amarelisa (2023)

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Maria Elisa Gomes

amarelisa
2023

pensamento faísca

ontem fiz chover saudade

habitat

casa de afetos

a história de magnólia

nunca soube dizer

teodoro e as coisas irreversíveis

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Da janela do ônibus, vi três pipas brincando de faísca no roxo alaranjado do céu. Olhei para todos a minha volta. As caras apáticas me convidaram a imaginar as crianças, seus rostos, suas mãos tímidas e empolgadas empinando aquelas pipas. Em seguida, tentei ouvir suas possíveis risadas e brincadeiras durante aquele encontro que devem fazer todos os dias do mês de junho. Será que viam e sentiam as mesmas faíscas que eu? Muito provavelmente não. Ainda não sei se pela cor do céu ou pelo movimento do ônibus, eu as vi e agora escrevo sobre isso.

O movimento do trânsito, uma quinta-feira estranha e o pensamento faísca. Assimilava todos esses elementos enquanto estava em pé e assim ficaria por um bom tempo. Foi um desses dias em que sinto que tudo que faço é consumir, consumo minhas relações, meu tempo, minha própria companhia. Naquele momento, me perguntava: para que? E não cheguei à conclusão alguma. Talvez porque não exista uma. Não consigo enxergar proposito em nada. Nem o amor, a amizade, a empatia tem me parecido uma escolha sábia. São tantos rostos, tantas mãos e tantas bocas que se encontram, se conhecem, se divertem e se despedem. O consumo e a despedida. A diversão e o abandono. A curva e o tempo. A ambição e as palavras. Essa sou eu: a interseção entre a constatação melancólica do consumo generalizado e o pensamento

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pensamento faísca

faísca.

E de repente, é setembro. As pipas aguardam guardadas por um novo junho enquanto o país já cansou de esperar. Apreensivo. Inquieto. Instável. E eu continuo nas curvas dessa avenida longa me perguntando para que? O burburinho, a agitação, a festa, o exagero, o tédio e a morte tudo isso passa por essa mesma avenida com nome de homem e tamanho de universo. Eu passo por essa avenida. E quem diria! Ela continua intacta, absoluta e longa. O pensamento que faiscou se alojou em outro qualquer pedaço meu esperando outro junho guardado como as pipas.

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Ontem fiz chover saudade, precipitei a minha ausência. O rosto avermelhado de quem se emociona e o olho nuvem de quem se precipita. Tudo isso por uma mensagem enviada e um toque não recebido. Gota por gota, memória por memória. Ontem eu fui poça. Se ontem fui poça, hoje sou mulher. Dicotômica e complementar em todos os aspectos que me constituem. Passado e presente, culpa e prazer, corpo e alma.

Em meu reflexo, vejo três crianças crescendo e correndo em direção ao horizonte, linha que lhes parecia tosca e traiçoeira. Ignorando suas impressões, cruzaram-na e agora são quem são. Antes não tivessem corrido, tivessem ficado girando e desdenhando do amadurecer, mas não. Não viveram apenas de sonho e não se fizeram como esse papel. Maleável, em branco e longo. Foram se enrijecendo com o tempo e escreveram em si mesmas por demais, esqueceram de deixar um espaço para o ser que ainda aconteceria. Uma dessas crianças é exatamente o que já fui. Como ela é alegre e leve! Canta e se arrisca por quintais e esquinas nessa pressa infantil de descobrir o mundo por tudo quanto é sentido. Brinca de crescer sem saber que, de fato, isso acontecerá algum dia. E não demoraria muito.

Se pudesse, lhe diria: “não se deixe enganar pelo gosto de jabuticaba e bolo de fubá, como Adélia, você nasceu para carregar bandeira.”. Não pude. Recebi a difícil missão de descobrir sozinha, sem anjo, sem trombeta, sem recados do futuro. A descoberta veio no tom

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ontem fiz chover saudade

jocoso da acusação feita aos seios imaturos e infantis que transpareciam no vestido favorito, branco decorado com flores rosas. Os fogos de artifício, a bebida e os conselhos abafaram o grito que, ainda criança, ouvi dentro de mim. E foi ali. Ali que entendi que o meu natural não se mostra, se esconde. Eis que me vieram os pelos, as espinhas e o sangue cada um desses acompanhado por seus próprios rituais de disfarce. Se na primeira vez me disseram que havia me tornado moça, na segunda me mandaram tomar cuidado enquanto segurava firme o pacote de farmácia e me sentia exposta diante de todos que soubessem o que estava lá dentro. Menina nova e já menstruada. Menstruação. Essa é a minha escolha. Manchar o papel com o que me há de mais verdadeiro- meu próprio sangue, a força que me gera vida e culpa, dispensando assim a hipocrisia erudita da metáfora, pois pelo menos em meus textos hei de me permitir ser eu mesma.

E foi assim que cruzei o horizonte, envergonhada e receosa. Essa mulher que hoje é saudade, já foi menina nuvem. Uma dessas leves, que se escondem, amam o azul e se precipitam. Tudo que a separa dessa forma volátil é seu próprio corpo.

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Como seria bom se eu habitasse em mim mesma! Mas nunca senti me ser o suficiente. Se há os dias em que me imagino ser um caracol, arrastando meu corpo por aí a carregar, em minhas costas, minha própria em si mesmice, há também aqueles em que me imagino me deixando corroer por esses cenários catastróficos de completa solidão e abandono.

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habitat

casa de afetos

Solar

“Minha mãe cozinhava exatamente: arroz, feijão roxinho, molho de batatinhas. Mas cantava”- Adélia Prado

Ali. Bem ali, na rua da Igreja do Rosário. Ao lado do cinema desativado, um pouco acima do ponto de táxi. Em um desses vários morros da cidade ausente de si mesma, encontra-se a minha Casa de Afetos. Enquanto percorria suas ruas estreitas de carro, olhava pela janela e contava as casas para medir a proximidade da que eu tanto esperava encontrar. O rádio nem sempre sintonizado e a conversa nem sempre animada faziam daquele caminho ainda mais familiar.

Quando descíamos do carro, eu, meus irmãos e minha mãe nos preparávamos, fosse distribuindo as sacolas do lanche da tarde, procurando a chave, ou simplesmente chamando ao portão. Eu ficava na ponta dos meus pés e espiava por cima de seu metal marrom escuro até avistar minha tia ou um dos três cachorros que já me receberam ali. Os guardiões inteligentes e travessos da minha Casa de Afetos. Lembrome de Perseu, o semideus, tremendo em seus últimos dias, de Pitoco, o quase personagem, em uma caixa de sapato ao centro da varanda enquanto a família inteira votava seu nome entre risos e brincadeiras, e de Magal, o cantor, recebendo várias e várias repreensões graças à sua destrambelhada meninice. Todos os três, logo depois de nos guiar,

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desapareciam no quintal com dimensões de floresta encantada para, quando cansados, deitarem-se na soleira da porta da sala de televisão e ouvir atentamente ao que quer que fosse discutido lá dentro.

