Revista Intervenções nº 01

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Intervençþes Artes Visuais em Debate

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA reitor RÔMULO SOARES POLARI vice-reitora MARIA YARA CAMPOS MATOS diretor do cchla LÚCIO FLÁVIO DE VASCONCELOS chefe do departamento de artes visuais ROBSON XAVIER DA COSTA

EDITORA UNIVERSITÁRIA diretor JOSÉ LUIZ DA SILVA vice-diretor JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO divisão de produção ALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS JUNIOR

COMISSÃO EDITORIAL LÍVIA MARQUES CARVALHO ROBSON XAVIER DA COSTA SICÍLIA CALADO FREITAS

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Revista do Departamento de Artes Visuais da UFPB

Intervenções Artes Visuais em Debate

Editora Universitária João Pessoa 2006

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capa MÔNICA CÂMARA sobre a obra “Composizione II”, 1929, de Piet Mondrian. editoração eletrônica MÔNICA CÂMARA Todos os direitos e responsabilidades da autora. Direitos desta edição reservados à: EDITORA UNIVERSITÁRIA / UFPB Caixa Postal 5081 - João Pessoa - Paraíba - Brasil CEP: 58.051-970 www.editora-ufpb.com.br

Impresso no Brasil Printed in Brazil Foi feito depósito legal

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Intervenções: artes visuais em debate / Universidade Federal da Paraíba. Revista do Departamento de Artes Visuais da UFPB – n.1 (dez. 2006). João Pessoa: Editora Universitária / UFPB, 2006. V.1 ISSN: 1980-7724 Anual 1. Artes visuais.

UFPB/BC

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EDITORIAL “Intervenções: artes visuais em debate” é uma publicação que surge das ações previstas para a consolidação do Departamento de Artes Visuais (DAV) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). No ano de 2004 ocorreu o desmembramento do antigo Departamento de Artes dividido em três novos departamentos, Artes Visuais, Artes Cênicas e Educação Musical.. O Departamento de Artes Visuais estruturou a criação do Curso de Artes Visuais, com a licenciatura que será iniciada no período 2007.1 e o Bacharelado com a Habilitação em História, Teoria e Crítica de Arte em processo de implantação, além de outras ações. Um dos objetivos estratégicos do DAV é desenvolver um programa editorial para divulgação das pesquisas e estudos no campo das Artes Visuais, articuladas com as atuais discussões nas áreas de cultura, história da arte, antropologia cultural, imaginário, ensino de arte, poéticas visuais, cultura visual, imagens, e novas mídias nos mais variados contextos contemporâneos. Para viabilizar esse objetivo uma das primeiras ações do Departamento foi a organização e publicação de uma revista especializada em Artes Visuais. O primeiro número da Revista contempla temas variados de pesquisadores de todo o país, que estudam o assunto. O primeiro artigo é de autoria da Professora Drª Ana Mae Barbosa, “O ensino do desenho oitenta anos atrás: Teodoro Braga”, a autora analisa a história do ensino do desenho no Brasil a partir da contribuição do educador Teodoro Braga. O Professor Dr. Erinaldo Nascimento (DAV/UFPB), com o artigo “Infância, ensino e o bom sujeito docente: a perspectiva da cultura visual” analisa as várias concepções do ensino da arte contrapondo essas idéias com a abordagem da cultura visual. . O artigo “A escolinha de arte de João Pessoa: a persistência de um sonho”, da Professora Dra Lívia Marques Carvalho (DAV/UFPB), faz uma análise inédita da história da escolinha de arte da Paraíba, pouco conhecida e divulgada no país. Janussi Pasquali, mestranda em Artes Visuais na UFBA e artista contemporânea, em seu artigo intitulado “O sentido da produção e relação entre público e trabalho artístico” faz uma discussão sobre a mediação cultural em circuitos contemporâneos. Também vinculadas ao Programa de pósgraduação em Artes Visuais da UFBA temos mais três contribuições: “Espaço (ciber) espaço: novas tecnologias de comunicação colando arte nos espaços urbanos”, de Marilei Fiorelli, mestre em Artes Visuais pela UFBA e 6


professora da Faculdade Integrada da Bahia, discute as intervenções urbanas como categoria da arte contemporânea. O artigo “Arte, cidade e sociedade: dimensões da arte pública no contexto urbano”, de Sicília Calado, Mestre em Artes e Professora do Departamento de Artes Visuais da UFPB, que discute uma parte da sua dissertação de mestrado defendida em 2005 na Escola de Belas Artes da UFBA; “O artista negro na historiografia da arte brasileira”, de Luciana Santos Brito, Professora da Especialização em Arte e Educação da Faculdade Social da Bahia, onde descreve e analisa a participação dos artistas negros na construção da arte brasileira. No artigo “Imagens e História na arte naïf paraibana”, o professor Robson Xavier, mestrando História na UFPB e professor do DAV/UFPB, faz uma análise das discussões da área de história em relação às imagens, particularmente as imagens naïfs na contemporaneidade. Felipe Scovino, doutorando em Estudos da História e Crítica de Arte da UFRJ, com o artigo “Táticas, circuitos e intervenções: dispositivos da ironia na arte contemporânea brasileira”, analisa um dos principais elementos da arte contemporânea “a ironia” como parte de sua tese de doutorado. Maria Helena Magalhães, Mestre em Artes pelo Edimburg College of Art/Escócia e professora do DAV/UFPB, em seu artigo “Do espaço social da arte ao espaço social do mundo” faz uma discussão sobre a arte no contexto contemporâneo frente às transformações ocorridas na filosofia e na ciência.

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SUMÁRIO I - ENSINO DE ARTE O ENSINO DO DESENHO OITENTA ANOS ATRÁS: THEODORO BRAGA Ana Mae Barbosa ................................................................................09 INFÂNCIA, ENSINO E O BOM SUJEITO DOCENTE: PERSPECTIVA DA CULTURA VISUAL Erinaldo Alves do Nascimento ...........................................................29

A

A ESCOLINHA DE ARTE DE JOÃO PESSOA: A PERSISTÊNCIA DE UM SONHO Lívia Marques Carvalho......................................................................41 II - PRODUÇÃO ARTÍSTICA E ESPAÇOS URBANOS O SENTIDO DA PRODUÇÃO E A RELAÇÃO ENTRE PÚBLICO E TRABALHO ARTÍSTICO Lanussi Pasquali..................................................................................49 ESPAÇO (CIBER) ESPAÇO: NOVAS TECNOLOGIAS COMUNICAÇÃO COLANDO ARTE NOS ESPAÇOS URBANOS Marilei Fiorelli ....................................................................................65

DE

ARTE, CIDADE E SOCIEDADE: DIMENSÕES DA ARTE NO CONTEXTO URBANO Sicília Calado Freitas ..........................................................................75 III - DIVERSIDADE E HISTÓRIA CULTURAL IMAGENS E HISTÓRIA NA ARTE NAÏF PARAIBANA Robson Xavier da Costa......................................................................87 O ARTISTA NEGRO NA HISTORIOGRAFIA DA ARTE BRASILEIRA Luciana Santos Brito ..........................................................................105 IV - ARTE CONTEMPORÂNEA 8


DO ESPAÇO ESTÉTICO DA ARTE AO ESPAÇO SOCIAL DO MUNDO Maria Helena Magalhães Pacheco .....................................................121 TÁTICAS, CIRCUITOS E INTERVENÇÕES: DISPOSITIVOS DA IRONIA NA ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA Felipe Scovino ...................................................................................131 OS AUTORES ..................................................................................143 NORMAS DE PUBLICAÇÃO PARA COLABORADORES ......147

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O ENSINO DO DESENHO OITENTA ANOS ATRÁS: Theodoro Braga The teaching of drawing eighty years ago: Theodoro Braga Ana Mae Barbosa1 anamae@uol.com.br

Desde meu mestrado na Universidade de Connecticut venho pesquisando sobre a História do Ensino do Desenho e da Arte. Meu maior interesse é o período de Modernização, entre 1922 (Semana de Arte Moderna) e 1948 criação da Escolinha de Arte do Brasil, primeira instituição de ensino modernista de Arte. Neste período o ensino do Desenho era concebido como Arte e como Desenho Industrial ou Desenho Decorativo. A palavra design só vai aparecer na Educação no Brasil a partir da década de 1960 quando a concepção de ensino da Arte como expressão espontânea já estava estabelecida e o Design passou a ter o sentido de projeto, saindo da vala comum das Artes Industriais e do Decorativo. A fonte de 1

Professora Titular aposentada da Universidade de São Paulo (ECA), continua atuando no

Doutorado. Professora do Mestrado em Design da Universidade Anhembi Morumbi. Foi presidente da International Society of Education through Art (1990-1993) e Diretora do Museu de Arte Contemporânea da USP (1987-1993). Publicou 17 livros sobre Arte e Arte/Educação, sendo os últimos: O pós-moder-nismo (org. com Jacó Guinsburg, SP: Ed. Perspectiva, 2005); Alex Flemming (SP: EDUSP, 2002); John Dewey e o Ensino da Arte no

Brasil (Cortez, 2001); Tópicos Utópicos (C/ARTE, 1998); Arte /Educação: leitura no subsolo (Cortez, 1997) e A imagem no ensino da Arte (Perspectiva, 1991). Recebeu o Grande Prêmio de Crítica da APCA (1989); Prêmio Edwin Ziegfeld (USA, 1992) e o Prêmio Internacional Herbert Read (1999), o Achievement Awards (USA, 2002) e o Mérito Cientifico na categoria de comendador do Ministério de Ciências e Tecnologia (Brasil, 2005). Fez curadoria de várias exposições inclusive de Christo, Barbara Kruger (MAC), Alex Flemming, no CCBB-SP. Ensinou em várias universidades estrangeiras, como Yale University e The Ohio State University. Integrou a Comissão Científica do Congresso Mundial da UNESCO sobre Arts Education, Portugal, 2006. Tem proferido palestras e publicado artigos em muitos países tais como Uruguai, Argentina, Paraguai, Peru, Venezuela, Colômbia, Equador, México, Suécia, Holanda, Egito, Finlândia, Polônia, Costa Rica, Alemanha, Nigéria, Espanha, Portugal, França, Inglaterra, Filipinas, Itália, Canadá, Taiwan, Coréia, Japão e USA (em Harvard, Columbia University e Museum of Modern Art etc).

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minhas pesquisas são os jornais da época, todos muito voltados para a divulgação das conquistas educacionais, principalmente até 1937. Com o Estado Novo diminuiu a atenção dada pelos jornais à Educação, mas mesmo assim era muito maior que hoje quando as matérias dos jornais sobre educação só entram em pauta quando há uma tragédia, quando se quer eleger ou destruir políticos ou para elogiar projetos de Fundações poderosas. Neste momento estou estudando os movimentos nacionalistas de Design da América Latina e estabelecendo comparações entre as práticas de três professores nacionalistas. No Peru, Elena Izcue, designer da Casa Worth e de Elsa Schiaparelli, que publicou um livro muito popular para ensinar desenho com base em motivos incas, Adolfo Best Maugard que nas Escuelas al Aire Libre do México associava livre expressão a exercícios gráficos com elementos do alfabeto visual mexicano por ele sistematizado. Neste artigo estudarei o brasileiro também nacionalista, Theodoro Braga porque quero submeter ao leitor esta forma de apresentar o relato encadeando as notícias de jornais e revistas. Será que assim o leitor se sente mais a vontade para estabelecer relações com a sua própria área de interesses? Será que este modo de apresentar o relato torna a História mais viva? Será que estimula a interpretação do leitor? Theodoro Braga era uma das figuras proeminentes dentre os artistas, professores de Desenho/Design dos anos 1920 e 1930. Ele foi um dos mais assíduos e veementes batalhadores contra o ensino do Desenho baseado em cópia. Introduziu o desenho simplificado de formas da natureza, criando nas escolas uma espécie de método art nouveaux de desenho, recomendando sua aplicação na decoração e nas artes gráficas. Um texto do jornal O Estado de São Paulo de 13/09/1925 nos conta quem era. Theodoro Braga – Artes e artistas O Sr. Theodoro Braga constitui um caso bem característico de vocação artística. Filho de um desembargador estava escrito que havia de ser bacharel. E lá foi para o Recife, onde desejoso de cumprir determinação paterna, fez em quatro os cinco anos do curso. Mas, a sua aspiração absorvente era a pintura e não podendo realizá-la conseguiu durante o curso de Direito estudar, à noite, o desenho. O mestre era um marceneiro inteligente e hábil, porém, dentro de pouco tempo, o progresso do discípulo já existia mais do que lhe podia dar a capacidade limitada do professor. Todavia esse contato com o artista e a oficina só lhe foi útil e talvez lhe desse a primeira noção da função social da arte que depois o havia de empolgar. Eis o nosso jovem patrício bacharel formado. Estava satisfeito o voto do desembargador seu pai. Era preciso cuidar da vida. Um colega faz-lhe 11


sedutor convite para trabalhar no Rio. Meio sonho realizado. O Rio, a Escola Nacional de Belas Artes, a convivência dos grandes artistas. Não havia hesitação possível... Abandonou a carreira que adotara forçado e matriculou-se na Escola de Belas Artes. Como prover a subsistência? Só pelo jornal. Um modesto lugar na revisão do "Jornal do Comércio" e estava assegurada ao menos parca alimentação. O curso da Escola de Belas Artes foi uma série de distinções. Discípulo de pintura de Henrique Bernardelli, não demorou que em concurso lhe coubesse o prêmio de viagem. Cinco anos de Europa em estudos acurados e profundos. Volta ao Rio com a imaginação povoada de sonhos. No Rio, como agora, ou mais do que agora, dominavam os corrilhos artísticos, as "cocteries" demolidoras... Sentindo a hostilidade do meio abalou para o Pará, seu berço. Filho do Pará, Theodoro Braga abriu os olhos num cenário grandioso e imponente, onde a fauna e a flora esplendem nas formas mais ricas e variadas. A sua capacidade artística podia expandir-se em todos os gêneros e de fato perfeccionou a paisagem, o retrato, a pintura histórica. Apaixonado pela sua província e sempre inspirado por um ideal patriótico, tudo que se relacionava com o seu meio lhe despertava a curiosidade multiforme. A história, a arqueologia, as ciências naturais da Amazônia, ocupavam-lhe a mente em constante elaboração... O artífice do Recife, com o cérebro enriquecido pelas noções de filosofia e de sociologia que bebera na Faculdade de Direito, e com a mestria do desenho, transformou-se, ao contato desse ambiente, no artista decorador de aguda intuição e vivo sentimento patriótico. Abriu-se-lhe, em larga visão, a função nacional a social da arte, a sua alta finalidade humana como elemento e manifestação da cultura. E, então, com uma inspiração artística notável e um raro senso lógico, iniciou a sua criação de uma arte decorativa brasileira baseada nos motivos da nossa flora e da nossa fauna. Dissemos criação porque não conhecemos iniciativa alguma deste gênero. Posterior seguramente a essa só vimos um pequeno esforço de um homem de fino gosto e inteligente negociante, o Sr. Luiz Resende, do Rio, que mandou fazer em prata a reprodução fiel da cerâmica dos índios Marajó. Mas o trabalho do Sr. Theodoro Braga, além de original, é um esforço formidável, que conta mais de vinte anos de atividade, indefesa em meio hostil e abrange desde o trabalho inicial da criação artística até o campo pedagógico. Documenta-o de forma eloqüente e convincente a sua atual exposição na Galeria Jorge. Aceitando o princípio de que a arte verdadeiramente nacional deve manifestar-se da bilha e do púcaro de barro até o vaso de cristal e a jóia cinzelada ou os grandes painéis decorativos, o 12


nosso provecto artista multiplicou-se no aproveitamento dos modelos da flora, da fauna e dos motivos dos nossos índios para os mais variados fins. Azulejos, mosaicos, entalhe de madeira, arquitetura, rendas, tecidos, tapetes etc... Que costureira ou dama elegante não se entusiasmará, diante daquele tecido de puro desenho indígena, com cores naturais, que desafia na beleza das linhas e da composição?... Não só o ensino do desenho tinha enorme espaço nos jornais da época, mas também Theodoro Braga escreviam freqüentemente em revistas e jornais. Tudo que escrevia repercutia na imprensa. Sua recepção nos meios culturais era ressonante. Em seu arquivo encontrei esta notícia de uma revista americana, sem título e datada de 1922, o ano da Semana de Arte Moderna, quando Theodoro Braga ainda vivia entre Belém e Rio de Janeiro. Observe como o articulista usa a expressão Decorative Design para definir a atividade de Braga.

Brazilian American The new brazilian decorative movement By Douglas O. Naylor

(Representative plates from the portfolio of Theodoro Braga. These designs are registered in the National Library and their use and reproduction prohibited) Theodoro Braga has been teaching his theory of decorative design since 1905. "The idea came to me when I was in Europe", he said. "The National School of Art" sent me there to study in the technical institutes of the various countries. I won the "prêmio viagem". I found different ways of teaching, original ideas, new adaptations of (?) types, and national movements of various kinds. Brazilian artists were habitually using lions, cherubs, and columns, the eagles of North America, and the dancing girls of Old Cairo. We had nothing that had grown out of the Brazilian soul or the flora and fauna of this rich country. I came back, resolved to awaken the artists and designers of my country. I wanted them to see the opportunities of their "terra Natal". For sixteen years I have taught in a private school in Pará". 13


He opened a portfolio of drawings and began showing the designs of cacao seeds. Victoria water lilies, stately palm trunks, foliage of coffee and rubber trees and Amazonian birds and monkeys. There was a companion drawing for each one, illustrating the possibilities for practical application. 1922 Theodoro Braga era visto naquela época, como se depreende de um artigo da revista Dom Quixote datado de 20/11/1922 como um artista acadêmico, porém menos convencional do que os que dominavam a Academia Nacional de Belas Artes ao tempo do Centenário da Independência, comemorado no Rio com o Salão de Pintura do qual trata o artigo abaixo e, em São Paulo, com a Semana de Arte Moderna. Hoje se pode ver que foi muito mais importante e fiel a seu tempo como professor de Desenho que como pintor. Para usar uma expressão da sua época, foi um publicista do Desenho e da Arte. Seu Dicionário de pintores brasileiros do século 20 é um livro disputado nos sebos de São Paulo e merecia ser reeditado. Mas, entre a pintura de Theodoro Braga do Salão do Centenário no Rio de Janeiro e a de Anita Malfatti da Semana de Arte Moderna expostas no mesmo ano de 1922, havia pelo menos 30 anos de modernização da concepção estética. Bellas Artes – Salão de Pintura de 1922 Primeiramente devemos dizer qual foi o Júri de pintura do Salão de 1922: os professores João Baptista da Costa, Lucillo de Albuquerque e Rodolpho Chambelland, por parte da Congregação, e os pintores Antonio Parreiras e Theodoro Braga, eleitos pelos expositores... Por esses regulamentos, a classe dos nossos Rafaeis fica dividida em duas facções: a nobreza e a plebe. A plebe tem o direito de eleger dois juizes, que constituem a minoria, ficando, assim, à nobreza, o direito de julgar com a máxima independência, isto é, por três votos contra dois. A minoria, porém, é reservado o direito de protestar contra qualquer ato da maioria, caso julgar conveniente, fora da Escola: nos cafés, nos bares e até na Sociedade de B.B.ª. A minoria, que por sinal é a maioria dos Expositores, elegendo os pintores Antônio Parreiras e Theodoro Braga, contribuiu enormemente para o êxito do salão atual... 14


O pintor Theodoro Braga, segundo representante da plebe, autor de uma monografia "Nacionalização da Arte Brasileira", expõe oito trabalhos de pintura além dos estudos sobre a Flora e Fauna brasileiras aplicados à decoração. Dos seus quadros destaca-se a "Castidade". O pintor Theodoro Braga quis fazer pintura de branco e apresentou uma "Castidade" impura de formas, de sentimento e movimento... O Sr. Baptista da Costa, diretor e Professor da Escola, que lhe deve a bem cuidada transformação por que acaba de passar, expõe seis trabalhos: quatro paisagens, um auto-retrato e um nu, Marabá, inspirado no Marabá do professor Rodolpho Amoêdo. A pobrezinha emagreceu muito, coitadinha... O professor Baptista continuou mesmo entusiasta do mormaço brasileiro e dos carneirinhos linfáticos. Mas a sua cor, malgrado o tradicional mormaço, continua a ser nossa, muito nossa o que as torna inconfundíveis... Terra de Senna. Sua campanha em prol do ensino do Desenho Decorativo, com fins de aplicação a Indústria o levava a ser freqüentemente convidado para palestras. Falava e discursava muito bem. Suas palestras eram sempre sucessos garantidos. Como bom liberal defendia a Educação Pública e a educação dos operários, mas é curioso que aceitasse sem críticas a educação do desenho para o trabalhador e a Arte para os “felizes” como se refere no texto O Ensino do Desenho extraído da revista, A Educação, Rio de Janeiro. Ano II - Fevereiro de 1923 - nº. 7, que não transcrevo por falta de espaço, mas é de fundamental importância para sabermos quais as informações que se tinha no Brasil sobre o ensino e a profissão de designer nos países europeus. Ele demonstra seus conhecimentos acerca da Inglaterra, especialmente Birmingham, Áustria, França (Guerin, Gasset e Sévrès), Praga, Zurique. No referido artigo Braga também nos dá uma idéia ampla de sua concepção de educação para o Desenho e até de seu traçado curricular para a escola primária. Citarei apenas trechos que se referem ao seu horror à cópia e ao que ele chamava estilização. Viciados e escravizados pela sua própria ignorância, advinda na maior parte das vezes de descaso dos governos, os operários, em sua maioria, nada produzem porque se lhe não ensinaram nem a LER nem a PENSAR, dando assim o melhor lugar ao estrangeiro, muitos contratados pelo governo que nem sempre acerta. 15


Daí a vida nula e grilheta acorrentado ao cérebro daquele pelo que é vulgarmente chamado - O CATÁLOGO, e por onde vive a vida artificial da cópia dos modelos que reproduzem sem espírito, sem inteligência e, por isso mesmo, sem o mínimo valor de arte. E, entretanto, já era tempo de tê-la nossa, muito nosso, a Arte brasileira, inspirada na nossa flora esplendidamente bela e luxuriante e na nossa fauna exótica e desconhecida, típica e extravagantemente, sem precisarmos ir buscar, no infinito campo das combinações geométricas, novidades inesgotáveis e originais... O governo deve intervir seriamente contra a introdução criminosa de estampas como modelos de desenho, ignominioso sistema de ensino ainda infelizmente permitido entre nós. Compete aos inspetores escolares a denúncia e seqüestro de todos esses criminosos documentos de incapacidade moral e intelectual de sediciosos professores de desenhos os quais deverão ser afastados desse cargo... Suponhamos que se deseja compor um cartão para uma renda, por exemplo. Estudando o motivo, dever-se-á geometrizar o contorno da flor e folhas em conjunto afim de melhor obter-se esse caráter decorativo a que eu ousarei chamar de estilizado. A repetição desse motivo, cadenciado, exigirá, para melhor resultado, essa geometrização. De tudo que ora aconselho aqui, tirei eu, durante dezessete anos no ensino, os mais completos resultados. Ensino prático com a aplicação imediata... . O povo tem o direito de ser instruído, cada indivíduo é uma força utilizável que deve ser desenvolvida a fim de concorrer para a economia e prosperidade de seu país... Dentro de cada oficina, ao mesmo tempo em que a aprendizagem se faz, especial para cada ofício, é necessário que noções de arte sejam dadas, consistindo elas, sem ocupar mais espaço, no despertar o sentido de esthesia na alma da criança-operária tão sensível e tão vibrátil como a dos felizes que o preconceito da fortuna selecionou... Si os demais povos conseguem impor-se na fixação de sua personalidade, dando aos seus produtos de arte, o que nos impede de abrirmos um caminho nesse sentido? Por que não darmos com os elementos que possuímos um cunho pessoal de nossa individualidade a tudo que é nacional? Por que não enriquecemos os produtos de nossas manufaturas com argumentações regionais, inspiradas nos elementos que nos cercam, lembrando a nossa Pátria? Permiti que lance mão de um exemplo entre nós, uma escola aqui na nossa Capital, que poderá servir de modelo e de ensinamento à direção que devemos dar ao modo prático do ensino de desenho. Refiro-me à Escola Profissional "Rivadaria Correa", dirigida pelo espírito forte e decidido da 16


Sra. Benevuta Ribeiro, com um corpo de professores competentes e orientados por aquele mesmo espírito forte. Há quem pense que nas escolas profissionais o ensino do desenho deve ser exclusivamente decalcado nos modelos antigos, nos elementos básicos, deixando-se ao operário a liberdade de agir e de criar quando se libertar das obrigações escolares. Então quando receberá ele para o seu espírito as proveitosas lições de arte que lhe despertam vibrações de esthesia e propriedades criadoras? Terminando o seu curso escolar, entrando ele brutalmente na luta pela vida, sobrar-lhe-á por acaso tempo para ilustrar seu espírito, despertar sentimentos iniciadores a que ele com justas razões tem direito? Então devemos continuar ao mesmo ram-ram em que até agora temos vivido? Não, absolutamente, não. É lá na Escola onde ele tem o direito de exigir que se lhe ministre armas seguras com as quais ele possa vencer e defender-se nobremente do valoroso inimigo que é a concorrência... Passa então a explicar seu conceito de estilização: A própria palavra estilização, de quando em vez empregada, não quer dizer absolutamente que se vai fazer estilo, ou criar estilo. ESTILIZAÇÃO, como deve ser empregada, não é mais do que a interpretação ornamental procurada de um objeto. A estilização é produzida por um ato refletido e voluntário que transforma um objeto natural. Este não é mais que um ponto de partida sobre o qual o artista se apóia para achar o ornamento que ele deseja criar... A estilização assim definida ou interpretação ornamental, não é, pois, estilo como comumente se supõe... Para estilizar é preciso conhecer o estilo do objeto natural, isto é, em toda a sua verdade geral. O estudo do antigo é necessário, é indispensável mesmo. Deixemo-lo lá apenas como ilustração do espírito e sejamos os fixadores da nossa época como eles o foram para a sua. Tomando para exemplo, um já apresentado, a folha de acanto, vemola através de épocas diferentes da humanidade aproveitada para ornamentação, estilizando-se caracteristicamente. Pode-se dizer que ela foi a chave dos estilos através das idades. Assim vemo-la entre os gregos, estilizada do acanto espirituoso natural; os romanos usaram-na e abusaram-na do acanto mole; a renascença alargando-a tomou-a do acanto simplificado e modificado do estilo romano; em seguida, banindo o ogival, vai-se atrofiar sob Luiz XIII, tornando-se pesado e 17


maciço. Ao mesmo tempo em que sob Luiz XIV este motivo decorativo torce-se e enrola-se até que sob Luiz XVI se simplifica menos elegante e menos ousado. Como se vê é ela um elemento de valor numa região em que, cheia de povos inteligentes, não existe variedade bastante para que a ornamentação não viesse senão repetida sempre pelo mesmo motivo... Já morando em São Paulo continuou defendendo um ensino de desenho tematicamente nacionalista e livre da cópia isto é criação com bases técnicas bem assimiladas como no artigo abaixo.

O ensino de desenho nas escolas públicas de São Paulo Pioneiro do ensino de desenho, em nossa terra, o professor Theodoro Braga, em escrito para o “Diário da Noite”, insurge-se contra o uso de estampas dizendo que copiar de outrem é escravizar-se. Um jornalista do “Diário da Noite”, dando conta de uma das suas muitas visitas às exposições dos trabalhos escolares, houve por bem publicar a minha opinião sobre não só a orientação dada ao ensino de desenho, como ao valor dos trabalhos dessa disciplina, na Escola Normal do Brás. A citação do meu nome na apreciação justa, que faz aquele jornalista sobre os desenhos das alunas dessa magnífica Escola de São Paulo, veio despertar em mim, distraído por múltiplas obrigações e dever de trazer em público o que ora faço prazerosamente os meus mais fortes aplausos e o meu caloroso entusiasmo pela obra meritória sólida e patriótica que vem fazendo a senhora Noemi Peres sua contentíssima professora de desenho...

Trabalhos da Normal e grupos escolares do Brás e Barra Funda Com efeito, o que vi na Escola Normal do Brás, principalmente , e nos Grupos do Brás e da Barra Funda, dá-me a convicção que trabalho de proveito e obra meritória e patriótica se estão fazendo em benefício dos que aprendem o desenho nas escolas públicas de São Paulo. Na Escola Modelo da Praça há ainda alguma coisa a corrigir, mas há também muito trabalho inteligente ensinando e aprendido. Na Escola Profissional Feminina há uma professora, cujo nome infelizmente não guardei que orienta o ensino de desenho no único e verdadeiro caminho que é o da utilização do conhecimento desta disciplina na sua aplicação decorativa. Existe, entretanto, ali um curso de pintura, aliás, incabível por inexplicável, que me pesa muito dizê-lo, é por demais inútil senão prejudicial por ser tudo feito por cópia de ruins estampas estrangeiras... 18


Incontestavelmente, o espírito ilustrado, servido por uma dedicação ilimitada e por uma competência que cada vez se aprimora, da professora Noemi Peres, da Escola Normal do Brás, é que melhor e mais profundamente sabe tirar partido do que ensina a quem ensina e pelo modo criterioso como ensina... O ensino de desenho, nas nossas escolas, normalmente quanto à maneira de se o fazer continua infelizmente errada em algumas delas.

Dar ao desenho a importância a que faz jus Preocupa-se a ação dos governos no sentido de garantir o aprendizado das demais disciplinas, exigindo-se para isso exames e mais exames, como se, por acaso fosse de menor monta o valor do conhecimento do desenho em conforto com o de outra matéria. Dessa ignorância, pois, resulta o descuido ou abandono que tem tido tal ensinamento, permitindo-se a indivíduos, investidos da qualidade de professores sem que para tal possuam eles a mais leve noção daquilo para que são chamados a lecionar... introduzirem, nas classes escolares, como modelos para o ensino, estampas hediondas, com duplo fim de ociosamente não trabalharem no ensinamento da matéria, por ignorarem-na, como também fácil lhes é, por meios capciosos convencer a um público restrito, do adiantamento das crianças, alegando ainda que a matéria ensinada não é para produzir artistas. E assim vão levando a vida macia e descuidada, despreocupados com o crime que vão, conscienciosa e imprudentemente, cometendo...

