Relatório anual da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro

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RELATÓRIO DE PESQUISA PARA A COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO RIO DE JANEIRO

POLÍTICAS PÚBLICAS DE MEMÓRIA PARA O ESTADO DO RIO DE JANEIRO: PESQUISAS E FERRAMENTAS PARA A NÃO-REPETIÇÃO

AGOSTO 2015


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EQUIPE

Urbanista Felipe Nin

Coordenador

Bolsistas de Iniciação Científica

José María Gómez

Ana Luiza Ramos

Professoras associadas Bethânia Assy Luciana Lombardo

Pesquisadoras Fernanda F. Pradal (Doutorado) Andrea Streva (Mestrado) Andrea Schettini (Treinamento e Capacitação Técnica) Ana Lima Kallás (Treinamento e Capacitação Técnica)

Diana Stephan Ellen Mendonça Lior Zalis Maria Izabel Varella Natália Guindani Rafaela Rupp

Design Editorial Rodrigo Muniz

Núcleo de Direitos Humanos/ PUC-Rio

Mariana Caldas (Treinamento e Capacitação Técnica) Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea Edifício da Amizade, Ala Frings, 7º andar (+55 21) 3527-1103 Rio de Janeiro, RJ – Brasil 22451-900 nucleodh@puc-rio.br


COLABORADORES Adrianna Setemy

Meynardo Rocha de Carvalho

Adriano Pilatti

Newton Leão

Alejandra Estevez

Pedro Teixeirense Ivo

Amanda Cataldo de S. Tilio

Rafael Cataneo Becker

Ana Carolina Antão

Paulo Cesar Ribeiro

Ana Miranda Bursztyn

Thula Rafaela de Oliveira Pires

Carla Osmo Carolina Câmara Pires dos Santos Carolina de Campos Melo Caroline Lyrio Eduardo Schnoor Fernanda Castro Hélio Cannone Lucas Pedretti Maria Cecília de Oliveira Adão Marina de Oliveira Reis


AGRADECIMENTOS A publicação deste relatório foi resultado da pesquisa empreendida pelo Núcleo de Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro para subsidiar o trabalho da CEV-Rio. A pesquisa, em andamento, contou também com uma ampla rede de participação de pesquisadores e especialistas que, embora não vinculados diretamente ao projeto, foram de fundamental importância para o seu aprimoramento, por meio de considerações e sugestões. Em primeiro lugar, agradecemos à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pelo auxílio concedido sem o qual este trabalho não poderia ter sido realizado. Gostaríamos de agradecer a Carla Osmo e Maria Cecília de Oliveira Adão por toda generosidade e pelas valiosas contribuições no processo de revisão de textos; a Adrianna Setemy, pelo ativo envolvimento e aporte para o projeto; a Ana Carolina Antão e a Rafael Cataneo Becker, pelo zelo, presença e disponibilidade por meio da pesquisa e da escrita de textos. Agradecemos às contribuições de Alejandra Estevez, Eduardo Schnoor, Meynardo Rocha de Carvalho e Pedro Teixeirense pelas atentas revisões que fortaleceram e refinaram a pesquisa, no que se refere a fontes bibliográficas e temas específicos. Agradecemos as contribuições de Ana Miranda Bursztyn, Newton Leão e Paulo Cesar Ribeiro, ex-presos políticos que, no exercício de rememoração, reconheceram o espaço do antigo DOPS/GB e do DOI-CODI para que as plantas pudessem ser elaboradas e apresentadas na Topografia da Repressão do presente relatório.

