia saber o que aconteceria em cada hora do meu dia. Pedi perdão a Deus pelo mau pensamento, mas sabia que podia ao menos narrar meu dia sem vivê-lo, isso me confundiu por alguns segundos até que uma moça de vestido social preto se levantou e cedeu seu lugar, já havia chegado ao seu destino. Me sentei e esqueci disso. Dormi um pouco, acordei na parte baixa da Avenida Nove de Julho. Esfreguei meus olhos e o dia já espreguiçava, mas ainda era escuro. O coletivo já esvaziava, finalmente me alonguei e desci com um bocejo típico, não sem antes acordar um ou outro passageiro que ainda dormia mesmo após a chegada ao ponto final. Saí do Terminal faltando dez minutos para as seis horas da manhã. Corri atrás do metrô Anhangabaú e alguma coisa me fez sorrir. Talvez aquele sol que aparecia fraco e sonolento, os tiozinhos montando as barracas de bilhete de metrô, tudo aquilo tinha uma certa magia, eu não sabia explicar. Subi as escadas do metrô e avistei a Xavier de Toledo. Esperei o farol fechar e atravessei. Na metade da faixa de pedestres, o tempo começou a andar mais devagar. Ela era morena, tinha saias compridas, um tom rubro escuro, vestia um chapéu e tinha uma pele lisa. Eu sabia que jamais diria alguma palavra e segui caminhando, ela deu um trago no cigarro e me olhou por dois segundos que bastaram para que me lembrasse de seu rosto pelo resto de minha vida. Ela passou depressa, com medo. Desceu as escadas e sumiu para sempre. Nunca esqueci aquela cena. Esperei outro ônibus no ponto final. O cobrador decidiu abrir a porta após devorar seu pingado com pão chapa. Poucos passageiros subiram. Saiu vazio o coletivo, rumo ao terminal Pirituba. Era um bom caminho. Avenida São João, Lapa, Raimundo Pereira de Magalhães, final. Eram 7 horas e começavam a abrir as borracharias, bares. As cabelereiras varriam o chão ainda com a porta do salão fechada. Estava chegando novamente em outro ponto final. Sete e meia, milhares de pessoas vão e vem dentro do terminal de ônibus. Eu desço, vou ao banheiro, bebo um pouco de água, sigo para a última linha do dia. O Vila Zatt sai em disparada, faltam dez minutos para o horário de trabalho. Bem são só alguns pontos. Olho aquele bairro como se pudesse morar ali em pensamento, era tão igual ao Campo Limpo, mas de um lado tão distante. Fiquei olhando pela janela, quando avistei o galpão onde ficava meu trabalho, passando ao longe. Desci e voltei um pouco a pé. Sempre dava dessas. Trabalhava para um grande livraria, arrumava o estoque, empilhava caixas, contava, etiquetava, haveria uma grande Bienal nas semanas subsequentes, o que fez aumentar meu serviço. Novos empregados também foram contratados, todos pareciam vir de lugares simples. Hoje, pela primeira vez, parecíamos mais próximos, todos eles. Nos encontramos no pátio e subimos até o local escuro e seco onde trabalhávamos. O dia estava quente, mas o trabalho ajudava a manter a cabeça distante. Empilhava caixas, organizava os livros, conferia as notas fiscais e colocava nas estantes. Todos se ajudavam, arrumavam os papelões em locais distantes para que um tiozinho de idade inteira viesse buscar a cada uma hora, com um carrinho. Ele passava tanto por ali que ganhamos certa intimidade para fazer piadas e