Um apelo Traz-me aqui a imperiosa obrigação de vir, na qualidade de brasileiro e de professor de desenho durante vinte longos anos, fazer um apelo ao integro diretor geral de instrução pública, desse (futuro) Estado de São Paulo... Ordene S. Exa. a entrega de todos os papéis prejudiciais e antipatriotas, em montões arrumados em uma praça, proceda neles a um auto de fé público, incinerando-os para todo o sempre, obrigando em seguida que se cumpra o espírito e a letra do programa estatuído. Com este ato obterá V. Exa. a devida benemerência e os aplausos das gerações futuras.

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Diário da Noite – São Paulo, 4 de dezembro de 1925 Theodoro Braga continuou combatendo a cópia nas aulas de desenho de um modo veemente. Na ocasião em que escreveu o artigo acima o Ministério da Agricultura começou a enfatizar o ensino de Desenho e contratou um professor famoso na época, João Luderitz, para dirigir o ensino de Desenho nas Escolas daquele Ministério... Numa entrevista no Jornal “O Brasil” Theodoro Braga investiu agressivamente contra a orientação deste professor que insistia nos velhos modelos da educação neoclássica empobrecida, para o ensino do desenho, isto é a cópia de outros desenhos e de estampas de padrão estético duvidoso. A recepção de suas idéias era calorosa. Sabendo disto enviou ao jornal “O Brasil” as cartas de adesão que recebeu provocando mais uma notícia. Ensino do desenho nas escolas A repercussão da patriótica campanha pelo interior do Brasil Era de prever a grande repercussão que teria a entrevista publicada pelo "O Brasil", com o professor Theodoro Braga, relativamente ao ensino do desenho nas escolas oficiais e os processos adaptados pelo mestre "oficial” professor João Luderitz. Vários jornais se ocuparam do assunto, levando para as suas colunas o nosso trabalho e chamando a atenção do governo para o desacerto que há na continuação dos processos pedagógicos referentes a desenho seguidos pelo técnico austríaco contratado pelo Ministério da Agricultura, para superintender a tais serviços. Muito especialmente em São Paulo, onde se encontra o professor Theodoro Braga, várias têm sido as testemunhas de aplausos à sua conduta, iniciada com a brilhante e valiosa conferência feita pelo erudito e consagrado artista, na Sociedade Brasileira de Belas Artes, sobre a debatida matéria. Theodoro Braga tem sofrido verdadeiro assédio de amigos que lhe pedem a divulgação, em volume, do seu famoso trabalho, sendo sua intenção dá-lo à publicidade logo que aqui chegue, para distribuí-lo pelo país inteiro. O festejado professor e artista Dr. Theodoro Braga, entre muitos cartões e telegramas recebidos, enviou-nos, de São Paulo, notícia do que lhe remeteu o Centro de Cultura Brasileira, pelo caráter intelectual e cunho nacionalista que distingue essa associação "Centro de Cultura Brasileira" felicita V. Exa. patriótica atitude caso Luderitz. “Adelino Magalhães”. 20


Também quis trazer as suas luzes ao debate o velho ilustre órgão brasileiro "O Diário Popular", de São Paulo, jornal da mais larga atuação na sociedade paulista, o qual se expressou nestes termos, em sua edição de 16 de outubro corrente: "O ensino do desenho é a pedra basilar em todas as artes aplicadas. Canteiros, entalhados, arquitetos, artistas de todas as classes e idades, não podem desprezar o ensino primordial do desenho. Por isso sentimos simpatia pela campanha do professor Theodoro Braga em prol da nacionalização do ensino nas escolas dependentes do Ministério da agricultura da República. Andou bem o distinto patrício em classificar de crime de lesa pátria a orientação do professor João Luderitz, baseada sobre o decalque e decalque grosseiro de gravuras estrangeiras de mero valor comercial. Perfilhamos "in totum" a representação que o professor Theodoro Braga dirigiu ao ministro da Agricultura e que o Jornal "O Brasil", estampou na sua edição de 11 p.p. Desta folha já temos chamado a atenção do titular da pasta da Agricultura contra a ação do professor João Luderitz, que veio refletir-se na Escola de Aprendizes desta capital. Estamos certos de que o ilustre baiano que superintende com brilhantismo a pasta da Agricultura, não deixará de prestar atenção à representação acima referida, como objeto de interesse nacional". Poucos anos depois dos artigos acima transcritos, foi nomeado professor e coordenador de ensino de uma escola chamada Escola Brasileira de Arte criada pela Secretaria de Educação de São Paulo para receber alunos da rede pública, talentosos para desenho. Os alunos faziam prova de aptidão e por causa disto prefiro designá-la como uma escola pré-moderna, pois o modernismo no ensino da Arte tinha como requisito essencial a idéia de que todos podem desenhar e precisam se expressar através da Arte. Vale apresentar parte de uma entrevista de Tarsila do Amaral ao Correio da Tarde de São Paulo em 28/01/1931na qual avalia o movimento de Arte no ano que passara, 1930. Ela elogia o trabalho de Theodoro Braga na Escola Brasileira de Arte. O título da entrevista é:

Sob o ponto de vista da arte moderna Fala ao “Correio da Tarde” a notável Tarsila do Amaral Exposição de Pintura Moderna Geo Charles e nosso patrício Rego Monteiro trouxeram uma Coleção bem interessante de quadros de artistas da vanguarda lá pelo meio do ano. E 21


instalaram uma tenda bonita no prédio Glória, onde antes Brecheret fizera sua última exposição em São Paulo... Foi muito importante, para a educação artística da Paulicéia esse acontecimento, pois realizado logo após a “Exposição da Casa Modernista Warchavchik”, ele veio pôr em confronto os artistas modernos brasileiros perante os estrangeiros. Trazia uma amostra mais ou menos completa do que se faz presente lá fora em matéria de artes plásticas. Picasso, Braque, Lhote e tantos outros eram os nomes que assinavam essas telas, artistas que representam as grandes correntes da arte hoje predominantes em todo o mundo civilizado... “Creio que não fica mal acrescentar no fim desta rápida notícia mal comentada, dos acontecimentos da arte moderna de 1930, o que houve quanto à instrução artístico-infantil, pois ela é manifestação contemporânea de pendores artísticos que poderão vir a ser grandes valores. Nesse particular, os trabalhos de Anita Malfatti, como professora, durante o ano, de numerosas crianças, merecem grande destaque. Ela obteve promissores resultados, cultivando principalmente a imaginação de seus alunos. Theodoro Braga, que também orientou um curso importante de desenho, promovido e patrocinado pela “A Tarde da Criança”, por iniciativa de D. Isabel VonIhering, não pode se esquecido. A exposição desses trabalhos, que até a pouco tempo esteve aberta ao público, demonstrou sobejamente os frutos alcançados, devendo estar bem satisfeito o apreciado mestre paraense. Tarsila comenta a exposição dos artistas modernos de Paris que primeira fora apresentada no Recife. Foi a primeira vez que o Brasil viu Picasso e Braque.Os trabalhos dos alunos da Escola Brasileira de Arte de Theodoro Braga portanto foram elogiados até por uma modernista de primeira linha, só que Tarsila atribuiu a D. Izabel de Azevedo VonIhering a iniciativa pela criação do Curso, quando ela foi apenas a patrocinadora. Na realidade, a idéia de criar uma escola para os alunos talentosos em Desenho, Escultura e Pintura da rede pública foi da Professora Sebastiana Teixeira de Carvalho que por sua vez era mãe de Susana Rodrigues a criadora do primeiro atelier para crianças em um museu no Brasil, o Clube Infantil do MASP em 1948. Nesta época Susana era desquitada de Augusto Rodrigues que meses depois criou no Rio a Escolinha de Arte do Brasil que deu origem ao Movimento Escolinhas de Arte por ele liderado. Em depoimento emocionado em julho de 2005 no MAC / USP durante o Seminário Internacional sobre Arte/Educação e Comunidade, Teresa Rodrigues na presença de Susana Rodrigues nos disse que sua mãe não teve a mesma visibilidade que o pai porque ficou com a responsabilidade de criar os filhos. Mas vamos deixar por ora de lado esta dinastia de Arte/Educadores e voltemos a Theodoro Braga. 22


Theodoro Braga fazia sucesso também como ilustrador. A notícia abaixo, publicada em um jornal de Belém é entusiasmada acerca das suas ilustrações para o Hino Nacional.

Uma obra patriótica Nas vitrinas de "A Brasileira", da firma Agostinho da Silva... acha-se exposta, desde Sexta-feira última, uma delicada obra de arte. É o Hino Nacional... com ilustrações originais, expressivas, feitas pelo talentoso pintor paraense Dr. Theodoro Braga, a quem cabe, a prioridade de semelhante concepção patriótica. Agradavelmente impressionado pelo trabalho do ilustre artista, não resistimos ao desejo de transmitir aos leitores da FOLHA a nossa opinião humilde, mas sincera, fazendo a descrição dos pequenos guaches ali expostas... Abre o livro a dedicatória do autor - "Ao Brasil e aos brasileiros", oferecendo-o à Pátria e aos seus compatriotas. Na terceira Gouache, vêem-se os retratos de Francisco Manoel da Silva e J. Osório Duque Estrada, criadores do principal documento de nossa nacionalidade, que fazem vibrar a alma do brasileiro, onde quer que sejam ouvidos. Folha do Norte – 12/Janeiro/1923 O interesse da Europa pela produção de povos que consideravam primitivos, como os africanos e os ameríndios, estendeu-se pelas décadas de 1920 e 1930. As estamparias com base em motivos africanos e indígenas estiveram na moda por muito tempo. As estamparias de Helena Izcue, inspiradas em desenhos incas encantavam os parisienses e até os nova-iorquinos. Alguns designers europeus vinham ao Brasil, México e Peru em busca de inspiração para criação de motivos exóticos. Cada um que aqui chegava reforçava simplesmente com sua presença e suas pesquisas as opiniões de Braga acerca do valor da iconografia nacional. Um deles foi Augusto Herborth. Vejamos o que diz de sua passagem pelo Brasil o jornal “A Gazeta de São Paulo”, de 6 de Outubro de 1926.

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Estilização e artes aplicadas O que se tem feito no Brasil e o que São Paulo deve fazer A atuação de Theodoro Braga e os estudos de Augusto Herborth A arte brasileira através dos motivos de inspiração indígena Modernamente, o professor alemão Augusto Herborth, da Academia de Bellas Artes de Strasburgo, trabalhando, contratado por industriais, no Rio de Janeiro, dedica a sua atividade inteligente e proveitosa, à conquista de motivos decorativos inspirados na cerâmica dos indígenas brasileiros. Tendo estudado, no Museu Nacional, os inúmeros e variados modelos ali reunidos, o professor Herborth estilizou-os com uma grande felicidade, conseguindo obter trabalhos magníficos, em desenhos para fins de imediata aplicação industrial. É um serviço inestimável prestado do ponto de vista geral à indústria brasileira e do qual esta, até agora, não parece ter percebido. Os industriais de tecidos, sobretudo, precisam entrar em conhecimento com os trabalhos desse operoso artista, que é um desenhista notável e ceramista famoso, tanto assim que exerce a cadeira desta disciplina na velha escola universitária alemã. O professor Augusto Herborth, que expôs com um grande brilho os seus modelos no salão anual de pintura da Escola de Bellas Artes, recebeu da crítica os maiores elogios e o júri do salão premiou os seus trabalhos com a mais alta distinção, conferindo-lhe a medalha de ouro. Todo ruído que nos meios artísticos produziram as revelações trazidas pelo professor Herborht não logrou ser ouvido no meio industrial brasileiro, certamente absorvido por outros negócios, talvez de menor importância, mas de muito maior eficiência no balanço final do ano...

As necessidades estéticas da indústria paulista Em São Paulo, porém, mais que em qualquer outro Estado, a indústria desenvolveu-se de tal maneira, que não é possível impor qualquer novidade, sem que o exemplo parta daqui. Do nosso Estado deve, pois, surgir o movimento de nacionalismo artístico industrial, dando os nossos industriais, de tecidos de algodão e seda, de louça e vidraria, o exemplo da reação, com a escola, para seus modelos, de motivos extraídos à nossa fauna maravilhosa, à nossa flora gigantesca, à 24


tradição graciosa deixada pelos aborígines, e abandonando as incaracterísticas cópias servis dos mesmos artigos que com muito mais precisão e perfeição são fabricados nas fábricas de Manchester ou de Lyon. Torna-se, evidentemente, uma necessidade aproveitar nossos motivos estilizados, nos artefatos e tecidos de produção nacional, pois que, só assim, lograríamos com esforço continuado e persistente, criar dentro dos motivos pictóricos nacional, uma indústria de caráter rigorosamente brasileira. A São Paulo deve caber papel importante nessa conquista. Enquanto todos os países se interessam no sentido de criar uma arte nacional, aproveitando os motivos da sua fauna, de sua flora, da sua tradição popular e nacionalista, em suma, nós, no Brasil, continuamos a copiar o que os europeus nos ensinam, sem um estímulo, um gesto de independência que sirva de ponto de partida para a arte nacional brasileira. Todos os nossos riquíssimos motivos ornamentais têm ficado à margem na escolha dos assuntos escolhidos para a arte decorativa que aqui se faz. Insistimos em copiar a coluna de capitel dórico ou etrusco, porque, há vinte séculos, na Grécia assim se fazia. Modelamos os nossos objetos artísticos, as nossas jóias, os nossos móveis, pelos velhos e antiquados modelos copiados pela civilização cristã à cultura greco-romana, como se nossa inteligência não fosse capaz de criar obra nova, de acordo com a idade moderna. Por que não operar uma salutar reação contra este espírito servil?

O relevo da reação tentada por Theodoro Braga Há, felizmente, neste momento, um início indeciso de reação contra este espírito imitativo, que é preciso estimular. Partiu a reação do consciencioso artista brasileiro Theodoro Braga, natural do Pará, que primeiro teve entre nós a idéia de aproveitar em estilizações felizes os variados motivos de que a natureza está cheia. Theodoro Braga compôs uma série de quadros de modelagem que hoje são propriedade da Prefeitura paulista e que devem ser aproveitados como objetos de estilização nas escolas e oficinas do município e do Estado. O trabalho desse nosso belo artista não está divulgado como merece. E é pena, porque Theodoro Braga conseguiu fazer cousas maravilhosas, para mobiliário, cerâmica, grades de jardim, candelabros e postos de iluminação, artigos de tapeçarias, desenhos para tecidos, etc. 25


Antes de Theodoro Braga só um artista brasileiro se ocupara de arte decorativa: Elyseu Visconti, o grande mestre considerado o maior pintor brasileiro, vivo. Visconti, porém, não se impressionara com as nossas cousas, utilizara os mesmos modelos de que se servem os artistas franceses, belgas ou italianos, lançando, assim, é bem verdade, os alicerces da arte decorativa, entre nós, mas o fazendo com material... alheio, inteiramente indiferente à simbologia da natureza brasileira... O esforço de Visconti não foi, entretanto inútil, tanto que, vinte anos depois, o mestre acaba de fazer nova exposição desses velhos trabalhos, permitindo que dos mesmos sejam extraídas cópias, mas não cedendo, por venda, nenhum dos seus modelos a ninguém. A exposição que Visconti realiza, neste momento, na Galeria Jorge, no Rio de Janeiro, tem intuitos meramente educativos sem nenhuma finalidade comercial. Este texto não tem conclusão por se tratar de um ‘work in progress’. A pesquisa sobre Theodoro Braga está longe de ser concluída. A intenção deste artigo é ir compartilhando progressivamente com a comunidade científica que pesquisa acerca da História do Ensino da Arte e do Desenho algumas preciosidades que vou encontrando que nos fazem às vezes sorrir pelo linguajar rebuscado da época, mas nos levam a pensar que apesar de uma enorme mudança na forma de escrever, hoje continuamos a enfrentar problemas semelhantes principalmente na educação pública.

Notas Por falta de espaço foram transcritas apenas partes dos artigos: Correio da Tarde – São Paulo 28 de janeiro de 1931. Diário da Noite – São Paulo, 4 de dezembro de 1925. O Estado de São Paulo, 13 de setembro de 1925. Folha do Norte – Belém, 12 de Janeiro de 1923.

Referências BRAGA, Theodoro. O ensino do desenho. A educação. Rio de Janeiro, Ano II, Fevereiro de 1923, nº 7. 26


NAYLOR, Douglas O. The new brazilian decorative movement. Brazilian American, 1922. SENNA, Terra de. Sal達o de pintura de 1922. Dom Quixote, 20 de novembro de 1922.

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INFÂNCIA, ENSINO E BOM SUJEITO DOCENTE: a perspectiva da cultura visual Erinaldo Alves do Nascimento2 kaiery@terra.com.br

Na pesquisa de doutorado, intitulada “Mudanças nos no-mes da arte na educação: qual infância? que ensino? quem é o bom sujeito docente? (NASCIMENTO, 2005)3, analisei as denominações da arte na educação como referenciais para mudanças discursivas e educacionais. Foi possível depreender que, muito mais do que rótulos, os nomes da arte na educação e as respectivas produções acadêmicas, oficiais e artísticas que circulam na sua vigência, estão impregnados de visões de mundo, de concepções de ensino e de sujeitos docentes e discentes a serem constituídos e forjados. Eles cons-troem visões e versões que fixam a maneira de interpretar a nós mesmos e o mundo que nos cerca. Mudanças discursivas e educacionais ocorrem, principalmente, em decorrência de alterações no equilíbrio das relações entre poder e saber. Os nomes da arte na educação e os respectivos programas educacionais estabelecem-se porque denunciam, com competência intelectual e respaldo político e econômico, limitações na maneira de ver, dizer e fazer anteriormente aceitas. A pertinência epistemológica e discursiva coaduna-se com a conveniência política e econômica. As mudanças nos nomes da arte na educação e suas implicações na infância, no ensino e no que se requer para ser um bom sujeito docente não ocorrem ao acaso, nem são neutras, mas decorrem de visões, interesses, conflitos e lutas que envolvem diversos setores da sociedade. Os nomes da arte na educação e os textos que circularam e vêm circulando na sua vigência, emergem, em geral, para fornecer respostas ao que se insistia, antes, em fazer esquecer, seja pela proibição, por interpretações radicais ou pela incapacidade de detectar, naquele momento, outras possibilidades. Se a invenção de cada nome assinala a abertura de um novo horizonte de conhecimento, sua obsolescência denuncia limitações que se 2

Doutor em Artes pela ECA-USP; Mestre em biblioteconomia (UFPB); Professor do

Departamento de Artes Visuais (UFPB). 3

A orientação foi da profa. Dra. Ana Mae Barbosa. No intercâmbio com Barcelona, na

Espanha, entre junho a dezembro de 2003, a orientação foi complementada pelo prof. Dr. Fernando Hernández .

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tinha, naquele momento, na maneira de ver, dizer e fazer. O jogo de invenção das denominações torna visível, em cada época, a luta entre a busca da completude idealizante e a concreta e constante incompletude humana. As mudanças nos nomes da arte na educação e nos respectivos projetos educativos não estão dissociadas dos regimes de verdade de cada época. Não se pode confundir a flexibilidade interpretativa que a arte propicia com as condições conjunturais que fomentam a emergência e a viabilidade política da formulação e adoção de propostas artísticas e educacionais. A arte, mesmo com sua flexibilidade interpretativa, também é afetada pelo que se considera “verdadeiro” e “importante” em cada momento histórico. Proposições educativas em Artes Visuais podem até adotar uma modalidade de intervenção pedagógica diferenciada dos demais saberes, contudo é puro idealismo e excessivo romantismo afirmar que estão dissociadas dos regimes de verdade de cada época. Os nomes da arte na educação indicam a emergência de regimes de enunciação. Respondem a formas de compreensão, ordenação e interpretação. Demarcam os mecanismos de regu-lação social, bem como a finalidade educativa, o tipo de sujeito a ser formado e os valores a serem difundidos. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN nº 9394, promulgada em 20 de dezembro de 1996, no seu art. 26, parágrafo 2º, afirma: “o ensino de arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. A legislação anterior foi revogada e a denominação ensino de arte é adotada no lugar de educação artística. Quanto à finalidade específica do ensino de arte, fica indicada que é “promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. Depreende-se agora que, ao contrário da legislação anterior, a disciplina tem sua especificidade, que o processo é tão importante quanto o resultado educacional e que a ampliação dos horizontes subjetivos e culturais constitui a finalidade principal do ensino de arte na educação básica. O sujeito docente polivalente, antes requerido, cede lugar ao especialista. A denominação ensino de arte, amparada pela legislação atual, não significa que ela permaneça incólume e que outras formas de nomear tal prática educativa não disputem espaço com ela. Ao contrário, sua vigência é o corolário de um percurso de luta e de mobilização política, do passado e do presente, para que ela se constituísse como tal. De maneira similar à que ocorreu com educação artística e arteeducação, que foram (re)significadas nas décadas de 1970 e 1980, a denominação ensino de arte também passou por um processo de reconfiguração conotativa entre 1980 e 1990. Antes, nas primeiras décadas do século vinte, especialmente nos anos de 1940, a denominação ensino de arte era empregada, 29


em vários textos, ora com o sentido de formação educacional da população em geral, ora com a conotação de formação artística profissional. A partir da década de 1980, ensino de arte passou a representar a consolidação de uma busca constante de especificidade iniciada com a tentativa de redefinição conotativa da arte-edu-cação. Ana Mae Barbosa me informou, em uma de nossas sessões de orientação, que a denominação ensino de arte vinha sendo usada em 1980, concomitantemente com arte-educação, no evento Semana de arte e ensino. Ganhou reforço com a realização dos congressos Ensino da arte e sua história. O 3º seminário, de âmbito internacional, realizado em 1989, foi decisivo porque se propôs a intensificar as bases teóricas, inseri-las no contexto histórico e combater o espontaneísmo, tanto nos níveis elementares como no superior. Insurgiu-se ainda contra a tentativa de eliminação oficial das artes no currículo pela nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, cuja estruturação iniciou-se em 1988. Se a criatividade era a questão central na vigência das denominações educação artística e arte-educação, é possível afirmar que a preocupação nucleadora do ensino de arte passou a ser a preparação de sujeitos para analisar criticamente a produção artística consagrada e as demais imagens presentes na vida cotidiana. A oficialização da polivalência cedeu lugar à especialização. A articulação entre fazer criativo e informação cultural, referendadas por narrativas históricas, são premissas básicas da intervenção da arte na educação. O expressivismo, associado à noção de pureza e de clausura subjetiva, vem sendo paulatinamente suplantado pelo reconhecimento de que se aprende pela interação com o objeto e pela mediação cultural. O discurso que embasa a cultura visual, divulgada no contexto brasileiro pelo livro de Hernández (2000), ao compreender que a arte está espraiada no cotidiano e sofre os mesmos efeitos de subjetivação e de regulação social, instiga o estranhamento de si e semeia dúvidas nas supostas certezas. Tenta tornar estranho o que é familiar e sedimentar, numa época de constantes crises, a cultura das incertezas. É possível supor, então, que os textos, que vêm circulando na vigência da denominação ensino de arte, valorizam, até esse momento, um sujeito docente capaz de buscar e selecionar imagens de diferentes fontes e matrizes culturais, de promover visitações a acervos e patrimônios diversos, e de desencadear procedimentos favorecedores de um olhar ampliado em relação ao cotidiano. Trata-se de um sujeito docente que, a um só tempo, é capaz de se reconhecer como aprendiz e como profissional, assumindo, na instituição escolar, cultural e social onde atua, a função de mediador de saberes valorizados pela tradição intelectual, de saberes que, apesar de serem importantes para outras formas de ordenação cultural, foram estrategicamente silenciados, e de 30


saberes que podem ser desencadeados por problemas novos, decorrentes da implementação de mecanismos sutis de subjetivação e de alienação cultural. Amenizar os obstáculos que atravancam o acesso cultural, desconstruir estereótipos culturais que inferiorizam o outro ou os que tendem a só enaltecer a si mesmo, pôr dúvidas nas certezas e realçar a permanente mutação subjetiva parecem ser as principais atribuições de um bom sujeito docente no presente. Ao que parece, desenvolve-se, paulatina e continuamente, um processo de rechaçamento da “identidade como eu” e uma valorização da “identidade como nós”. Em conseqüência, supõe-se, que o homo clausus, detectado por Norbert Elias, esteja, aos poucos, sendo questionado, e é provável que desponte um outro sujeito, mais aberto para, continuamente, questionar as intepretações de si, estranhando idéias familiares, e os julgamentos sobre o outro, tentando tornar familiar o que nos parece estranho. Um sujeito que seja capaz de deixar o passado no passado e de tomar outras veredas no presente. A maneira de a cultura visual, também conhecida como “estudos visuais”, encarar e processar a interpretação das imagens indica uma propensão à ruptura e à descontinuidade. A esse respeito, Ribeiro et alli (2004, p. 92) nos informa, por exemplo, que “há um segmento de educadores que postulam o abandono da denominação arte, em favor do termo cultura, corrente particularmente ligada ao ensino da cultura visual”. Em vista disso, julgo importante analisar a construção social de infância que está em consonância com essa perspectiva, analisando, em seguida, como se concebe o ensino e os requisitos para ser um bom sujeito docente.

Produção artística e representação da infância A seleção privilegiou imagens elaboradas a partir da década de 1990, que apresentam enfoques distintos sobre a infância e demonstram que foram construídas a partir de um diálogo com a cultura brasileira. Como se trata de uma seleção exemplificadora, podem ser destacados alguns trabalhos elaborados por Tiago Santana e Lia Menna Barreto. Esses artistas enfocam, com uma certa dose de ironia, de realismo e de simbolismo, o processo de subjetivação desencadeado pela proliferação de imagens e pelos objetos de consumo.

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Fig. 1 - Juazeiro do Norte (1995). Tiago Santana 30,2 x 44,7 cm. preto e branco. Fonte: catálogo do MAM – SP, 1996

A fotografia de Tiago Santana, realizada em 1995, mostra uma criança, trajada como uma típica romeira, em visita à cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará. A criança, ao posar na chamada “sala de promessas”, se confunde com o próprio universo iconográfico religioso. As imagens sagradas, associadas aos relatos de milagres, a maioria ilustrada com crianças em atitudes de adoração, fixam a maneira de a criança interpretar a si mesma e ao mundo. Os trajes e a postura física da criança são demarcadas pelas imagens expostas. Remetem à representação fotográfica do próprio Padre Cícero e à vida do nordestino. O profano e o sagrado se fundem na construção da cosmovisão infantil sertaneja. A infância, representada por Tiago Santana, é subjetivada pela abundância de imagens, tornadas sacras pela tradição religiosa e nordestina. São imagens e relatos circunscritos à tradição católica que, a cada visitação, se modifica e se avoluma, apropriada pela dinâmica comercial e cultural da cidade de Juzeiro do Norte, no Ceará. O trabalho realizado por Lia Menna Barreto parece explorar, dentre outras interpretações possíveis, a desconstrução e deformação simbólica do corpo infantil. Ao empregar objetos de consumo pertencentes ao “universo infantil”, o trabalho de Lia pode ser remetido à infância gestada e gerida pela cultura de consumo. Lia parece ressaltar as transfigurações subjetivas impressas na alma infantil pela maquinaria das grandes corporações empresariais, a qual é associada e confundida com objetos mercadológicos. No passado, as crianças construíam os brinquedos a partir de necessidades detectadas no convívio com outras crianças. Os objetos do cotidiano 32


adequavam-se às necessidades infantis. Hoje, as crianças nascem e crescem regradas por ambientações, por decorações e por produtos ditados pelo mercado. Suas necessidades são projetadas pela indústria. Adultos e crianças frustram-se quando não conseguem se inserir na cultura do consumo. A infância, representada na arte de Lia Menna Barreto, sofre um processo cotidiano de deformação subjetiva modelada pela cultura de consumo. A alma infantil é cauterizada e transfigurada pela lógica do mercado.

Fig. 2 - Sem título (1993). Lia Menna Barreto. Ferro, borracha e tecido. Fonte: Fonte: Catálogo da exposição Brasil: imagens dos anos 80 e 90. Rio de Janeiro: MAM| Art Museum of the Américas, 1993

Depreende-se, pela produção artística selecionada, como as imagens fixam, desde a infância, significados e interpretações sobre nós mesmos, sobre as outras pessoas, sobre o que consumimos e sobre o mundo que nos cerca. Vejamos como as problematizações da infância, detectável na produção artística selecionada, foi assumida como um desafio pelo discurso da cultura visual e, conseqüentemente, o que se preconiza o ensino e para ser um bom sujeito docente.