Era por essa mesma porta que entravamos na casa, minha tia a abria enquanto minha vó permanecia sentada em frente à televisão ligada esperando que nós a abraçássemos. Eu, assim que entrava, conferia em segredo os dois sofás, a mesa de centro, o ventilador, as revistas empilhadas e as portas dos três quartos abertas, atenta a quaisquer mudanças passíveis de minha admiração e elogios sinceros. Assim se iniciava o importante ritual de visita. Entregava um presente à minha vó, esperava que ela o abrisse, agradecesse e me pedisse para que o colocasse em seu quarto. Já nesse cômodo, eu conferia os rostos familiares nos porta-retratos, o estranho boneco laranja e peludo que eu mesma havia lhe dado e o sol iluminando a casa de um jeito diferente. Enquanto isso, meu irmão descia as escadas e ajudava minha tia a preparar o pão de queijo que sempre levávamos e minha mãe e irmã se acomodavam na sala contando os casos e descasos daquela semana.

E dependendo do horário em que chegávamos, éramos imediatamente convidados a ir ver o quintal. Minha vó e minha mãe permaneciam sentadas nos bancos de madeira, vigiando nós três enquanto íamos de encontro com o campinho de futebol, as mangueiras, bananeiras, jabuticabeiras, e dos poucos caminhos de cimento, enfeitados por rosas de cores que eu não via em nenhum outro lugar e também por todos os ingredientes dos bolos e outros pratos que preparávamos com nossos primos no banco de concreto. O brinco de princesa, a flor vermelha de textura engraçada, o pompom que esfarelava, nunca os provei, mas sei bem que gosto tinham. O caminho da fome com suas

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bananeiras e armadilhas, o caminho das pedras brilhantes, o quartão e o lago das sereias, foram os principais palcos das tantas infâncias que se faziam presentes na Casa de Afetos. Em meio a esse cenário mágico, a paineira plantada por um de meus tios sempre estava e falava mais alto. Fosse época de suas flores rosa, de seus algodões ou de sua falta de folhas, era ela quem eu buscava toda vez que ia ali. Seu tronco alto funcionava como portal, dali vinham todas as nossas fantasias.

Dos vários cantos daquele quintal, o quartão era o mais misterioso. A entrada só nos era permitida com a presença de um adulto e sempre que lá entrávamos, pisávamos com cuidado enquanto nos fazíamos várias perguntas. A lousa, as estantes lotadas com seus livros antigos de capas duras e belíssimas, revistas, jornais, jogos de tabuleiro, o computador e a mesa em que aprendíamos a jogar xadrez descansando no centro de tudo isso. Enquanto alguns de meus primos movimentavam os peões, cavalos e bispos, outros desenhavam animais e letras com canetinhas de ponta seca por causa de nosso próprio descuido, e eu lia as gravuras dos livros e dicionários ilustrados. Passado algum tempo, todos trocávamos de atividade como se nós tivéssemos combinado. Nosso cômodo preferido obedecia à sua própria dinâmica.

Aos poucos, as brincadeiras foram se esvaziando. A medida em que crescíamos, nos eram revelados os outros sabores da Casa de Afetos. Bolo de fubá aos sábados e domingos, jabuticabas aos outubros. Crescer significava sentar-se à mesa de café e ouvir os vários casos sobre a rotina de antes e do agora. Falávamos sobre as ausências da cidade, sobre politicagens, música e também ríamos como toda família. As palavras de Adélia sobre sua mãe penduradas em um quadro, as explicações de Aurélio na estante abaixo da televisão, o relógio e sua balada periódica

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também se comunicavam naquela sala. Ficávamos ali durante algumas horas até que terminássemos a refeição. Subíamos as escadas e logo depois ou escutávamos aquelas canções do Roberto, do Chico, da Bethânia e do Queen, banda preferida de minha tia, ou assistíamos às novelas.

A Casa de Afetos me é, acima de tudo, um refúgio recorrente. Desses que procuro quando a vida pede coragem, quando já não sei mais de mim. Seus caminhos de infância, seus sabores, suas fantasias e esquinas sempre me abraçaram como fazem minha vó e minha tia. E é por isso que seus quartos, suas salas, seu quintal e sua cozinha cheirosa me são de afeto.

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Se me ponho a lhes contar o que aconteceu com Magnólia é porque me foi contado. De uma primeira vez, eu mesma não pude acreditar, mas, caso esta história lhes pareça muito absurda, nada poderei fazer. Verdade e lirismo são, na maioria das vezes, aspectos confundíveis, e nada, ao meu ver, adiantaria tentar separá-los. Agora, vamos ao sucedido.

Magnólia era menina estranha. Quando pequena, já se misturava às plantas, árvores e flores de seu quintal. Passava horas a lhes plantar, regar, podar, nutrir. Seus pais, constantemente surpreendidos com suas maneiras e brincadeiras, sempre riam dizendo “é a sina de seu nome”. E realmente! Fosse uma das mulheres Terra, se colocaria a fiar e esperar, mas, como era Magnólia, sentia que estar junto ao verde era o que lhe cabia. Se haviam esses momentos em que seus costumes eram considerados destino ou motivo de orgulho e riso, haviam outros em que eram motivo de preocupação.

— Por que que ela não consegue ser como as outras crianças? Por que que não tem amiguinhos? Sempre suja de terra! Sempre se metendo com plantas e regadores! Qualquer hora dessas, cria raiz e não volta mais... – Dizia sua mãe, vigiando-lhe pela janela da cozinha.

— Calma, Agnes! Cê tá exagerando! Te garanto que é curta fase! Logo logo, ela vai ser que nem as outras crianças... Se é que isso é vantagem! – Respondia o pai, sentado à mesa, em um estado meio

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a história de magnólia

apático, meio reflexivo.