brincadeiras. Seu Valdo era gente boa, gostava das coisas certas, só rosnava quando via as caixas abertas fora das pilhas, tinha dois filhos com sua esposa, morava na Lapa, apesar de não morar lá, imaginei que fosse um bom lugar. Durante o almoço, dois moleques saíram para fumar um baseado. Não gostei quando vi, mas cada um tem a sua escolha, sabe o que é melhor pra si. Prefiro acreditar assim. Quando saí do refeitório e desci no pátio, consegui vê-los na praça do lado de fora, assoprando fumaça e rindo à toa. Voltamos para o trabalho, continuamos a rotina. Aquele dia quente estava rendendo de maneira supreendente. Eram três da tarde quando Seu Valdo apareceu e viu dois papelões fora do lugar. - Aí Moleque, disse olhando pra mim. 34
Amores Urbanos – Robson Assis Foi quando sem imaginar, fiz brilhar uma estrela dentro de todos nós naquele galpão. Como já tínhamos certa proximidade, cantei um trecho do Racionais compulsivamente caminhando em sua direção: - "Aí moleque, me diz, então, ce quer o quê? A vaga tá lá esperando você. Pega todos seus artigos importados, seu currículo no crime, limpa o rabo." Valdo recolheu os papéis e virou as costas. Continuei e vi que todos me olhavam. Continuei a música, era sempre assim, ela não saía da minha mente. Cantarolei baixinho, até que alguém ouviu e me seguiu. Em cinco minutos estávamos todos cantando aquele som um pouco mais alto, fazendo as entradas, as passagens como um Wu-Tang-Clan de estoquistas. Acabou o som, de longe eu ouvi alguém cantando outra coisa. Era 509-E, Saudades Mil. Seguimos. Espantosamente, todos nós sabíamos cantar todas as músicas que, aleatóriamente, alguém começava. Thaíde & DJ Hum, SNJ, Consciência Humana, Detentos do Rap, Facção Central, Xis, RZO. Cantávamos 'Paz Interior', quando a supervisora chegou. Abaixamos o tom, fomos amenizando. Ela vestia saia e camisa social, cabelo amarrado, salto alto. Parou, encaixou as mãos sobre a cintura, lembrando uma professora de pré-escola encontrando os alunos aprontando alguma. Era um tanto velha e tinha uma cara um tanto suja. Arrumou os óculos de armação grossa e disse: - Vocês acham que estão num show é? Aqui é uma empresa. Olhem lá pra cima. É um escritório, as pessoas precisam de concentração! Todos ficamos quietos e continuamos o serviço, sem jeito e até um pouco envergonhados, admito. Ela saiu. Caminhou até o elevador social, virou para nós e as portas se fecharam. Deu até pra ver ela se sentando naquele escritório todo de vidro, no mezanino, com máquinas de café, impressoras a laser e poltronas reclináveis. Senti um pouco de pena de nós, nem os escravos eram impedidos de cantar em seus quilombos. Gui terminou de recolher os papéis na empilhadeira e desceu do carrinho. Chegou perto de todo mundo e assobiou o começo de Burguesia, do De Menos Crime, de forma idêntica à música. Ainda deu-nos as primeiras frases: "A minha voz não calo, não sou otário, burguesia do caralho...". Bem baixinho, todos cantávamos mais músicas. A supervisora lenvantou outra vez e nos olhava lá de cima. Balançou a cabeça negativamente e voltou a se sentar. Ali dentro, nós éramos o rap nacional, a revolucionária geração dos anos 90, os guerreiros mostrando serviço. O relógio bateu às oito da noite. Penduramos