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Ensino e bom sujeito docente na perspectiva da cultura visual O próprio termo “cultura visual” fornece algumas dicas para podermos compreender suas contribuições em relação à educação em geral e ao ensino de arte em particular. É possível depreender que a visualidade é entendida como uma produção humana demarcada pelo contexto cultural, ou seja, as imagens são construídas a partir de um repertório cultural forjado no passado e que, no presente, ajudam a fixar significados historicamente cons-truídos. A cultura visual propõe-se a questionar e problematizar como os significados, disseminados pelas imagens, são fixados e interpretados de um determinado modo e não de outro. A perspectiva da cultura visual propõe-se a questionar como a vida cotidiana, demarcada pela proliferação de imagens, vem se constituindo culturalmente. Em vista disso, não privilegia a arte valorizada pela crítica especializada e preservada pelos museus, mas a produção visual em geral. A cultura visual tenta situar a arte, junto com outras modalidades de produção de imagens, na dinâmica das relações entre saber e poder. A arte é vista como um dos elementos da cultura permeada por mecanismos de regulação social e de subjetivação. Não se compara as imagens para valorizar a arte consagrada pela cultura ocidental e por outros contextos culturais, mas para relativizar os estereótipos sedimentados pela modernidade e pelo processo de ocidentalização. Para Mirzoeff (2003, p. 19, 23, 25), a cultura visual, seja na condição de campo de estudo, de disciplina tática e não acadêmica ou de tema interdisciplinar, interessa-se pelos acontecimentos visuais nos quais o consumidor busca a informação, o significado ou o prazer conectados com a tecnologia visual, a qual abrange desde a pintura a óleo até a televisão e internet. Trata-se de uma tática para estudar as imagens que afetam a vida cotidiana do ponto de vista do consumidor, muito mais do que do produtor. O enfoque reside naqueles momentos nos quais o visual põe-se em suspeição, debate-se e se transforma como um lugar sempre desafiante de interação social e de definição em termos de classe, gênero e identidade sexual e étnica. Mirzoeff (2003, p. 23, 25, 27, 69) ainda esclarece que a cultura visual não depende das imagens em si mesmas, mas da tendência moderna de plasmar em imagens ou visualizar a existência. Afasta a atenção dos cenários de observação estruturados, como o cinema e os museus, e a centra na experiência da vida cotidiana. Ela prioriza a experiência cotidiana do visual, desde a instantânea até o vídeo, inclusive a exposição de arte tida como exitosa. Está associada à crise de informação e à sobrecarga imagética no cotidiano. Combina a história da arte com os estudos sobre o audiovisual, comparando e contrastando cada gênero. É uma 34


alternativa para interpretar o processo de visualização cada vez mais crescente do mundo. A perspectiva da cultura visual pressupõe que o passado seja usado para compreender as mudanças processadas pela produção visual nos modos de ver, dizer, agir e fazer. Trata-se de analisar como a produção visual, no contexto da modernidade, foi modelada e ajudou a fixar as visualidades do presente. A ampla disseminação do termo cultura visual entre os que trabalham com a arte na educação, no contexto brasileiro, pode ser atribuída à publicação do livro Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho, de Fernando Hernández (2000). Nesse texto e em outro, denominado La investigación sobre la cultura visual: una propuesta para repensar la educación de las artes visuales (HERNÁNDEZ, s|d), é possível depreender o que essa perspectiva preconiza em termos de ensino e para ser um bom sujeito docente. A cultura visual, pelo enfoque defendido por Hernández (2000, p. 134142), pretende ser um “eixo da educação para a compreensão crítica”. Assumindo-se como interdisciplinar, não se organiza a partir de nomes de artistas e de suas obras, mas nos significados culturais. Está vinculada à noção de “mediação” de representações, valores e identidades. A perspectiva da cultura visual é importante porque pode proporcionar “uma compreensão crítica de seu papel e de suas funções sociais e de relações de poder às quais se vincula, além de sua mera apreciação ou do prazer que proporcionam” (HERNÁNDEZ, 2000, p.135). Compreensão crítica significa, nesse caso, avaliação e juízo decorrentes da aplicação de diferentes modelos de análise sobre os modos como os “objetos” da cultura visual fixam significados. Leva-se em conta o estudo sistêmico da produção, distribuição e o consumo, englobando o papel das instituições e das relações econômicas. A análise, também, inclui discussões acerca da “qualidade” do que se consome, levando em consideração a recepção produzida em determinados tipos de audiência. Para evitar a perda da especificidade, um primeiro objetivo da cultura visual seria... ...explorar as representações que os indivíduos, segundo suas características sociais, culturais e históricas, constroem da realidade. Trata-se de compreender o que se representa para compreender as próprias representações” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 136).

Tal modalidade de ensino valoriza os diversos artefatos visuais, sem hierarquizações, e questiona a visualização, ou seja, as maneiras de ver e as 35


tecnologias da visão (racionalidades que legitimam um determinado modo de ver em detrimento de outro). O ensino da cultura visual procura diminuir a persis-tente distância entre o que as crianças aprendem na escola e fora dela, interagindo com diversos tipos de suportes e de tecnologias informacionais (cinema, televisão, publicidade, internet, HQ, desenhos animados, videogames, etc.). Em vista disso, os estudantes são vistos como construtores e intérpretes de representações, construídas a partir da interatividade e de acordo com as experiências vivenciadas fora da escola. Admitindo várias possibilidades de sistematização do que convencionalmente é chamado de conteúdo, Hernández (2000, p. 137-138) sugere, adotando deliberadamente uma postura não-determinista, que se reorganize cada trajetória curricular em diálogo com o que acontece nas diferentes experiências de sala de aula, da escola e de fora dela. Trata-se, conforme o autor, de um trânsito entre a cultura das certezas – que caracteriza o pensamento da modernidade – e a cultura da incerteza, “num momento da história da humanidade em que os sistemas de crenças morais, religiosas e ideológicas são diversas, plurais e em constante fluxo“. Pode-se depreender, em relação à perspectiva da cultura visual, que um bom sujeito docente é aquele que, além de se reconhecer como aprendiz, assume, dentre outras atribuições, o desafio de enfrentar o comprometimento “com as imagens e com a tecnologia do mundo pós-moderno sem rejeitar a análise cultural, o juízo moral e a reflexão que as imagens ameaçam suplantar na atualidade” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 138). Estudantes são vistos como reconstrutores da própria identidade em relação às diferentes construções da realidade que lhes cercam e que necessitam aprender a interpretar. Um bom sujeito docente é aquele que usa o diálogo, como elemento de criação e questionamento de significados e, dentre outros procedimentos educacionais, pode recorrer aos projetos de trabalhos. Os projetos de trabalho pretendem ser tentativas de busca de respostas, por intermédio da investigação, a um tema ou problema favorecedor da análise, da interpretação e da crítica. São procedimentos que questionam a visualização e as tecnologias da visão, as quais promovem outras formas de diferenciação social. Promovem, pela comparação e contraste de gêneros visuais diferentes, uma espécie de “estranhamento de si” forjado na modernidade ocidental. São procedimentos que ajudam a questionar, portanto, como as produções artísticas e visuais contribuem, servindo-se de convenções consolidadas no passado, para fixar idéias que demarcam o presente.

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Referências HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. _______La investigación sobre la cultura visual: una propuesta para repensar la Educación de las Artes Visuales. Barcelona: dat., sd. MIRZOEFF, Nicholas. Una introducción a la cultura visual. Barcelona : Paidós, 2003. MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO. Brasil: imagens dos anos 80 e 90. Rio de Janeiro, 1993, 48p. il. MUSEU DE ARTE MODERNA DE SÃO PAULO. Catálogo. São Paulo, 1996. NASCIMENTO, Erinaldo Alves do. Mudanças nos nomes da arte na educação: qual infância? que ensino? quem é o bom sujeito docente? São Paulo, 2005, Tese (Doutorado em Artes), Universidade de São Paulo. RIBEIRO, José Mauro et alli. Arte. In: Brasil. Orientações curriculares do ensino médio. Brasília: Ministério da Educação, 2004.

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A ESCOLINHA DE ARTE DE JOÃO PESSOA: a persistência de um sonho Lívia Marques Carvalho Dsc.1 lívia-mc@uol.com.br

A pré-história da Escolinha de Arte de João Pessoa A Escolinha de Arte de João Pessoa está diretamente associada à experiência da Escolinha de Arte do Brasil – EAB, uma organização de caráter educacional, fundada em 1948, na cidade do Rio de Janeiro, que teve como principal mentor o artista plástico Augusto Rodrigues. A Escolinha, como era carinhosamente chamada, reunia um grupo de profissionais com formação diversificadas que defendiam o conceito da educação através da arte, uma linha de ação inteiramente diferente da pedagogia tradicional, empregada no sistema escolar vigente. Eles se baseavam em estudos recentes que consideravam a liberdade de expressão da criança um fator fundamental na estruturação de sua personalidade. A EAB era uma instituição pouco sistematizada que funcionava como um laboratório, um ponto de encontro, um espaço de debates e pesquisa para artistas e profissionais ligados ao campo da Educação e da Arte. Inicialmente as atividades da EAB eram dirigidas às crianças e jovens. Por meio de convênios firmados com a Sociedade 1

Doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de

São Paulo (USP), Mestra em Bilbioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Especialista em Cultura Afro-Brasileira pela UFPB e Graduada em Educação Artística, Habilitação em Artes Plástica, pela UFPB. Professora Adjunta do Departamento de Artes Visuais da UFPB. Coordenadora da Pinacoteca da UFPB. Foi Coordenadora do Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB, de 1999 a 2001. Assessora das Oficinas de Artes da Casa Pequeno Davi, uma Organização Não-Governamental, atividade de extensão universitária, desde 1989. Autora de diversos artigos sobre ensino de arte, no âmbito Institucional e no Terceiro Setor em coletâneas e revistas especializadas.

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Pestalozzi e Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE, a EAB estendia suas atividades, também, às crianças e jovens portadores de necessidades especiais. A partir da década de 1960, a Escolinha ampliou sua atuação criando um curso de formação de professores. Esse curso era destinado a um público bem diverso como artesões, artistas, psicólogos, pedagogos e todos aqueles que se identificavam com os princípios filosóficos da educação através da arte. O Curso Intensivo de Arte na Educação – CIAE foi o primeiro curso destinado à formação de professores em arte no Brasil. Apenas a partir de 1973 é que começaram a ser criados, em algumas universidades brasileiras, os Cursos de Licenciatura em Educação Artística, para suprir uma demanda que surgiu após a obrigatoriedade da disciplina Educação Artística nos currículos escolares de 1o e 2o graus, prevista pela Lei N 5.692/71, do Ministério de Educação e Cultura. Diversas personalidades de significativa importância no campo da Educação, da Arte e da Cultura colaboraram com a experiência da Escolinha. Entre essas, destacam-se Anísio Teixeira, Helena Antipoff, Nise da Silveira, Noêmia Varela, Lúcia Alencastro Valentim, Ana Mae Barbosa. A Escolinha foi uma experiência das mais significativas no campo educacional brasileiro. O entusiasmo de Augusto Rodrigues com a concepção de educação através da arte impulsionou a criação de experiências semelhantes em algumas cidades brasileiras, entre essas as mais conhecidas foram a de Recife, São Paulo, Bagé e Cachoeiro de Itapemirim.

A história da Escolinha de Arte de João Pessoa Em 1954 nascia a Escolinha de Arte de João Pessoa, a primeira do gênero no Estado. Sua criação e a sua trajetória estão ligadas diretamente à figura de Edith de Oliveira Belli, uma paraibana muito doce e suave mas, também, muito determinada, nascida no ano de 1928. A criação de Escolinha de Arte de João Pessoa resultou das circunstâncias que passo a relatar. 39


Na década de 1950, Edith Belli mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro, com a finalidade de estudar Serviço Social. Após a conclusão do curso, passou a trabalhar nessa cidade como Assistente Social, ocupando-se de crianças portadoras de necessidades especiais. Tinha por hábito freqüentar a Biblioteca Castro Alves, situada na rua Pedro Lessa, na sobreloja do IPASE 2. Foi dessa maneira que ela conheceu a Escolinha de Arte do Brasil, que funcionava ao lado dessa biblioteca. Aquela escola diferente, sem rigidez de regras, despertava sua curiosidade. Um dia resolveu entrar e indagar sobre a escola, seu funcionamento e sua filosofia. A atmosfera de liberdade para as atividades criativas das crianças e o ambiente estimulante propiciado por um grupo inquieto de artistas e educadores sempre animados, discutindo arte e educação, encantaram Edith Balli. Fascinada por tudo que viu e ouviu, resolveu matricular seus sobrinhos, assumindo, também, a incumbência de acompanhá-los à Escolinha. Nessas ocasiões, não se limitava apenas a tarefa de levar e buscá-los, mas entrava e procurava saber mais e mais sobre a escola, conhecer a concepção de ensino e as atividades ali desenvolvidas. Enfim, Edith Belli passou a acompanhar com muito interesse o funcionamento habitual da Escolinha. Desse modo desenvolveu-se uma admiração, tanto pela filosofia da Escolinha de Arte do Brasil, quanto pela personalidade de Augusto Rodrigues. No início do ano de 1954, Edith Belli retornou a João Pessoa onde passou a residir e a trabalhar como professora do Estado. Um certo dia ela recebeu uma carta de Augusto Rodrigues, a correspondência veio por intermédio do artista paraibano, radicado no Rio de Janeiro, Sady Casimiro dos Santos. Nessa carta Augusto Rodrigues, reiterando conversas anteriores, solicitava a Edith Belli a fundação de uma Escolinha de Arte em João Pessoa, para disseminar os princípios filosóficos da educação através da arte.

2

IPASE – Instituto de Providência a Assistência dos Servidores do Estado,

extinto em 1977, sendo incorporado ao sistema do Regime Geral de Providência Social.

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Sady Casimiro prontificou-se a ajudá-la nessa empreitada. Contataram, então, Edésio Rangel, que integrava o Centro de Arte da Paraíba e trabalhava na Prefeitura Municipal de João Pessoa, e também Cláudio de Paiva Leite, presidente do Instituto Brasileiro de Administração Municipal – IBAM. Estes não apenas aprovaram a idéia, como também ficaram encarregados de conseguir um espaço para a instalação da Escolinha, além de tentar angariar os recursos financeiros para a compra de materiais básicos necessários ao funcionamento da Escolinha como mesas, cadeiras, pincéis, tintas, papéis. Assim, em agosto de 1954 a Escolinha começou a funcionar em uma sala cedida pela Prefeitura Municipal, no local onde funcionava a Fundação Contra Mocambo, que prestava assistência às crianças pobres do bairro do Roger e arredores. A Escolinha funcionava apenas aos sábados, inicialmente com um grupo de 20 crianças, oriundas do bairro do Roger. Não era cobrado taxa aos alunos, nem tampouco era pago salário ou qualquer gratificação a Edith Belli, que, durante muitos anos, foi a única coordenadora e orientadora dessa escola. Posteriormente, a Escolinha passou a funcionar no salão do Museu do Estado. No novo local, o número de alunos aumentou, chegando a serem atendidas 60 crianças e jovens na faixa etária de 6 a 15 anos. A mudança do local de funcionamento trouxe alterações não apenas quanto ao aumento do número de alunos, mas também quanto ao segmento social atendido. A Escolinha, no novo endereço, passou a receber alunos de todas as classes sociais. Edith Belli tinha formação musical e havia estudado piano na sua juventude, entretanto as atividades da Escolinha eram baseadas, apenas, em artes plásticas. Como princípio metodológico, Edith Belli seguia a mesma orientação adotada por Augusto Rodrigues na Escolinha de Arte do Brasil – estimular a auto-expressão da criança, encorajando-a a criar sem medo de errar. Segundo Edith Belli, não eram transmitidos às crianças conhecimentos sobre arte, não havia proposições de temas, pois se considerava que a intervenção externa poderia gerar inibições e 41


“corromper” o impulso criador infantil. Esse conceito era apoiado pelas correntes educacionais da livre-expressão que se disseminavam no Brasil. O principal interesse da Escolinha consistia em proporcionar uma oportunidade para que as crianças se expressassem. Como afirmou em seu depoimento: Eu particularmente acredito que a criança coloca seu íntimo no papel que ela pintou, ela expressa a sua emoção. Graficamente ela não só está demonstrando o que sente, como o que se passa com ela; está também experimentando todas as mudanças do seu ser, do seu íntimo, de sua alma, e, eu acredito, que através deste caminho é que ela chega ao reconhecimento de seu lado belo, da coisa melhor do seu interior, do seu lado espiritual. (BELLI, 2001).

A Escolinha, embora não fosse vinculada a qualquer setor do Estado ou à Prefeitura, ocupava um espaço que pertencia ao Estado, recebia auxílio financeiro, de forma sistemática, da Prefeitura Municipal, para a compra de materiais, como também doações de particulares. Um dos principais colaboradores era o Sr. Luis Américo de Oliveira, dono da livraria Moderna que sempre ajudou a Escolinha, fornecendo materiais de papelaria para as crianças trabalharem. Embora sem envolvimento formal, a Escolinha contava com o apoio de alguns artistas integrantes do Centro de Artes Plásticas da Paraíba, como foi o caso de Leon Clerot, Edésio Rangel, Ivan Freitas e José Lira. A Escolinha permaneceu em atividade entre os anos de 1954 e 1962. Durante esse período, Edith Belli foi diretora de 1954 a 1958. Com exceção do ano de 1955, quando recebeu uma bolsa para realizar um curso de aperfeiçoamento na Sociedade Pestalozzi, na cidade do Rio de Janeiro. Durante sua ausência, Maria Ione Jorge de Oliveira, sua irmã, que à época cursava o ginásio, assumiu a direção. Entre os anos de 1959 e 1961, a Escolinha de Arte da João Pessoa esteve sob a coordenação da professora de Artes Industriais, da Escola Modelo do Estado, Luizete Dália. Edith Belli retomou a direção em 1962. Nesse mesmo ano, a escola encerrou suas atividades. 42


Enfrentando numerosas dificuldades, Edith Belli resolveu fechar a Escolinha de Arte de João Pessoa. Ela pretendia obter uma licença do trabalho para poder se dedicar, de forma integral, à Escolinha, mas todas as suas solicitações foram sistematicamente negadas. Diante do que considerou falta de compreensão e de apoio por parte dos dirigentes da instituição em que trabalhava, tomou a decisão de fechar a Escolinha. Para ela, a atitude das autoridades foi um desrespeito, não a ela como pessoa, mas ao trabalho de uma profissional que prestava um relevante serviço no campo da educação.

Realizações da Escolinha Durante o período em que a Escolinha de Arte de João Pessoa esteve em funcionamento, realizou três exposições com trabalhos de seus alunos. A primeira ocorreu em novembro de 1954, no salão da Associação Paraibana de Imprensa – API e foi promovida pela Secretaria de Educação. Este evento aconteceu simultaneamente com uma exposição do Centro de Artes Plásticas da Paraíba e contou com a afluência de público. A Segunda foi realizada em 1955, na cidade do Rio de Janeiro, na sobreloja do MEC3, durante o 4o Salão de Arte Infantil. A terceira ocorreu em 1958, na Biblioteca Estadual de João Pessoa. Essa exposição contou com o apoio da professora Luizete Dália e foi a que expôs o maior número de trabalhos de alunos. Após a Escolinha ter encerrado suas atividades, houve, ainda, mais duas exposições. Uma em 1966, quando foi exibida, no hall do Departamento de Educação da Paraíba, uma retrospectiva dos trabalhos dos alunos que passaram pela Escolinha e a outra ocorreu em 1990, na sede da API de João Pessoa. Esta última expunha trabalhos de dois alunos portadores de necessidade especiais (área de comunicação) que, mesmo após o fechamento da escola,

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Ministério de Educação e Cultura à época, na cidade do Rio de Janeiro,

capital federal.

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continuaram a realizar atividades artísticas e a manter contato com Edith Belli. A leitura de documentos guardados por Edith Belli, a exemplo de uma carta datada de dezembro de 1962, enviada por Augusto Rodrigues à educadora, nos permite concluir que Augusto Rodrigues acompanhava o funcionamento da Escolinha de Arte João Pessoa. Ele tinha conhecimento da crise que esta atravessava e sabia da iminência de fechá-la. Conclui-se também que Edith Belli solicitara ajuda ao mestre, pois, na correspondência Augusto Rodrigues explica os motivos pelos quais não poderia vir à Paraíba e oferece algumas sugestões para amenizar os problemas que a Escolinha enfrentava. O teor da carta de Augusto Rodrigues nos leva a perceber que a atitude de fechar a Escolinha não foi tomada intempestivamente, pois Edith Belli já vinha, há algum tempo, recorrendo a todos os meios que considerava possíveis para evitar esse final. Atualmente, Edith Belli lamenta muito ter centralizado em sua pessoa a Escolinha de Arte de João Pessoa e jamais perdeu a esperança de reabri-la. Tanto é que, ao aposentar-se, cursou Pedagogia na PUC do Rio de Janeiro e posteriormente matriculou-se na Escolinha de Arte do Brasil, onde realizou o Curso Intensivo de Arte na Educação – CIAE/85. Outro passo importante que deu, no sentido de se sentir mais bem preparada para reabrir a Escolinha de Arte de João Pessoa, foi realizar o curso de Licenciatura em Educação Artística na Universidade Federal da Paraíba – UFPB, concluído em 1999. Em 2001 presenciei nova tentativa de Edith Belli em reabrir a Escolinha. No dia 4 de outubro de 2001, no dia dedicado a São Francisco, como ela fez questão de frisar na ocasião, foi realizada uma reunião no Laboratório de Artes Gráficas do então Departamento de Artes da UFPB, com a presença da professora Liana Chaves, de artistas e arte-educadores convidados. A reunião visava oficializar a reabertura da Escolinha de Arte de João Pessoa e animar os arte-educadores convidados a assumir essa tarefa. Na oportunidade foi lido e aprovado o novo Regimento. Entretanto não houve desdobramento algum. 44


Mas Edith Belli não desistiu, hoje, aos 78 anos, esta professora ainda acalenta seu maior sonho – o de continuar a difundir a filosofia da Escolinha de Arte do Brasil. Todos os documentos e registros referentes à experiência da Escolinha de Arte de João Pessoa estão guardados na casa de Edith Belli. Esse material é rico e representa um acervo para fundamentar pesquisas e novos estudos, pois, a história do ensino de arte da Paraíba é um assunto que merece uma análise mais detalhada e ainda está por ser escrita.

Referências INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS. A escolinha de arte do Brasil, 1980. Entrevistas: 1 - BELLI, Edith, Paraíba, Brasil, abril de 2001. Gravada em 2 fitas Cassete. Entrevista concedida a Lívia Marques Carvalho. 2 - BELLI, Edith, Paraíba, Brasil, fevereiro de 2006. Entrevista concedida a Lívia Marques Carvalho.

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O SENTIDO DA PRODUÇÃO E A RELAÇÃO ENTRE PÚBLICO E TRABALHO ARTÍSTICO Lanussi Pasquali1 lanussi@terra.com.br

Optei em apresentar para esta publicação parte da dissertação “Cortes, costuras, esculturas: uma poética de encontros…” 2, selecionando dois textos (os quais transcrevo com pequenas adaptações). Fiz essa escolha, por acreditar que, antes de falar de técnicas e formas, é preciso conversar sobre o sentido da produção artística, seja ela de qualquer área. Vejo que é mais preciso conhecer as forças, os caminhos, os descaminhos e a natureza que movem o trabalho e, além disso, mais interessante para uma conversa sobre o trabalho artístico na contemporaneidade. Portanto, trato neste artigo da minha experiência artística, de um modo particular de pensar a produção e a relação entre o público e o trabalho artístico, sem ter a pretensão de fazer um tratado estético, teórico ou histórico: prefiro as conversas. Para finalizar, acrescento algumas imagens de trabalhos que realizei durante o processo de pesquisa para o mestrado, porém não faço comentários específicos, deixando em aberto para que o leitor faça suas próprias conexões com o texto que as antecede e/ou com outras coisas. Espero que, de alguma maneira, este breve relato se transforme em um fluxo e que encontre e estimule outros fluxos, conduzindo a conversa em direções impensadas.

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Lanussi Pasquali, 1972, Riozinho/ RS, trabalha com esculturas, objetos,

instalações e intervenções. É graduada em Artes Visuais pela Feevale de Novo Hamburgo e mestre em Artes Visuais pelo PPGAV- EBA-UFBA. Atualmente vive e trabalha em Salvador/ BA. 2

Dissertação é o resultado de uma investigação de caráter teórico-prática

desenvolvida no Mestrado em Artes Visuais, na linha de pesquisa em Processos Criativos, da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia.

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E é isso que espero da arte… Tenho certas afecções - pensamentos ou imagens ou textos que estão sempre presentes, como uma música de fundo: aquele tipo de música que não conseguimos cantarolar em voz alta, mas que intimamente murmuramos de forma perfeita. Recentemente, meu fundo musical é regido por Jorge Luis Borges3. Para ser mais precisa, uma pequena prosa intitulada O Punhal. Embora Borges seja um escritor latino-americano muito conhecido, meu objetivo não é estudá-lo dentro da literatura ou da lingüística para elaborar algum tipo de explicação de ordem técnica ou teórica. O que posso dizer, então? Quando leio O Punhal, tenho uma forte sensação de que é isso! É exatamente isso que espero da arte – seja ela uma obra literária, visual ou sonora. Mas, isso o quê? Para mim, Borges dá um novo sentido ao fato banal, corriqueiro – ou melhor: ele pensa o que parece impensável, percebe a vida onde ela é ainda puro caos, fluxo e transbordamento. Borges desloca-se para um outro lugar, fora do que parece o mundo previsível. Mas, que lugar é esse? John Berger (1990) afirma que estamos submersos em falsas representações4 do mundo, produzidas por cada cultura e por cada época de formas diferentes. Ele compara as representações a uma parede de clichês, na qual estariam prontas todas as respostas que precisamos dar para a vida, seguindo sempre um padrão préestabelecido. A realidade ou as forças vitais, estariam para além dessa parede. Ou além do capitalismo, das leis, da moral, da família,

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Borges nasceu na Argentina em 1899, origem portuguesa por parte do pai e

inglesa da mãe. Faleceu em 1986 aos 87 anos, em Genebra. 4

A redundância da expressão falsas representações reforça a diferença entre

o mundo que é dado, sociocultural, e a realidade, no sentido de força afirmativa da vida, uma vez que, através da representação, não se pode chegar ao real. Portanto, mantive termo representações por entender que é preciso afastar a possibilidade do leitor acreditar em uma representação verdadeira em oposição a uma falsa. A representação sempre servirá como barreira para o real, para a vida.

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da moda, do consumo... instituições criadas que querem parecer naturais, como o sol, o ar, o vento. Para Berger, a potência do artista está em poder romper com os clichês, poder ver o que existe fora das representações, construindo novos mundos, como Van Gogh sentia ao buscar algo fora das barreiras do possível: “acho que para atravessar este muro, já que não adianta bater-lhe com força, devemos miná-lo e limá-lo lentamente, com paciência” (VAN GOGH apud DELEUZE; GUATTARI,1966, p. 42). Isto acontece quando os interesses do artista não estão submetidos às representações. Em outras palavras, diria que a prosa de Borges provoca uma fissura no que comumente achamos ser o mundo real – que é, de fato, um mundo da representação. Borges consegue falar de dentro do punhal. Desloca-se para o interior de um objeto e comove-se, pois vislumbra o que nos passa despercebido: a frustração do punhal. O autor não julga, não emite uma opinião, apenas revela um estado. A sua potência está em perceber uma realidade que está fora dos clichês, deslocar seu ponto de vista para o interior da lâmina de uma arma e pensar as moléculas do metal: o aço se anima... Somos envolvidos por um pensamento molecular, por um modo de olhar que se dilata, se amplia até o limite da constituição da vida. Se considerarmos o mundo pelas moléculas, podemos ampliar nossa visão e deixaremos de pensar apenas em termos de ser humano, humanidade, de sujeito, do eu, do outro. Pensaremos em termos de vida, de energia, de fluxo. Somos potencialmente o mar, o ar, as plantas, as pedras, o aço – as nossas moléculas se relacionam. Nesse sentido, Deleuze e Guattari falam das linhas de fuga que conduzem para o fora, para a ruptura com a representação, para tocar a vida onde ela é mais intensa, desmedida, arrebatadora. Para eles, o artista é capaz de vislumbrar o fora. Mais do que isso, o artista busca, por uma necessidade vital, instalar-se nesse lugar. Embora, não seja uma coisa fácil e, às vezes, até insuportável: Mas bem poucos fazem aquilo a que Laing chama de abertura de uma passagem através do muro ou limite esquizofrênico: <gente vulgar>, todavia... A maior

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parte aproxima-se do muro e recua, horrorizada, preferindo submeter-se à lei do significante, ser marcado pela castração e triangulação no Édipo. Deslocam o limite, fazem-no passar para dentro da formação social, entre a produção e a reprodução sociais que investem e a reprodução familiar sobre a qual rebatem e aplicam todos os investimentos. Fazem passar para dentro do domínio assim descrito pelo Édipo, entre os dois pólos do Édipo. Passam o tempo a involuir e a evoluir entre estes dois pólos. O Édipo é o último obstáculo, e a castração o alvéolo: mais vale uma última territorialidade, ainda que reduzida ao divã do analista, do que os fluxos descodificados do desejo que fogem, correm e nos arrastam sabe-se lá para onde? (DELEUZE; GUATTARI, 1966, p. 141)

Essa capacidade de poucos, de Borges, em ocupar outros espaços, em olhar, de uma forma muito particular, a vida e em produzir novos encontros rompe com o muro, com os clichês. Trata-se da coragem de experimentar o fora, tocar a vida e transformar sua força arrebatadora em criação, em produção. Talvez por isto, tem-se a impressão, frente a trabalhos dessa natureza, de que rompem com a linearidade do tempo – considerando que o tempo é constituído por um segundo depois do outro, criando um outro tipo de passagem, algo intenso – um tempo em intensidade, não mais linear. São construídas não através de uma reprodução de clichês, mas pela força do real – da realidade ou da vida que acontece e afirma-se na liberdade, na autonomia. Poderia ainda descrever algum filme de Fellini ou Pasolini ou um livro de D.H. Lawrence ou um pôr do sol ou uma criança brincando… seria ainda a mesma sensação de ruptura com o mundo das representações. E é isso que espero da arte: essa potência. Não espero apaziguamento ou reconciliação. Portanto, as minhas pretensões, enquanto interessada em produzir esculturas, são semelhantes às sensações experimentadas através do poema de Borges. Interessa-me essa ruptura com a parede de clichês, o fora, mesmo não sendo esta busca deliberada. Os trabalhos são uma sincera tentativa de limar o muro, respirar um pouco de ar puro e manter a sobriedade.

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A participação No decorrer do processo de pesquisa que venho desenvolvendo desde 1999, construíndo esculturas, objetos e instalações, deparei-me com a questão da participação na obra artística: é esse meu objetivo ou a finalidade do trabalho? O que considero participação? Como ela se efetiva? Por que a recorrência desse tema? A participação em obras artísticas ou trabalhos em que o público assume uma atitude mais ativa pode ser localizada na história da arte visual desde o início do século XX, das manifestações dadaístas de anti-arte aos objetos intrigantes de Marcel Duchamp (1887-1968). Se, no primeiro, as atitudes dos “não-artistas” podiam deixar o público de tal forma revoltado a ponto de chamar a polícia; no segundo, a participação acontece de maneira mais branda, mas nem por isso menos radical. Duchamp, ao colocar um objeto industrial em uma exposição de arte – lugar da manufatura por excelência, questiona o espectador, em vez de lhe apresentar uma resposta às suas inquietações. Se, até então, era possível encontrar nas obras imagens em que os elementos faziam parte do universo iconográfico daquele tempo, já incorporado, compreendido e passível de análise, Fontaine (detalhe FIG. 1) rompe com o esse ciclo. Embora o objeto faça parte do cotidiano, seu deslocamento para o espaço institucionalizado pela arte causa grande desconforto por desvincular o objeto artístico da habilidade trabalho manual do artista. Se o objeto foi realizado pela indústria, como pode ser analisado segundo os padrões vigentes? Isso é arte? O que faz um objeto ser considerado arte? São questões que certamente foram feitas pelo público da época, que foi frustrado ao tentar encontrar uma resposta no, pois as perguntas são elementos constitutivos da obra, resistindo a qualquer tentativa de solução. Por isso, Duchamp estabelece uma relação entre artista-obraobservador não hierárquica, colocando-os no mesmo plano. Com o objeto pronto, é negada ao artista uma habilidade superior, do mesmo modo em que ao escolher objetos por sua neutralidade, é excluída a 50


função de expressar uma genialidade ou profundidade psicológica, estendendo ao público a possibilidade de formular e estabelecer suas próprias conexões. Referindo-se a essa mudança de perspectiva de apreensão das obras artísticas a partir de Duchamp, Jacques Leenhardt escreveu: [...] (o artista) deve chamar o espectador a ultrapassar sua espontânea submissão à imagem, propondo-lhe um enigma, em vez de uma visão de mundo toda pronta. Ele o obriga então a exercer sua própria reflexão, mobilizando a capacidade de olhar do espectador doravante obrigado a pensar também com os olhos (LEENHARDT, 1994, p. 349).

