O cinema e seu testamento (2016, Rodrigo Almeida)

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O cinema e seu testamento Rodrigo Almeida


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O cinema e seu testamento

Rodrigo Almeida

1a edição Recife / Barcelona / Rio de Janeiro / Fortaleza 2016


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O cinema e seu testamento Rodrigo Almeida

Creative Commons (by-sa) Atribuição - Compartilhamento pela mesma licença Rodrigo Almeida, 2016

_____________________________________ Projeto Gráfico e Diagramação: Helena Lessa e Rodrigo Almeida Capa e ilustrações: Helena Lessa Revisão: Rodrigo Almeida Almeida, Rodrigo F. O cinema e seu testamento / Rodrigo Almeida Ferreira Recife: Velhos Hábitos Ed., 2016. ISBN 978-85-912753-1-1 183 páginas 1. Cinema. 2. Crítica. 3. Crônica.


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Esse livro foi originalmente selecionado pelo Edital 2014-16 Proext - Publicação de Livros na Temática Cinema e Audiovisual, da Universidade Federal de Pernambuco, com a promessa de ser lançado em formato impresso e digital. No entanto, passados dois anos da aprovação, devido uma série de impasses financeiros entre a Pró-reitoria de Extensão e a Editora Universitária, os selecionados ficaram sem qualquer previsão editorial. Assim, dadas as circunstâncias locais e nacionais e pela sincera vontade de fechar ciclos para abrir novos, decidi lançar a publicação de maneira independente.


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Imagens e sons como pessoas que se encontram ao longo de um caminho e nĂŁo podem mais se separar. ROBERT BRESSON


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Sumário

Prefácio . . . . . . 12 I Infância e outros medos . . . . 17 As lembranças e os frames . . . . 18 Desejo de ver . . . . . . 30 Sobre pais e perdas . . . . . Aprendizado e vingança . . . . O diabo está lá fora . . . . . Infância como revelação . . . . Duras e o fim . . . . . . Propagandas infantis . . . . . Ser adolescente para sempre . . . . Jurando de mindinho . . . .

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II Filmes de amor . . . . . 81 Intante, amor, depois . . . . 82


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Melancolia como método . . . . 88 Patologias da solidão . . . . . 96 A arte de enganar . . . . . 101 Fantasmagorias . . . . . 110 Difícil ser feliz . . . . . 117 Entre amores . . . . . . 120 III História, tempo, memória . . . 125 Mulheres na guerra . . . . . 126 Fantasia e história . . . . . 136 Imortalidade e inexistência . . . . 145 Mentira e sobrevivência . . . . 150 Histórias dentro da história . . . . 157 Escapismo e encenação . . . . 162 Espectros da narração . . . . 167 Coexistência e transmutação . . . 172 IV Dimensões da política . . . . 181 Godard e seu quarto . . . . . 182 O tempo como equivalente geral . . . 188 Os sonhos inacabados de Mildred Pierce . . 194 Colonialismo partilhado . . . . 209 Pelo desejo de fantasia no pós-colonialismo . 213 Jardim dos delinquentes . . . . 220


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Corpo em desacordo . . . . . 224 Filmes de arte para velhas senhoras de muito bom gosto 230 V Universos sensíveis . . . . 239 Metamorfoses . . . . . . 240 O tédio como experiência . . . . 248 Adeus, civilização . . . . . 251 Entre o enigma e a explicação . . . 256 Sequências e suas regras . . . . 262 Don’t fuck with the original! . . . 268 Psicanálise segundo Cronenberg . . . 275 Os outros . . . . . . 282 A obra inacabada . . . . . 289 Sobre o autor . . . . . 295


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Prefácio

Desde que comecei a escrever sobre cinema, a crítica se impôs como uma arte do encontro, do encontro fortuito, não agendado, o que traduz um caráter literário de crônica em praticamente todos os meus escritos, pois vou misturando quem sou num sentindo amplo com quem estava sendo num sentido efêmero para melhor entender dentro da cabeça o filme com o qual me deparei. Nunca me senti confortável nos braços da matemática das formas, jamais quis me instituir como cientista que coloca uma obra de arte no divã e a analisa clinicamente. Não costumo cultivar distâncias, nem dissimular enigmas. Se pudesse escolher uma dimensão, escolheria a do amante sempre confuso sobre a duração da noite de prazer, sem saber se o encontro continuará encontro por semanas, anos, décadas ou se, sendo o último, cessará em poucas horas. Não hesito: entrego-me, amo, invento e minto. No outro dia, se for o caso, visto a roupa e vou embora.


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O cinema e seu testamento funciona como um álbum de fotografias ainda não amareladas, como um quarto dos fundos onde escondemos as lembranças equivocadas, um baú cheio das tralhas que não conseguimos nos desfazer. Estão reunidos aqui ensaios sobre os mais distintos temas, escritos entre o final da graduação (2008) e o início do doutorado (2013) na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Cada qual encara o cinema mantendo como norte criativo a aproximação entre estética e experiência para melhor revelar um imaginário afetivo. Quando o médico trouxe os exames comprovando que só poderia enxergar através de lentes; quando encontrei uma caixa abarrotada de fitas VHS esquecidas da família, vislumbrei minha relação definitiva com o cinematógrafo, suas técnicas e seu mundo. As imagens (e sons) não apenas resgatam épocas distintas e criam um notável sentimento de nostalgia, como constituem elas mesmas uma espécie fundamental de memória. Assim, o esforço arqueológico do livro se baseia no resgate de um ímpeto literário dos escritos sobre cinema, flertando em particular com o gênero da crônica, desenlaçando um testamento crítico, íntimo e pessoal da minha relação com os filmes. O cinema e seu testamento está dividido em cinco partes. A primeira, Infância e outros medos, remonta o caminho das descobertas de amores e temores em diálogo com a sétima arte enquanto passagem para outros espaços, tempos e sensibilidades.


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Para tanto, debrucei-me sobre clássicos dos meus primevos anos ou produções cuja experiência da criança é colocada em primeiro plano. De maneira auto-explicativa, a segunda parte, Filmes de amor, apreende a força transversal do universo simbólico dos relacionamentos e das decepções, tocando em temas como traição, separação, melancolia e obsessão. Na terceira parte estão reunidos os ensaios sobre História, tempo, memória, conceitos caros em minha trajetória crítica e centrais na minha atual pesquisa acadêmica. Além do encontro de temporalidades e de suas consequências estéticas, investigo as maleáveis facetas mnemônicas e as estratégias narrativas paradoxais num diálogo com a historiografia. A partir de alternativas ao engajamento tradicional, chegamos ao quarto tópico, Dimensões da política, cujo princípio é não apenas esboçar formas menos convencionais do campo em questão, como ampliar ontologicamente a paleta de objetos políticos. Por fim, Universos sensíveis lança um olhar incisivo sobre as relações entre experiência e estética, seja do espectador, do personagem ou da própria narrativa, escavando também a rede metalinguística do sistema cinematográfico. Desse modo, O cinema e seu testamento se desvincula da vontade analítica rígida e tradicional, as citações estão diluídas nos textos de forma não acadêmica, muitas vezes lembradas sem uma indicação bibliográfica específica. Além disso,


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há uma primeira pessoa muita clara enunciando o discurso ao longo de todo livro, como é de se esperar de uma proposta literária. Trata-se de um ponto de partida que materializa posturas poéticas alternativas no campo da reflexão e da proposição, responsável por perturbar a estabilidade e certeza dos sentidos. O testamento representado por essa publicação nasce do meu encontro com o cinema, mas só se realiza quando dois universos apartados, o diegético e o extradiegético, fundem-se através da crítica, gerando um espaço imantado em potencial. No mais, desejo a todos uma boa leitura.

Rodrigo Almeida Recife, junho de 2014


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I Infância e outros medos


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As lembranças e os frames

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uando tentamos resgatar nossas lembranças mais antigas

entre o mofo e o abandono, quando decidimos pelos primeiros acontecimentos que incorporamos como experiência de vida, entramos no terreno profundo do rememorar enquanto processo de torção e distorção do passado, escavando um espaço mnemônico que alinha num mesmo plano um naturalismo reconquistado e uma fantasia exagerada. Seguindo essa trilha obscura, uma das encruzilhadas infantis que melhor perduraram na minha memória, entre uma sessão da tarde e uma ronda noturna, baseava-se no preceito de que as aranhas, as malditas aranhas, nunca simpatizaram ou simpatizariam comigo. Quando pequeno, com sete ou oito anos, estava brincando em casa, numa espécie de quintal lateral longuíssimo, cuja largura não passava de um metro e meio de distância entre a nossa janela e o


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muro da vizinha. De repente, resolvi dar um susto na “menina” passando roupa lá trás, mas não demorou muito até ela me notar, só que no lugar do típico “menino, deixa da tua besteira, deixa de ser donzelo, estou te vendo”, soltou um abismado “Rodrigo, o que é isso preto atrás de você?”.

Havia um horror singular em sua voz, seu rosto pare-

cia anestesiado e quando me virei meio sorrindo, um tanto traquino, estava face-to-face com maior aranha que já vi na vida. Na lembrança, hoje já submetida a altas doses de ficção, tenho a impressão de ter visto aquele mar de olhos horrorosos em superclose tal qual em Aracnofobia (EUA, 1990), filme dirigido por Frank Marshall e clássico entre os que saíram da adolescência no início dos anos 2000. Se não bastasse, desde então, secretamente roubei uma lembrança do médico interpretado pelo Jeff Daniels e passei muito tempo contando, como para justificar meu trauma, que antes mesmo deste episódio, havia existido outro, quando eu tinha apenas dois anos: uma aranha tinha subido no meu berço, andado pela minha perna; mesmo sendo muito pequeno para lembrar, contava que podia reviver a sensação de paralisia completa, até que ela passou pela minha barriga com aquelas oito patas repugnantes e, enfim, alcançou o meu rosto. Pois é, o histórico da


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minha fobia – que continua firme e forte até hoje – se confunde com as próprias imagens da produção cinematográfica.

De qualquer forma, voltando ao acontecimento, a se-

quência foi de uma completa histeria familiar: eu saí correndo gritando pela minha mãe, a menina se trancou no quarto, minha irmã olhou e se trancou no dela; minha mãe fez a mesma coisa, mas ficou acompanhando tudo pela janela de vidro com o ar condicionado ligado. Não lembro bem do meu pai, devia estar viajando pra variar, sei lá, mas se tem uma coisa, batata, que assusta uma criança é o absoluto medo estampado no rosto de seu núcleo familiar. Nossa esperança era o meu irmão mais velho: surfista, metido a machão, ficou um tanto receoso ao ver o tamanho da aranha, ainda assim pegou uma vassoura, amarrou no cabo de um rodo velho e da janela do quarto dele no primeiro andar, ou seja, numa distância considerável, deu uma porrada na maldita. Ela pulou – minha espinha congela só de pensar no pulo de uma aranha e Aracnofobia está inundado de pulos – e saiu do nosso campo de visão, despertando pânico em todos que assistiam a cena por suas janelas. O remendo soltou, a vassoura caiu, o meu irmão fechou a janela do quarto dele e também ligou o ar condicionado. Todos estávamos isolados.


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Foi nessa situação, com minha família trancafiada e re-

fém, que surgiu a minha fobia irreversível por aranhas, algo que até já tentei remediar com contatos graduais e abastecendome de informações, procedimentos sem sucesso algum. A história terminou com a minha mãe telefonando para “a vizinha que adora bicho” - uma vez, ela chegou do trabalho trazendo um cavalo branco que encontrou sozinho na rua, para matar, tanger, dar um jeito na situação, “afinal a culpa era dela por ter um pé de carambola em casa” (?). Ela deu fim, não antes de vermos a aranha pulando loucamente, soltando as pernas e os pêlos como forma de defesa. Mesmo dentro do quarto, comecei a alimentar o receio de que alguma coisa poderia estar ali comigo, embaixo da cama, dentro de um sapato, atrás de um jarro, passeando no lado invertido da cortina. Os cantos escuros não eram mais os mesmos; é como se o repertório de cenas de suspense de Aracnofobia tivesse sido introjetado automaticamente no meu imaginário, quase como se fosse meu destino vivenciar tais situações uma a uma dali para frente. No final, todos nos reunimos para observar o corpo do monstro queimando na calçada.

Segunda história: anos depois, final da adolescência,

estava com alguns amigos num sítio em Bezerros (cidade antes de Caruaru). Basicamente, iríamos passar o dia bebendo, con-


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tando as vantagens típicas da masculinidade juvenil e tomando banho de açude. Logo quando chegamos, passamos numa cabana abandonada, onde o caseiro costumava guardar todas as tralhas e enquanto meus amigos exploravam o lugar bem aventureiros, fiquei na porta só olhando, “fazendo a segurança caso alguém aparecesse”. Sabia eu que aquele lugar era a típica casa de aranha, arrepios alertavam, frames alertavam, especialmente porque lembrava o galpão onde vivia a aranha-rainha de Aracnofobia. Aliás, o filme me ensinou não sobre as belezas do campo ou do interior – seja o espaço rural, seja o ambiente interno de uma casa –, não sobre o sentimento bucólico da arcádia lálálá, mas sobre como são espaços de alteridade e perigo. A fobia, portanto, controla a forma como a pessoa entra e se porta em determinadas áreas fechadas, colocando-a em vigília permanente quando está isolada, olhando para todas as diagonais, captando o risco das aranhas aparecerem. O absurdo diegético se reverte em pragmatismo cotidiano.

Nessa época, entre os dezesseis e dezessete, alguns ami-

gos já tinham ouvido que meu temor infantil supremo era acordar morto dissecado com uma aranha saindo da boca – outra imagem do filme – mas decerto ninguém tinha presenciado diretamente um ataque de pânico. Também fiquei na porta


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porque odeio todos os insetos, aracnídeos e derivados; sou desses que assustam até borboletas quando ninguém está olhando. Apenas queria evitar qualquer atitude exagerada. Só sei que eles encontraram uma jangada. Carregamos até o açude. Meia hora depois, todo mundo nadando, resolvo deitar na embarcação sozinho para pegar sol. Daí fiquei virando, revirando, embolando, quando senti alguma coisa grudada no meu peito e mais uma vez estava face-to-face com uma aranha peluda: se tem um detalhe que torna Aracnofobia mais assustador é que o filme carrega uma proporcionalidade condizente, o medo não está no tamanho das aranhas, mas no fato delas serem do tamanho das aranhas do mundo, de em sua pequeneza e proximidade com nosso rosto esconderem a morte.

Além disso, não foram utilizadas aranhas de mentira

como os filmes seguintes com aranhas-vilãs viriam a fazer; as pequenas foram trazidas da Nova Zelândia, consideradas inofensivas apesar da agressividade; já a tarântula grandona gerou problemas por conta de sua mordida dolorosa, até usaram um pequeno protótipo em algumas cenas. Ambas as espécies foram manipuladas pelo entomologista Steven Kutcher, que tem no seu currículo vários filmes como “coordenador de insetos”. Desculpa a profissão, mas só consigo pensar no diálogo entre o


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fotógrafo e o cientista no começo do filme: – Qual a sua especialidade? – Viajo o mundo cartografando a existência de novas espécies de insetos. – Você não acha que o mundo já tem insetos o bastante? Deixa que eu mesmo respondo: Sim, o mundo já tem insetos o bastante. Na lembrança mais uma vez mergulhada na ficção, a aranha no meu peito dava dois passos em direção ao meu rosto, como quem se prepara para atacar, só que consegui ser mais rápido, dei um tapa nela e pulei da jangada.

Enquanto nadava como se estivesse fugindo de um tuba-

rão, só conseguia pensar no que mais me transtorna numa aranha, sua forma de locomoção e suas patas: dois membros, ok; quatro membros, ok; a partir de seis já começa a virar bagunça, oito é certeza de desespero. Quando pisei nas margens, fiquei me coçando, batendo-me, igualzinho ao Jeff Daniels, como se o simples toque aracnídeo fosse capaz de materializar o medo hiperbólico, fazendo brotar filhotes de dentro do meu corpo, eles depois andariam embaixo da minha pele; sentia como se estivesse marcado pelo cheiro, como se ela pudesse voltar a qualquer momento e já soubesse quem deveria matar primeiro. Toda folha levada pelo vento era um susto. Depois, mostraramme a aranha morta, comentaram que ela já estava seca desde o início, ficaram me obrigando a ver a peçonhenta como terapia –


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idêntico a como a mulher tenta fazer com o marido e óbvio que não funciona, especialmente porque as pessoas não entendem que o medo em jogo na fobia é irracional. Você tem um dado real que é a existência do bicho, mas acredita em coisas absurdas num contexto de perigo conscientemente desproporcional - que a aranha está se fingindo de morta, que é o bicho mais perigoso da terra - e é justamente ciente dessa dimensão que o filme Aracnofobia fundamenta sua atmosfera de thriller.

Terceira e última história: estava na casa de um amigo

na praia de Ponta de Pedra, com um monte de estudantes do curso de Biologia, desses que ficam andando e falando o nome científico de cada planta, inseto e o raio que os parta que se mova. Daí em algum começo de noite, todos foram para a praia e eu fiquei com mais quatro pessoas dentro da casa, duas biólogas e dois namorados de quaisquer outros campos de conhecimento. Claro que tratando-se da temática em questão não demorou muito até eu notar a presença de uma aranha enorme num canto escondido. Soltei o grito, os quatro correram para a sala, um dos namorados avistou, esbugalhou os olhos e se trancou no banheiro enquanto o outro arrumou uma distância segura e passou a observar tudo da cozinha. Havia no meio do pavor um certo prazer meu em


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ver aqueles homens correndo. As duas biólogas, por sua vez, ficaram ao meu lado sugerindo deixar a aranha lá, “que se não mexêssemos, o bicho não iria nos incomodar”. Eu olhava para elas desejando em silêncio tamanha inocência.

Dizem que as razões históricas da aracnofobia, con-

firmada como um temor mais ligado à cultura ocidental que oriental, provêm de um surto chamado tarantismo que se alastrou pela Europa entre os séculos XV e XVII e cuja culpa foi atribuída a uma espécie de aranha. No folclore, a cura da enfermidade só era possível com sessões de quatro ou mais horas ininterruptas de dança, semelhantes a estafa física de quando nós, aracnofóbicos, somos tocados pela tinhosa. Seja como for, mais uma vez, comecei meu transtorno de ansiedade defendendo em voz alta, voz maníaca, que era uma questão de ‘ela ou nós’, que se deixássemos a aranha viva, certamente seríamos mortos. O fato é que nunca no mundo conseguiria dormir com aquela presença. Como ninguém quis tomar a atitude, peguei uma vassoura e tentei acertá-la. A aranha pulou, caminhou daquela maneira asquerosa de caminhar, as duas garotas logo sumiram, eu fiquei louco, ofegante, bem caçador em busca de sua presa até que a maldita se escondeu atrás da mesa de pingue-pongue encostada na parede. Só


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mantinha a certeza que seria capaz de conseguir atingir meu objetivo por lembrar que Jeff Daniels também conseguira matar a aranha no final, ainda que tenha precisado bater, tocar fogo e atirar para ela finalmente morrer. Eu só tinha uma vassoura e seguiria adiante.

Foi assim que nasceu um dos maiores duelos de meus

dias: a aranha estava num ponto que não conseguia alcançar com a vassoura e se eu fosse arrastar a mesa de pingue-pongue teria que usar as duas mãos e soltar a minha arma, ou seja, ficar completamente vulnerável. Sobe trilha de Ennio Morricone de batalhas no velho oeste. Ao menos, confesso que sou desses que, por conta do filme Aracnofobia, deixou de temer as imagens das aranhas nas telas, criando em meio a espasmos incontroláveis um certo fascínio seguro, protegido pela posição de espectador, enquanto consumia vídeos como aranha vs escorpião; aranha vs vespa; chuva de aranhas; aranha mata rato. Só que diante de uma viva, a dimensão era outra: tentei empurrar a mesa com uma mão enquanto ficava com a vassoura na outra, a aranha correu para cima de mim, eu soltei a mesa, nem lembro se caiu de um lado ou do outro, mas, finalmente, consegui dar o golpe fatal na minha inimiga. Claro que não só um, dei vários, dei todos, mesmo vendo ela morta,


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continuava a bater só para não ter chance alguma dela voltar. Mineirinho, treze tiros. Definitivamente estava ali tentando matar uma coisa que não conseguia tirar de dentro de mim mesmo. Meu próprio medo.

Prontifiquei-me de arrumar uma pá, levei o cadáver

para fora no intuito de tocar fogo nele, como não consegui arrumar álcool, decidi que ia jogar bem longe, havia algo dentro de mim temendo que surgissem outras clamando por vingança. Foi durante esse acesso de loucura, contam que a loucura é a forma mais forte de sofrimento, que chegou a horda de biólogos, em dois segundos virei o judas recriminado, tinha gente estranha com lágrimas nos olhos, “a pobre da aranha era um espécime raro”, “você devia ter tangido para longe”, “blá blá blá, blá blá blá”. Meus argumentos eram tão absurdos que tenho certa vergonha de lembrar, mas era no nível “não podia deixá-la viver, ela já tinha MARCADO a minha cara”. Pois é, nem sempre é preciso escrever exatamente sobre o filme para refletir o filme, o desespero continua, talvez tenha deixado a crítica, o ensaio e a crônica de lado para investir num relato terapêutico. Os frames seguem se confundindo com as lembranças, os ímpetos absolutamente irracionais ganham linhas de racionalização e a única parte boa de todo esse per-


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curso é que, pelo bem ou pelo mal, ainda sou capaz de experimentar até hoje a mesma dimensão do medo que costumamos deixar para trás, mofado, escondido ou abandonado embaixo de algum travesseiro infantil. (dezembro, 2011)


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Desejo de ver

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inda que a ênfase não sirva ao empenho, vale a pena

arriscar. Quando estava nos trâmites finais da minha dissertação de mestrado, naqueles últimos suspiros da introdução, cerrando os vícios de linguagem, decidindo epígrafe e derivados, terminei por traçar uma dedicatória ao meu pai, basicamente agradecendo por ele ter patrocinado minha vasta coleção de dinossauros de plástico durante a infância e por, atendendo aos meus melindrosos pedidos, ter me levado à estreia de Jurassic Park (EUA, 1993), de Steven Spielberg, aos meus oito anos, conseguindo ingressos mesmo quando o bilheteiro tinha nos avisado que a sala estava lotada. Aliás, onde se lê “atendendo aos meus melindrosos pedidos”, favor corrigir para “depois de me jogar no chão rodopiando e gritando”. Tinha ido ao cinema duas ou três outras vezes antes, numa


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delas inclusive para assistir uma comédia péssima com Whoopi Goldberg no Cinema São Luiz, passeio proposto pelo meu pai mais para andarmos pelo centro da cidade, conhecermos o cinema, menos pelo filme.

O caso é que o blockbuster dirigido por Spielberg, o

primeiro a articular de forma estratégica um lançamento simultâneo a nível mundial em cidades grandes e periféricas, foi definitivamente o primeiro filme que desejei ver no cinema, e não apenas ver, ver na estreia, e não importava apenas a estreia, importava acumular durante os meses anteriores e posteriores o máximo possível de recortes de jornais e revistas com futilidades e curiosidades sobre a produção. Havia uma cultura cinéfila nascendo ali e talvez tenha lido minha primeira crítica enquanto um leitor de crítica nessa época, ao mesmo tempo em que esboçava um plano pueril no intuito de me tornar um famoso paleontólogo. O cinema era um espaço peculiar de desejo.

Eu sei que os mais velhos vão insistir que tudo isso foi

resultado de uma manipulação midiática que proliferava por todos os campos do consumo, das tatuagens de chicletes aos dinossauros de shopping, mas fui dos que entrou de cabeça no oba-oba dos dinossauros. Como meu pai vivia viajando, esta-


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beleci como regra básica para não virar um filho traumatizado sem presença paterna, a condição dele trazer permanentemente a cada volta um modelo de plástico para mim. Nem precisava ser articulado, nem nada e, no final das contas, eu tinha uma bela coleção. Além disso, ele patrocinou a compra da coleção completa da revista “Dinossauros”, que vinha com um T-rex para montar e com pastas de couro para guardar as edições. Lia e relia dezenas de vezes, promovia dentro do meu quarto, só para mim mesmo, pequenas feiras de ciências, organizadas a partir das seções ou dos perfis dos dinossauros, separando, por exemplo, todos os carnívoros até 3 metros num dia, os de 3 a 9 no outro dia e no fim de semana, os que tinham mais de 9 metros de comprimento. Resumindo: eu era fascinado pelos animais pré-históricos e Jurassic Park, antes de um dos melhores filmes de aventura e suspense de todos os tempos, era a materialização do desejo de vê-los.

Aos oito anos, ainda havia em minha mente uma ca-

mada indiscernível entre o estatuto da fantasia e da realidade, de modo que quando entrei na sala de cinema para assistir ao filme, carregava comigo a sensação de que os acontecimentos da tela poderiam um dia se tornar verdade. A experiência do sonho e o sonho da experiência pareciam convergir. Pela


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primeira vez, havia nas criaturas uma sofisticada leitura de comportamento e textura animal tal qual imaginava em meus protodelírios de pesquisa acompanhado de minhas revistas. Spielberg deu um tiro certeiro bem na minha cara, seu filme tem uma inegável capacidade de projeção para os que detestavam a antropomorfização presente no desenho Em Busca do Vale Encantado e em Família Dinossauro. Via como uma falta de respeito essa transformação de dinossauros tão incríveis em fofurinhas infantis ou chatas famílias norte-americanas - e, claro, ainda não entendia as ácidas críticas da série. Em Jurassic Park, os animais tinham um volume nunca antes demonstrado – e até hoje me parece um paradigma ainda inatingível em termos de efeitos especiais, inclusive se considerarmos as continuações. No original, atores e criaturas comungavam da mesma aparência, de serem feitos de carne e osso, de possuírem um senso absurdo de movimento. De tal maneira que sentia a respiração da triceratops doente, o cheiro de sua bosta, a grandiosidade respeitável dos brachiosaurus. Gelava com as pisadas do T-rex na famosa sequência do copo d’água e da lanterna no olho, delirava com a manada de gallimimus correndo como num balé de aves, noiava porque o dilophosaurus não era nada venenoso. Eu, literalmen-


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te, segurava as lágrimas quando as unhas dos velociraptors (que pelo tamanho, na realidade, eram Deinonychus) batiam com uma regularidade terrível no chão da cozinha.

Jurassic Park era o filme que mais queria “viver”, seja

como paleontólogo enjoado, como lunático falando sobre a teoria do caos, seja como dono do parque ou como a criança que, de fato, era. Falar que o amor pelos dinossauros não passava de cooptação de um campanha de marketing bem construída é muito pouco, um tanto raso. Isso porque ao final da sessão, se primeiro não conseguia conceber que todas aquelas imagens tinham surgido por causa de um mosquito recolhido num âmbar, esperançoso que logo encontrassem esses mosquitos, conseguia ainda menos me conformar com a finitude das mesmas imagens. Caminhando até a parada de ônibus ao lado do meu pai, falando, falando, falando, passei meses falando, mantinha a certeza que aquela experiência estaria impressa na minha cabeça em definitivo, atravessando o mundo real que eu, infelizmente, voltaria a habitar. (janeiro, 2012)


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Sobre pais e perdas

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esde a primeira vez que escutei falar sobre Enchente (EUA

/ Austrália, 1993), de Chris Thomson, minha apreensão costumava ganhar contornos épicos logo que a propaganda soturnamente reforçava o título, Quem Salvará Nossos Filhos?, como se o locutor estivesse me interpelando, enquanto espectador -operação-de-resgate, a acalentar e compartilhar o luto com pais, mães, irmãos, sobreviventes e familiares desesperados, cada qual trincado entre a esperança, a falta de informação e o golpe de misericórdia. Decerto, toda a narrativa trágica de um grupo de crianças evangélicas num ônibus atingido pela fúria de um rio, depois de uma noite de tempestade, com os inúmeros infantes arrastados pelas águas, tentando se agarrar às árvores, galhos e troncos, circunscreve a condição do ser humano em sua luta primária pela sobrevivência. Também


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tece um limite sobre seus corpos infantojuvenis, um rumo que os leva à desistência, numa situação solidária e poética, associada ao sentimento avassalador de que todos precisam cuidar de todos, os mais velhos dos mais novos, os mais fortes dos mais debilitados. Como um bom herege desde pequeno e por ser “uma obra baseada em fatos reais”, acolhia-me na tranquilidade mórbida de que, ao menos, a fúria da natureza e a crueldade dos homens não faria diferença entre crentes e descrentes. Todos estavam condenados, afinal.

O filme foi provavelmente uma das minhas primei-

ras experiências com a estética caseira incorporada em meio às “imagens de cinema” (ainda que imagens de televisão), emulando a “compaixão sensacionalista” do telejornalismo, algo que no caso de Enchente – Quem Salvará Nossos Filhos se concretiza numa combinação muito estranha de heroísmo e culpa (muita culpa!). O caráter híbrido da produção audiovisual remetia-me diretamente, talvez por um critério apenas cronológico, às reportagens sobre a Guerra Civil Iugoslava (1991-2001): se na Guerra do Golfo tudo era distante, tudo era videogame; nos Balcãs víamos os jornalistas no meio das batalhas, pessoas sendo atingidas na frente das telas, os câmeras fugindo das balas, um som insuportável de explosões, algo que finalmente


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abriu meus olhos para o verdadeiro aspecto de um conflito bélico. Fora isso, havia o dado que a história era inspirada numa tragédia ocorrida no Texas apenas seis anos antes, isto é, sobreviventes e familiares seguramente foram submetidos a uma segunda vivência do horror e o filme de Thomson aposta nessa aproximação estratégica: começa com cenas de filmagens caseiras, dos pais se despedindo de seus filhos antes de partirem para o acampamento, alguns deles abraçando suas crias pela última vez, como se estivessem ali, diante de nossos olhos e dos próprios olhos deles (olhos ficcionais e olhos reais), talhando epitáfios involuntários.

O instinto de sobrevivência dos jovens se infiltra em

nosso instinto de espectador, de forma que o processo de identificação se divide em dois caminhos. O primeiro é o próprio caráter de tragédia que está em jogo, da força das águas carregarem uma grandiloqüência tal que quando o resgate se inicia, reconhecemos o mesmo frio na barriga das tragédias reais (que sempre são em devir as nossas próprias tragédias). Enchente ao lado de O Resgate de Jéssica nos ensinou a intensidade do gênero, de como os filmes-catástrofe podiam ser feitos com baixo orçamento, mantendo a dimensão do fim irrecuperável como um punctum vertiginoso. O segundo caminho não


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é bem uma empatia que desenvolvemos pelas personagens em si, afinal acompanhamos apenas o último dia de comunhão no acampamento, as apresentações são bastante breves, mas ainda assim logo somos enlaçados pela ternura presente nas relações de amizade ou familiaridade que possuem. Por isso, o filme nos causa tanta dor: o tempo todo ouvimos notícias de que alguém morreu, mas esse recebimento ganha um patamar pessoal, próximo, íntimo, absolutamente diferente de Independence Day ou 2012 em que um, dois ou dez milhões de mortos não fazem a mínima diferença.

Durante uma passagem da primeira temporada da série

norte-americana Six Feet Under, uma personagem, num diálogo sem grandes pretensões, comenta que quando você perde um cônjuge, se torna viúvo ou viúva, quando é criança e perde o pai, se torna órfão de pai, quando é criança e perde a mãe, órfão de mãe, mas quando você perde um filho, a dor é tão terrível que não existe um nome. Enchente é a prova dessa dor, que se torna ainda mais impactante porque acompanha essa “dura espera por informações” por parte dos pais, esse limbo de não saberem se seus rebentos estão vivos ou mortos, alternando com imagens das crianças a todo custo tentando sobreviver. Quando chegam alguns resgatados pelo helicóptero, as mães


I Infância e outros medos

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daquele condado rural conservador olham apreensivas, apertando os braços de seus maridos, torneando uma tensão que faz do som das hélices uma marca permanente do encontro ou da decepção: “até o fim da minha vida, esse som vai estar no meu coração”. Enquanto famílias se reencontram, outras passam a encorpar uma inveja incontrolável, quase como se a felicidade alheia tornasse o contexto mais terrível, num pressuposto de que “quanto mais sobreviventes da deles, menos sobreviventes da minha”.

O organograma de personagens e tramas firma a tradi-

cional diversidade arquetípica dos adolescentes. Temos o irmão mais velho que cuida das irmãs mais novas; ele sobrevive, mas as garotas não; quando chega ao hospital que está recebendo os vitimados, ainda busca suas irmãs, no entanto, o que encontra é um olhar de culpa e severidade do seu pai. Temos o malandro que quebra o coração das garotas apaixonadas, mas no meio do cataclisma, sacrifica acintosamente a própria vida para salvar o amigo que estava com a perna quebrada. Entre sacrifícios e despedidas, a narrativa inteira é permeada por frases desesperadas, conversas sobre a morte ou recados para além-vida: “a gente te salva”; “se eu não me salvar, o que vai dizer aos meus pais?”; “a gente vai morrer”; “alguém nos ajude”; “fala para


Sobre pais e perdas

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minha mãe e para meu pai que encontro eles lá no céu”; “ela não vai se salvar, ela é muito pequena”; “se não fosse por você, eu estaria morta”, “a culpa não foi sua”, “elas não conseguiram se salvar”. Fica a imensa sensação de perda, um vazio definido por uma melancólica mãe: “com filhos você está sempre na expectativa de alguma coisa. Você carrega ela por nove meses e fica louca para que nasça logo. Quando dizem ‘mamãe’ pela primeira vez, você quase desmaia. Lembra quando ela começou a engatinhar? E andar? E pedalar? Sempre pedindo mais. Eu quero voltar. Eu quero sentar ao lado do berço das minhas filhas e olhá-las dormir. Tem um cheiro tão bom. Tonya era tão pequena. Deus queira que não tenha sofrido”. (janeiro, 2012)


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Aprendizado e vingança

A

o lado de Colheita Maldita, A Fortaleza (Austrália, 1986),

de Arch Nicholson foi responsável por alguns dos momentos mais angustiantes da minha – e não só da minha – infância, exercendo sua função precisa na composição diária de pesadelos. Ambos, cada qual ao seu modo, deslocam a ingenuidade das crianças para um campo sombrio, não enquanto medo do desconhecido ou da perda, não apenas como ameaça ao universo pueril que se mantém acuado como fonte de esperanças, mas no sentido de pensar esse próprio universo como produtor de maldade e vingança. Foi a partir das duas produções – junto a Anjo Malvado, talvez – que me dei conta que as crianças não estavam tão isoladas da crueldade do mundo dos homens, que também éramos capazes de matar, esboçar nossa própria coletânea disjuntiva de códigos e normas, que nosso egoís-


Aprendizado e vingança

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mo e crueldade poderiam gerar impactos forçosos. Por algum tempo, temi a descoberta dessa espécie de poder em minhas mãos, não chamava de maldade, quiçá “pequenas travessuras”, enganando o sentimento de liberdade pela perversão que se aprofundaria durante a leitura de O Senhor das Moscas. Distante de qualquer processo civilizatório, a reinvenção moral da sociedade num grupo composto exclusivamente por crianças fazia brilhar meus olhinhos.

A sinopse de A Fortaleza é bem simples: imaginem a no-

vela Carrossel, só que ao invés do lenga-lenga habitual entre Cirilo e Maria Joaquina, imaginem a professora Helena e a turma de alunos em idades diferentes – possivelmente por serem a única turma do condado – sendo sequestrados por quatro homens armados com escopetas, cada qual usando sua respectiva máscara de animação de festinhas de aniversário: papai noel, gato, rato e pato. A atmosfera é desenhada pela forma como surgem sorrateiros no pátio da escola, pelo tratamento cuidadosamente opressor com suas vítimas. A professora bem boazinha diz “crianças, vamos cantar” e papai noel bota a arma na cara dela gritando “cala boca” (e o tempo todo eles mandam ela calar a boca), de maneira que tudo aparece cercado de uma eloquente agressividade associada a impossibilidade de fuga.


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Sentimento reforçado pelos olhares por orifícios mínimos em busca de espaços livres, seja através de um buraco no chão do furgão, seja por meio de uma fresta na caverna. O lá fora vai pouco a pouco convertendo-se numa utopia.

No caminho para o cativeiro, o roteiro revela logo o tom

acima do habitual para o Cinema em Casa do SBT (que tradicionalmente já tinha uma tolerância maior em relação à Sessão da Tarde): os sequestradores sugerem que vão estuprar a professora; depois comentam que tem uma aluna “já crescida que daria uma boa diversão”; por fim, ameaçam matar o menor e mais fofo dos meninos, caso outro que havia fugido não voltasse ao veículo. A violência é sugerida em camadas sobrepostas, trabalhando em cima do instinto de sobrevivência como necessidade primordial do ser humano, do ser humano enquanto animal, testando a flexibilidade de nossos padrões morais. O diretor Arch Nicholson esboça uma situação-limite em que crianças boas “por natureza”, após serem submetidas a uma experiência traumática, apreendem razões comportamentais plausíveis que as levam a agir tal qual – ou até pior que – seus próprios algozes. Não por acaso uma das taglines de A Fortaleza é “for one teacher and nine children, the lesson of the day is kill or be killed”, ressaltando o ímpeto de que somos capazes de qualquer atitude diante de uma ameaça iminente.


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Aliás, os filmes-catástrofe-acho-que-todos-vão-mor-

rer tendem em maior ou menor medida trabalhar com essa premissa. Lembro da cena de A Guerra dos Mundos em que o protagonista, para proteger sua filha das neuras alheias, assassina friamente um homem enlouquecido que havia perdido a família; em O Tempo do Lobo, uma criança aos prantos, desesperada, tenta se arremessar numa fogueira de chamas enormes, acreditando piamente que seu sacrifício salvaria sua mãe, sua irmã e o restante dos refugiados. No caso da produção australiana, do momento em que os jovens conseguem produzir fogo até o ponto em que precisam atravessar um lago por uma passagem subterrânea, quando uma das alunas se desespera, agarra no pescoço da professora e quase as duas se afogam; o fio condutor se apóia numa vontade tão intensa de viver, sobreviver, que revela todo desespero que nos acomete diante do semblante do fim. Em dada altura, os jovens conseguem escapar temporariamente e o filme saca um falso ponto de virada “estamos salvos” ao chegarem numa residência para pedir ajuda. Contudo, logo percebemos a presença dos mascarados e, mais uma vez, a violência determina o caminho narrativo: antes de deixarem o local, o Papai Noel simplesmente executa o velhinho dono da re-


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sidência na frente dos infantes, a bala atravessa o corpo e estoura um aquário enorme ao fundo. Nessa época, eu nem sabia quem era Michael Haneke.