os aventais bege nos ganchos e saímos em direção ao bolsário. Pegamos as mochilas. Ainda voltei ao prédio administrativo. Aquela supervisora não estaria lá, meus chefes não estariam lá, chefes dos meus chefes talvez já estivessem em casa, jogando golf no tapete e acionando os alarmes do portão. Ali seríamos eu e a máquina de café apenas. Um vício que adquiri na última semana, quando descolei a brecha. A secretária ficava até tarde, Jolene, mas era gente fina, sabia conversar, gostava de música e das coisas boas da vida, se é que você me entende. Naquele dia, Jolene parecia tensa, trocou meia-dúzia de palavras comigo e mergulhou dentro de uma pilha de papéis sobre sua mesa. Parecia ser vigiada. Peguei duas moedas, coloquei na máquina, me servi de um capuccino, sentei no sofá. Uma folheada na revista Cult, sempre tinha alguma coisa da qual eu nunca tinha ouvido falar. Aquela falava sobre Baudelaire. Já tinha lido As flores do Mal, sabia que o livro tinha sido proibido na época, embora nunca tenha ouvido nada a respeito do autor. Mais algumas páginas, deixei a mochila no chão, entrou alguém pela sala, percebi, mas não olhei. Fechei a revista e terminei a bebida. Fui até a máquina e me encarreguei de outra mais pesada. Um café forte e seco, eu precisava. A Caros Amigos falava sobre as Leis do Islã. Comecei a ler, esqueci um pouco o café e fui mais a fundo. Li Glauco Matoso, Ferréz, a entrevista. Hora de ir embora. Encostei o exemplar sobre a mesa, o senhor de óculos na outra poltrona me perguntou se eu gostava daquela revista. Não era um cara mal-vestido, mas não aparentava ser chefe de ninguém. Disse que gostava, tinha uma coleção em casa com vários números. - Mas é uma revista de esquerda não é?, me questionou o senhor - Sim, a gente precisa respirar a rebeldia. 35
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Abriu um sorriso breve, jogou seu copo no lixo. Saiu e acendeu um cigarro no pátio, Jolene parecia transpirar na mesa. Olhava para o lado de fora como se houvesse um monstro pernicioso prestes a entrar e assassiná-la. Disse tchau, ela acenou com a mão, sem me olhar nos olhos, mal podia falar comigo. De fora, também acendi um cigarro. Comentei algo sobre as estrelas e citei Kerouac. Ele sorriu novamente. - Você trabalha aqui? - Sim, no estoque, estamos arrumando as coisas para a Bienal. E o senhor? - Sou do administrativo. Parece ler muito, não? - É, gosto. Estudei Jornalismo. Trabalho aqui porque gosto de livros e o mundo não oferece muitas chances. - Que tal trabalhar no prédio, revisando livros? - Por mim, ótimo. Nunca mais voltei a ver aquele que, certa vez me disseram, de acordo com a descrição que fiz, era o presidente daquela companhia. Não sei o trabalho de um presidente, mas acredito ser um quase dono. Um quase dono sem cara de chefe. Era o que precisava ser. Consegui o cargo de revisor, trouxe mais dois amigos do estoque, que trouxeram mais dois. Aquele dia se passou, aquele trânisto, aquele café, a Jolene, o Valdo, tudo se fez passar como numa história de esperança, contada para crianças. Em alguns anos, enchemos aquela sala de ex-estoquistas que não desacostumaram da idéia de trabalhar cantando rap. E nunca mais quis viver meus dias de olhos fechados.