Duchamp também acentua a importância do espectador no contexto artístico ao delegar ao público papel relevante no processo de criação. Segundo o artista, o ato criativo5 completa-se no embate entre a obra e o público, cabendo ao artista a função de propositor. Para ele, “o espectador traz a obra para o mundo externo, ao decifrar e interpretar suas qualidades interiores, adicionando assim sua contribuição ao ato criativo” (DUCHAMP, 1975, p. 74). Acredito que, dessa maneira, Duchamp propõe ao observador uma atitude ativa e participativa frente à obra. Opinião semelhante encontro em Martin Grossmann, que faz uma aproximação entre os ready-made e os Parangolés de Hélio Oiticica: O estranhamento que vivenciamos na observação/ participação de As Meninas [de Velázquez] e na confrontação crítica com os ready-made de Duchamp assemelha-se ao que experienciamos na situação de estar vestido com os Parangolés (GROSSMAN, 1996, p. 37).

Hélio Oiticica (1937 - 1980), juntamente com Lygia Clark (1920 - 1988) e Lygia Pape (1929 - 2004), dentre outros, fizeram parte do movimento Neoconcreto, no qual a participação do

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Duchamp aborda este tema no artigo O ato criativo de 1954.

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espectador na obra artística acontece de forma mais acentuada no Brasil. Hélio Oiticica inicia sua trajetória artística como pintor, mas rapidamente a tela desprende-se da parede para ganhar o espaço com os Núcleos, Bilaterais e Relevos Espaciais, constituídos de placas de madeira pintadas em suas duas faces e suspensas por fios. A partir de trabalhos como os Bólides, os Parangolés e os Penetráveis (detalhes FIG. 1) a experimentação é dilatada e o espectador passa a ser considerado participador. Segundo anotações do próprio artista, é a partir dos Parangolés de 1965, que são capas ou estandartes feitos em tecidos, plásticos, lonas e outros materiais, podendo conter desenhos, frases, pinturas... feitos para carregar ou vestir, que Oiticica passa a considerar o espectador como participador (OITICICA, 1992, p. 93). Em trabalhos como Tropicália, montado pela primeira vez em 1967, Oiticica amplia o limite da obra a tal ponto que o espaço expositivo transforma-se em um novo espaço sensorial, integrando totalmente o espaço arquitetônico e o público à sua proposição. Em 1967, Oiticica formula o conceito suprasensorial: É a tentativa de criar, por proposições cada vez mais abertas, exercícios criativos, prescindindo mesmo do objeto tal como ficou sendo categorizado – não e são fusão de pintura-escultura-poema, obras palpáveis, se bem que possam possuir este lado, são dirigidas aos sentidos, para através deles, da “percepção total”, levar o indivíduo a uma “suprasensação”, ao dilatamento de suas capacidades sensoriais habituais, para a descoberta do centro criativo interior, da sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao cotidiano (OITICICA, 1992, p. 128).

Percebe-se, claramente, que as intenções e a direção das propostas são pensadas a partir e para o público como participador. Posição semelhante a que Lygia Clark buscará em sua trajetória. No trabalho de Clark, a abertura da obra para a participação acentua-se no final dos anos 50, do século XX, com a série chamada Bichos (detalhe FIG. 1), objetos feitos de placas de metal, ligadas entre 52


si por um sistema de dobradiças, de forma que, ao mover-se uma dessas placas, desencadeia-se um movimento que produzirá uma nova forma. Clark chega aos anos de 1970 com os objetos relacionais (detalhe FIG. 1) construídos com diferentes materiais, sem uma característica específica ou mesmo importância formal. A função dos objetos está nas sensações que podem despertar no participador: “é na relação com a fantasia do sujeito que ele se define [...] a sensação corpórea propiciada pelo objeto é o ponto de partida para a produção fantasmática” (CLARK apud FABBRINI, 1994, p. 209-210). Nessa última fase, suas investigações a conduzem à ampliação do conceito de participação para o de integração do indivíduo à arte. Clark defendia a experiência sensorial concreta, que, segundo ela, “não se trata de um viver virtual, mas de um sentir concreto; as sensações são trazidas, revividas e transformadas no local do corpo” (CLARK apud FABBRINI, 1994, p. 165). Mas sua pesquisa diferencia-se da de Hélio Oiticica quanto à relação com o espaço. Enquanto a poética de Clark acontece no corpo das pessoas ou no espaço interno, a de Oiticica acontece em relação ao espaço arquitetônico ou espaço externo. Diferentes dos objetos relacionais, as proposições supra sensoriais de Oiticica estendem o limite formal e conceitual da obra, sem abandonar preocupações referentes à cor, à composição e à forma presentes na produção tradicional. A participação é, para os dois artistas, o objetivo principal da obra. Oiticica chega a afirmar que os Parangolés apenas existem no momento em que são vestidos, fora do corpo não passariam de um amontoado de materiais. Postura semelhante assumiu Clark ao considerar que, com os objetos relacionais, sua atuação desloca-se do campo da arte, passando a assumir uma função terapêutica. Na medida em que construo objetos em tecidos, com texturas aveludadas e dispostos no espaço comum (sem a ostentação do pedestal), a participação torna-se uma potência do objeto. Porém, diferentemente das proposições de Clark e Oiticica, não é o objetivo primeiro do trabalho. O sentido das obras permanece independente da participação. 53


Para esclarecer esta questão, preciso retornar a um acontecimento fundamental para minha produção: o encontro com as questões apresentadas no livro Arte do Motor de Paul Virilio. A partir da leitura, desloquei o foco do trabalho como representação, para a obra como apresentação ou atualização. Passei a desenvolver minha pesquisa buscando uma relação direta, não mediada, entre o espectador e o objeto artístico. Mesmo se tratando de aspectos relacionados às tecnologias, a compreensão dos temas abordados por Virilio (1996), levou-me a uma aproximação com concepções artísticas em que a experiência não é mediada por nenhum conceito pré-estabelecido. O autor aborda os avanços dos meios de transporte e de comunicação, apontando seus efeitos para a vida na sociedade atual. Revela-nos que muitos dos aparatos tecnológicos presentes no cotidiano são responsáveis por alterações na percepção e na relação das pessoas com o mundo, podendo se configurar como importantes mecanismos de controle e de alienação das populações. As tecnologias de transmissão à distância e em tempo real são responsáveis pela produção de um volume cada vez maior de informações. Mas é preciso perceber que, com a quantidade e velocidade com que essas são emitidas, acontece apenas uma absorção passiva, não sendo possível fazer algum tipo de reflexão ou discussão – não há tempo, uma informação sobrepõe-se a outra, a atenção é arrastada de uma cena para outra, sem percebermos. Além disso, não existe a troca: há o emissor (televisão, rádio…) e o receptor (o público) que não é ouvido, que não pode interagir diretamente6 Assim, a percepção natural, que contaria com a proximidade física, com a conversa, com a discussão, com o tempo e o espaço reais, cede lugar a uma percepção passiva.

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Pode nos parecer que o controle remoto ou os programas com participação

do público ou os recursos de interatividade desenvolvidos nos últimos anos dariam aos espectadores possibilidade de interagir direta e ativamente nos meios de comunicação. Porém, não acredito que isso aconteça, pois a interferência acontece dentro do possível, de acordo com a lei e a permissão.

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Da mesma maneira, tem-se a ilusão de estar participando dos acontecimentos e decisões do mundo. Contudo, a participação não se efetiva, acontecendo uma participação mediada. Para dizer de outra forma, ao mesmo tempo em que somos informados sobre os fatos e problemas relevantes (não podemos nem mesmo apontar os problemas!); somos informados também das soluções, ou seja, das soluções previstas de acordo com os clichês. A participação é apenas uma ilusão, porque estamos em uma posição de reação, ou seja, uma posição reativa. Os estímulos, os problemas, os desafios são externos, prontos. A ação e a criação dependem de uma motivação interna, um problema real. Virilio (1996) ressalta que até o início do século XX, mediação era compreendida como estar privado de seus direitos, sentido que parece ter sido esquecido ou abandonado. Em contrapartida, o autor defende uma cultura da desinformação, pois o excesso de informação e de imagens em movimento constante e acelerado provocaria um cegamento: os estímulos visuais são tantos que não se “vê” mais. O corpo torna-se inerte frente à televisão, o espectador torna-se um ser cada vez mais passivo. Se a velocidade é o cegamento, o imóvel torna visível – capacidade presente nas artes visuais, por serem obras contemplativas. Mas o advento da velocidade, da imagem em movimento, do acúmulo de informações por segundos, alteraram nossa capacidade de contemplação, de pousar o olhar sobre o mundo e selecionar nossos próprios interesses. Virilio aponta para um certo estado de torpor físico e sensorial, colocando que “da supressão do esforço físico da caminhada à perda sensório-motora dos primeiros transportes rápidos, alcançamos estados vizinhos da privação sensorial” (VIRILIO, 1996, p. 79), pois o corpo é cada vez menos solicitado e as experiências foram reduzidas a um conjunto de experimentações possíveis, mediadas. Nossos problemas, soluções, prazeres, questões, vontades, ritmos, horários... são previstos pela sociedade da representação. São sinais, símbolos e esquemas traçados de acordo com o estabelecido, a ordem, a lei, os clichês... “a coisa descrita assume maior importância que a coisa real” (VIRILIO, 1996, p. 45). 55


A experiência mediada substitui a experiência real, direta. A diferença fundamental entre essas duas formas de experiência consiste no fato da primeira sempre depender do agente mediador do estímulo externo – deixa-se de agir, para apenas reagir; semelhante à parede de clichês, onde as respostas estão definidas. O mesmo pode acontecer com a obra artística que é produzida em função de um mediador, ou seja, como uma representação ou um símbolo, pois o sentido não está na obra, mas fora dela. A experiência real exige a ação. As relações efetivam-se no encontro com o objeto, seja artístico ou não. Por isso, acredito que as questões levantadas são imprescindíveis para a criação, para a ação, para a efetivação de um modo de vida que consiga passar entre as paredes de clichês. Assim, vejo que Berger, Deleuze e Virilio tratam do mesmo assunto: da necessidade de desenvolvermos uma maneira particular de observar o mundo. Após compreender o sentido da mediação da sociedade de representação, como construir um trabalho fundado nesses princípios? Se por um lado a participação acontece como uma decorrência da materialidade, da instalação no espaço expositivo, de uma permissividade e passividade dos objetos, por outro, ao se apresentarem aos espectadores sem mediadores, sejam eles de ordem formal, psicológica ou simbólica, cabe ao público estabelecer suas relações. Assim, a participação efetiva-se tanto no contato tátil, físico do objeto, próximo às propostas de Clark e Oiticica, quanto no embate entre espectador e obra, semelhante às proposições duchampianas. Gosto especialmente do modo com que o artista plástico Joãozito7 apresentou, com precisão o sentido da minha produção e da participação que proponho: […] Acredito que os trabalhos de Lanussi não representam nada, não simbolizam nada, não significam nada e nem pretendem. Com isso, o que resta então, são os trabalhos: puros, livres e limpos

7

João Pereira ou Joãozito é artista plástico, vive e trabalha em Salvador.

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para qualquer um abraçá-los, tocá-los, esmurrá-los, pisá-los… sem precisar de conceitos...

Gosto de quando as crianças se deparam com um trabalho de Lanussi, o que se vê é o caos: sem cerimônia vão logo deitando, abraçando, pulando e experimentando. Enquanto nós, adultos cultos, ficamos interpretando, admirando, conceituando: “falta isso, tem aquilo, precisa disso, lembra não sei o quê, tem influência de não sei quem, blá blá blá blá… E as crianças? As crianças como que gritam: “o rei está nu!”8 As crianças9 se relacionam, na maioria dos casos, diretamente com o trabalho, sendo a experiência concreta e ativa, pois, para elas, as explicações de ordem conceitual não têm importância. Elas não estão preocupadas em ler a obra, mas em ver e, se for possível, tocar. A atividade infantil nos mostra o quanto estamos aliciados pelas sensações mediatizadas e o quanto estamos submersos num estado reativo. A criança age, pois entrega-se à percepção direta do objeto; nós, adultos, de maneira geral, reagimos depois de ponderarmos e analisarmos. Em determinado ponto do processo de pesquisa, percebi que o trabalho funciona como um revelador desse estado de torpor. Mas é preciso ressaltar que não estou interessada em propor uma cura ou uma espécie de terapia. Acredito que a participação proposta através do trabalho é próxima a uma vivência desinteressada, descompromissada. Existe, 8

PEREIRA, João. Texto crítico de apresentação da exposição de Lanussi

Pasquali. Novo Hamburgo, set. 2002. Exposição individual realizada na Pinacoteca do Centro Universitário Feevale, Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul. 9

Quando me refiro à criança ou à infância, não estou afirmando um

puritanismo ou uma originalidade, pois a infância também é produzida e moldada por seu entorno. Mas acredito que, nessa fase, sempre existe uma certa liberdade de experimentar, mesmo que em decorrência de uma permissão vinda do adulto. Além disso, essa questão será retomada no capítulo 3.

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em cada trabalho, a não-obrigação de participar, a não-necessidade de explicar, justificar ou definir significados, e sim, a abertura para a experimentação. Além disso, quando o espectador entra em contato com o trabalho está atualizando-o, ou seja, participando da produção de sentido do mesmo.

Figura 1 - referência da esquerda para diretita: Marcel Duchamp. Fontaine. 1917. Urinol de porcelana, 23,5 x 18 cm, altura 60 cm. Fonte: Mink, 1996, p. 66. Hélio Oiticica: Bólide Caixa 11. 1964. Parangolé. 1967. Tropicália, Penetráveis PN 2 e PN 3.1967. Fonte: Verberkt, 1992, p. 78, 96 e 121. Lygia Clark: Bicho. 1962. Metal e dobradiças/ Fonte: Mit Press (2005). Nostalgia do corpo. 1965/1988/ Fonte: Bienal Uol (2005).

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FIGURA 2 - Lanussi Pasquali. Uma tenda para Louise. 2004-5. Tecido e fibra sintética. Dimensões variáveis, altura 200 X 1200 cm de comprimento linear. Fonte: arquivo pessoal.

FIGURA 3 - Lanussi Pasquali. Sem título II. 2005. Tecido, veludo e vidro. Instalação, dimensões variáveis. Fonte: arquivo pessoal.

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FIGURA 4 - Lanussi Pasquali. Sem título I. 2005. Cobertor e espuma. 280 x 80 x 120 cm. Fonte: arquivo pessoal.

Referências BERGER, John. La producción del mundo. In: ______. El sentido de la vista. Madrid: Alianza Editorial, 1990. p. 257-261. BORGES, Jorge Luis. Nova antologia pessoal. Tradução de Rolando Roque da Silva. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Joana Moraes Varela e Manuel Carrilho. Lisboa: Assírio e Alvim, 1966. DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTCOCK, Gregory (Org.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1975. GROSSMANN, Martin. Do ponto de vista à dimensionalidade. Item, Rio de Janeiro, n. 3, p. 29-37, 1996. LEENHARDT, Jacques. Duchamp: crítica da razão visual. In: NOVAES, Adauto (Org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 60


MILLIET, Maria Alice. Lygia Clark: obra-trajeto. São Paulo: Edusp, 1992. OITICICA, Hélio. Aparecimento do suprasensorial. In: VERBERKT, Mat (Coord.). Hélio Oiticica. Tradução de Stephen Berg. Paris: Gal. Nat. Jeu de Paume, 1992. VIRILIO, Paul. A arte do motor. Tradução de Paulo Roberto Pires. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

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ESPAÇO (CIBER) ESPAÇO: novas tecnologias de comunicação colando arte nos espaços urbanos1 Marilei Fiorelli 2 marifiorelli@gmail.com

Introdução “Flanar”3 em uma de nossas conturbadas e populosas cidades pós-modernas ainda pode resultar em percepções artísticas absolutamente novas. Agora, vê-se com mais freqüência a presença de manifestações artísticas contemporâneas essencialmente urbanas movimentos de arte coletiva e interativa - mescladas às novas tecnologias de comunicação - NTC. Os aparatos de comunicação eletrônicos largamente difundidos como celulares, Palms, Pocket PCs, câmeras de vigilância e a própria rede Internet, podem interferir nas percepções e usos que fazemos dos espaços públicos de uma cidade. Que tipos de novas possibilidades de intervenções urbanas artísticas são possíveis pela interação com os dispositivos e redes de comunicação? A partir do momento em que os artistas passam a usar estas tecnologias como meio de criação e difusão de arte em espaços urbanos, novas e inéditas obras interativas passam a fazer parte da vida da população das cidades. A participação é inevitável, já que a cidade é o suporte. A arte não está mais restrita aos museus, ou aos sites specífic. Se a cidade-dinâmica agora se transforma também em suporte, os conceitos e as percepções estéticas urbanas se modificam. Espaço-

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Artigo apresentado no 14º Congresso Anual da Anpap, 2005, Goiânia.

2

Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia e professora da

Faculdade Integrada da Bahia. marifiorelli@gmail.com 3

Andar ociosamente, sem rumo nem sentido certo pelo espaço urbano com

um olhar poético.(Dicionário Houaiss online – In: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=Flanar)

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percepção-deslocamento. A arte circula agora em espaços não institucionais, fluindo, se confundindo com a própria cidade. As NTC possibilitam aos artistas-urbanos multiplicar, reproduzir e expandir a arte. Os meios de (re)produção, de criação e publicação tornam-se mais fáceis e acessíveis. Utilizar potencialmente as novas possibilidades tecnológicas das NTC para produzir e distribuir arte nos centros urbanos começa a interessar cada vez mais os artistas, individualmente ou agrupados em coletivos4. Artistas se organizarem em rede, formando os chamados coletivos não é uma novidade. Os movimentos Arts and Crafts na Inglaterra, os situacionistas, os dadaístas, o grupo Fluxus, e uma infinidade de outros coletivos se organizaram dentro da história da arte. No Brasil, os modernistas da década de 1920, o grupo antropofágico, os concretistas nos anos 1950, e inúmeros outros. Artistas se organizavam presencialmente, escreviam seus manifestos e trocavam experiências, idéias e trabalhos via os meios de comunicação disponíveis em cada época - reuniões, correio, cartas, fax etc. A novidade agora é a velocidade e a possibilidade de troca em tempo real que as NTC propiciam. O tempo instantâneo. Coletivos de arte colaborativa usam a rede Internet e outras tecnologias móveis para planejamento, execução e divulgação dos projetos entre os bairros, cidades, países e continentes. Com as redes “os pensamentos e conceitos vão sendo acumulados e trocados por outros conceitos, não interessando mais a noção de objeto ou de representação, mas a idéia de fluxo” (DOMINGUES, 2002, p.106). O mundo ficou menor. Os coletivos de artistas agrupados através da rede Internet podem utilizar o ciberespaço para a organização das ações conjuntas, para a divulgação e exposição das intervenções artísticas que acontecem

4

Segundo o historiador Alan Moore, o ponto de partida dos coletivos

artísticos foi logo após a Revolução Francesa, com os estudantes de JacquesLouis David, os barbados, ou "Barbu", que formaram uma comunidade criativa que viria a ser chamada de Boêmia, espécie de nação imaginária espiritual de artistas -cujo nome provinha de uma nação de verdade e geraria a idealização do estilo de vida "boêmio"-, compondo um contraponto à academia oficial (Moore apud Rosas).

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em espaços urbanos através de registros digitais – fotográficos ou sonoros. Alguns projetos usam o ciberespaço também para agregar informações/impressões/leituras oriundas das intervenções nos espaços urbanos, e as deixa disponíveis para que outros fruidores, em outros locais ou em outro momento, possam acessá-las, ou até modificá-las. As NTC ampliam e aceleram o leque de difusão dos trabalhos de arte urbana. A seguir, um recorte de alguns projetos artísticos vistos nos espaços urbanos da cidade de Salvador, Bahia, que utilizam as novas tecnologias de comunicação para sua articulação, execução, por parte dos artistas-criadores e para envolver o público-espectador no processo de participação. Interferência urbana – na cola dos stickers Interferências de arte de rua ilegais não são novidades nas grandes cidades do mundo. Entre as formas de expressão artística mais populares, destacam-se o grafitte e as pixações. Vêm aumentando agora, tornando-se mais visível, uma prática artística de fácil aplicação, a chamada sticker art. Ao invés de tinta spray, stickers e pôsteres vêm sendo disseminados pelos centros urbanos, em meio aos cartazes de publicidade, como projetos de arte urbana. Manifestações de street-art em formato de stickers têm despertado o interesse de artistas, que a partir da facilidade dos meios de produção deste tipo de arte, tornam-na acessível, tanto na produção quanto em sua publicação – a cidade é a galeria. Não há necessidade de museus, salas de exposição ou de materiais caros para sua confecção. Computador pessoal, papel adesivo, impressora, câmera digital, rede Internet: estes são os ingredientes para a produção e veiculação deste tipo de arte. Em pesquisas em sites na rede Internet sobre o assunto, deparou-se com uma polêmica em relação à definição/nomen-clatura da arte feita a partir de adesivos colados em espaços urbanos. O

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termo “Post-Graffiti”5 tem sua origem associada ao artista e grafiteiro francês Stak e aos também grafiteiros Cost and Revs6, que começaram a utilizar, além do graffitti, adesivos com desenhos e frases nos espaços urbanos, como uma nova forma de graffiti. O termo também é utilizado como sinônimo de street art. “Street Art, Post-Graffiti or streetart is a new form of public art” (...). O site www.artrepublic.com também cita o termo como sinônimo: “PostGraffiti also known as Street Art (…)”. Uma definição mais adequada para Post-grafiiti parece ser “o encontro do graffiti com outras formas de arte e expressão”. Nosso foco de interesse aqui é o uso dos stickers como formas de intervenção urbana, envolvendo as NTC. Estes adesivos colados pelas cidades são analógicos, mas a maneira de conceituação, distribuição, e divulgação destes projetos de arte acontecem através de uma rede de artistas, mediada pela rede Internet. É um exemplo de arte colaborativa onde o modo de produção e distribuição se dá pela rede Internet, não sendo necessariamente digital o produto final. O processo da maioria dos coletivos de artistas que 5

Segundo a enciclopédia on-line http://encyclopedia.thefreedictionary.com/

Post-Graffiti, este termo começou a ser utilizado pelo artista francês Olivier Stak, grafiteiro, para definir este tipo de arte. “Cost and Revs, who came from the 1980s Quick Summary: The decade from 1980 to 1989s graffiti movement, Shepard Fairey is with his "Obey the giant" campaign one of the biggest influences ever. He made something that seemed to be an advertising campaign, because of the graphic and imagery he used, but was a campaign for himself. Street Artists use media such as sticker, poster, stencil but also paint and put up installations in the urbanspace”. 6

Fonte: http://www.absoluteastronomy.com/ encyclopedia/S/ St/Street_Art.htm. Outra citação: “In the late 80s and early 90s the writers Cost and Revs were

the first to use new techniques that was to be a new form of graffiti, PostGraffiti also known as Street Art. These participants use stencils, posters, stickers and installations to spread their art illegally in the streets.” Fonte: http://www.artrepublic.com/Posters/content/artterms/graffiti.asp. Sites acessados em 16/02/2006. 7

“Artivismo”: ativismo difundido com o uso da arte.

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desenvolvem este tipo de arte funciona de maneira similar: adesivos em papel vão surgindo pelas cidades, com ilustrações e desenhos sobre os mais variados temas, que vão desde político–sociais, cenas urbanas do cotidiano, artivismo7 social ou ecológico, etc. Os adesivos são colados pelos espaços urbanos em pontos como postes de iluminação pública, paredes, mobiliário urbano, placas de sinalização, muros, paredes e outros, e então fotografados. Estas fotos digitais são publicadas na rede Internet. Também a partir da rede, ações simultâneas (ou não) são organizadas em várias cidades. As fotos permitem a visualização dos pontos e cidades onde as ações ocorrem. Existe uma preocupação em relação à mensagem inserida no espaço-público: algumas imagens são recombinadas, coladas próximas a intervenções já existentes nos locais, como publicidades oficiais ou informais e pichações, gerando assim, um re-significado da obra e do espaço. A intervenção estética chama o olhar para algum ponto que, de tão comum, passava despercebido pelo morador da cidade – aqui transformado em espectador. Outros coletivos, mais abertos à colaboração, disponibilizam na rede os arquivos em alta resolução para download, para que qualquer pessoa possa imprimir os adesivos e participar do processo. O espectador, nesses casos, pode virar co-autor e artista participante, e também é convidado a fotografar os stickers colados por ele e enviar as fotos para a publicação nos sites oficiais dos projetos ou em blogs e fotoblogs independentes. O morador da cidade, não necessariamente artista, participa destes projetos, sobretudo pela simplicidade do processo. Não é necessário saber desenhar ou criar imagens únicas. A facilidade dos meios de reprodução que as NTC possibilitam acabam por agregarem cada vez mais colaboradores, formando uma só rede. Inúmeros projetos e coletivos utilizam a sticker art como forma de expressão artística. Como exemplos, citarei a seguir dois projetos onde participo, na cidade de Salvador, Bahia.

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HTTPS e Colativo Na cidade de Salvador, manifestações artísticas de street art tornaram-se mais visíveis no espaço urbano a partir do ano de 2004. Um projeto que pode ser visto pela cidade, que utiliza como base stickers adesivados é o Https – high tech total popular stickers O nome é uma referência ao protocolo “Https”, ambientes dentro da rede Internet com protocolo de segurança. Como proposta de arte urbana contemporânea, tem seu foco especifico no life style urbano tecnológico, a partir da relação seres-humanos com as novas tecnologias de comunicação. Mensagens sobre cibercultura são criadas e ilustradas utilizando elementos pictográficos sintéticos em suas soluções gráficas. O site do projeto, aberto à participação, disponibiliza todos os arquivos em alta resolução para que os interessados possam fazer suas próprias impressões, e colar os adesivos pelas diferentes cidades. Uma rede artística se forma, ultrapassando as fronteiras físicas. Este projeto utiliza a “Creative Commons License”, uma licença de direitos autorais aberta, mas que protege os criadores quanto à autoria do projeto. Os criadores do projeto também expõem em um web site fotos digitais dos locais onde os adesivos são colados. Já o coletivo chamado de “Colativo8”, também a partir da cidade de Salvador, cria adesivos em papel, com ilustrações e desenhos sobre os mais variados temas. Os adesivos são colados pela cidade, em vários locais, desde os pontos mais distantes e aparentemente despercebidos, aos com mais fluxo de pessoas, e depois, fotografados. Estas fotos digitais também são publicadas na rede Internet. Os grupos Colativo e o HTTPS, dentre outros, participaram em novembro de 2004, de um grande evento de arte urbana, sobretudo sticker art, chamado Attack +.

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Disponível em: http://www.fotolog.net/mayart/

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Attack + Organizado a partir de Salvador, o evento chamado de Attack+ (Attack Positivo) reuniu, em rede, artistas de algumas cidades brasileiras, e assim agregou diferentes representantes de arte urbana - artistas plásticos, designers, dj´s, videomakers, performers e grafiteiros. Aconteceu simultaneamente em São Paulo, Rio de Janeiro, Aracaju, Campinas, Brasília e Belo Horizonte, e foi articulado exclusivamente via rede Internet. Alguns artistas só se conheciam via rede virtual e encontraram-se presencialmente no local do evento. Outros enviaram suas obras sticker para que fossem coladas pelos artistas fisicamente presentes no local. Os trabalhos circularam em rede até chegarem ao seu suporte final – o espaço urbano. O evento, aberto à participação coletiva de artistas, usou potencialmente as NTC para sua realização: imagens projetadas sobre os prédios, música eletrônica e performance de dj’s, a própria rede Internet para transmitir o evento em tempo real, impressoras e copiadoras para a reprodução (em massa) dos adesivos. Os artistas de cada cidade escolheram os locais para a ação. Em Salvador, o evento aconteceu em uma praça pública no bairro do Rio Vermelho, e mobilizou centenas de moradores da vizinhança, de todas as idades, que se uniram à proposta artística, não apenas apreciando, mas sobretudo participando ativamente do processo, desenhando com tintas e sprays os muros e ruas, colando e desenhando cartazes, procurando os melhores locais para a colagem dos adesivos. Imagens foram projetadas sobre um dos prédios, transformado em tela para a apresentação de vídeos e animações com a temática “cidades”. Dj´s se revezavam fazendo a trilha sonora do final de tarde, entre as performances de outros artistas. A partir do local, uma web cam transmitia as imagens em tempo real em um site da rede Internet. Após o evento, as fotos digitais de todas as cidades que participaram do projeto também foram publicadas. Intervenções artísticas urbanas em grandes ações programadas como as do Attack + propõem novas formas de apreciação e utilização do espaço urbano – pontos específicos da cidade são realçados, destacados, afetando pontos sensíveis do fruidor/espectador. O que aconteceu nesse dia, em Salvador, foi um 68


grande envolvimento dos moradores da cidade, que se integraram ao projeto (desde o ciberespaço), não apenas apreciando, mas difundindo e participando desta arte mais tecnologicamente acessível (no espaço). Em rede.

