Relatório plástica rodmuniz

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TELÚRICO



memorial descritivo com respostas plåsticas para composiçþes musicais e literais

Rodrigo Muniz



A música Travessia do Araguaia e a vida da violeira Helena Meirelles foram os vetores para o meu projetar. Nas próximas páginas estão dispostas todas as etapas pelas quais passei, até chegar numa manifestação plástica – É importante lembrar que essas etapas não foram necessariamente planejadas, mas estão organizadas em ordem cronológica.



1. Observação A música Travessia do Araguaia me trouxe memórias plenas de períodos que eu passei no campo, tempos nos quais eu costumava viajar para fazendas (ambientes telúricos) e gostava muito de fazer fogueiras, ouvir histórias e ir noite a dentro nessas confraternizações calorosas. Identifiquei tanto na música do Tião e Pardinho, quanto na de Helena Meirelles, uma identificação muito forte com a natureza, são músicas que falam de lições que ela nos ensina, podendo ser mórbidas e profundas ou apenas representações de manifestações naturais, como pássaros e cachoeiras. Elas criam uma atmosfera rústica com caráter didádico e as vezes encantador, sempre passando alguma espécie de ensinamento ou mensagem. No caso da Helena são mais representações da natureza mesmo, mas em Tião e Pardinho encontramos lições mais severas que ela nos obriga a aprender.



2. Conceitualização Alguns conceitos me interessaram durante a observação: aprender com a natureza, fogo como ponto de comunhão, terra como material e método 3. Identificação com um tema Numa tentativa de complementar os conceitos encontrados, criei esta frase: experimentar com fogo e terra na busca por aprendizado. Essa frase me remeteu diretamente a materiais telúricos como o barro e a argila, que quando molhados podem ser modelados e quando prontos podem ser queimados para fixar a forma adquirida pelo processo. 4. Aprofundamento no tema Viajei para Tiradentes em busca de artesões que pudessem me ensinar formas de representar utilizando barro ou argila. Perguntando pela cidade, me falaram do Tião Paineiro, um artesão de 88 anos que mora na região e ainda está trabalhando com argila em sua casa.


“Trabalha com o pé, com a mão e com a memória”


5. Aprendendo com um mestre Fui até sua casa e o conheci pessoalmente, falei que queria aprender sobre a argila, saber de suas histórias e o que for que ele quisesse me contar. Tião me levou para sua oficina rusticíssima e começou a trabalhar um pouco de barro que já estava triturado. Anotei em etapas tudo que ele foi fazendo; na ocasião ele criou uma panelinha para feijoada utilizando uma engrenagem redonda circular como base para rotaçionar a argila e dar forma a panela. a) triturar as pedras até virarem farelo; b) acrescentar água devagar para criar a massa; c) mexer e apertar até se tornar consistente; d) moldar da forma como se deseja; e) deixar algumas horas no forno e depois no sol para secar e selar a forma

Quando eu fui embora ele me deu algumas esculturas como lembrança, um punhado de argila em pedra e disse que a vida é dura!


“A grossura da peça não pode ser nem demais e nem de menos”


6. O projeto ganha consistência Na busca pelo aprendizado eu encontrei o mestre, o mestre se tornou um catalisador do meu trabalho ao me dar o material e me ensinar o método para criar uma resposta plástica. O mestre Tião Paineira e as marcas que a vida lhe deixaram compactuam diretamente com a Travessia do Araguaia e com as músicas de Helena Meirelles, tornando-se assim meu objeto de estudo, a ideia de mestre que eu gostaria de representar como objeto plástico.



7. Praticando o método Triturei as pedras que ele me deu, penerei, triturei mais, até chegar numa espécie de pó, então acrescentei a água, criei a massa e comecei a modelar. Queria transformar aquela argila numa espécie de talismã, um objeto que representasse o que o Tião Paineiro tinha sido para mim: luz, calor e ensinamentos. Criei um rosto com três olhos fundos e cansados, do que pra mim seria um mestre genérico. Queria que fosse uma figura/forma capaz de projetar luz, mesmo com todas as marcas que lhe foram deixadas pelo tempo e pela vida. Com isso veio a ideia de transformar minha escultura num candelabro com a cabeça aberta e os olhos vasados, dessa forma quando a chama estiver acesa, a escultura estará projetando luz.




8. A chaga Antes que pudesse completar a escultura da forma como eu gostaria, fui atingido por uma febre e gripe intensas, que me deixaram sob os cuidados da família pelo resto da viagem. Será que fui rápido demais? Não tava mais conseguindo filmar nem fotogrfar, então coloquei a escultura no forno do jeito que estava e fui comer algo quente e descansar.

9. Análise Concebendo o meu adoecimento como parte do processo, talvez como uma pena por ter ido tão longe da minha zona de conforto, me senti tão juvenil e inocente quanto o jovem boiadeiro que questiona o sacrifício do boi em Travessia do Araguaia. O adoecimento encerrou a minha primeira fase de experimentação com a argila, impedindo-me de continuar produzindo até chegar no resultado ideal.



10. Encaminhamento futuro De volta ao Rio fiquei pensando que apesar de incompleto, o processo pelo qual passei já torna a escultura que eu criei uma resposta plástica coerente e funcional para a proposta do trabalho, uma vez que ela é exatamente o resultado de tudo aquilo que aconteceu, da forma como aconteceu, dotada de incertezas e falta de acabamento. Mas pensando no meu projeto como algo que tem continuidade, fiquei com vontade de representar a figura do Tião Paineiro em sí, e não a de um mestre genérico, uma vez que seu trabalho é contemplado de forma muito breve pelos catálogos de arte da região (assim como vários outros, não menos importantes). A matriz da ideia seria captar o molde de seu rosto e, com seu negativo, criar um novo candelabro que seja fiel à suas feições. A ideia completa seria retratar diversos artesões de Tiradentes dessa mesma forma e criar uma instalação de candelabros com a velha geração de mestres, que pode servir de registro histórico e artistico ao museu de Tiradentes.



11. Considerações finais Engraçado pensar que viajar e conhecer um mestre não teria acontecido se eu não tivesse fomentado esse pensamento a partir da observação e análise da obra de Helena Meirelles e Tião e Pardinho. É um processo em que a gente não tem total controle, é uma co-criação com a natureza, a partir da natureza. Foi bom para lembrar que se deixar levar pelo projeto é diferente de projetar – isso foi o ponto mais relevante pra mim, uma vez que eu ando sendo extremamente pragmático com meus projetos, dando ênfase aos prazos e não a qualidade representacional ou plástica.



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