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Derrotas Foi quase que um soco na cara. Bem dado, daqueles que deixa o adversário no chão, sabe. Não fiquei abalado, mas foi meio triste a ligação do Leandro da MBPress. Tudo bem, era longe, quase não tinha ônibus que passasse por lá, eu ia ter que me matar pra acordar cedo e chegar lá pela manhã. Mas era uma chance para ter minha vida pelo menos começada. Certo, minha vida já começou, está fazendo umas planilhas na RS, mas eu preciso ajudar, preciso reagir. Essa não é a última derrota da minha vida. Eu li textos, comparei, de verdade. Acompanhei as coisas todas. No domingo, durante o jogo entre São Paulo e Vasco eu sentei na mesa do computador, joguei o Estadão no chão, larguei todas os cadernos do lado da cadeira, só deixei o "Feminino" ao lado, para minha mocinha ler depois. Deixei a fotod ela em cima da cama também. Como um santinho, sabe, para te proteger de não fazer merda. Abri o caderno de esportes, estirei na página que falava sobre o jogo. Faltavam três horas para a partida em São Januário. Eu liguei o rádio. Só a rádio Globo ia transmitir. Nada de tv, nada de ver as jogadas. A voz irritante do locutor fazia eu desligar o rádio constantemente para pensar no que ia digitando. Não como agora. Eu não preciso pensar. Às 16h de domingo estávamos, no quarto: Eu, a foto dela, o caderno de esportes do Estadão, O Jornal "Lance", o Word, o Lancenet e a rádio Globo conectados. Já havia parte do texto. Eu sabia de detalhes mínimos, como as linhas do campo que sumiram com a pouca chuva que fazia no Rio de Janeiro. Sabia também que o São Paulo não vencia há muito tempo no Rio e que o Vasco ainda não tinha vencido no Brasileirão. E agora me pergunto, para quê? Eu fiz o texto. Exatos 4 minutos após o jogo, ele estava entregue nos e-mails que o Leandro pediu. Estava bom, li, reli, algum tempo depois, achei um erro de digitação. Em todo o texto, feito rapidamente como eles me pediram, havia uma letra que faltava. Mas estava entregue. 36
Amores Urbanos – Robson Assis Segunda feira eles ligam. "Seu texto foi selecionado", diz a voz do outro lado da linha. Eu desligo o telefone tremendo, sorrindo muito. Ligo para a mocinha, aviso. Ela fica feliz, cheia de esperanças. Esse seria o começo do nosso futuro. Ontem, comemoramos no shopping Boa Vista comendo no Bobs e assistindo Visões (versão japonesa de O Chamado, horrível, mas só pra constar), saímos cedo, fui pra casa. Arrumei a mochila. Decidi que iriam comigo: O guia Mapograf de São Paulo, Minha pasta, o Discman do Rodrigo e o livro do Wagner só pra estar lá. Dormi bem. A foto ainda estava na cama, do mesmo jeito como estava no dia do teste. Ao lado dela, olhando no escuro, decidi lutar até o fim. Dormi com a foto dela em meu braço (baço). Acordei, ela ainda do meu lado, sorridente, esperançosa. Levantei às 5:10 da madrugada. Estava tudo certo, dentro dos ônibus, antes de chegar. Mas ainda não havia pensado no fracasso. Só fui pensar no fracasso quando vi um Scénic entrando no estaconamento do prédio onde ficava a tal agência de notícias. Esses carros só são dirigidos por pessoas que mentem. Era um homem de meia idade, roupa social, gravata e tudo o mais, desses cuja vida profissional vale mais do que qualquer amor verdadeiro. Nunca me dei bem com esse tipo de gente, não trato mal, nem nada. Só não me sinto bem perto de alguém que ri e contorce as sombracelhas. E pela primeira vez eu pensei no fracasso. Ao entrar, cumprimentei o cara que me ligou. Sentei ao lado de um outro candidato, da Faculdade São Judas, segundo ano de Jornalismo, claramente subversivo. Ele conversava sobre qualquer coisa, só pra distrair. Parecia acanhado, com medo, mas talvez lembrasse dos conselhos que sua mãe lhe dava. Conversei um pouco com ele. "É, a prática é ruim. Você recebe a pauta e tem que ir atrás das fontes em Diadema, Sorocaba, São