Esboçando conclusões Medir o nível de participação do espectador de uma obra de arte é uma tarefa impossível, e não é nosso objetivo aqui. Nosso ponto de reflexão deve ser mais direcionado à potencialidade das NTC em relação à arte pública urbana. Temos dois lados nesta questão: do ponto de vista do criador, as mídias eletrônicas, mass media, e todo aparato tecnológico já acessível facilita, e muito, os processos de criação, ampliando as possibilidades estéticas: a participação, a criação de redes , “uma rede - que não é mais a rede metafórica das galerias e dos apreciadores, mas uma rede material de comunicações eletrônicas – possibilita uma ubiqüidade real” (CAUQUELIN, 1996, p.33). Do ponto de vista do espectador, o leque abre-se mais ainda: espectadores podem, participar de maneira mais efetiva, tornando-se co-autores das obras públicas urbanas – agora mais do que nunca, abertas à participação. Como dizia Lygia Clark em carta à Oiticica: “Perco cada dia mais a minha personalidade aparente e entro no coletivo buscando um novo diálogo e me realizando através do espectador” (CLARK, 1968, p.86). O investimento no coletivo impacta no social-urbano. As propostas artísticas de interferência urbana apresentadas despertam o olhar dos moradores das cidades, transformando-os em espectadores de arte, e em alguns casos, em co-autores. As redes mediadas pelas novas tecnologias, no ciberespaço, aglutinam mais facilmente e rapidamente os artistas, criando uma rede-urbana de arte colaborativa e livre, paralela ao mundo tradicional das galerias de arte. Esta organização no ciberespaço se reflete e acontece dentro do espaço urbano.

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Organizados via rede Internet, artistas e freqüentadores do ciberespaço têm acesso aos eventos de arte programados e que acontecem pelos espaços urbanos reais. A troca é natural – do ciberespaço partem fragmentos, partes do processo artístico, que são “lançados” no espaço real. Do espaço real parte a resposta ao projeto: frases, fotos, sensações são enviadas a partir do espaço para o ciberespaço. Do ciberespaço, novamente, as informações são processadas, ingeridas pelas pessoas, que voltam a interagir com o espaço urbano, em um ciclo ininterrupto. Pontos do espaço urbano real, até então desconhecidos (ou despercebidos), são destacados por ações artísticas: adesivos, flash mobs... Pode-se chegar a estes pontos via o espaço urbano local – uma imagem adesivada indica o caminho, ou via ciberespaço – o mouse aponta o caminho. Impressões, idéias e sensações são trocadas pela rede imaterial. E as sensações fluem por entre os bits. Adesivos desenhados em Salvador são colados em Porto Alegre por qualquer pessoa, e assim todo ser humano pode ser um nó da imensa rede artística. As trocas via rede são facilitadas e otimizadas pelas novas tecnologias de comunicação. Esta é uma das essências da arte em rede: espaço e ciberespaço dialogando. Pessoas e ações fluem do espaço real urbano para o espaço ciberespaço, e do ciberespaço para o espaço urbano, em um ciclo dinâmico e permanente.

Referência CAUQUELIN, Anne. A cidade e a arte contemporânea. In: Arte&Ensaios, revista do Mestrado em História da Arte, EBAUFRJ, 1996. DOMINGUES, Diana (org.). Criação e interatividade na ciberarte. Experimento, Rio Grande do Sul, 2002. FERRARA, Lucrécia D’Alessio. Olhar periférico: informação, linguagem, percepção ambiental. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.

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OITICICA, Hélio. CLARK, Lygia (Organização Luciano Figueiredo). Cartas – 1964-1974. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. ROSAS, Ricardo Nome. Coletivos, senha: colaboração In: File Script: Revista Digital. http://www.file.org.br/file2004/filescript/textos/col_colaboracao.htm. TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

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ARTE, CIDADE E SOCIEDADE: dimensões da arte pública no contexto urbano Sicília Calado Freitas1 siciliacalado@yahoo.com.br

A relação entre arte, cidade e sociedade estabelece um perfil diferenciado para o fenômeno artístico, levando-nos a analisar obras dessa natureza sob um prisma que transcende a arte enquanto um produto que se esgota em si mesma, instituindo-a como um campo potencial de significados e expressões caracterizado pela inserção da obra no espaço físico-estrutural urbano e pela sua interação com o universo sociocultural desse contexto. A arte instalada nas ruas, praças e demais espaços das cidades, concebida como Arte Pública, cria relações que só podem ser entendidas por uma visão ampla que a compreende como um fenômeno artístico, social e cultural. Como a cidade não é um espaço destinado especificamente a exposições de obras de arte e corresponde a um universo múltiplo de acontecimentos sociais, resultante da experiência coletiva concreta, a arte que se instala em seu ambiente não pode ser compreendida fora desse dinamismo, de maneira descontextualizada da realidade que determina o que ela representa e significa. Partindo dessa ótica, discutimos neste artigo o conceito de Arte Pública e sua inter-relação com o universo sociocultural da cidade, tomando como base autores que têm abordado essa temática em diferentes perspectivas. Assim, este trabalho tem como objetivo elucidar, apresentar e discutir conceitos e abordagens teóricas que possam alicerçar futuras discussões a respeito da Arte Pública, bem como apontar perspectivas que direcionem o entendimento do que é e do que caracteriza essa expressão artística.

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Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e

graduada em Educação Artística, com Habilitação em Artes Plásticas, pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Professora assistente do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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A cidade como universo espacial, social e simbólico Atualmente, no campo da arte e de outras áreas de conhecimento, é comum discussões que buscam compreender de que forma e em que proporção a cidade interfere nos contratempos e soluções cotidianas que vivemos, intrinsecamente ligados ao processo de padronização dos gostos e dos comportamentos que configuram a mentalidade de uma determinada época e lugar. Dessa forma, torna-se importante analisar que mecanismos acrescentam mudanças a essa dinâmica social e quais são as particularidades que se incorporam neste plano para que o entendimento do diálogo entre arte e cidade contemple, sobretudo, a realidade social em sua inter-relação com esse universo. Sob essa ótica, a compreensão do fenômeno artístico se estabelece de forma muito mais ampla, observando-o em sua totalidade pelos modos de apropriação do espaço, pelas especificidades e finalidades das distintas formas artísticas possíveis de serem realizadas nos espaços da cidade e pelo conjunto de significados e representações simbólicas que a arte instalada nesse universo pode representar para as pessoas que as vêem, as apreciam, e as (re)definem em seus imaginários. É essa complexidade física e simbólica que representa o local de exposição da arte pública, qual seja, a cidade, com toda a sua amplitude. Nos diálogos imaginários entre o imperador Kublai Khan e o viajante veneziano Marco Polo, narrados por Ítalo Calvino no livro “Cidades Invisíveis”, podemos perceber o quanto a presença da cidade é marcante nas nossas memórias, mas ao mesmo tempo o quanto de nossa memória (re)constitui parte dessa presença, (re)modelando-a em função de nossos anseios, vontades e vicissitudes. As narrativas fantásticas de Marco Polo a respeito dos lugares que visitou revela uma geografia ambígua, descrita por sensações, onde a cidade é apresentada como um emaranhado de existências humanas, não se restringindo à racionalização da sua localização e estruturação geográfica. Neste sentido, a descrição das cidades que Polo apresenta ao imperador é apenas um fragmento desse fenômeno multifacetado que é a cidade. O viajante nos alerta que não se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve (CALVINO, 1990). O que existe, de 73


fato, é uma relação, fruto de vivências, significados e interações diversas, que estabelece a fala como uma tentativa de tradução de algo que vai muito além dos aspectos físico-estruturais. As cidades, como uma invenção do homem, se constituem de justaposições e sobreposições de narrativas históricas e sociais. Fragmentos de memórias, atitudes e mentalidades resultantes do contínuo processo de interferência humana no ambiente natural que vão tecer uma complexa rede de apropriação da realidade pelo imaginário de uma sociedade. Respondendo aos anseios do ser humano na contemporaneidade, a metrópole atual, com todas as suas inovações, reafirma-se como o espaço da vida humana, um espaço que cada vez mais se confirma como local propício às atividades dos indivíduos que se formaram culturalmente nas bases de uma sociedade industrializada. Neste ambiente, uma rede complexa de relações sociais vai se tecendo e à medida que os avanços tecnológicos e a aparente qualidade de vida que a cidade propicia gera um crescimento exagerado da população urbana, essa rede de relações distintas se propaga e se desenvolve de forma exorbitante. O espaço da cidade, onde se articulam essas relações, delineiase principalmente como espaço público, cujos atributos têm relação direta com a vida pública: co-presença de indivíduos, linguagem comum (entre os indivíduos), práticas, hábitos e outros aspectos culturais comuns entre os diferentes membros que compõem as sociedades. O espaço público, na sua definição fundamental, pressupõe a interlocução entre atores sociais, que buscam manifestar as suas diferenças através da intersubjetividade, ou seja, pela comunicação das consciências individuais, umas com as outras, realizada com base na reciprocidade. (GOMES, 2002, p. 160). O espaço público urbano também pode ser entendido a partir da territorialidade, definida pela sua localização e limites sóciogeográficos. Neste caso, compreende a ocupação do solo pela nação, sua extensão geográfica e pertencimento ao espaço terreno, aéreo e marítimo e as regras de sua utilização. Por outro lado, este espaço impõe suas restrições ao mesmo tempo em que é (re)modelado pelo uso e por isso a sua demarcação acontece não apenas por limites 74


geográficos ou referências visuais, mas, como resultado do diálogo social, pela apropriação do espaço por grupos cuja atividade conferelhe características particulares. Dessa forma, “a cidade é o lugar do desejo e de um conjunto de coações que inibem os desejos, e nesta direção a cidade sustenta o sonho e o imaginário” (CARLOS, 2004, p.32). Por englobar concomitantemente restrições e apropriações, a vida concreta e o imaginário, a cidade pode ser definida como “o lugar do possível” (LEFEBVRE apud CARLOS, 2004, p. 32)2. Diante essa concepção, entendemos que a arte produzida nos espaços urbanos, assim como as demais atividades sociais, tem seus significados desdobrados nos múltiplos papéis por ela exercidos, considerando os contextos diferenciados em que ocorre, cujos valores são constituídos na relação com os locais de sua intervenção e com o público, na apropriação pela coletividade. Por este motivo, o diálogo entre arte e cidade dá-se em meio a circunstâncias permeadas de significados socioculturais, resultantes da correlação de forças entre grupos sociais, lugares, tempos, interesses, memórias e histórias referentes ao ambiente de sua inserção. É preciso, portanto, levar em conta que os elementos do processo artístico estão inseridos em um contexto que os agrega e que promove a articulação entre os valores e os significados que expressam – o espaço urbano. As formas artísticas adquirem características que demonstram como as condições do urbano interferem na sua constituição(VEL ZOLADS, 2005). Assim, ao buscarmos a compreensão de uma obra de arte é fundamental considerar o contexto de inserção das manifestações artísticas e os princípios de reciprocidade que organizam as suas relações enquanto fenômeno sociocultural.

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LEFEBVRE, Henri. Posição contra os tecnocratas. São Paulo: Editora Documentos, 1969. p. 164-165.

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A arte e suas implicações como expressão urbana Entendemos que a arte se articula com a sociedade desde os primórdios da humanidade, como atividade inerente ao ser humano, fruto da necessidade dos indivíduos de abarcar sua realidade e transpô-la. Inicialmente ligada a um sentido de magia, a arte se manifestou nas suas mais remotas origens como uma representação da consciência da força e, simultaneamente, da fraqueza do homem, do seu temor em relação à natureza e o seu desejo de controlá-la. Nessa perspectiva, a arte não é completamente autônoma, sendo, de certa forma, vinculada ao contexto em que é realizada. Na cidade, ela corresponde a uma resposta aos estímulos externos que o meio oferece, sendo particularizada enquanto uma expressão que se faz nas condições citadinas. No entanto, as expressões artísticas, ao mesmo tempo em que correspondem a um contexto, possuem estruturas e significados próprios que as particularizam frente às demais manifestações do cotidiano. No caso das Artes Visuais existe uma realidade visual que não se confunde com as demais realidades sociais e nem se reduz a elas (FRANCASTEL, 1990). É mais uma das dimensões do social, pois é resultante de um pensamento figurativo que faz parte da natureza e da cognição humana. A arte é, então, uma forma de organizar fragmentos de memória e de percepção oriundos das mais variadas experiências de mundo que o homem realiza. Em sua caracterização como fenômeno urbano, a arte, segundo Argan (1995, p. 43), “não é apenas inerente, mas constitutiva da cidade”. Podemos observar que o homem, desde a sua origem, quando começou a “atuar”, construindo o seu entorno através de suas práticas cotidianas e expressando-se nele, artisticamente, com as pinturas rupestres, ele, de certa forma, imprime um caráter coletivo à sua arte, que nas suas primeiras manifestações tinha uma completa relação com a vida, as práticas, os costumes e os significados que o ser humano estabelecia com o seu meio social, consigo mesmo e com a natureza. As pinturas feitas nas paredes das cavernas tornaram “público” o sentimento e a experiência de mundo representativa da manifestação artística daquele período. Na pólis grega, onde grandes arquitetos e escultores como 76


Fídias e Praxíteles desenvolveram trabalhos artísticos mais especificamente integrados à estrutura das cidades, a arte começa a delinear e definir aspectos relacionados ao que hoje entendemos como arte pública urbana. Nesse período, os gregos uniam arquitetura e escultura em grandes monumentos, construindo cidades que se caracterizavam como verdadeiras obras de arte. Na Idade Média, as cidades alcançaram dimensões de urbanização consideráveis, de intensa movimentação comercial e cultural, nas praças e espaços públicos onde as pessoas se reuniam. Para Le Goff, a cidade medieval já delineava a estrutura funcional de uma cidade contemporânea, cujas funções fundamentais eram: “a troca, a informação, a vida cultural e o poder” (LE GOFF, 1998, p. 29). As artes plásticas, nesse universo, juntamente com a difusão do urbanismo e do teatro, foram concebidas como manifestações culturais de significativo valor. Os artistas desse período desenvolveram trabalhos como mosaicos, afrescos, esculturas e construções arquitetônicas, sendo grande parte das obras de cunho religioso. A arte feita nas cidades ganhava novas dimensões de alcance à esfera social, tendo a igreja como o centro divulgador da maior parte das expressões artísticas. No Renascimento, a retomada da estética clássica e a configuração de um espaço unitário, matemático, linear e estático (FRANCASTEL, 1993) vai reintegrar a arte na estrutura das cidades de forma a organizá-la num todo ordenado. Segundo Knauss (2001, p. 11) “o classicismo reinterpreta a cidade como suporte material, delimitando-a como um plano em que se projeta o contínuo espacial, harmonizando a relação entre elementos díspares” e assim a ordenação das formas artísticas e da cidade resulta num conjunto simétrico, concêntrico e equilibrado. No início do século XX, para alguns artistas, como os surrealistas e os dadaístas, a experiência das deambulações pela cidade já era uma proposição estética em si mesma. Para Breton, Aragon, Picabia e Tzara, entre outros, o ato de se perder nos domínios urbanos representava uma atitude de liberdade que constituía a base para os seus manifestos críticos como Nadja, de Breton ou Paysan de Paris, de Aragon, que fizeram parte das 77


vanguardas modernas entre os anos de 1910 e 1930. Assim, desde longa data a complexidade da vida urbana tem sido atrativo para investigações estéticas variadas. Poetas, intelectuais e artistas vêm transformando as percepções oferecidas pela cidade em fundamento e estímulo para suas criações. Através das perambulações citadinas, artistas e grupos artísticos têm se apropriado das instâncias poéticas que lhes são oferecidas, (re)criando suas proposições artísticas, lendo a cidade em sua configuração espacial, temporal e simbólica. Diante do exposto, podemos perceber que, assim como as demais práticas urbanas, as atividades artísticas também operam modificações na urbe ao mesmo tempo em que são modificadas por ela. A arte pode engendrar novas descobertas, configurações e usos do espaço pelas possibilidades de (re)apropriação e (re)significação que apresenta. A expressão dos artistas é um importante meio para nos oferecer a visão das coisas esquecidas e perdidas nessa complexidade, trazendo à tona novas relações e, como concebido por Francastel, para nos permitir penetrar “nas energias da vida do espírito”. Aos artistas, cabe a tarefa de evidenciar “numa forma imediatamente sensível, as possibilidades e as necessidades de seus semelhantes” (FRANCASTEL, 1990, p. 242). Na cidade contemporânea, a arte pode ser um “modo de habitar a cidade”, por suas qualidades estéticas e perceptivas capazes de intervir de maneira significativa na paisagem urbana. Sua força expressiva por vezes opera momentos de descobertas e sensações estéticas, apesar de toda dificuldade de se fundar existências encontrada hoje nas metrópoles, devido principalmente aos problemas de violência, falta de infra-estrutura e desemprego, só para citar algumas das mazelas que crescem em proporção ao inchaço populacional das grandes cidades (PEIXOTO, 1996, p.116). Na atual condição das metrópoles, há de se considerar outra variável que interfere radicalmente nos modos de vida urbana e conseqüentemente na arte produzida e instalada neste contexto: o ritmo, a velocidade implantada pelos meios tecnológicos que reestruturam as formas de consumo, lazer, informação e trânsito. A realidade urbana ganha vida nova através da aceleração promovida 78


pelas inovações diversas, principalmente as geradas pela ascensão tecnológica, que revolucionaram as formas de trabalho e também as formas de circulação e conseqüentemente de percepção nos espaços urbanos. Grande parte dos espaços públicos, atendendo a essa condição, é reduzida a meros espaços de circulação rápida, sendo desprovidos, assim, de características históricas ou socio-culturais. Marc Augé define esses espaços atemporais e não identitários como “não-lugares”, e, para este autor, “o espaço do não-lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e similitude”. (AUGÉ, 2003, p. 95). São espaços que obedecem à funcionalidade e privilegiam uma simplificação das necessidades de uso do espaço urbano. Transformam-se em espaços de passagem, favorecendo áreas da cidade, determinando usos e impedindo outros, fatores que muitas vezes são estabelecidos em nome do progresso e da especulação mobiliária. Nesses “não-lugares”, a Arte Pública pode desempenhar um papel fundamental na reformulação dos itinerários, uma vez que, instalada no espaço das cidades, possibilita a criação de novos significados para esse contexto. As interações culturais, sociais e artísticas participam desse pensar, agir e refletir de forma estética que se faz na cidade, criando uma estrutura dinâmica que conecta as diversidades do imaginário gerado a partir da experiência humana em contato com a arte. Portanto, torna-se fundamental que as discussões contemporâneas sobre a arte que ocupa os espaços públicos urbanos envolvam a compreensão dessa rede intricada de relações que se estabelecem na urbe e, principalmente, o diálogo que o homem citadino interpela com a obra de arte inserida neste espaço.

Arte Pública: (in)definições de um conceito em debate A partir das diversas concepções discutidas e apresentadas neste trabalho podemos definir a Arte Pública como expressões artísticas caracterizadas pela inter-relação das obras com contextos 79


públicos urbanos das cidades, sendo produzidas, estruturadas e expostas nesses espaços. Essa perspectiva atribui ao fenômeno da Arte Pública a singularidade de ser apreciado e vivenciado por um número significativo de espectadores que, na maioria das vezes, não são freqüentadores e participantes dos locais específicos de exposição artística (museus, galerias, salas de arte, etc.). O entendimento da arte como pública corresponde ao fato dessa expressão cultural ocupar os espaços urbanos concebidos e considerados públicos. Essa concepção é reforçada nas palavras de Mashini quando afirma que: [...] o nome arte pública refere-se simplesmente àquela arte situada em lugares e edifícios públicos, e não em galerias ou museus. [...] o principal fato subjacente é que ela está realmente exposta para consumo do público geral (MASHINI, 1996, p. 198).

Considerando a arte pública, pela ótica apresentada anteriormente, que enfatiza a relação da obra com aspectos do seu contexto sociocultural, principalmente o público e o local, entendemos que, para estabelecer uma conceituação adequada à realidade desta manifestação, é necessário refletir sobre as dimensões dessa arte nos espaços contemporâneos em que é concretizada. O universo citadino é essencial para o entendimento do fenômeno artístico que se caracteriza na sua realidade, tendo em vista que o encontro com a comunidade onde a obra se instala, seu tempo de duração e seus efeitos perceptivos são parâmetros fundamentais para a definição e a compreensão da Arte Pública. Considerando alguns elementos presentes na realidade atual das urbes e as implicações constituídas a partir de suas características, é necessário problematizar as concepções que embasam a nossa perspectiva sobre o que é e o que representa a Arte Pública, tendo em vista que não existe na literatura das diversas áreas que abordam o tema, uma definição única e uma visão pronta e estabelecida do que compreende essa forma de expressão artística. Apesar do uso comum do termo “pública” para conceber a arte estruturada e exposta nos espaços citadinos, alguns autores vêem 80


o termo como uma expressão limitada, pois, segundo as suas concepções, é necessário discutir-se na realidade das grandes cidades até mesmo o próprio sentido do que realmente é ou não público e onde e como as estruturas, objetos, espaços, etc. se estabelecem como tal. Assim, estudiosos como Vera Pallamin (2000) têm preferido usar o termo Arte Urbana, relacionando a arte com a cultura urbana e entendendo-a como uma prática social. Buscando agregar o sentido mais urbanístico e o encontro entre arte e arquitetura como crítica ao próprio urbanismo, essa vertente entende a Arte Urbana como resultante de relações entre propósitos estéticos e os significados sociais. Para Pallamin, a Arte Urbana é uma apropriação do espaço urbano, que identifica uma fusão arte, arquitetura e cidade e propõe uma ruptura no curso normal do dia-adia das cidades. Nessa mesma direção, o artista Daniel Buren (1999) questiona porque a arte instalada no espaço urbano é chamada de “pública”, como se a arte localizada em outros espaços também abertos e disponíveis ao coletivo citadino, como por exemplo, os museus, não fosse uma expressão que pudesse ser considerada pública. Além disso, o autor questiona se o caráter público da arte urbana é tão explícito assim, visto que as condições perceptivas das ruas não favorecem uma recepção estética adequada. Dessa forma, na ótica de Buren, o problema reside, mais uma vez, no termo “público”, visto que essa designação, na atual condição sociocultural, não tem seus limites bem definidos. A esfera pública necessita ser compreendida em situações particulares, nos mecanismos sociais que a definem em contraposição ao que é privado, nas possibilidades de atender a coletividade e na dimensão do campo social por ela interceptado. No Seminário “Arte Pública”, realizado em São Paulo, no ano de 1996, o conceito de Arte Pública foi ainda discutido amplamente, sendo apontadas, por especialistas no estudo do tema, diversas perspectivas do que é, significa e representa fenômeno. Para Michael Brenson (1996), historiador de arte, são inúmeras as formas artísticas que podem se manifestar como arte pública, não existindo uma única possibilidade formal e ex-pressiva da arte que possa dar 81


conta das diferentes necessidades e dos múltiplos espaços que compreendem a realidade urbana das sociedades. Enfim, as abordagens apresentadas enfatizam, de forma sintética, a multiplicidade de questões que permeiam o conceito de Arte Pública e demonstram a necessidade de continuar discutindo e debatendo essa forma de manifestação artística. O que fica, evidenciado, sobretudo, é a importância de apreender o conceito de arte pública observando as variáveis que compõem as estruturas sociais em que essa arte está inserida, sejam essas condicionadas a instituições políticas, econômicas, artísticas ou às formas mais livres de manifestação das classes populares. Com base nas fundamentações, discussões e reflexões apresentadas, podemos concluir que a Arte Pública representa uma manifestação que integra obra de arte, cidade, artista e sociedade, sendo um fruto da inter-relação entre esses quatro sistemas constituintes do fenômeno artístico em questão e que, portanto, retratam e determinam valores, significados e expressões do universo artístico, social e cultural das urbes.

Referências ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução de Maria Lúcia Pereira. 3. ed. Campinas: Papirus, 2003. BUREN, Daniel. A force de descendre dans la rue, l’art peut-il enfin y monter? Paris: Sens & Tonka, 1999. BRENSON, Michael. Perspectivas da arte pública. In: Serviço Social do Comércio – SESC. Arte pública. São Paulo: SESC, 1996. p. 1629. CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004. 82


FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Perspectiva, 1993. (Estudos, 21). ______. Pintura e sociedade. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1990. Original francês. GOMES, Paulo César da Costa. A condição urbana: ensaios de geopolítica da cidade. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2002. KNAUSS, Paulo. Olhares sobre a cidade: as formas da imaginária urbana. In: Encontro do programa de pós-graduação em Artes Visuais EBA/ UFRJ, 8., 2001, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: UFRJ, 2001. LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades: conversas com Jean Lebrun. São Paulo: UNESP, 1998. MASHINI, Glen. África do sul: desafios para o futuro. In: Serviço Social do Comércio – SESC. Arte pública. São Paulo: SESC, 1996. p.198-202. PALLAMIN, Vera Maria. Arte urbana: São Paulo: região central (1945-1998): obras de caráter temporário e permanente. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2000. PEIXOTO, Nelson Brissac. Arte e cidade. In: Serviço Social do Comércio – SESC. Arte pública: seminário de arte pública II. São Paulo, 1996. VEL ZOLADS, Rosa W. (Org.). Imaginário brasileiro e zonas periféricas: algumas proposições da sociologia da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras/Faperj, 2005.

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IMAGENS E HISTÓRIA NA ARTE NAÏF PARAIBANA Robson Xavier da Costa1 robsonxcosta@yahoo.com.br

Pintura naïf e leitura de imagem: primeiras aproximações Neste trabalho pretendemos fazer uma análise a partir das imagens de obras de arte de três artistas naïfs paraibanos, situando historicamente sua produção pictórica a partir do contexto global e local. Procuraremos compreender a persistência das imagens simbólicas presentes em sua produção e comuns a mais de um artista estudado. O presente estudo parte do pressuposto de que as imagens sempre estiveram presentes nos escritos históricos, e ajudaram a construir um imaginário coletivo acerca de fatos marcantes para a compreensão do processo civilizatório. Segundo Burke: (...) Os historiadores, devem sempre utilizar imagens junto com outros tipos de evidências, e precisam desenvolver métodos de crítica das fontes para imagens, exatamente como fizeram para os textos, interrogando essas testemunhas oculares da mesma forma que os advogados interrogam as testemunhas durante o julgamento. (BURKE, 2004, p. 08).

Para interrogarmos as imagens pictóricas como testemu-nhas oculares da história da arte paraibana utilizaremos métodos que possibilitem uma incursão sobre as multicoloridas pinturas naïfs sem cair na tentação da licença poética própria do universo da arte ou na perspectiva de uma crítica de arte ancorada em variáveis meramente subjetivas. 1

Professor e Chefe do Departamento de Artes Visuais da UFPB, Mestrando em

História do PPGH, Especialista em educação especial, sociologia, arteterapia e tecnologias da informação e comunicação, licenciado em artes plásticas, artista plástico e arteterapeuta.

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Nessa empreitada consideraremos inicialmente duas variáveis fundamentais para o desenvolvimento desse trabalho: as imagens da arte como fonte de conhecimento histórico e a arte como uma linguagem visual. Considerar a arte como uma linguagem é compreendê-la como passível de uma apreensão de códigos e leituras capazes de discernir sua estrutura formal e tecer relações com suas bases epistemológicas, históricas, sociológicas, antropológicas, estéticas, psicológicas e iconográficas. A pintura naïf consiste em geral em uma produção imagética rica em cores, símbolos e informações repletas de temas ligados ao universo pessoal e singular dos artistas, uma representação de uma vida fulgurante, pitoresca, onde o folclore e os costumes sociais de um imaginário explicitamente regional emergem nas imagens. Os artistas naïf enquanto produtores de imagens sempre existiram, mas foi no período Impressionista, no fim do século XIX, que esta produção começou a ser valorizada como arte. A negação do cânone acadêmico na arte e o surgimento de uma nova postura estética pictórica na arte ocidental, ampliando as possibilidades técnicas de representação, em conjunto com os novos direcionamentos estilísticos, permitiram a eclosão da arte naïf como forma de representação visual e o reconhecimento dos pintores naïf. As vanguardas artísticas do início do século XX, trazendo no seu bojo o questionamento a todas as regras vigentes na arte acadêmica e a negação do estabelecido, reforçaram a consolidação da arte naïfs como poética artística moderna. Entre as vanguardas artísticas, o Cubismo foi à poética que deu o maior impulso no reconhecimento da arte naïf. O artista espanhol Pablo Picasso (18811973) criador do cubismo, com seu interesse pela escultura africana, particularmente pelas máscaras (objetos presentes em sua coleção particular e adquiridas em Paris no mercado negro em 1907) que serviram de inspiração ao óleo sobre tela “Lês Demoiselles D’Avignon”, obra inaugural do cubismo, demonstrou seu interesse pelo aspeto pouco convencional e exótico das mesmas e estimulou a visitação de outros artistas modernos a obras semelhantes. Picasso também foi responsável pela apresentação do artista francês Henri Rosseau (1844-1910) à comunidade artística 85


parisiense. A obra pictórica de Rosseau emergiu do contexto do modernismo europeu, particularmente na França do início do século XX. A denominação naïf foi utilizada desde o início, como forma de designar a produção visual de artistas autodidatas, chamados também de pintores de domingo. A partir do reconhecimento da obra de Rousseau, os pintores de domingo passaram a ser reconhecidos em todo o mundo, inclusive no Brasil, onde desde o início da década de 1920 do século XX alguns artistas já recebiam influências dos movimentos de vanguarda da Europa. Em meados dos anos de 1950, a produção de obras naïfs foi se intensificando e nos anos 60 do mesmo século ela foi muito expressiva no cenário internacional. Durante esse período surgiram no Brasil vários artistas naïfs importantes, tais como: José Antonio da Silva, Antonio Morais, Heitor dos Prazeres, Djanira, Alexandre Filho, entre outros. O reconhecimento do trabalho do artista paraibano Alexandre Filho, durante a década de 60 do século XX, juntamente com outros artistas nordestinos, abriram caminho para a produção de uma arte naïf nordestina, que permanece viva até os dias atuais, passando por várias gerações de artistas. Alexandre Filho conquistou, desde o início da carreira, importantes prêmios no cenário nacional, espaço nas principais coleções particulares e nos grandes museus naïfs do mundo, tornandose uma unanimidade entre os artistas brasileiros. Citado pelo “Superstock Fine Art Catalog” como um dos cem mais importantes artistas do mundo ao lado de Michelangelo, Cézanne, Picasso, Matisse, entre outros gênios da pintura universal. A aceitação da arte naïf e sua imensa popularidade no Nordeste brasileiro nos remetem à tradição da arte popular nordestina, que tem na cerâmica sua principal forma de expressão. A figura do artista Vitalino Pereira dos Santos, o Mestre Vitalino, o mentor de uma geração inteira de artistas ceramistas, que atualmente continuam dando vida ao barro por meio das suas obras na comunidade do alto do Moura em Pernambuco. Comunidade essa, devedora do talento do Mestre Vitalino, da vitalidade da sua obra e perpetuadora da arte da cerâmica pelas mãos hábeis de gerações de 86


famílias que permanecem moldando o barro na cidade de Caruaru – PE é um exemplo da força criativa da arte nordestina. A arte popular nordestina está presente nas pinturas naïfs por meio da representação de um imaginário ingênuo, preferencialmente ligado a um mundo mítico, lúdico e fantástico demonstrando o farto repertório imagético regional. A comunidade pode conferir ao indivíduo coragem, decisão e dignidade que ele perderia facilmente no isolamento. Ela pode despertar nele a lembrança de ser um homem entre homens. Mas isso não impede que algo lhe seja acrescentado, algo que não possuía como indivíduo. (JUNG, 2000, p.32).