O maior significante de violência do filme, no entan-

to, está num detalhe cenográfico associado a uma preocupação formal dos enquadramentos: praticamente passamos os 85 minutos sem ver o rosto dos sequestradores! Mesmo quando eles retiram as máscaras na parte final, a câmera os filma de costas, evita a face diretamente, distancia-se, despertando o incômodo de que caso desaparecessem, eles poderiam cometer novos crimes e não serem reconhecidos. Um terror que coloca os jovens no dilema de precisarem resolver esse embate, pois assim como em De olhos bem Fechados ou na própria história real ocorrida em 1972 e repetida em 1977, eles entendem as desvantagens de não usarem máscaras quando estão sob o domínio de mascarados. Preenchidos pela lição de matar ou morrer, as crianças se rebelam, comportam-se como caçadoras / guerreiras tribais, resgatando por meio dos ancestrais que habitaram o espaço neolítico da caverna, um primitivo instinto de sobrevivência. Mostram-se preparados para medidas extremas e tenho de concordar que o filme possui – mais uma vez junto a Anjo Malvado, por razões diferentes – o fim mais chocante


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de todas as produções vistas na infância: depois de montarem dezenas de armadilhas, finalmente há o confronto entre o seqüestrador chefe, o Papai Noel, e os sequestrados, mas quando a luta se inicia, a sequência é interrompida.

O corte nos leva de volta ao pátio da escola do início,

onde a professora lê uma fábula para as crianças. “O troféu da coragem dos guerreiros”, mostra uma imagem do livro e continua “um troféu arrancado dos ombros do monstro”. Logo chegam dois policiais, o clima fica tenso, um travelling passeia pelos temíveis rostos angelicais dos pequenos. A professora é, então, interrogada isoladamente na sala de aula. As autoridades encontraram o último corpo, mas o legista apontou anomalias, porque determinados ferimentos não condiziam com os depoimentos: os ferimentos não poderiam ter sido feitos por animais. “O corpo parece ter sido mutilado”. Corta para a entrada da caverna, professora e alunos enfiam dezenas de lanças no corpo do sequestrador, jogam pedras, batem martelos, pintam seus próprios rostos com o sangue de sua vítima também ensangüentada. Volta para a sala, as crianças se aproximam, pegam suas lanças, observam incisivas. Os policias sentem o clima e resolvem ir embora. O filme termina com a professora liberando mais cedo, depois de um dos garotos pregar uma peça


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usando a máscara do Papai Noel. A câmera se despede focando em alguns bichos no formol, onde numa das garrafas há algo semelhante a um coração humano. “Nós também temos um troféu”, diz uma das crianças numa voz dublada medonha e, em meio aquele nó na garganta, aprendemos que “a moral da história” pode ter um significado bem diferente. (dezembro, 2011)


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O diabo está lá fora

N

os inexatos minutos que antecedem o final da infância,

quando cada ato carrega sua finitude em potência e as desventuras corriqueiras aparentam uma discreta melancolia, todas as crianças são obrigadas a lidar com o peso das mudanças, marcando seus sorrisos pueris com um gradual amargor. Querem (e não querem) crescer, não sabem ao certo o que estão para ganhar e o que estão para perder, rompem só de birra as fronteiras instituídas por seus tutores – sem, no entanto, irem muito longe, afinal seus olhos já vislumbram a alteração do mal de aspecto ‘sobrehumano’ por um demasiadamente ‘humano’. Habitam, como bons filhos da classe média, uma redoma segura, atravessada por alguns traumas, claro, mas cujos portões reluzem uma curiosidade mística, baseada na separação entre o que está dentro e o que está fora. Basta, então, um poderoso


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ruído ou uma presença estranha, o namorado manco de alguma vizinha, um tio desconhecido de nariz enorme, o atropelamento de um cachorro ou o linchamento de um ladrão para que os vultos da noite ganhem materialidade não enquanto olhar distante, apaziguado e borrado por uma grade, mas enquanto olhar saído do sugo de seus próprios cotidianos. Rapidamente, veem em frangalhos a invisível harmonia firmada entre uma coragem fictícia e o seus imaginários de proteção, o ‘lá fora’ e o ‘aqui dentro’ se tornam espaços indiscerníveis, fantasias de resistência, bicicletas e bonecos são relegados ao desuso, deixando o caminho livre para o diabo entrar.

Diante do inevitável, aceitam que é preciso separar

uma caixinha com todas as certezas infantis e deixá-la sozinha embaixo do guarda-roupa, abrindo-a sistematicamente a cada três ou quatro estações, distanciando-se mais e mais todo ano, como um lamento por constatarem a diminuta dimensão de suas existências em relação a um mundo preenchido por um tempo que não para de passar. Antes, tudo era etéreo. Como diz um melancólico Cascão em uma das tirinhas de Maurício de Souza, “envelhecer é aprender a se despedir das coisas” ou como comentou Ziraldo, remetendo ao seu clássico da literatura infantil, O Menino Maluquinho, centenas de adul-


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tos lhe escreveram relatando o quanto choraram ao virarem uma página e descobrirem que “o menino maluquinho não conseguiu segurar o tempo! E aí o tempo passou. E, como todo mundo, o menino maluquinho cresceu”. Pois bem, parece que é justamente nessa transição de ciclos, onde crianças de um mundo isolado lidam com o horror de um mundo expandido, instante em que os medos – de perder a mãe, de ser abandonado, de ser esquecido, de não ser amado – parecem ganhar forma física, que O Mensageiro do Diabo (EUA, 1955), único filme dirigido por Charles Laughton, arma sua premissa: na primeira cena, garotos brincam de esconde-esconde, um deles, após contar até cem, procura seus colegas escondidos, mas termina encontrando o corpo de uma mulher morta nas escadas do porão. Sacamos logo o tom: crianças encontram a morte e são obrigadas a crescer.

Se existe uma lenda reproduzida sem pudor no siste-

ma cinematográfico, dessas que adoramos contar, é a de que a gênese do medo em um bom filme de horror, ou que beire o horror sem perder o estranhamento, reside, sobretudo, na presença de uma criança. Seja quando ela encarna o próprio mal, gerando um oxímoro que envolve num único corpo inocência e perversidade, seja quando representa apenas a ingenuidade


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diante de um mundo terrivelmente voraz, assumindo o papel do espectador pronto a se impressionar. O Mensageiro do Diabo segue simultaneamente pelos dois caminhos. No primeiro caso, claro que o diretor não deixa de lado a crueldade ímpar da infância, marcada pela cena em que vários garotos zombam dos dois irmãos por terem perdido o pai na forca. No entanto, não temos o mal numa criança, mas num falso profeta que se apresenta como cordeiro para ludibriar seu aspecto de lobo. Trata-se de um golpista que se passa por pastor para seduzir, roubar e matar jovens viúvas, mas cujo incontestável horror surge da religião fundada na heterodoxa relação combinada particularmente entre ele e Deus. Na lógica de Harry Powell não temos como saber em qual casulo reside o maior perigo: se no amor que o carrasco promete à mãe de Pearl e John ou se no ódio conservador que carrega de antemão. Os dedos do vilão são repetidamente colocados em destaque, a palavra ‘amor’ em primeiro plano surge sob os auspícios da palavra ‘ódio’, tornando ainda mais robusta a dualidade do mal que se apresenta como humano (e menos como sobrehumano).

No segundo caso, temos as crianças como marcas da

ingenuidade e pureza sendo assoladas pela chegada desse estranho, sua aproximação com a mãe e o rápido casório.


O diabo está lá fora

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Se toda narrativa se baseia na iminência e confirmação da tragédia, na insuficiência da autodefesa, O Mensageiro do Diabo joga bem com o princípio do cinema como janela, do cinema como tela de projeções dos espectadores (transformados em espectadores-crianças), não no intuito de agradar ou revelar, mas de gerar angústia. Passamos o filme todo esperando pelo pior. Basta uma nota de dólar recortada voar da boneca de Pearl até os pés do pastor para sentirmos arrepios. O diretor acentua o contraste através da atmosfera funesta entrecortada pela recorrente imagem de crianças dormindo, olhos fechados em corpos espremidos. Não há melhor representação da fragilidade. Depois de abandonarem a fita branca no sentido que Michael Haneke aplica em seu filme, John e Pearl fogem por entre os perigos da noite, numa dimensão-limbo meio real e meio onírica, através do rio cercado de árvores com aranhas e sapos. Laughton faz da busca por um refúgio, uma travessia de quem encara o mundo pela primeira vez, um amadurecimento precipitado pela ausência materna, o momento em que os infantes da rua e somente da sua rua abrem os portões e vão além. Acolhidos por uma senhora, John se mostra como um bicho arisco, desses amáveis que levaram inúmeras pancadas até se tornarem amargos e pessimistas.


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Quando ela consegue conquistar sua confiança, a infância e amabilidade – através da segurança que ela representa – parecem estranhamente retornar.

Há uma obsessão relacional na construção bloco a

bloco de O Mensageiro do Diabo, que vai da técnica básica de enquadramento às fagulhas insurgentes da psicanálise, não dotando a película de um aspecto academicista, mas promovendo um certo aprendizado cinematográfico. Tudo é evidente e vigoroso, o roteiro preza por uma moral desviante, de modo que cada recurso clássico parece surgir seguido de seu igual invertido, um recurso moderno / desestabilizador. Daí temos as cenas irmãs da reação de John diante da prisão do pai no início e do carrasco Powell ao final, tal qual os numerosos planos baseados no princípio de choque: a mulher casamenteira convence a mãe de John a arrumar um marido, na sequência, o trem onde está Powell esbraveja e anuncia; o pastor ajeita docemente a gravata do menino, na sequência, o garoto é enquadrado sem cabeça; o vilão exclama sobre a mulher que acabou de matar – “ninguém pode dizer que não fiz de tudo para salvá-la” -, logo em seguida, surge um dos planos mais belos do filme, ela embaixo do rio, amarrada ao carro, fantasmagoria entre cabelos e algas. Nessa fase de transição, onde não


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são mais crianças, nem outra coisa, onde os mundos mágico e real parecem travar um constante duelo, a infância se mostra segura se alienada, desvanecendo-se num universo ao mesmo tempo perigoso e sedutor. O diabo está lá fora, o diabo nos observa, mas nem por isso deixaremos de sair. (novembro, 2011)


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Infância como revelação

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uando nos deparamos com os primeiros experimentos ci-

nematográficos de um diretor, além de nos ambientarmos no frescor ou ingenuidade das motivações de sua juventude e nas curiosas instabilidades de suas emoções, no caso particular de Phillippe Garrel, vinte anos em 1968, vinte anos em Le Révélateur (França, 1968), nos vemos rodeados de um exercício de encenação da vida que é encenação do mundo que é encenação do filme. Há no seu ímpeto de refletir sobre tudo, na pressa das personagens, na contestação dos amigos, uma clara e grandiloqüente incapacidade juvenil de se conformar. Um fora de campo dos desejos que nos remete ao retrato minimalista dos corpos contidos diante da amplitude da batalha, um olhar nostálgico, confuso, cruzado com as memórias de Amantes Constantes. Os canhões luminosos do início de carreira in-


Infância como revelação

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vestigam espaços veladamente históricos, rabiscam o entorno de antigos campos de concentração com claridade e escuridão, se afeiçoando e se culpando pelo culto à beleza ante as ruínas de uma tragédia incurável. Os garotos e garotas que sonhavam com a mítica Zanzibar, conhecidos como os dândis de 68, manifestaram suas presenças: são crianças que não respeitam os códigos canônicos do cinema clássico, desviantes da consciência moral burguesa, improvisando em imagem, rastros e rastros da revolução que os cerca. Le Révélateur recompõe a cada fotograma um corpo em chamas.

No universo da insubordinação da criança pequena que

aprendeu as regras sociais, mas decidiu de birra não segui-las, a camada - ou desculpa - diegética é arruinada pelos indícios de espontaneidade: ela olha para a câmera, entrega uma flor para alguém da equipe, brinca sob os olhares apáticos dos adultos. A infância é vista como utopia num campo de distopias, é vista como revelação. Acuado, o homem corre e chama a mulher; acuada, a mulher corre e chama o filhinho; bon vivant, o filhinho corre e chama a câmera. A câmera voa. O filme metaforiza uma fuga do conservadorismo, uma busca da intensidade da criança. E se, no futuro, algum personagem de Garrel viria a comentar não poder ter filhos por causa da


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revolução, a família aparece desde já como a instituição que mais se intenta provocar sem, contudo, conseguir romper; a família: o primeiro e último reduto do patriarcado. Mesmo nos tempos primevos, de manifestos cobrindo as paredes, do ópio passando de mão em mão, a fuga na vastidão do cenário revela suas vanguardas e imprime na imagem suas cadências e sua incomunicabilidade arquitetada. Assume seus clichês comumente varridos para debaixo do tapete.

Certa vez, numa entrevista ou num trecho de livro, Phi-

lippe Garrel ressaltou que seu filme girava em torno do que a psicanálise chama de “cena primitiva”, ou seja, a cerimônia litúrgica da primeira vez. O nascimento de um filme, o nascimento de uma criança, a primeira vez que o filho vê seus pais fazendo amor. Graças a um erro de tradução, o Apocalipse – aquele que sempre acreditamos ser o fim do mundo – não recebeu o nome de Revelação – especificamente Revelação Divina –, momento chave em que os segredos escondidos dos homens – o sentido da vida, o pós-morte, o futuro, a cura das angústias – seriam decifrados pela primeira vez a um único indivíduo. A criança não é apenas filho, é profeta, flutua, enquanto os pais se debatem numa corrida sem sentido, obscurecidos e desfocados, com os braços abertos em busca da iluminação. São como Adão e Eva


Infância como revelação

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passando por suas provações. Garrel, vinte anos em 1968, clandestino na sua radical elegância, homem fragmentado pelos vestígios de uma época, reorganiza um espírito embriagado e perambula pela cancha de alienações e inquietações sem deixar de lado sua obsessão pela simetria. Aliás, não só simetria, também – malditas, malditas, malditas – narrativas, políticas e poesias. (agosto, 2011)


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Duras e o fim

N

ão é o caso de enfatizar uma cronologia das formas, mas

depois de tantos filmes incisivos no sentido de romper com modelos narrativos clássicos, buscando incessantemente jogar com as possibilidades do contar, As crianças (França, 1985), o último filme de Marguerite Duras, extrapola expectativas pelo contrário, não pelo tom ainda mais radical do experimento ou dispositivo, mas por ser engendrado como um retorno, ou um fim depois do fim, ao convencional. A escritora e cineasta levanta mais uma vez a discussão sobre os processos de nascimento da linguagem, conjugando a vontade inconsolável do falar com uma implacável necessidade de calar. Apostando numa linearidade dos acontecimentos, com imagens e sons sincrônicos, não utilizando a câmera para reconstruir o espaço/tempo diegético, ela coloca o papel educativo da escola em


Duras e o fim

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xeque por meio de Ernesto, uma criança de oito anos num corpo de um homem adulto de quarenta, que simplesmente desiste de frequentar as aulas, porque os professores só conseguiam lhe ensinar coisas que ele já sabia. Ao invés da tradicional defesa da educação como saída para todas as mazelas, a escola representa mais o contato com uma instituição responsável por modelar, de maneira questionável, padrões morais e normas de comportamento. A criança confia no tempo em que ainda consegue desejar uma aula diferente: “esperei toda manhã. Então, esperei mais”. O caminho de um conhecimento novo, no entanto, nunca chegou.

As Crianças, alinhando-se ao lado de Zero de Comporta-

mento, de Jean Vigo e En Rachâchant, de Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, procura entender, por uma via anárquica, o por quê de em nossa dislexia cotidiana confundirmos professor com opressor tantas vezes. Busca o sentido pedagógico do que precisamos aprender, do que podemos deixar de lado, destacando o conhecimento / experiência que temos antes de efetivamente entrarmos numa sala de aula. Quase como uma memória pré-linguagem que vai se amortecendo depois da faculdade verbal. Naturalmente, Duras destaca em primeiro plano a negação desse modelo de aprendizagem de Ernesto, sem


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deixar de registrar como funcionam as reações paradoxais dos adultos que se apropriam de um terror pragmático para educar as crianças. Acontece o tempo todo: seja a garota que brinca na escada rolante, quando é surpreendida pela avó dizendo que uma menina ficou com a perna presa e morreu; seja por meio de invenções como homem do saco para assegurar que a filha não vá para muito longe; seja como acontece no filme, os pais dizendo que serão presos se Ernesto não voltar à escola. A película se arrasta num clima ameno, quase uma comédia, cujo tradicional contrasta com a carreira radical da diretora.

Talvez assumindo uma veia psicanalítica, Duras resol-

ve a crise pela conversa, montando encontros entre o aluno e o professor, este último vai ficando abalado, afinal a criança olha amplamente para fora, mas mantém vontades enclausuradas internamente. É preciso falar. Há certa parábola de que a crise na infância é o mesmo instante repetido em outras crises ao longo da vida. Estamos sempre voltando ao final de nossa primeira década quando nos sentimos vulneráveis. Os pais participam do processo através de linhas secundárias, não necessariamente impondo um ponto de vista, mas negociando uma política do devaneio. Ambos precisam se preparar para o sofrimento. Os filhos vão crescer e sair de casa, escapando


Duras e o fim

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como peixes. A escola é apenas um ensaio de distância meticulosamente controlado. Os filhos em algum momento enterrarão seus pais e lutarão a partir disso para não esquecerem suas vozes. Junto ao ciúme e à saudade, a vontade de abandonar diz bastante sobre a relação entre o/a que abandona e o/a que (sic) se deixa abandonar, mas mesmo que sintamos ciúmes ou saudades, o momento do abandono é o tempo político irreparável, o kairos, o momento em que era preciso fazer ou perderia a chance. Então foi lá, fez e tornou a vida tolerável. As crianças é um filme para todos baderneiros que fugiram e acabaram com as aulas mil vezes antes de crescerem e se transformarem adoráveis professores. (outubro, 2012)


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Propagandas infantis

I

rremediavelmente, mais dia ou menos dia, todos os pais se

deixam invadir pela vontade de compartilhar com os filhos suas próprias referências infantis, muitas vezes receosos de que os pequenos não achem seus heróis tão legais ou simpáticos, mas certos de que essa partilha materializa um encontro impossível de dois tempos bem distantes. Nas raras vezes que pensei na possibilidade de ter uma filha ou um filho, imaginava o belo dia que ele ou ela teria a idade suficiente para assistir e entender a trilogia original de Guerra nas Estrelas, esperando ansioso pelo momento que, no Império Contra-ataca, Darth Vader, enfim, revelaria ser o pai de Luke. Nesse sentido, o filme Os Smurfs (EUA, 2011), de Raja Gosnell, surge como emblema - infelizmente, um falso emblema - desse íntimo ritual que coloca frente a frente “um ser criança no


Propagandas infantis

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passado” e um “ser criança atualmente”. Criadas pelo ilustrador belga Peyo (Pierre Culliford) em 1958, as criaturas azuis viraram febre no Brasil durante a década de 1980, graças a um desenho exibido diariamente na televisão. Desde então, pensando a mídia como espaço de registro de nossos próprios ciclos afetivos, habitam o imaginário saudoso dos que estão entre os trinta e quarenta anos.

Acontece que o filme dos Smurfs não é o desenho dos

Smurfs que também não são os quadrinhos dos Smurfs, a apresentação de uma infância à outra termina por se findar como processo ilusório, afinal, não é preciso muito para que até os mais nostálgicos percebam o quanto a projeção na tela grande, a intersemiose balela, não reflete o repertório de suas tenras idades, quase como se estivessem presenciando uma distorção cujos únicos resquícios originais são as personagens. O longa esquece algumas questões básicas. O desenho não era um sucesso pelos efeitos mirabolantes ou pelo traço moderno, na realidade, o contrário, era bastante simples, até levemente tosco, mantendo o campo de interesse muito maior nos significados que nos significantes. As aventuras das criaturas azuis que encarnam as distintas e contraditórias características humanas (vaidade, gula, pre-


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guiça etc) ganhava vigor pela forma como tais elementos se relacionavam entre si e como cada qual, ao seu jeito, conseguia superar obstáculos.

Para começo de conversa, a narrativa segue uma fór-

mula que vem se popularizando em Hollywood nos últimos anos: personagens de desenhos que vivem em universos paralelos são lançados no mundo dos humanos (no caso, Nova Iorque), com o intuito mercadológico de aproveitarem marcas de produtos mil, perpassando as inúmeras piadas clichês do “olhar mágico” que subitamente encara “o mundo real”. Alia esse viés cômico com breves cruzamentos metalinguísticos, aproximando diferentes tradições infantis com cenas famosas do imaginário cinematográfico. Daí os Smurfs jogam Guitar Hero e Smurfette banca a Marilyn Monroe de O Pecado Mora ao Lado. Precisamos admitir: o problema não é tanto com os Smurfs, mas sim com os humanos. Nos primeiros minutos ainda há um encantamento, uma semelhança com o desenho, quando vemos a vila de cogumelos, todos trabalhando e cantando, Gargamel planejando sua próxima vilania ou mesmo o gato Cruel engasgando com bolas de pêlo.

Em seguida, quando Papai Smurf, Gênio, Desastrado,

Ranzinza, Smurfette e Valente entram num túnel e caem na


Propagandas infantis

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cidade grande é como se a passagem entre universos existisse apenas para pipocar marcas e merchandising nas imagens; não tendo qualquer intensidade ou propósito narrativo. Nova Iorque não passa de uma mera premissa de propaganda. O grupo termina acolhido por um casal sem graça, símbolo do sonho americano politicamente correto, das ambições amenizadas, do universo da competitividade, do marido que vira a noite trabalhando numa campanha publicitária que não acredita. A sensação que fica é a que a humanidade deu errado e o melhor que os pequenos seres (e nós) poderiam fazer é voltarmos todos às nossas casas. No desenho da década de 1980, os Smurfs viviam num regime sem classes, usavam roupas uniformizadas, toda produção era compartilhada igualmente, o que foi visto por alguns estudiosos na época como uma metáfora de um comunismo bem resolvido. Nada mais capitalista neoliberal que trinta anos depois tenham se transformado numa tábula rasa a favor do consumismo exacerbado. (agosto, 2011)


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Ser adolescente para sempre

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lube dos Cinco (EUA, 1985), de John Hughes não fez parte

da minha infância. Só descobri o filme no final da década de 1990, talvez início dos anos 2000, no episódio Detenção (EUA, 1998), dirigido por Allan Arkush, para a primeira temporada de Dawson’s Creek. Na ocasião, o protagonista e seus amigos, assim como no clássico da Sessão da Tarde, passam um sábado inteiro de castigo no colégio por alguma infração cometida durante a semana. Não demora muito para o seriado assinalar sua homenagem, evocando uma cinefilia boba, baseada no consumo de fitas VHS, nos programas noturnos de televisão, nas sessões vespertinas com amigos e na curiosidade mórbida da cultura de celebridade. Os jovens logo trocam algumas palavras sobre a produção de Hughes, dando corpo ao imaginário norte-americano pelo qual é responsável, inicialmente


Ser adolescente para sempre

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resumindo a sinopse em menos de 140 caracteres para então se debruçarem com especial interesse sobre os atores, discorrendo sobre como foram parar nas pontas dos piores filmes, como perderam o ar de ingenuidade, como uma doença estranha abateu um deles, como envelheceram até simplesmente sumirem das telas e serem esquecidos.

Não lembro se foi nesse mesmo episódio ou em alguma

das milhares de outras referências ao filme, que escutei pela primeira vez o boato sobre uma versão de quase três horas de Clube dos Cinco, inicialmente cortada a pedido dos produtores. O corte foi mantido pelo diretor, que cresceu solitário numa vizinhança de velhos e garotas, ficando posteriormente conhecido pelas cenas adicionais ou secretas inseridas durante ou após os créditos de seus filmes. Boato ou não, o que importa é que há uma dinâmica em Clube dos Cinco que condiz com a vontade desesperada de ser jovem, de se desviar das amarras que a vida adulta impõe e transgredir as normas através de pequenos truques, fórmula até bastante repetida em outros filmes da época. Não há bem uma introdução longa e arrastada onde nada acontece, do pífio prólogo corremos para o “ponto que importa”, somos rapidamente apresentados ao jogo e seus jogadores, até porque tanto na produção de Hughes quanto


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no seriado, não mostrar o “antes”, o “motivo de estarem ali” é determinante para narrativa. Ao longo da trama, os eventos são entrecortados por videoclipes, que demarcam a temporalidade da fuga do tédio e do conformismo, por meio de conversas, corridas, jogos, fumos, xingamentos, danças ou, como diria o locutor das propagandas, “aprontando mil e uma confusões”.

A questão é que na impossibilidade de passarem o resto

da vida interpretando adolescentes panacas ou jovens adultos panacas, os atores que aprenderam a fazer daqueles papéis os papéis de suas vidas foram renegados pelas produções juvenis da década seguinte, terminaram subjugados pelo singular ethos púbere que faz do envelhecimento, descarte. Notaram que a adolescência não dura três horas, muitos anos, passa assim como um estalar de dedos. Não é apenas irônico como tremendamente cruel, se levarmos em conta que escrever sobre a infância é, de uma forma ou de outra, escrever sobre o medo de crescer, essa sensação dissimulada que nos pressiona em diferentes estágios da juventude. Os mesmos atores de vinte e poucos anos passaram a década de 1980 inteira alternando entre estudantes secundaristas e recém-formados arrastados para a vida adulta. No mesmo ano de Clube dos Cinco, Emílio Estevez, Ally Sheedy e Judd Nelson, pertencentes ao Brat Pack – expres-


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são usada para designar os atores que trabalhavam juntos em inúmeros filmes de mesma temática – estiveram em O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas, que registra a insegurança e melancolia de um grupo de amigos diante do impasse do amadurecer, cujos integrantes não lembram “quem conheceu quem primeiro, ou quem se apaixonou por quem primeiro”. Só lembram dos sete sempre juntos.

Aliás, a expressão é uma variação de Rat Pack, que se re-

fere aos atores da década de 1950 liderados por Frank Sinatra, e, a partir de 2005, mesmo contra a vontade dos próprios, surgiu o Frat Pack para as produções que envolviam os comediantes Ben Stiller, Jack Black, Will Ferrell e os irmãos Wilson. No caso do grupo dos anos oitenta, para além de ficarem trocando os papéis, o garoto-esporte que vira o baderneiro, o baderneiro que vira o yuppie, a estranha que vira a patricinha, a patricinha que vira a drogadita, o nerd virgem que continua nerd virgem, o que está em jogo são os arquétipos utilizados, pois há um claro investimento no esquematismo simples e universal para afetar uma rede mais ampla de matrizes espectatoriais. A interação entre as personagens em Clube dos Cinco começa pelo baderneiro, que só consegue se comunicar pelo insulto, lembrando aqueles velhos repetentes da sétima série: maiores,


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mais fortes, mais estúpidos, estavam sempre contando vantagens para esconder suas inseguranças, se gabando “de serem os únicos a terem usado uma camisinha pra valer”. Hughes coloca essa atitude como uma mistura de cumplicidade e autodefesa num universo altamente hostil.

A frase de Bowie (retirada da música Changes) que serve

de epílogo simboliza bem um contexto que avança dos atores para os personagens e espectadores: “As crianças em que vocês cuspiram, enquanto elas tentavam mudar seus mundos, são imunes aos seus conselhos. Elas sabem muito bem por aquilo que atravessam”. Decerto, é notável a quantidade de filmes produzidos durante os anos 1980 que consideram a adolescência não apenas como uma fase da vida, mas um conceito que transforma as dificuldades próprias do período, os lances de aventura e os arremates de felicidade, não num estágio efêmero, mas numa condição utópica de existência. A imagem mundializada da High School, traduzida pela uma pichação “I don’t like mondays”, parece resumir o estado de espírito da situação. No caso de Clube dos Cinco é determinante desde os cortes iniciais, quando todo espaço é passado a limpo por uma concatenação de planos abertos e planos detalhes, revelando um campo nostálgico e cruel. Há uma perspectiva coletiva


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ou mesmo abertamente política baseada numa conjunção de lapsos libertários mínimos, provocados pelo e para o jovem como consumidor potencial. Mesmo a ideia de detenção sendo absurda para nós que somos punidos com suspensão (ou seja, ao invés de mais tempo no colégio, passamos alguns dias afastados dele o/), o filme imprime seu impacto pela presença de cinco protagonistas simultâneos, que nos atingem em diferentes pontos de nossas idiossincrasias.

Se existe uma preocupação maior em Clube dos Cinco,

que quase se chamou Library Revolution, ela reside na relação entre adolescentes e autoridades, na ânsia de desafiar as autorizações. Numa lógica em que, diante do suposto dever de ficar na biblioteca até o final da tarde escrevendo uma redação de mil palavras sobre eles mesmos, sem poder falar, se mexer ou dormir; os jovens, que inicialmente se odeiam, sentem-se estimulados a não apenas partilharem seus segredos, mas unirem suas diferenças numa sucessiva brincadeira / luta contra a opressão. É essencial pensar nesse deslocamento contextual de cinco desconhecidos que todos os dias ocupam e vivem de maneiras absolutamente desconexas o mesmo espaço, colocando-os numa redoma isolada acrescida de alteridade, dando as ferramentas para que com o tempo compartilhem suas infra-


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ções e outros segredos. Há nessa troca não apenas um sentimento de libertação, mas a dúvida entre a vontade e a negação num mercado de capital simbólico, quase como se estivessem aprendendo a negociar suas particularidades, suas diferenças, em troca de compreensão.

Clube dos Cinco é antes de tudo um filme de confissão,

todos se confessam, Hughes aposta no que o narrador de Singularidade de uma Rapariga Loura nos fala no início da película: “o que não se conta a um amigo, conta-se a um estranho”. E aí merece o retorno ao episódio de Dawson’s. Diferente do filme, todos os presentes são amigos, exceto por Hebe e é justamente sua presença que desencadeia as farpas responsáveis por abrir os olhos uns dos outros, apontando sarcasticamente como a intimidade entre eles havia se tornado uma instância de cegueira e conformação. O olhar exterior, não viciado, adentra o espaço alheio com mais perspicácia e violência. Em Clube dos Cinco, ao mesmo tempo que todos se agridem por suas diferenças é também pelas diferenças que despertam curiosidade uns nos outros. Temem o encontro deles fora da redoma de um sábado de castigo. Temem o futuro. Não apenas um medo de saírem da adolescência, mas de entrarem no mundo adulto como seus pais: “vamos ser como eles” / “nunca” / “é inevitável”. Cada um


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segue o seu caminho sem saber que seriam esquecidos menos de uma dĂŠcada depois, sem saber que se tornariam iguais aos seus pais. Resta confabular: como foram os olhares na segundafeira pela manhĂŁ? (dezembro, 2011)


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Jurando de mindinho

S

e voltarmos aos filmes da infância, corremos o risco de, em

menos de duas horas, sabotarmos em definitivo um carinho mantido seguro por anos, de maneira que precisamos antes de partir nessa jornada de redescoberta e decepção, cartografando os fios imaginários que ainda nos ligam às crostas da primeira idade, sermos suficientemente sensatos no momento de distinguir os baús que devem ser remexidos daqueles que permanecerão intocados. De uma forma ou de outra, é bom lembrarmos que existem as produções imponentes, que podem ser vistas e revistas sem perdas sensíveis no panteão, assim como as que funcionam melhor enquanto lembrança, como se estivessem destinadas ao timing exato de serem assistidas em determinada idade, na situação específica da Sessão da Tarde, com aquela bela fadiga pós-almoço, esparramados no sofá, vestindo a farda gasta


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e rabugenta da escola que só iríamos tirar no final da tarde, depois do terceiro ou quarto grito de nossas mães. Há, no entanto, uma terceira variação: são os filmes que continuam amados, mas cuja condição de amor depende exclusivamente do fato de terem sido importantes durante a infância, como se o princípio de prazer fosse baseado na emulação de uma espectatorialidade perdida, gerando a partir da impossibilidade de resgate um saudosismo tão intenso que é capaz de transcender, aproximar e afetar idiossincrasias temporais.

Não precisava nem começar me desculpando, afinal,

Conta Comigo (EUA, 1986), de Rob Reiner, antes de todos os movimentos escorregadios e secundários, é o “meu filme predileto sobre infância” e também “o filme predileto da minha infância”. Junto a Cavaleiros do Zodíaco é o responsável oficial pelo meu entendimento até hoje do que significa amizade e do papel da amizade dentro da minha vida. Toda vez que vejo, revejo, prevejo, cada sinal de mundo vivente transforma-se naturalmente numa potencial lembrança, adaptando a marca definitiva da novela que serviu de inspiração, O Corpo, de Stephen King, isto é, a estrutura propicia para, adultos ou crianças, nos encharcarmos na melancolia, seja porque o tempo passou, seja porque o tempo está para passar. É quase


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como se a vida acontecesse apenas aos doze anos, que num minuto estávamos vivendo, aprontando, sendo protagonistas, e no minuto seguinte passamos ao posto de meros observadores. Assisto ao filme inteiro com os olhos marejados, cada miudeza abre um universo de recordações: bastam dois amigos andarem lado a lado, um deles dando um chute na bunda do outro pelas costas ou um desentendimento cujas as pazes são firmadas jurando, jurando, jurando de mindinho.

O meu fascínio por Conta Comigo, ontem e hoje, decorre

racionalmente de dois motivos. O primeiro é o absoluto e singelo clima de fraternidade entre os quatro protagonistas. Naquela linha bem cafona de pensar os nossos amigos mais próximos como a família que nos deparamos no mundo e trouxemos para perto da gente, pessoas com as quais compartilhamos vivências porque entendemos que as vivências só adquirem sentido se compartilhadas. Nesse contexto, estamos sempre brigando e fazendo as pazes, tirando onda de qualquer besteira, debochando, falando da mãe, sentindo frio na barriga, precisando de um ombro firme, dando foras entediados, rindo sem ser constrangedor. Na maioria das vezes, seguindo uma espécie de rodízio, onde todo algoz encontra seu dia de vítima, onde num segundo de descuido, dois ou três se juntam para achincalhar o membro


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restante. As imagens assumem um poder espectral, como se carregassem internamente portais para dezenas de outras imagens ocultas: vemos os garotos levando uma “carrera” de um cachorro (quem nunca?) e nos lembramos, como símbolo do que é viver a adrenalina de verdade, dos dias que falamos “pio” de olhos fechados, enquanto nossos pais putos da vida gritavam “e não quero escutar nem mais um pio”. Pio.

O segundo motivo é a aproximação espacial. Boa parte

dos filmes infantis conta com uma casa da árvore, esse mítico lugar-refúgio-esconderijo de tradição norte-americana. Na minha rua existia a ruína de uma dessas, recôncavo de um grupo de amigos da geração anterior. Na minha época, a escada já tinha caído, parte do piso cedido e o próprio tronco havia se tornado um cemitério de pregos. Diferente de Os Goonies, onde a instância infância é confundida com a instância estupidez, Conta Comigo me lembra os passeios na praia antes dos adultos acordarem, as subidas nas árvores, a escolha dos melhores lugares, as andanças de bicicleta na beira do açude de Brennand, a professora nos mostrando como funcionava um ábaco, as invasões no hospício abandonado da Praça da Várzea, tudo isso entrecortado por alguma safadeza e por conversas supersérias e banais tomadas com o mesmo respeito. - Quem venceria numa


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briga, supermouse ou superhomem? – Um desenho nunca venceria uma pessoa real. O caso é que todo aquele universo parecia uma extensão da minha rua para dentro da planície da televisão. Meu bairro sempre teve esse clima de interior da cidade, sentia algo além de identificação quando o narrador comentava que morava numa “cidadezinha, mas que para mim era como o mundo inteiro”, porque por muito, muito, muito tempo, quem dera que fosse para sempre, eu era o menino da rua e somente da rua, que um dia resolveu ir além e quando voltou se deu conta que seu reino era bem menor do que imaginava.

O filme carrega uma (sic) sutileza propositiva, sem pre-

cisar espernear “olha só sobre o que estou falando”, no que se refere a virada da pré-adolescência para a adolescência de quatro garotos que são quatro arquétipos. Trata-se daquele instante maroto em que nos damos conta que o mundo não gira em torno de nosso umbigo, que nossa sensação de pertença é apenas passageira. Somos crianças, olhamos nossos irmãos mais velhos e percebemos a ausência de seus amigos de infância e então olhamos nossos amigos e eles estão logo ali e então já estamos crescidos e não sabemos mais onde eles estão. Conta Comigo acompanha uma aventura que nada mais é que a constatação da separação iminente, como se apontasse para os momentos


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que nos damos conta, lá pelos doze anos, que as amizades são como “garçons que sempre estão entrando e saindo de nossas vidas”. Misturado às dificuldades familiares de cada um, o que torna a amizade cada vez mais íntima, e no encerramento do ciclo que deixa mais nítido o limítrofe da lenda e da realidade, vamos aos poucos se despedindo de nossas obsessões infantis. Os dinossauros são deixados de lado, a Segunda Guerra Mundial perde seu encanto, os extraterrestres se tornam uma fé subterrânea, esconde-esconde vira pura lembrança e as vitórias ou as próprias jogadas do War tornam-se cada vez mais raras. Sempre vai ser complicado justificar o motivo de nosso amor por determinados filmes, mais ainda por alguns filmes de infância, e, em meio a trilha sonora com Everyday, Come Go with Me, Stand By Me, Mr. Lee, Great Balls of Fire e Lollipop, Conta Comigo instaura um lugar-memória, uma falsa caixa de pandora, um rabisco amarelado desses que sem motivo não cansamos de olhar. (janeiro, 2012)


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II Filmes de amor


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Instante, amor, depois

Q

uase nunca conseguimos prever o instante, quando os

segundos mostram sua exatidão cirúrgica, em que teremos uma conversa decisiva em nossas vidas, dessas que estilhaçam cápsulas de proteção e influenciam sensivelmente os rumos ou lembranças de uma relação passada. Às vezes nos preparamos em demasia, ensaiamos todo discurso, montamos um circo, alinhamos o escopo de incertezas, escolhemos palavras bonitas e simplesmente nada acontece. Da mesma maneira, se nos lançássemos ao desejo de isolar espaços curtíssimos de duração na história entre duas pessoas ou de toda humanidade, esquadrinhando gestos que atestem um sentimento, um desabrochar do amor incondicional, a impossibilidade de se apaixonar depois de trinta e quatro beijos ou o insurgente desapego que cresce a cada café da manhã, correríamos o risco


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de passar muito tempo sem resultados, absolutamente cegos para com o instante fugaz, tolos e incapazes de sequer reconhecê-lo. Diante da dúvida, Philippe Garrel saca sua câmera e espera. Se não nessa estação de trens, talvez num outro breve passeio, numa outra cama desforrada, num telefonema secreto ou numa despedida de portas fechadas.