E já lhes adianto: não foi o que aconteceu. Magnólia, à medida em que ia crescendo, apenas se aprimorava em seus cuidados. Aprendera a conversar com as plantas e a atender às suas necessidades. Fosse inverno, outono, primavera ou verão, Magnólia sabia exatamente qual era o tratamento adequado para cada uma das espécies. Suas samambaias, sibipirunas, ipês, mangueiras, jabuticabeiras, suculentas, roseiras, sofias e girassóis recebiam, diariamente, seu afeto e atenção. Infelizmente, nem sempre sua terra e seus cuidados lhes eram bons ou suficientes e ela o admitia, apesar da dor que isso lhe causava. Em algumas tentativas desesperadas, Magnólia distribuía suas mudas, flores e frutas, pensando que, dessa forma, lhes daria novas chances. E, realmente, às vezes, era tudo que precisavam, mudavam-se para novos quintais e podiam ser radiantes e verdes novamente.

Certo dia, assim que acordou, se olhou no espelho. Espantada, pensava: “mulher nenhuma no mundo chegara a ser essa falta de cor”. Naquele dia, não fora ao quintal, não gastara horas com seus cuidados, como lhe era de costume. Na verdade, não pode gastar um minuto sequer. Além de seu desbotamento, podia perceber a fraqueza de todo seu corpo. Pôs-se a andar e depois de muito custo, alcançou uma pequena casa em que era prestado atendimento médico.

Magnólia, ao passar pela porta, pode perceber dois diferentes tipos de surpresa nos que estavam ali: o susto que sua falta de cor lhes causara e, por que não, o que ela mesma provocara ao sair de seu jardim. Todos estavam demasiadamente acostumados em vê-la zelando por suas plantas e, até aquele momento, não pensavam que ela mesma poderia precisar de cuidados. Mesmo Osvaldo, médico conhecido de toda a

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região, amigo de seus pais e tios, não conteve o espanto:

—Magnólia, querida! Que que cê faz aqui? Pensei que tivesse criado raiz, pelo menos, fora isso que sua mãe me disse da última vez que a vi... – Disse o médico, entre um riso e um constrangimento.

— Doutor Osvaldo, por acaso, cê não vê a minha pele? Tô cinza! Como é possível desbotar assim? Da noite pro dia! - Disse a menina rompendo em choro e escândalo.

— Vá se sentando, menina! Logo eu volto e nós conversamos.

Sentada, Magnólia procurava se distrair do motivo que a levara a sair de casa. Contou segundos, seguiu, com seus olhos preocupados, cada um dos peixinhos do antigo aquário de Dr. Osvaldo. Tentou ler, de longe, o título de todos os livros empilhados na estante de madeira escura. Tudo em vão. Sentada, procurando se distrair, também pensava que sua morte se aproximava e que, acontecimento tão inevitável, acabaria por fazer com que suas plantas ficassem abandonadas à sua própria sorte. Afinal de contas, quem iria cuidar delas em caso de ausência tão definitiva?

menina padecia de necessidade muito conhecida. No entanto, Dr. Osvaldo se engasgava com a notícia. Tanto havia lido sobre o assunto que seu conhecimento lhe roubara o profissionalismo, qualidade que tanto apreciava. Suava a mão, olhava seu relógio e a paciente ali presente, sem saber por nas palavras acertadas o que a fazia cinza daquela forma. Era visível, a angústia era tanta que se materializava. Quando Dr. Osvaldo resolveu se pronunciar, até os objetos respiraram aliviados.

— Magnólia, querida, acredito que sei do que se trata. Pensei que podia ser outra coisa, mas esse tom de cinza não deixa dúvidas...

— Tem cura, Dr. Osvaldo? – Disse a menina dividida entre susto e preocupação.

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— Pode parecer estranho, mas basta que ocê preste mais atenção nocê mesma.

— Como assim? Venho a seu consultório e ocê se põe a zombar de minha cara? Não vê que estou aflita?

— Eu entendo perfeitamente sua desconfiança! E devo confessar que não é todo dia que eu recebo casos como o seu, mas já li bastante a esse respeito. Seja sincera comigo: qual foi a última vez que você saiu de seu quintal?

— Não me lembro, Doutor Osvaldo... Mas que motivos eu teria para sair? Minhas plantas estão todas lá!

— Qual motivo seria melhor que a vida, Magnólia? Garanto-lhe que elas ficarão bem.

Esta foi a última vez que Magnólia foi vista por Doutor Osvaldo e suas plantas. Decidida a recuperar a cor de sua pele, a menina-planta se desfez de sua raiz e se meteu pelo mundo, procurando a si mesma.

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nunca soube dizer

Nunca soube dizer, com a desejada imprecisão, o que tanto me atrai naquela praça. Talvez, sejam suas longas palmeiras que, imponentes, parecem governar toda a cidade desde a rua que a corta em seu centro. Talvez, sejam as fontes sempre desligadas, ou, o tapete rosa que, em julho, é confeccionado por todos os ipês que ali residem. Eu poderia dedicar um texto à sua paisagem, mas prefiro escrever sobre as vidas que, como a minha, ali pulsam.

Quando comecei a frequentá-la, debutava minhas dúvidas. Oscar, Fernando e seus amigos o sabem. E como o sabem! Depois de longos onze anos estudando em Nova Lima, estreava um estranho ano letivo em um colégio tradicional da capital. O que antes apenas fazia, aos sábados, com a presença de meus pais, começava a enfrentar sozinha diariamente. Não estava acostumada com todos os semáforos, restaurantes, lojas, muito menos, com aquela incipiente liberdade. Tinha, então, duas difíceis tarefas em minhas mãos: descobrir a mim e àquela cidade. Saía de casa de manhã cedo, como ainda faço, para enfrentar aulas, provas e minha própria adolescência.

Tão logo fiz amigas, comecei a descobrir os quarteirões para além do colégio. Enquanto esperávamos nossas provas de sexta à noite, andávamos e nos confessávamos. Havia sempre um lápis a comprar, ou um quase amor sobre o qual falar. Pelo menos naquelas tardes, estudar nos era uma tarefa secundária. Já aos sábados, depois das provas, íamos

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à praça ver a vida passar. E víamos tanta vida! Quando ela não nos atraía, observávamos de longe: sentadas em um café, perto do colégio, podíamos ver as bandeiras, os carros de som, as pessoas segurando seus cartazes. Talvez, não soubéssemos, mas, àquela época, já se anunciavam os rumos da história de nosso país.

Ah, mas quando nos atraía! Quando nos atraía, nós nos misturávamos àquele cenário digno de George Seurat. Pouco nos importava se não era domingo, se não era tarde, se não era primavera, se não era Europa. Estávamos ali! Estávamos com os cachorros, as crianças, os hippies, os casais, os que se exercitavam, os vendedores ambulantes, os piqueniques e as equipes de filmagem e fotografia.

Estávamos, éramos e observávamos em breves instantes. Sabíamos que logo teríamos de voltar para casa, mas isso pouco nos importava. Nós estávamos, éramos, observávamos e isso, por hora, nos bastava.