Ao longo desse trabalho procuraremos realizar uma leitura comparativa das obras escolhidas dos seguintes artistas naïfs paraibanos: Alexandre Filho, Josenildo Suassuna e Tadeu Lira. Artistas escolhidos como representantes do universo de pintores naïfs paraibanos pelo reconhecimento do seu trabalho nacional e internacionalmente, pela importância das premiações recebidas, por serem cada um deles representantes de uma geração diferente de artistas e por apresentarem uma poética pessoal diferenciada diante da representação pictórica figurativa local. A leitura do passado não funciona como parâmetro absoluto, quando então a produção artística chegaria à esterilidade sem o tratamento especializado dos seus problemas autônomos. (...) Toda atividade artística requer uma iniciativa consciente e um controle vigilante. A leitura da obra, também considerada atividade artística, exige todo um processo desde o chamado gozo estético da aparência das coisas à esfera da reflexão e análise. (MARCONDES, 1996, p. 12).

Para nortear os caminhos da leitura visual empregados neste trabalho, partiremos da perspectiva teórica de Trevisan (1990), em diálogo com as concepções sobre leitura de imagens de Gombrich (1986) e Argan (1992), compreendendo que:

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Trevisan concebe a leitura da imagem como decifração do signo artístico, autônomo ou comunicativo, “A imagem figurativa é um simbolismo concomitante das aparências e uma reação emocional às mesmas.” (TREVISAN, 1990, p. 84). Para o autor as possibilidades de leitura de obra de arte são cinco: a biográficointencional; a cronológico-estilística; a formal; a iconográfica e a iconológica. Para Gombrich, devemos levar em conta como elemento mais importante na leitura da obra de arte a questão do julgamento de valor em arte, ao abordar o objeto devemos ter um olhar que busque a iconicidade. O autor parte do pressuposto de que quanto mais se conhece algo, torna-se mais profundo o nível de apreciação visual. “Esse método deve, pelo menos, ajudar a dissipar as causas mais freqüentes de equívocos e incompreensões, e a frustrar uma espécie de crítica que não atinge a finalidade de uma obra de arte.” (GOMBRICH, 1986, p. 02). Para Argan, o objeto estético é fruto de um trabalho, reforçando o rigor da pesquisa e da reflexão na forma que lê os períodos e as obras analisadas. Num mundo apenas de coisas, as imagens também são coisas, e o artista é quem as fabrica. Não as inventa, constrói-nas: dá a elas a força para competir, impor-se como mais reais do que a própria realidade, porque não foi Deus, e sim o homem que as fez. Pintar significa dar ao quadro um peso, uma consistência maior das coisas vistas: em suma, fazer o que se vê não é o mesmo que imitar a natureza. (ARGAN, 1992, p. 34).

Sua análise da pintura é interpretativa, fazendo uma ponte entre a leitura formal das obras, a análise biográfica das mesmas e seu contexto. Baseado na concepção de leitura de imagem dos autores anteriormente citados construiremos o nosso trabalho, a partir da leitura relacional de obras escolhidas de artistas naïfs paraibanos, esperando contribuir para a construção de uma história da arte da Paraíba por meio do estudo de uma poética visual pouco pesquisada no Brasil, mas que permanece viva e representativa da cultura plural 88


brasileira, diante da diversidade da produção imagética na contemporaneidade.

Temas imagens: múltiplos olhares “As formas são inúmeras, mas o aparecimento de uma forma é um acontecimento histórico”. Pierre Francastel

A pintura naïf apresenta-nos uma visão de mundo figurativa, multicolorida, com a presença de formas regionalistas, fantásticas, ligadas a mitologia popular. Sua aparente simplificação técnica retrata uma poética ímpar na produção pictórica moderna, muitas vezes considerada como ingênua ou primitiva; conceitos que não dão conta da complexidade das imagens naïfs. Produção imagética típica dos pintores autodidatas, situada no limiar entre a arte erudita e a arte popular, consiste em uma produção peculiar, ligada a uma visão romântica do artista, como um ser iluminado, receptácu-lo de um dom, inspirado, criador, em sua conotação original o naïf seria o artista ingênuo e original. A peculiaridade da arte naïf aproxima sua forma de expressão à produção imagética das crianças, dos povos primitivos e da arte esquizofrênica. Situada no contexto da arte moderna, a arte naïf se mantêm na produção cultural contemporânea como elemento de resistência, uma forma peculiar de representação, fomentando um imaginário carnavalesco do mundo segundo o conceito defendido por Bakthin (2002). (...) Certas formas carnavalescas são uma verdadeira paródia do culto religioso. (...) Elas pertencem à esfera particular da vida cotidiana. (...) Por seu caráter concreto e sensível e graças a um poderoso elemento de jogo, elas estão mais relacionadas às formas artísticas e animadas por imagens, ou seja, às formas do espetáculo teatral. (...) No entanto, o núcleo dessa cultura, isto é, o carnaval, não é de maneira alguma a forma puramente artística do espetáculo teatral e, de forma geral, não entra no domínio da arte. Ele se situa

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nas fronteiras entre a arte e a vida. Na realidade, é a própria vida apresentada com os elementos característicos da representação. (BAKTHIN, 2002, p. 06).

A relação entre a arte e o imaginário do artista naïf representada nas pinturas, apresenta um imaginário idílico, mítico, carnavalesco, por meio de figuras de anjos, sereias, santos, demônios, crianças, animais, brinquedos, festas populares, mitos, lendas e formas as mais variadas possíveis, representadas em sua maioria com cores fortes, puras, em abundância, com o tratamento técnico chapado. Neste trabalho buscamos nas imagens estudadas pontos convergentes, formas recorrentes nas obras e sua relação com o momento histórico em que foram produzidas. Para tanto selecionamos duas obras de cada um dos pintores naïfs paraibanos anteriormente citados, compreendendo um total de 06 imagens. Consideramos que o estudo de séries de imagens enriquece a argumentação de uma leitura visual e permite o conhecimento mínimo necessário ao entendimento da produção do artista em um determinado momento de sua carreira, optamos por trabalhar desta forma. Inicialmente faremos uma breve descrição escrita dos artistas e das obras estudadas, iniciando com o artista Alexandre Filho, posteriormente Tadeu Lira e finalmente Josenildo Suassuna. Posteriormente definiremos os símbolos recorrentes nas obras e finalizaremos com uma leitura comparativa das mesmas, buscando contextualizá-las historicamente. Diante da tarefa de analisar imagens de pinturas naïfs, concordamos com Marcondes (1996), quando cita: (...) Na época contemporânea a multiplicidade de correntes críticas e o desenvolvimento dos métodos de investigação histórica têm conduzido a muitas leituras da obra de arte. (...) A história das obras artísticas como a história de um texto consiste num processo de alterações sistemáticas ao longo do tempo histórico do sistema de relações entre a gramática de produção e

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gramática de reconhecimento. MARCONDES, 1996, p. 13).

(VERON

apud

No intuito de aproximar o leitor da obra estudada nesse trabalho, procuraremos situar, o artista em seu contexto. Iniciaremos o trabalho pelo mais antigo pintor do grupo estudado em termos de produção pictórica, tendo iniciado seu trabalho na década de 60 do século XX. Manoel Alexandre Filho, é natural de Bananeiras, Paraíba, nascido em 1966, chegando a trabalhar como auxiliar de topógrafo na construção de Brasília, mudando-se logo em seguida para o Rio de Janeiro, onde conheceu o artista plástico mineiro Luis Canabrava, que o incentivou juntamente com outros artistas e intelectuais na sua produção artística. Alexandre foi a grande surpresa do XV Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro, uma das mostras mais importantes do país nos anos de 1960. Sua estréia já como artista premiado mudou sua vida, lhe deu uma carreira internacional e rendeu convites para exposições em todo o mundo. Sua obra marcante e original foi elogiada por muitos críticos importantes do país, tais como: José Itamar de Freitas e Homero Homem de Melo, sua pintura marcou um momento da arte moderna brasileira consolidando-se no cenário nacional e internacional a partir da aquisição do seu trabalho pelo beatle John Lennon, pelo dançarino Rudolf Nureiev, pela milionária Cristina Onassis, pelo compositor Tom Jobim, pelo cirurgião plástico Ivo Pitanguy, pelo dramaturgo Aguinaldo Silva, entre outros personagens ilustres do Brasil e do mundo. A obra de Alexandre reflete um mundo encantado, resultado da contemplação e vivência do artista no seu universo memorialista que denota tanto a ambiência rural da infância e adolescência, como as marcas da ancestralidade inerente à cultura popular nordestina. (RODRIGUES, 2001, p. 28).

Analisaremos inicialmente as duas obras abaixo do artista Alexandre Filho: 91


Fig. 01 - Acrílica s/tela, Sem título, 0,25m X 0,20m, 1999.

Fig. 02 - Acrílica s/tela, sem título, 1,00m X 1,00m, 2001.

Na figura 01, o trabalho do artista retrata na sua forma peculiar de pintura, a figura de um anjo com características físicas em estilo barroco, apresentando-o nu, com a pele morena, gordinho e com um leve ar maroto. Na mão esquerda sustenta um instrumento musical, possivelmente uma flauta, presente nas inúmeras representações do cupido na arte grega e romana, suas asas apresentam uma cor vermelho carmim, podendo simbolizar paixão ou desejo incontido. Todo o cenário do quadro, ou seja, o segundo plano parece estar em movimento constante, suas cores azul e rosa, embora fortes elas apresentam uma harmonia suavizada pelas linhas sinuosas que envolvem toda a composição da base do quadro até seu topo. Uma forma inusitada, um galho de um cajueiro, se projeta da parte superior direita do quadro passa pela mão do anjo chegando até os seus pés que tocam suavemente no pseudofruto, o caju, todo o galho equilibra a composição e provoca uma contraposição com suas tonalidades de verde e vermelho, criando um contraste com cores complementares, toda a imagem parece imersa em uma suave e intensa música, embora o anjo não toque a flauta. O ambiente é alegre e acolhedor. 92


Na figura 02, o artista trabalhou com duas figuras centrais, um vaso vermelho com uma vegetação exuberante, muitas folhagens, flores multicoloridas, ladeado por uma figura zoomorfa uma mistura de peixe, lagarto, foca e sereia, em áreas distintas com tonalidades de azul, contrastando com o vermelho intenso do vaso. Ao fundo uma forma curvilínea preenchida por uma tonalidade amarela e o restante do quadro pintado de lilás claro. As formas vegetais e animais parecem interagir em um conjunto que se comunicam pelos movimentos, as linhas curvas predominam na composição. No alto da tela uma forma de lua e outra de estrela pairam no ar, quebrando o colorido intenso da composição em pontos de luz definidos pelo desenho. O branco parece marcar pontos esparsos das figuras representadas, permitindo um diálogo entre as cores fortes que preenchem os campos de cor. A figuração desse trabalho remete a representações de figuras antropomórficas e fantásticas como algumas obras de Tarsila do Amaral (1886-1973), tais como: “O Urutu 1928”, “O lago - 1928” ou “A cuca - 1924”. Encontramos nestas obras elementos formais que parecem estar presentes em outras obras do artista mesmo em períodos diversos da sua produção visual, tais como: nus artísticos, figuras humanas geralmente gordinhas, linhas sinuosas, cores contrastantes, pintura chapada, ausência de fusão de cores no mesmo espaço, presença de instrumentos musicais, formas naturais estilizadas, tais como flores, ramos, folhas e frutos e um movimento visual constante nas figuras e nas linhas de composição do desenho. O artista Tadeu Lira, nascido na cidade de João Pessoa em 1954, é um representante da geração 80 da pintura paraibana, pintor desde a infância por influência do pai o artista retratista Hugo Lira; iniciou sua vida profissional em 1977, participou de inúmeras coletivas até realizar sua primeira individual em outubro de 1985, na Galeria Transarte, ganhador de vários prêmios nacionais, como o cartaz da feira nacional do livro infantil do SESC nacional, a capa da Telpa/Listel, participando também da “mostra paixão de cristo em artdoor”, do Salão Municipal de Artes Plásticas, de coletivas nacionais e internacionais de arte naïf e muitas outras mostras coletivas e individuais.

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Analisaremos as seguintes obras desse artista:

Fig. 03 – Acrílica s/tela, Índio, 0,46m X 0,33m, 1996.

Fig. 04 – Acrílica s/tela, Sem Título, 0,82m X 1,00m, 2002.

Artista que utiliza uma temática muito variada, mas apresenta temas que se repetem em sua obra tais como as figuras femininas e as indígenas. Segundo o artista o índio apareceu no seu trabalho como uma forma de denúncia social, já que, poucos artistas têm a preocupação de retratar o índio e sua cultura. Sua figuração é peculiar, as figuras humanas apresentam uma postura rígida, com ausência total de movimento visual, traço marcante desde o início da sua obra. As figuras ocupam praticamente toda a área da composição em uma estrutura vertical/horizontal que torna o trabalho simétrico, elas em sua maioria são representadas em meio corpo, lembrando composições clássicas do retrato ocidental, enquanto estrutura geométrica da representação visual. O excesso, de formas, cores e pontos estão presentes na maioria de suas obras, do desenho a escultura, demonstrando uma necessidade do artista de preencher todo o espaço da composição, como forma de solucionar sua técnica de representação pictórica. Os pontos segundo o próprio artista, surgiram por acaso, quando foi

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necessário clarear um trabalho que ficou muito escuro, e desde então foram adotados como uma peculiaridade da obra. A utilização de três imagens, formando uma trindade na composição visual, se repete em muitas cenas pintadas pelo artista, três figuras femininas, três objetos, cocar, lança e flecha, potes de barro, etc. A repetição de imagens é um traço permanente, as casas ao fundo da figura 04, os pontos coloridos, os rostos das figuras, são imagens que parecem decalcadas de uma para outra. Os braços e as mãos das figuras apresentam uma inclinação circular, lembrando a composição formal de uma mandala, as mãos são sempre grandes, desproporcionais ao corpo da figura humana representada, remetendo a influência das obras de Tarsila do Amaral, tais como: “Abaporu” e “Antropofagia” da fase Antropofágica da artista. Os detalhes do fundo e das imagens muitas vezes se confundem como é o caso do cocar e da pintura corporal do índio na figura 03 e dos vestidos das mulheres na figura 04. O contorno denso e preto delineia o desenho, definindo áreas das imagens que não apareceriam sem ele. A linha de contorno neste caso é o elemento que permite uma resolução formal adequada para uma pintura delimitada pelo desenho. Josenildo Suassuna nasceu no alto sertão paraibano, na região de Catolé do Rocha, e desde cedo demonstrou interesse pela arte, recebeu influência de um tio que era artista amador, mas que tinha contatos com muitos artistas de estados vizinhos, devido à proximidade do Sertão paraibano com a cidade de Caicó no Rio Grande do Norte. Durante a adolescência mudou-se para a capital em busca de melhores condições de vida, objetivando estudar e trabalhar, foi auxiliar da Biblioteca do Colégio Marista Pio X, onde teve contato com muitos artistas e com um ambiente cultural favorável para o desenvolvimento da sua produção visual. Atualmente Josenildo assumiu o ser artista como uma profissão, trabalha diariamente em seu ateliê residência no bairro de Água Fria, em um pequeno espaço, onde desenvolve sua produção artística. Participou de inúmeras exposições coletivas, por todo o país, e ganhou prêmio na Bienal de Arte Naïf do SESC de São Paulo. Analisaremos as seguintes obras do artista:

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Fig. 05 – Acrílica s/tela, passeio entre os girassóis, 0,38m de diâmetro, 2002.

Fig. 06 – Acrílica s/tela, O circo, 0,80m X 0,90m, 2000.

Josenildo Suassuna costuma utilizar em suas obras cores e figuras distribuídas em pontos específicos das composições, espaços onde predominam uma cor plana em contraste com figuras humanas, vegetais e/ou objetos distribuídos como em um cenário, em um palco, talvez no circo, signo presente na maior parte de sua obra. Segundo o artista, ele costumava ver o circo no sertão quando criança, embora poucas vezes teve condições de pagar a entrada para assistir ao espetáculo, os artistas do circo sempre despertaram seu interesse, era um mundo mágico, encantador, que permanece vivo no seu imaginário de artista. A organização espacial das suas obras apresenta-se marcada pela forma circular do palco e da tenda do circo. Tudo é uma fantasia plena, ambientes de imaginação fulgurante, cores, flores por todos os lados, e pequenas figuras, cuidadosamente desenhadas e coloridas. A figura 05 nos remete a clássica história de João e Maria, perdidos na estrada encantada em busca de algo que desconhecem. Já a figura 06 também tem uma narrativa de fantasia, o público nas gerais, está absorto com o espetáculo que se desenvolve com figuras liliputianas no centro da tela. Sua obra é um convite à contemplação, são capazes de nos levar a um mundo mágico que parece congelado no tempo e no espaço, preso em uma dimensão particular, o sonho transposto para a 96


tela. Sua obra cria ambientes imaginários, para acondicionar seus pequenos seres, não bastam apenas às figuras humanas, elas devem estar em um contexto, um cenário definido, um ambiente apropriado. As relações de cores que predominam nas obras em questão harmonizam a composição por meio de contrastes atenuados, as cores complementares são utilizadas, mas nunca em um contraste direto. As primárias e secundárias procuram um equilíbrio visual sem comprometer a suavidade imanente das imagens. Os pontos convergentes das 06 obras estudadas referem-se a questões técnicas de representação visual, a forma que os artistas conseguem resolver problemas de composição e a concepção visual de um imaginário individual que apresenta pontos comuns aos mesmos. Destacamos inicialmente a pintura figurativa, como uma forma comum entre os três artistas. A figuração tem um maior foco na imagem da figura humana, dois artistas em particular utilizam à figura humana em primeiro plano, o Alexandre Filho e o Tadeu Lira, os quadros parecem ser compostos principalmente pelas representações de pessoas, o segundo plano aparece como complemento, de forma diferente na obra de Josenildo o ambiente é tão importante quanto à figura. Nos três artistas as composições seguem desenhos prévios que são preenchidos pelas cores, denotando uma técnica semelhante durante o início do processo de concepção artística. Embora durante a execução da obra cada um siga seu próprio caminho. Entre os signos recorrentes nas 06 obras estudadas temos: as flores, as formas circulares, o uso das cores primárias, a tensão espacial focada na relação das cores complementares e uma temática de fantasia, de uma realidade peculiar frente ao mundo contemporâneo. As flores e as formas mandalares presentes na maioria das imagens observadas, remetem a estrutura de uma composição que busca a sua auto-organização espacial, o equilíbrio proporcionado pela forma circular aparece como estrutura da visual dominante em várias imagens estudadas. Historicamente as formas circulares encontram-se em diversos arquétipos humanos da produção visual da arte rupestre até a arte contemporânea.

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Naturalmente a relação de cores primárias e complementares aparece como forma natural de trabalho, devido ao fato dos artistas naïfs utilizarem as cores praticamente da mesma forma que encontram nos tubos de tinta, sem uma mistura prévia na paleta, as cores na maioria das obras são aplicadas puras, sem misturas aparentes. Essa forma de utilização da paleta de cores só foi possível com o advento da arte moderna, com suas experimentações técnicas, que possibilitaram o surgimento de estilos artísticos como o Fauvismo em 1907 na França, com o uso de cores fortes e puras. A temática ligada a representação de um mundo fantasioso é um traço marcante da produção da pintura naïf em todo o mundo, sua representação figurativa ingênua pinta uma supra-realidade, um mundo próprio, um sonho, que reflete as concepções de mundo do artista frente a dura realidade que o cerca. No contexto em que emergiu a pintura naïf no início do século XX, anterior a primeira guerra mundial, sob a égide do período desenvolvimentista, com a alusão ao poder da máquina, a tecnologia, ao capitalismo e seus desdobramentos, da excessiva valorização do progresso, marca maior do modernismo, essa poética remete a uma visão romântica do artista, que busca o original, o puro, o imaculado, uma visão de mundo sui generes. O homem, uma vez ultrapassado o período das luzes e o desdobramento romântico, passa a perceber-se na sua condição de indivíduo e, ao mesmo tempo, de componente do meio em que se insere e que o qualifica e identifica. Sua perspectiva começa a ser colocada não mais sob a forma de mera integração no seio de uma comunidade ou de um grupo: as descobertas científicas descortinaram-lhe um futuro que se apresenta ilimitado e no qual a humanidade, como um todo, passa a administrar os infinitos recursos postos à sua disposição. Se as luzes lhe trouxeram a racionalidade dessa visão e o condão da própria inteligência geri-la, segundo construtos e modelos que garantam sua viabilidade, os novos paradigmas surgidos na etapa subseqüente propiciam sua crescente intrumentalização graças aos avanços decorrentes dos novos meios de produção e geração de

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recursos. (FERNANDES e GUINSBURG, 2005 p. 12).

Diante do desafio da modernidade, do progresso iminente, o homem moderno, busca o exótico, o diferente, nas artes o desejo da produção de inovações foi constante, levando artistas como Paul Gauguin (1848-1903) a migrar da Europa para o Taiti, em busca de modelos novos para sua criação, em busca do espaço natural e da vida simples das pessoas livres do peso da civilização ocidental. Nesse contexto surge a arte naïf.

Considerações finais Sem o objetivo de tecer nenhuma conclusão sobre esse estudo, apenas pretendemos iniciar uma discussão que será aprofundada em trabalhos posteriores buscando a ligação da Arte com a História, como forma de fomentar a construção de uma história da arte na Paraíba. Nesse trabalho introdutório à pesquisa em questão, objetivamos fazer um primeiro ensaio sobre a relação da leitura de obras de artistas naïfs com a história visual. Esperamos contribuir para a construção teórica acerca da pintura naïf no Estado da Paraíba e despertar nos artistas a necessidade de organizar um acervo particular sobre sua trajetória e sua obra, que possa servir de referência a estudos futuros. Partimos das imagens, de suas formas de representação e das concepções de mundo que envolve o artista e sua obra, em busca da construção de uma História que valorize e trabalhe adequadamente com as informações visuais, portanto concordamos com Paiva, quando descreve abaixo a importância do estudo da imagem para a História: É importante sublinhar que a imagem não se esgota em si mesma. Isto é, há sempre muito mais a ser apreendido, além daquilo que é, nela, dado a ler ou a ver. Para o pesquisador da imagem é necessário ir além da dimensão mais visível ou mais explícita dela. Há

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como já disse antes, lacunas, silêncios e códigos que precisam ser decifrados, identificados e compreendidos. Nessa perspectiva a imagem é uma espécie de ponte entre a realidade retratada e outras realidades, e outros assuntos, seja no passado, seja no presente. (PAIVA, 2004, p. 19).

Entendemos que o estudo das imagens pode contribuir muito para os novos objetos da História e para uma História Cultural em curso, que permite inúmeras abordagens para a aproximação dessas áreas de conhecimento. Pesquisar sobre arte naïf na atualidade, é permitir que uma poética tão esquecida no momento, possa ter o seu espaço, em meio às experimentações da arte contemporânea.

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O ARTISTA NEGRO NA HISTORIOGRAFIA DA ARTE BRASILEIRA Luciana Santos Brito1 luandart@pop.com.br

Ao longo dos séculos, o silêncio dos historiadores acerca das origens étnicas dos artistas plásticos brasileiros favoreceu a incompreensão e o desconhecimento por grande parte da sociedade em nosso país sobre a significante contribuição dos mesmos à arte nacional, que vitimados pela discriminação racial e social, tornaramse personagens silenciosos de uma escamoteada historiografia da arte brasileira. O volume da produção artística e intelectual na sociedade brasileira, não guarda qualquer proporção com os segmentos que a compõem. A importância da contribuição histórica, política, social, econômica e especialmente cultural dos diversos grupos étnicos é sufocada pelos padrões estéticos determinados pela ideologia dominante. (ALVES, 1993, s.p.).

Nos séculos XVII e XVIII apesar da relevante presença dos artistas negros nas artes plásticas no Brasil, as informações sobre a identidade dos mesmos no período colonial eram muito escassas. O pouco que se sabe deve-se em grande parte aos acervos e livros de registros das Ordens Religiosas para as quais eles trabalhavam. Foi 1

Aluna regular do Mestrado em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da

Universidade Federal da Bahia – UFBA. Graduada em Licenciatura em Desenho e Plástica pela Escola de Belas Artes da UFBA. Professora substituta da disciplina História da Arte I e II da Escola de Belas Artes da UFBA. Coordenadora da Pós-Graduação em Arte Educação da Faculdade Social da Bahia – FSBA. Coordenadora do QuantArte - Redimensionando o Ensino de Arte na Bahia, da Universidade Federal da Bahia. Coordenadora do Curso de Extensão Arte Concepção e Historicidade – Fundamentos do Ensino da Arte, da Universidade Federal da Bahia.

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apenas no final do século XVIII e início do XIX que etnólogos e documentalistas como Debret, Rugendas e Carlos Julião, fizeram os primeiros estudos acerca da cultura afro-brasileira, cultura que consideravam exótica e primitivista, não havendo o interesse, no entanto em identificar o negro enquanto artista. Eles registraram hábitos sociais, festas populares, manifestações religiosas, e o escravo africano, coletando objetos estéticos e religiosos.(SILVA; ALCÂNTARA, 2004, p.117). No início do século XIX, segundo Toledo (1996, p.45), dentre os 3,6 milhões de habitantes do Brasil, cerca de 1,9 milhão eram de negros e mestiços. Eles viviam efetivamente nas regiões do país onde havia uma certa predominância de escravos africanos, como por exemplo, na Bahia, considerada desde aquele século pelo alemão Robert Avé-Lallemant (1859, p.272), como a “opulenta cidade dos negros”, e que ainda hoje revela os africanismos2 advindos dessa presença escrava. É na Bahia, mais do que em qualquer outra região do país, notadamente em Salvador e no Recôncavo, fortemente marcados pela grande concentração de escravos africanos, principalmente a partir do século XIX, onde o forte contingente populacional negro mais consegue impor uma expressiva vigência dos valores civilizatórios afro-brasileiros. (BRAGA, 1993, p.54)

Importantes registros que se tem dessa época sobre os negros e suas habilidades artesanais se devem a viajantes como AvéLallemant e Henry Koster que percorreram o país destacando em suas anotações o notável desempenho e aptidão artística e criativa dos negros brasileiros no período. Ainda em começos do Séc. XIX Henry Koster, norteamericano residente em Pernambuco, chamava-os de 2

O estudo das coisas da África; Influência da África; Costume ou modos

próprios da África; Sentimento de amor ou fidelidade às tradições, interesses ou idéias africanas, especialmente aos da África negra. (Dicionário Novo Aurélio, São Paulo: Nova Fronteira, 2004).

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“obreiros de todas as artes”, e o mesmo praticamente deles disseram quase todos os viajantes estrangeiros que pela mesma época passaram pelo Brasil, admirados com a quantidade de ourives, entalhadores, imaginários, escultores, carpinteiros, marceneiros, pintores decoradores e outros artistas ou artífices negros ou pardos que aqui encontraram, e com a alta qualidade do que produziam. (LEITE, 1998, p. 14).

O século XIX, marcado por grandes transformações sociais como o fim do tráfico escravo em 1857, a Abolição em 1888 e a República em 1889, manteve contudo a discriminação a participação e identificação dos negros no cenário artístico. Havia uma danosa política de “embranquecimento” que ao reconhecer o talento de um negro ou de seu descendente, imediatamente passava a “branquear” sua imagem, uma imposição social que perdurou até os anos iniciais do século XX quando clubes de futebol aspergiam pó de arroz em craques negros porque o time só admitia brancos. (WEFFORT, 2002, p.11). Em 1935, Mário de Andrade referindo-se a essa ascensão da mulataria no século XIX disse: ”Mas a prova mais importante de que havia um surto coletivo de racialidade brasileira está na imposição do mulato”. (1935, p.11). Artistas plásticos hoje sobejamente conhecidos como o mineiro Aleijadinho e o carioca Mestre Valentim fazem parte desse período da história nacional, como também o mineiro Manoel da Costa Ataíde, o paulista Benedito José Tobias, e os cariocas Leandro Joaquim, Caldas Barbosa, Estevão Silva, Antônio Firmino Monteiro, Pinto Bandeira, Jõao Timoteo da Costa, e seu irmão Artur Timóteo da Costa. Na Bahia, destacaram-se Chagas, o Cabra, Manuel Inácio da Costa, José Teófilo de Jesus, Antonio Joaquim Francisco Velasco, e Emmanoel Zamor. Foi apenas no final desse século que afloraram publicações acerca da relevante influência do negro na edificação cultural do país como Estudos sobre a poesia popular do Brasil, de Silvio Romero publicado em 1888, e o Animismo fetichista de Nina Rodrigues em 1896. Graças aos estudos de Nina Rodrigues surgiram no início do século XX os primeiros exemplares de arte afro-brasileira, e em agosto de 1904 ele publicou na revista Kosmos o artigo As Bellas Artes nos Colonos Pretos do Brazil. A Esculptura, onde fez uma 104


análise estética e iconográfica da escultura africana, abordando os aspectos sociais e o valor etnográfico das mesmas, detalhando minuciosamente os caracteres formais que fazem parte da estética africana, enfatizando, sobretudo, a capacidade dos negros nesse fazer artístico: Mas na esculptura é que, com mais segurança e apuro, se revela a capacidade artistica dos negros. O seu cultivo e apreço, entre os escravos que vieram colonisar o Brazil, tanto se comprovam em presumpções inductivas como no testemunho de factos e documentos.(RODRIGUES, 1904, p.12).