Na sequência inicial de O Nascimento do Amor, (França,

1993), Marcus (Jean-Pierre Léaud) vai comprar cigarro, Paul (Lou Castel) o acompanha e abrindo espaço dentro da troca desinteressada de palavras e perguntas, emerge um protodiálogo – que está longe de significar “menor que um diálogo”, apenas “não calculado como um diálogo” – onde os propósitos racionais menos importam, pois cada palavra serve para contornar uma intimidade que desfaz, refaz e liberta a dramaturgia específica da relação entre aqueles dois amigos. Na caminhada até a barraca, alguma coisa acontece, observamos o momento em que a vida vira linguagem. Não de forma determinista, como acontece perto dos 20 minutos de filme, quando a tela é tomada por uma atmosfera absurdamente límpida e o nascimento de um filho é metaforizado como nascimento do amor. Se Tarkovski defende o cinema como arte de esculpir o tempo – tese também desenvolvida na teoria de Gilles Deleuze


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– Philippe Garrel se equilibra entre esculpir a luz no tempo e o tempo da luz. Se não nessa praça outonal, talvez num café requentado, numa mirada alternada, numa mensagem anônima ou numa reconciliação desesperada.

O cineasta francês no início da década de 1990, tal

qual em Le Coeur Fantôme, parece ter superado duas fases: os pujantes “anos Nico” do início de carreira, de um cinema abertamente experimental, e os “anos pós-Nico”, quando prestou contas com as assombrações do período anterior, ainda muito apegado, lançando um olhar gentilmente amoroso. Aqui, todavia, Garrel se esgueira num campo de ruínas ideológicas, num resignado fracasso das utopias, quando filósofos e historiadores se acostumaram a encaixar “pós” como prefixo de “tudo”. Paul olha desolado um cartaz rasgado com os dizeres “É tempo de lutar”, sente que os grupos foram dissipados e que o mundo afundou na falta de um sentido claro de transformação. Move a mão para descascar mais um pedaço. Se não a mesma luta, pelo menos a mesma luz: o filme aponta para Raoul Coutard, o diretor de fotografia, como reminiscência do tempo em que ele definia a saturação da Nouvelle Vague. Marcus, por sua vez, soa verborrágico com um discurso incisivo para a condição do homem contemporâneo: “Lênin estava


II Filmes de amor

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certo, os capitalistas vendem a corda para que nos enforquemos”. Completa: “o difícil será eles – os capitalistas – nos darem tempo para fazermos o laço”.

Os personagens assumem um pessimismo, que só cons-

tata a imobilidade diante da falta de projeto, da obsolescência de armas, gestos e manifestos empunhados na juventude reverenciada em Amantes Constantes. O passado em O Nascimento do Amor assume diferentes formas: é trauma do amor perdido, morto num hospital anônimo; é a marca de um amor que brota e murcha; é a foto antiga do casal que cristaliza a inexistente felicidade no cotidiano atual. É também um tempo de luta que se afasta, afasta e nos afasta, um tempo em que eram mais loucos, mais bêbados, fumavam ópio, jogavam coquetéis molotov e as garrafas de whisky barato se acumulavam na varanda. Mesmo pairando sob o medo de morrer ou de ser preso, a dimensão do sofrimento estava sempre lá longe, perto do fim. Só que o fim para aqueles dois homens de meia-idade havia chegado e passado. Ambos, entregues a desesperança da crise, se questionam repetidas vezes: “Quantas noites de amor existirão depois daqui”? Diante da dúvida, Philippe Garrel saca sua câmera e espera.

Se o amor nasce, cresce e embrutece, enquanto o corpo

amado expande suas curvas, vira objeto de contemplação e em-


Instante, amor, depois

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placa uma desconcertante beleza, ele - o corpo - também morre, imprime o receio de voltar a se entregar e, no intervalo de quatro a cinco segundos, com os rostos melancólicos transformados em paisagens, enfrenta o enigma final entre permanecer e desistir. Sufocado pelo casamento, Paul fez do cotidiano um laço no seu próprio pescoço. Detesta a mulher, detesta cada simpatia mal colocada e abre de maneira extremamente franca o peito para qualquer acaso, para as amantes que mal conhece e coleciona. Acordam e o “eu te amo” nada mais é que um cumprimento autômato. Ele alenta um desinteresse pela casa, não lava os pratos, ela reclama, mas sua curiosidade pelo mundo só aumenta. Paul acaba seu casamento, corre na rua com sua maleta enquanto seu filho grita “papai, papai” pela janela. Ele começa um relacionamento com uma moça muito mais jovem, um pós-amor, caminham pelas ruas sob as luzes, não cansam de trocar olhares, beijam-se, adentram o circuito de declarações, desviando-se dos erros cometidos no passado – o rastro de mentiras, um desorientar de frágeis omissões –, certos de que rememorar representa dor para quem não estava “lá”.

Há, entretanto, quem não saiba se despedir e prolongue

e alimente as relações num ímpeto de ausência. Marcus foi abandonado. “Por que você me deixou?”. Ele precisa saber para


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entender uma vida através de uma resposta, tal qual Garrel que entende situações através de instantes em seus filmes. “Foi por causa de você e do seu enorme ego”, ela responde confirmando a terrível condição do egoísta: ele passa a ser amoroso apenas quando sente que não é mais amado e está ali para pedir sempre uma última chance, uma última noite de amor. Ela tira a roupa, ele não reconhece a lingerie. O cheiro lhe pertence, mas aquela imagem erótica lhe é estranha. Diferente do que pensa Marcus ao dizer que os “encontros não importam, o que acontece depois é o que importa”, no cinema de Philippe Garrel, um cinema de elipses, preciosas elipses, os encontros importam, as caminhadas importam, não precisam ser exatamente os primeiros contatos ou os mais intensos, mas aqueles em que toda uma trajetória silenciosamente se encrava. Eles se conheceram porque ela deu o primeiro passo. Separaram-se porque ela o deixou. (agosto, 2011)


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A

o longo de irremediáveis visitas cinematográficas, mantive

certa desconfiança desses filmes, cuja estrutura narrativa é absolutamente costurada – ou submetida – por uma espécie de soberania do acaso, fazendo com que o roteiro seja arquitetado através de uma estrutura de coincidências, um malabarismo – por vezes patético – de acontecimentos conectados: são os futuros casais que se trombam dez vezes antes de se conhecerem ou os desconhecidos que as situações e o tempo insistem em postular como inimigos. Alguns espectadores ainda ficam ansiosos, torcem os dedos para uma olhadela à esquerda, um acidente de trem, a desistência de um voo. Seguramente esse não é o caso de A Primeira Noite de Tranquilidade (Itália, 1972), produção em que Valerio Zurlini intensifica sua postura existencialista, por meio de um homem que, mesmo afundado


II Filmes de amor

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na melancolia e numa angústia dilacerante, continua enfrentando o mundo, escolhendo cidades apenas porque ainda não as conhece, certo de que acaso e destino são conceitos que se levados ao paroxismo se tornam indiferentes.

O cineasta italiano retorna a cidade de Rimini, um

lugar entre os lugares, e diferente da estação de Verão Violento, recorre ao inverno como metáfora contextual para embalar a íntima condição de um homem entregue ao tédio, homem que adentra a neblina ao som rasgante de um trompete, descobrindo nas ruínas de uma casa a poética de um passado renegado, mas não completamente ausente. Trata-se, em parte, do professor de literatura interpretado por um Alain Delon mais velho, mortificado, assim como, em parte, trata-se do próprio Zurlini no fim de uma carreira pouco reconhecida, supostamente sem infâmias ou louvores, cujas caminhadas pelas brumas, num ímpeto sem sentido das coisas, são contornadas por um efeito exasperante de limite.

Na história de amor – ou apenas de estímulo do tesão

como processo antidepressivo – entre um professor e sua aluna, dois animais feridos, Zurlini descarta a problemática do tabu do relacionamento, por um jogo de poder e sedução, sem clareza de qual lado é o mais forte. O cineasta definitivamente


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evita o clichê ~ele mais velho, ela mais nova~; ~ele professor, ela aluna~, aliás, um dos grandes clichês no cinema e na literatura, sem dúvida. Descarta também uma discussão política evidente ou panfletária – e talvez por isso, o filme seja mais instigante – ao revelar um protagonista supostamente apolítico, desinteressado, farrista, sonolento, mais preocupado com o debate sobre o belo em versos de Petrarca. Na falta de vontade de tecer argumentos mais específicos, promovendo uma repetida fuga, coloca até grosseiramente socialistas e fascistas no mesmo saco, sem distinções.

Assim sendo, como um grande tratado sobre a conjun-

ção de três palavras de sentido bem amplos – vivência, sobrevivência e existência –, o filme não desemboca num tedioso discurso filosófico, pois apesar de recuperar autores conhecidos, Camus e Sartre, toma o melodrama, aqui sem grandiloquência ou crises de choro, como seu verdadeiro desenho de expressão. Daí frases impiedosas como “não foi sua beleza que me atraiu, mas o desconforto que tem dentro de si, sua melancolia sem fim, não posso suportá-la” convivem em harmonia com uma trilha sonora típica do gênero, cafona e exagerada, por vezes histérica, ao emular as emoções dos personagens para uma melhor apreensão afetiva dos espectadores. Ainda assim,


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a estratégia de Zurlini dissocia sua diegese da projeção clássica do público, afinal, por mais imobilizados pela tristeza, seus personagens não se rendem às lágrimas, não por um torpor de insensibilidade, mas para não abrirem qualquer prerrogativa de redenção completa ou libertação do corpo. A impressão de morte está sempre à espreita.

Dominici, o professor, surge na escola sem qualquer

projeto pedagógico, sua postura sublinha mais uma opção na falta de opção, a certeza de que ainda precisa decidir mesmo aportado na desistência. No primeiro dia de aula insinua seu espaço para os alunos dizendo que não quer obrigar nada a ninguém, quase consciente da impossibilidade de ensinar, negando seu papel como “mestre que, ao mesmo tempo, aparece como paradigma filosófico e como agente prático da entrada do povo na sociedade e na ordem governamental modernas”. Como o mestre ignorante do filósofo francês Jacques Rancière, Zurlini parece estar atento ao debate que coloca em dúvida o ato de receber a palavra do tutor – a palavra do outro inundado de sabedoria – incitando um caminho entre o testemunho de igualdade e o gesto acentuado de distância.

Só que o movimento do personagem de Delon é desti-

tuído de desejo, ele está ali sem intenções ou projetos a médio


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ou longo prazo. Ele apenas está presente. Diante do garoto revolucionário de desempenho exemplar, inteligente, raivoso, que provavelmente abandonará sua militância política pelo conforto econômico, e da garota de beleza submetida à angústia, arisca, felina, que provavelmente desistirá da escola para se dedicar a um casamento malfadado com um homem rico, o professor insiste na liberdade como um problema, ajustando a falta de liberdade como plataforma para a promoção dos momentos de alegria. A felicidade não pode ser um estado, apenas um estágio. Aliás, o filme condensa muito bem a forma paradoxal como as pessoas, no espaço externo ao do colégio, usam o vocativo professor durante uma discussão sobre assuntos relevantes ou irrelevantes: há ali uma estranha mistura de menosprezo e respeito.

Zurlini desenha personagens encarcerados na condição

apontada durante a visita de Dominici e Vanina a um parque aquático: enquanto ela carrega um lamento pelos golfinhos presos em tanques, ele relata que “se forem soltos no mar, vão sentir falta da piscina, do conforto, do almoço, do café da manhã fáceis”. A situação lembra sem esforço, inclusive, o final de A Mulher das Dunas, quando finalmente o rapaz consegue fugir da clausura, encontra o mar depois de viver no deserto quase sem contato com a água, mas decide voltar para o cativeiro,


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fascinado pelo balde em que depois de muito esforço conseguiu reter alguma quantidade do líquido. A Primeira Noite de Tranquilidade, expressão metafórica usada pelo protagonista para descrever a morte, uma noite sem sonhos, sem remissões ao passado e suas fantasmagorias, revela o ato de viver a vida como o ato de suportar sua vida. Nem todos estão dispostos.

A narrativa se esgueira desde o princípio como uma

tragédia. Não temos um herói necessariamente deprimido, mas um tanto indiferente em relação ao mundo e em essência a si mesmo, com seu cigarro na boca, seu olhar cinzento, passando pouco tempo em seu apartamento pequeno, decidido a ficar longe de sua mulher adúltera e suicida, de quem não conseguiu se separar por conta da posição permanente de quem sente falta de vontade e culpa por todas as coisas. A proximidade da angústia sem ser angústia, o corpo desgastado de Alain Delon, olheiras e ausência infindável nos olhos, se inscreve na ideia de que “a validade de um sentimento não existe, a validade de uma ilusão não existe, não há idealismo que se sustente, não há nada que esteja fora da amarga sobrevivência”, como definiu o próprio cineasta numa entrevista.

Além das sequências de passeios de Dominici, seja com

Vanina para conhecer uma pintura renascentista, com o pro-


Melancolia como método

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fessor fazendo uma leitura inspirada por Barthes, seja com o amigo Spider para incutir um passado que se anuncia em tons bíblicos, o grande momento do filme está na alternância campo contracampo da cena da boate, uma alternância fatalista de uma desilusão árida. O cinema de Zurlini se funda como o cinema do olhar oblíquo e da troca de olhares presentes. A sequência resplandece em outros momentos da carreira do cineasta, como em Quando o amor é Mentira e até mesmo em Mulheres no Front, mas o que mais impressiona na dança de Vanina sob as luzes da pista enquanto encara o professor por cima dos ombros do futuro marido, é também o jogo de intensificação e regressão do olhar, a primeira instância sob a luz vermelha e rápida, a segunda sob todas as outras cores um pouco mais lentas. Há um duelo entre os campos do ver e do viver.

Se n'A Primeira Noite de Tranquilidade, o fator geográfico

envolve as personagens por meio do inverno numa região costeira melancólica povoada pelo rancor, pela dissimulação e pela violência, um estado de isolamento, a narrativa termina sendo mais ainda, como definiu o próprio Zurlini, “a história de um homem que tem sempre uma relação de morte com os outros e que encontra a juventude, mas justamente uma juventude que esconde, na realidade, a morte. É como um romance popular


II Filmes de amor

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velho, é tal qual o mundo!”. Irrompendo de maneira irônica, o final apela para um deus ex machina anulando o projeto de, note a incerteza, 'uma possibilidade de mudança', 'uma possibilidade do personagem encontrar e acreditar no desejo', 'uma possibilidade de criar interesse no mundo'. A escolha traz a morte como elemento desonesto, que no meio da falta de sentido, obedece à, até então negada, soberania do acaso. Os créditos reforçam a inexistência de rotas de fuga. (maio, 2013)


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Patologias da Solidão

N

em todos os relacionamentos amorosos sobrevivem às

viagens. Nem às viagens planejadas em comunhão e com amor, menos ainda às que, por decisão pessoal, em geral profissional, apenas um dos amantes segue para longe, promovendo despedidas, instaurando distâncias e incertezas. Não há dúvida que o deslocamento físico costuma despertar um enrustido sentimento de insegurança que pode terminar desencadeando uma crise: quando estão juntos, há o desespero para que tudo dê certo; quando separados, há o receio de que o outro encontre alguém. No caso da primeira situação, a saída em conjunto do cotidiano e da zona de conforto abre as portas para que a nova realidade imponha comportamentos inusitados, desde uma poética do deslumbramento partilhado até a emergência de fagulhas de irritação por há-


II Filmes de amor

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bitos ainda não bem esquadrinhados. Um olha para o outro fora do eixo que aprendeu amar.

No segundo caso, quando um segue e o outro fica, uma

distância física, ou mesmo quando dentro de uma relação de anos, quando um desvia a atenção, torna-se desatento e o outro mantém a mesma posição, uma distância mais afetiva, naturalmente é arruinada a sensibilidade comungada. Há um retorno voluntário ou involuntário à individualidade, tanto pelas experiências distintas que são vividas simultaneamente, como pelo compartilhamento limitado dessas experiências através dos meios de comunicação. Nem todos são capazes de segurar o peso de estar longe, algo que Erich von Stroheim toma como cerne de seu primeiro filme, Maridos Cegos (EUA, 1919), anunciando um universo formado pela displicência do amado, sua incapacidade de surpreender e o poder do encontro com um inesperado amante.

Seguindo a estrutura do melodrama (que Ivete Huppes

define como "gênero bipolar que estabelece contrastes em nível horizontal e vertical: horizontalmente opõe personagens representativas de valores opostos, vício e virtude; verticalmente alterna momentos de extrema desolação e desespero com outros de serenidade e euforia"), o filme acompanha a chegada de um


Patologias da solidão

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médico e de sua esposa numa pequena vila, cuja grande atração é a escalada numa montanha próxima. Ambos conhecem um lascivo tenente austríaco (o vício), que começa a flertar com a mulher sem que o marido (a virtude) perceba. Diferente do que tinham planejado, ao invés de ficarem juntos, o esposo começa a trocá-la sistematicamente pela profissão, atendendo diferentes casos ocorridos nas proximidades do vilarejo. A mulher passa um enorme tempo sozinha, desolada, servindo até de referência negativa para casais felizes também hospedados por lá, que apontam e comentam “não queremos nos tornar como ela”.

Decerto, há um clima meio Encontros e Desencontros, De-

sencanto e tantos outros filmes que criam esse triângulo amoroso, às vezes nem de ordem sexual, ativado pela indiferença de um dos membros do casal. No caso de Stroheim, ao invés de apontar a culpa para a mulher que se sente solitária, frustrada sexualmente e tentada a cometer o adultério, o cineasta lança seu veredicto sobre o marido e sua displicência. Para ilustrar, numa cena, a mulher pergunta a hora, ele sequer escuta e ela termina obtendo a resposta do tenente. A partir daí, a dama se afasta gradualmente do médico-amado distraído e se aproxima do novo rapaz atento, cuja estratégia segue a linha da conquista de um galante, enfatizando coincidências e encontros como


II Filmes de amor

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movimentos cósmicos, tudo para emplacar uma magnitude do momento vivido entre os dois. Só que tudo não passa de armação, o romantismo assume uma faceta absolutamente cínica.

Por ser a primeira investida de Stroheim como líder de

uma equipe, não mais como assistente de uma referência cinematográfica do quilate de David Griffith, o filme possui alguns problemas de continuidade, de tal modo que a narrativa só consegue ser contornada por conta da excessiva presença dos intertítulos. Aliás, Maridos Cegos é quase um ensaio, uma variação menos sofisticada de sua produção seguinte, Esposas Ingênuas. Seja como for, aqui existe uma batalha entre homens, intensificada pelo embate entre homem e natureza e por uma vontade de emancipação sentimental da mulher. O momento que melhor resume a solidão da esposa acontece quando ela está se olhando no espelho, o marido aparece ao fundo dormindo, mas logo se transforma num casal feliz visto aos beijos no dia anterior. A inveja começa se transformar em culpa, especialmente depois dela passar pelos jogos insistentes de sedução do tenente, de ser vencida pelo cansaço e pela vontade, mesmo tendo completa consciência do perigo de se manter próxima dele.

Como viria acontecer em outras obras, Stroheim enfa-

tiza a importância da ironia como discurso, no sentido de falar


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sobre um determinado elemento para se referir indiretamente a outro. “Nos Alpes não há pecado” diz uma placa encontrada pelo tenente e pelo médico durante uma escalada na montanha em que, finalmente, explode a tensão entre os dois. Claro que o cineasta também envereda por certo humor: quando a relação entre o tenente e a mulher já foi efetivada, ele tentando a aproximação, ela fugindo para manter as aparências, todos estão reunidos numa pensão, quando um deficiente mental - alguém coberto de invisibilidade social - faz um escândalo e aponta a lascividade dos amantes, criando um constrangimento entre os presentes. A ética de Stroheim, uma ética da culpa, incide em resultados fisiológicos na mulher, transformando a moral em doença e estímulo para pesadelos: nesse contexto, o aparente final feliz não significa necessariamente que ela se recuperará. (fevereiro, 2013)


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A arte de enganar

U

m dos planos mais emblemáticos dos primevos anos do ci-

nema enquadra um homem do peito até a cabeça atirando com um revólver em direção a câmera. Tal plano encerra O Grande Roubo do Trem, do pioneiro da decupagem Edwin Porter e se distancia em absoluto do até então dominante teatro filmado do início do século XX. Conta a lenda que os espectadores de 1903 sentiram o medo efêmero de serem atingidos pelas balas, desviando a partir de seus lugares como podiam, semelhante à reação exasperada de algumas crianças em suas primeiras experiências com a terceira dimensão. Há um frescor da infância em ambos os casos. Numa das sequências iniciais de Esposas Ingênuas (EUA, 1922), o diretor / protagonista Erich von Stroheim, num plano-irmão ao de Porter, também atira em direção à câmera, traçando pela distância de duas décadas, um


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tratado das transformações ou inovações na gramática cinematográfica, na recepção do público e na própria pantomima interna dos filmes mudos.

Se Scorsese resgatou em Hugo Cabret a sessão d’A Che-

gada do Trem à Estação, dos irmãos Lumière, sublinhando um paralelo entre os primeiros experimentos cinematográficos e a recente ascensão do cinema 3D, o diretor de origem austro -húngara recuperou o plano incomum para articular o momento em que uma escolha estética assume um tom experimental – nesse caso, por não ser um plano aberto e pelo personagem encarar frontalmente a câmera / espectador quebrando a quarta parede – e o momento em que o estranhamento se dilui, é incorporado e institucionalizado num sistema de códigos até retornar sob uma perspectiva irônica. A maturidade do cinema de Stroheim é desenhada não apenas pelo domínio técnico ou pelo conhecimento do que veio antes, mas por sua capacidade de inserir a perversão como mote narrativo, abandonando a centralidade do bom casal com final feliz para adentrar uma espécie de sensualidade da vilania.

Não apenas no caso específico de Esposas Ingênuas, mas

de toda sua carreira, o cineasta demonstra uma imensa afinidade com o melodrama, utilizando da carga tradicionalmente


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conservadora do gênero para efetivar e acentuar um deslocamento moral. Mesmo com algumas cenas exaltadas de romantismo, Stroheim intensifica a ambiguidade das personagens, trabalhando com elementos que desfiam em possibilidades diversas a real complexidade do antagonismo entre o bem e o mal. Há uma arquitetura moral para além de um sistema binário. Na história, um falso e galante conde russo mora em Monte Carlo numa relação incestuosa com duas supostas irmãs e vive a base de dinheiro falsificado, aplicando golpes em mulheres da alta sociedade. Acompanhamos o passo a passo de sua mais recente investida: a esposa de um recém chegado embaixador norte-americano.

Basicamente, o cineasta media o adultério e o cinema

como artes do engano, de modo que, para produzir seu filme, ele gastou uma bagatela acima da média do período para reconstruir espaços de Mônaco, pois, assim como seu protagonista, assumia a importância do detalhe da mentira para conseguir injetar no espectador enganado um efeito de realidade. Marcado por uma descentralização dos cenários, seu retrato de uma aristocracia decadente foi filmado com banquetes reais, acompanhados de muito champanhe e caviar. Questionado se não era possível substituir por similares mais baratos,


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Stroheim manteve sua decisão com altivez, justificando suas extravagâncias dizendo que não podia “substituir porque meus atores iriam saber a diferença, eu saberia a diferença e, claro, a câmera também ficaria sabendo”.

Seja como for, o grande trunfo do diretor é lançar seus

personagens num mundo passível de julgamentos equivocados, de emoções não bem localizadas e especialmente de um sistema moral cristão baseado na culpa. Delineando sutilmente o contexto pós-guerra, ele constrói uma cena em que a embaixatriz deixa cair o livro que está lendo perto do pé de um homem – ironicamente chama-se Esposas Ingênuas, escrito por Erich von Stroheim –, mas ele não o apanha e ela fica revoltada com a falta de cavalheirismo. Dias depois, ela está saindo do hotel e sente-se extremamente culpada ao presenciar o casaco do mesmo rapaz caindo no chão, revelando que ele tinha perdido os dois braços na Primeira Guerra Mundial. Esse é apenas um exemplo do funcionamento cruel do mundo, ainda que essa crueldade venha impregnada de contradições: a empregada, aparentemente uma ‘boa’ pessoa e apaixonada pelo conde, tem uma crise de ciúmes e coloca fogo na casa com a intenção de matar o amado e sua suposta amante. Antes, contudo, liberta um passarinho de sua gaiola e, então, comete


II Filmes de amor

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suicídio, decisão que jamais estaria dentro de uma produção hollywoodiana após a implementação do Código Hays, que conduziria a moral do cinema norte-americano da década de 1930 até meados dos anos 1960.

De fato, o próprio esboço do vilão não cai na caricatura

rasa. Apesar do cinismo encarnado, quando finalmente verbaliza com lágrimas nos olhos o pedido de dinheiro para a sua vítima, por causa de uma dívida que precisa ser paga com “dinheiro ou sangue”, causa certo desconforto com a situação. Afinal, mesmo já conhecendo bem o seu caráter, o diretor não procura esconder isso, a cena induz – amparada por outras, especialmente quando uma das irmãs reforça: “queremos o dinheiro, não a mulher” – que trata-se de um momento de vacilo, que talvez ele esteja sendo honesto, quase como se o semblante da culpa nos confortasse. Acontece que após ela ceder aos encantos do rapaz, o rosto do falsário vai se transfigurando lentamente até atingir um sorriso, não a gargalhada que marca os grandes vilões, mas uma expressão contida e totalmente maligna.

Parte da ambiguidade presente na película tem ligação

com o perigo de quem negocia com as emoções, quem joga com os afetos. Há sempre o risco de terminar se apaixonando por uma de suas vítimas. As intenções dos personagens – uma


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das irmãs, o conde e a embaixatriz – parecem florescer numa cena em que os três trocam olhares perigosos entre eles. Há na materialidade da expressão toda a ironia de Stroheim, cineasta que não cansou de questionar a atração pelas pessoas que costumam nos dedicar algum cuidado, quase como se o amor fosse uma entidade instaurada por um misto de carência e culpa. Ao repetir o tema da traição algumas vezes em seus filmes parece concordar com o escrito de algum filósofo, não sei se Kant ou Hegel, que certa vez escreveu que a certidão de casamento nada mais era que a certidão de apropriação da genitália alheia, portanto, um documento capitalista de propriedade sobre o corpo do outro.

O cineasta brinca: a traição está no ato de quebrar as

determinações do contrato, ou seja, na atitude do traidor; está na culpa cristã sentida por conta da efetivação do ato ou está no sentimento do dono do contrato, ou seja, na consciência de quem se sente traído? Ele deixa a dúvida para os espectadores, para como nós encaramos a questão em nossas vidas: mantemos as respostas iguais mesmo transitando entre diferentes posições? Tal flexibilidade moral imanta a importância da aparência na constituição de uma classe: não é preciso ter o dinheiro ou títulos para ser aristocrata, basta aprender minuciosamente


II Filmes de amor

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os hábitos, os modos de fazer, pois um estrato social não se identifica pelas estatísticas, por uma abstração numérica, mas pelos pequenos atos, um determinado comportamento, uma postura altiva, pela indumentária e toda entonação do corpo.

Quando um estranho se aproxima de uma classe que

não a sua precisa passar por algumas provações para formalizar seu pertencimento ou sempre ficará marcado com um estranho no ninho. Por isso, não é incomum que pessoas terminem se relacionando num sistema endogâmico, com indivíduos da mesma classe: ainda que não aconteça de maneira essencialista, que exista a possibilidade de transgressão, a recorrência é vermos essas pessoas frequentarem os mesmos lugares, contarem com as mesmas referências, estarem ligados a um mesmo paradigma básico do gosto e inseridos num sistema de símbolos similar. Amante dos cruzamentos metalinguísticos, o próprio Erich von Strohein colocou ‘von’ em seu nome para reforçar, entre os profissionais de cinema norte-americanos, uma descendência nobre trazida de Viena. Mas, na real, ele era um judeu fugido que havia deixado o leste europeu por causa de dívidas.

Como é notável em Os Miseráveis, de Victor Hugo, du-

rante alguns séculos, as pessoas não apenas usavam as roupas diferentes de acordo com a classe que pertenciam por uma


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questão de poder aquisitivo, mas para que as linhas sociais ficassem claramente determinadas em termos visuais. Quem, por exemplo, fosse um vassalo e usasse um fraque poderia ser preso em flagrante, isto é, a lógica atual dos uniformes dos trabalhadores se aplicava em todos os ambientes sociais. A farda é um elemento que serve, dentro da escola, para manter todos os alunos numa ficcional igualdade visual, sem mais pobres ou ricos identificáveis pelas roupas que vestem. No entanto, fora desse ambiente, no mundo do trabalho e do consumo, serve para que o consumidor não confunda nunca outro consumidor com a atendente na loja ou com o garçom, nem perca seu tempo procurando. Vale dizer que a fuga desse constrangimento se baseia numa regra de convivência pragmática sob o viés da clara segregação dos corpos dos indivíduos.

Nesse contexto confuso de simulacros e emulações de

classe, Stroheim direcionou ao longo de sua carreira grande parte de seu projeto estético para os vilões, alguns dos quais foram inclusive interpretados por ele mesmo, personagens banhados de moralidade incerta e distantes dos padrões arquetípicos. O cineasta talvez seja um dos pioneiros desse tipo de criação moderna no cinema, a câmera nos convida a partilhar da experiência do conde, mais do que acompanhantes, somos


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tomados de assalto por seus olhos e intenções. Tanto que o famoso happy end do melodrama em Esposas Ingênuas e também em Maridos Cegos surge tão bruscamente, que deixa um gosto amargo, quase como se explicitasse o Deus ex-machina como obrigação imposta pela indústria e pelos desejos dos espectadores. O final é bem submetido a uma moralidade conservadora retornando aos princípios do melodrama combatidos ao longo do filme, especialmente com a leitura do embaixador quase traído para a sua esposa: “ela se decidiu e finalmente achou no seu próprio marido o que procurava num falsificador”. No entanto, o tom da narrativa é tão cínico que a lembrança que fica é a seguinte: “e então, ela se acomodou”. (fevereiro, 2013)


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Fantasmagorias

T

enho tido a leve impressão de que a longevidade de Ma-

noel de Oliveira - impressionante, claro – vem ocupando o espaço dos comentários sobre os seus filmes, quase como se o diretor português tivesse envelhecido cem anos nos últimos dois. Óbvio que não estou criticando ninguém por repentinamente abrir os olhos e perceber que o tempo passou, que os cabelos se tornaram brancos, caíram e que os pés continuam firmes, mas há um perigo básico nessa recorrência, pois logo perdem a fronteira básica entre a premissa do comentário, a amabilidade do reconhecimento e as piadas infelizes. Seja como for, com O Estranho Caso de Angélica (Portugal / Espanha / França / Brasil, 2010), o cineasta português inscreveu seu suave segmento numa dolorosa tradição de filmes em que personagens seguem numa jornada de adoração / obsessão diante


II Filmes de amor

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da morte, impossibilidade ou fuga do ser amado. Um suave segmento como o rabo de um gato balançando ao vislumbrar um passarinho na gaiola, sintoma metafórico que, para Jean Baudrillard, tende a revestir objetos, animais e pessoas de um valor excepcional, rompendo as bases, robustas ou não, de qualquer racionalidade. Em O Estranho Caso de Angélica, o amor de Isaac é inventado numa situação pós-mortem. Ele, um judeu andarilho, é contratado numa noite chuvosa para tirar uma fotografia da personagem título morta e ela, sapecamente, sorri através da câmera quando, enfim, é enquadrada. A partir desse fato, desenvolve-se uma ponte entre a busca de uma imagem revelada e a presença fantasmática. Criase uma áurea típica da experiência traumática da perda do que se ama, uma experiência próxima a resignação de não poder contemplar os próprios desejos, dotando o indivíduo de um medo da aproximação, de passar por perto, de ver o/a amado/a andando com outro(a) no lado oposto da rua, de sentir o cheiro, ansioso pelo esquecimento. Por fim, termina caindo no irreversível lembrar e um lembrar cada vez mais intenso. Em muitos casos de fim de relacionamento, a distância é incutida como cura, mas uma cura que pode


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trazer consigo o ressentimento, a amargura. Uma noção que em Oliveira assume um estranho caráter lúdico saltitante.

Sua fábula reafirma a simplicidade própria da expe-

riência madura, o que nada tem a ver com cansaço ou desapego, pelo contrário, tem a ver com tranquilidade, doçura, exatidão, com a capacidade de vestir a paranóia mais doida com uma formosa alegria. Assim, atinge o ápice quando o protagonista voa num sonho, de mãos atadas a de uma fantasma, ambos em preto e branco, num efeito digital que parte do cinema de George Meliès para encontrar os quadros oníricos de Marc Chagall. Ambos passam sorridentes pelos rostos embasbacados de todos nós. Aliás, para além de apontar e sobrevoar um século, Angélica costura uma ligação parental com o filme anterior de Oliveira, Singularidades de uma Rapariga Loira (Portugal, 2009), inspirado num conto de Eça de Queiroz: um rapaz - interpretado pelo mesmo ator da obra mais recente, Ricardo Trêpa (neto de Oliveira) - se apaixona por uma donzela de leque nas mãos com quem troca olhares pela janela. O rapaz encontra a garota, se enamoram, marcam o casamento, ele é expulso de casa pelo tio, precisa viajar para trabalhar, sempre tem pressa para casar, mas logo descobre que havia cometido uma singela falha de


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percurso: anestesiado pela estonteante beleza, esqueceu de conhecer a rapariga loira para além da imagem que ele próprio, Macário, tinha esculpido idilicamente.

Se no passado o rapaz conseguira a mulher que dese-

jara, agora, sozinho, cabisbaixo, viajava de trem para o Algarve, arrastando justamente a dor e o peso de tê-la tido ao seu lado e de ter sido obrigado a abdicar por conta de um 'imperdoável' hábito descoberto durante a compra das alianças. Ilustrando ambos os filmes através das figuras femininas - e se deixando ilustrar - Manoel de Oliveira ressalta mínimos gestos ingenuamente eróticos que, talvez por isso, se mostram mais encantadores, graciosos, como um sorriso sapeca na boca de uma morta em Angélica ou um olhar de ressaca na ninfeta de Rapariga Loira. O universo diegético do diretor português amplia seu charme por meio da confusão temporal na qual se embala, pois não sabemos propriamente 'quando se passa a história', existem algumas referências recentes em Angélica, a crise econômica, a poluição, mas é como se o encadeamento de elementos "esquecidos" nos planos, os quadros, a mesa, os tapetes, as poltronas, estruturassem um antiquário reunindo e confluindo épocas distantes. Essa dimensão se intensifica graças aos diálogos saídos dos nossos avós, da


Fantasmagorias

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moral flutuante, do próprio desejo de Isaac - amante das 'coisas antigas' - em retratar homens que aram suas terras com inchadas, não máquinas, procurando resgatar um cotidiano negado pela Modernidade.

As fotos reveladas, da Angélica morta e da morte de

uma prática, repousam juntas no mesmo varal. Se formos adentrar um pouco pelos bastidores, saberemos que o argumento de Angélica foi escrito ainda no final da década de 1940 e o filme parece agregar essa passagem de mais de sessenta anos em seus enquadramentos estáticos, calmos, de quem tem a curiosidade instigante do observar pelo observar. Em Rapariga Loira, por sua vez, uma das cenas se passa não por acaso num antiquário: plano aberto da porta de entrada, penumbra que torneia a profundidade de campo, detalhes dos múltiplos objetos que postulam um diálogo de tempos através deles. Seguindo o mesmo caminho, o primeiro encontro com uma apresentação direta do futuro casal acontece numa sala de estar suntuosa em que cada canto parece saído de um ano diferente da Era Moderna - incluindo os próprios rituais, as condutas, a leitura do poema, os figurinos, a mulher tocando harpa, a cortina da época de Goethe, os sapatos engraxados, o leque oriental da rapariga loira.


II Filmes de amor

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O anacronismo afetivo e delicado de Oliveira nos con-

cede a chance de desapegar e formalizar o não pertencimento exclusivo a uma única geração, a um bojo de referências restritas, nos revestindo de uma fluidez ao ponto de desenvolvermos (ou cortarmos) fios umbilicais com autores e épocas que não as contíguas ou infantis, libertando alegremente nossos desejos no vasto campo das idiossincrasias da história da humanidade. O cineasta português se espalha nos últimos cem anos e ultrapassa, não se rendendo a um delírio megalômano, mas artesanalmente costurando uma caixinha de imagens talhadas em tempos distintos. A semelhança entre os dois filmes também se revela em suas pausas através de idênticos planos da cidade, aparecendo sempre em sequência, cuja única mudança é a passagem de dia para a noite e vice-versa: a separação dos tons é usada para adentrar os extremos da alucinação em Angélica e extremos da obsessão em Rapariga Loira.

Se de manhã, Isaac e Macário tiram fotos, tomam café,

pensam, trabalham, flertam, se espreguiçam; à noite têm pesadelos, cultivam olheiras, vivem num quarto verde minúsculo, preocupam-se, frequentam saraus, jogatinas, voam pela cidade segurando a mão de uma fantasma. Os dois não conseguem partilhar a dimensão de suas existências, a solidão que impreg-


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na suas vidas, seguindo o destino de uma das frases de Rapariga Loira, dita por um narrador bastante discreto: "o que não contas a tua mulher, o que não contas a um amigo, contas a um estranho”. Por vezes, um estranho é como um fantasma e apenas com os fantasmas podemos partilhar certos segredos, velhas lembranças ou as mais obscuras de nossas opiniões. (outubro, 2010)


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Difícil ser feliz

A

narrativa de E Deus criou a mulher (França, 1956), de Roger

Vadim acompanha o despertar sexual de Juliette, interpretada por Brigitte Bardot. Mesmo atraída fisicamente pelo irmão mais velho, Antoine, ela termina se casando com Michel, o irmão do meio, interpretado por Jean-Louis Trintignant. Sua decisão é inicialmente movida pelo pragmatismo: ela não quer voltar a viver no orfanato. No entando, a partir da convivência, Juliette vai descobrindo as profundas qualidades de seu marido e começa a se apaixonar sinceramente por ele. Só que Antoine retorna para viver com a família, todos sob o mesmo teto. Juliette, então, se dilacera entre o desejo de felicidade e harmonia com o marido e a atração visceral pelo cunhado. Não quer ser levada pela paixão física, mas sabe que se manter a proximidade, acabará cedendo. Certa noite, Michel desperta


Difícil ser feliz

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e percebe que sua mulher não está no quarto. Encontra-a na praia, perto da casa, desolada na areia. MICHEL: Você não está feliz? JULIETTE: Você deve me amar um bocado. MICHEL: Sou louco por você. JULIETTE: Então diga. Diga que me ama, que sou sua, que você precisa de mim. Beije-me, Michel. Beije-me! Estou com medo. MICHEL: De que, meu bem? JULIETTE: É difícil ser feliz.