José dos Campos, muito ruim, eu gostava mesmo é da teoria, você estudava para a prova e tinha sua nota". Parei de conversar. O teste era o seguinte: Assitir um jogo entre São Caetano e Santa Cruz (Talvez o nome de um dos times seja um tanto sarcástico, enfim) , pelo brasileirão série B de 99 , relatar os fatos, a escalação, escrever uma matéria sobre a partida. Depois disso, que deveria ser entregue ém até 15 minutos após o término do jogo, havia 15 perguntas sobre futebol, 10 sobre esportes gerais e 5 sobre atualidades. As questões sobre atualidades eram legais. Um pouco imbecis, mas legais. Depois, mais um texto. Agora você tinha que falar sobre uma discussão entre os jogadores José Reis e Alex Dias, do Vasco. Acho que escrevi demais. Depois, uma entrevista: "Você faria outra coisa se recebesse uma mesma proposta como a nossa?", dizia o editor-chefe. Ao que respondi: "Faria". E depois as velhas frases: "tem alguma coisa a mais pra perguntar aí? Acho que não né, então obrigado Robson, a gente liga para você ainda hoje." Aí eu saí e liguei pra linda. Falei o que aconteceu, ela deu a velha força de sempre, até me senti melhor. Peguei o ônibus com um salgadinho e um refrigerante na mochila. Tudo bem, tinham umas bolachas. Cheguei em casa, a ligação. "Então, cara, infelizmente dessa vez não deu. Mas seu currículo fica guardado aqui, para..." E agora me sinto mal. Não quero desistir. Mas pelo menos hoje eu quero paz dormindo com ela. Amanhã é dia de correr de novo. Correr atrás da casa no Paraíso, para quem sabe acordar numa madrugada e ir buscar o pastel na Catarina. Ninguém entende não é? Ela entende. O fato é que hoje eu quero paz. Preciso de trabalho. Sei enrolar carretel na lata de refrigerante, fazer cerol e empinar pipa, sei guardar carro, ler história pra criança, rodar peão, tocar violão e tenho muitas idéias legais e felizes para o seu negócio. Ligue: 581... Não, pra ser sincero, não ligue não.
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Amores, Tragédias e Valquírias Ed não conseguia dizer a Ana tudo o que sentia. Tentava, sempre tentou. Cartas, e-mails, bilhetes, todo o tipo de comunicação, exceto a principal e mais sincera: falar. Sempre que estava ao lado de seu amor sentia algo diferente, que o fazia pensar em como seria sua vida sem os rolês intermináveis de sexta-feira, que só tinham mesmo fim na barraca de pastel na feira de sábado, duas ruas atrás da avenida Robert Kennedy. Pensou em como seria morar com alguém, ter filhos, se dedicar a uma vida nova e repleta de alegrias e desesperos passageiros. Não fazia idéia de como seria isso. Também não sabia que Ana tentava se declarar todas as vezes que se encontravam. Só não encontrava jeito, talvez estragasse toda a amizade que tinham, talvez o sufocasse, talvez se sufocasse. Era cheia de dúvidas. Sua única certeza era o sentimento por Ed. Aquele era um sábado cheio de sol, as ruas do centro pareciam menos desagradáveis com todo aquele sol. Ed caminhava pelo Viaduto do Chá. Dali desceu a São Bento e chegou ao Museu da Língua Portuguesa, onde encontraria sua platônica inspiração para os poemas de seu caderno, sempre presente na mochila que carregava. Chegou cedo ao local e a garota não estava lá. Resolveu caminhar no parque em frente ao museu. Andou sob árvores que o escondiam do sol, sobre camisinhas usadas e restos de garrafas de bebida. Aquele parque era como o final de uma festa no inferno. Todo o tipo de coisa estranha aparecia, viu um travesti caminhando torto em seu salto com uma camisa rasgada e o batom manchando o rosto. Resolveu voltar. Avistou Ana do outro lado da rua, ela estava linda. Uma saia verde na altura dos joelhos, uma blusinha branca com a alça ameaçando cair e desnudar a linda moça. Seus cabelos loiros e esvoaçantes, sempre uma atração à parte. Ela caminhava de um lado para o outro como se o