Se os instantes passados ali duravam pouco, aqueles três anos, durante os quais convivemos diariamente, duraram menos ainda. Não demorou muito para que prestássemos o vestibular e fizéssemos nossas próprias escolhas. Separadas por avenidas e estradas, ainda nos encontramos nessa mesma praça. Conversamos, aconselhamos e nos acolhemos naquele mesmo lugar ao qual íamos durante nossos horários vagos.

Já em meus primeiros anos de faculdade, aquela praça se fez cenário mais inúmeras vezes. Havia dias em que eu a via apenas de longe, da janela do ônibus, tomada por treinadores Pokémon e suas telas de fantasia. Quando os via, ficava me perguntando qual a finalidade daqueles cardumes, mas, sinceramente, não me importava. Se iam procurando suas criaturas ou seus sentidos, tanto me fazia.

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Eu os via e, justamente, porque os via já imaginava tanto! Meus dias preferidos eram aqueles em que, corajosamente, me fazia capaz de deixar de imaginar. Como acostumada escritora que sou, sempre fiz pensar e criar minhas próprias distopias. Como menina mulher que começava a ser, exibia minha juventude em momentos de uma rompante coragem. E a quantas essa pretensa coragem já me obrigou!

Lembro-me da vez em que, tarde da noite, passamos pela praça, eu e algumas amigas, em direção a uma festa na Savassi. Tudo naquela noite era ousado. Nossos andares, nossas roupas e nossa irreverência faziam com que nós nos sentíssemos maiores do que as Spice Girls. Nós nos sentíamos invencíveis! Éramos jovens e nos sentíamos jovens!

Éramos amigas e já não somos mais. Curiosamente, das que estavam presentes, as quatro que permanecem amigas ainda se encontram naquela praça.

Ali, não protagonizei apenas episódios que, como esse, foram marcados por uma coragem quase heroica. Ali, eu também fui fraca. Ali, eu também errei. E como é bom admitir! Ah! Quantos jogos comecei e, por imprudência e vaidade, não fui capaz de conter! Muito menos de terminar! Como eu gostaria de poder dizer que houve uma única vez, mas não quero mentir, não nesse texto! A quantas já não me obrigaram!

Lembro-me da vez em que, depois de mais de um mês conversando online, conheci um rapaz pessoalmente. Uma única vez para que, tempos depois, eu pudesse entender. Não havíamos nos conhecido. Naquela tarde, saímos com as imagens que tínhamos fabricado um do outro. Eu, acompanhada por minhas tantas ilusões, ele, acompanhado por suas tantas outras. O que senti por ele foi bonito, mas, principalmente, vaidoso, como tudo que vivi naquela praça.

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Confesso que, por algum tempo, isso me doeu. Hoje, rio lembrando que, para que esse maldito encontro fosse bem-sucedido, tive que repartir a praça com um querido amigo. Em uma conversa distraída sobre nossos planos para o feriado, descobrimos que estaríamos lá no mesmo dia, no mesmo horário e com os mesmos objetivos. Diante da coincidência, feito Portugal e Espanha, combinamos os setores de que cada um poderia fruir, sem que encontrasse o outro. Chegada a hora, nós seguimos a regra à risca e, ainda hoje, a mencionamos. Tal combinado ficou conhecido, entre nossos amigos, como o “Tratado de Tordeusos”.

A vida ali continuou. Outubro, novembro, dezembro, janeiro. Estes meses me passaram como os que ali caminham. Por vezes, a vida me parecia insistente, dando passos largos e enérgicos. Por outras, me parecia sem fôlego, se agarrando às gotas de meu suor. Terminado em meados de fevereiro, aquele ano trouxe importantes lições. Durante seus dias, me permiti arriscar, como nunca havia feito, me permiti dançar, flertar e viver. Durante suas noites, eu era incapaz de me reconhecer. Decidida a me reaver, procurei ajuda profissional e, coincidentemente, passei a encontrá-la semanalmente a apenas um quarteirão da Praça. Desde então, dedico, semanalmente, uma hora apenas para falar. Sento-me na poltrona bege e, como costumam dizer, me descasco em camadas. Graças a este penoso exercício, em fevereiro, voltei a me frequentar. Naquele mesmo mês, também estive na praça. Daquela vez, a conversa online durou apenas uma semana. Já havíamos trocado impressões, áudios, textos e ilustrações. Isto me foi o suficiente. Chegado o dia combinado, escolhi um vestido e fui me encontrar com aquele rapaz.

O que lhes confesso agora, só fui capaz de lhe confessar um mês

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depois: três anos já haviam se passado desde que eu o havia visto pela primeira vez. Timidamente, eu o observava passar pelos corredores do meu colégio. Aquele rapaz. Ah, eu sei! Sei dizer exatamente o que tanto me atraía nele: o cabelo grande cacheado, o olho verde, seu olhar... Àquela época, de longe, eu apenas o imaginava compartilhando comigo o que eu, ingenuamente, imaginava ser o amor. Naquele sábado, lá estávamos nós. Depois de tanto me desencontrar, pudemos dividir nossas histórias e o mesmo banco de praça. Vimos as fontes, o coreto e nos deitamos na grama. Naquele sábado, cantamos todas as “silly love songs” possíveis e, até hoje, nos encontramos ali.

Nunca soube explicar porquê. Talvez, nunca tenha sentido que me fosse necessário explicar. Naquela praça, cabemos eu, minha juventude desengonçada e meu arrependimento tosco. Naquela praça, como na vida, cabem encontro e desencanto. Naquela praça, cabem tudo e nada. E, por isso, sempre gostei de estar ali.

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teodoro e as coisas irreversíveis

Sentado em uma poltrona verde escura, Teodoro observava sua avó deitada numa cama estranha, cheia de braços e dispositivos eletrônicos. Pela primeira vez, estava em um quarto de hospital e eram muitas as perguntas que invadiam sua mente. No auge de seus oito anos, ele se perguntava por que pessoas velhas, como sua vó, tinham a pele tão enrugada. Teria ela ficado assim por conta de todos os banhos que, ao longo de sua vida, havia tomado? Teodoro sabia que haviam sido muitos. Imaginem só: no mínimo, um banho, por dia, durante oitenta anos! Sem contar todas as vezes em que ela visitara praias, piscinas, cachoeiras e rios por aí afora... Incapaz de realizar operações matemáticas sofisticadas, como as que lhe eram exigidas por sua imaginação, o menino se concentrava em lembrar das vezes em que, graças às suas demoras nos banhos, seu corpo ficara com aquela mesma textura. Não era de se admirar, portanto, que a pele de sua vó estivesse daquele jeito, mas essa resposta, apesar de ser possível, ainda não lhe parecia ser a certa.