Nunca Brigitte, a atriz, tinha sido tão profundamente

honesta e desesperada. Ela era realmente Juliette, que queria amar o marido e salvar seu casamento, sabendo que jamais


II Filmes de amor

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conseguiria vencer o seu desejo. Era também Brigitte, ainda apegada ao marido e apavorada pela idéia de abandoná-lo por um homem que acabara de conhecer, um ímpeto no qual não podia ou queria resistir. Era como um mundo de espelhos, com uma sutileza pirandelliana. Jean-Louis Trintignant, seu marido no filme transformou-se ao longo das filmagens em seu amante na vida real. Quando disse para a câmera que estava com medo, Brigitte-Juliette estava, na verdade, falando com o diretor e seu marido até então: Roger Vadim.

Ele confessa: "não tenho certeza de quando Brigitte e

Jean-Louis fizeram amor pela primeira vez. Mas percebi que já tinham se tornado amantes quando estávamos rodando uma das cenas principais. Depois de gravarmos a cena na praia, já em nosso quarto, no Hotel Negresco, após a filmagem, perguntei a ela: “ele é seu amante, não é?”. Ela respondeu-me: “sim”. Continuei: “você o ama?”. Ela com os olhos perdidos: “Estou com medo”, mas antes de dormir, quase sem forças, murmurou: “é difícil ser feliz”. Até hoje não sei ao certo se ela estava repetindo deliberadamente a fala do filme ou se estava dizendo o que sentia". (janeiro, 2009)


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Entre amores

ELA Mas o amor não é isso. Se eu estivesse doente, ainda me amaria? E se me caíssem os cabelos? E se eu perdesse os dentes, ainda me amaria? E se enlouquecesse? E se enlouquecesse, ainda me amaria?

Q

uando se traça uma genealogia da carreira de inúmeros

cineastas que rasgaram décadas com seus filmes, especialmente a partir de 1960, costuma-se dividi-la em duas fases hierarquicamente muito bem definidas. A primeira marcada pelo experimentalismo, por fotogramas sem concessões, pela ausência de dinheiro, enevoando o período com a aura do autor verdadeiramente livre; e a outra, mais narrativa, uma mera adequação aos preceitos do mercado, créditos e créditos de empresas financiadoras, quase como uma desistência ou rendição ideológica. O


II Filmes de amor

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caso de Philippe Garrel seria exemplar se não funcionasse justamente para reverter e desmantelar esse esquema simplório. Seu cinema decerto pode ser dividido em duas fases, a experimental e a narrativa, ambas cientes de seus distintos rigores. No entanto, ao invés da relação entre elas se estabelecer como a do parafuso hermético que é desenrolado e planificado, o segundo momento contém e registra suas próprias nuances, suas próprias potências, mas sem precisar evidenciar em primeiro plano suas estratégias narrativas. O foco é outro. Em A Fronteira da Alvorada (França, 2008), por exemplo, não existem letreiros brilhosos: “olhem, cinéfilos e estudantes de cinema, sou experimental” e ainda assim, o filme é ritmado pelas elipses tão marcantes da filmografia do cineasta francês, que entre a tragédia e a filosofia pop dos relacionamentos, consolida uma poética de caminhadas e saltos no tempo, desenterrando presenças adormecidas. Na diluição do maneirismo, alguma coisa acontece.

Há algo de similar em O Nascimento do Amor, só que na

obra em questão, o passeio é tanto pelo início quanto pelo final dos relacionamentos – “os rompimentos bem que poderiam ser tão bonitos como os começos” – esboçando um inventário de amores vividos e lembrados, os dolorosos momentos de transição entre eles, a melancolia dos últimos encontros e a época em que nem


Entre amores

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nos demos conta, mas não nos víamos mais. Se fôssemos traçar uma genealogia de A Fronteira da Alvorada, poderíamos dividi-lo em dois capítulos e um epílogo, não hierarquicamente definidos. O primeiro em que o fotógrafo François se vê arrastado para um relacionamento com a atriz Carole, um encontro atravessado pelo prazer na cama, pelo rangido fora dela, pelos impulsos violentos, pelo acaso e por angústias coletivas. O segundo em que encontra Ève, levando-o aos passos tranquilos, sem grandes desafios, que o convida à resignação do casamento e da felicidade burguesa. O primeiro, em termos freudianos, estaria próximo do “princípio de prazer”, da recompensa imediata, do gozo instantâneo, de não poder dizer que ama porque o amor se prolonga, enquanto o segundo fundaria suas bases no “princípio de realidade”, do adiamento da gratificação, do elogio das cartas com frases bonitas e apenas bonitas, de aprender a suportar a falta de expressividade do cotidiano. Na fronteira de ambos os princípios, alguma coisa acontece.

O epílogo surge justamente quando o “princípio de pra-

zer” – para alguns, o momento da imaginação no poder; para outros, o percurso na imaturidade – passa a assombrar a entrada indecisa de François no “princípio de realidade”. No primeiro momento, há um universo de ciúme e desconfiança – “não sei o


II Filmes de amor

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que você faz quando não está comigo” – onde o protagonista não se conforma com a impossibilidade de simbiose completa, angustiado por não ocupar todos os espaços, encolhendo-se diante dos amigos dela que não são seus amigos e onde qualquer atitude, absolutamente qualquer, pode se transformar numa ofensa. Os rostos estão mais próximos da câmera, os perigos agachados a cada esquina, a cada campainha e a intensidade só anuncia o fim que se aproxima. As cenas de passagem antecipam um decadentismo, que nada mais é que a perda de sensibilidade, por meio do abuso de drogas sem inquietações perceptivas, do internamento numa clínica psiquiátrica, dos eletrochoques que nos levam a L’Enfant Secret e da posterior morte, presença-ausência que ecoa durante toda filmografia do diretor. Ela enlouqueceu e ele a deixou.

Na segunda parte, o sexo com Ève é bom, traz alguma

satisfação para os dois, mas é correto demais, nada é inapagável, todo resto é fácil, os afetos estão mapeados e ela, a garota, é frágil. Até o pai comenta num diálogo de homens que acham que podem prescrever o destino da mulher. A decisão do fotógrafo de ficar começa a atormentá-lo, assim como a todos que se casam e antes dos votos de eternidade, ralam o pé no suicídio. Não há o mesmo timing de beijos, de acertar um carinho no


II Filmes de amor

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cabelo, uma aproximação que desarruma o comportamento do outro. A presença fantasmática de Carole, um trauma no inconsciente – que estabelece um diálogo com dois filmes portugueses, Odete, de João Pedro Rodrigues e especialmente O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira – assume o papel do passado utópico, obstinado, que quer resgatar François de um futuro burguês de desinteresses. A fronteira em questão é entre Carole morta e seus descaminhos e Ève viva e suas retenções, gráfico nunca exato, medida inconclusiva, mas cujo tracejado deixa de existir completamente quando ambas ocupam uma dimensão semelhante e deixam François num dilema diante da janela. Ele só precisava tirar fotos, mas logo se apaixonou pela imagem. (agosto, 2011)


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III Histรณria, tempo, memรณria


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Mulheres na guerra

V

ou me dar ao direito de desenvolver boa parte desse ensaio

como uma longa digressão: não lembro exatamente quando começou minha curiosidade pelas guerras, talvez quando encontrei, ainda pequeno, cascavilhando na biblioteca do meu pai, um imenso livro de fotografias que se pretendia uma história ilustrada da Segunda Guerra Mundial. Hoje, folheando a publicação editada por Charles Herridge, percebo como minha atração inusitada recaía sobre os líderes embriagados em sua própria compostura; sobre as paisagens assoladas, prédios incendiados, ruas ocupadas; armamentos, tanques, embarcações; aeronaves e suas vistas aéreas; uma mistura de austeridade, tecnologia e ruína. Sentia-me, também, enfaticamente seduzido pelas expressões humanas anônimas do conflito, soldados ora cabisbaixos, ora festivos, ora mutilados, ora em ação; prisionei-


III História, tempo, memória

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ros famintos, refugiados arrasados; mulheres grávidas, mulheres com as cabeças raspadas, crianças com o olhar certeiro de estarem, a partir daquele momento, sozinhas no mundo.

Seguramente posso afirmar que esse conjunto docu-

mental ao registrar as demandas das inúmeras batalhas e do desastre humano, conseguiu materializar no meu imaginário a experiência, o clima, a atmosfera do que significava um evento histórico e imprimir em definitivo o semblante de seus personagens centrais. Nunca vou esquecer das terríveis supostas fotos da morte de Mussolini, exposto por dias de cabeça para baixo numa praça em Milão. A partir desse contato primeiro, o interesse pelo acontecimento guerra só cresceu, parte de minha reclusão na pré-adolescência foi dedicada ao estudo - na Barsa - da história da humanidade pela perspectiva de fatos similares – Guerras Médicas, Guerra do Peloponeso, Guerras Púnicas, Guerra dos Cem Anos etc – mantendo uma atenção especial para o meu ponto de partida pessoal e mais devastador acontecimento militar do século XX. Aliás, ainda sinto uma imensa atração pelo tema, dado que dia desses comprei uma enciclopédia com doze livros da evolução de veículos militares através dos conflitos e não consigo me desvencilhar da empáfia que me


Mulheres na guerra

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suga quando fico sabendo de algum confronto novo eclodido no quinto dos infernos. Sou, afinal, um devoto de Ares.

Se não tenho lembranças da Guerra do Golfo por uma

questão de idade e depois o conflito me entediava porque as imagens lembravam os jogos mais básicos do Atari, tudo era muito distante e seguro; a Guerra da Bósnia perpetuou imagens na minha memória, pois havia uma imersão ampliada, as câmeras estavam no meio das batalhas, as balas zuniam captadas pelos microfones, pessoas eram baleadas dentro dos planos, jornalistas em passagens ao vivo precisavam lutar por suas vidas, prédios eram quase aleatoriamente atingidos por mísseis. Havia todo um agenciamento da morte transmitida para o planeta inteiro, situação já insinuada pelas fotografias da Segunda Guerra, especialmente numa fotomontagem propagandística de Hitler sorrindo num campo de milhares de russos mortos ou numa captação aérea em Hiroshima após a bomba. Nada, contudo, com tanto realismo e proximidade das imagens coloridas da TV.

Por algum motivo que só a terapia um dia poderá res-

ponder, com oito ou nove anos, mal entendia aquela complexa correria, mas sentia um desejo de acompanhar tudo ainda mais de perto: só sabia vagamente que o desmembramento da


III História, tempo, memória

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antiga Iugoslávia tinha transformado em inimigos, da noite para o dia, antigos vizinhos, literalmente vizinhos de rua que haviam compartilhado a mesma vizinhança por décadas, mas que tinham sido inflados por suas origens étnicas e religiosas diferentes. Recentemente, lendo Uma História de Sarajevo e Gorazde, dois livros do jornalista em quadrinhos Joe Sacco, consegui formalizar o impacto de minha aproximação precoce com a ansiedade compulsiva dos profissionais de comunicação pelas tragédias. Eu não os via como urubus em busca da carniça ou vítimas do forçado ímpeto investigativo empresarial, mas como agentes que, naquela situação, soltos num campo em chamas, não podiam se manter neutros para sempre, pois o flerte com o perigo os obrigava a escolher e lutar por um dos lados.

As imagens do livro, por mais fortes que fossem, repre-

sentavam para mim uma ideia de imagens históricas, portanto, grandes, imutáveis, definitivas e distantes da minha realidade. Já as imagens vindas dos Balcãs surgiam num regime ontológico distinto, como se fossem imagens privadas, não necessariamente históricas, despertando meu interesse não pela história da guerra, mas pelas histórias ocorridas durante a guerra. A partir disso, assistir um filme como Mulheres no Front (Itália, 1965), de Valerio Zurlini, mesmo já tendo intimidade com


Mulheres na guerra

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tema, foi como ficar diante de um passado desobediente, inebriado de fugas, reerguido diante dos olhos. Não obstante, antes de prosseguir, há, ainda, uma terceira e última lembrança para finalizar esse panorama pessoal, para além das imagens históricas da Segunda Guerra Mundial e das imagens privadas televisivas da Guerra da Bósnia.

No final da minha infância, minha mãe, aproveitando

o ensejo de meu interesse primordial pelo tema, começou a contar histórias de filmes de guerra como histórias de guerra, mais ou menos distorcidas em suas linhas gerais, algo que só descobriria anos depois quando me deparei com algumas produções americanas sobre o Vietnam e italianas sobre a Segunda Guerra Mundial. Havia naqueles contos da noite a junção de duas dimensões apreendidas de maneiras distintas e metodicamente disjuntivas: a dimensão privada dentro da dimensão histórica e a dimensão histórica dentro da dimensão privada. Podia ver as lágrimas escorrendo pelos amigos perdidos no Dia D para além da importância estratégica do Dia D, podia sentir a insônia de décadas dos desesperados que sobreviveram ao ataque incendiário a Dresden. Quase em todos os casos, suas versões ressaltavam a situação das mulheres nos conflitos, sempre descritas como figuras cientes de que não podiam


III História, tempo, memória

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confiar em ninguém e passíveis dos mais terríveis abusos. Ela costumava dizer - evocando vietnamitas estupradas, italianas estupradas - que "na guerra (e talvez na vida), a mulher está em guerra contra todos os exércitos".

Não posso afirmar se algum dia, minha mãe chegou a

comentar exatamente o filme de Valerio Zurlini em questão. Suspeito que sim. Lembro bem, no entanto, dela rememorando Duas Mulheres, de Vittorio De Sica, produção em que Sophia Loren interpreta uma mãe que, junto a sua filha adolescente, foge sistematicamente de cidade em cidade; foge dos norte-americanos, dos italianos, dos alemães, dos homens. Capturadas, elas são violentadas ao mesmo tempo, uma de frente para a outra, dentro de uma igreja em ruínas. Acredito que através dessas três experiências, descritas aqui de forma quase didática, compreendi a intenção destacada no depoimento de Zurlini: “lendo os clássicos entendi quanto é bela a fusão entre uma vida privada e os acontecimentos históricos. A minha profunda formação tolstoiana se revela igualmente nesta pequena equação: uma história privada é engrandecida, e se torna extraordinária, isto é, necessária, se tiver como fundo um grande acontecimento histórico”.

Ambientado durante a conquista da Grécia pela Itá-

lia com apoio da Alemanha nazista, uma nova intervenção


Mulheres na guerra

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militar que retoma vínculos coercitivos entre duas nações de ligação cultural milenar, Mulheres no Front começa com corpos estendidos no chão, numa época em que responder honestamente perguntas – como uma vez se referiu Dilma à Ditadura Militar – era perigoso. O filme acompanha a jornada de doze prostitutas, conduzidas por três tenentes de intenções paradoxais – um melancólico, um bobo violento e um fanfarrão materialista – no intuito de deixá-las em bordéis para satisfazer soldados italianos em batalha. A metáfora do calvário é até bastante óbvia, contudo, o filme consegue instaurar um complexo cenário do limite como situação cotidiana, não só pela paisagem física, dos espaços destruídos, inseguros, abandonados, não só pelo contexto macro que vez ou outra interfere diretamente nos rumos da narrativa, mas pela paisagem violentada dos rostos. No cinema de Zurlini, a marca de um trauma pessoal se transforma na marca da história.

Durante uma das primeiras cenas, na apresentação

das figuras femininas, um dos momentos antológicos da filmografia do cineasta, um travelling atravessa um vasto salão, capturando as mulheres e seus olhares lascivos, sombrios, sonhadores, um olhar frontal em posturas e pontos distintos do quadro. O painel expressivo é desorientador. À primeira vista,


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podemos achar que se trata de mais um filme tardio neo-realista, a prostituta novamente como modelo de heroína, numa história passada durante a guerra. Todavia, se o movimento cinematográfico tinha nas suas origens, a vontade de mostrar que os italianos não cometeram tantas atrocidades, revelando as lutas de resistência contra Mussolini no interior do próprio país ou os impactos póstumos do conflito na sociedade, Zurlini inverte a situação, revela os Camisas Negras, adentrando justamente no labirinto que fora deixada de lado, que fora apagado da memória cinematográfica de seus conterrâneos. Sua busca é pelo gosto amargo que muitos tentaram negar.

Mais que isso: Mulheres no Front traça uma incursão pela

desesperança das prostitutas e seus condutores, conta não a história da guerra, mas a história da intimidade na guerra, dos anos perdidos na guerra, das necessidades e sonhos na guerra, amplificando o microcosmo por meio da melancolia dos contatos mínimos e dos gestos aparentemente distraídos. Acontece que num mundo dominado pelos homens, a guerra só pode ser pensada como o universo da estratégia, do domínio, estimulando o cineasta a se dedicar à figura das mulheres, presas ao universo da tática, que, para Michel de Certeau, significava a arte do fraco que utiliza, manipula e altera os mecanismos de


Mulheres na guerra

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dominação, subvertendo-os. A tática diferentemente da estratégia não é capaz de cavar trincheiras em todas as esferas de poder, não é capaz de lutar de igual para igual, afinal sua especificidade é a de exercer pequenas fraturas, muitas das quais desordenadas, funcionando quase como uma “arte dos golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras do espaço opressor”.

No filme, essa situação permeia toda narrativa como

uma forma de sobrevivência: quando um grupo de homens bêbados ameaça invadir à força o lugar em que as mulheres estão passando a noite, uma delas, toma a frente da porta e avisa: “uma de nós tem sífilis, mas não vou dizer qual”. Todos terminam desistindo. Não se trata de um discurso machista sobre a fragilidade, assim como também não há exatamente uma consciência combativa e feminista: Mulheres no Front pensa a resistência sem atravessamentos ideológicos claros, uma resistência primitiva dos corpos, uma resistência quando resistir é a única opção de sobreviver. Segue, assim, costurando um embate entre vários dramas pessoais, desses que jamais entrariam nos livros convencionais de história, particularmente focando na relação entre o tenente melancólico e a prostituta mais arisca. O filme carrega o olhar dos trens na guerra, sempre levando pessoas para longe, o olhar da derra-


III História, tempo, memória

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deira noite de amor, alimentado por elementos e ímpetos de despedida, conjurando um sentimento tenro que vai pouco a pouco se degradando. Chegada a hora, o trem partirá e aqueles rostos não voltarão a se ver.

O encontro entre dois animais profundamente feridos,

um homem considerado frágil pelo exército e uma mulher considerada impetuosa pelas outras mulheres, conduz uma reflexão sobre o masculino e feminino para além das determinações de gênero. A cena final, provavelmente a mais bela de todos os filmes de Zurlini, mostra os dois recém amantes em sua primeira e última noite de amor: ela solta uma longa sequência de palavras, desconsiderando qualquer possibilidade de se verem novamente, de terminarem como nos finais felizes tão comuns: “mas nós dois, estamos aqui, temos a mesma idade, mas não a coragem de olharmos nos olhos. Fomos humilhados. Falamos como duas pessoas velhas e em poucas horas teremos de nos despedir. Quando tudo tiver acabado, quem nos restituirá todos estes anos? Poderá ser esquecido? Eu te amo, mas falando isso nessas condições é como se estivesse orando por um filho nosso que tenha sido morto”. Na sequência, tomam caminhos distintos. Ele se vira, espera um olhar. A história não cessa, ela prossegue em frente, sem virar para trás. (maio, 2013)


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Fantasia e História

A

sensação horas antes de sair de casa para assistir O Hobbit

(EUA / Nova Zelândia, 2012), de Peter Jackson, era a de que estava gradualmente, talvez tenebrosamente, voltando para o ano de 2002, sendo mais preciso para o dia primeiro de janeiro, quando A Sociedade do Anel entrou em cartaz no país. Diferente do momento adolescente áries com áries querendo ser o primeiro a ver, assumindo a postura de símbolo do saber; desta vez, a ansiedade nas semanas anteriores não tinha aparecido com tanta intensidade, não tinha me inundado de um inexplicável sentimento de prazer. Dez anos, afinal, pareciam anos suficientes para não ter mais a idade e/ou o tempo de me lançar na busca interminável por informações e curiosidades sobre a produção. Assimilei apenas o básico impossível de resistir: tanto o oba oba (só que o contrário) em relação à


III História, tempo, memória

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captação hiperrealista em 48 fps (frames por segundo), como o repercutido lenga lenga de fãs e críticos, acusando Peter Jackson de, apenas por causa dos lucros, ter transformado um livro curto infantil numa trilogia. E para quem olha de longe ou de muito perto é exatamente isso.

Como queria olhar numa distância agradável, para

além do velho lamento sobre a ética da indústria cinematográfica, para além dos exageros ortodoxos dos fanáticos e me focar na adaptação enquanto estratégia, arrumei um tempo dentro da rotina apertada para reler o livro de Tolkien na mesma semana. Nunca suportei o argumento de falta de fidedignidade ao original como desculpa para não gostar de um filme. Quando terminei a leitura na manhã da sextafeira de estreia, estava ávido pelas imagens, passei algumas horas contentando-me com os trailers oito vezes ou mais, o bastante para perceber o quão estava morrendo de saudades da Terra Média. Daí nem preciso relatar o embasbacamento emocionando quando as luzes se apagaram, quando começou a trilha sonora, quando apareceram os primeiros mapas, quando os anões cantaram, quando Gandalf contou sobre a existência de apenas cinco magos – deixando-nos a pergunta “afinal, como nasce um mago?” - e quando se desenrola a


Fantasia e História

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impressionante batalha do trovão, algo só sublinhado sem forma no livro, mas captado com proeza pela interpretação hollywoodiana de Jackson.

Admito de antemão que desde pequeno meu fascínio

pelos gêneros da fantasia e da ficção científica estava mais ligado ao meu tédio pelo mundo real, do que necessariamente pela capacidade inventiva das produções. Desejava comigo mesmo participar de uma sociedade com mais personagens, mais irrealidade e menos pessoas. Sem dúvida, um sentimento comum entre as crianças que diariamente partiam da sala de casa para outras dimensões, carregando consigo um punhado de referências do cinema, da televisão, da literatura, dos quadrinhos e dos videogames. De uma maneira ou de outra, eu transformava o cotidiano, o meu e o dos meus colegas, num espaço imantado de fagulhas de tempos mitológicos, um passeio sem volta por civilizações reais ou imaginárias, passando por universos distantes anos-luz até recuperar acontecimentos históricos grandiosos. E, assim, jogando muito RPG, fui pouco a pouco me transformando no que comumente chamamos de nerd.

Durante a adolescência, passei alguns anos esperando

um grande acontecimento, se necessário uma grande tragédia, qualquer coisa que me animasse um pouco, que movimentas-


III História, tempo, memória

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se a diferença, tirasse o mundo como conhecemos do lugar. O ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 correspondeu em parte às expectativas. Meus dias eram norteados por uma insistente nostalgia enquanto projeção saudosa pelo que foi, pelo que não foi, pelo que poderia ter sido e pelo que ainda poderia acontecer. Uma negação do presente como tempo criativo, ímpeto transformado em força motriz do embate entre sujeito e fantasia. E a Terra Média é pura nostalgia: são os anões querendo recuperar a sua casa e contando histórias daquele tempo; é Bilbo acanhado, triste e distante, lembrando da quentura de sua lareira; é Gollum – mais incrível do que nunca, na cena melhor adaptada do livro – brincando de adivinha para reaver o anel roubado. Peter Jackson redimensiona a mitologia de Tolkien através de uma sensibilidade pop, algo que desagrada os fãs radicais e que me parece a maneira mais emblemática de trabalhar esse universo. Se ele pesa a mão e acentua o grandioso em O Hobbit, uma trama originalmente mais doméstica e familiar, é apenas para aproximá-lo do tom épico do Senhor dos Anéis.

De todo modo, apesar das semelhanças cinematográfi-

cas, há uma distinção clara entre a narrativa de O Hobbit e o Senhor dos Anéis. Não só porque o primeiro foi escrito para os fi-


Fantasia e História

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lhos de Tolkien e lançado no final de 1937, mas, e aproveitando para fazer a defesa do filme, porque as páginas não se perdem em descrições ilimitadas como na trilogia. As palavras vão direto ao ponto. Assim sendo, uma mesma ação que se desenrola em duas páginas ou que é apenas levemente citada se transforma em longas sequências, como se o diretor estivesse aproximando o argumento do livro isolado da maneira de contar da trilogia, ampliando seu domínio e mapeamento audiovisual da Terra Média. Ou seja, mesmo só adaptando os seis primeiros capítulos em Uma Jornada Inesperada, os roteiristas inseriram referências provindas de apêndices ou trechos de outras obras do autor, num claro movimento de acoplar a trilogia vindoura com a anterior. A ênfase no Necromante, por exemplo, renderá nos próximos filmes uma gênese mais detalhada de Sauron, incursão totalmente inexistente na literatura.

O Hobbit é um bom exemplar de narrativa de travessia,

formato em que um grupo com uma missão específica segue em direção a um determinado destino, atravessando paisagens completamente diferentes, tais como florestas selvagens, descampados, pântanos, montanhas congeladas e cidades de Orcs. Um dos integrantes da comitiva, geralmente o último a decidir participar, no caso Bilbo Bolseiro, atravessa a sua jor-


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nada também passando de figura desacreditada pelos outros, ganhando pouco a pouco o respeito até se tornar um líder respeitável. É fundamental que a cada obstáculo vencido, um detalhe seja acrescido nas relações pessoais. Essa premissa é bastante próxima da aventura de Frodo, só que o pequeno amigo de Sam não assume a postura de líder, mas de salvador, com todos os 'coadjuvantes' funcionando ao seu modo como protetores. São duas posições bem diferentes.

Lendo algumas críticas depois de assistir ao filme e

depois de fuçar em busca de toda merda possível vinculada - livro de receitas dos anões, livro de auto-ajuda para viver tranquilamente como os hobbits - percebi a repetição de uma mesma ~opinião~: a cena inicial é ~cinematograficamente~ enfadonha. A festa inesperada é o primeiro capítulo do livro, acredito que a duração na tela seja cirúrgica no sentido de destrinchar, com a devoção e apropriação de Jackson, os hábitos de um hobbit, o contato com os anões e o jeito ardiloso da persuasão do mago Gandalf. Bilbo, com todas as suas antiguidades e panos ornamentais, um ser miúdo e simpático que gosta de receber visitas, mas que jamais se meteria por vontade própria numa aventura, surge como uma parábola de todos que têm medo e receio de abandonar, temporaria-


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mente ou não, suas vidas confortáveis e acomodadas. Ele é simultaneamente a vida adulta estabilizada e a negação do sonho de ir além.

Nada mais justo que o convencimento, num contrato que

fala sobre lacerações e incinerações, dure pelo menos quinze minutos. Ainda nesse momento, pode parecer que não, mas é muito importante quando os anões cantam, porque se, por um lado, os anões são um povo festivo, adoram beber e comer; por outro, eles são também um povo ferido, nômade, que teve seu lar assolado pelo dragão Smaug. Os anões costumam usar das canções para anunciar uma jornada ou para comentar o que aconteceu com seus antepassados. Cantam tanto a própria história como o prenúncio dos próximos passos, quase como se arquitetassem planos e cavassem lembranças através de uma mesma camada de versos. Portanto, a obra de Tolkien, muito bem adaptada por Jackson, não fascina pelos seres mágicos jogados de maneira aleatória, mas pela minuciosa capacidade de criar diferentes culturas e intricadas relações dentro de um mundo mitológico imaginário (ok, que presta contas com várias culturas europeias).

Cada uma das raças possui elementos específicos facil-

mente reconhecíveis, traços que passam pelo próprio porte físico, mas adentram a indumentária, o cotidiano, a gastronomia, a


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moradia até atingir o ápice do detalhismo por meio das línguas distintas e dos artefatos mágicos que tensionam todo o universo da saga. O autor conseguiu inventar uma tradição para a Terra Média, no sentido colocado por Hobsbawm, isto é, conseguiu formalizar e ritualizar o passado por meio de referências, permanências, desejos, muitas vezes impostos pela repetição. A relação dos personagens em O Hobbit, assim como em O Senhor dos Anéis, parte de uma mistura da cumplicidade e respeito de narrativas das tradições orais, atravessada pela intimidade desenvolvida por homens marcados pela guerra (Tolkien teve uma participação ativa durante a Primeira Guerra Mundial e viu seu filho partir para lutar na Segunda).

O autor filólogo também criou, aliás, o que mais me

interessa, uma história dessas culturas mitológicas, de modo que os seres dos livros / filmes estão inseridos numa temporalidade, que envolve não apenas a genealogia dos personagens – Thorin filho de Thráin filho Thrór – mas fatos históricos de outras eras, além de manuscritos em idiomas extintos, hábitos perdidos; moradas abandonadas. A Terra Média possui sua própria cosmogonia: há uma história do ponto 0, uma história de criação no Silmarillion, um dos textos criacionistas mais poéticos com o qual tive contato. Então, aos 27 anos, quando achava


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que qualquer fanatismo bobo já teria perdido o sentido, quando as pessoas costumam pouco a pouco acalmar a exposição dos sentimentos, O Hobbit, com alguns problemas - a aparição de Radagast, o vestido cafona de Galadriel, a criação do Orc vilão Azog e o nome inverossímil, Sebastian, para o porco-espinho - veio para me provar outra direção da experiência, cujo fluxo do envelhecimento não serve para as pessoas se tornarem mais secas, não é a mera substituição do deslumbramento pelo conhecimento. Aliás, o filme de Peter Jackson também é sobre isso. (dezembro, 2012)


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Imortalidade e inexistência

M

esmo escrevendo o roteiro de A Imortal (França / Tur-

quia, 1963), pouco antes de Ano Passado em Marienbad, Alain Robbe-Grillet só conseguiu finalizar o projeto dois anos depois de Alain Resnais, usando da experiência concreta do cineasta sobre seu texto para traçar sua própria vereda cinematográfica. Por meio de similares enquadramentos, deslizes laterais de câmera e um programa minimalista de encenação, o escritor-cineasta enfatiza em sua primeira incursão audiovisual não apenas uma proposta que desata os nós do compromisso com o realismo clássico, mas uma narrativa transformada em barafunda, por meio de ruínas de linguagem, descascadas e cuidadosamente colhidas de camadas subterrâneas da realidade psíquica freudiana. Assim, como seus companheiros de Rive Gauche, Marguerite Duras, Agnès Varda e Chris Marker, ele


Imortalidade e inexistência

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escavou no campo do empírico dimensões transcendentais, por meio de sua poética da sugestão, nunca definição, costurando delírios e camafeus na manta do visível.

Como instantes que perduram, suas imagens, portan-

to, carregam duplicidades, contradições, são raízes de um estímulo vertiginoso de desorientação, fazendo com que Grillet, em seu fascínio por lugares desconhecidos, invada a história monumental com suas versões alternativas e espaços de subjetividade. Como escreveu Deleuze, o filme não segue “o curso empírico do tempo como sucessão de presentes, nem sua representação indireta como intervalo ou como todo, é sua apresentação direta, seu desdobramento constitutivo em presente que passa e passado que se conserva, a estrita contemporaneidade do presente com o passado que ele será, do passado com o presente que ele foi”. Os personagens perambulam numa cidade inundada de significantes, responsáveis por significados confusos, instáveis; tropeçam em temporalidades, confiando sua existência na palavra, mas palavra não como explicação, palavra como um código de impossível redução.

Acompanhamos em A Imortal o encontro decisivo e bre-

ve em Istambul de um homem melancólico, perdido e procurando por informações, com uma sedutora mulher, numa série


III História, tempo, memória

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de passeios pelo campo limítrofe de paradigmas territoriais. Caminham com tempo livre para se apaixonar, entram nas mesquitas, visitam ruínas, declinam passagens e voltam para o ponto inicial. A mulher apenas quer ser desejada e isso é pontuado numa consciência cinematográfica, que toma como princípio de certeza, a intrínseca ponte entre sedução e mistério. "Todo viajante ou residente europeu no Oriente tinha de se proteger de suas influências desestabilizadoras. As excentricidades da vida oriental, com seus calendários esquisitos, suas configurações espaciais exóticas, suas línguas irremediavelmente estranhas, sua moralidade de aparência perversa, eram bastante reduzidos quando apresentados num estilo de prosa normativa", escreve Edward Said.

A figura feminina se torna um totem: da brincadeira

com a noção de identidade nacional aos seus delineamentos faciais, ela pode ser francesa, turca ou grega; dança com o ventre quase furtando uma cultura inteira; é fantasma, sonho, vingase como uma lembrança que insiste em aparecer. O francês lança seus protagonistas num estado letárgico: ele se apaixona pela imagem dela, imagem que desaparece, não cansa de projetar o que Virginia Woolf comenta na sua conferência Profissão para mulheres: “...demorou para morrer. Sua natureza fictícia lhe


Imortalidade e inexistência

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foi de grande ajuda. É muito mais difícil matar um fantasma que uma realidade”. A disjunção cronológica entre os planos reforça a obsessão do rapaz em reencontrar a mulher que lhe escapa, cujas informações são falsas e cuja materialidade não respeita os trâmites de uma cognição racional. Tal qual a tradicional cena de horror do labirinto de espelhos, nesse caso sob uma trilha sonora concretista, Grillet como um malabarista do tempo e do espaço, utiliza o movimento ou a ausência de movimento para que a passagem de um andarilho em frente à câmera seja um sinal para a transmutação da paisagem.

O filme enquanto exercício extremo de descontinuidade

narrativa, encerrado entre certezas moribundas e a exacerbação do mistério, mantém as repetições com variações gradativas do Novo Romance, desenhando e redesenhando a mesma imagem, de tal modo que a mulher vai sumindo aos poucos numa sequência de fotografias passadas ad nauseam pelas mãos do rapaz. Grillet alfineta uma percepção histórica convencional: a mesquita X é a mais antiga da cidade, contudo foi destruída e reconstruída depois da guerra; essas esculturas são do período helênico, mas foram produzidas há trinta anos; aqui fica um cemitério dos servos de Constantino, mas as tumbas estão vazias, ninguém está enterrado sob essa terra. O cineasta não


III História, tempo, memória

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cansa de sobrepor tempos coletivos e tempos individuais: “não olhei o relógio. Se tivesse olhado, descobriria que tinha menos de quatro horas para conhecê-la e talvez isso tivesse me desesperado. Como não olhei, escoei pelo presente”.

Não adianta olhar os relógios ou passantes que são es-

tátuas, não adianta camuflar desejos obtusos com persianas fechadas, o casal não pode se beijar diante da geometria do corpo inanimado, emoldurado pela câmera rígida, câmera como uma fita métrica, uma discípula desvairada da utilizada com rigor por Resnais em Marienbad. “Tudo é produto de sua imaginação”, ela avisa. Grillet parece testar o próprio campo do inteligível, cruzando peregrinos, cabarés e recalques, observando jovens que se desnudam sob qualquer pretexto, mulheres sequestradas, amarradas, flageladas, num jogo sadista e erótico não efetivado pelo protagonista impotente. O filme termina, ela morre, ele morre, ninguém morre, ela continua viva na cabeça dele, porque a imortalidade só pode estar contida na imagem de alguém que, sobretudo, nunca existiu. (setembro, 2012)


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Mentira e sobrevivência

Q

uando Walter Benjamin escreve, acredito que num dos

ensaios da infância em Berlim, sobre a impossibilidade de recuperar totalmente o passado, da importância quase fisiológica do esquecimento, defende incisivamente essa natureza própria da memória – largando pedaços pelo caminho, deturpando presenças e colhendo mentiras – como a única forma de compreendermos a saudade. Se fôssemos enumerar, perderíamos os números de quantas vezes contamos um mesmo passado de formas diferentes. Seja pelo transcorrer dos anos que ampliam a distância entre o acontecimento e o presente, obrigando-nos inconscientemente ao malabarismo de acentos e vírgulas; seja pela distorção premeditada, que adapta curvas narrativas aos ouvidos de um e de outro, personalizando sentidos para cada caso, no intuito de tirar vantagens ou enfatizar derrotas.


III História, tempo, memória

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O Homem que mente (França, 1968), além de uma ma-

turidade cinematográfica representada pela simultaneidade de quadros compondo um único enquadramento, firma o encontro de Alain Robbe-Grillet com seus mestres: por meio de um rapaz ambíguo, ora traidor, ora herói, cuja palavra serve para inventar passados sobrepostos e reversíveis, o filme toma como ponto de partida os paradigmas de Proust e Bergson, colocando a memória como uma massa dinâmica, passível a transmutações a cada vez que nos apoderamos dela. Boris Varissa (Jean-Louis Trintignant) sobreviveu à experiência da guerra sob rostos emprestados, vestindo e se revestindo de máscaras. Ele volta à pequena aldeia para contar a história do fim ou do suposto fim do líder local, Jean Robin, e, enquanto o trauma não lhe deixa dormir, enquanto acorda sempre surpreso por estar vivo, sua inspiração pela mentira consegue lhe salvar.

A preocupação do autor pela história como um campo de

conquista da representação e da narração, transpõe a mais comum linha do quem conta e sobre quem se conta, para focar na forma como se conta e quando se conta, reforçando as maneiras concomitantes e contraditórias de arranjos de passado. Não só isso: finca na película que ao manejarmos sem controle reminiscências através do véu da ficção, estimulamos o desaparecimento das


Mentira e sobrevivência

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propriedades de ambas as dimensões, de modo que o movimento de voltar sempre, de lembrar sempre é também um movimento de deslocar sempre, como quem troca de lugar um tesouro dentro de um labirinto. Moedas caem e novas moedas entram.

Assim, a sensação do espectador diante da instabilida-

de narrativa de O Homem que mente é semelhante à da leitura de O Processo, de Franz Kafka: quase todos os leitores pensam em desistir no miolo do livro, enquanto o protagonista vaga por corredores intermináveis em busca de uma resposta, afundando mais e mais nos trâmites burocráticos de um caso que sequer entende, não conseguindo lembrar por onde passou e para onde precisa seguir. No entanto, quando insistimos até o fim, percebermos que as digressões arredias da narrativa reverberam como diretriz sensorial, ou seja, precisamos passar pela insuportável incapacidade cognitiva para que nossa experiência estética se aproxime intimamente da experiência diegética do personagem. A identidade de Boris Varissa deixa, enfim, de ser impenetrável, mas o caminho permanece árduo, pois como um “caos de aparência”, para usar o termo de André Parente diante da imagem de Proteu, o Deus grego que podia assumir todas as formas, a figura do rapaz “continua a ser puro interstício, puro possível, uma virtualidade criadora”.