procurasse. Finalmente, se viram. Cumprimentaramse com um beijo quente no rosto e um abraço demorado, fazia tempo que não se viam. Ed tinha pouco dinheiro consigo, mas aos sábados a entrada do Museu era gratuita. Tomaram seus tickets e subiram pelo elevador. Era uma exposição sobre a vida da escritora Cecília Meirelles, grande literata na opinião de ambos. Cartas, fotos, escritos perdidos, primeiras edições de livros raros, livros da biblioteca pessoal da escritora, montes de figuras, o lugar era mágico. Ana caminhava olhando pra cima, admirada a cada passo que dava. Ed não conhecia tanto sobre a escritora, então se empenhou em fazê-lo naquele momento e já que 'sua' garota admirava tanto a tal Cecília, não faria mal entrar no clima. Logo na entrada havia um paredão com diversas frases da autora retiradas de livros. Leu alguns em voz alta, infeliz apenas por não ter conhecido tudo aquilo antes. Duas horas depois, saíram do Museu, pegaram alguns panfletos, marcaram a volta em outras exposições. Ed pediu para segurar sua bolsa enquanto caminhavam até o outro lado do centro. O sol já esmaecia, eles caminhavam com vontade de ficar, devagar, cabisbaixos e risonhos, andavam como quem não quer chegar. Ana evitava Ed por medo de interromper a amizade, Ed evitava Ana por um medo qualquer sem explicação. Ambos sabiam onde aquilo ia dar. Contavam histórias e relembravam momentos subindo a Avenida Ipiranga, próximo ao Bar Brahma, quando Ed disse que era hora de cantar Caetano. Ela pediu que não, ele foi valente, ela o agarrou e segurou sua boca, ele tentava soltar a voz mesmo impedido. Os dois riam alto e em seguida cantavam: "Só quando cruza a Ipiranga com a avenida São João". Riram mais ainda quando não lembraram a continuação da música. Entraram numa velha livraria, um Sebo esquecido pela humanidade, com muitos livros raros, fitas VHS, discos antigos. Vasculharam tudo o que podiam. Ed quase chorou ao ver Bill Halley & His Comets, banda preferida de seu pai na adolescência. Ana insistiu em comprar, depois ele lhe dava o dinheiro. Um décimo de segundo para questionar sua moral e ele não aceitou.
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Amores Urbanos – Robson Assis Numa lanchonete mais acima, decidiram comer, já era um tanto tarde. Na dúvida entre Coca-cola e Sprite, pediram uma cerveja. Serviram-se e comeram alguns salgados já velhos no balcão do bar. Os donos eram japoneses, então a comida não era de todo mal. O problema ficava no mau cheiro e no mundo que se fazia do lado de fora. Eram 9 horas de uma noite calada e sombria no Vale do Anhangabaú. Lembraram mais histórias, se surpreendiam com o outro, se embaraçavam quando sabiam que tinham de dizer o que sentiam em seus corações e nada se ouvia, além dos ruídos vindos de fora. Suspiros e goles olhando o infinito, mais suspiros e dois olhares sem jeito que se convidavam calorosamente. Descobriram que havia música clássica na jukebox, insistência do dono da máquina, que não gostava de forrós e funks. Colocaram dinheiro e escolheram duas canções: na primeira Mozart e em seguida, Wagner. Ed desviou o olhar para a porta do bar, onde um senhor estava encostado esperando que os donos fechassem o estabelecimento para finalmente se acomodar e dormir. Ele tinha um cigarro nas mãos e o fumava assistindo algo que acontecia mais à frente, como um jovem em frente à televisão. Ed olhou assustado, mas tentou prender a atenção de Ana, que estava de costas para a rua. Dois hippies, moradores locais, brigavam por comida, enquanto uma criança pequena chorava num lençol jogado no chão. Era frio, o garoto tinha apenas uma camada fina que o cobria. Os dois digladiavam de maneira brutal. Era a fome que fazia seu primeiro show de horrores da noite. Ana já havia perdido o apetite instantes atrás ao ver uma barata correndo de dentro do banheiro na direção de outro vão onde pudesse se