Todavia, o surgimento da identidade dos artistas plásticos negros na historiografia da arte brasileira deve-se em grande parte aos estudos e esforços do artista plástico baiano Manoel Querino (FIG. 01), que na Bahia deu início às primeiras publicações contendo dados históricos e biográficos de artistas negros e de suas obras. Desde 1870, publicava inúmeros artigos inflamados sobre a escravidão na Gazeta da Tarde e em outros jornais da capital baiana. No início do século XX, pioneiramente publicou duas das mais importantes obras bibliográficas acerca do negro e da arte na Bahia: Artistas Bahianos: indicações biographicas, em 1909, e As Artes na Bahia: escorço de uma contribuição histórica, em 1913. Em 1916, ele apresentou a comunicação A raça africana e seus costumes na Bahia, no V Congresso Brasileiro de Geografia em Salvador, onde descreveu o modo de viver dos negros na Bahia. Nesse mesmo ano no Rio de Janeiro, Laudelino Freire publicou Um Século de Pintura. Apontamentos para a História da Pintura no Brasil – de 1816 a 1916, onde fez referência aos pintores negros. Em 1918 Querino publicou O colono preto como factor de civilização brasileira, escrevendo também significativos artigos como Candomblé de Caboclo e Homens de Cor Preta na História, ambos na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.

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FIG.01. Anônimo. RETRATO DE MANUEL

Raimundo Querino. C. 1915-1920 3 Nos últimos anos de vida, Manoel Querino escreveu A Bahia de Outr’ora: vultos e factos populares, A Arte Culinária na Bahia, e O Africano como Colonizador. Apesar das de anos mais tarde historiadores passarem a criticá-lo de forma assaz, acusando-o de não possuir preparo científico, e por utilizar parcialmente dados de um manuscrito da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro sem fazer referência a esta fonte, apresentado em seus livros alguns dados e informações imprecisas, a verdade é que a produção intelectual de Querino foi precursora e de fundamental relevância na historiografia da arte brasileira, pois “[...] tornou-se a obra de Manoel Raymundo Querino a fonte mais recorrida para a identificação e registro 3

Fotografia PxB – Coleção Particular.In: ARAUJO, Emanoel. Para nunca

esquecer: Negras memórias / memórias de negros. Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional, 2002.

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biográfico de artistas e artífices” (VALLADARES, In: FLEXOR, p. 336). As incorreções existentes em sua obra são no mínimo presumíveis haja vista as dificuldades de acesso às informações no final do século XIX e início do XX, pelo preconceito racial haja vista que ele era negro e por ser o primeiro a se empenhar nesse tipo de levantamento biográfico. Contudo, ao identificar e registrar dados biográficos sobre os artistas negros e suas obras propiciou às futuras gerações um significativo e indispensável material de pesquisa acerca de um assunto tão parcamente ventilado na historiografia da arte baiana, como afirmou Freire: A identidade dos artistas é conhecimento difícil de se obter na Bahia, [...]podemos mesmo dizer que a História da Arte Baiana começou com uma biografia dos artistas feita por Manuel Querino nos mesmos moldes de Giorgio Vasari, pois, como ele, obteve dados através da memória oral colectiva; registrou sua vivência, o lendário, e um pouco da história das instituições artístico-pedagógicas; periodizou em fases a história da arte baiana e estabeleceu os vínculos entre os artistas, identificando as relações mestresdiscípulos, que ajudaram a construir o conceito de “Escola Baiana de Pintura. (FREIRE, 2000, p.147).

Na década de 1920, marcada pela Semana de Arte Moderna, a volta às origens foi impulsionada desencadeando um interesse mais acentuado sobre as etnias no Brasil. Nos anos 30, devido aos desdobramentos da década anterior, foram retomados os estudos africanistas, e o interesse pelo assunto nas artes brasileiras. Segundo Kabengele Mununga, (2000, p.105), é a partir dessa década que a arte afro-brasileira até então reduzida ao espaço das casas de culto, começa a aparecer: “Seus artistas abandonam o anonimato e alguns deles começam a trabalhar dentro do conceito das chamadas artes popular e primitiva, encorajados pelo movimento modernista e pela busca do nacionalismo”. Em 1934, foi realizado em Recife o 1º Congresso Afro-Brasileiro, e em 1937, a sua realização foi na Bahia. Vem dessa época o interesse pelos estudos no campo do folclore, em que se destacam, entre outros, as

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pesquisas do Departamento de Cultura de Mário de Andrade. Ganham interesse nessa perspectiva, objetos apreendidos desde 1910, em Alagoas, pela polícia da época em repressão aos cultos afro-brasileiros de Recife, Salvador e Rio do Janeiro, muitos dos quais são hoje considerados arte. (AGUILAR, 2000, p.113).

Essa efervescência da arte negra ocorrida a partir da década de 30, segundo Cunha (1983), foi o fator determinante para o aparecimento dos artistas negros do período: “São, portanto esses estímulos científicos e culturais que servem de pano de fundo histórico-social, permitindo o reaparecimento de artistas e temas negros nas artes plásticas a partir das décadas de 30 e sobretudo 40”. (In: ZANINI, 1983, p.1023). Nessa época, ocorreram várias publicações sobre os artistas negros na arte brasileira, dentre elas: Mestre Valentim e outros estudos de Aníbal Matos, em 1934; Aleijadinho e Álvares de Azevedo, de Mario de Andrade, em 1935; Artistas Pintores no Brasil, de Theodoro Braga, em 1942; Os Três Chafarizes do Mestre Valentim em 1943 e Antônio Francisco Lisboa em 1945, ambas do autor José Mariano Filho. Na Bahia, um discurso de louvor ao contributo africano à cultura baiana era promovido por vanguardistas intelectuais como Jorge Amado, Édison Carneiro e Artur Ramos. Segundo Bacelar (1996, p.73-86), foi nesse período que pela primeira vez se abordou na capital da Bahia através da Frente Negra um assunto desprezado pela sociedade local, a situação racial. É nesta época que nomes como Carlos Chiacchio, Marieta Alves, Germain Bazin, Robert Smith, D. Clemente da Silva Nigra, Valentin Calderon, Carlos Ott, José do Prado Valladares e seu irmão Clarival do Prado Valladares, surgiram e tornaram-se referência na historia da arte baiana. Dentre as muitas publicações desta época destaca-se O Negro na Bahia, de Luiz Viana Filho com o prefacio é de Gilberto Freyre, em 1946. Neste mesmo ano, Carlos Ott realizou a transcrição do manuscrito da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro intitulado como Noções sobre a procedência d’arte da pintura na Província da Bahia, que foi publicado na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1947. Dois anos mais tarde Ott fez outra importante publicação A Pintura na Bahia, 1549-1850. 108


Nas décadas de 50 e 60 o Brasil vivia os reflexos do movimento regionalista encabeçado por Gilberto Freyre e Arthur Ramos, movimento este, que buscava valorizar o patrimônio cultural, o erudito e o popular, a identidade regional do país. Esse fomentar artístico culminou numa reviravolta cultural e no aparecimento de um número maior de artistas plásticos negros citados nos catálogos de museus e coleções particulares. São desta época a Revista nº 15 da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional que publicou Antônio Francisco Lisboa. O Aleijadinho, em 1951, e a publicação As artes plásticas no Brasil de Rodrigo Franco Andrade, em 1952, abordando as artes indígenas, populares, e a presença da cultura negra no país. Em 1966, o Departamento Cultural e de Informações do Ministério das Relações Exteriores lançou Quem é quem, nas artes e nas letras no Brasil, apresentando alguns artistas plásticos negros. Na Bahia, Marieta Alves publicou em 1967, História das Artes na Cidade do Salvador, e em 1963, o Centro de Estudos AfroOrientais (CEAO), da Universidade Federal da Bahia publicou a monografia de Clarival do Prado Valladares sobre o artista plástico negro Agnaldo dos Santos, monografia que em versão inglesa tem o título Origin? Revelation and death of primite scultor. Em 1968, Clarival publicou outra significativa obra: Negro Brasileiro nas Artes Plásticas. No final da década, Roberto Pontual publicou no Rio de Janeiro o livro Dicionário das Artes Plásticas do Brasil, citando os artistas negros e suas obras. Na década de 1970 aumentaram as publicações citando artistas negros e mestiços. Neste ano, Germain Bazin publicou O Aleijadinho e a escultura Barroca no Brasil. Em 1974, Judith Martins lançou o livro Dicionário de Artistas e Artífices dos Séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Marieta Alves em 1976, publicou na Bahia o Dicionário de Artistas e Artífices na Bahia. Em 1977, Clarival do Prado Valladares faz um estudo sobre a obra de Emanoel Araujo no livro Visão da Terra, utilizando também o método biográfico, justificando que: “A história de um artista sempre ajuda a compreensão de sua obra”. (VALLADARES, 1977, p.35). Durante essa década, artistas como Agnaldo Manuel dos Santos, Guma, José de Dome, Hélio de Oliveira, Lizar, Cosme Martins, Louco, Heitor 109


dos Prazeres, Ronaldo Rego, Hélio Oliveira, Octávio Araújo, Rubem Valentim, Mestre Didi, Yeda Maria, Juarez Paraíso, Emanoel Araujo, dentre outros, passaram a ser conhecidos e valorizados no cenário das artes plásticas no Brasil e no exterior, graças a uma maior aparição dos mesmos em produções bibliográficas, revistas e catálogos de arte. Na década de 1980 as publicações sobre a temática negra no país voltavam-se em sua maior parte para escravidão e suas conseqüências, devido o centenário da mesma. Surge Arte Negra, Bibliografias, em 1980 da Prefeitura de São Paulo; o catálogo Artistas da Escultura Brasileira, em 1986, da Volkswagen do Brasil S.A; Mestres, artífices, oficiais e aprendizes no Brasil, em 1981, de Pietro Bardi; e a comunicação de Dilma Melo dos Santos apresentada em 1987 no III Congresso Brasileiro de História da Arte, Arte Africana e sua continuidade na Arte Afro Brasileira. Em 1982, Emanoel Araujo relançou a obra de Carlos Ott a Escola Bahiana de Pintura (1764-1850). Em 1983, Walter Zanini lança o livro História Geral da Arte no Brasil apresentando o capítulo Arte Afro Brasileira onde Mariano Carneiro da Cunha faz uma análise sintética sobre a arte e sobre o artista afro brasileiro na história do Brasil. Em 1988, José Roberto Teixeira Leite publicou Pintores negros do Oitocentos. Todavia, foi em 1988 que surgiu uma das mais completas e importantes obras acerca do artista negro nas artes visuais no Brasil: A Mão Afro-Brasileira: significado da contribuição artística e histórica, de Emanoel Araujo (FIG. 02.), resultante de um acerbo trabalho de pesquisa iniciado em 1981 pelo mesmo. O livro traz a claro foco a identidade dos artistas negros brasileiros e suas poéticas visuais, destacando não apenas as características formais e estéticas de suas obras, mas os aspectos sociais, históricos, etnológicos, antropológicos, dentre outros, que estão ligados a concepção das mesmas e a realidade de cada um desses artistas.

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FIG. 02. Fábio Domingues. EMANOEL ARAUJO. 2004.Coleção Particular

A partir de 1990, as publicações sobre o negro nas artes plásticas passaram a ter maior repercussão e também maior interesse por parte dos historiadores. Em 1993, o Governo de São Paulo lançou o catálogo Pintores Negros do séc XIX. Na Bahia, em 1996, Carlos Eduardo da Rocha publicou As Influências Africanas nas Artes da Bahia, citando artistas plásticos baianos e suas obras. Em 2000, exposições como: Bahia África Bahia, Vozes da Diáspora, Os herdeiros da noite, Negro de Corpo e Alma, Arte e religiosidade no Brasil: Heranças Africanas, Face of Gods: art and altars of África and African American, em Nova York, e Arte e religiosidade Afro-brasileira em Frankfurt, realizadas por Emanoel Araújo de grande repercussão dentro e fora do país, resultaram em importantes publicações sobre o assunto. Na exposição comemorativa aos 500 anos do Brasil, intitulada Brasil 500 Mostra do Redescobrimento, Araujo foi o responsável pelos módulos: ArteAfro-Brasileira e Negro de Corpo e Alma. Kabengele Mununga responsável pelo módulo Arte Afro-Brasileira: O que é afinal?, faz uma análise do contexto sócio histórico do negro no Brasil, da 111


integração dos elementos culturais africanos à arte e a cultura brasileira, e de como essa arte aparece e era vista nas décadas inicias do século XX, “[....] conhecida apenas como arte religiosa, ritual, comunitária e utilitária” (MUNUNGA, 2000, p.105). Em 2001, na Bahia, a Portifolium lançou o catálogo Bahia Negra: 100 Biografias. Catálogo esse que faz referência às personalidades negras que construíram a história da Bahia, citando artistas visuais negros. Em 2002, aparece um trabalho laureado sobre o artista negro brasileiro: Para nunca esquecer: Negras Memórias, Memórias de Negros, de Emanoel Araujo. Decorrente da exposição homônima ocorrida em São Paulo no ano anterior, e que contou com um público acima de 90 mil pessoas, o livro não se limita apenas à arte negra e aos artistas plásticos negros, trata também das inúmeras personalidades negras que por diferentes meios construíram e edificaram o Brasil em segmentos como literatura, música, dança, esportes, engenharia, jornalismo, medicina, magistratura, religiosidade, meios políticos, cinema, educação e nos movimentos de libertação. Em maio de 2005 Emanoel Araujo publicou o catálogo Brasileiro, Brasileiros, decorrente de uma exposição homônima realizada no Museu Afro Brasil e que contou com cerca de 650 obras de arte, quadros, esculturas, alegorias e fotos, mostrando diferentes estéticas presentes na diversificada cultura do Brasil. Nesse livro, além de analisar a relevância da arte e dos artistas negros no país o autor também adentra na arte e na cultura indígena, popular e européia que formam essa diversificada nação brasileira. Nos últimos anos, apesar das inúmeras transformações sociais e culturais darem origem a um número mais significativo de catálogos de museus e coleções particulares citando as obras dos artistas negros, juntamente a uma quantidade mais expressiva de livros realizados por historiadores interessados pelas questões etnológicas, pelas questões da arte nacional, pela cultura negra enquanto objeto de pesquisa ou pelo negro como foco de análise, a escassez de publicações e de estudos que abarquem essas questões e que se preocupem em registrar a biografia, a poética visual, a presença e o contributo dos artistas negros à arte brasileira, ainda se faz diminuta e deficiente. 112


Sem dúvida, a não identificação do artista plástico negro e das diversificadas mudanças ocorridas no seu contexto sóciohistórico ao longo dos séculos no Brasil, bem como da produção das suas poéticas visuais, acabaram por consolidar idéias equivocadas a respeito desses artistas por grande parte da sociedade brasileira, que imersa num lamentável estado de alienação cultural, em pleno século XXI, ainda os generaliza como populares e primitivos acreditando que o conteúdo temático presente em suas obras está sempre atrelado à estética religiosa africana, não as inserindo nem as identificando dentro das atuais tendências e fenômenos artísticos da contemporaneidade. Fica evidente que por preconceito, segregação racial, discriminação social, intolerância, e mero descaso com as etnias menos favorecidas em nosso país, a insipiência de registros sobre presença dos artistas negros na historiografia da arte brasileira se perpetua. Contudo, se durante muitos séculos o país conseguiu ser indiferente ao contributo dos negros à arte e a cultura brasileira, sepultando-os da história com taciturnidade, o rever a essa memória torna-se a cada dia mais imperioso e imprescindível, sendo invisível apenas aos que desejam continuar acorrentados aos grilhões da ignorância.

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DO ESPAÇO ESTÉTICO DA ARTE AO ESPAÇO SOCIAL DO MUNDO Maria Helena Magalhães1 mhelenamagalhaes@yahoo.com.br

A abordagem da arte atual evidencia uma série de transformações ocorridas na arte em curto período de tempo durante o século 20, assim como mudanças percebidas ainda hoje, na arte, conforme nossas últimas apreensões de realidades. Elitismo versus populismo, máximo versus mínimo, vanguarda versus kitsch, criatividade individual versus produção em massa – a distinção entre o espaço estético da arte e o espaço social do mundo em torno de nós, tem sido delineada através deste século de diversas maneiras. Grande parte da história do modernismo é a história de iniciativas para estabelecer um paralelo entre dois campos de discussões. (OLIVEIRA et al.: 1996, p.11).2

Embora próxima ao nosso tempo, a arte dos séculos 20 e 21 se distancia muitas vezes do nosso olhar habituado a uma certa estabilidade conferida à pintura, baseada, por assim dizer, na ilusão da perspectiva renascentista. Apesar do desdobramento de estilos artísticos, a recorrência a esse artifício técnico-artístico caracteriza a abordagem pictórica do século 15 ao século 19. Acomodados a esse sistema de representação artística, que perdurou por tantos séculos consecutivos, ainda hoje sentimos um certo conforto ao observarmos a realidade inserida no que Francastel denominou de cubo cenográfico. Este seria o local propício para a inserção de todos os acontecimentos relacionados ao mundo, ao 1

Professora Assistente do Departamento de Artes Visuais da Universidade

Federal da Paraíba, mestre em Artes pela Edinburgh College of Art / Escócia, graduada em Artes pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. 2

Tradução nossa.

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homem e a vida em geral promovendo, de fato, uma sensação de estabilidade, considerando-se que “o espaço plástico do Renascimento repousa no manejo de um sistema de representação correspondente a um dado estável da experiência humana” (FRANCASTEL: 1990, p.109). Nos sentimos embaraçados, muitas vezes, ao lidar com a expressão artística de hoje. Os séculos 20 e 21 se fundamentam em novas apreensões de realidades, percebidas e presentes na arte. Conforme assinala Neide Marcondes, o caráter atual-epocal do fenômeno artístico incentiva, ao lado do sensível, uma ação reflexiva, mesmo em se vivendo, ou melhor, porque vivemos num mundo estranho de fractais, da desreferenciação, da desconstrução, da desistoricização. O pensamento de um outro “novo” com nova interpretação suscita sempre novas leituras, portanto, “novos” mundos possíveis. (MARCONDES: 1996, p.9)

Procuro destacar aqui a importância de olhar para uma época cujos referenciais se baseiam na contestação e atribuição de novos significados ao conceito de arte. Momento em que a arte se realiza em uma pluralidade de tendências, em leituras diversas da realidade e da vida, em variadas linguagens, se estendendo em sua ótica atual para um enfoque cultural e suas amplas relações. Observamos um período no qual se mesclam figuração e abstração, linguagens e conceitos, arte e tecnologia, cotidiano, cultura de massa e processos. Época em que são abordadas inúmeras possibilidades de expressão em um único momento e que se caracteriza pela reelaboração de valores, onde desreferenciamos, desconstruimos e desistoricizamos nossas verdades e nos propomos a observar as novas mudanças paradigmáticas que vêm se instaurando no pensamento humano. Há tempos atrás, entretanto, a representação espacial em perspectiva caracterizou o espaço idealizado pela pintura. Apesar das transformações espaciais observadas no desdobramento de estilos artísticos durante aproximadamente quatro séculos consecutivos (do século 15 ao século 19), o espaço em profundidade da perspectiva 118


renascentista correspondia à nossa percepção de realidade, independentemente do estilo artístico apropriado para o momento histórico. Ao visualizarmos uma obra cujo estilo corresponda aos séculos citados (Renascentista, Barroco, Neoclássico...), observamos com certa evidência a dissociação entre o suporte e a pintura à medida em que percorremos a superfície da tela. O suporte em duas dimensões se dissocia da abordagem pictórica que sugere uma terceira dimensão espacial. Penetramos em um espaço tridimensional, que embora ilusório, nos dá a impressão de que o mundo e a vida, a realidade enfim, sob a ótica da pintura daquele momento, se limita a esse tipo de abordagem espacial, necessária como apreensão de realidade do momento. Penetramos gradativamente à superfície da obra em conformidade com a sucessão dos planos que se apresentam. Nosso olhar percorre um determinado espaço no decorrer do tempo e de acordo com o grau de importância que é atribuído às partes que compõem a cena. Espaço e tempo, em caráter linear, são dados observados separadamente na pintura correspondente a um período da História da Arte, entre o século 15 até pouco antes do final do século 19. Na primeira metade do século XX, observamos uma série de transformações na pintura, em especial no que se refere à desagregação da representação espacial em perspectiva. As Vanguardas Modernas em diferentes proporções se voltam para a operacionalidade e domínio da linguagem artística. As propostas artísticas na ocasião, atentas ao desenvolvimento de uma civilização industrial, apontavam para o novo, para a originalidade, para possibilidades de transformações radicais na sociedade e na vida de forma abrangente. A dinâmica de uma sociedade industrial sob a ótica da pintura do momento, era o assunto tratado a partir das articulações da linguagem artística. Conforme Argan: Por volta de 1910, quando ao entusiasmo pelo progresso industrial sucedeu-se a consciência da transformação em curso nas próprias estruturas da vida e da atividade social, formar-se-ão no interior do Modernismo as vanguardas artísticas preocupadas não mais apenas em modernizar ou atualizar, e sim em

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revolucionar radicalmente as modalidades finalidades da arte”. (ARGAN: 1992, p.185)

e

Na pintura moderna, a suposta profundidade da realidade pictórica é substituída por uma planificação espacial. A relação espaço-tempo, nesse momento, pode ser observada simultaneamente e há coerência com o tipo de suporte apresentado. No caso, à bidimensionalidade do suporte, corresponde a proposta de planificação espacial da pintura do século 20. Sob a ótica dos artistas do modernismo, a pintura é de fato uma pintura e não a tentativa de inserção em um mundo idealizado por meio de um esquema técnico que promova a sensação de profundidade espacial. Da relação espaço e tempo se configura uma nova realidade, pressupõe-se agora a relação espaço-tempo que opera como um continuum espaço bidimensional na pintura. Nosso olhar percorre o espaço observando a superfície pictórica na simultaneidade do tempo. Não há mais protagonistas, todas as partes que compõem a obra serão evidenciados ao mesmo tempo. a redução da espacialidade, de tridimensional a bidimensional trouxe consigo uma ativação da figura: cada figura, cada forma criou ao seu lado a sua “contra-forma”. Desta maneira instaura-se também aquilo que, ao meu ver, é um dos resultados mais significativos da nossa idade pictórica, ou seja, uma nova maneira de conceber o “campo” aquela unidade plástica global, aquele continuum espacial bidimensional que não pode mais ser concebido como amorfo, mas que deve sê-lo como algo integral e integrado.Portanto, a idéia de um universo reduzido às proporções e às leis de uma “visão através de uma janela”, dentro do qual acontecem as cenas de que o homem-ator é protagonista, cedeu lugar a uma figuração espacial muito complexa, ainda que mais motivada do ponto de vista subjetivo e, portanto, mais dificilmente aceitável (Dorfles: 1992, p. 81). Entram em jogo, assim, todas as novas representações que o homem vem criando para si com base em seus novos conhecimentos científicos, técnicos, biológicos. Novos e inéditos componentes formais-derivados eventualmente das nossas pesquisas microscópicas, físicas e embriológicas – que as últimas técnicas

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permitiram evidenciar, vieram povoando de forma consciente ou inconsciente o nosso universo formal. (DORFLES: 1992, p.81)

Ainda na primeira metade do século 20, o artista francês Marcel Duchamp associou o conceito de obra de arte a um “sistema de validação institucional” (FREIRE:1999), onde o museu, instituição oficial representante maior de um sistema, fruto do arcabouço teórico de uma cultura ocidental, poderia conferir o status de obra de arte ao trabalho que se encontrasse abrigado em seu espaço físico. Duchamp enviou a um Salão oficial uma peça, que considerou como obra (tencionando desmistificar, de forma irônica, o conceito de obra de arte). Tratava-se de um objeto fabricado em série (readymade), um urinol, cujo título conferido por ele à obra, “a fonte”, complementava a idéia, por meio da atribuição de um novo significado àquele objeto e sua função em um contexto social. À obra de arte, dessacralizada, é conferido agora o status de objeto artístico. Conforme Cristina Freire, De maneira mais totalizante, a noção de arte como conceito, como elemento referente a um contexto (de linguagem) do qual se depreende seu sentido e valor, remete mais uma vez a Marcel Duchamp, que operando com idéias jogou com seus sentidos dentro do sistema de valores e representações. O campo da arte se expande, portanto, do estético – eminentemente retiniano- para o artístico, que envolve conceitos, idéias, valores e representações que se estendem além dos limites da percepção visual. Nessa perspectiva, é importante frisar, o significado de uma obra não se instala dentro de si, mas através do lugar que ocupa num determinado sistema de valores e representações do qual participa. (FREIRE :1999, p.50).

Na segunda metade do século 20, observamos a reavaliação das categorias expressivas baseadas em um modelo clássico de abordagem da arte. Os limites estabelecidos entre o bi e tridimensional ultrapassam, nas proposições artísticas, os conceitos determinados para um tipo de realidade que já não se adequa aos propósitos de uma abordagem espacial mais atual. A pintura ocupa 121


o espaço tridimensional da escultura através dos relevos e de formas incorporadas ao espaço físico das galerias e a escultura colocada sobre o piso (tido como campo), ocupa o espaço bidimensional da pintura. Há uma revisão do vocabulário clássico que define expressões como pintura, escultura, gravura, desenho. Novas expressões surgem com outras definições do fazer artístico: Performances, Ambientes, Videoarte, Instalações, etc. Durante esse período, uma série de transformações ocorreram na nossa maneira de perceber inicialmente a realidade cotidiana e os desdobramentos devidos na compreensão da linguagem e dos mecanismos impostos para o entendimento de uma idéia. As idéias introduzidas pela física quântica acerca da realidade foram adaptadas à nossa cultura, modificando nossa maneira de pensar e agir, promovendo uma condição ou sensação de instabilidade diante da vida. Na arte, necessariamente, transformações significativas ocorreram na percepção da realidade. Segundo Heartney, a tese proposta por Thomas Kuhn in The Structure of Scientific Revolutions(1962), promoveu um verdadeiro abalo na teoria do pós modernismo (HEARTNEY:2002, p.8). Thomas Kuhn demonstrou enfaticamente “como um sistema de pensamento é colocado em xeque em um contexto teórico que exige a definição de conceitos inéditos, podendo levar, daí, à constituição de um novo paradigma”. (PASTERNAK-PASSIS, Guitta:1993, p.13). Se discute a reavaliação de termos e expressões que definem a estrutura de pensamento anterior. Um novo pensamento se fundamenta em conceitos apropriados para a época recente. Embora tenha causado controvérsias no campo científico, a noção de paradigmas de Kuhn foi imediatamente apreendida por outras áreas do conhecimento humano. Para esses outros profissionais “a noção de paradigmas resume perfeitamente a idéia de que a verdade e o conhecimento são relativos, e dependem do sistema maior de suposições e relações de que emergem”. (HEARTNEY:2002, p.9) A desmaterialização do objeto artístico é outro indicativo para as transformações observadas na segunda metade do século XX. Entre os anos 60 e 70, surgem diferentes concepções artísticas com o 122


enfoque na idéia e não necessariamente na representação do objeto artístico. A Arte Conceitual abrange uma série de questões relativas à obra ou a sua ausência. A aura atribuída à obra é decididamente questionada. Surgem então novas estratégias para a elaboração do artístico. O caráter efêmero dos meios e materiais utilizados constitui um dos fatores recorrentes das proposições artísticas apresentadas na arte conceitual. O museu, por sua vez, instituição oficial para a constatação do valor artístico da obra, é também avidamente criticado. O enfoque na idéia gera uma série de transformações, na abordagem de uma obra, promovendo uma revisão mais profunda acerca do conceito de obra de arte. De acordo com Cristina Freire, esta noção implica na revisão de categorias tradicionalmente ligadas às obras de arte que se fundamentam no culto renascentista do objeto autônomo. Nas ciências humanas, a noção de “mudança de paradigma” foi um recurso teórico utilizado, com freqüência, para explicar como permutas, modificações e quebras nos fundamentos epistemológicos de uma disciplina poderiam alterar suas crenças e práticas (FREIRE: 1999, p.30).

Na arte atual podemos observar novos referenciais, conceitos e caracterização espacial. O conceitualismo ressonante da arte conceitual está presente em grande parte das tendências artísticas atuais, nas suas mais variadas poéticas. A abordagem da obra só se torna possível situada em um contexto muito mais amplo. Além das “análises com bases sociológicas” (FREIRE) e formais, inclui-se ainda a criação artística inserida no suporte físico do mundo e necessariamente na vida por meio de uma experiência mais próxima da realidade, que se configura no agora. Ao significado da obra está atrelado todo um sistema de valores. O contexto de inserção do objeto artístico constitui um fator determinante para a análise e compreensão de uma obra. Dessa forma a relação estabelecida entre a obra e o espaço físico, conduzirá ao fundamento contextual necessário para a abordagem do objeto artístico na arte contemporânea. 123


Atualmente a Instalação é considerada um recurso artístico que se apresenta como reflexo das transformações espaciais ocorridas no século 20. É um procedimento expressivo das artes visuais que enfoca a relação entre todas as partes que compõem a obra na representação artística. Propõe a penetração física na obra, a imersão no objeto artístico. Surge nos anos 60, se desenvolve nos anos 70, 80, se realiza com autonomia de fato nos anos 90 e se constitui hoje como uma das formas de abordagem espacial mais característica para os nossos dias. Resgata a relação entre as partes e o todo constitutivo da obra. A Instalação artística ocorre em espaços abertos e fechados, no interior de galerias, museus, locais públicos, privados, edificações históricas, lugares na natureza e em centros urbanos. O que se busca de fato é o olhar para novas realidades a partir de outras percepções espaciais constituídas no nosso tempo presente. A reativação de um espaço no ambiente urbano ou natural promoverá diferentes leituras, nas diversas situações contextuais. As intervenções artísticas são constituídas com base nas interferências realizadas em um determinado local (espaço, objeto ou lugar, devidamente contextualizado). Pressupõe-se a atribuição de novos significados que se sobrepõem a uma circunstancialidade anterior. E é tomando como referência as transformações da realidade da arte e a conseqüente utilização de outros suportes artísticos, que os lugares-objetos se mostram no ambiente natural, por meio das intervenções artísticas ambientais e a infinidade de signos e códigos se multiplicam na arte dos grandes centros urbanos. Concluímos então que, as questões que envolvem o fenômeno artístico na atualidade estão alicerçadas de fato em contextos mais amplos do que estávamos habituados, baseados também em novos fundamentos epistemológicos, e que as ressonâncias conceituais presentes em grande parte das proposições artísticas atuais se constituem em condições necessárias para a compreensão e redirecionamento de nosso olhar para a arte do século presente.