III História, tempo, memória

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A deambulação no tempo de Boris Varissa, transitando

entre a posição de traidor e salvador do líder da resistência Jean Robin, afirmando e negando, dizendo e desdizendo, dialoga diretamente com os traumas nacionais colocados embaixo do tapete por determinadas sociedades. Talvez a mais famosa história nesse sentido seja a de Anja Rosmus, mulher alemã que inspirou o filme A Cidade Sem Passado (Alemanha, 1990), de Michael Verhoeven, que ainda durante a escola começou a pesquisar sobre a sua cidade natal, que oficialmente foi palco de um campo nazista de trabalhos forçados, firmando-se ao longo das décadas como um dos poucos símbolos de resistência ao nazismo dentro da própria Alemanha. No entanto, a garota não conseguiu investigar o bastante para escrever a redação Minha cidade durante o Terceiro Reich, recebeu conselhos da mãe alertando para só falar coisas positivas, produzindo um material raso, afinal sua entrada não havia sido permitida nos arquivos municipais e aparentemente os líderes mais velhos – executivos, políticos, padres e professores – não conseguiam lembrar o período citado. Havia uma espécie de amnésia coletiva e provocada.

Já na universidade, cursando História, essa mesma

mulher decidiu voltar ao assunto e durante suas pesquisas preliminares, descobriu um jornal local da época da Segunda


Mentira e sobrevivência

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Guerra Mundial, cujo editorial defendia todos os preceitos de Adolf Hitler. Inesperadamente, ela se deu conta que o texto havia sido escrito por um de seus professores eméritos e, assim, foi novamente aos arquivos, encontrando uma série de barreiras: “primeiro, diziam que os arquivos estavam emprestados; depois, que estavam velhos e esfarelados demais para serem usados; mais tarde, que o material dizia respeito a pessoas que ainda estavam vivas, cuja privacidade não podia ser violada”, relata o historiador Robert Rosenstone.

Ao perceber que seu trabalho estava sendo obstruído,

Anja Rosmus processou a cidade e ganhou o direito de entrar nos espaços, descobrindo em seguida que os documentos haviam desaparecido. Ela, contudo, não desistiu e aos poucos foi colhendo vestígios que confirmavam suas suspeitas: empreendedores judeus foram denunciados por alguns dos líderes empresariais e eclesiásticos de sua cidade natal, alguns foram mortos, outros viveram em campos de trabalhos forçados e inúmeros foram submetidos a experiências médicas. Toda produção jornalística pós-guerra que colocava o município como um símbolo de resistência havia sido resultado de uma ação coletiva dos moradores para reescrever a história, transformando os algozes ainda vivos numa espécie de heróis fantasmas.


III História, tempo, memória

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Vários chegavam a relatar seus grandes feitos pelos

judeus durante o conflito, quando, na verdade, tinham arremessado tijolos nas casas de quem tentava ajudar. Ciente que essa situação não era específica em cidades da Alemanha, na sua autobiografia Robbe-Grillet conta a história dos franceses simpatizantes com o regime nazista, incluindo seus pais, de maneira fria, sem acusar ou defender, de modo que O Homem que Mente remete várias vezes aos documentos como provas de identidade: “preciso saber quem você é para saber se você está na lista de suspeitos”. Se a guerra incendeia a brusca relação entre dois grupos humanos em desigualdade de poder, o pósguerra funciona como o acerto de contas da história, uma vingança, temporariamente arremessando os vencidos na parede. Só que Boris Varissa possui documentos falsos e transita pelas duas épocas, saltando de um lado para o outro.

Durante a investida do protagonista sobre a aldeia, con-

tando versões e mais versões sobre os acontecimentos durante a guerra, ele encontra um trio de mulheres que esperam por Jean Robin: são como moiras desfiando linhas passadas e futuras, no intuito de interferir, modificar, explicar e costurar as histórias contadas pelo falastrão, tudo de maneira bastante incerta, teatral, com uma associação de imagens espacial e tem-


Mentira e sobrevivência

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poralmente disjuntivas. Uma delas brinca de cabra-cega com a confiança de que as outras não lhe deixarão cair: ela esconde o olhar lúgubre, o olhar agudo da morte, olhar de quem pode tecer o destino, ciente das mentiras de Varissa. Dentre as mil formas de morrer, Jean Robin morre um pouco de todas elas. A compulsão pela mentira rompe os laços entre imagem, verdade e realidade, não sabemos ao certo se o casal está se amando ou se matando, não conseguimos diferenciar a brincadeira da briga, iniciando um jogo em que o protagonista entrega seu companheiro de luta, depois explica como o salvou ou poderia ter salvado, para então, enfim, assassiná-lo. Mesmo que o corpo pudesse resistir ao tempo, não existiriam lembranças sem encenações. Boris Varissa é um ator. Essa é sua profissão. (setembro, 2012)


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Histórias dentro da história

A

simples menção de uma data no início de um filme, es-

pecialmente quando se trata de uma clara referência histórica, localiza de imediato o espectador desatento num contexto político específico. Além disso, costuma estimular uma expectativa do mesmo pelo momento em que o evento pelo qual se justifica essa informação – uma guerra, uma revolução, uma tragédia natural – tomará a tela transformando em completo a vida até então pacata dos personagem. No caso de Morfina (Rússia, 2008), de Aleksey Balabanov, quando surge o 1917 enquanto um trem se aproxima da estação, logo imaginamos que em breve a Revolução Bolchevique viria abalar as estruturas do vilarejo afastado, onde o recém-formado Poliakov estava chegando para assumir o posto de médico do local. A promessa, no entanto, não é necessariamente cumprida.


Histórias dentro da história

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A ascensão vermelha é apenas um vento distante, uma

elipse que manda seus recados – seja através de um comentário superficial sobre a turbulência lá nas terras longínquas de São Petersburgo, seja por via de uma família de antigos aristocratas atendidos depois de sua residência ser incendiada por populares. Pouco antes do ataque, o patriarca dos nobres, numa cena rodeada de amigos, explana sua opinião sobre a luta de classes, dizendo que trabalhadores sem instrução seriam incapazes de administrar uma instância complexa como o Estado e suas ramificações. Argumenta, inclusive, não entender o motivo da busca dos subalternos pelo poder: “eles precisam agradecer que alguém está disposto a governá-los”. O médico Poliakov, demonstrando toda sua distância do assunto, afirma que conhece apenas duas classes: a dos doentes e a dos sadios.

De início, pode parecer uma percepção somente ingê-

nua e alienada, no entanto, o caso é que Balabanov segue em sua adaptação o caminho traçado na ~semi-autobiografia~ de Mikhail Bulgakov, punindo uma classe, um imaginário elitista, graças a diferenciação que seus corpos assumem diante da decadência experimentada diariamente por outros segmentos sociais no posto de saúde. A mulher rica abre as pernas para Poliakov examiná-la, enquanto fuma numa piteira, com


III História, tempo, memória

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a determinação de quem usa da postura sadia e ostentosa para reforçar sua superioridade em relação aos outros pacientes agonizantes, famintos. Todavia, ela surge, depois do incêndio, sem cabelos, literalmente torrada. No filme, a revolução não está na imagem de trabalhadores brandindo suas ferramentas, balançando bandeiras, berrando lemas comunistas, derrubando esculturas de czares, mas impregnada naquela pele derretida.

A produção está dividida em blocos fundados na re-

lação do médico com a sua profissão, tais como a primeira amputação ou um parto difícil, e vai pouco a pouco sugerindo o vínculo do profissional com o vício crescente, a partir de doses prescritas de morfina. O vício aqui, aliás, é visto como a imposição externa de um hábito no cotidiano, como um lampejo que se instaura definitivamente enquanto experiência. As doses vão aumentando, por um bom tempo não abalando a imagem do viciado em público, mas logo torna-se insustentável pela necessidade doses cada vez maiores. Balabanov com uma duração prolongada em seus planos coloca no centro de suas imagens o interesse não pela medicina, mas por uma história da medicina, evidenciando pontos e mais pontos de uma reflexão, dessas que já devem ter passado pela cabeça de leigos e especialistas. Afinal, como ao longo dos séculos, os indivíduos


Histórias dentro da história

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combateram epidemias, mutilações de guerras e doenças; como curavam a gripe, como faziam para a febre baixar, contornando as adversidades em períodos, cujas ferramentas, tecnologias e conhecimentos práticos eram bem mais rústicos?

Na situação do filme, influências de outros campos,

como o religioso, são deixadas de lado, apesar das enfermeiras aparentarem também serem freiras, focando, portanto, na própria formação do profissional de saúde há cerca de um século. Isto é, a formação de um indivíduo não especializado, tampouco dono de um conhecimento amplo e firme; um aprendiz diante do que o cotidiano lhe apresenta. Assim, desenvolve-se todo um olhar para um parto de risco, um furo na garganta de uma criança para ela conseguir respirar, ações resolvidas pelo médico inexperiente, por vezes depois de correr apressado aos seus aposentos, precisando consultar seus livros de faculdade minutos antes de entrar numa operação. Há nesses instantes um misto de humor sórdido seguido da consternação dos corpos, uma insegurança pessoal em contraponto à confiança coletiva de enfermeiros e pacientes. Tal qual no contemporâneo, o médico fraqueja diante do fácil acesso aos medicamentos, de modo que começa a combinar alguns para combater efeitos colaterais de outros e passa a vincular atos


III História, tempo, memória

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comuns do cotidiano com a necessidade de mais e mais injeções. Há uma confusão entre o vício e a hipocondria.

Em sua representação do usuário de morfina, Balaba-

nov prefere observar os efeitos externos da droga no corpo, como quem está presente na mesma sala obscurecida, seguindo o caminho contrário de produções que materializam em sons e imagens as sensações das viagens, sempre exageradas, psicodélicas e dramáticas, depois das injeções. A visualidade aqui implanta-se numa dimensão elíptica: vemos um corpo que está experimentando e experimentando cada vez mais; vemos a contorção e a respiração, vemos nos olhos a distância, imaginamos o prazer da música do início do século XX que inunda toda película, mas não participamos da experiência em si. Há um pouco de Bertolt Brecht nessa escolha de encenação, reforçada, sem dúvida, pelo chiaroscuro que conduz a fotografia de Morfina. Por meio de luzes a gás em pontos estratégicos dos cômodos, o filme ao mesmo tempo que revela parte do espaço, do quarto do médico, do posto de saúde, um antiquário de objetos por vezes anacrônicos, também nos convida ao desejo de escuridão. Temos aqui, afinal, uma peça exemplar da triste condição trágica do médico capaz de salvar a todos menos a si mesmo. (dezembro, 2013)


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Escapismo e encenação

N

os primórdios do curso de jornalismo, quando escutei

pela primeira vez o significado de mise-en-scène, provavelmente na mesma época em que estive obcecado por Eisenstein, numa tentativa obstinada de entender seu conceito de montagem intelectual, imaginava que ambas as frentes defendiam um cinema cujos mínimos e sutis elementos da cena eram apresentados numa síntese / explosão, fortalecendo planos e sequências, com o objetivo último de adensar a textura do próprio filme como um todo. Desde então, contudo, passei a perceber mais claramente produções em que toda vaidade era direcionada para um único departamento. Seja uma direção de fotografia charmosinha que virou grife no cinema nacional; uma dispendiosa e inabalável direção de arte, com figurinos de época, maquiagens insalubres ou, os


III História, tempo, memória

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casos mais detestáveis, as películas motivadas apenas para que os atores-narcisos afirmassem seu talento.

Esse último é o caso de A Dama de Ferro (Reino Unido

/ França), de Phyllida Lloyd, filme em que Meryl Streep interpreta a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, desenhada já bastante idosa, frágil, demente e solitária, não apenas para despertar uma condescendência do público, como também no intuito de facilitar a estratégia do caminho mais fácil da edição. Cada cena mostrada nos flashbacks da personagem confusa, numa construção mnemônica alienante, é interrompida por um lance de total irrelevância, como se o filme escapasse de si próprio o tempo inteiro, não estruturasse um retrato histórico, mas limpasse as bases para que Meryl pudesse, enfim, brilhar na frente das câmeras. A política aqui é absolutamente reduzida à pantomima.

A pior consequência disso é que A Dama de Ferro es-

conde o rosto da ex-primeira ministra dentro da encenação de Meryl Streep, não com o interesse íntimo e desmistificador que levou Sokurov a fazer a trilogia Moloch, Taurus e O Sol ou mesmo Stephen Frears a realizar A Rainha, mas tentando instaurar um falso feminismo que coloca Thatcher como uma mulher firme num mundo dominado por homens.


Escapismo e encenação

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Há um estímulo para a noção epidérmica da situação, vez ou outra obrigando o espectador a demonstrar simpatia quando ela pega seus DVDs para assistir alguma coisa. Definitivamente, não existe a mulher que serviu de inspiração para as músicas de protesto do The Clash, o seu autoritarismo sempre vem rodeado de "essa é a cena que vai render a ela o oscar de melhor atriz".

O filme não partilha do mesmo mundo em que Gree-

naway fez O cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante encarando os olhos da cobiça de Thatcher, não temos ideia que a ex-primeira ministra defendia que o mundo estaria menos estável e mais perigoso se as potências não mantivessem suas armas nucleares, que discursava ressaltando a ganância capitalista como um bem, que obrigava os pobres a trabalharem mais para pagarem as contas do país, que associava em termos públicos o excesso de lucro com a respeitabilidade moral, que basicamente criminalizou a ação de sindicatos, esmagando a consciência libertária dos trabalhadores ou mesmo que, recentemente, pediu a liberdade de Pinochet por ele estar velho, fraco e doente. Não à toa, em 2002, ela foi recomendada por seu médico a não falar mais em público. Também pudera, estava já confundindo a Guerra das Malvinas com os conflitos


III História, tempo, memória

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na Bósnia. Para o filme, isso parece o mais importante, daí quanto mais vemos Meryl, menos sabemos quem foi Thatcher.

Cineastas como Stephen Frears, Derek Jarman e Ken

Loach estavam na frente na ala dos críticos da antiga líder, contrariando a sua mão de ferro que tratava a cultura como uma espécie de dissidência que não deveria ser estimulada pelo governo, em especial se tocasse em temas como homossexualidade, lutas camponesas, processos de independência. Sobre o período, Loach comenta: "Fiz uma série de documentários chamada A Question of Leadership que nunca foi exibida sobre a cumplicidade (e não uma conspiração articulada) entre os líderes sindicais e Thatcher - a colusão no sentido de que os líderes sabiam que estavam suprimindo a militância de seus próprios membros. Na década de 1980, o que deveria ter sido a liderança de esquerda foi finalmente revelado como de direita. Também tinha o filme De Que Lado Você Está?, sobre a greve dos mineiros, que era apresentada nas notícias de maneira oposta ao que realmente estava acontecendo. Quis registrar a brutalidade da polícia e o subterfúgio do governo”.

A Dama de Ferro nos induz fragilmente a uma identi-

ficação inexistente, até porque as alucinações da personagem com o marido são constrangedoras, entre uma lembrança e


Escapismo e encenação

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outra, ela está arrumando as coisas dele, recém-falecido, para se distanciar definitivamente de seu fantasma e a partir de cada toque num objeto, somos levados a diferentes momentos de sua vida. Argh! Sim, temos que aguentar até explosão de luz ghost - do outro lado da vida quando ele finalmente vai embora, de modo que a sensação que fica ao final da sessão, além do gosto ruim na boca, é a de que acabamos de assistir a um ensaio em looping de Meryl Streep ganhando o papel, como se o filme sequer tivesse sido iniciado. O roteiro não é sobre uma política da década de 1980, mas sobre uma atriz incrível e vitoriosa disposta a ganhar mais alguns prêmios. (fevereiro, 2012)


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Espectros da narração

N

ão podemos confiar em filmes como India Song (França,

1975), de Marguerite Duras. Não por algum tipo específico de deslealdade, mas pela ânsia em romper com os pactos narrativos tradicionais que nos confortam, uma necessidade em afirmar que não se pode narrar como antes, cavando e cruzando discursos que desalinham a relação entre imagem e palavra. Duras coloca-se numa dupla posição, construindo sua carreira como cineasta experimental justamente por voltar às preocupações rudimentares da literatura. India Song é inteiramente narrado por vozes em off, vozes em fluxos de consciência que atravessam distintos patamares da linguagem e do tempo, manchando os enquadramentos com seus espectros semicerrados: Benjamin começa seu famoso artigo sobre o narrador, dizendo que "por mais familiar que


Espectros da narração

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seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante e que se distancia ainda mais".

Portanto, a mesma voz que remonta experiências passa-

das diante de uma dança no salão pode vir da vivência in loco da embaixatriz ou de suas memórias; de suas memórias na Índia ou na França. Talvez seja resultado de uma observação, num deslocamento sutil para outro cômodo da mansão, de um homem fora de quadro, mas certamente de olhar arguto e desejos lascivos; ou quem sabe, ser um diálogo ácido entre subalternos escondidos, deste ou de outro tempo, que não deixam passar detalhes sórdidos da protagonista deslumbrada. A estrutura das histórias contadas se acumula nas bordas e acompanha a lógica das monções, os ventos sazonais impossíveis de serem previstos que ocorrem especialmente no Oceano Índico; ventos que são como as relações entre relatos do passado e fantasmas do presente. Trata-se de um fenômeno famoso por deixar à deriva os antigos navegantes árabes e portugueses, pois, como Marguerite Duras e seu projeto de narração, os ventos estão sempre enganando a direção por meio de mudanças vertiginosas e repentinas.

O plano de abertura, quatro minutos até o sol aban-

donar o céu, define o princípio da longa duração como de-


III História, tempo, memória

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terminante para o filme: a demora prova uma impressão de imagem, cuja potência só pode ser alcançada submetendo-se ao tempo da espera. Esperar para ver, esperar para não entender, esperar e esperar. India Song não apenas retalha a passagem cronológica, tomando a memória como uma matéria esticada em que o tempo imprime suas diferentes formas, mas segue pelos salões de um espaço em decadência, povoado por fantasmas silenciosos submetidos ao impávido destino da narração. As dimensões das vozes são tão amplas que servem inclusive como vozes dos espectadores, o fora de campo enevoa em absoluto a materialidade do visível.

Aliás, a mesma camada sonora, com diálogos e efei-

tos, foi repetida sobre outras imagens em Son nom de Venise dans Calcutta désert – alcançando relatos para além dos testamentos falsos e das experiências inventadas. Duras reforça com India Song seu interesse pelo Oriente, um interesse que mescla suas próprias lembranças infantis na Indochina com a perspectiva ficcional da vida adulta de escritora, misturando com certa ironia ímpetos coloniais e pós-coloniais, remetendo de maneira cruelmente doce à experiência da derrota. Mantém, assim, um estatuto aristocrático / burguês – momento em que o primeiro precisa se amparar no segundo – de modo que o filme se passa


Espectros da narração

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na Índia, numa Índia dos brancos, das histórias que ouviram contar, uma obsessão pelos contos partidos ao meio, obviamente não deixando os saltos franceses de lado e sendo inteiramente filmado numa mansão nos arredores de Paris.

Assim como nos filmes de Grillet, India Song carrega

seu espelho no meio do cenário principal, mas o espelho dentro do narrar uma impossibilidade única de narrar funciona menos por seu simbolismo e mais como definidor do espaço, pelo impacto óptico inerente a sua materialidade: personagens saem de quadro para entrarem no espelho, saem do espelho para começarem a falar, a câmera não consegue se decidir pela ilusão como escolha ou pela revelação dos artífices da ilusão. A mulher caminhando entre indiferenças, paixões, amarguras e prazeres, assim como a autora e cineasta, sente-se em dados momentos paralisada, porque imagina e pode imaginar o quanto quiser em quantas narrativas conseguir, que a vida, simplesmente, poderia ser outra. O Ganges, por exemplo, surge sempre na história dos outros, mesmo que contada pela sua boca, surge como um sétimo continente distante, uma fábula desbotada e incansável. Certamente, Duras está mais preocupada em fazer um exercício de linguagem que necessariamente propor uma aproximação


III História, tempo, memória

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afetiva entre espectadores e narrativa. Há algo de Brecht nesse sentido, de modo que costurando formas e temporalidades, consegue traçar uma breve arqueologia dos tipos de narração. Há um pouco da desesperança em morar na Índia rememorada e inventada, pois ainda que (ou justamente por ser) rodeada de homens “não é nem prazeroso, nem penoso, nem fácil, nem difícil, não é nada”. Os personagens não estão vivos, nem mortos, comportam-se como tivessem sido destituídos de uma existência, como se fossem apenas uma carcaça, um sotaque, um aborrecimento no olhar. (setembro, 2012)


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Coexistência e transmutação

N

ão há dúvida de que poderia escrever um ensaio inteiro

apenas sobre os travellings paralelos em O Ano Passado em Marienbad (França, 1961), de Alain Resnais, onde o movimento corta o movimento, onde a câmera percorre um espaço imutável, isolado, que pode ser em Marienbad, Baden-Salsa, Frederiksbad, entre corredores, salões, portas e corredores, capturando a coexistência de diferentes tempos, sonhos, memórias, projeções e delírios. Entretanto, falar sobre travellings se tornaria um tanto repetitivo, ainda que na produção exista um diferencial: a câmera se move não apenas de um cômodo para outro, mas o faz, num mesmo plano-sequência, a partir do espaço-momento suspenso onde o narrador X descreve o ambiente, ações, gestos e encontros diretamente para suas lembranças (ou lembranças-falsas); para seus sonhos (ou sonhos-inventa-


III História, tempo, memória

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dos); para estados mentais ou desejos encobertos e revelados. Durante esse movimento vagaroso, esse mesmo narrador se encontra enquanto personagem X (ou enquanto narrador Y) dentro de sua própria história, direcionando suas palavras de maneira persuasiva para sua ouvinte/amante A (ela nega, confirma, hesita), reflexiva para si mesmo e assertiva para o espectador. Quando não inverte e mistura todas essas enunciações – o que torna tudo deliciosamente mais ambíguo.

Há uma síntese – numa descontinuidade aparentemen-

te ilógica – onde todas essas formas de contar um encontro passado (ou um encontro passado fictício, projetado) se unem sob a efígie de uma única realidade. E claro que falar em realidade (a maioria falaria numa não-realidade) pode parecer contraditório diante da experiência da obra de Resnais, contudo, o próprio conceito de realidade se transforma. Resnais se defende: “realismo não consiste apenas em filmar nossa conversa, mas também em mostrar as imagens que aparecem na minha cabeça durante esse momento”. Há uma série de sutilezas, como as mudanças repentinas no figurino da personagem feminina, que indicam alguns caminhos não seguros em O Ano passado em Marienbad, onde a visão externa das personagens, o ambiente suntuoso e o imaginário particular estão a todo o


Coexistência e transmutação

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momento dialogando: se interpenetram e se influenciam mutuamente. Se em Hiroshima, Mon Amour, a diferença entre o momento-presente e o momento-passado aparece bem demarcada, aqui essa linha se torna tênue o suficiente até desaparecer por completo. Todos os tempos convergem em um só tempo. Alain Resnais reconstrói a memória se desfazendo dela como massa uniforme, pincelando da mesma maneira como os pintores cubistas concebiam o espaço do objeto: diferentes e confusas perspectivas numa única tela.

Podemos aprofundar esse pensamento através de O espe-

lho (União Soviética, 1974), de Andrei Tarkovski, onde também há a idéia de coexistência, sendo aqui marcada pelo apontamento de uma vida à outra, de um único tempo convergido através de diferentes memórias. Uma série de elementos de períodos distintos - como a mãe velha que pertence ao tempo atual caminhando com os filhos novos de uma época já transcorrida – são colocados em convivência, criando imagens que não são nem completamente passado, nem completamente presente, mas os dois simultaneamente. As memórias se misturam formando um reflexo distorcido e em um processo de distorção. Trata-se de uma espécie de transmutação a partir de um sonho ou flerte com o passado; das sobreposições de um tempo por


III História, tempo, memória

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outro, como uma lembrança modificada pelo presente. O pai se torna o filho em suas memórias da guerra. A mulher se torna a mãe nas lembranças de infância do marido. O filho sente ter vivido anteriormente numa casa em que visita pela primeira vez. Também não há dúvida que poderia escrever um ensaio inteiro sobre os travellings dessa produção, afinal já se tornou clássico discorrer linhas e linhas sobre seus longos planos-sequência. Não é necessário, por ora, repetir tais chistes.

De fato, os planos de Tarkovski não resumem seu teor

reflexivo, apenas pelo tempo literal de duração, mas por possuírem e alargarem um tempo espiritual próprio, revelando uma expressão da vida, para além da ilustração. Isso é bem indicado pelo intimismo autobiográfico e metafísico das imagens, pela transformação sucessiva e não determinante da fotografia, pela inserção de documentários antigos russos e estrangeiros ou mesmo através das trucagens simples, como a variação para mais ou para menos frames por segundo, que se torna quase imperceptível, mas sensível, em especial na textura dos longos travellings. A imagem está no tempo e tem o tempo dentro dela. Há em O espelho uma série de cenas naturalistas transmutadas em metáforas e cenas metafóricas transmutadas em naturais: a rajada de vento que balança o gramado é apenas vento e não é;


Coexistência e transmutação

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a mulher que levita sobre a cama é a representação poética de um estado interior banal e não é. Tarkovski se defende usando o haicai: “esse tipo de poesia japonesa cultiva suas imagens de tal forma que elas nada significam para além de si mesmas, ao mesmo tempo que, por expressarem tanto, torna-se impossível apreender seu significado final”. Tanto Marienbad, como O espelho suscitam uma ideia de labirinto, que transcende as estáticas barreiras impostas classicamente ao tempo (e suas indeterminações) e ao espaço (e seus desdobramentos), sem descartar a complexidade dos diferentes estados de consciência. Para o espectador tentado a encontrar uma delimitação racional nessas obras, viciado em guias, procurando uma saída qualquer, uma solução fácil não vai encontrar outra coisa, senão uma seqüência de paredes de concreto. Corredores, portas, salões e corredores. Nesse sentido, é muito simples – quase cômodo – taxar as duas produções de impenetráveis: o problema não está tanto nas obras (e como está!), mas na maneira de percorrê-las. Akira Kurosawa defende ambos: “temos de ter consciência da maneira fragmentada, com o qual nos relacionamos com nossas próprias lembranças”, sobrepondo fatos, esquecendo detalhes, ressaltando detalhes, distorcendo histórias, formulando descontinuamen-


III História, tempo, memória

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te nosso próprio labirinto. Natural que os coadjuvantes se tornem zumbis. Ao invés de justificar ou explicar os labirintos, podemos nos focar num embate, num meio de confrontá-los, compará-los, torná-los nossos durante a projeção. O mesmo se dá quando três amigos diante de uma mesma estátua criam três histórias diferentes. Há como separar o que é estátua de quem somos nós? Enquanto alguns contam minuciosamente os segundos dos travellings, outros montam e desmontam as horas em seus relógios.

Os dois cineastas suplantam a razão cartesiana e o tem-

po newtoniano como parâmetros de verdade. Como podemos colocar os critérios antes das obras se o próprio processo de criação segue caminhos bem peculiares e não programados, esboçando uma desestabilização da narrativa clássica, do tempo clássico, do espaço clássico (e, naturalmente, dos critérios clássicos)? Não à toa ambos os filmes inspiraram uma série de textos e reações, como as cartas que o cineasta russo recebeu, pouco preocupadas em discutir um dito hermetismo formal e vazio reforçado pela crítica cheia de critérios, para desenvolverem linhas intimistas, que apesar de se sustentarem na subjetividade causam mais impacto reflexivo que as secas linhas jornalísticas. “O espelho não é um filme sobre mim, mas sobre


Coexistência e transmutação

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meus sentimentos” escreveu Tarkovski e poderia escrever você. Existe, de fato, um pudor diante da auto-ficção: parece difícil entender esse caminho apenas como uma forma de refletir sobre situações muito amplas, a partir de casos específicos e híbridos (acontecidos e/ou não-acontecidos). É como falar de toda vida, a partir de uma simples vida.

O diretor russo recebeu uma carta de uma especta-

dora de Gorki: “obrigado por O espelho. Tive uma infância exatamente assim, mas você como pode saber disso? Havia o mesmo vento e a mesma tempestade. ‘Galka, ponha o gato para fora‘, gritava minha avó. O quarto estava escuro e a lamparina a querosene também se apagou e o sentimento da volta de minha mãe enchia-me a alma. E com que beleza você mostra o despertar da consciência de uma criança, dos seus pensamentos! E, meu Deus, como é verdadeiro. Nós, de fato, não conhecemos o rosto das nossas mães. Você sabe, no escuro daquele cinema, olhando para aquele pedaço de tela, iluminada pelo seu talento, senti pela primeira vez na vida que não estava sozinha”. Alguns amigos acusaram Tarkovski de seu filme ser apenas uma insípida viagem ao próprio ego. Muitas auto-ficções foram taxadas ao longo da história de ‘certa literatura’ pejorativamente. Agora podemos nos perguntar: o que


III História, tempo, memória

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sobra dessas acusações premeditadas diante das palavras tão sinceras da carta aqui reproduzida? Não, não resta nada.

Apesar dos dois filmes terem como questão central a

memória, não é possível perceber a utilização do recurso narrativo dos flashbacks para percorrer o passado, já que não existe um tempo-referência fixo, mas uma coexistência e transmutação em diferentes ramos. O próprio flashback, que nos primórdios do cinema aparecia como uma transgressão, configurou-se aos poucos como um procedimento convencional e até didático, pois demarca estritamente em pontos antagônicos o passado, o presente e o futuro, colocando na passagem entre eles uma neblina, um colorido que vira preto e branco, referências óbvias à mudança de tempo: “como se houvesse um letreiro: atenção, lembrança!” ironiza Gilles Deleuze. Resnais e Tarkoviski apagam o pontilhado e as placas de aviso entre as fronteiras de imagens-sonhos, imagens-presente, imagens-lembrança. O que vemos não é mais um encadeamento de fatos previsíveis e racionais. As obras criam pontos infinitos de convergência, de entrada e saída entre elas, causando uma possível transmutação. O espelho parece conter um pouco de Marienbad e Marienbad conter um pouco d’O espelho. Permanecem suspensos e calmos à espera de um espectador desavisado. (janeiro, 2008)


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IV Dimensões da política


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Godard e seu quarto

G

odard está trancado em um quarto e duas pessoas saem

do cinema. Seu Film Socialism (França, 2010), mesmo passeando pela Palestina, pelo Egito, por Odessa, por Nápoles, por Barcelona; mesmo num cruzeiro chique inundado das tradicionais cafonices; mesmo com intelectuais, filósofos e divas punks da década de setenta e por estar mais preocupado em entrecortar passagens de diálogos que apostar em diálogos inteiros; por se exilar numa casa que luta por privacidade diante da invasão jornalística e só escuta ruídos; recolhe conceitos, histórias, a antiarte de contar, mas parece no máximo olhar o mundo pela fresta da janela, com o rosto seguro e escondido pela cortina de cores desgastadas. Seu pensamento inventa uma enquanto se desgruda de outras realidades – inúmeras! – intencionando mais uma melancolia idealizada, um lamento europeu, um so-


IV Dimensões da política

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cialismo de binóculos que pouco se atinge pela reorganização e reinvenção lânguida do capitalismo contemporâneo. Afastase violentamente de quem está fora do quarto. Godard está preocupado com o futuro da Europa, com a transcendência das imagens, com a felicidade de um continente, com a convalescença de um tempo onde tudo o que se acredita, o inimigo consegue usar a seu favor. Tenta dinamitar os blocos aparentes com fagulhas invisíveis. Contudo, jamais se sente preocupado ou entusiasmado a ponto de sair do quarto. Já esteve em 1968, quo vadis Europa? Alguns traumas, nacionais ou transnacionais, parecem nunca se curar. Três espectadores deixam o cinema. Um deles pede o dinheiro de volta.

Os filmes da última década do diretor francês (Elogio ao

Amor e Nossa Música), além de debocharem do sono numa sala escura, de realmente abusarem da paciência dos espectadores de cinema, da sala de cinema, tendem a me levar quase arrastado a concordar – e ainda assim temporariamente – com o João Moreira Salles: apesar da pretensão e da inútil tentativa da reflexão erudita sobre a existência e sobre os dilemas da humanidade, uma pretensão que está em Bergman e em toda confraria da profundidade da mise-en-scène, o cinema não pode. Apesar da pretensão e da inútil tentativa. Óbvio que também


Godard e seu quarto

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discordo como um belo duplipensamento de 1984, as contradições aqui são permitidas, Godard despista a bilheteria e os ritos da sala de cinema, enterra uma tradição no quarto 666, impossibilitando os veredictos diante do seu inevitável compêndio bibliográfico. Mireille Balin desistiu de Pepe le Moko. Nem por isso deixa de se besuntar em citações que pouco se diferenciam da mediocridade acadêmica, não pela ausência de intimidade, nem necessariamente pelo pedantismo de que não conseguirá (ou conseguirá) se comunicar. Film Socialism foi feito para ser visto no computador com um pause e google ao alcance de uma mão e os que dizem o contrário, que balbuciam sobre fruição estética, sobre princípio de prazer ou mesmo de realidade, estão mentindo. Não importa o mundo, mas as telas: Godard rodopia em sua sinfonia de películas, imagens digitais e entrelaçados de pixels.

Godard está trancado em um quarto, fuma como nunca,

tosse em intervalos cada vez menores. De quando em quando, joga o lixo fora, foge de estudantes de cinema, manda a mulher dispensar jovens cineastas (JLG/PG, de Paolo Gregori), abaixa-se para pegar o jornal e retorna em passos apressados com um punhado de estilhaços de mundo: chega de Kigali, Fibonacci, “encontrei o nada e ele era gigante”, Avenida Foch, 1943.


IV Dimensões da política

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Também não abandona sua biblioteca e as traças: Racine, um zoom em Balzac e nada mais empoeirado que gritar o nome de um militante comunista (ou seria um jogador de futebol?) ao lado de uma cadeira de sol: Münzenberg. A escadaria de Odessa é revisitada e a rinite alérgica contagia o que restou da plateia. Só que Godard também tem seus trunfos, sabe assumir os seus próprios cruzeiros, renegar os portos mais fáceis, mesmo que continue apostando na declamação que substitui a fala. “Por que a luz está aqui? Porque há escuridão”. ZzzzzZZZzzzZZZzzz A criança solta uma máxima: “o silêncio vale ouro”. ZzzzzZZZzzzZZZzzz. As máximas se acumulam e – sensato – diante do insuportável, esboça uma ironia, uma autocrítica frágil, fabulando respostas bobas e ridículas às eloquentes falas-citações-declamações: um som de miado num garoto ou um do ré mi fá sol lá si na boca de uma ninfeta. A sala está quase vazia, sobraram algumas jovens estudantes de história.

E Godard acredita nas ou gosta de rir (eu gosto de

rir) das crianças que usam camisas vermelhas com as letras ‘CCCP’: nos tempos de colégio (ou de universidade ou de dois dias atrás), amigos burgueses, mimados, filhinhos de papai, meninos de apartamento, bundinhas de bebê, vez ou outra esbravejam duas ou três falácias sobre serem comunistas, so-


Godard e seu quarto

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cialistas, leninistas, leninistas-marxistas, pouco importa. A falência das crenças políticas é talvez um dos paradigmas mais melancólicos do final do século XX, início do século XXI, e por isso tantos comem sua ideologia com farinha enquanto outros não dispensam um caviar. Provavelmente todos irão morrer de câncer. Godard é indiscutivelmente um mestre da imagem e a poética se esgueira quando essas mesmas crianças de olhos fechados tateiam suas mães e, na falta de um chão a pisar com pés firmes ou de gritos convencidos, escutam palavras belas e sujas sobre imagens livres mas trancafiadas. “Viver ou contar?”. Ele nos pergunta. "Aprender a ver antes de aprender a escrever". Ele nos afirma. Aprender a escolher, antes dos dois. Os grilos já podem ser ouvidos.

Antes que restem apenas os mortos e o ronco de um

projecionista, Film Socialism se ergue para além da hierarquização das imagens no regime da imagem: o carinho de araras vermelhas, uma lhama num posto de gasolina, os miados de gatos de um vídeo besta da internet – gatos são uma febre – são alinhados aos cineastas cânones, ao próprio cinema de altos estudos, à iconoclastia histórica que une e diferencia, contradizendo a postura sem senso de humor adotada pela crítica, brasileira ou estrangeira, de clara influência cinematográfica


IV Dimensões da política

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francófona. Absortos, por pouco não soltam um ‘ulala’ à francesa para uma indistinção tão tola. Ainda é pouco. Se o cinema clássico é o prazer do brinquedo, não há dúvida que Godard nunca superou seu prazer de quebrar o brinquedo, de desmontá-lo, mostrar como se comporta a câmera para com a câmera, tiques de uma trajetória, resgatando filósofos de sua geração e levando-os aos que ele acredita – e talvez concordemos – que sejam os da nossa. Sartre encontra Badiou. Ao lançar um filme novo – es esse talvez seja o maior de seus trunfos – o diretor francês termina por, parafraseando George Orwell, fazer de seu quarto, um mundo, um bolsão do passado onde animais extintos ainda podem se mover. Talvez sejamos todos um pouco animais extintos. Godard está trancado em um quarto. Está lá – isolado – há décadas. Vive a dificuldade compartilhada de dizer nós antes de dizer eu, se dando conta através de seus interlocutores-personagens-alteregos, que dentro do eu, pode coexistir um implícito nós. Godard olha a rua e bate a porta e mesmo para os de fora do quarto foi possível escutar alguns grunhidos que pareciam ser de raiva. (fevereiro, 2011)


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O tempo como equivalente geral

U

ma parcela significativa das ficções científicas carrega

consigo um projeto de futuro distópico, que tanto alinha suas proposições aos ecos pessimistas dos livros 1984, de George Orwell e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, como revela os desencantos políticos de sua própria época. Decerto, o gênero mais amado pelos geeks de plantão manifesta seu vigor quando, mesmo se passando daqui a dois ou duzentos anos, mesmo adentrando uma galáxia muito muito distante, estabelece alegorias e parábolas do presente, apontando os riscos extremados de nossa própria alienação e desejo de progresso. É como se escorresse pelas imagens uma ansiedade em abalar o simulacro de perpétuo estado de conforto ou nosso desinteresse pela vida coletiva da cidade.


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Para o bem ou para o mal, esse parece ser o objetivo de

O Preço do Amanhã (EUA, 2011), roteirizado, produzido e dirigido pelo ainda promissor Andrew Niccol, diretor de Gattaca, roteirista de O Show de Truman e claramente fã devoto de THX1138, de George Lucas. No entanto, se essas referências demonstram uma peculiar sensibilidade no trânsito de universos metafóricos, na comunhão entre acidez e leveza, na busca por segmentos perspicazes para falar sobre categorias como classe, meios de produção, comunicação, tempo, dinheiro, trabalho, padronização, infelizmente, nesse filme, ele evidencia a inexistência de um imperativo categórico em sua carreira: não só transforma crítica social em descarte - assim como fez em seu fraco S1m0ne - como emula a vontade de transformação revolucionária por meio de uma vista superficial da realidade. Antes de tudo, o herói está de volta.