Um agradecimento especial aos docentes do Departamento de Direito da PUC-Rio: Adriano Pilatti por partilhar conhecimentos e experiências, além de ser um interlocutor permanente; e Carolina de Campos Melo, pelos conselhos e interpelações ao longo do desenvolvimento deste projeto de pesquisa. Ainda, gostaríamos de agradecer aos alunos do Departamento de História da PUC-Rio Hélio Cannone e Lucas Pedretti Lima e às alunas do Mestrado em Direito Fernanda Castro e Amanda Cataldo de S. Tilio pela colaboração nas tarefas de pesquisa. E, por fim, às estagiárias do Núcleo de Direitos Humanos (NDH), Clara Drumond, Mariana Frigério e Thais Detoni, que prestaram um importante apoio para o trabalho cotidiano de pesquisa.


SUMÁRIO PARTE I INTRODUÇÃO MARCO TEÓRICO-CONCEITUAL

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DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES E PRODUTOS

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Formação Teórico-Metodológica da Equipe Encontros de Trabalho Visitas Técnico-científicas

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Jornada de Ensino de História e Ditadura

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Workshop Internacional “Políticas de Memória na América Latina

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e na África do Sul: balanços, perspectivas e diálogos”

35

Encontro sobre Recomendações de Políticas de Memória para o

Estado do Rio de Janeiro

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Atividades em Função dos Produtos Livro dos Lugares de Memória do Estado do Rio de Janeiro

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Recomendações sobre Políticas Públicas de Memória

32

Ensino de História da Ditadura nas Escolas

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PARTE II INTRODUÇÃO TOPOGRAFIA DA REPRESSÃO RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE MEMÓRIA ENSINO DE HISTÓRIA DA DITADURA MILITAR NAS ESCOLAS ANAIS DO WORKSHOP INTERNACIONAL “POLÍTICAS DE MEMÓRIA NA AMÉRICA LATINA E NA ÁFRICA DO SUL: BALANÇOS, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS”

52 55 241 273 297


ANEXOS Políticas Públicas de Memória na Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai,

441

Peru e Uruguai Políticas Públicas de Memória em Outros Estados Brasileiros

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Políticas Públicas de Memória no Estado do Rio de Janeiro

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APRESENTAÇÃO

O presente relatório de pesquisa do projeto ‘Políticas Públicas de Memória para o Estado do Rio de Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não-repetição’, a cargo da equipe de investigação do Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), visa atingir dois objetivos principais e indissociáveis. O primeiro diz respeito à descrição integral do projeto, em termos de objeto, objetivos, marco teórico-metodológico de referência e, sobretudo, atividades e resultados planejados, abrangendo o período transcorrido entre maio de 2014 e agosto de 2015, bem como aquele que se estenderá entre agosto 2014 e maio de 2016, momento em que se dará por encerrada a pesquisa. O segundo objetivo, cerne deste relatório, refere-se a uma série de produtos definidos de comum acordo com a Comissão Estadual da Verdade do Estado do Rio de Janeiro (CEV-Rio), que decorrem de uma parcela substantiva das atividades desenvolvidas e em curso, e que são, portanto, componentes fundamentais dos resultados finais programados. Para tais propósitos, o relatório está dividido em duas partes distintas, porém interdependentes. Por fim, em anexo, encontram-se importantes ferramentas de trabalho produzidas ao longo da investigação.


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PARTE I

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa – contemplada pelo Edital 38/2013 da FAPERJ no marco do Programa intitulado “Apoio ao estudo de temas relacionados ao direito à memória, à verdade e à justiça relativas a violações de direitos humanos” - foi desenvolvida pelo Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da PUC-Rio (NDH), envolvendo os professores José María Gómez – coordenador do projeto -, Bethânia Assy e Luciana Lombardo. Devido a prorrogação do edital de fomento em maio do presente ano, levando ao projeto ter sua data de término no dia 31 de maio de 2016, a equipe de bolsistas sofreu alterações: os bolsistas de Iniciação Científica Natália Guindani, Rafaela Rupp e Lior Zalis e a bolsista de Treinamento e Capacitação Técnica, Andrea Schettini - ativos no projeto desde do seu início em maio de 2014 - participaram dos trabalhos até maio de 2015 e foram substituídos pelas alunas Diana Stephan, Ellen Mendonça, Ana Luiza Ramos (todas de Iniciação Científica) e Ana Lima Kallás (Treinamento e Capacitação Técnica), respectivamente. Nesse processo, também foi incorporada a equipe Mariana Caldas Pinto Ferreira como uma nova bolsista (Treinamento e Capacitação Técnica). Já as bolsistas Fernanda Ferreira Pradal (Doutorado), Andrea Streva (Mestrado) e Maria Izabel


