Revista cinema

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SETEMBRO ‘16

C I N E M A Artigo: AMÁLIA RODRIGUES NO CINEMA Entrevista QUENTIN TARANTINO


2| editorial

EDITORIAL

A minha imagem, tal qual eu a via nos espelhos, anda sempre ao colo da minha alma. Eu não podia ser senão curvo e débil como sou, mesmo nos meus pensamentos. Tudo em mim é de um príncipe de cromo colado no álbum velho de uma criancinha que morreu sempre há muito tempo. Amar-me é ter pena de mim. Um dia, lá para o fim do futuro, alguém escreverá sobre mim um poema, e talvez só então eu comece a reinar no meu Reino. Deus é o existirmos e isto não ser tudo.


3| índice

5

Amália Rodrigues no Cinema

8

Director’s Chair: Quentin Tarantino



AMÁLIA RODRIGUES no cinema

5| amália no cinema

Além do seu legado no mundo da música, Amália Rodrigues teve também um papel fulcral na História do cinema nacional, como protagonista de dois dos maiores êxitos e dois dos maiores fracassos da nossa Sétima Arte.


6| amália no cinema

Em dois anos, iria do cume da glória ao abismo

No ano seguinte, o sucesso seria ainda maior

do fracasso. Foi no cinema que isso sucedeu mas,

com um filme com laivos de autobiografia:

em várias instâncias, a sua própria vida não foi

«Fado,

alheia aos altos e baixos da fortuna, que não

na realização de Perdigão Queiroga, sobre a

pouco terão servido para modular a dor na voz

ascensão à fama de uma fadista, Ana Maria,

da mais importante figura da música portuguesa

interpretada por Amália, a liderar um elenco com

do século XX. Amália Rodrigues, que faleceu há

nomes da craveira de Vasco Santana, António

10 anos, a 6 de Outubro de 1999, estreou-se no

Silva e Virgílio Teixeira.

cinema em 1947, já a carreira de cantora ia bem

O êxito de público foi ainda maior, embora o

alta, com uma década de sucessos aquém e além

facto do filme ter custado cerca do dobro do

fronteiras, embora muito longe dos cumes que

anterior lhe tenha mitigado o lucro. Porém, logo

viria a atingir.

em 1949, depois do que foram, provavelmente,

História

d’uma

Cantadeira»,

estreia

os dois maiores sucessos do cinema português Por essa altura, ainda a televisão nem era uma

até essa data, Amália protagonizou um dos seus

miragem, a participação no cinema era importante

maiores

para alargar e sedimentar o sucesso popular, e

Com um orçamento gigantesco e em co-produção

Amália estreou-se logo como protagonista, com

com o Brasil, o filme abordava a vida do poeta

um dos maiores êxitos da história do cinema

brasileiro Castro Alves e o seu amor pela

português:

portuguesa Eugénia Infante da Câmara (Amália),

«Capas

Negras»,

de

Armando

de Miranda. O filme tinha a Universidade de Coimbra por pano de fundo e o romance entre uma «tricana» e um estudante de direito ( Alberto Ribeiro) como ponto central. Segundo os registos da altura, só em Lisboa o filme esteve em cartaz 22 semanas e foi visto por mais de 200 mil espectadores. A canção v«Coimbra» ganhou a eternidade graças a este filme e tornou-se a música portuguesa mais popular internacionalmente.

desastres:

«Vendaval

Maravilhoso».

que trocara a aristocracia pelo palco.


7| amália no cinema

De ambição desmedida, o filme foi um fracasso monumental em todas as frentes e destruiu a carreira do seu realizador, José Leitão de Barros, um dos nomes mais importantes do cinema nacional, como filmes como «Maria do Mar» e «Camões». Hoje em dia, só dele resta a imagem, tendo-se perdido o som. A carreira de Amália prosseguiu centrada na música, só voltando pontualmente ao cinema. Em 1955, teve uma pequena participação num filme francês rodado em Portugal «Os Amantes do Tejo», de Henri Verneuil, imortalizando aí «Barco Negro», e em 1958 voltou aos papéis protagonistas em «Sangue Toureiro», de Augusto Fraga, a primeira longa-metragem portuguesa a cores, como a fadista que se apaixona por um toureiro, encarnado por Diamantino Viseu. Em 1964, a cantora regressou ao cinema com «Fado Corrido», já na fase descendente da carreira de realizador de Jorge Brum do Canto, que também surge no filme como actor, em mais um aristocrata que se apaixona por Amália, num filme co-escrito por David Mourão Ferreira. Embora a fortuna crítica não a tenha acompanhado aqui e em «Sangue Toureiro», a performance de ambos os filmes nas bilheteiras foi razoável. Tal não sucedeu com o último filme da sua carreira, «As Ilhas Encantadas», realizado em 1965 por Carlos Vilardebó e produzido por António da Cunha Telles, uma co-produção entre Portugal e França muito ambiciosa e onerosa, que seria um fracasso tal que fez falir o produtor, que, felizmente, conseguiria voltar mais tarde à mó de cima do cinema nacional. Rodado em Porto Santo, é o único filme em que Amália não canta e em que demonstra para além de quaisquer dúvidas os seus dotes de actriz. Infelizmente, o retumbante «flop» do filme fez Amália deixar o cinema de vez, só a ele regressando em 1991, num «cameo» no filme «Até ao Fim do Mundo», de Wim Wenders.