O filme parte, inegavelmente, de um ponto de partida

interessante, um sistema político em que o tempo serve para definir as fronteiras de uma sociedade de classes, como se o gene do envelhecimento tivesse sido abolido. Os ricos vivem séculos, até milhares deles, andam devagar, comem saboreando cada pedaço de comida, enquanto os pobres resumem suas existências a cerca de 30 anos, de modo que estão sempre apressados,


O tempo como equivalente geral

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dando pequenos golpes para escapar do fim, tentando aproveitar cada segundo como o último. Todos nascem com um relógio no braço que começa a funcionar a partir dos 25 anos, diminuindo segundo por segundo e definindo também a aparência que o indivíduo terá para o resto da vida.

Esse pressuposto lembra bastante toda discussão do

tempo ocioso como tempo criativo, do tempo livre e burguês que Adorno comenta como instância necessária para a produção intelectual ou mesmo, remete, ao cartaz erguido na USP com a frase "meu papi paga tudo para mim, por isso tenho tempo de ser revolucionário". Certamente, vivemos num ritmo tão puxado de trabalho no dia a dia que podemos até reclamar, lamentar, blábláblá, mas quase nunca arrumamos tempo para, assertivamente, nos posicionar ou nos manifestar, estamos sempre cansados, precisando de mais e mais dinheiro, de forma que os que terminam "se politizando" teoricamente, só bem teoricamente, são os que estão mais afastados do chão e do cotidiano dos trabalhadores, são filhos cujas contas chegam absolutamente pagas. Sequer sabem o custo de um mês de suas próprias vidas.

Na lógica do filme, todos os serviços e produtos tam-

bém são pagos por meio de horas, minutos, dias, semanas, o tempo funciona como equivalente geral, seria o mesmo que o


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dinheiro numa perspectiva marxiana e não apenas identifica a classe, como desmonta o processo de mobilidade social: existem inúmeros fusos que hierarquizam geograficamente os indivíduos, quanto mais se consome, quando não se tem tempo, mais rápido se morre. Ou seja, um grupo de magnatas domina uma grande quantidade de tempo e um grupo enorme precisa repartir o resto ínfimo - que ainda é abocanhado em parte pelo sistema financeiro dominado pelos magnatas. Dito assim, a engenhoca narrativa impressiona, mas esse parece ser justamente um caso exemplar da diferença entre criar mundos e saber conduzi-los ou filmá-los.

O Preço do Amanhã coloca o protagonista Will Sallas, in-

terpretado pelo cada vez mais ator Justin Timberlake, no papel de um pobre rapaz que, ao salvar um rico suicida nas ruas do gueto, cujo grande drama era justamente o de viver para sempre, termina por ganhar uma fortuna de tempo. Enquanto ficção científica, o filme se alinha aos projetos futuristas que abdicam de uma tecnologia de ponta para reconstruir espaços urbanos high tech, os meios de transporte ou comunicação são próximos de nossa realidade; as próprias relações interpessoais não mudaram muito. A aposta na mínima diferença entre a data distante e os dias de hoje procura aproximar o debate das imagens.


O tempo como equivalente geral

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Ao seguir para o fuso horário dos mais ricos, o prota-

gonista termina sendo perseguido por policiais corruptos conhecidos como controladores do tempo, que fazem valer na força as regras do sistema, mas que são adestrados através da ração diária de horas. Sallas termina sequestrando e tendo um caso com a filha de um banqueiro, perdendo um pouco o eixo político na necessidade de justificar a Síndrome de Estolcolmo, dado incansavelmente repetido na história do cinema. Nasce um entrave ideológico: através de uma visão reducionista, com diálogos depondo contra o próprio universo inventado, o casal tenta instalar uma espécie de revolução do tempo, redistribuindo o excesso dos mais ricos com os mais pobres, numa clara referência ao compartilhamento dos meios de produção. Contudo, o processo é absolutamente incongruente dentro do regime diegético estabelecido.

Além da referência a Bonnie e Clyde e Robin Hood, o

filme parece acreditar, ou mesmo vender, a hipótese de que as transformações políticas só acontecem enquanto atos de filantropia (dos mais ricos, dos políticos), como se as pessoas fossem instintivamente incapazes de reivindicar por elas mesmas. Pode soar como uma visão exagerada, mas a carga simbólica dessa moral é enorme. Em particular, num momento


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em que vemos o mundo se mobilizando em ações coletivas de ocupação de espaços públicos - e que o Brasil apenas recentemente deixou de ser a lesma dentro desse processo histórico -, o cinema de Niccol soa perdido no tempo, despregado da sua contemporaneidade política, ainda sofrendo da clausura narrativa do “messiânico homem escolhido” que surge para nos salvar. Pior: acredita que a revolução só acontecerá e mudará a vida dos oprimidos quando provida como um ato de bondade do próprio opressor. (novembro, 2011)


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Os sonhos inacabados de Mildred Pierce

D

I e uma maneira ou de outra, todos nascemos sob o sem-

blante de um berço e por mais que não lembremos o quilate do ouro ou da palha, se selecionarmos direitinho, alguns certamente freqüentaram escolas caras, foram educados numa vizinhança agradável, estiveram sempre bem vestidos e cercados de colegas e bonecos perfumados. Depois foram lá, completaram 18, 27 ou 32 anos sem deixarem a casa dos seus genitores – no alto de algum edifício ou numa casa de quatro quartos e cinco suítes – fizeram parte da graduação fora do país, começaram a "trabalhar" por indicação de seus tios até encontrarem maridos ou esposas de ‘níveis’ similares para, enfim, passarem pela vida inteira sem compreenderem o significado de ‘saber se virar’ (ou mesmo sentirem um leve gosto de ‘limiar social’). Há uma espécie de burguesia cujo permanente envolvimento familiar se baseia


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na segurança de que alguém, previamente, estará sempre ali para ser o responsável por suas contas e gastos (das roupas, da gasolina ao papel higiênico querido de cada dia).

No entanto, por mais que esse exemplo seja comple-

tamente caricatural e um objeto redondo para análises - ou gritarias - marxistas superficiais, a custódia estabelecida logo cedo entre pais e filhos em níveis socioculturais bastante diversos não é tão ingênua se prolongada indefinidamente. Tem, aliás, o seu preço muito bem definido dentro de uma crítica não só estética da mercadoria: uma obediência vale um carro ou uma bicicleta ou um skate; passar por média, uma viagem ou um passeio no zoológico ou um brinquedo reciclado. Não demora muito até termos em pleno funcionamento um sistema de trocas, um negócio baseado numa chantagem silenciosa e emocional onde as pequenas liberdades cotidianas – um enclausuramento exponencial – são trocadas por lampejos controlados de sonho (“você pode ser o que quiser, menos o que não quisermos que você seja” ou “você pode fazer o que quiser, menos o que não quisermos que você faça”).

Nesse processo, caso os filhos não reajam, não ganhem

o mundo por si mesmos e se emancipem, ficarão naturalmente mais infantilizados e dependentes, seguindo o propósito nor-


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mativo e punitivo das decisões de seus patronos. Claro que essa dependência também segue o caminho contrário, das mães que parasitam sobre os filhos como Mildred Pierce (EUA, 2011), personagem da mini-série homônima dirigida por um Todd Haynes inundado de carinho por Douglas Sirk, que deposita na jovem Veda, as suas frustrações, seus sonhos inacabados, apostando todas suas forças no velho clichê familiar de dar a filha “tudo aquilo que eu não pude ter”. Assim, Veda tem aulas de piano desde cedo, anda sempre muito bem vestida, embarca numa educação refinada que justamente a faz oscilar entre o cínico e pomposo repúdio a tudo o que a mãe representa e a submissão bem ou mal ao estúpido desejo materno. Acontece que, seguindo a linha de pensamento do filósofo Jean Baudrillard, a partir da expansão dos horizontes financeiros e formativos, maiores, mais audaciosos e mais classistas – com certa limitação familiar – serão as esferas das escolhas.

O fato é que a filha, ainda que aja como se fosse livre

enquanto está presa numa injunção do pensar, nunca respeitaria a mulher desquitada de classe média que perdeu dinheiro, ganhou montantes, ficou rica, declarou falência, mas não deixou de lado seus costumes básicos. De algum modo, mesmo durante o período mais próspero, Mildred continuou a


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ser identificada por seus modos, digamos, ‘subalternos’; uma mesquinharia com notas de R$ 50 em relação ao marido, uma preocupação excessiva com a comida; uma falta de tato para decoração; uma mão suja de trabalho honesto na cozinha. Honesto ou não, para os ‘nobres’, para seu amante Monty Beragon e para Veda, trabalho é trabalho; o menosprezo é o mesmo. Há uma cena em que todas estão ocupadas: Mildred, a ajudante, a filha mais nova e Veda aparece apenas para dar uma olhadinha, mira como quem encara seus empregados, caminha até um recipiente com chocolate, coloca a mão e prova. Seu ar petulante, sua síndrome de patroa, sua forma de cruzar as pernas deixam transparecer um permanente menosprezo por tudo que a cerca.

Mildred Pierce estava pronta para atravessar a vida sem

precisar visitar o porão ou o quarto de hóspedes da sociedade, refugiada na cozinha, no avental que deixa suas pernas tão sensuais, no avental como instituição da classe média norte-americana, no deleite de fazer tortas e na singela ânsia pela permanência das estruturas sociais. A burguesia, pequena, média ou grande, sempre trabalhou arduamente para o melhor reconhecimento dos seus, festinhas diárias em todas as cidades só confirmam isso, os outsiders continuam outsiders, mas fingimos


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viver num projeto utópico de integração. Contudo, diante da separação do marido, da falta de dinheiro, a protagonista precisou encara a busca de um emprego sem ter qualificação, sem nunca ter necessitado; teve de dar duro no batente para impor um destino diferente a sua filha e manter levantados os olhos e ampliados os horizontes de sonhos (de Mildred para ela, claro).

Desde o primeiro passo nessa direção, Mildred lidou

com um confronto de classes dentro do seu próprio corpo – um microespaço político, pendente – apontando toda dificuldade em descer os degraus sociais sem ter de largar o salto de lado. Nas promessas do sonho americano até A Grande Depressão só eram apresentadas as possibilidades de ganhos, essa mudança ou abalo no status quo funcionou peculiarmente ou mesmo contraditoriamente no intuito de aguçar e refinar a visão de uma simples dona-de-casa para com as engrenagens do sistema capitalista e a localização dos indivíduos, mão-de-obra ou não, dentro delas. Veda, no seu casulo de seda, no seu olhar oblíquo em plongée permanece durante praticamente as cinco horas como ponto cego.

O primeiro dos embates internos de Mildred acontece

quando ela é confrontada a usar um uniforme: a indumentária sempre foi um dos meios mais antigos de diferenciação e orga-


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nização entre os indivíduos, assumindo o caráter de ordenação social. Além disso, a vestimenta responde sozinha a pergunta central da sociedade burguesa (“O que você faz?” que justifica "quem você é") sem precisar de um punhado de palavras. Nesse momento “entre a barriga e o orgulho”, Mildred termina escolhendo a barriga com toda dificuldade, mesmo não abandonando uma consciência de classe, que a acompanha e se manifesta ao longo de sua trajetória em busca de um emprego. Quando segue para uma mansão no intuito de preencher uma vaga de governanta ou ao menos sacar qual era a proposta, o empregado abre a porta e solta: “Governanta?”. Mildred responde “sim” e se encaminha para entrar. O empregado então fala num tom imperativo: “PORTA DOS FUNDOS” repreendendo a candidata por tentar atravessar a porta da frente.

Decerto é nessa entrevista onde os pequenos ritos ga-

nham uma instância de fenômeno: a madame explica a Mildred que a diferença entre as classes é postulada desde os pequenos gestos, repreende a protagonista por atitudes bestas, sentar sem a dama mandar, ficar em pé quando a dama manda sentar, escuta que terá de morar na mansão, poderá trazer as filhas “mas claro que a confraternização entre as crianças não será tolerada”. Mildred, que tanto estava enojada pelas clas-


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ses inferiores, com seus maus hábitos, gorjetas e uniformes, sente-se ainda mais violentada quando finalmente se depara com o terror comportamental e relacional das classes acima. Qualquer mínimo poder precisa ser exercido nos mínimos e abusivos atos para se legitimar enquanto tal. Mildred não estava disposta a suportar. II É então que Mildred decide se “rebaixar” em outro lugar, utilizando aqui o comentário da própria filha ao tratar do novo emprego da mãe como garçonete: “olha só onde você chegou, as tortas não eram o bastante". Semanas depois, quando Veda, por puro sadismo, obriga uma assistente da mãe vestir o uniforme dentro da residência, Mildred fica raivosa, sabe que a filha tinha descoberto seu emprego mantido a sete chaves por ‘vergonha’, supostamente referendando a existência de trabalhos mais ou menos honestos, como se o salário não apenas estabelecesse uma hierarquia socioeconômica, mas especialmente uma distinção moral. A desculpa da mãe é estar aprendendo o funcionamento da 'máquina' por dentro para se tornar uma empresária, ou seja, voltar a destacar a sua respeitabilidade através do que faz. Quando Mildred deixa de ser garçonete para ter uma rede


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de restaurantes, desde a inauguração do primeiro estabelecimento, ou seja, quando vira ‘a chefe’, naturalmente o uso do uniforme pelas subalternas deixa de chamar a sua atenção. As empregadas, não por acaso, são relegadas ao décimo oitavo plano, cujo momento de maior aparição é para receber um leve elogio aqui, um pequeno agrado ali e só.

O dilema entre as classes só nos aparece quando nos

atinge, por isso o termo ‘limiar social’ no início do texto é tão importante: mesmo os envolvidos no campo da militância poucas vezes conseguem desvincular suas ações do patriarcalismo e da missão de fé, como se a relação de classe se perpetuasse através do 'riquinho' que ajuda o 'coitadinho'. O filósofo Slavoj Zizek repete incansavelmente em seus livros que mantemos de maneira sigilosa uma crença de que vivemos numa sociedade pós-classe e pós-ideológica no intuito de neutralizar uma condição dos indivíduos marginalizados, perpetuando uma ideologia compartilhada que assenta os estratos sociais e amputa os instintos de revolta. A consciência de classe burguesa é o atual regime de permanências.

Podemos aproveitar aqui uma pergunta básica: por que

Mildred e não outra garçonete qualquer do ramo abriu um restaurante? Não é por sua personalidade, por sua constituição


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pró-ativa, porque é interpretada por Kate Winslet (talvez seja!) ou mesmo porque ‘tem um talento’ (fazer tortas?!), mas pela ligação classista – ela deixou o salto alto de lado, mas não o jogou fora – e está imbricada num sistema de articulações que envolvem indivíduos que facilitam sua vida em todas as pequenas e desprezíveis esferas. Daí é só desejar e ligar para o advogado, desejar e ligar para o amigo influente, desejar, desejar, desejar, retificando novamente o que Zizek defende: no capitalismo cultural, ‘as relações sociais’, em sua própria fluidez e rede de indicações, é o próprio objeto de comércio e da troca. A minissérie, sem dúvida, estabelece uma afetiva ligação entre um gênero canonizado como burguês, o melodrama, e uma série de insights para uma leitura marxista do espectador.

Tomando a gênese do trabalho como tema central,

Haynes acompanha desde o passo a passo da feitura de uma torta caseira, passando pelo funcionamento e comportamento de um restaurante suburbano até as instâncias de ampliação de uma rede de estabelecimentos comerciais para pontos fora da cidade. Provavelmente nunca vimos tantas mãos em cena, em sequência, tantas obrigações esquadrinhadas, gerando um contraponto à imagem talhada pelo cineasta de ensaios, Harun Farocki, em seu média Workers Leaving the Factory, onde


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defende que a história do cinema começa depois da jornada de trabalho, como se a vida começasse no abandono desta realidade, como se algo puxasse os operários apressados para fora. Mildred se vincula ao mundo de relações em que o trabalho não se distingue da vida, não são dois momentos distintos, aproxima-se do nosso dia a dia onde cada abertura de e-mail e cada resposta é um minuto a mais de trabalho, onde as jornadas já não podem ser contadas apenas pelo ponto de chegada e saída. Isso para não falar de todos mercadinhos, restaurantes e pousadas que funcionam nas residências dos próprios donos. Além disso, Haynes adentra em agendas cada vez mais lotadas, no sonho proletário de uma tarde de sono num dia de semana, desenvolve personagens com diferentes relações com o ato de trabalhar e, ainda no início, nos faz vislumbrar o tamanho do seu interesse nesse campo.

Quando Mildred espera na fila para saber se há uma

vaga disponível para seu perfil (que claramente é um perfil de exceção, uma mulher de classe média só podendo ser secretária), a cidade de Glendale em 1931 aponta para qualquer cidade contemporânea, pois o rápido travelling pelos rostos desamparados são similares aos de quaisquer órgãos públicos destinados a encaminhar pessoas para vagas no mercado.


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Durante os quinze meses que estagiei numa desses espaços, não deixei de perceber que alguns na fila eram os mesmos, muitos reclamando por não terem tido chance no passado; outros por não terem cursos para colocarem nos currículos; uns escutando o fato de não serem qualificados o suficiente; outros lamentando a perda de um parente gestor; inúmeros acordando para a condição de serem velhos demais; outros carregando a desesperança por não terem experiência alguma. Absolutamente todos apartados do sonho infantil ‘o que você quer ser quando crescer’; estavam ali, sentados, dia após dia esperando por qualquer coisa e salário – garçonete, ascensorista, gari, um salário mínimo, menos que isso – e fundando aquele espaço como um dos mais melancólicos templos capitalistas. O diametralmente oposto ao Shopping Center.

Mildred tem um pouco desse sonho incompleto, só

possível de ser realizado através de Veda e é por isso que sua filha é tão cruel. Ela surge desde pequena como uma imanente força maligna que se posiciona para além da equação dicotômica ‘subalternos / hegemônicos’ ou ‘proletariado / burguesia’. “Há algo de nobre nela” e se existem nas classes sociais um determinado código de conduta que os diferenciam, uma construção da ideia de dignidade, honra, noções


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que constituem um padrão moral de códigos partilhados, que também os aproximam em casamentos quase arranjados, existem pessoas que parecem estar além desses padrões, que unem determinada ilusão grandiloqüente com uma postura intelectual que as engrandece. Essa é Veda, cuja primeira aparição numa foto simpática não nos dá sinal da menina nos seus onze, doze anos, que independentemente onde more ou o que faça ou o que beba, sempre terá sua ‘classe’ – em ambos os sentidos – muito bem definida, sempre desprezará os mais pobres e burros que ela, sempre manterá seu ar superior, seu olhar atrevido e mesmo diante de uma dificuldade de estima enorme ou mesmo a beira da depressão por não ser talentosa o bastante, continuará acreditando piamente que todas as pessoas do mundo estão ali para lhe servir. E talvez ela esteja certa, não seja apenas um sintoma de transtorno de personalidade antissocial (sociopatia), pois mesmo depois de todas as humilhações possíveis, Mildred continua até o fim, quase sem forças, apoiando a filha para manter vivo seu perverso jogo de projeção. Como algumas mães, sua felicidade em escutar alguém traçando semelhanças entre ambas não reside apenas no símbolo umbilical, mas na certeza obsessiva de que a filha é uma pessoa melhor


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independentemente da personalidade que tenha. Enquanto isso, Veda despreza todos que ela julga como estúpidos, ou seja, todas as pessoas do mundo. III A minissérie não trata apenas do embate entre a falência e reinvenção do sonho americano através da heroína capitalista ‘deixada’ pelo marido (fissurando o machismo, claro) ou de uma dona de casa de classe média que olha o próprio corpo no espelho, solta um desabafado “grande instituição americana” e vai à luta. Acontece que o ponto de convergência está na instância sempre à espreita, sempre escondida de Veda, presença diabólica, olhos brilhantes, a filha que funciona como depósito maligno de tudo do bom e do melhor que as mães desejam (incluindo companheiros simpáticos e abastados). No último episódio, mãe e filha estão distantes há meses, quando Mildred descobre que Veda está cantando na rádio: incrível como Haynes se apropria da voz da mulher enquanto presença fantasmática que acompanha a mãe em todos os planos, sendo concretizada com a sua aparição na festa do segundo casamento de Mildred, cantando diretamente para ela.


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Mildred não só aceita a volta de Veda como só falta se

ajoelhar e agradecer o retorno da filha – há algo de O Criado, de Joseph Losey aí – e mesmo sendo ‘a heroína que dá a volta por cima’, um belo exemplar de capitalista e do ciclo do capitalismo, diante da filha, Mildred se comporta como se fosse, e nos diz Zizek sobre as novas formas de poder, um pato que segue voluntariamente para o abate. No caso da protagonista, ela ainda beija a filha na boca. Na consciência de classe que ambas compartilham e se distinguem, Veda surge a todo o momento dotada de autoridade para estar e não estar dentro das regras, subvertendo ou participando das convenções, de modo que na relação de dependência, Veda no lugar de Veda, quase tudo pode; Veda como sonho inacabado de Mildred, tudo pode; Mildred no lugar de Mildred, quem se importa…

Dentro dos primeiros planos, quando as personagens

flutuavam acima das emoções, ambas fingiam estar numa realidade paralela a de suas próprias vidas. Todavia Mildred logo perde a pose, vomita ainda no primeiro episódio, perde a outra filha no segundo, enquanto Veda demora um pouco mais, cobra que é, pessoa fria que é, bruxa que é, só estremecendo perto do final da minissérie quando é esganada pela mãe, vomita, bate num piano e cai seminua no chão. No limite de suas potências


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físicas e morais, no confronto direto de corpos e no rompimento – não definitivo – da dependência da mãe em relação a filha, do círculo vicioso e parasitário, no abandono do cinismo eterno e de todas as eternidades ou verdades, na negação das origens carnais e simbólicas, no contraponto aos refúgios da razão, eufemismos e hipérboles da classe média, Mildred e Veda no ato final de violência exercem, mais do que nunca, a condição de serem humanas, demasiadamente humanas. E pensar que toda saga trabalhista de Mildred começou com a acusação de roubo de uma gorjeta por parte de uma funcionária de um botequim qualquer. (junho, 2011)


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Colonialismo partilhado

T

al qual vem se tornando comum entre as propagandas

de bancos e empresas multinacionais, o nada inocente Avatar (EUA/Reino Unido, 2009) se apropria de forma capital de um discurso internacionalmente difundido por sua urgência, o discurso ambiental, para confirmar a resolução de que determinados dados inseridos num regime estético, reforçam uma realidade em que os significantes se fortalecem enquanto os significados são menosprezados. James Cameron com toda sua pompa e megalomania bem esquadrinhada passa a impressão de que está profundamente preocupado com o futuro do planeta, visitou no mês passado a Amazônia para afirmar sua posição contra o desmatamento e a construção Belo Monte, enquanto que para além da tela, para além da causa ecológica ecoando como épico, vemos a preocupação de uma indústria consigo mesma, erguen-


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do para Hollywood um monstruoso culto a nada menos que a técnica. Avatar vem sendo vendido como a “salvação do cinema”, num momento em que o cinema comercial, nesse início do século XXI, enfrenta mais um desfiladeiro da renovação tecnológica, a internet: a produção, assim, alinha a tecnologia 3D de ponta com o âmago da expressão (sic) capitalismo verde.

Naturalmente, a guinada, que resultou nos efeitos

mais suntuosos e produziu a mais rentável bilheteria até então, não se deve apenas às qualidades artísticas inegáveis, mas ao timing de usar a técnica assombrosa a serviço de uma narrativa convencional, onde cientistas são esboçados como ‘mocinhos, multiculturalistas e compreensíveis’ e os militares como ‘bandidos, etnocêntricos e cruéis’. Há aqui uma atualização de paradigma, um sistema que troca de pele diante dos nossos olhos e mistura sua identidade de colonizador com a mesma casca dos colonizados, aproximando tecnologia e religião para conseguir uma abrangência e publicidade mundial. Formata-se, então, um blockbuster cibernético-hindu-ecológico, produto redondo para vingar o cinema de entretenimento ao oferecer um espetáculo que não pode ser reproduzido domesticamente. Isso não podemos negar: o sonho publicitário contido em Avatar venceu.


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De todo modo, vale lembrar o que Adorno e Horkhei-

mer nos alertavam em todo seu pessimismo na Dialética do Esclarecimento para a “compulsão permanente da indústria em produzir novos efeitos, que, no entanto, permanecem ligados ao velho esquema”. Assim, fascinados pela pirotecnia digital 3D, afetados pelo discurso ambiental e curiosos pelo exótico misticismo oriental, os espectadores não notaram que estavam diante de um velho roteiro, da releitura do mito de Pocahontas, do encontro tenso e amoroso entre colonizadores e colonizados, encontro que pacifica e torna superficial o verdadeiro embate de forças. A adaptação desenvolvida por Cameron se desenrola no ano de 2154, através de uma equipe humana (ou melhor, norte-americana), cuja missão é explorar as fontes energéticas do planeta-floresta Pandora (obviamente os recursos da Terra foram dizimados e o imperialismo precisou desvendar novos horizontes). O lugar é habitado por alienígenas-índios que vivem em conexão profunda com a naturezaciberespaço, inclusive com uma metáfora que une a suposta rede à uma espécie de transcendência metafísica.

O encontro entre as duas raças/culturas não é pacífico,

pois o maior reservatório energético está justamente embaixo de uma árvore gigante que funciona como moradia dos nativos


Colonialismo partilhado

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(Na’vi), mas enquanto os cientistas querem estudá-los cuidadosamente, os militares buscam respostas pragmáticas. Com essa separação tão evidente, o filme parece defender um imperialismo menos bruto, mas ainda imperialismo, trocando a violência explícita por uma compreensão dominativa. Assim, o clímax da película ocorre no momento do conflito direto em que o lugar é atacado por dezenas de helicópteros, cena que toma uma dimensão épica, com desenho de som no último grave do dramático, transformando a queda de uma enorme falsa árvore em 3D num espetáculo emocionante em sua extravagância. Avatar é um desses filmes assombrosos em que colonizados, colonizadores e espectadores de todo o mundo dão as mãos e se emocionam juntos. (fevereiro, 2010)


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Pelo desejo de fantasia no pós-colonialismo

Q

uando se comenta sobre a história da representação num

duelo e namoro entre a pintura, a fotografia e o cinema, uma história do centro contada pelo centro para o centro, a invenção de Nicéphore Niépce e a subsequente provocação dos irmãos Lumière são sinalizadas como artefatos fundadores, não apenas por terem redirecionado o desejo realista das artes visuais e libertado a potência dos sonhos naquele campo, estimulando demandas que desembocariam no Modernismo, mas especialmente por esboçarem pela primeira vez uma gama imagética do mundo nunca dantes experimentada e consumida pelo próprio mundo. Os franceses, nesse período, financiaram inúmeros técnicos para viajarem aos quatros cantos em busca de registros, de modo que lugares mais ou menos exóticos apenas contados, relatados, fantasiados, ganharam um rosto e


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um vislumbre de olhos. Fundava-se ali um estatuto de visão eurocêntrico, que procurava diminuir gradualmente o espaço das lendas e tradições orais mais ou menos exageradas. Ao serem confirmadas, desfeitas, relidas, as fantasias cediam o seu poder particular de incompletude e ambiguidade à uma fria instância de certeza (e, claro, só aparente certeza).

Aliás, como comenta o sociólogo Paulo Menezes, nin-

guém poderia imaginar que tais artefatos pudessem se transformar numa das influências mais determinantes do olhar no século XIX e século XX, afinal imagens tão perfeitas do exterior desorganizavam em absoluto os esquemas pelo quais as pessoas decifravam o caminho datado das representações. Aguçava-se, assim, uma capacidade de memória individual e coletiva, o passado íntimo e social deixava de lado o imaginário muitas vezes preconceituoso para ganhar uma existência concreta, ainda que paulatinamente se confirmasse como uma postura de dominação do centro em relação às periferias, uma guerra de objetivos políticos constituída através da produção de subjetividade. Por isso, quase um século depois, no processo de descolonização, o cinema de Djibril Diop Mambéty parece recontar todo esse dilema por vias esquecidas, pela volta de um desejo de fantasia, não apenas repensando a representação produzida pelos colo-


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nizadores, mas indo além da afirmação identitária proposta inicialmente pelos colonizados. Nem o apelo exótico de uns, nem a autocomplacência de outros.

O senegalês em Contra’s City, Badou Boy, Touki Bouki ou La

Petite Vendeuse de Soleil é responsável por outro tipo de desenho do rosto de seu país, como se livre da necessidade de ser fiel ao retrato proposto por seus antecessores, presos a necessidade do negro representar o próprio negro, do senegalês contar a história do Senegal, estivesse mais preocupado com os motivos do sorriso, com os desejos escondidos, criando máscaras sobre máscaras dentro da instância do sonhar. Parece contraditório, mas a história é inversa em relação ao centro: se fotógrafos pioneiros como Seydou Keita, cujos eloquentes retratos produzidos na transição entre colônia francesa e independência, registravam a contradição corporal de nativos que desejavam serem identificados como europeus ou por outro lado, que desejavam reforçar suas raízes do que verdadeiramente significava ser africano, Mambéty surge da superação de esboço da realidade por uma imprescindível abertura irônica de afetos e pulsões. Para ele, a liberdade pós-colonial era desconhecida até então, pois o desejo estava atachado entre regimes de dominação e resistência, um desejo refém do velho modelo dicotômico:


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a liberdade pós-colonial surgiria, enfim, quando fosse possível não esquecer o passado, não negar o presente e, ainda assim, se colocar como um ser pleno de imaginação e fantasia.

Certamente, na história do centro contada pelo centro

para o centro, a fotografia encerrou as funções utilitárias da pintura, colocando como questão não o caso da fotografia ser ou não um tipo de arte, mas ressaltando um problema anterior: se a fotografia e consequentemente o cinema não havia alterado a própria natureza da arte. Quase um século depois, no continente africano, a questão da representação assume um dilema ainda mais profundo, pois na impossibilidade de pensar uma história da imagem africana, inicialmente limitada ao registro de colonizadores e em sequência submetida a uma necessidade de autorepresentacão dos colonizados, é como se no primeiro caso os negros só existissem quando os brancos falassem de sua existência e no segundo, como só existissem quando passassem a serem vistos pelos brancos. Apesar da importância de pensar por essa lógica, afinal vemos todas as partes do mundo muito mais do que vemos a África, matizando um estatuto do olhar bastante cruel, mesmo no segundo caso, a liberdade ainda parece enclausurada por uma obrigação de resposta para além da carência própria de representação.


IV Dimensões da política

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Emerge, então, numa tendência brilhante de intuição

que se desvia de ambos os caminhos, o cinema de Mambéty explorando as formas para além do colonialismo e do renascimento cultural pós-colonialista, introduzindo o continente de maneira bastante poética – e não submetendo – ao contexto de globalização. O cineasta parece mais preocupado em lançar imagens que menos representam o seu país, o Senegal, por meio do embate entre hegemônico ou subalterno, ambos preocupados com seu próprio realismo, mas traçando um inventário de sonhos obstruídos, por vezes infantis e ingênuos, que revelam a necessidade que sobrevoa o conflito direto, para abarcar, numa política de pequenos passos, um universo que se perde. O ambiente é hostil, sim, as dificuldades são imensas, sim, as consequências foram desastrosas, claro, mas a negação da luta por um imaginário particular parece ser mais importante, afirmando uma luta subjetiva, que utiliza dessa realidade exterior como dimensão espacial de um ensaio alegórico. Há em Mambéty um despretensioso projeto de invenção cotidiana e cinematográfica.

O caminho percorrido adentra universos da microesfe-

ra, da relação entre as pessoas, os marginais dentro da marginalidade, a ironia como modelo de verdade, os anseios contraditórios de cosmopolitismo, mixando referências encrostadas


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através de entradas invisíveis, redesenhando o lugar não pela concretude, mas justamente pelo intangível. A fragilidade e bravura de seus personagens denotam inclusive atualizações internas em sua carreira, entre a década de 1970 e sua produção no final da década de 1990, pensando, inclusive, no pulo do gato de não-produção durante quase vinte anos. Do primeiro momento para o segundo, redescobre novas instâncias de liberdade para com as próprias que havia instaurado, de modo que claramente abandona a vontade de experimentação formal por uma intensificação dramática, nunca piegas, sempre onírica. Brinca com os gêneros, aposta nos ângulos, destrincha suas fábulas duras e certeiras, como as frases de fundo dos Mammy Wagons (caminhões de passageiros que carregam placas similares às brasileiras), pensando que nenhuma condição é permanente, que a vocação de fazer ou não fazer cinema é transmutável, quiçá efêmera, que ao invés de retratar apenas o mundo material dos olhos é preciso, enquanto podemos, apostar nos mundos imaginários de outros olhos.

Não foram poucos os cineastas que nos anos iniciais de

carreira se apropriaram da figura do bandido para reforçar os contornos de um cinema experimental e de vanguarda, alinhando a transgressão narrativa que propunham nos ângulos, planos,


IV Dimensões da política

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cortes e durações aos elementos diegéticos da história contada. É quase como se, esboçando o poder menos como propriedade e mais como estratégia, procurassem contestar um padrão estético e assim afirmar uma postura política por meio da marginalidade como arma inquieta, hedonista e libertária. Trata-se de um ponto que, correndo o risco do imaginário glamourizado, liga o cineasta enquanto ator de um mercado simbólico ao personagem enquanto ator de um sistema de representação. Ambos marginais. Tal como Jean Vigo e seus adolescentes revolucionários, um misto radical de suas experiências com a memória anarquista do seu pai, na luta contra a ordem estabelecida pelos professores em Zero de Comportamento. No seu único produto audiovisual, Um Canto de Amor, Jean Genet revela o desejo sexual de presos como caminho para ultrapassar as fronteiras da prisão, colocando as fantasias sexuais enquanto instâncias de criação / transgressão. Há nessa vontade de arte-crime, uma necessidade dos cineastas fazerem os outros escutarem um som ensurdecedor, abrirem os olhos para a marca inevitável da história, por meio de uma rede de insubordinações inseridas em variadas esferas estéticas, fundamentando a transversalidade, interseccionalidade indiscutível e inegociável do campo da política. (abril, 2012)


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Jardim dos delinquentes

N

o média-metragem Badou Boy (Senegal, 1970), Djibril Diop

Mambéty segue alguns cacoetes do cinema que aprendemos a identificar como de vanguarda – ele próprio é considerado um dos pioneiros do experimental no cinema africano – filmando uma câmera que parece estar durante uma filmagem, num truque metalinguístico que poderia ser classificado como ingênuo em pleno início da década de 1970, mas que ganha segundas e terceiras camadas pelo uso jazzy do som – ora disjuntivo, ora reflexivo, sempre irônico e auto-irônico –, característica que viria a ser uma das marcas de seu cinema. Aliás, se a presença de vozes dubladas em tons mordazes denuncia uma dificuldade de captação direta, também revela uma aplicação similar aos atentados do coletivo pernambucano Telephone Colorido e aproxima o cineasta do desbunde proposto por Rogério Sganzerla – outro,


IV Dimensões da política

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que tomou a história de um bandido, o da luz vermelha, para dizer como gostaria de fazer a partir dali a história de seu cinema.

Ainda que também tenham usado da figura de mar-

ginais, cangaceiros, poetas e operários, Glauber, Solañas e Getino, enquanto formadores de um paradigma do cinema terceiromundista, estão situados numa posição bem diferente da de Sganzerla e Mambéty. No caso de Badou Boy, o filme fala do pós-colonialismo sem falar, tematiza o lugar do subalterno por relações internas ou por ações lúdicas, formulando uma gama de outras maneiras de contestação. Transforma, nesse caminho, a aparente falta de rumo dos renegados numa nova lógica de resistência. A política deixa o campo da literalidade para encontrar sua potência nas nuances, enquanto há apenas a vontade intensa de viver o sonho da fuga, uma persistência na crença de que o final feliz está em outro lugar. O filme reporta as desventuras de um garoto transgressor de profunda inclinação onírica: por um lado, segue a tradição do jardim dos delinquentes, isto é, da juventude transviada como molde de rebeldia; e, por outro, acompanha a proposição de autoficção de Jean Rouch em Eu, um Negro (França, 1958) e especialmente Jaguar (França, 1967), onde o rapaz comum emula cavaleiros, onde o marginal se imagina como herói. Numa


Jardim dos delinquentes

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busca desesperada pela invenção de pequenas felicidades, aparentemente falsas e ficcionais, nasce uma estrutura interior carregada de verdade.

Certamente o uso do som no filme, além de imprimir

um caráter pop e cômico acoplado ao cenário paupérrimo, conjugando uma estranha conexão entre riffs do mundo ocidental e interações urbanas subalternas, almeja instaurar a atmosfera do cosmopolitismo periférico, uma espécie de modernidade numa sociedade em processo de organização, cujas contingências locais desfilam ambiguidades e contradições. Entre marcas sutis da dominação e da resistência, Mambéty aposta em algumas alegorias passageiras, cheias de sarcasmo e humanidade, seja quando denota com afinco a sutil diferença de classes pelo uso do chapéu, seja pela cena em que o menino brinca com balões coloridos num cenário seco, terroso, com tons que variam entre o cinza dos muros e o marrom do chão. Os balões são levados pelo vento, passam o muro, somem, com um corte preciso entre dois planos, o enfante consegue recuperá-los.