Varella (Iniciação Científica) continuam participando da pesquisa até sua data final. Deve-se mencionar que a professora Luciana Lombardo, por motivos de saúde, precisou se afastar do projeto no começo deste ano. Este projeto tem por referência histórica o quadro maior dos processos de construção social da memória e da chamada justiça de transição no Brasil, caracterizados por desenvolvimentos tardios, lentos e até hoje incompletos, em razão da natureza da transição política e do principal dispositivo jurídico-político-ideológico: a lei de Anistia de 1979 e sua interpretação e narrativa dominante. De fato, esses processos começaram a mudar, discretamente, em meados dos anos 1990, com o trabalho da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos e, logo depois, da instalação da Comissão de Anistia, em 2002. Mas eles ganharam visibilidade e importância crescente a partir da segunda metade da década de 2000, por meio da intensificação e diversificação das medidas governamentais de reparação, verdade e memória; da expansão das demandas sociais por memória, verdade e justiça nos espaços públicos; e de um forte impulso à judicialização nacional e internacional, que ainda enfrenta, contudo, pesados bloqueios no âmbito interno. Por isso e em decorrência dessa dinâmica geral, assiste-se à criação, instalação e funcionamento da primeira comissão de verdade oficial no país (a Comissão Nacional da Verdade - CNV), voltada para o esclarecimento das violações de direitos humanos perpetradas pelo Estado no período da ditadura militar. E foi a partir da institucionalização da CNV que se deflagrou um processo de formação de numerosas comissões estaduais, municipais e setoriais no país, dentre as quais a Comissão Estadual da Verdade do Estado do Rio de Janeiro (CEV-Rio). O mandato da CEV-Rio consiste em elucidar a verdade dos fatos sobre violações de direitos humanos no Estado do Rio de Janeiro durante a ditadura, subsidiar o trabalho da CNV e, por fim, recomendar medidas e políticas públicas de não-repetição de violações de direitos


humanos, promovendo a reconstrução histórica. Daí a razão de ser deste projeto de pesquisa, que conta com o apoio da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa (Faperj), visando a contribuir com algumas das tarefas primordiais da CEV-Rio vinculadas às políticas de não-repetição. Dois eixos fundamentais do trabalho da CEV-Rio orientaram, portanto, o projeto: i) a construção embasada e consistente de recomendações de políticas públicas de memória a serem apresentadas ao poder público em seu relatório final; e ii) a elaboração de ferramentas que subsidiem a CEV-Rio em sua função pedagógica de reconstrução da história e de ampla promoção da memória na sociedade, bem como em sua função reparatória em favor daqueles atingidos pela violência de Estado durante a ditadura no estado do Rio de Janeiro. Nesse sentido, o projeto propôs uma série de objetivos e resultados que se apresentam de forma conjunta e interdependente. Foram eles: i) a elaboração de um livro dos lugares de memória no Estado do Rio de Janeiro com a finalidade de consolidar as informações existentes sobre cada local abordado (cartografia, imagens e texto) com o objetivo de publicizar sua história e transmitir a memória. ii) a publicação de um livro sobre processos e políticas de memorialização decorrentes da realização de um workshop internacional com a presença de especialistas, formuladores de políticas públicas e gestores de espaços de memória de outros países da América do Sul e da África do Sul. Isto possibilitou exercícios de análise de comparativa das experiências e processos de memorialização em outros países e no Brasil a respeito de educação formal e informal sobre as violações de direitos humanos em passados recentes de repressão estatal e violência política. iii) um conjunto de recomendações de políticas públicas de memória para o estado do Rio de Janeiro, inclusive com recomendações específicas sobre o ensino da História da Ditadura nos ensinos fundamental e médio.