9| entrevista Quentin Tarantino

QUENTIN TARANTINO “A glória nocturna de ser grande não sendo nada! A majestade sombria de esplendor desconhecido...” P:

Sim, sonhar que sou por exemplo, simultaneamente, separada-

mente, inconfusamente, o homem e a mulher dum passeio que um homem e uma mulher dão à beira-rio?

R:

Ver-me, ao mesmo tempo, com igual nitidez, do mesmo modo,

sem mistura, sendo as duas coisas com igual integração nelas, um navio consciente num mar do sul e uma página impressa dum livro antigo. Que absurdo que isto parece!

E do alto da majestade de todos os sonhos, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. P:

Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monóto-

na e necessária, mandante e desconhecida?

R:

Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele

é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora. E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte.


10 | entrevista Quentin Tarantino

DIRECTOR ‘ S CHAIR E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma.

P: Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna? R: Um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. P: Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu? R: Mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância irmãos siameses que não estão pegados. O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é noite. Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não sossegue, jazo na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho.


11 | entrevista Quentin Tarantino

ROBERT RODRIGUEZ P: Depois que os últimos pingos da chuva começaram a tardar na queda dos telhados, e pelo centro pedrado da rua o azul do céu começou a espelhar-se lentamente, o som dos veículos tomou outro canto, mais alto e alegre, e ouviuse o abrir de janelas contra o desesquecimento do sol? R: Então, pela rua estreita do fundo da esquina próxima, rompeu o convite alto do primeiro cauteleiro, e os pregos pregados nos caixotes da loja fronteira reverberaram pelo espaço claro.

Sobre Tarantino... Encaro serenamente, sem mais nada que o que na alma represente um sorriso, o fecharse-me sempre a vida nesta Rua dos Douradores, neste escritório, nesta atmosfera desta gente. Ter o que me dê para comer e beber, e onde habite, e o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever – dormir - que mais posso eu pedir aos Deuses ou esperar do Destino? Tive grandes ambições e sonhos dilatados - mas esses também os teve o moço de fretes ou a costureira, porque sonhos tem toda a gente: o que nos diferença é a força de conseguir ou o destino de se conseguir connosco. Em sonhos sou igual ao moço de fretes e à costureira. Só me distingue

Saber que será má a obra que se não fará nunca. Pior, porém,

deles o saber escrever. Sim, é

será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita.

um acto, uma realidade minha

Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da

que me diferença deles. Na

minha vizinha aleijada. Essa planta é a alegria dela, e também por

alma sou seu igual. Bem sei

vezes a minha.

que há ilhas ao Sul e grandes

P: O que escrevo, e que reconheço mau, pode também

paixões cosmopolitas, e se

dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro

eu tivesse o mundo na mão,

espírito magoado ou triste?

trocava-o, estou certo, por

R: Tanto me basta, ou me não basta, mas serve de alguma maneira,

um bilhete para Rua dos

e assim é toda a vida.

Douradores. Talvez o meu

Um tédio que inclui a antecipação só de mais tédio; a pena, já, de

destino seja eternamente ser

amanhã ter pena de ter tido pena hoje - grandes emaranhamentos sem

guarda-livros, e a poesia ou a

utilidade nem verdade, grandes emaranhamentos onde, encolhido

literatura uma borboleta que,

num banco de espera da estação apeadeiro, o meu desprezo dorme

pousando-me na cabeça, me

entre o gabão do meu desalento o mundo de imagens sonhadas de

torne tanto mais ridículo quanto

que se compõe, por igual, o meu conhecimento e a minha vida...

maior for a sua própria beleza.



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