Aliás, a presença humana é que matiza a imagem, as

roupas, os panos, adereços, atitudes, mulheres com ânforas, de modo que Badou Boy – arruaceiro, bagunceiro, treloso – segue o jogo de gato e rato com o comissário da polícia, um jogo entre


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o Senegal e a França, terminando seus dias estrangulado pelos sonhos e pelas mãos de seu algoz. Ele não passa de mais um garoto como outros, morto num terreno abandonado e ainda assim, não perde seu interesse pela brincadeira, não se entrega aos braços do conformismo. Mambéty sugere que se nos centros mundiais, a efervescência política e cultural procurava intuir um modus operandi de luta subversiva por meio do uso de flores contra armas, o Flower Power, já ali no Senegal, eles estavam literalmente comendo as flores. Não procura, no entanto, despertar a complacência em seus espectadores ou opressores, só acredita que o espírito juvenil é um templo antagônico em relação às figuras de autoridade e aposta nesse universo com uma certeza ímpar. Badou então olha a estrada, usa do velho truque do falso cego, sabe que dali pela frente, um longo caminho lhe espera. (abril, 2012)


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Corpo em desacordo

O

pau de Michael Fassbender é o grande ator de Shame

(Reino Unido, 2011), de Steve McQueen. Não apenas quando aparece balançando perto ou distante da câmera que acompanha a rotina matinal de Brandon, composta basicamente pelos ritos de acordar, ligar a secretária eletrônica, ignorar os recados de sua irmã, caminhar até o banheiro, mijar, voltar para fechar a porta e bater uma punheta durante a ducha. Não apenas quando o executivo bem sucedido contrata prostitutas, transa na rua com desconhecidas, masturba-se no banheiro do trabalho, acumula pornografia de maneira obsessiva ou flerta como um vampiro entre as estações do trem. Aliás, não são poucos os que a qualquer saída de casa, qualquer mesmo, precisam desejar, encarar e fantasiar ao menos três vezes antes de aterrizarem satisfeitos no destino final. O pau de Michael


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Fassbender – pau comentado até por George Clooney durante a festa do Oscar – é apenas um símbolo da vontade, do mundo como um circuito de pulsões e da nudez, esse estado natural absolutamente desnaturalizado, cujo estatuto de existência vem atrelado às agressivas arestas do contexto.

Da mesma forma que assume o papel de violência sim-

bólica, como no caso de todos que se despiram em prisões na frente de seus algozes ou daqueles que foram obrigados a fazerem suas necessidades fisiológicas diante de policiais morbidamente atentos; também anuncia um momento de comum acordo e intimidade, em especial quando conseguimos transar, com todos os louros, com a pessoa, enfim, amada. Tudo captado por uma direção alumiada e sinóptica de McQueen, que pelo bem ou pelo mal carrega um vigor raivoso típico dos iniciantes. Como um bom consumidor do sexo, Brandon tende a não se sentir satisfeito com sua mercadoria por muito tempo; desenvolvendo, assim, uma jornada ininterrupta na qual quando consegue o que quer, diminui na realização de fato a dimensão que existia durante as expectativas da procura. Ou seja, cada vez mais se entrega a decrescente distância temporal entre o brotar e murchar do desejo. Portanto, o apetite se instaura como elemento dominante da sua existência, ao menos


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até o momento em que Brandon entra em crise com o mercado que frequenta, por perceber o descompasso entre o seu corpo e o tesão pelos outros corpos, condição que mobiliza sua busca dentro de um sistema sexual, cujo afeto surge como uma barreira - e até contradição - ao gozo.

Sem colocar essa camada em primeiro plano, assistir Sha-

me é também uma maneira de formular diálogos do Existencialismo, enquanto ferramenta teórica, com a realidade contemporânea e sua extensão, afinal a inquietação permanece, a aflição permanece, a própria noção de ser autêntico ou inautêntico se arrasta. Em resumo, a angústia envolve inúmeros patamares da vida cotidiana, pois somos conscientes da responsabilidade sobre nossos atos, de modo que a liberdade implica em frustração, o desejo acaba se rendendo à repressão. Brandon nada mais é do que um insaciável consumidor à deriva, um bichinho atachado entre seu ímpeto sexual convicto e aparente, suas escolhas desenfreadas e uma vivência enclausurada na única forma em que conseguiu estabelecer uma rotina. Basta, contudo, a chegada de sua irmã, Sissi, para o desconforto abater o executivo, seu corpo e, consequentemente, seu pau. A cena em que ela flagra ele se masturbando é de um constrangimento poderoso (na que ele flagra ela tomando banho, novamente é


IV Dimensões da política

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ele quem se constrange), pois a presença dela desencadeia nele uma vontade de lançar diante de seus olhos uma moral supra conservadora, resultando nas viscerais cenas finais em que o rapaz perde o controle de seu próprio corpo.

O hedonismo como poética começa a se esfacelar, de

modo que quando precisa fugir – e Brandon foge e nega a si mesmo nos primeiros sinais de pressão – , termina por se tornar refém da distância entre sua existência e sua essência, talhando um mundo de plástico onde qualquer coisa pode - e deve -, desesperadamente, dar prazer. Claro que as errâncias respingam no ainda jovem cinema de McQueen, mais pela necessidade de quadros moralmente literais, mais por uma trilha sonora cerimonialista e menos pelo seu rigor exagerado em todos os elementos cinematográficos. Decerto, seus enquadramentos parecem contas matemáticas, seu olhar denuncia uma série de cálculos diante das variantes da pré-filmagem, no entanto, revela-se por outro lado um cineasta da astúcia: na cena em que Sissi canta New York, New York, o britânico gravou com três câmeras de maneira simultânea, estetizando a crueza da improvisação e da espontaneidade através de um olhar cuja estrutura não é necessariamente a do filme para emocionar, mas da indiferença mecânica de um parafuso rodando. Ainda assim, as lágrimas escorrem.


Corpo em desacordo

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Com alguma marca já visível desde seus trabalhos em

videoarte, especialmente em Bear (1993) com dois homens negros nus se encarando entre o confronto e o desejo, Steve McQueen tangencia um cinema do corpo, não do corpo espelho da alma, mas do corpo em desacordo, corpo de Fassbender que assume o papel de todos os corpos. A degradação aparece atrelada a esse espaço físico que se confunde com a pele da imagem, tendo como fonte a dor, o prazer, a articulação da dor pelo prazer e do prazer pela dor. Novamente coloca limites em jogo. No seu primeiro filme, Hunger (Reino Unido, 2008), o britânico acompanha os excessos da violência policial sobre membros do IRA, numa prisão da Irlanda do Norte em meados da década de 1980. Alguns apanham nus de vários homens armados, mas a narrativa termina chegando na greve de fome do líder Bobby Sands, rapaz que viveu boa parte de sua vida na prisão e que levou seu protesto até as últimas consequências, morrendo desnutrido pela falta de alimentação aos 27 anos.

A obra, contudo, abdica do discurso político e da for-

ma de abordar política, que geralmente resulta no rótulo filme político, para desenvolver, numa comparação sutil entre as atrocidades da democracia e as atrocidades da ditadura, um ensaio do corpo como último e inalienável instrumento de resistência,


IV Dimensões da política

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corpo que possibilita fezes para pintar as paredes, corpo que possibilita a urina a ser jogada no corredor onde os algozes invariavelmente precisam andar. Quando Fassbender se torna irreconhecível – e isso acontece em ambos os filmes – mas no caso de Hunger, esquelético, cada pequena expressão ressoa em caráter de urgência, seja um trago num cigarro improvisado diante da privação completa, seja o relato do médico quando as feridas começam a pipocar em sua barriga e costas. A luta é a luta pelo direito ao corpo transmutado em corpo político, existência que a Dama de Ferro ignora com sua voz arrogante nos discursos em off, revelando os limites contraditórios de um mesmo sistema. Se por um lado, promove sistemáticas agressões aos presos e depois veta suas reivindicações “políticas; por outro, depois das sucessivas negações e privações, diante da irreversível condição do corpo definhado, o mesmo sistema acolhe e exerce um tratamento cinicamente cuidadoso. O corpo não aceita. O corpo morre. (julho, 2012)


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Filmes de arte para velhas senhoras de muito bom gosto

S

e num futuro próximo, decidisse abrir o baú onde estão

guardados todos aqueles filmes que deixei de assistir, um digno entulho de básicos desconhecidos, clássicos renegados, vídeos recusados pela capa ou cartaz; das mais escabrosas traduções livres às coletâneas de atores cretinos, perpassando plots regados a desinteresse, stills condutores de preguiça ou mesmo os dispensados pelo meu mau humor num dia alagado, notaria que o título é o critério impulsivo, olho-no-olho, mais influente no tocante ao abandono. Não é de se impressionar que, na hora de nomear um filho, certos pais recorram a dicionários específicos, outros homenageiem celebridades, figuras históricas, personagens, alguns visitam cartomantes, apostam no básico joão-pedro-antônio, os descontraídos decidem no par-ou-ímpar, na porrinha, mas sempre é possível que o


IV Dimensões da política

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resultado, assim como nos filmes, revelem uma falta de tato, uma disfunção sonora, uma pretensão – ou humildade – que simplesmente não funciona. Na melhor ingenuidade pode ser apenas o sinal de um bad hair day do diretor(a) / produtor(a) / roteirista. Na melhor ingenuidade.

Se dentre as centenas de variáveis possíveis, escolhes-

se um único título péssimo para representar todos os outros, escolheria sem dúvida Poesia (Coréia do Sul, 2010), de Lee Chang-Dong, do coreano Lee Chang-Dong. Claro que antes de saborear o prato principal, passei pela leitura de um aperitivo que só fez piorar tudo: um bom cristão – ou seu chefe – não satisfeito com a infâmia do título do filme enterrou o pé na jaca no título da crítica: “mais que um filme, poesia!”. Controlando as mãos para não me enforcar com as minhas tripas, vendo a minha vontade de assistir diminuindo como uma barrinha de jogo meio Scott Pilgrim, não consegui passar ileso pelo abuso com o leitor vibrante, especialmente pela defesa guiada através dos abismais clichês do ‘sofisticado de novela’ no que se convencionou chamar de filme de arte midcult ou filmes de arte para velhas senhoras. Há, lógico, quem prefira nomear esse repositório falsificado de regras, esse fingimento de complexidade que tanto atrai jovens universitários com


Filmes de arte para velhas senhoras de muito bom gosto

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o simpático e direto filme cabeça para gente burra. Portanto, antes de tudo, a escritura deste texto é uma postura política.

Antes de assistir ao filme, quando pensava em Poesia

(sic), a tempestade de imagens predispostas se resumia a um mutirão de senhoras de ‘muito bom gosto’ indo ao Cinema da Fundação: abandonando suas salas com objetos kitsch sobrepostos, entrando em seus carros importados de um feirão de usados, parando no caminho para comprar um quadro de paisagem no Bompreço, apertando as gordurinhas nas roupas de marcas nem tão famosas, batendo aquele papo bem inteligente na espera do cappuccino frappe. É tanto ‘bom gosto’ de bijuteria que o enjôo parece inevitável. De qualquer forma, como estou aprendendo a lidar com – às vezes respeitar, mais que lidar – meus preconceitos, como ando abrindo o tal baú dos filmes que deixei de assistir, alguns protagonizando belas surpresas, outros trazendo a culpa por não ter escondido mais fundo – e, claro, como precisava escrever esse texto – resolvi dar uma chance e assistir P-o-e-s-i-a. “Vai ver é apenas um mau título num bom filme”, pensei. Não era.

A obra de Lee Chang-Dong serviu bem ao propósito

inicial, pois carrega a estrutura básica dos filmes de arte aqui referidos, chega a ser pedagógico para quem quiser impres-


IV Dimensões da política

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sionar uma formiga com seu gosto de adoçante light. Tudo começa pelo velho clichê da distância geracional, da incomunicabilidade dentro da casa, das conversas artificiais no caféda-manhã, do neto que dorme escutando música alta enquanto a avó não sabe mexer no computador. Aliás, esses filmes de arte, como bons reinos da emulação, disfarçam estereótipos e adoram um drama familiar, uma separação complicada, um filho que morre, um aborto no leste europeu, um choro embaixo do chuveiro, uma mãe prostituta, uma jovem em adaptação num ambiente hostil, acontecimentos fortes besuntados naquele clima de obra-prima “profundamente humana que levou espectadores de todo mundo às lágrimas”. E se vier com o carimbo de que venceu alguma coisa em Cannes, aí é batata. Tem que chorar, gostar, fazer selfie e contar para as amigas.

No básico do básico, o filme acompanha uma velhinha

simpática, na fase inicial do Mal de Alzheimer (filmes cabeça adoram doenças terminais, degenerativas, câncer e derivados, quando você pisca os olhos aparece aquele personagem que está morrendo), que é alertada sobre a possibilidade de seu neto estar envolvido em delitos sexuais que desencadearam o suicídio de uma jovem. A desgraça necessariamente vem acompanhada de uma trajetória da superação bem diferente dos ‘malditos’


Filmes de arte para velhas senhoras de muito bom gosto

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filmes norte-americanos, como se tivesse um letreiro piscando ‘sou mais sensível, sou mais sensível’ em cores neon e sotaque francês. No meio do caminho, a protagonista se inscreve numa oficina literária para aprender a escrever uma poesia, numa dessas oficinas básicas caça-níquel ministradas por qualquer pessoa que precise pagar suas contas.

Para começo de história, todo esse drama de escrever

poesia é um tanto anacrônico, é mitificar a feitura da arte aos tempos pré-modernos, ‘o mito do poema inalcançável para os simples mortais’, quando arte e fé andavam indissociáveis, ambas cultuando basicamente o que não se podia tocar, às vezes sequer olhar, nunca produzir. Esse patamar do divino, da genialidade, relampeja de tal forma que o roteiro, desprezando o materialismo histórico, caminha fundamentalmente como um manual ridículo de como ser mais sensível, de como captar a inspiração, de como se tornar poeta diante de uma arte em extinção. Soa como uma solidariedade bizarra, tal qual propagandas do polishop: “mesmo você, dona-de-casa, sofrida, fudida, burra pode ser uma artista na sua própria casa”.

Para se ter uma idéia, na cena em que a velhinha con-

versa com a poetisa logo após um sarau onde um dos poemas era justamente sobre o ofício de ‘escrever poesia’ (argh!), todos


IV Dimensões da política

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naquele clima de “pessoas que amam poesia”, há um resgate pomposo da noção de superioridade perceptiva do poeta, resumindo a criação como um produto obrigatoriamente da ordem do sentimento. “Vem subindo pelos pés até chegar às mãos e rasgar o papel” como alguém já cantou por aí. É bom lembrar que nem sempre esse tal sentimento metafísico é o mais honesto, às vezes, a poética pode vir de trabalho duro, experiência, suor e esforço, movimento até esboçado através do realismo da personagem principal. Precisamos em caráter de urgência de mais modus operandi de João Cabral de Melo Neto.

Dentro desse manual de sensibilidade, dessa domestica-

ção de poética fantasiada de espontaneidade, vale lembrar que a avó, muito boazinha e fofinha, aquele tipo de pessoa bem-do -bem, cuida de um velhinho moribundo pós-AVC, nega uma punheta num dia em que ele secretamente toma um Viagra e claro, quando precisa de dinheiro, volta lá e faz o serviço completo. O problema não é a previsibilidade, filmes previsíveis podem ser condutores de suas próprias intensidades, o problema é que uma das características principais desses ‘filmes de arte’ é a vontade de instaurar uma espécie de ‘existência poética do indivíduo’, no ritmo de fazer do seu dia, um punhado de versos, de encontrar saídas inusitadas e poéticas revertendo a crueldade da vida.


Filmes de arte para velhas senhoras de muito bom gosto

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Você lembra logo dos seus amigos / conhecidos que se

acham muito poetas e mandam e-mails, recados, SMS como se fossem Fernando Pessoa, obcecados por uma vontade de poesia que transforma nulidades do dia-a-dia em operetas da cafonice. “~Há braços~, sicrano de tal” são como as gotas de chuva – lágrimas? – marcando o papel. É nesse sentido da artificialidade que as senhoras saem do cinema comentando ‘a bela lição de vida que aprenderam’, falando como o filme é ‘bonito’ – filmes de arte midcult são sempre bonitos – como vai ajudar a lidar com os seus sofrimentos de classe média. O próprio diretor numa conferência referenda completamente essa reação: “Poesia não é apenas como um buquê de flores que é bonito em si mesmo. É a vida. Não importa a feiúra do mundo, há sempre algo lindo por dentro. É isso que quis mostrar”.

O forçado conflito moral do filme se afasta de qualquer

originalidade estética, chega ser ingênuo, só nos faz lembrar que é conflito à medida que combate a posição do espectador mais conservador – todos parecem sentados ao centro, um pouquinho mais a direita, fingindo esquerda. A alienação e caretice dos olhos sempre vão produzir personagens mais ambíguos do que são, heróis mais enigmáticos do que são, filmes-de-arte maravilhosos e sublimes para velhas senhoras de muito bom


IV Dimensões da política

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gosto mais do que são. Repito: Poesia é o reino da emulação. Nos últimos cinco minutos, surge um apanhado de imagens dos cenários percorridos ao longo da película; cena acompanhada de uma voz em off com a maior reflexão de todos os tempos da última semana (filmes de arte adoram essas retrospectivas de si mesmos antes de encerrar!), até chegar ao plano final que se mostra bastante similar ao inicial. Poesia resgata o rio de Heráclito onde é impossível se banhar duas vezes, porque na segunda vez, nem nós, nem o rio somos os mesmos. Trata-se da marca de ciclo completo, o fim do embuste, a versão compacta de tudo que desenvolvi aqui. O pior é que a poesia escrita pela pobre velhinha não é de todo mal. Como diriam todas as nossas tias reunidas em coro: ‘é até de muito bom gosto’. (maio, 2011)


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V Universos sensĂ­veis


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Metamorfoses

N

o decorrer dos últimos meses, tenho refletido bastante sobre

a influência de obras sobre obras. Não de maneira determinista como em quase todas as críticas de cinema esse pensamento é posto em discussão, mas numa perspectiva onde tendências estéticas, diretores ou mesmo filmes avulsos têm seus princípios redimensionados, a partir da inclusão de especificidades de diferentes contextos. Não são traçadas linhas formais de seqüências a seqüências, de enquadramentos a enquadramentos ou de utilização de luz a utilização de luz. Nada disso. Também não questiono as possíveis paródias ou homenagens diretas. De fato, elas existem, se multiplicam e se vislumbram, mas na situação que pretendo aqui tratar, tudo se dá num caráter mais fluido e menos prático – esquecendo e desrespeitando qualquer linearidade. É preciso perceber que nem sempre as influências


V Universos sensíveis

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se mostram completamente conscientes por quem as utiliza e que nunca permanecem as mesmas depois de utilizadas: entre as supostas linhas formais que se apontam existe um conjunto de desvios que precisam ser lembrados.

Proponho, então, uma tênue, mas pontual distinção de

percurso: não se trata de encontrar no trabalho do artista póstumo o que permaneceu como ensinamento ou determinação do anterior, mas perceber como o engatinhar e os primeiros passos, dados pelo anterior, foram estritamente necessários para que o póstumo pudesse desenvolver seu próprio jeito de andar e iniciasse seu percurso já de pé. As preocupações se tornam outras sucessivamente; sofrem as metamorfoses precisas para que as obras não caiam na estagnação ou se percam na repetição que, diariamente, preenche todas as nossas telas e que me entorpece de um imenso tédio. O cinema não passou incólume por Griffith, por Eisenstein ou mesmo por Godard. Também não se viu livre da repercussão do advento do som, da inserção da cor ou da diminuição no tamanho das câmeras. O cinema nunca ignorou os projetos estéticos por mais diversos e estranhos que fossem, nem fechou os olhos para as iminentes revoluções culturais, sociais, sexuais e tecnológicas. O cinema presenciou e resistiu ao nascimento da televisão; se


Metamorfoses

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apropriou das novas mídias e, com uma intimidade desconcertante, devorou e se deixou devorar pela cultura Pop. Todas as artes transpõem seus dilemas através desse tipo de embate. Às vezes sutil, mas embate.

De alguma maneira, é como pontua Pierre Bourdieu

ao escrever que “mesmo que não se refiram uns aos outros, os criadores contemporâneos estão objetivamente situados uns em relação aos outros”. A presença de cada um se afirma durante o processo criativo seguinte (retificando, refutando, transformando, dialogando, etc), o que prova, ainda na linha de raciocínio do sociólogo francês que “nenhuma obra existe por si mesma, isto é, fora das relações de interdependência que a vincula a outras obras”. Esboça-se um resultado híbrido, possivelmente inspirado e distinto da corrente teórica original. É como se firmasse uma subliminar consolidação do intertexto artístico (e transartístico) – regido, disforme e expansível à maneira do repertório de cada um. Talvez por isso, tenho refletido ainda mais, na possibilidade das influências de obras sobre obras provirem não de um ou dois, mas de diversos estilos, surgidos em realidades até contrárias, sob aspectos também contrários. Além de mesclar princípios e indicações, aplicam-nos ao seu próprio meio, transfigurando-os através do tempo e os desapropriando


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de si mesmos. Tudo na busca por uma instância estética, poética e técnica particular, diferente de todas anteriores que, em algum momento, serviram ao processo de criação. Pensando assim, não poderia ter assistido Limite (Brasil, 1931), de Mário Peixoto, num momento mais adequado.

Ainda que não possamos estabelecer uma genealogia

cinematográfica (e fazê-lo seria uma grande bobagem ou um grande desafio), não é difícil notar que esse filme funciona como um baú brasileiro, onde estão depositadas algumas proposições, invenções ou pós-proposições de todas as vanguardas cinematográficas europeias surgidas até então: para dentro e além do Expressionismo Alemão, da Avant Garde Francesa e do Formalismo Russo. O que não acontece por acaso, afinal Mário Peixoto participou de algumas sessões do primeiro cineclube nacional, o Chaplin Club e colaborou nas discussões que fundamentaram as nove edições do jornal cinematográfico O Fan (1928-1930), além de ter estudado e morado na Europa, tendo um contato relativamente próximo com as tendências modernistas. Uma de suas viagens ao continente foi destinada apenas ao ato de assistir filmes. Há uma influência impossível de negar ou medir. Por ora, digamos que Limite é apenas uma forma alternativa de contar a história do cinema até


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1931. Não como um documentário preocupado com a didática, trata-se de uma ficção experimental, mas como um projeto estético que revela uma dezena de entrecruzamentos possíveis entre propostas vanguardistas tidas, singelamente, como paralelas.

Esse diálogo intertextual, entretanto, só pode ser de-

senvolvido a partir do conceito de possível relação, não de determinação, não na forma de linhas incontornáveis e pressupõe um compartilhamento mínimo de referências entre o crítico (ou propositor) e o espectador (ou dissidente), para não se tornar um debate nulo. É um risco – afinal esse mesmo compartilhamento responsável pela discussão, pode resultar na formação de um grupo fadado ao consenso. É uma faca de dois gumes. Podem acusar Mário Peixoto, como Glauber Rocha o fez diversas vezes, de construir uma obra burguesa, alienada, de um esteticismo vazio. Limite está apenas distante desse conceito e conseqüentemente dos conceitos de regional, de local e de identidade ao qual estamos repetidamente vinculados. Nem sempre por opção. O distanciamento do que seria a arte estritamente nacional, fundamentada por Glauber e que encontra seu patrono na figura de Humberto Mauro, não torna Limite menos brasileiro, pelo contrário, o traduz mais contemporâneo. Para além de todas as alegorias limítrofes


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recorrentes no próprio filme: para além das bordas do barco, das cercas de arame, das grades do presídio e do fluxo contínuo entre o presente e o passado. Para além das imagensconceito maiores: para além da face feminina enlaçada pelas mãos algemadas e para além dos olhos que se alternam com a vastidão do mar. Limite está diretamente e a todo o momento ligado com o para além.

Mário Peixoto conseguiu estabelecer uma obra aberta

e ousada: as marcas do tempo impressas na película consolidam um experimentalismo já empregado originalmente e desmistificam o estatuto do filme como uma produção imutável ao longo dos anos. Institui-se uma reflexão que se prolonga; um processo que se prolonga. Jamais uma sinopse poderia estragar o prazer da narrativa (ou da não-narrativa): fica uma sensação de que cada espectador é responsável pelo significado da história, que as particularidades de cada olhar é o que define todas as sugestões presentes. O cinema mudo ao não se utilizar de sons ou diálogos – ou utilizá-los de forma limitada através de tarjas – propõe uma forma de entendimento diferente ao espectador contemporâneo, acostumado às explicações redundantes ao longo do roteiro. Torna-se aqui ainda mais consistente a premissa de “nunca podermos sepa-


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rar com nitidez o que vemos do que sabemos”. O caráter da obra permanece suspenso entre o pensamento do artista e o do espectador, sob a mediação de repertório de ambos e as experiências do último. A plateia deixa de ser passiva para se tornar uma espécie de co-autora, preenchendo detalhes ocultos com sua própria imaginação e, assim, interferindo nas concepções originais e disseminando diferentes sentidos num percurso extremamente pessoal.

É notável como Mário Peixoto se utiliza da presença

excessiva de cada corte (e de longos planos sem corte algum), de movimentos de câmera raros e dos mais diferentes recursos estéticos – como sombras, enquadramentos cortados, ângulos inusitados de visão – criando um grande entrelaçado de brincadeiras formais. Chega ser impressionante esse virtuosismo técnico. Entretanto, apesar de todas essas sugestões serem lançadas na tela pelo cineasta, a palavra última de significação é do espectador. Talvez esse seja o ponto mais interessante do filme: a capacidade de suspensão cognitiva que ele causa. O que naturalmente o aproxima de obras abertas contemporâneas, representadas principalmente pela videoarte e pelo cinema experimental e que também o aproxima de produções de seu próprio tempo – seja de Vertov, de Murnau


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ou Buñuel. O mote de Limite são três náufragos dentro de um pequeno barco, perdidos no mar e em suas recordações. Todo resto é responsabilidade de cada um. As metamorfoses continuam. (janeiro, 2008)


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O tédio como experiência

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om os olhos certamente encantados pelo tédio como um

problema filosófico, Lisandro Alonso, em parceria com Catriel Vildosola, sacou sua câmera em direção ao seu primeiro filme, Dos en la Vereda (Argentina, 1995), de Lisandro Alonso, rascunhando um curta de quatro minutos que, numa única tomada, mostra dois amigos sentados embaixo de uma marquise numa viela. Eles bebem uma Quilmes, observam o mundo com desinteresse, soltando eventuais e breves frases sobre uma mulher que passa, sobre um convite nunca efetivado ou sobre a necessidade de comprar outra cerveja. Parecem cansados, enfadados, escutam rádio e fumam um cigarro, enquanto os diretores traçam de maneira bastante minimalista um registro da ausência por meio de um tempo que se dilata, um tempo arrastado em que nada acontece até o fim.


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Há, contudo, uma ambiguidade nas imagens, pois o té-

dio não surge apenas como um estado sem estímulo, o direto contrário do afeto no sentido literal de afetar, mas como um comportamento político em potência: vindo do termo latim tædium, do verbo tædere, traduzido como fastio, desgosto, aborrecimento, dissabor, enjôo, repugnância, tudo que enfada, molesta, cansa, incomoda, o conceito pode ser pensado como uma aversão completa diante dos rumos de uma sociedade mecanizada e racional que perdeu as certezas de uma fé, uma negação tão abrupta que produz uma absoluta indiferença diante da realidade. Com a ascensão reivindicada pelo Romantismo, o tédio é uma experiência própria da Modernidade, uma perda de significado, a mortificação simbólica do ser.

A apatia provinda desse estado, para alguns filósofos

um estado que reforça propriedades de nossa humanidade, é marcada também por um desinteresse estético, ainda que Heidegger, dando uma conotação existencialista ao debate, destaque o tédio como o sentimento que revela a totalidade das coisas em sua indiferença. Essa é a premissa, inclusive, que inspira Alonso em boa parte de seu cinema. Há uma busca pelo momento menor entre os momentos que deveriam ser maiores e dignos de lembranças, o tédio é o tempo que não


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deve ser lembrado depois que estamos curados, é um tempo tentador, onde todos os movimentos forçados nos levam à falta de ação. Trata-se de um estado que funciona como resposta, um instinto de negatividade intenso por entender as arestas vacilantes de um sistema opressor, desprezando-as em absoluto, podendo chegar ao limite do suicídio.

O tédio é repetição, são os jogos, os cigarros e as peque-

nas distrações, não necessariamente uma ausência de sentir, mas a impossibilidade de se emocionar como os dados de um mundo deveras cartografado e subjugado. A própria câmera de Alonso parece sem grande interesse pelos personagens embaixo da marquise, as lentes flagram os dois rapazes apenas por acaso, observando-os por um breve tempo até desistir, seguir adiante. A amizade em cena não está distante do desinteresse, um parece totalmente previsível para o outro, como se ambos já soubessem decoradas todas as histórias – elas não serão mais contadas – de modo que resvalam um contato ínfimo e íntimo sem necessariamente partilharem dele. (novembro, 2012)


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Adeus, civilização

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e tomarmos como referência La Liberdad, o filme anterior

de Lisandro Alonso e por enquanto seu mais intenso trabalho cinematográfico, o início de Los Muertos (Argentina, 2004) lembra um pouco o plano em que a câmera abandona o lenhador, personagem que acompanhamos fielmente, para seguir sozinha, um tanto suspensa, desvendando texturas de uma mata fechada até o surgimento de uma caminhonete ao fundo. A natureza apaziguada pelo cineasta sofre, enfim, a intervenção humana. Aqui, mais uma vez, a câmera, como sob efeito de um wingardium leviosa, adentra o espaço essencialmente verde, isolado, brincando vez por outra com o foco numa lição imersiva entre lentes, galhos e folhas, até deixar transparecer alguns corpos mortos, possivelmente de indígenas assassinados. A curiosidade vem carregada da impossibi-


Adeus, civilização

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lidade de controle e do receio com o fora de campo, com a limitação técnica do enquadramento de uma câmera, incapaz de captar sem recortar.

Surge a dúvida diante do enigma: talvez seja uma câ-

mera subjetiva; não só isso, talvez estejamos vendo a cena do crime pelos olhos do algoz ou de um dos algozes até que vislumbramos um corpo enrijecido passando. A natureza e a espectatorialidade sofrem mais uma vez a intervenção humana: o algoz se foi, a câmera registra, então, os passos de uma última vítima, o foco insinua um olhar de despedida do ambiente bucólico ou não, talvez não seja isso, talvez Alonso esteja apenas nos obrigando a testemunhar o acontecimento responsável pelo tempo passado pelo protagonista, o belo Argentino Vargas, na prisão, dado revelado depois de um longo fade e de uma interminável sequência de afazeres domésticos prisionais. Acompanhamos sua saída, quando ele deixa uma situação de reclusão forçada para enfrentar uma reclusão induzida no meio de uma floresta tropical, lugar que morava anteriormente, lugar que precisa voltar, acostumar-se e com o qual vai restabelecendo gradualmente um estado de integração.

A compra de um presente para a filha, ainda que não

saiba a idade que ela deve estar; o encontro com uma prosti-


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tuta e o sexo cru, sem qualquer articulação de sensualidade e erotismo; os breves rituais de despedida da civilização, um cigarro industrializado, uma conversa antes do barco ou toda sequência de limpeza do rosto embrutecido (cortar o cabelo, raspar a barba, trocar a roupa). Aliás, há, não sei se de maneira intencional, uma diferença diante dos outros filmes pela intrigante beleza do protagonista: mesmo estando um longo tempo encarcerado, Argentino Vargas possui um corpo bronzeado, numa cor que parece a conjunção de várias outras cores; seu cabelo grisalho resplandece, cortado ou não; ele mantém uma efígie portentosa, é barrigudo, mas exibe músculos rijos; possui uma face firme, de expressões duras, rigorosas; parece talhado por mãos indígenas abarcando traços de várias culturas e, claro, ostenta um comportamento sóbrio, revelando-se supra-independente da sociedade, capaz de qualquer ato para sobreviver absolutamente sozinho.

Na busca de Vargas para restaurar um passado inter-

rompido, acompanhado do encontro com uma familiar deixada de lado, numa adaptação meio Coração das Trevas, menos Apocalipse Now, Alonso vai reforçando seu projeto de cinema do personagem – pós-dramático, que seja – atingindo outro patamar não necessariamente por intervenção do cineasta, mas pela


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força expressiva – mesmo da não-expressão – do ator. Sua trajetória, de fato, marca uma transformação do sensível, o campo sonoro é inteiramente remixado, o rio traz um silêncio perdido e avassalador, as árvores servem de guia com os galhos que se batem, os insetos e os seus sons se multiplicam, de modo que quanto mais entra na floresta, mais a câmera se aproxima de La Liberdad, ou seja, assume-se como uma testemunha do mundo ordinário e da ausência enquanto matéria cinematográfica. O verde, novamente, preenche toda a tela.

Durante o período em que Vargas ainda está na pri-

são, um dos personagens secundários que aparecem e somem comumente nos filmes do argentino, ao produzir uma cadeira manualmente, comenta que “o resultado do trabalho fica melhor com o tempo”. Alonso parece transpor essa lógica dos artesãos, que passam a vida produzindo objetos similares, para seus planos cada vez mais longos, para seu próprio projeto de cinema, como se mantivesse a crença de que é necessário esperar para conseguir aprimorar seu estilo hiperminimalista. A espera também está presente na alimentação sem intermediários e no olhar sobre gerações que lança no final de Los Muertos, pois diferentemente dos ‘civilizados’, os anos podem correr, as décadas podem passar, mas a infância


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na mata continuará sem grandes mudanças. Avô, filha e neto comungam do mesmo tempo, de modo que os brinquedos da última cena surgem como a imagem de uma utopia pessoal.

No entanto, se globalmente formos pegar os filmes do ci-

neasta, sua trajetória só pode ser pensada como uma história da derrocada, todos os elementos de um cinema artesanal, repetidos a exaustão, vão pouco a pouco perdendo ênfase, tornando-se fuligem, arruinando um ímpeto estético. Como disse um amigo certa vez, exagerando, claro, é possível escrever uma mesma crítica e usá-la para todos os filmes de Alonso. Seja como for, a decadência pode já ser percebida em Los Muertos, pois na tentativa de fazer um filme irmão do anterior, com um apuro fotográfico mais evidente, destoa da condição primitiva da narrativa com uma sofisticação rendida. Se a morte do tatu no mais antigo aparece como uma cena chave para a simbiose entre homem e natureza, algo almejado com os favos de mel no segundo, termina abandonado com a morte da cabra pelas mãos de Vargas, com a retirada de suas vísceras diante da câmera, cadenciando uma vontade de concessão narrativa, algo que explode nas películas seguintes. Fazer cadeiras a mão pode ser novo, pode ser bonito, pode ser resistência, mas também pode ser apenas conformismo. Alonso deveria saber disso. (novembro, 2012)


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Entre o enigma e a explicação

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em todos estavam numa sala de cinema em 1979, quando

Alien – O Oitavo Passageiro, dirigido pelo ainda iniciante e sexta opção de direção Ridley Scott, entrou em cartaz, propondo um singular cruzamento entre a ficção científica e o horror. O filme agregava de forma simbiótica características típicas de um gênero (tais como o universo, as naves, as jornadas, os dilemas da vida artificial ou extraterrestre) e de outro (a claustrofobia, a fraqueza das personagens, a perseguição, as criaturas e a escatologia), para criar uma imponente crônica sobre o medo, especificamente sobre o medo do desconhecido, quando precisamos dividir um mesmo espaço com ele. Também impulsionada pelas sequências (lançadas em 1986, 1992 e 1997), a saga alargou o seu imaginário (rainha alien, colonização, Ripley grávida, armas biológicas, clones) e passou a ser apreciada por


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diferentes gerações, cada qual com seu vínculo afetivo próprio, em especial pensando nas pessoas que aprenderam a consumir o audiovisual por meio das – hoje quase extintas – locadoras de vídeo. Nesse contexto, Prometheus (EUA, 2012) nasceu sendo vendido como a volta de Scott ao universo sci-fi depois de trinta anos, mais precisamente desde o também clássico Blade Runner, responsável pelos contornos mais claros do interesse do diretor por diferentes sensibilidades de existência.

A produção é toda construída como uma caixa de re-

ferências diretas aos filmes dirigidos pelo próprio Scott, sem deixar de lado clássicos como 2001 – Uma Odisséia no Espaço: seja na ótima primeira metade sustentada pela atuação solitária de Michael Fassbender como o andróide David, uma mistura humanóide de HAL 9000 com a própria tripulação do filme de Kubrick; seja quando reproduz inteiramente o cenário do astronauta envelhecido na cama por meio de um milionário, cujo impulso em desvendar os limites da criação é movido pela vontade de alcançar o segredo da eternidade. Só faltou subir o som com Zaratustra. Também apropria-se, deslocando como uma falsa epifania sobre a fé, a metáfora do titã Prometeu, castigado por roubar o fogo dos céus na tentativa de tornar igualitário o patamar existencial entre deuses e homens. Acontece que o fil-


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me deixa de lado o olhar enxuto de seus predecessores de saga (presente na primeira metade), para reunir todos os clássicos e se lançar em debates filosóficos supra-pretensiosos. Se em Alien – O Oitavo Passageiro todos os mesmos temas estão presentes sem que seja necessário versar e tergiversar sobre eles, Prometheus verbaliza cada imagem e se rende ao clássico temor de explicar tudo direitinho, dar todas as respostas bem desenhadas, para não correr o risco do espectador não entender. Os diálogos vão se sucedendo como se o diretor estivesse pegando a nossa mão e nos conduzindo ao conhecimento, gerando uma manta não gosmenta de redundância ao redor da obra.

Mesmo encurralado entre comentários oficiais afir-

mando que a obra não tem relação direta com Alien e a inevitável associação que qualquer espectador minimamente informado pode fazer pela quantidade insolúvel de referências, o filme funciona como uma espécie de prequel (pré-sequência) da obra fundadora da franquia. A ressalva se inicia, todavia, já no design interno da nave, um bocadinho mais clean que as naves anteriores, afinal uma das marcas mais sólidas da saga é o tipo de futurismo que desenvolve, adentrando um decadentismo profundo, de modo que as mesmas naves que cruzam o universo estão inundadas de corredores que


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lembram esgotos fétidos. A história acompanha uma missão espacial, patrocinada pela velha empresa Weyland, responsável por todas as missões dos outros filmes, a bordo da nave Prometheus, procurando confirmar ou negar que a existência humana tenha sido uma criação de seres do espaço (chamados de “engenheiros”). Para reforçar o intento, um casal de cientistas descobriu registros de civilizações antigas, de épocas e lugares diferentes, apontando para um mesmo estranho desenho no céu. Trata-se, na leitura deles, não de um mapa, mas de um convite e assim partem em busca da origem da humanidade (o que lembra a confusão entre “pedido de socorro” e “alerta: mantenha distância” do primeiro filme). A premissa, decerto, encanta qualquer apreciador do gênero, fazendo alusão ao clássico livro Eram os Deuses Astronautas?, do suíço Erich von Daniken, para voltar às perguntas transcendentais da humanidade e, no caso de Prometheus, respondê-las desesperadamente. Cinco vezes se for necessário.