Cabe esclarecer que, inicialmente, o projeto concebia a elaboração de um catálogo bibliográfico sobre a produção acadêmica nacional de livros e periódicos voltados para o tema da ditadura militar como um dos seus produtos finais. No entanto, no decorrer da pesquisa, tal catálogo perdeu a razão de ser devido à prioridade que assumiu o levantamento e o estudo da literatura sobre os diversos temas envolvidos nos três produtos acima mencionados. Então, esta primeira parte do relatório se destina a apresentar o desenvolvimento do projeto, desde o marco teórico que estruturou a pesquisa até a realização de atividades específicas em função dos produtos previsto ao longo de 15 meses de trabalho. É importante salientar que este projeto possui uma particularidade: embora apresente os produtos que irão subsidiar o trabalho da CEV-Rio, suas atividades de pesquisa se encerrarão apenas em maio de 2016. Isso significa dizer que, embora sejam apresentados como resultados finais da pesquisa, eles são, em certa medida, parciais, pois ainda virão a ser objeto de maior desenvolvimento. Neste sentido, esta parte se destina a apresentar o marco teórico que foi a base da pesquisa e da elaboração dos seus produtos, e também uma consideração sobre o desenvolvimento das atividades, englobando a formação teórica da equipe, as visitas de trabalho e a organização dos eventos de Jornada de História e um Workshop Internacional sobre Políticas Públicas de Memória na América do Sul e na África do Sul.


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MARCO TEÓRICO-CONCEITUAL


Pela natureza do objeto, dos objetivos e dos resultados esperados, o projeto se inscreve em um campo de pesquisa das Ciências Sociais e Humanas latino-americanas que se configurou, ao longo das últimas décadas, em torno das temáticas dos direitos humanos, da memória e da justiça transicional. Com fortes conexões transnacionais nos planos da teoria e dos processos históricos contemporâneos, o que o impulsionou, desde o início, era a busca de marcos teóricos e metodológicos adequados que permitissem dar conta da emergência e transformações de fenômenos vinculados à violência política e à repressão estatal em grande escala (ditaduras militares, conflitos armados internos) que marcaram a história recente de sociedades da região e que, até hoje, as obrigam a confrontar-se com os legados desse passado traumático (Jelin, 2004).

com desdobramentos e mudanças profundas nos períodos posteriores de normalização institucional democrática, até a atualidade. Para além das diferenças nacionais expressivas, foram nas transições que o discurso dos direitos humanos (que tinha irrompido na década de 1970 na luta dos familiares e de outros atores sociais - igrejas, associações profissionais, redes de ativistas transnacionais – por causa das prisões, torturas sistemáticas, assassinato e desaparecimento de opositores políticos perpetrados pelas ditaduras militares) ganhou reconhecimento legal e legitimidade sociopolítica inéditos na história dessas sociedades. Foi também ao longo dos processos complexos e incertos de transição, marcados pela luta em nome dos direitos humanos, que emergiu a questão da memória com uma intensidade e capacidade de mobilização desconhecida em relação às exigências de verdade, justiça e reparação. A memória passou a ser relacionada ao imperativo do “Nunca Mais” (ou da “não repetição” de experiências semelhantes no futuro) e à consolidação da própria identidade dos movimentos sociais de direitos humanos. Isso ocorre em um contexto de acirramento dos conflitos políticos em torno das memórias do passado, envolvendo os movimentos de direitos humanos, os militares e os governos (com respaldos variáveis nos planos social, partidário e midiático) como principais protagonistas, ao mesmo tempo em que se assiste à cristalização de narrativas de sentido e interpretações hegemônicas. Por exemplo, no caso argentino, um conjunto de narrativas públicas disputou a hegemonia da memória coletiva. A “guerra contra a subversão”foi a conceitualização dominante na narrativa militar entre 1976 e 1983. Os “desaparecidos” e as “violações de direitos humanos pelo Estado terrorista” foram os eixos em torno dos quais se articulou a memória do horror entre 1983 e 1989 (Dussel; Pereyra; 2007). Os governos constitucionais pós-ditadura apelaram com frequência a uma das versões da memória do horror: a “teoria dos dois