Deveria ele perguntar ao médico? Em algum momento, ele passaria no quarto para falar sobre o estado de saúde de sua avó. Este homem que, por enquanto, ainda não lhe tinha rosto ou corpo, deveria ter muita experiência com gente velha e, por que não, com os mistérios da vida. Para Teodoro, estes pareciam ser os requisitos básicos para se trabalhar em um hospital. O menino sabia que tal homem deveria ser o mais indicado para responder à sua pergunta, mas também sabia que sua

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mãe estava muito nervosa, como ele nunca havia visto e, certamente, o repreenderia se o visse falando asneiras com qualquer que fosse a autoridade. Então, não. Não deveria perguntar ao médico.

Deveria ele perguntar à sua vó? Ela lhe parecia experiente em assuntos de velhice. Afinal de contas, durante toda sua vida, ela fora idosa. Todas aquelas fotos em que ela era criança lhe pareciam ser de um tempo muito distante, sem cores, sem selfies. Não acreditava nem que fossem verdadeiras. Provavelmente, eram arte de algum primo mais velho, esperto, que sabia fazer montagens convincentes. Apesar de sua desconfiança, elas existiam e ficavam guardadas em caixas aveludadas coloridas na parte de cima do armário de sua vó. Teodoro também sabia que ela era sua cúmplice. Dos doces às traquinagens, era com ela que o menino compartilhava sua rotina de infância.

A esta altura, ele já havia se decidido. Deveria perguntar a Dona Cida. Assim que ficassem sozinhos, ele lhe consultaria. Talvez, até lhe fizesse outros questionamentos, mas a pediria que guardasse segredo: estava cansado de ouvir que, devido à sua idade, não poderia conversar sobre esta ou aquela coisa, que não entenderia tal assunto, muito menos aquele outro. Porém, lhe parecia impossível que tivessem um momento a sós naquele quarto. Afinal de contas, quem, em sã consciência, deixaria um menino de sua idade, com seu histórico de bagunças e absurdos, ficar a sós com uma senhora idosa e enferma? Sua mãe, certamente, não. Talvez, a única saída fosse lhe cochichar a dúvida, como quem compartilha um segredo. Tendo esgotado todas as suas ideias mirabolantes, foi exatamente o que Teodoro fez, levantou-se da poltrona verde escura e se aproximou de Vó Cida fingindo que apenas iria abraça-la.

— Vó, por que que cê tem a pele enrugada desse jeito? Mas, por

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favor, responda baixinho para que mamãe não me amole...

— Téo, Téo... Você sempre me vem cheio de aprontações não é mesmo? Por que a pergunta?

— Cê é a única pessoa que me responderia, Vó Cida... – apesar de menino, Teodoro sempre se mostrou muito entendido de gente e sentimento, ele sabia que, se falasse assim, ela cederia e o explicaria do jeito que só ela, só ela, saberia explicar.

— Ora, Téo... Cê vai ver um dia, cê também vai ser assim, depois que tiver aprendido bastante, mas bastante mesmo! E eu não falo só de coisa da escola não viu? Falo de coisa da vida! Cada coisinha dessa vai grudar na sua pele e virar uma ruguinha por vez.

Entretido pela conversa, Teodoro não havia percebido que aquele quarto estranho já contava com a presença de outros rostos familiares. Sua mãe estava ocupada conversando com suas tias Marina e Rita e este, provavelmente, era o motivo pelo qual não havia interrompido o cochicho entre ele e sua avó. Os adultos, sempre envolvidos em assuntos de extrema urgência, viviam a esconder coisas das crianças e das avós. Pelo menos, era esta a impressão que Teodoro tinha. Quando sentia medo do que poderiam estar tramando, o menino gostava de se consolar pensando que aquela atitude só poderia ser coisa de quem não sabe jogar papo fora, arte que ele e sua avó dominavam. Seria isto o que faziam os adultos? Teodoro não saberia dizer e, se perguntasse à sua mãe ou às suas tias, não receberia a resposta que desejava.

Terminada a conversa com sua mãe, suas tias lhe encheram de abraços, beijos na bochecha e elogios. Disseram-lhe que, a cada vez que o viam, o achavam mais bonito, mais inteligente e mais crescido.

Apesar de gostar de receber carinhos, Teodoro sempre se sentia estranho

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quando suas tias o cumprimentavam daquela forma. A verdade é que aquelas palavras o faziam se sentir um grande “bebê”. Por que não o cumprimentavam com abraços, como faziam com seus primos mais velhos? O menino, no entanto, já sabia que não era de bom tom reclamar. Uma vez desabafara com sua mãe e ela lhe explicara que “era coisa de tia”, não o faziam por mal, e que ele não deveria se sentir incomodado, mas, sim, muito amado. O assunto estava encerrado e o sentimento guardado dentro de Teodoro, de onde nunca iria sair. Marina e Rita estavam ali porque o turno de Ana havia chegado ao fim e era hora de eles irem para casa. Suas tias passariam a noite cuidando de sua vó para que, na manhã seguinte, Ana voltasse àquele quarto, antes que tivesse de se ausentar para estar no trabalho. Sem vontade de ir embora, Teodoro se despediu de Vó Cida, dando-lhe um beijo na testa e dizendo que, amanhã, depois da aula, estaria lá de novo. Sua mãe, como sempre, o lembrou de pedir “bença” e a abraçou muito apertado. Já fora do quarto, de mãos dadas, andaram por um corredor longo, confuso, procurando o elevador que os levaria ao térreo do hospital.

Foi Teodoro quem o encontrou e, depois de entrar naquilo que gostava de chamar de “caixa metálica”, apertou os botões. Enquanto o elevador se enchia, o menino olhava sua mãe e tentava entender o que ela sentia. Não parecia extremamente triste, como costumava ficar quando chorava assistindo seus filmes e novelas dramáticos, mas também não estava alegre, como costumava ficar quando os dias eram de sol ou quando seu pai a levava para sair. Alguma emoção, ali dentro, parecia querer se mostrar, mas o menino não saberia qual era, desta vez, ele o admitia, talvez, fosse novo demais para entender.