Portanto, a volta de Ridley Scott não merece ser muito

festejada, aliás, a adoração cega dos fanáticos por qualquer fagulha que faça menção aos clássicos imprime uma aura de imaturidade, pois o filme consegue reunir falhas, na metade final, de diferentes graus em praticamente todos os segmentos


Entre o enigma e a explicação

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que constituem o cinema. A começar pela escolha da tripulação, porque exceto pelo já comentado Michael Fassbender e acrescentaria Charlize Theron como a empresária Meredith Vickers, todos os atores restantes simplesmente não cabem nos personagens que interpretam, gerando uma série de cenas cujo impacto dramático / heróico só desperta um humor involuntário. Parecem contratados um a um apenas para morrerem e no meio disso explicarem tudo que estamos vendo. Temos a sorte de na metade inicial estarem todos dormindo. Um segundo problema é a fragilidade do roteiro de Damon Lindelof e Jon Spaihts, um roteiro de fãs com o poder da explicação nas mãos, seja pela trama como um todo, seja por momentos particulares, deixando a impressão que o objetivo é mais trabalhar em cima do fetiche e do poder de trabalhar em cima do fetiche – cenas que remetem a outras cenas, cenas que “explicam” lacunas deixadas no primeiro Alien – que produzir uma obra minimamente original. Prometheus, mesmo com todo invólucro sofisticado, com a apavorante cena do aborto e com o design de criaturas apurado, é o típico exemplo de encenação cuja potência reside em transformar enigmas poderosos – e que justificavam em muito o sucesso do filme de 1979 – em diálogos volumosos, vexaminosos e


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cenas descartáveis de ação. Ah, claro, quando os enigmas são deixados em aberto é apenas porque os produtores já estão pensando em respondê-los numa continuação. (junho, 2012)


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Sequências e suas regras

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ão são poucos os jovens cinéfilos, hoje admiradores de

Sokurov, Béla Tarr, Jia Zhang-Ke, Suleiman, Pedro Costa, cuja formação cinematográfica é marcada a fundo pela Trilogia Pânico, assinalando a premissa de que o cinema comercial pode impulsionar uma conjunção entre seriedade e diletantismo sem traçar necessariamente uma brusca dicotomia. Os filmes escritos por Kevin Williamson e dirigidos por Wes Craven fundem humor, terror, sátira, sarcasmo e sustos de maneira astuta, fazendo com que, durante seus respectivos lançamentos, atuassem principalmente no despertar do olhar crítico de um público pré-adolescente e adolescente, numa época em que todos usavam camisas três números acima. Tudo por conta das conexões estabelecidas com outros filmes, atinando para a capacidade da ‘cultura pop’ apontar, ironizar e homenagear a si


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mesma – característica marcante de inúmeros seriados norte-americanos. Os diálogos das três produções carregam uma sutil competência só apreendida pelo espectador que possua uma mínima intimidade com o universo audiovisual em questão, se divirta com a imprensa de aspecto carrasco e sensacionalista caricaturada ao extremo por Gale Weathers ou conheça ao menos um dos títulos que deram a Jamie Lee Curtis, no início da década de 1980, o emblema de Scream Queen. ‘Entender a piada’ sempre foi um dos fracos da vã glória adolescente de ganhar. Assim, o princípio dos assassinatos esclarece a moral da história: se você não sabe nada sobre filmes de terror, você morre. Na Trilogia Pânico é necessário ser cinéfilo para se salvar.

Alguns dos sobreviventes assistiram ao primeiro Pânico

(EUA, 1996) poucos meses antes da estreia da seqüência; estavam no final daqueles benditos anos de busca por todos os filmes de terror das prateleiras, aproveitando um resquício de medo infantil pronto a ser superado. Trata-se do mesmo momento em que alugavam vários VHS de uma vez, juntavam os amigos da rua numa casa sem adultos para se entupirem de refrigerante e pipoca em meio a uma competição de berros. Nesse contexto, Pânico era uma sensação: Wes Craven não só alcançou o mainstream, como conseguiu fabular uma epidemia de cópias


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e estimular todos a assistirem uma a uma, saber o que aconteceu no verão passado, no retrasado, decorar todas as lendas urbanas, passar pela prova final, mas esperar verdadeiramente a seqüência do original. Eis que meses depois estreou Pânico 2 (EUA, 1997). Parte dos mesmos jovens foi ao cinema, burlou a censura da idade (14 anos), viveu a tensão do filme mesclada a de ser descoberto, encontrou dezenas de fanáticos com máscaras do ghost face na plateia. Se considerarmos que nas trajetórias artísticas, a metalinguagem é concebida como um momento de maturidade tanto para quem produz como para quem observa, talvez os que lá estavam poderiam admitir não terem vivido semelhante experiência antes da citada sessão. A sala que assistia Pânico 2 se assemelhava a da cena inicial do filme, em que um casal vai assistir A Punhalada (Stab), filme-dentro-do-filme baseado nos eventos ocorridos no primeiro Pânico. A euforia confluindo gritos e risadas, um autêntico gozo coletivo, esboçava uma ligação umbilical: a atriz de Stab fica nua, a plateia dentro do filme urra, a sala de cinema acompanha. A diferença é que aqui fora ninguém morreu antes dos créditos finais. Em Pânico 2, as piadas continuam afiadas, o casal caminha para a sala de cinema, ele se vangloria por ter ganho os ingressos, ela diz que não gosta de filmes de terror, argumenta


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que do outro lado está em cartaz uma aventura com a Sandra Bullock. Ele prontamente responde: “Nobody wanna pay U$ 7,50 to see some Sandra Bullock shit”. Uma das diferenças básicas da sequência é a ampla aposta no rol de piadas ou referências não apenas a outros filmes de todas as épocas, até Nosferatu entra no circuito ou brincadeiras com os clichês do gênero (“eu sei o que acontece com os negros nesses filmes”), mas no diálogo imbricado com o próprio Pânico predecessor. Temos a continuidade de piadas: Sidney comenta no primeiro que se sua história virasse um filme, do jeito que ela é azarada provavelmente seria interpretada por Tori Spelling. No segundo, aparece Tori Spelling dando entrevista sobre Stab onde interpreta Sidney. Randy, o nerd viciado em filmes de terror, olha a TV e solta com desprezo: “ah, vou esperar o vídeo”. Sempre temos de respeitar quem consegue fazer piadas sobre si mesmo. Além disso, as cenas de A Punhalada – supostamente dirigidas por Robert Rodriguez – não apenas servem ao contexto do segundo filme, como redimensionam qualquer tentativa de retorno ao original. Pânico não é o mesmo depois de Pânico 2: o modo como se apontam estimula as possibilidades do olhar diante das possibilidades da narrativa. A mídia sensacionalista presente no primeiro, agora se multiplica, se no original surgiam perguntas geniais como


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“Sidney, qual a sensação de ser quase brutalmente assassinada? As pessoas querem saber. Elas precisam saber!”; no segundo, a jornalista-símbolo é sarcasticamente interrogada: “Gale, como você se sente do outro lado da notícia?”. Sidney já não é a virgem indefesa, tem um novo cabelo, sempre que sorri invariavelmente soa um tanto creepy, sem contar que suas vitórias sobre os assassinos sempre são baseadas em doses de terror. E temos que admitir: é muito bom quando ela dá aquela bofetada na cara de Gale Weathers.

Em termos comparativos, o filme pode ser até mais

fraco que o primeiro; de fato não acumula momentos tão inspirados como a morte de Drew Barrymore, porém, até a inferioridade se justifica quase como se fizesse parte do princípio narrativo: numa sala de aula, alunos de cinema travam a velha discussão sobre a recorrência de seqüências serem piores que os originais. Cenas depois, o assassino sem roupa de ghost face comenta que existem os casos de seqüências superiores. Cita O Império Contra-Ataca. Parece defender o próprio filme. O nerd replica: “trilogias não contam”. As regras são novamente explicadas: 1. nas seqüências, o número de cadáveres é sempre maior. 2. As mortes são mais elaboradas e sangrentas. Se no primeiro filme, a existência do celular nos chama a atenção por ser um objeto essencial no desenvolvimento de toda tra-


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ma, no segundo não deixamos de lado o comentário sobre o local em que os assassinos se conheceram: num ‘website’ de psicopatas. 1997 no país inteiro. Uma regra não comentada é como seqüências são bem conhecidas por seus finais: no caso de Pânico 2, quando ambos culpados estão mortos, os mocinhos se perguntam: ‘Ele está morto?’. Respondem: ‘Acho que não, eles nunca morrem’. Perguntam novamente: ‘Ele está morto?’ Respondem ‘Acho que sim’. O assassino se levanta, leva vários tiros e finalmente morre. Cena irmã do final original, só que desta vez, Sidney vira para o segundo, cuja motivação de matar era ‘boa e old fashion’, e comenta que eles sempre terminam voltando. Então dá um tiro na testa, “just in case”. Seja como for, a principal regra das seqüências é que as regras do original podem ser subvertidas, ou seja, em Pânico 2 ser cinéfilo já não é condição sine qua non para se salvar. (abril, 2011)


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Don't fuck with the original!

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nquanto levava um grande amigo para assistir Pânico 4

(EUA,2011), de Wes Craven (eu iria rever), ele comentou que tinha esquecido os óculos e completou com desdém que “nesse tipo de filme pouco importam os óculos, basta estar no clima, levar alguns sustos”. “Não deve nem ter muitos diálogos, só correria, algumas facadas, sangue e berros na plateia”. “O mais importante é não esquecermos de comprar a pipoca”. Eu coloquei logo minha máscara e perguntei muito sério se ele enxergava direito sem o acessório ou não iríamos mais assistir ao filme. Ele respondeu que sim, sentiu o tom da seriedade como um bom amigo e confessou que, na realidade, o grau ocular era mínimo, o astigmatismo deixava apenas a vista cansada. Desconfiado do preconceito comum lançado ao gênero, como se o terror ou o terror que faz rir estivesse em si numa


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categoria menor, e procurando evitar a perda da piada, sondei o seu conhecimento sobre a Trilogia propondo um rápido quiz. Ele passou com 7,5 e senti-me levemente satisfeito com as respostas: lembrava que os filmes brincavam com as regras e clichês do terror enquanto gênero; recontou com detalhes um assassinato de cada uma das seqüências; sabia bem da mistura de slasher film com humor negro, que Dewey mancava e nunca acertava um tiro e que Gale era uma maravilhosa bitch. Bastava e antes do diagnóstico de psicopatia chegar pelo correio, tenho que dizer que Pânico 4 é uma daquelas sátiras que você, você-se-reconhecendo-enquanto-fã-e-até-encarnando-o-ghostface-se-for-preciso, quer que todos os seus amigos, conhecidos, semi-conhecidos, seguidores do twitter, stalkers e stalkeados, amigos não aceitos no facebook, com astigmatismo, miopia ou hipermetropia, simplesmente assistam e amem. Diferentemente da geração wikiquote, você estava lá em 1996.

Depois do enorme receio pelas últimas produções do

cineasta americano Wes Craven, mais por Amaldiçoados (2005) e A Sétima Vítima (2010), menos pelo compacto e honesto Vôo Noturno (também de 2005), impossível negar a sensação de desforra que acompanha Pânico 4: uma desforra do espectador com a última década de crise criativa do diretor, desforra com o


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mercado de terror controlado pelos remakes e com a geração que mitificou a lógica do torture porn em séries inacabáveis. O filme é provavelmente o mais jocoso da franquia, talvez por isso seja tão preciso, de maneira que chega a soar como se estivesse bajulando com suas sacadas o espectador-entendido ou os die-hard fans. Contudo, há por trás das piadas, do ridículo, da brincadeira com o dispositivo, uma forte e sagaz intenção em esboçar um ‘estado das coisas’ do cinema contemporâneo, usando de um gênero preterido como parábola de reflexão da realidade do mercado. Se no final dos anos 1990, as seqüências estavam em alta; a existência de boa parte condicionada pela bilheteria e não por uma razão narrativa, um tempo em que não sabíamos direito se estávamos vendo o próprio filme ou um teaser do que viria a seguir, durante os anos 2000, o forte passou a ser os remakes, as incansáveis repetições que usavam de jovens atores para – dementemente – dar juventude aos clássicos. Uma contradição de conceito, aliás. Diante de novas versões de Halloween, Texas Chainsaw, Dawn of the Dead, The Hills Have Eyes, The Last House on the Left, Amityville Horror, Black Christmas, House of Wax, Prom Night, My Bloody Valentine, Piranha 3D; Pânico 4 surge como uma necessária obra-prima de paracinema, uma dura e divertida resposta à obviedade.


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O filme afirma a posição de Wes Craven como mestre

do gênero ao desenvolver um balanço dos caminhos do sadismo e dos recursos ascendentes: ora os rejeita, ora os reaproveita deslocando o sentido, ora resgata outros esquecidos numa busca quase desesperada de se reinventar. As personagens seguem o mesmo caminho. Sidney lançou seu livro, Saindo da Escuridão, nada mais justo numa sociedade cujas angústias programadas são sanadas pelo consumo de livros de auto-ajuda, medicamentos, terapias, antidepressivos, religiões orientais. Gale abandonou sua profissão para viver na cidade pequena de Woodsboro com Dewey – o marido de cidade pequena –, abandonou seu sensacionalismo pela ficção, só que não tem ideia sobre o que escrever. Num olhar brevemente retrospectivo, o diretor Wes Craven e o roteirista Kevin Williamson parecem brindar sobre si mesmos, derrubar o champanhe inteiro no corpo, perpetuando o auge do encontro entre o criador de A Hora do Pesadelo com o de Dawson’s Creek. O filme não apenas revela uma paisagem cinematográfica, revela-se observador e observado, acompanhamos uma progressão no tempo que nos permite ver o pintor pintando a paisagem anterior e não só isso: vemos o pintor pintando o pintor pintando a paisagem e assim sucessivamente até termos dois espelhos frente-a-frente empilhados. Pânico 4 é


Don’t fuck with the original!

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a típica produção que quanto mais camadas desbrava do terror contemporâneo, mais fundamenta um jogo onde a câmera se aproxima enquanto se afasta, onde todas as relações e visões permeiam a paralaxe, onde a metalinguagem de 1996 vira um ponto de partida da meta-meta-metalinguagem de 2011. Esse propósito é posto a prova e bingo, a teimosia valeu, valeu mesmo, continua funcionando muito bem. Wes Craven é o pós-moderno que faz seu filme à moda antiga.

Há um claro investimento no que a série tem de me-

lhor: um assassino ou assassina ou ambos ou não fantasmagórico envolto de vítimas ou sobreviventes que não perdem a piada, especialmente se ela for sobre a própria franquia. Num tempo em que os bordões aparecem e somem tão rapidamente como se nunca tivessem existido, Pânico 4 vem para nos munir de frases ótimas para quando formos brincar com os nossos colegas de nostálgica e recente cinefilia: “sick is new sane”, “the unexpected is the new clichê”, “one generation’s tragedy is the next one’s joke” e a frase que nasceu diretamente para habitar o panteão dos clássicos: “you forgot the number one rule about remakes: don’t fuck with the original”. O fato de toda nova geração de atores serem saídos de seriados (Heroes, Jericho, The OC, 90210, Gossip Girl, True Blood, Community, Mad Men, Unfabulous), alguns outros se-


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rem resgatados do pastelão Todo Mundo em Pânico não me parece apenas uma coincidência (ou me permita à paranóia da metalinguagem): Craven usa do mesmo princípio de casting que movimenta as releituras para dar um gás ao seu ready-made.

Pânico 4 pode ser vislumbrado como um filme pronto,

um filme na sala de montagem e um filme que poderia ser (boa parte das fotos de divulgação são de cenas que não existem), como se os autores estivessem compartilhando o processo criativo, decidindo a versão-final na frente da plateia: algo que a própria história sugere ao colocar um assassino que transmite ao vivo na internet a morte de suas vítimas. Nada mais justo numa sociedade onde tudo precisa ser visto, não basta saber, é preciso ver, divulgar, jogar no youtube, escavar morbidamente o mais profundo possível e tornar um inferno a vida das vítimas: um indivíduo entrou e matou doze crianças, é preciso ver as imagens do sistema interno de segurança, revisitar as salas de aula, se aproximar das marcas de sangue, escutar as sobreviventes tremilicando na frente das câmeras. Quando o assassino ou assassina ou ambos ou não comenta perto do fim de Pânico 4 que hoje em dia todo mundo se expõe na internet, que todo mundo é desinteressante com suas fotos e frases de efeito, não basta simplesmente aparecer para se tornar famosa, aparecer


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todos aparecem, é preciso sobreviver a alguma coisa muito, muito ruim. Estava enganada se olharmos acontecimentos ainda mais recentes, porque morrer ou sobreviver já não faz mais diferença. Estão todos, afinal, condenados. (abril, 2011)


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Psicanálise segundo Cronenberg

Q

uando um cineasta repagina visualmente a maneira de

apresentar os temas caros da sua carreira, os críticos mais apressados tendem a determinar esse deslocamento como uma guinada estética, apontando às vezes transformações mais aparentes que consistentes. O caso do canadense David Cronenberg parece emblemático e a armadilha do rótulo um tanto engenhosa, pois se ao longo de seus filmes investigou, por distintos ângulos e imensa coerência, a encruzilhada que interliga ciência, corpo, mente e sexualidade, o fez através de dois caminhos de vestes distintas, ultimamente encaixados numa falsa dicotomia. Entre as décadas de 1970 e 1990 deleitou-se na escatologia e se aproximou do cinema trash e de outros gêneros escusos, chegou a ganhar a alcunha de Barão do Sangue e Rei do Horror Venéreo, mas com a virada do século assumiu uma


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limpidez clássica, narrando mais sobriamente sua inquietação com as fronteiras entre a existência humana e as tecnologias da inteligência. Se muitos espectadores passaram a acessar a obra do diretor justamente após essa limpeza imagética, estranhamente revivendo e expelindo uma hierarquia estilística similar ao grande divisor entre alta e baixa cultura, deixaram de compreender o perverso âmago que dota o cinema dele por inteiro, sem antes e depois, sem pré ou pós, como um verdadeiro totem do pensar contemporâneo (a mesma lógica acomete também o pensamento contrário, que postula que Cronenberg bom é Cronenberg sujo, Cronenberg bom é Cronenberg antigo). Em Um Método Perigoso (Reino Unido / Alemanha / Canadá / Suíça, 2011), o cineasta vai direto na fonte conceitual de seu projeto estético ao resgatar a amizade, fascínio e ruptura entre Freud (Viggo Mortensen) e Jung (Michael Fassbender), nos anos iniciais da Psicanálise (1904-1913), posicionando os mestres diante dos filmes realizados ao longo de sua carreira, especialmente no desvendamento dos poços profundos e potências repressivas da mente humana. Seu interesse não se restringe ao trabalho de um deles isoladamente, mas no confronto metodológico de projetos, seja pela vontade do primeiro em firmar um campo científico sólido e legitimado,


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seja pela leve inclinação do segundo em apropriar o misticismo e a espiritualidade como fontes válidas de conhecimento e pesquisa laboratorial.

Se em Senhores do Crime, as tatuagens que cobrem o corpo

do mafioso russo transforma a pele numa paisagem mnemônica, importando a lógica das cicatrizes carcerárias junto ao processo de intervenção técnica da agulha na carne; se em Scanners a luta entre indivíduos com poderes telepáticos resulta na fusão corporal entre dois irmãos, onde um deles se mostra dominante na aparência (corpo) e o outro na consistência (mente); na produção mais recente, o cineasta resgata de maneira ensaística as origens de um discurso, retomando uma eloquente epistemologia sobre as metamorfoses do corpo, passando por dilemas entre instinto, recalque e repressão; as fontes dos estranhos prazeres; a distância entre pesquisador / pesquisado e, novamente, a flexibilidade ética dos meios científicos. Digamos que Cronenberg usa de vestes felpudamente mais literárias e menos sangrentas para meter o dedo visceral nas mesmas feridas.

Jung é um psiquiatra que no início de sua carreira ao

mesmo tempo em que aplica a teoria de Freud, a cura pela fala, precisa lidar com suas próprias pulsões sexuais, misturando-se ao universo sobre o qual se debruça, em particular quando se


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envolve com uma de suas pacientes. Trata-se da futura psicanalista Sabine Spielrein (Keira Knightley), uma jovem russa que chega ao hospital psiquiátrico em meio a uma crise histérica, momento em que o cinema de Cronenberg aparece inteiro implicado no corpo da mulher, através da curvatura anormal de sua coluna, dos deslocamentos frontais da mandíbula, da falta de ar, da mudança na voz e do prazer que ela revela sentir, desde pequena, com as agressões praticadas pelo pai.

A cena inicial é irmã da cena final na aparência: na pri-

meira Sabine berra dentro da carruagem, sendo segurada por dois homens, na segunda, ela também está dentro da diligência, mas controlada, grávida e oficialmente discípula de Freud. Os detalhes indicam como a ciência havia transformado a sua existência, como seu corpo fora domado a partir do momento em que conseguira verbalizar e realizar as suas pulsões sexuais. Aliás, o filme é todo articulado com pequenos movimentos que demonstram como nosso corpo, inconscientemente, deixa transparecer os indícios de nossos desejos e das subsequentes repressões, elemento básico que eleva o ser humano da categoria de animal para a de ser civilizado. O que fica claro, entretanto, é que justamente há um ponto em que o aumento da repressão não significa uma amplitude da civilização, mas


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um retorno violento ao animalesco, de modo que a figura do psiquiatra hedonista Otto Gross irrompe as pulsões de Jung, fazendo com que ele se esquive do esforço imenso para conter seus instintos mais básicos.

Freud, por sua vez, surge como uma figura patriarcal,

centralizadora – até Jung literalmente treme quando pretende discordar dele – um sedutor intelectual preocupado em firmar as bases de sua ciência, para só, então, abrir outras portas no estudo da mente. Freud está acima dos pacientes, todos os seus discípulos são inexpressivos e a relação que mantém com o suíço é marcada por discretas hierarquias: refere a si mesmo na terceira pessoa, lembrando que Jung seria seu sucessor, mas vemos inúmeras cenas em que o suíço se distancia das teorias do austríaco, marcadamente de sua obsessão pela sexualidade como fonte de todos os distúrbios. No entanto, só consegue verbalizar com terceiros, inclusive Sabine, nunca enfrentando diretamente Freud. Há dois pontos que parecem resumir bem a relação ambígua entre eles, tanto no campo dos pesquisadores enquanto pessoa física, como na incompatibilidade de seus projetos epistemológicos.

O primeiro está presente nas sucessivas vezes que Jung

conta seus sonhos, inicia uma análise sobre ele e termina por


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escutar Freud dar a interpretação final, associando alguma imagem com o falo e aproximando qualquer alusão de poder intelectual a ele mesmo. Só que em um determinado momento, quando o austríaco, já ciente da ruptura que os espera, comenta sobre um sonho que teve, Jung pede que ele compartilhe o relato e o pai da Psicanálise, com seu tradicional charuto na boca, enfaticamente nega “para não colocar em questão a sua autoridade”. Freud jamais desce um degrau. O segundo momento parece velado, mas termina por esboçar o conceito de inconsciente coletivo que Jung desenvolveria posteriormente, quando Cronenberg de maneira sutil cria uma série de antagonismos de classe e raça entre os dois psiquiatras, Freud judeu e Jung ariano, atingindo o ápice quando o segundo tem um colapso nervoso a partir de um pesadelo recorrente, como se estivesse prevendo os horrores da Segunda Guerra Mundial. Assusta-me pensar uma pessoa que passa meses tendo os mesmos sonhos apocalípticos.

Voltando ao objeto básico do gesto fundador da Psica-

nálise, não apenas a título de curiosidade, vale lembrar que até o final do século XIX, quando Freud instituiu a fala em substituição da hipnose no tratamento da histeria, essa neurose enquanto patologia vivia presa entre diagnósticos obje-


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tivos médicos e promessas religiosas subjetivas. Inicialmente foi considerada uma crise apenas feminina causada por uma perturbação no útero; na Idade Média passou a ser confundida com possessão do diabo, geralmente tratada com exorcismo por sacerdotes e mesmo com o desenvolvimento da medicina ao longo dos séculos, a falta de provas físicas que comprovassem uma doença orgânica, mantinha a dúvida sobre os ataques não passarem de um teatro perversamente encenado. Apenas por meio do método catártico, ou seja, uma forma da pessoa retomar o recalque que afastou algo da consciência, fez com que as características da histeria ficassem claras, formalizando-se como um sofrimento causado, sobretudo, de reminiscências, isto é, os pacientes sofrem por aquilo que não conseguem / podem lembrar (trauma). Há nessa retomada dos dois clássicos e de suas longas discussões – dizem que no primeiro encontro passaram cerca de treze horas conversando – uma vontade de Cronenberg em encontrar, talvez pela primeira vez, a palavra necessária para verbalizar as angústias recorrentes de carreira, realçando uma vez mais as pulsões de seu proporio cinema. (abril, 2012)


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Os outros

H

á uma breve passagem em Admirável Mundo Novo, de Al-

dous Huxley, em que as personagens dos civilizados Bernard Marx, o angustiado protagonista, e Lenina, sua acompanhante momentânea, decidem visitar uma reserva de selvagens – a reminiscência de uma cultura passada, mantida simplesmente a caráter arqueológico, quase como uma lembrança (ou materialidade hipnopédica) dos motivos pelos quais os homens decidiram pela racionalidade extrema a serviço da civilização. A reserva é um lugar cercado por arames elétricos em que animais e homens convivem, onde estes últimos ainda se comportam como vivíparos, constituindo laços familiares, dedicandose aos cultos, aos mitos e à religião, caçando e sendo caçados, completamente distantes (ou ausentes) da distopia sobre o qual o livro se debruça. Huxley destrincha uma sociedade ultramo-


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derna que conseguiu vencer a infelicidade, não só abdicando da verdade, da arte e controlando minuciosamente a ciência, mas erguendo o fordismo como ideologia dominante e baseando sua hierarquia num método de predestinação social imputada em bebês gerados em laboratórios. Cada um é obrigatoriamente para o que nasce, não existem insatisfeitos nos diversos patamares da estrutura social e, para usar dos termos corretos, os indivíduos não mais nascem de barrigas e sim, decantam de frascos em frascos. Além disso, os amantes são conquistados sem flerte, de maneira estritamente pragmática, e trocados regularmente, determinando o fim das vicissitudes do amor, do ciúme e afins. Caso sejam acometidos por uma paixão violenta são expostos a um tratamento de choque.

Todos prosseguem suas vidas levemente dopados, con-

sumindo incessantemente uma pílula sem ressaca chamada soma: o substituto ideal do álcool e do cristianismo, a alienação saudável e sem culpa. Como frutos deste contexto, Bernard e Lenina decidem visitar a reserva: ele buscando uma resposta por estar angustiado numa sociedade perfeita, ela querendo um entretenimento fugaz através da aproximação com o exótico. Após um sucinto city tour no pueblo, ambos são convocados a permanecerem numa praça onde será realizado um ritual


Os outros

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do qual desconhecem qualquer princípio. Inicialmente Lenina mostra um tremendo interesse, sente-se bem e acolhida com o som dos tambores, fecha os olhos, imagina o Brave New World ao qual pertence, mas vai mudando a expressão a medida que o ritmo acelera, se tornando mais frenético, carregado de um tom sombrio pouco melodioso. Em seguida, aparecem figuras mascaradas e pintadas ao ponto de perderem qualquer semelhança com o corpo humano e o ritual vertiginosamente se distancia do límpido universo da mulher: surgem oferendas religiosas, animais peçonhentos arremessados, um jesus crucificado é erguido, o candomblé reverenciado, os participantes se entregam aos gritos de horror. Por fim, temos a nudez de um jovem rapaz, a dor e devoção que o leva até o sacrifício banhado de sangue em troca da fartura na próxima colheita. Rapidamente, o olhar de ambos forasteiros retorna aos princípios e parâmetros morais de seu mundo plastificado e asséptico, todos os gestos e imagens são traduzidos como ofensas à vitória da civilização. Lenina esconde o rosto com as mãos, soluça, estremece: quase sem ar pelo absoluto não costume do sofrer, sente falta de sua dose diária de soma. Havia esquecido as pílulas na pousada.

Prolonguei-me em todo esse epílogo, só para assumir que

quando assisti ao curta Nego Fugido (Brasil, 2009), de Cláudio


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Marques e Marília Hughes me senti arremessado para dentro desta passagem do livro de Huxley, sem perder de vista os inúmeros amigos e documentaristas que direcionam seus olhares curiosos ao mundo que lhes é estranho, exótico, a tudo que para o Eu se metamorfoseia enquanto Outro. Ora se banham num proto-assistencialismo culpa burguesa, ora procuram reinventar ou referendar os cacoetes do registro de alteridade. Mais do que representação, o filme traz a meta-representação ao retratar a interação de dois jovens brancos de classe média, no povoado de Acupe, no município de Santo Amaro da Purificação no Recôncavo Baiano, com a apresentação do Nego Fugido: manifestação popular existente desde o século XIX, que procura recriar as lutas da resistência negra contra o regime escravocrata. Uma espécie de teatro de rua de forte repasse histórico oral, que recupera a perseguição promovida contra os quilombos, com atoresmoradores representando os negos - chamados de negas - com os rostos pintados de preto, as bocas num tom profundamente vermelho-sangue, usando roupas feitas de folha de bananeira. O espetáculo termina com a prisão do rei, a leitura da carta de alforria e a comemoração pela abolição da escravatura.

Nego Fugido coloca esses dois personagens em contato

com esse mundo do qual não fazem parte, mas nutrem al-


Os outros

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gum interesse sem carregarem muita informação: ele é ator, ela carrega uma câmera nas mãos, o rapaz é impelido a participar, pintar o rosto, se misturar ao Outro pedindo dinheiro às sinhás para comprar cartas de alforria. Pelo que consta, a apresentação, apesar de remeter a uma tradição que questiona as consequências da abolição desvinculada de políticas públicas, passou, de fato, por algumas reformulações turísticas amenizantes, romantizando a figura da Princesa Isabel como fada madrinha, tornando-se menos violenta para os olhos dos forasteiros, uma consequência até óbvia da história submetida à cultura do consumo. Daí são esculpidas duas posturas, a do rapaz que se envolve com a manifestação, de modo a negar sua presença de estrangeiro, problematizando a distância entre o eu e o outro; apontando assim os limites da interação, interpenetração e falseamento de sua posição através de sua capacidade cênica, e a da menina, que afirma seu Eu grosseiramente enquanto se distancia, assustando-se com o Outro ao ponto de criar uma repulsa a tudo que acontece a sua frente. Assume, resignada, seu próprio preconceito.

Para além do que já foi esboçado, talvez o aspecto dia-

lógico imposto pelo filme resida no fato do curta ser bastante astuto em seu papel de ficcionalizar a documentação e docu-


V Universos sensíveis

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mentar a ficção. É por este estreito e perigoso caminho que aparece o eixo estrutural da proposta, afinal, para além das duas personagens, há um terceiro elemento presente, a equipe técnica, que neste caso parece abandonar completamente a velha ilusão cinematográfica do apagamento e da quarta parede. No filme, a mediação para com o espectador é regida num interminável direcionamento do campo, do fora de campo e do contracampo virado para a câmera. Todos interligados por uma montagem peculiar: a relação de olhares das personagens ficcionais, dos atores reais do teatro, do espectador e da equipe assumem uma dimensão complexificada, onde o ritmo de 'cortes' intensos e violentos adensa a instabilidade das posições de cada um, possibilitando pequenas fugas e trocas de atitudes. Seja como for, ao final, todos parecem se encarar veementemente, encarar a história de todos ali veementemente, encarar a representação do outro veementemente. A equipe também faz parte dos forasteiros, a câmera é uma forasteira, a existência em si de Nego Fugido enquanto curta-metragem parece nos responder que provavelmente todas as posições são assumidas simultaneamente e de forma auto-consciente, de modo que a postura da equipe se transmite por meio do olhar desconfiado da garota, da língua vermelha pintada do rapaz


Os outros

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para a câmera, dos enquadramentos nervosos, do espectador intrigado. Sem dúvida, todos envolvidos sabiam que pra filmar ali “tem que ter money, tem money, sinhá!!”. (novembro, 2009)


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A obra inacabada

O

que ou quem sentencia o término de uma obra de arte? A

desistência de ir além, um timing exato da hora de parar, uma morte prematura? Uma sensação de completude ou o contrário? A decisão de deixar lacunas ou amarrá-las uma a uma? O indivíduo que produz ao longo de vários anos, que hipoteca a casa, destrói seus relacionamentos ou o que - mesmo entrando de graça - desiste do filme antes dele chegar ao fim? Há casos em que é preciso o grito de ‘basta’ de um anônimo e há casos onde o ‘basta’ decerto será adiado por gerações e gerações de intrometidos. A nascida russa, no ano da Revolução Russa, mas crescida norte-americana, Maya Deren parece ser uma cineasta exemplar para uma época, não a dela, mas a nossa, em que as apostas metodológicas estão se transferindo, especialmente nos campos das artes plásticas e da literatura, do


A obra inacabada

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interesse grandiloqüente da obra final, acabada, redonda, intocável para uma poética do processo, a própria criação como um gesto longo e duradouro. Não mais Grande Sertão: Veredas fechado. Grande Sertão: Veredas com rabiscos, anotações, frases riscadas, outras engajadas, desistências, persistências, nascentes e simultâneas possibilidades do que é, do que poderia ter sido e do que não foi. Não mais um quadro cheio de concepções encerradas em si mesmas, mas paredes sendo pintadas diante dos nossos olhos. Pratos, fachadas, cinzeiros, pianos e seios feitos e refeitos até não sabermos exatamente o ponto em que pararam ou deveriam parar.

Mesmo nas filmografias completas da nossa mística

-russa-americana, convencionou-se afirmar que Witch’s Cradle (EUA, 1944) era um filme inacabado, carregando o tom sobre a obra como quem fala de uma dívida não paga. Temos de nos dar conta que, na bela e recorrente textura P/B em 16mm, o pujante é justamente a posição de um fragmento incerto na montagem de uma atmosfera confusa. A cineasta ‘desconvencionaliza’ planos como quem joga cartas de Tarot, um encontro improvável de arcanos; planta desenlaces como quem decide por uma canção, sem deixar de observar cada uma de suas notas. Aliás, para uma produção envolvendo Maya Deren e o


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ícone dadá Marcel Duchamp, esperar um discernimento óbvio, ululante entre supostos paradoxos como ‘concluído’ e ‘inacabado’ é se assentar num binarismo muito pobre, ainda que seja esse o modelo hegemônico da formação do conhecimento ocidental. Estamos no berço das bruxas, técnica de tortura antiga que consistia em colocar as suspeitas em sacos pendurados em árvores, balançando-as, balançando-as, balançando-as, de forma que quando confessavam tontas e ansiosas pela fuga, terminavam por fantasiar além da conta suas próprias histórias. Para o cinema em questão é sempre bom um punhado de silêncio para não escorregar e um punhado de risco para não se confundir: fabular e fabular sob estados alterados.

Maya Deren é uma bruxa extraordinária. Deforma o

mundo puxando por seus ângulos. Tatuando. Vez ou outra mudando a velocidade dos quadros, usando das já catalogadas trucagens. Só que avant-garde por avant-garde, não mais para instaurar um formalismo semelhante ao da década de 1920, ao dos homens da década de 1920. Seu cinema nada tem a ver com brincadeiras de cineastas com o dispositivo recém-descoberto no fundo do pátio. Ela – diretora, coreógrafa, teórica e todos os outros rótulos que antecedem grandes nomes – segue na criação de universos enigmáticos como quem descobre a porta secreta


A obra inacabada

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de um buraco negro, convidando espectadores e monstros a partilharem o mesmo quarto soturno. A sucessão de cenas não remete ao que está faltando, ao que se perdeu, mas na poderosa ausência da palavra e no que foi jogado fora, arremessado nos corredores decadentes dos museus. Diante dos sumiços e aparições de personagens, da câmera girando como se experimentasse novos estados de consciência, afortunados estados de espírito, Witch’s Cradle desanuvia um fio que nos amarra, nos enforca, sobe por nosso paletó e puxa nossa cabeça para trás. Os rostos estão angustiados, as perspectivas passam por metamorfoses aceleradas, o espaço se confunde: trata-se da vingança das bruxas, Duchamp com as mãos amarradas, uma penumbra onde a jovem garota arquiteta a coragem. Há algo germinando através de Maya e a cineasta não nega a colagem dos planos escolhidos, dos planos que sobraram; dos planos desperdiçados e dos planos esquecidos. Todos os planos do ocultismo dentro de um único coração pulsando e parando de pulsar.

O universo de Deren nos arrasta para uma doce vi-

zinhança de presenças suspeitas, onde cada filme se mostra enquanto ritual da imagem: invoca máscaras, bonecos, marcas, cicatrizes, humanos sem rosto, fios que sustentam, fios que manifestam, uma estabilidade-terremoto nas molduras, nos


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quadros, apenas molduras, menos quadros, mais quadros sem molduras. Os cortes sucessivos no rosto de Pajorita Matta, com seu olhar que escapa, que não se deixa capturar, entre a tortura e a possessão, criam um espetáculo, uma confusão mental, um mundo inventado pela câmera e pelo desejo da câmera. O modernismo está cansado, notou a impossibilidade de resolver ou explicar os grandes temas, de se envolver nas grandes narrativas, de unificar em um só caminho todas as vontades intensas, contudo, não perdeu seu ímpeto transgressor, sua capacidade de, na saturação, na guinada ao conformismo, reinventar-se; não deixou o experimental se render em absoluto ao parnasiano. Mas devorá-lo. Uma. Duas. Três vezes. Não saberia dizer se Maya estava montando a obra ou registrando o processo da obra, gravando a performance de seus atores ou revisitando os módulos de suas intenções. Não saberia dizer se seus filmes deveriam passar no cinema, nas florestas ou numa galeria de arte. Se Witch’s Cradle é um filme concluído ou inacabado. Ela devia saber, no entanto, que essas dúvidas não importam, ainda que não consiga se decidir sobre a exata posição do cinema em sua vida: está aqui para nos libertar ou para, uma vez mais, nos enganar? (maio, 2011)


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Rodrigo Almeida

é doutorando em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com passagem pela Universitat de Barcelona. Curador do Janela Internacional de Cinema do Recife (2009-atual), da Mostra Canavial de Cinema (2014), assim como da Antologia do Cinema Pernambucano (2012-2014), foi o criador do Cineclube Dissenso (20082014) e atualmente integra o coletivo de produção audiovisual Surto & Deslumbramento (www.deslumbramento.com). Diretor dos premiados curtas-metragens Casa Forte (2013) e Como era gostoso meu cafuçu (2015), exibidos em diversos festivais nacionais e internacionais; costuma publicar ensaios e artigos sobre cinema em revistas acadêmicas e catálogos de mostras / festivais, é autor do e-book Rasgos Culturais: Consumo Cinéfilo e o Prazer da Raridade e organizador da coletânea de artigos Cinema e Memória. Atualmente, participa do Laboratório de Audiovisual promovido pelo Porto Iracema das Artes, em Fortaleza, com o projeto Trevosas da Tijuca. E-mail: allmeidaf@gmail.com


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