Esse campo apresenta uma série de características: i) a interdisciplinaridade (embora os enfoques disciplinares sobre ditas temáticas ainda prevaleçam, como o revela a gravitação do Direito Internacional no âmbito dos direitos humanos, o da Ciência Política no da justiça transicional, e o da História no da memória); ii) uma acentuada heterogeneidade de abordagens, perspectivas teóricas e usos conceituais; iii) a integração das dimensões subjetivas, simbólicas e institucionais; iv) as lutas e conflitos políticos no presente entre diversos atores e forças sociais em torno da(s) memória(s) do passado; v) o caráter histórico e mutável da construção social da memória, com seus silêncios e esquecimentos, enquanto sentido e narrativa de passados violentos; enfim, vi) o lugar que a memória ocupa no clima cultural e nas disputas políticas e ideológicas de uma sociedade (Jelin, 2004). O surgimento e desenvolvimento desse campo de pesquisa são indissociáveis das condições históricas, dos processos sócio-políticos e das complexas dinâmicas de transformação que se abriram, especialmente nos países do Cone Sul (Argentina, Brasil, Chile e Uruguai), a partir dos anos 1980, durante as “transições para a democracia”,

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demônios”.1

essa uma memória ainda limitada. Assim, no Brasil e no Uruguai, em função das transições “negociadas” sob forte tutela militar, os governos civis dos presidentes Sarney (eleito indiretamente, em 1985, pelo colégio eleitoral instituído pela ditadura) e Sanguineti (eleito em 1986 por meio de eleições democráticas) seguiram a primeira alternativa, em nome da “reconciliação” e “pacificação nacional” (Telles e Safatle, 2010; Lessa, 2013). O dispositivo jurídico-político-ideológico central que dava sustentação à decisão de “virar a página”, assegurando impunidade e promovendo esquecimento, eram as leis de anistia aprovadas pelos respectivos congressos em benefício dos repressores, ex-presos e perseguidos políticos (com uma diferença importante: no caso brasileiro, além de não contemplar a totalidade dos presos políticos e banidos, o congresso que aprovou a lei de anistia, em 1979, estava controlado pela ditadura; no caso uruguaio, o congresso que aprovou a Ley de Caducidad , em 1986, negociada entre os partidos políticos e o regime militar, tinha plena legitimidade democrática). Por isso, diante da posição oficial dos governos civis de não investigar os crimes cometidos, obstruir a justiça e implementar uma política deliberada de esquecimento, quem levou à frente a busca de informações e fez uma investigação minuciosa sobre a máquina repressiva, as vítimas e os nomes dos responsáveis diretos nos dois países, foram os familiares, ex-presos políticos e organizações de direitos humanos, através dos relatórios “Nunca Mais” (Brasil: Nunca Mais, 1985; Serpaj, 1992).