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N o caminho para casa, enquanto estavam no carro de seu pai, Teodoro refletia sobre o que sua vó falara no hospital. Com muito esforço, ele tentava se lembrar de todas as vezes em que, depois de aprender alguma coisa, se olhara no espelho e, naquele exato momento, observara algo diferente em seu rosto, de preferência, alguma ruga. De que outra forma poderia se certificar de que aquilo era verdade? Sem opções, o menino apenas conseguiu se lembrar da raiva que sentira depois que aprendera a ler e escrever. Os outdoors já não podiam ser placas indicando caminhos para os dragões, que ele sempre imaginava, voando por aí, quando ninguém estava olhando. Muito menos as letras minúsculas, contidas nas embalagens de comida que ficavam na despensa de sua casa, poderiam ser receitas boladas, especialmente, para as formigas que lá moravam. Ler era irreversível, palavra que havia aprendido assistindo jornal, durante uma noite em que não conseguira dormir, com seu pai. Era sobre isso que Vó Cida falava quando lhe explicou a textura de sua pele?

Mais tarde, naquele mesmo dia, quando chegaram em casa, sua mãe lhe chamou para uma conversa séria. O ar de gravidade era denso e Teodoro pensava que pudesse ser sobre a briga que, antes de ele se arrumar para ir ao hospital, seus bonecos de plástico protagonizaram no tanque da área de serviços. A batalha aquática havia sido intensa e, no meio de socos e chutes, estranhamente articulados, seu cotovelo havia esbarrado na embalagem de sabão em pó, transformando a água do tanque em um mar revolto, cheio de espuma, o pesadelo de qualquer mãe. Não tendo irmãos para culpar, como faziam seus amigos, Teodoro pensava consigo mesmo que, talvez, devesse recorrer a seu amigo imaginário, Eduardo, tentando, em vão, se livrar de mais um castigo.

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A conversa, no entanto, não era sobre sua bagunça, era sobre sua vó. Com o rosto preocupado, sua mãe lhe disse que não o levaria mais ao hospital. Embora acreditasse que Vó Cida era saudável e que, em poucos dias, já estaria em casa, Ana lhe disse que, conversando com seu pai, haviam concluído que hospitais eram locais para adultos. Irritado com a justificativa, Teodoro não pode lhe convencer do contrário e cedeu. Percebendo que seu filho não havia reagido bem à notícia, Ana lhe propôs um acordo: toda vez que tivesse de ir até lá para cuidar de sua vó, ela levaria um de seus desenhos.

E, assim foi. Os desenhos, a cada dia que se passava, eram mais cheios de cores e fantasia. Teodoro se divertia enquanto os criava, mas era difícil se acostumar à nova rotina. Tudo que fazia, o menino fazia na companhia de Vó Cida. Quando era hora de acordar, era ela quem enchia a mesa com pães, suco, café e margarina, desejava bom dia para todos da casa, inclusive, o cachorro, Pixinguinha, de quem ela gostava profundamente. Após seus pais saírem para trabalhar, era ela quem o deixava se sujar de terra ou qualquer outra substância duvidosa que encontrasse no quintal. O menino, dotado de uma imaginação invejável, rastejava pela grama, escondendo-se atrás dos arbustos e árvores, procurando não ser visto por seu inimigo, Pixinguinha, que, sem saber, interpretava o papel de um cruel extraterrestre, interessado em acabar com a vida neste planeta. A diversão, nestes dias, era medida pela sujeira da roupa que, rapidamente, mudava de cor e textura. Quando era hora de ir à escola, era sua vó quem lhe dava um beijo na testa, na frente de todos seus “coleguinhas”, como ela mesma costumava lhes chamar. Envergonhado, Teodoro corava sua bochecha, mas não conseguia lhe dizer que parasse, sabia que aquele beijinho era sua

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forma de lhe demonstrar carinho. Quando era hora de voltar para casa, era ela quem comprava balas na banca de revistas que havia dobrando a esquina da escola. Talvez, este fosse o maior segredo que guardavam. Para que ela continuasse as comprando, o combinado era que simples: bastava que o menino escovasse os dentes assim que chegassem em casa. Enquanto seus pais se dobravam e desdobravam para incluir sua rotina em seus dias cheios de trabalho, Teodoro sentia que algo lhe faltava e, assim, descobrira o que era sentir saudades. Sua mãe, quando acordava, também colocava a mesa de café, mas o suco não tinha o mesmo gosto. A pressa o amargava. O café da manhã era sempre rápido porque ela precisava da mesa para instalar seu computador e, finalmente, começar a trabalhar. Havia dias que não ia ao escritório de manhã para poder cuidar do filho. Como ela estava impedida de acompanha-lo pela casa, suas brincadeiras não podiam passar da fronteira imaginária, materialmente, representada pela porta da área de serviços. Pela janela deste mesmo cômodo, Teodoro observava que seu inimigo, finalmente, havia conseguido o que queria: conquistar o planeta Terra. Seu nome de super herói estava em ruínas e nem os pássaros, que sempre visitavam o quintal, confiariam nele novamente, já que o cachorro era feroz e o risco que corriam era mortal. Nem a ida e a volta da escola permaneciam iguais. Dentro do carro de seu pai, não havia ninguém que testemunhasse o beijo na testa que ganhava antes da aula, muito menos, era possível comprar as balas, apesar de sempre haver assunto muito animado. Se as pedisse a seu pai, ele, muito provavelmente, não as daria e era ainda pior pensar que ele, intuitivo do jeito que era, conseguiria interroga-lo até que confessasse o segredo que tanto havia se esforçado para guardar.

Um dia, durante o caminho para a escola, seu pai lhe oferecera:

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— Teo, eu sei que você anda sentindo falta de sua vó... O que cê acha de hoje à noite a gente ligar pra ela? Só ouvir a voz é diferente, mas, no meu tempo, bastava pra saber se alguém estava bem...Tenho certeza de que ela vai gostar muito de receber uma ligação sua!

Naquele dia, durante as aulas, a atenção de Teodoro esteve voltada para o relógio. O senhor do tempo lhe parecia um inimigo mais perverso que Pixinguinha. Apesar de bagunceiro, o cachorro era capaz de reconhecer alguma espécie de autoridade nele e até obedecia a alguns de seus comandos, sentava, dava a pata e, em breve, aprenderia a fingir de morto, o que, para o menino, poderia adicionar um pouco de emoção às batalhas travadas no quintal. O relógio não. Descansando pendurado na parede, acima da louça, era ele quem ditava as regras e, no ápice de sua maldade, se punha entre um neto e sua avó, internada e, com certeza, saudosa. Nesta mesma cena, estava sua professora, esforçando-se para não chorar diante do desinteresse daquelas crianças. Como a maioria de seus colegas, Teodoro parecia não se importar com sua presença. A coitada já havia tentado de tudo: livros coloridos que, através de histórias, tentavam explicar o conteúdo, músicas para que tivessem a oportunidade de aprenderem se divertindo, advertências para punir os aviões de papel que insistiam em despontar no ar daquela sala e, nos casos mais graves, a temida ida compulsória à diretoria. Não havia respeito por nada. Se nem Palavra Cantada e Ana Maria Machado eram capazes de lhes prender a atenção, por que ela seria? Não pretendia se impor, mas, naquele dia, decidira chamar as crianças à louça.