esconder, quando também olhou para trás, viu o senhor e também percebeu a briga que acontecia metros às suas costas. Deu alguma atenção. Quando deram por si, os dois assistiam a cena com medo e apreensão, como num cinema ao vivo. Um som de cavalos veio da rua de trás. Eram dois soldados da cavalaria da PM que, sem demonstrar sinais de piedade, começaram a descer atrás dos baderneiros. Os hippies perceberam tudo isso quando os cavalos já vinham embalados. Mesmo assim tentaram correr, eufóricos e dispostos a atravessar o mundo inteiro para não serem pegos pelos soldados. Ana pensou em Heroísmo, Ed foi menos otimista quando a obra de Wagner na Jukebox parecia oferecer-se a ser trilha sonora da cena. Uma criança enrolada no lençol gritava, dois cavalos disparavam na direção dos dois humanos que corriam para o final da rua sabendo que possivelmente apanhariam feio dos soldados. Era uma cena infernal, barulho de patas no chão, uma criança que gritava, policiais parecendo cachorros raivosos, uma criança que, insistente, gritava. Nem os cavalos, nem os policiais enxergariam uma criança num lençol em meio à toda aquela escuridão, mesmo o garotinho chorando do jeito que estava. Os soldados cavalgavam furiosos em direção ao garoto que gritava agora como se soubesse que estava próximo seu fim. Ed deu um passo quando sugeriu isso à sua consciência. Ana esbugalhou os olhos como se de repente reparasse neste mesmo fato. Um ensurdecedor grito veio do fundo de um corpo pequeno. A criança parou de gritar. Os cavalos partiram sem olhar um bebê pisoteado no chão agora mais imundo da entrada do Vale do Anhangabaú. A cena teve seu desfecho na melodia insana da Valquíria de Wagner. Para evitar que comentassem o assunto, Ed disse que o melhor era ir embora. Haviam esquecido a conversa toda, a tolice de seus doces olhares se encontrando, a pobreza toda do mundo parecia fazer um grande sentido naquele momento e aquilo definitivamente não era um sentimento bom. Aquela criança havia morrido, não havia sentido, porque deveriam estar ali, naquela hora, juntos? Realmente não dariam certo. Naquela noite foram embora juntos no mesmo ônibus. Por motivos que se pode entender, Ed queria ter certeza de ter entregue a garota a salvo em casa. Partiram no primeiro ônibus rumo à Avenida do Estado, caminho da casa de Ana. Se abraçaram sentados no fundo do coletivo e com um sorriso um pouco forçado, beirando a decepção, remediaram tudo aquilo que sentiam dentro de si. Havia implícita no ar uma grande vontade de dar um grande beijo e fazer esquecer tudo aquilo que acabaram de ver, esquecer que existia um universo além dos dois. Mas sabiam que assim, estragariam a si mesmos um pouco mais com estas mentiras. Os dois abraçados voltando pra casa em um ônibus com poucas pessoas era algo com que sempre se lembrariam. A pureza daquele momento, cercada pela barbárie dos instantes que se passaram começava a 39
Amores Urbanos – Robson Assis remediar a dor da situação. Se ficassem juntos ou não, se a vida os fizesse seguir diferentes caminhos, sabiam que aquela noite jamais sairia de seus pensamentos. Ana recostou a cabeça sobre o peito de Ed que fez carícias no cabelo liso da moça e a cobriu com seu braço esquerdo. A moça agarrou forte o rapaz e disse que não queria sair dali. Não havia qualquer carta de Cecília Meirelles ou qualquer sucesso de Bill Halley & His Comets que os dois pudessem se lembrar. Entretanto, conforme o veículo seguia em frente, a segurança que sentiam um no outro se fortalecia na mesma medida em que os gritos da pobre criança relutavam em se desfazer dentro de suas almas. Naquele instante, sabiam que a coisa mais fácil naquele momento seria dizer o quanto se amavam. E, meio que se interrompendo, ao mesmo momento eles disseram. E tudo, de repente, começou a fazer algum sentido.
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