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Referências ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ARGAN, Giulio C. Arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1988. BRANDON, Taylor. The art of today. London: Calmann and King, 1995. CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1987. DORFLES, Gillo. O devir das artes. São Paulo: Martins Fontes, 1988. FUSCO, Renato De. História da arte contemporânea. Lisboa: Presença,1988. FRANCASTEL, Pierre. Pintura e sociedade. São Paulo: Martins Fontes: 1990. HEARTNEY, Eleanor. Pós Modernismo. São Paulo: Cozac & Naif, 2002. MARCONDES, Neide. (Des)Velar a arte. São Paulo: Arte & Cultura, 1996. OLIVEIRA, Nicolas de et al. Instalation Art. London: Thames and Hudson,1997. PAPADAKIS, Andreas (ed.). New Art. London: Academy Editions, 1991. PEIXOTO, Nelson Brissac. Intervenções urbanas: arte e cidade. São Paulo: SENAC, 2002. PESSIS- PASTERNAK, G. Do caos à inteligência artificial. São Paulo: EDUNESP, 1992. RAMOS, Célia M. A. Grafite, pichação & cia. São Paulo: ANNABLUME, 1994. STILES, K; SELZ, P. (ed.). Theories and documents of contemporary art: a sourcebook of artists’ writtings. Los Angeles, London: University of California Press, 1996. WALKER, John A. A arte desde o Pop. Barcelona: Labor, 1997.

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TÁTICAS, CIRCUITOS E INVENÇÕES: DISPOSITIVOS DA IRONIA NA ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA Felipe Scovino1 felipescovino@hotmail.com

Cena 1: O espectador entra numa sala escura e vê-se obrigado a pôr calças de plástico sob a sua vestimenta. Tateando as paredes desta sala, ele encontra uma porta. Cena 2: Ao abrir esta porta, ele adentra numa nova câmara – um corredor com aproximadamente 15 metros de extensão -, tão escura quanto a anterior. Um cheiro de gás, como o utilizado em nossas cozinhas, impregna o ambiente. O chão possui uma camada espessa de talco, que dificulta a movimentação do espectador, e ao final do corredor observa-se uma vela. Uma vela descoberta.

Portanto, agora alguma decisão deve ser tomada. Significaria a morte, este enclausuramento cheirando a gás e prestes a explodir? Cildo Meireles ativa um circuito irônico em Volátil (1980-94) e mais do que isso transforma o espectador em sujeito ativo da ação, em elemento de um jogo sarcástico e – por quê não? - perverso. O jogo aqui é transformado em tomada de posição. Não estamos mais falando numa manipulação por manipulação, como é o caso dos jogos ópticos ou a manipulação física de certas obras concretas, mas numa articulação entre linguagem e ação, onde a sua vida (metaforicamente) pode depender disto. Entre outras coisas, o trabalho recusa entregar-se ao gesto autoritário do conceito que capta, domina e congela. Esse gesto é solidário de uma hierarquia e uma ordem contra as quais o trabalho se insurge. Contra as quais 1

Doutorando em Estudos da História e Crítica de Arte pelo Programa de Pós-

Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e curador da Associação Cultural “O Mundo de Lygia Clark”.

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surge. No limite, o trabalho parece murmurar: “A minha Essência está no acidente”. O trabalho parece estar contra os Sólidos, a política dos sólidos, “a física dos sólidos”, como anuncia Ronaldo Brito. Tudo o que retém a energia, a comunicação, o que retém o fluxo das “densidades transformadoras” (BRITO, 1981, p.8). A combinatória entre “gás” e vela em Volátil assim como entre singeleza e fósforos, no caso de Felipe Barbosa, questiona e alucina nossa certeza e confiança no universo dos sólidos. Existem jogos perigosos no mundo da arte contemporânea: é a instância de um lúdico mortal, onde quebrar as regras pode ser o limite. Em Volátil, Anel bomba (1970) e O sermão da montanha: Fiat lux (1973-79) 2, todos de Cildo Meireles, e Homem-bomba (2002) e a série Urso (2005) 3, de Felipe Barbosa, o perigo existe potencialmente nos próprios materiais. No espaço fechado de Volátil, o perigo é fictício, o piso é coberto com uma camada de cinza, a iluminação é feita apenas por uma vela, e um odor de gás natural impregna o ambiente. As caixas de fósforos empilhadas, usadas em O sermão da montanha: Fiat lux, tinham mais do que a sensação, o potencial de causar uma explosão. Como afirma Meireles: “O perigo é um 2

N.A. Anel Bomba é uma peça de metal, em formato de prisma, tendo no seu

interior uma pequena quantidade de pólvora. Fiat Lux compreende uma área de aproximadamente 60m2, circundada por oito espelhos de 1,60 x 1,20 m, na superfície dos quais estavam escritas oito bem-aventuranças do sermão da montanha (Mateus, 5, 3-10). No centro desta área, estão empilhadas 126.000 caixas de fósforos. O chão era revestido de lixa preta. O som do atrito dos pés sobre a lixa foi gravado e amplificado. Do trabalho participavam ainda cinco atores. Realizada a 25 de abril de 1979, no Centro Cultural Candido Mendes, no Rio de Janeiro, a exposição durou apenas 24 horas. 3

N.A. Homem Bomba compreende um boneco de aproximadamente 50 cm de

altura e 15cm de largura feito com constituído unicamente por ‘bombinhas’ (explosivos com pequeno poder de destruição, caso não sejam usados em grande quantidade). Urso é uma série que compreende entre outros: Panda,

Teddy Bear e Ursa maior, todos realizados em 2005. Ursos de pelúcia cobertos com estalinhos coloridos em sua estrutura. Neste artigo não estaremos abordando nenhum urso em específico, mas o seu conjunto.

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elemento constitutivo dessas obras. Psicologicamente, quando se entra em contato com o perigo, os sentidos se tornam mais alertas” (HERKENHOFF, 1999, p. 35). Entretanto a ironia não se faz presente apenas no mundo perigoso da pólvora, outras situações poderão ativar a potência da ironia. Mas mesmo antes destas experimentações entre arte e matemática ou entre ação e explosão, em 1931, acontece um evento marcante para a história da arte brasileira. De início sem tanta relevância artística, mas com certeza muito mais agressivo em termos culturais: a Experiência no 2, realizada por Flávio de Carvalho. Numa São Paulo provinciana e católica, ele resolve testar os limites da tolerância de uma massa religiosa regulada por códigos de comportamento bem rígidos. Durante uma procissão de Corpus Christi, usa um boné verde de veludo e caminha de forma atrevida na contramão do fluxo de fiéis. Hoje parece insignificante, mas para a época essa atitude – manter um boné à cabeça – era algo extremamente agressivo. Resultado: o artista só escapou de um linchamento graças à intervenção da polícia. O conflito surgia do embate entre o corpo físico e fragmentário do artista e o corpo místico dos fiéis e seu totem. Alguns meses depois, Flávio de Carvalho lança um livro onde tenta compreender a tensão desencadeada pela sua experiência/provocação. É curioso, como que “ao longo de todo o livro não apareça a palavra arte ou artístico em nenhum momento para definir o ocorrido” (OSORIO, 2000, p. 20). A atitude de Carvalho estabelece um processo de vinculações diretas entre a Experiência e a performance, apesar do fato de não ter sido um acontecimento artístico, há um caráter mais trágico: o do indivíduo, solitário, à mercê de uma massa em fúria. Diferentemente do que seriam as performances de Allan Kaprow, cujas probabilidades gerais são previstas e das quais podese a rigor lembrar, a Experiência de Flávio de Carvalho não comporta nem diálogo nem roteiro, é propriamente inenarrável. Não que seja deixada ao acaso e não dê margem a nenhuma previsão. A Experiência acaba por congregar uma acentuação muito maior do instante presente, do momento da ação. Isso cria a característica de 128


rito, com o público não sendo mais só espectador, e sim, estando numa espécie de comunhão. A característica de evento da Experiência (já que ela foi única, não se repetiu) acentua essa condição, dando ao público uma característica de cumplicidade, de testemunha do que aconteceu. Investigar o próprio corpo, apresentá-lo numa situação em discordância com as convenções comportamentais de um determinado tempo e local, provocar, deixar o corpo em liberdade total para o uso agressivo de outros, dedicar-se a observar suas funções íntimas, investigar suas potencialidades sensoriais, seu perfil moral, significa transgredir um dos principais tabus de nossa sociedade, que regula cuidadosamente, por meio de proibição, a distinção entre o corpo e a alma. Pôr o bom senso ou o senso comum em suspenso foram tarefas que a Experiência trouxe em seu sentido pleno. Como o artista assinala em seu texto, sua atitude arrogante nada mais era que uma experimentação, que buscava testar a agressividade de uma multidão religiosa e os seus limites de civilidade e tolerância. Seguindo esta linha destrutiva de valores e renovando uma linguagem através de uma atitude de guerrilha, a Caixa de baratas de Lygia Pape (1967), a mala de Para um jovem de brilhante futuro (1974) de Carlos Zílio ou a performance de Antonio Manuel no Salão Nacional de Arte Moderna de 1970, no MAM, quando inscreve seu corpo como uma obra, é rejeitado pelo júri e à revelia das autoridades culturais apresenta-se nu no evento, são dilemas de resistência numa ditadura (política e corporal). Combate contra políticas de segregação artística (o espaçamento museológico versus as ‘trouxas’ de Artur Barrio) e social (como os ‘caixões’ em Urnaquente, de Antonio Manuel em 1968). A política corporal, o corpo sendo ‘usado’ para uma produção artística é, muito mais do que ‘crítica’, uma resistência. Palavra de inúmeras possibilidades semânticas, resistência, aqui, significa não ter medo, continuar a todo custo. A resistência é afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não é um lugar, que se ocupa, nem um objeto, que se possui. Ela se exerce, se disputa. Neste caso, a ironia serve como metáfora de (re)existência ou tomada de posição. Numa época de 129


corpos torturados, eletrochoques, desaparecimentos, massacres e mortes, a relação corpo/poder se mostrava institucionalizada. O homem se exerce como produção deste poder e a ironia como meio de se fazerem circular as ações. O que fazer com uma nota de “zero cruzeiro”? Objetivamente isto não conta e não vale nada. Mas o que a “inserção” tematiza é a espécie de inteligência, a espécie de discurso, “a espécie de sociabilidade que movem essas insignificâncias” (BRITO, 1981, p. 9). O importante não é o conteúdo, mas a estrutura dessa comunicação volátil: um certo murmúrio coletivo que não cessa de acontecer. A ironia em constante circulação dentro de um percurso aparentemente aleatório, misturando-se ao acaso e ao anonimato. Estas ações fundamentalmente procuravam questionar critérios, por meio de situações ou obras que utilizavam uma certa ironia para obter o seu resultado, porém Nelson Leirner, em dezembro de 1967, também questionou a autoridade de instituições de um modo até então inédito. O artista enviou um porco empalhado ao Salão Nacional de Brasília e este foi aceito. Logo após, o artista manda uma carta aos membros do júri de seleção com a seguinte pergunta: “Qual é o critério dos críticos para aceitarem esse trabalho no Salão de Brasília?”. Nesse episódio, Leirner não está jogando apenas contra – ou provocando – a equipe de críticos. Ele provocava da mesma forma sua categoria profissional – os próprios artistas -, uma vez que fez questão de frisar que aquela era a primeira vez que alguém colocava em dúvida os critérios daqueles que haviam escolhido seu trabalho. Colocando-se contra a crítica e os próprios colegas (tanto aqueles recusados como os aceitos no Salão, como ele), o artista estava questionando, em última instância, todo o sistema de arte, com suas regras nem sempre cristalinas, seus acertos tácitos, sua rede de cumplicidades. Até então, os raríssimos artistas a colocarem em dúvida os critérios de um júri de salão foram aqueles que tinham seus trabalhos recusados. E, para esses, a melhor resposta sempre foi insinuar, ou afirmar com todas as letras, que tal dúvida era motivada pelo despeito de não terem os trabalhos aceitos. Agora, alguém que havia ingressado no salão, perguntar sobre os critérios?

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A ironia se re-configura. Sua leitura também pode ser feita no âmbito das ilusões. Há as obras que lidam com o jogo da aparência, como as xifópagas capilares de Tunga e Eureka/ Blindhotland 4 (1970-75) de Cildo Meireles. Estas situações não interessam enquanto coisa, forma, organismo, mas como possibilidade, expectativa, imprevisibilidade. O dado principal destes trabalhos é o lúdico em conjunto com a ironia, um certo humor negro. A verdade nem sempre é o que imaginamos (ou no caso, enxergamos) ser. O fascínio e a beleza estética podem nem sempre ser uma experiência agradável. O trabalho de Lygia Pape também mostra uma interação constante entre estas duas demandas ao produzir um fluxo de objetos e instalações marcados por ironia, naturalidade despudorada, referências locais e humor negro, como em Eat me: a Gula ou a Luxúria? (1975). Características que também podem ser observadas nos bonecos elétricos de Márcia X, fazendo sexo em múltiplas posições (Kaminha sutrinha, circa. 1994). Próxima das ações de Jeff Koons, a artista provoca uma certa atitude antiinstitucional e uma procura por brechas no cotidiano para desafiar seus parâmetros de orientação. Esta rede irônica está mais interessada na provocação ao Outro do que simplesmente numa rasa atitude de diversão do público ou provocação contra o espaço do Museu. Provocações, rompimentos, táticas contra atitudes esgotadas. Situaçõeslimite. O ready-made duchampiano se re-inventa no Brasil. Não mais simplesmente transmissões de idéias associadas em último caso a ironia, mas circuitos de resistência. 4

“Num ponto iluminado, circundado por redes, o espectador primeiro vê

duzentas bolas de borracha preta, acreditando erroneamente serem idênticas (...) uma trilha sonora com o som de cada bola caindo dá uma pista, mas é apenas por meio da interação física que se pode tomar consciência de seus pesos distintos. Essa é Blindhotland. O segundo elemento da instalação, consiste num par de balanças colocadas sobre uma estaca. Vemos que alguns objetos postos sobre as balanças são perfeitamente iguais em peso, contradizendo mais uma vez a lógica do olhar. Vêem-se duas peças de madeira que têm o mesmo peso que uma cruz feita de dois pedaços idênticos de madeira, que se interseccionam em sua parte central. Aparentemente, três bocas têm o mesmo peso que uma” (HERKENHOFF, 1999, p. 66).

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A erosão do informe aqui é a do significado das imagens assim que designadas. Elas descrevem, se confundem, assinalam, encontram nexo, enfim, sua própria erosão. Nada aqui se representa, tudo parece contentar-se em ser alusão, analogia, metáfora. No início, a obra nos induziria a crer num sentido interno específico de cada nomeação. Mas depois, o conjunto de nomeações nos precipita em conclusão surpreendente: todas as nomeações são falsas. Podemos observar tais questões em The Illustration of Art/One & Three/Streetchers (1971-74) e The Hardest Way (1970), ambas de Antonio Dias; “depois de trabalhar com a inexistência de um sentido único da História, Dias agora afirma que na pintura não há um texto único da verdade visual” (MOLDER, 1999, p. 52). Em The Illustration of Art/One & Three/Streetchers, grupos de barras se cruzam para formar um quadrado central de localização e dimensões variáveis em cada caso. A inscrição “A ilustração da arte: toda redução e ampliação é uma questão de adaptação” conclui o ordenamento do espaço na perspectiva da figuração. O jogo vale para a adaptação do espaço na obra de Dias, para a premissa minimalista less is more, e também como estratégia de sobrevivência em meio à escassez. Em The Hardest Way, a palavra não-retórica em sua obra propicia introspecção e dúvida. A escritura designa aquilo que a percepção deve abstrair na imagem como se ela não se colasse no quadro. São obras maleáveis para o olhar do espectador. Maleável para a sua fruição, o seu jugo e o seu prazer. Incorporando a dispersão, o aleatório da vida contemporânea, estas obras repotencializam e ressensibilizam a vivência desta nova (des)ordem. A multiplicidade de ações da ironia e do sarcasmo veio propor tensões, iminências e desequilíbrios materiais, sempre a nos defrontar com situações espaciais-limites: a investigação por excelência do objeto de arte, mas como vontade de surpreender, expor e re-inventar a própria existência. Colocando em questão a possibilidade de a arte integrar-se na coletividade, transformando-a, a sua inscrição se dá incorporando as contradições entre o trabalho e o circuito. Não se trata apenas de uma política de defesa intransigente de um espaço da contemporaneidade, mas uma situação de avaliar o que seriam as “Belas-Artes” e 132


apropriação de outros meios de circulação das obras. O esforço parece colocar em abismo o código vigente, a leitura do Real. Todas as obras abordadas nesta pesquisa surgem como provocação do espaço, colocam em xeque um aprisionamento do Ideal ou uma certa verdade eterna. Outra espécie de manobra vai segurá-la. A ironia aparece como (des)articuladora deste espaço de aparências, ou representações metafóricas, e oferece novas táticas para esta circulação através de uma estrutura de jogo. Jogo de palavras, de metáforas, alegorias, de aparências, ilusões. Voltando à linha desafiadora de Felipe Barbosa e Cildo Meireles, as obras Homem Bomba, Urso e Anel Bomba não deixam espaço para a hesitação. A aparente singeleza de um boneco construído com fósforos é desmistificada com o seu acendimento. Tal como a inocência de um urso de pelúcia e a pólvora sendo transportada dentro de um anel podem ser um fator de perigo para o espectador mais afoito. É o projeto explosivo brasileiro tomando o lugar da inocência construtiva ou de uma geometria sensível que finalmente identifica limites em sua exploração. Estas situações ‘explosivas’ não interessam enquanto forma, organismo, mas como possibilidade, expectativa, imprevisibilidade. O dado principal destes trabalhos é o lúdico em conjunto com a ironia e um certo humor negro. A geometria passa a se tornar coisa, uma entidade material, mas aliada a uma perversidade. Sua escala não se restringe exclusivamente a uma projeção intelectual sobre o mun-do, um olhar intangível, mas remete-se direta e simultaneamente ao dado físico do sujeito que usufrui elementos tão corriqueiros quanto palitos de fósforos, estalinhos, anéis ou brinquedos. No caso de Barbosa, um aspecto ao qual os seus trabalhos colocam dizem respeito a sua construção. Nenhum deles foi obtido pela sobreposição de uma estrutura externa artificial, eles encontram sua “resultante” nos encaixes e conjunções que parecem se anunciar espontaneamente. A aparente precariedade destas estruturas acaba por dar continuidade, mesmo não sendo sua intenção primordial, a um deslocamento já anunciado pelas vanguardas construtivas brasileiras: a in-venção, como elemento simultâneo de apropriação e desapropriação de elementos, formas e técnicas corriqueiras do nosso

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dia-a-dia 5. É importante deixar claro que as obras abordadas neste artigo não seriam a primeira onda de um levante irônico dentro do panorama das artes visuais brasileiras no século XX, mas um conjunto significativo de trabalhos que aliaram uma identidade irônica (em alguns casos identificáveis por este autor como embates ao paradigmático projeto construtivo brasileiro) a uma perversidade, muitas vezes conjugada na pólvora, e por isso mesmo levada a limites extremos. A ironia e uma certa referência ao fim de um “projeto construtivo” presente tanto na aglomeração e orquestração dos materiais agregados ao boneco de Homem bomba quanto na sua queima, acabam permeando a ação, já que o “projeto explosivo” acaba tomando direções que não haviam sido problematizadas pelo artista: o lado irônico é acentuado no descontentamento da vizinha ao quintal em que é feita a explosão do boneco. A impaciência e a raiva com o estouro do boneco revelam uma situação tão desconfortável (e explosiva) quanto o próprio ato em si. Examinando espaços e processos de comunicação, as condições de espectador e autoria, o jogo de aparências de Barbosa põe em questão situações que vão da política a estratégias que re-pensam a questão da Ética na Arte. Isso não deve causar surpresa: é inerente ao processo artístico colocar em crise os dogmas, seja isso mediante sua simples manifestação ou através de ironia, de referências sarcásticas ou o grotesco. Acaba instaurando a relação arte-corpo como um contato direto entre emissor e receptor. É a instituição do aqui-agora. No espaço da Arte, o espectador não sabe o que vai ver e, mais do que isso, talvez nem esteja familiarizado com o tipo de manifestação a que assiste ou participa. Colocado o problema da recepção, vem o questionamento sobre a auto-suficiência da Arte e o papel do artista, que mesmo que produza para seu próprio prazer, está situado na estrutura de uma formação cultural que o obriga a pensar no consumo de sua obra. O estranhamento, o desconforto e o incômodo passam a ser uma intenção, um fim em determinadas obras do jogo contemporâneo da

5

Como o tecido nos Parangolés de Oiticica, a terra nos Bólides ou o alumínio

nos Bichos.

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arte. O espelho de si agora carece de vidro: o drama real é aquele que se desenvolve frente ao espectador, é esta a base de numerosos processos de transferência que causam a ruptura com a imagem prévia de si próprio que cada ser possui. A experiência acaba sendo o nó de articulação do sentido, a ação que se orienta à produção da obra e à contemplação das manifestações artísticas. Objeto estético, criação e percepção, ganham sentido e significação quando a experiência instaura a relação com o mundo e com os outros. “Não mais a obra de arte como instrumento de transmissão de mensagens, idéias ou essências; sim, comunicação: ação que vincula instaurando sentido e significação na expressão, no fenômeno” 6. Na obra de Barbosa, a idéia era criar um campo de objetos visualmente inocentes que na realidade mentiam sobre sua aparência visual; houve uma inversão da percepção normal. À medida que o espectador se aproxima destes objetos, ele descobre o indício do perigo. Chega o momento da decisão: afastar-se ou não? Deixar-se mergulhar nesta instância perigosa? Caso concorde, o espectador experimenta e entra em contato com um corpo em (de)composição incendiária. A periculosidade do objeto provoca no espectador uma reorganização de suas referências. Redefinições de seu próprio corpo a partir de elementos externos. Um espírito que faz do artista algo próximo à figura de um Tentador: assume o risco como elemento intrínseco ao seu trabalho.

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GÓMEZ, Diego Léon Arango. Experiência e Expressão Artísticas como

Fundamentos para uma Crítica da Arte em Merleau-Ponty. 1991. Tese (Dissertação em Filosofia) – Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 29.

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OS AUTORES ANA MAE TAVARES BASTOS BARBOSA Professora Titular aposentada da Universidade de São Paulo (ECA), continua atuando no Doutorado. Professora do Mestrado em Design da Universidade Anhembi Morumbi. Foi presidente da International Society of Education through Art (1990-1993) e Diretora do Museu de Arte Contemporânea da USP (1987-1993). Publicou 17 livros sobre Arte e Arte/Educação, sendo os últimos: O pós-modernismo (org. com Jacó Guinsburg, SP: Ed. Perspectiva, 2005); Alex Flemming (SP: EDUSP, 2002); John Dewey e o Ensino da Arte no Brasil (Cortez, 2001); Tópicos Utópicos (C/ARTE, 1998); Arte /Educação: leitura no subsolo (Cortez, 1997) e A imagem no ensino da Arte (Perspectiva, 1991). Recebeu o Grande Prêmio de Crítica da APCA (1989); Prêmio Edwin Ziegfeld (USA, 1992) e o Prêmio Internacional Herbert Read (1999), o Achievement Awards (USA, 2002) e o Mérito Científico na categoria de comendador do Ministério de Ciências e Tecnologia (Brasil, 2005). Fez curadoria de várias exposições inclusive de Christo, Barbara Kruger (MAC), Alex Flemming, no CCBB-SP. Ensinou em várias universidades estrangeiras, como Yale University e The Ohio State University. Integrou a Comissão Científica do Congresso Mundial da UNESCO sobre Arts Education, Portugal, 2006. Tem proferido palestras e publicado artigos em muitos países tais como: Uruguai, Argentina, Paraguai, Peru, Venezuela, Colômbia, Equador, México, Suécia, Holanda, Egito, Finlândia, Polônia, Costa Rica, Alemanha, Nigéria, Espanha, Portugal, França, Inglaterra, Filipinas, Itália, Canadá, Taiwan, Coréia, Japão e USA (em Harvard, Columbia University e Museum of Modern Art etc). E-mail: anamae@uol.com.br

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ERINALDO ALVES DO NASCIMENTO Doutor em Artes pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo; mestre em biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba e Professor do Departamento de Artes Visuais nessa mesma universidade. É assessor em políticas públicas de Gestão Curricular da Secretaria de Educação, Cultura e Esportes da Prefeitura Municipal de João Pessoa. E-mail: katiery@terra.com.br LÍVIA MARQUES CARVALHO Doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), Mestra em Bilbioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Especialista em Cultura AfroBrasileira pela UFPB e Graduada em Educação Artística, Habilitação em Artes Plásticas, pela UFPB. Professora Adjunta do Departamento de Artes Visuais da UFPB. Coordenadora da Pinacoteca da UFPB. Foi Coordenadora do Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB, de 1999 a 2001. Assessora das Oficinas de Artes da Casa Pequeno Davi, uma Organização Não-Governamental, atividade de extensão universitária, desde 1989. Autora de diversos artigos sobre ensino de arte, no âmbito Institucional e no Terceiro Setor em coletâneas e revistas especializadas. E-mail: lívia-mc@uol.com.br LANUSSI PASQUALI Nasceu em 1972 em Riozinho/ RS, trabalha com esculturas, objetos, instalações e intervenções. É graduada em Artes Visuais pela Feevale de Novo Hamburgo e mestre em Artes Visuais pelo PPGAV- EBAUFBA. Atualmente vive e trabalha em Salvador/ BA. E-mail: lanussi@terra.com.br 138


MARILEI FIORELLI Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia e Professora da Faculdade Integrada da Bahia. E-mail:marifiorelli@gmail.com

SICÍLIA CALADO FREITAS Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e graduada em Educação Artística, com Habilitação em Artes Plásticas, pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Professora assistente do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: siciliacalado@yahoo.com.br

ROBSON XAVIER DA COSTA Mestrando em História pelo PPGH (UFPB); Professor e Chefe do Departamento de Artes Visuais da UFPB; Especialista em Educação Especial (UFPB), Sociologia (UFPB), Arteterapia (POMAR – RJ) e Tecnologias da Informação e Comunicação (UFPB); Licenciado em Educação Artística com Habilitação em Artes Plásticas (UFPB); Artista Plástico e Arteterapeuta. E-mail: robsonxcosta@yahoo.com.br

LUCIANA SANTOS BRITO Aluna regular do Mestrado em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA. Graduada em Licenciatura em Desenho e Plástica pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Professora substituta da disciplina História da Arte I e II da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Coordenadora de Pós-Graduação em Arte e Educação da Faculdade Social da Bahia. Coordenadora do 139


QuantArte-Redimensionando o ensino de Arte na Bahia, da Universidade Federal da Bahia. Coordenadora do Curso de Extensão Arte Concepção e Historicidade – Fundamentos do Ensino da Arte, da Universidade Federal da Bahia. E-mail: luandart@pop.com.br

MARIA HELENA MAGALHÃES PACHECO Professora Assistente do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba, mestre em Artes pela Edinburgh College of Art / Escócia, graduada em Artes pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: mhelenamagalhaes@yahoo.com.br

FELIPE SCOVINO Doutorando em Estudos da História e Crítica de Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e curador da Associação Cultural “O Mundo de Lygia Clark”. E-mail: felipescovino@hotmail.com

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PUBLICAÇÃO

PARA

1. A revista “Intervenções: Artes Visuais em Debate” é uma publicação do Departamento de Artes Visuais do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba. Seu objetivo é a publicação de trabalhos acadêmicos originais e inéditos em português e espanhol sobre as questões das artes visuais e da imagem em períodos distintos da história diante da diversidade cultural do mundo contemporâneo. 2. Os originais, sobre a forma de artigos, ensaios, relatos de pesquisa, entrevistas, projetos e resenhas serão submetidos ao Conselho Editorial, responsável pela pertinência para publicação das colaborações encaminhadas, e/ou a pareceristas ad hoc. Os nomes destes serão mantidos em sigilo, bem como os nomes dos autores dos originais a serem avaliados serão omitidos aos pareceristas. O Conselho Editorial reserva-se o direito de propor modificações do tento, conforme a necessidade de adequá-lo ao padrão editorial e gráfico da publicação. 3. Os textos devem ter no máximo 20 páginas (artigos, ensaios, relatos de pesquisa, entrevistas e projetos), incluindo imagens, gráficos, referências bibliográficas e notas, e no máximo de 5 páginas, quando resenhas. 4. Os trabalhos devem ser precedidos de um resumo de 5 a 10 linhas e 3 a 5 palavras-chave, além do abstract (tradução do resumo e das palavras-chave para o Inglês, Espanhol ou Francês), digitados em corpo 11 e espaço simples. 5. As resenhas devem ter título próprio e diferente do título do trabalho resenhado. Devem ainda apresentar referências completas do trabalho resenhado. 6. Os textos deverão ser digitados no editor Microsoft Word, salvos no formato texto, com página no formato A4 (margem superior 4 cm, inferior 3,5 cm, esquerda 3 cm, direita 2 cm, cabeçalho 1,25 cm e rodapé 2,3 cm) em fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinhas simples e parágrafos justificados.

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7. A permissão para a reprodução de imagens é de inteira responsabilidade do(os) autor(res). As imagens deverão ser gravadas no formato tif ou jpg, com resolução mínima de 300 dpi. 8. O texto enviado para publicação deve ser acompanhado de uma biografia acadêmica do(a) autor(a) em, no máximo 5 linhas, digitadas em corpo 11, espaço simples. Também deve se fazer acompanhar do e-mail do autor e endereço completo, telefone e fax. 9. Os autores receberão 03 exemplares da revista quando seus artigos forem publicados. 10. As notas de rodapé devem ser suscitas e empregadas apenas para informações complementares, e não com a finalidade de apresentar referências bibliográficas das citações. 11. O texto, as citações e as referências devem seguir rigidamente as regras estabelecidas pela ABNT, de acordo com a resolução vigente. 12. Os originais devem ser enviados acompanhados de um termo de cessão de direitos de publicação do trabalho (duas vias) contendo a assinatura do autor(es) com firma reconhecida. 13. Os originais devem ser enviados por e-mail, mas também deverão ser encaminhados em três cópias impressas (duas delas não identificadas) e uma cópia em disquete ou CD-Rom, com etiqueta informando o nome do autor, nome do arquivo do texto e especificações complementares do programa usado. Para o seguinte endereço: UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS Intervenções: Artes Visuais em Debate A/C Prof. Robson Xavier da Costa Campus I, Cidade Universitária, S/N CEP – 58.059-900 João Pessoa – PB - Brasil Fone: (83) 3216 7002 E-mail: robsonxcosta@yahoo.com.br

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Esta obra foi impressa nas oficinas da Editora Universitรกria da UFPB

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