A cada nome que Rose chamava, escorria uma nova gota de suor pelo rosto de Teodoro. Se, naquela ponta da sala, ele se resumia em ansiedades, na outra ponta, bem à frente de todos, os ponteiros lhe

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pareciam estar parados, estragados. Nunca, em toda sua curta vida, o menino havia sentido tanto a demora de cinco minutos, como sentia a daqueles que o separavam do momento de ir para casa. Embora tentasse com bastante esforço, Teodoro ainda não havia decifrado nem qual era o critério utilizado, por sua professora, para escolher suas vítimas. Alice, Sérgio, Flávia e Vitor. O que eles tinham em comum? Teria ele alguma chance de ser chamado? O menino se perguntava enquanto aproveitava para, mais uma vez, olhar o relógio: ainda faltavam os cinco eternos minutos.

Em seu desespero, Rose, também suando, decidiu-se por, mais uma vez, tentar, escolhendo e falando, em voz alta, o último nome: Teodoro! Pronto! Era seu fim! Como explicaria à professora que, assim como seus colegas, também não estava prestando atenção na aula? Como diria, daquela forma, na frente de todo mundo, que há alguns dias não estudava a tabuada? Enquanto andava em direção à louça, Teodoro optou por adotar a única estratégia que conhecia: fingir tranquilidade. Afinal de contas, o que poderia haver de tão horrível em uma multiplicar o 7 por um 9? Novas gotas de suor caíram quando o menino, finalmente, pegou um pedaço de giz.

Naquele momento, exatamente, naquele momento, Teodoro soube que qualquer que fosse a operação matemática, seria horrível fazêla na frente de toda sua turma. O relógio, o mesmo objeto com o qual brigara durante toda a aula, apiedou-se do menino e, finalmente, fez seus ponteiros se mexerem. “De amanhã, não passa!”, gritou Rose para Teodoro, tentando fazer impor sua voz aos barulhos que invadiam aquela sala. O sinal urgente, os pés desesperados e as rodinhas das mochilas que eram obrigadas a lhes acompanhar. Todos pareciam cantar a mesma

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liberdade que invadia o coração do menino: “fui salvo!”, pensava, enquanto se dirigia ao portão para encontrar seu pai.

Daquela vez, ele apenas estacionara o carro, o mais perto possível do portão da escola, e esperou que Teodoro o visse, para apenas abrir a porta. Daquela vez, Eduardo não havia saído para cumprimentar, como de costume, o seu José, o porteiro da escola, e as professoras que, àquela hora, já haviam se juntado no portão para que pudessem fofocar, pela última vez, naquele dia. Daquela vez, Eduardo procurou esconder a vermelhidão de seu rosto, a qualquer custo, até que encontrasse as palavras certas para revelar a Teodoro que, naquela noite, não seria possível conversar com Vó Cida por telefone. Como se não conhecesse seu próprio filho, Eduardo adotou a mesma estratégia que seu filho, quando, mais cedo, havia sido confrontado pelo quadro negro: fingir tranquilidade. No entanto, tão logo o menino se sentou, ele percebera que havia algo de errado. Temendo que seu pai estivesse vermelho de raiva, como, em sua casa, se costumava dizer, o menino chegou a imaginar que, talvez, ele tivesse descoberto suas dificuldades para fazer o dever de casa ou, até mesmo, alguns dos tesouros, nada convencionais, que havia enterrado no quintal.

A cada esquina que o carro dobrava, Teodoro aproveitava para apalpar aquele silêncio, como se, daquela forma, fosse possível decifrálo. Em sua meninice, ele já sabia que o que lhe sobrava de tato, parecia faltar a seu pai. Sempre que conversava com sua mãe ou sua vó sobre este assunto, elas costumavam lhe responder dizendo que ele não o fazia por mal, que aquilo era “coisa de homem”, mas ele, sinceramente, não concordava. Geralmente, pensava consigo mesmo “por algum acaso, também não sou homem?”. E, ainda assim, era capaz de falar sobre seus

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sentimentos, e, até mesmo, chorar quando era ridicularizado por alguns de seus colegas e também nas vezes em que ralava, seriamente, seu joelho em alguma aventura de quintal má-sucedida. Esta, talvez, fosse apenas mais uma das coisas que adultos desaprendem, à medida em que envelhecem.

Já estavam a um quarteirão de casa, quando Eduardo, finalmente, tomou coragem. Em um impulso, se decidiu por parar o carro e conversar com Teodoro:

— Filho, esta é uma das coisas mais difíceis que eu já tive de fazer, mas preciso te dizer... Não vamos poder ligar para Vó Cida esta noite. – Enquanto falava, Eduardo era interrompido por suas lágrimas e, embora estivesse ficando com os óculos embaçados, podia ver que, aos poucos, os olhos de Teodoro também se enchiam de água.

— Mas você mesmo tinha sugerido, pai... Por que eu não posso? Vocês me fizeram parar de ir visita-la no hospital e agora não posso nem ligar?

— Téo, você não imagina o quanto me corta o coração dizer isto, mas sua vó faleceu esta tarde, enquanto você estava na aula...

— Vocês sempre escondem tudo de mim! – Teodoro gritou, interrompendo, raivosamente, o discurso equilibrado de seu pai. Enquanto Teodoro estava ocupado, tentando não chorar, Eduardo retomou a conversa:

— Nós fazemos isso para te proteger, filho... Quem sabe quando você for pai, você, talvez, entenda... Como eu ia dizendo, hoje, de manhã, Dr. Osvaldo nos ligou dizendo que Dona Cida havia piorado, durante a noite, e que nós deveríamos ir até o hospital. Acabei não indo trabalhar à tarde para acompanhar sua mãe, que, inclusive, está muito abatida...

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Quando saí para te buscar, todos seus tios e primos já estavam todos a caminho da nossa casa. Eu sei que, agora, é difícil saber o que sentir ou pensar, mas, nós, todos nós, teremos de nos acostumar. Nós devemos ser fortes e apoiar sua mãe.

Eduardo havia feito aquela notícia cair sobre Teodoro, como os aviões fazem cair as bombas em cidades de nações inimigas, cenas que costumavam ver, juntos, nos filmes de ação. Por mais que seu pai não tivesse tido esta intenção, o menino sentia que, sem cuidado algum, ele havia lhe dito que sua vó morrera, enquanto passara a tarde esperando o momento em que pudessem se falar. Como sempre, ele fora o último a ficar sabendo. Àquela altura da conversa, o carro já havia voltado a se movimentar e Teodoro, sem entender porquê, tentava, em vão, engolir, a seco, o choro que insistia em machucar sua garganta. Era tristeza ou era raiva? Mais uma vez, ele, agora compreendia, talvez, fosse novo demais para saber.

Quando, finalmente, chegaram em casa, foram recebidos por uma enorme fila de parentes, vizinhos e conhecidos, todos aguardando para que pudessem lhes abraçar fraternamente e, se a emoção permitisse, trocar palavras de consolo. Teodoro, morava ali desde que nascera e nunca havia visto tanta gente reunida em seu quintal. Assustado, o menino não pensou em outra reação se não correr até o colo de sua mãe, o único lugar do mundo que, naquele instante, lhe parecia seguro. Embora não fosse mais capaz de carrega-lo, como o fazia antigamente, Ana sentira que, dadas as circunstâncias, aquele era seu dever. Dali, Teodoro sentia que era capaz de tudo. Poderia, até mesmo, se fazer de menino forte, encarar, a todos, em seus olhos, chorosos, ouvir-lhes contar as lembranças todas muito doces, que tinham de sua avó.

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Naquela noite, ele descobrira que sua vó era “a mulher mais mineira do mundo”, como lhe dissera sua tia Glória, esposa de Antônio, o irmão mais velho de sua mãe. Sempre que traziam seus filhos para visitas, eram recebidos por café e bolo de fubá, feitos, na hora, qualquer que esta fosse, por vó Cida. Disso, Teodoro se lembrava bem! Mas, para ele, ela costumava dizer, sordidamente, que o bolo era de chocolate branco, tentando convencer-lhe a comer. Seus primos, Fernando e Maria, apesar de já serem quase adultos, eram seus amigos e sempre que vinham, corriam, juntos, destemidamente pelo quintal, enquanto ela gritava “o bolo tá pronto” para quem quisesse ouvir.

Tia Rita, a segunda filha, fizera questão de lhe dizer, entre lágrimas que insistiam em lhe escapar, que seu nome, uma homenagem a seu avô, fora escolhido por Vó Cida, pois, mesmo depois de viúva, ela, como boa esposa que havia sido, permanecera apaixonada por “seu eterno namorado”.

— Quando se conheceram, meu pai não tinha um tostão no bolso, e, mesmo assim, lhe dera tudo que lhe prometera: uma casa, filhos e problemas, como ele mesmo costumava contar.

Embora o menino não soubesse como lhe responder, apropriadamente, ele escutava, com muita atenção, às histórias repetidas que lhe contavam, pois, desta forma, era mais fácil fingir que aquela era apenas mais uma das muitas reuniões que aconteciam em sua casa, e, quem sabe, sentir a presença de sua vó. Teodoro, com esta mesma atenção, percebera que, naquela noite, enquanto as mulheres, sentadas na sala, conversavam, choravam e se abraçavam, os homens, do lado de fora da casa, permaneciam calados, em pequenos grupos. Seu pai, inquieto como de costume, andava em círculos, como se esperasse alguma coisa

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que o menino ousava presumir que nem ele mesmo deveria saber o que era.

Naquela noite, Teodoro sentiu-se sortudo por ainda ser criança. Por mais que detestasse ter sua inteligência subestimada por ser “novo demais”, com seus botões, ele parecia saber que sua idade era a única coisa que lhe permitia chorar, sentar-se no colo de sua mãe e estar entre as mulheres. De todos os homens que estavam em sua casa, apenas ele e Pedro, cuja idade também era oito anos, se comportaram daquela maneira. Àquela altura, Teodoro já havia entendido que todos os outros deveriam estar, lá fora, se esforçando para parecem “fortes”, como seu pai havia lhe dito que deveriam ser, enquanto ainda estavam no carro.

As horas se passaram, rapidamente, e, assim, a casa foi se esvaziando. Quando Marina, seu marido Luiz e seu filho Pedro passaram pelo portão, os meninos já estavam dormindo e, cada um deles, teve de ser carregado para uma direção: Pedro para o carro, Teodoro para sua cama. Embora, naquela noite, não tenham conseguido se despedir, na manhã seguinte, já estavam juntos outra vez. Como se costumava fazer naquela família, as irmãs decidiram que, enquanto os adultos estivessem no velório, as crianças permaneceriam em casa, sob os cuidados de Glória.

Preocupada com os meninos, ela fizera de tudo para lhes animar, dissera que a morte, além de ser irreversível, era a única certeza que todos nós tínhamos nesta vida e que, com vó Cida, não haveria de ser diferente, agora, deveriam guardar apenas as boas lembranças que tinham junto dela. Teodoro, por mais que tentasse compreender as boas intenções de sua tia, sentiu-se triste, mais uma vez. Por que esta palavra insistia em lhe incomodar? Aprender a ler e morrer: acontecimentos irreversíveis. A

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vida, realmente, era trágica, como ouvira alguém dizer. Assim, o menino fora acometido pela certeza de que, em toda a sua escola, ele deveria ser o único que, além de perder a avó, havia faltado naquele dia. As crianças e a correria. O exercício de matemática e a louça. Na escola, a vida continuava indiferente e, em algum momento, ele deveria descobrir como continuar a sua.

Assistindo Pixinguinha passear pelo quintal, Teodoro é acometido por uma forte dor no peito: avós eram mães das mães e, por isso, eram sagradas, assim como são os cachorros. No entanto, ser sagrada não havia impedido a morte de Vó Cida como, em um dia qualquer, também não haveria de impedir a morte de Pixinguinha. Como quem é pego em uma contradição, Teodoro correu para o banheiro e olhou-se no espelho: haveriam surgido novas rugas em seu rosto?

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amarelisa (2023)

textos de Maria Elisa Gomes, originalmente publicados no blog amarelisa.blogspot.com

- pensamento faísca - 15 de setembro de 2016

- ontem fiz chover saudade - 30 de setembro de 2016

- casa de afetos - 06 de março de 2017

- habitat - 28 de junho de 2017

- a história de magnólia - 26 de junho de 2018

- nunca soube dizer - 03 de janeiro de 2019

- teodoro e as coisas irreversíveis - 08 de junho de 2020

capa: fotomontagem com ilustração de Rodrigo Castilho e foto de Maria Elisa Gomes

concepção, ilustrações e projeto gráfico por Rodrigo Castilho

fonte: Garamond

papel: couchê fosco 150g

impressão: Futura Express

tiragem: única

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