Já no caso brasileiro, a macronarrativa hegemônica da “reconciliação pelo esquecimento” (Atencio, 2014), predominante desde início da década de 1980 até meados dos anos 2000, baseia-se na lei de anistia de 1979 e na sua interpretação dominante, formulada ainda no período ditatorial, que a considerava “recíproca” nos benefícios (militares e perseguidos políticos) e “negociada” com a oposição no congresso. Em paralelo, já na dinâmica da transição política, propagaram-se autobiografias e biografias, filmes ficcionais e documentários sobre a ditadura sem, no entanto, colocar em questão o não tratamento dado pelo Estado à questão dos crimes perpetrados durante a ditadura e seus legados. Trata-se de uma narrativa que expressa uma memória cultural do período, mas que não propõe nem avança em processos de memorialização mais amplos nem em políticas de memória específicas. Essas demandas de memória, verdade e justiça ao Estado, não obstante seu isolamento social e político, só serão defendidas pelos familiares de mortos e desaparecidos, grupos de ex-presos políticos e organismos de direitos humanos. Será necessário esperar a segunda metade do decênio de 2000, durante o segundo mandato do governo Lula, para a emergência de uma outra macronarrativa hegemônica, a saber, a da “reconciliação via memória” (Atencio, 2014), embora seja

1 A teoria dos dois demônios consolidou a ideia da dupla responsabilidade pelo golpe e ditadura militar na Argentina: durante os anos 1970 o país teria sido vítima

Na Argentina, por sua vez, em razão da transição “por ruptura” que se desencadeia após a derrota na guerra das Malvinas (e a conseguinte perda de poder de barganha dos militares e a mobilização social crescente do movimento de direitos humanos), o governo eleito do presidente Alfonsín, em 1983, optou pela via do“acerto de contas”, tomando uma decisão sem precedentes: a implantação de uma comissão de verdade para investigar as mortes e desaparecimentos das pessoas (CONADEP) e submeter à justiça penal os membros das três juntas

de violência dos militares e dos grupos armados guerrilheiros, ou seja, dois demônios, de forças equiparáveis e em confronto. Tal teoria contribuiu para a legitimação, durante o período transicional, da impunidade em relação aos agentes repressivos, pois, segundo essa lógica, eles estariam agindo em resposta a outro tipo de violência e, para isso, deveriam usar as mesmas armas de seus inimigos, na chamada “guerra suja”. Cf. BAUER, Caroline S. A produção dos relatórios Nunca Mais na Argentina e no Brasil: aspectos das transições políticas e da constituição da memória da repressão. Revista de História Comparada, v.2, n.1, Rio de Janeiro, UFRJ, 2008.

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militares e alguns dirigentes das organizações guerrilheiras. Uma decisão e dois mecanismos inovadores que, na década de 1990, passarão a ser reconhecidos, internacionalmente, pela literatura acadêmica, o direito, os tribunais, as instituições e as ONGS e redes de ativistas como elementos constitutivos da noção emergente de justiça transicional. O relatório “Nunca Mais” da comissão, embora acolhesse na sua narrativa a teoria dos “dois demônios” (militares e guerrilha) para explicar o ciclo de violência política que assolou o país nos anos 1970, foi uma fonte crucial no processo penal que condenou os membros das juntas militares pelos crimes cometidos. Enquanto se multiplicavam as marchas do movimento de direitos humanos, instituíam-se datas de comemoração e se disseminavam sinalizações e marcas de memória em homenagens às vítimas (Feld e Franco, 2015; Crenzel, 2008). Um grande retrocesso, entretanto, aconteceu dois anos depois quando esse mesmo governo sancionou as leis de anistia para evitar a proliferação dos processos penais e deter a onda de rebeliões militares, processo que culminou em 1989 e 1990, no governo Menem, com os perdões presidenciais dos condenados em 1985. No Chile, no marco de um contexto regional e internacional de aceleradas mudanças, e com Pinochet ainda no comando das forças armadas, um poderoso movimento de direitos humanos e de forças sociais manteve viva a memória da violência política, demandando verdade e justiça (Stern, 2010; Collins, 2010). Nesse contexto, o presidente eleito, Patricio Aylwin, impulsionou, em 1990, uma comissão de verdade para investigar a conflituosa questão dos mortos e desaparecidos durante a ditadura. Contraditoriamente, manteve em voga a lei de anistia de 1978 sancionada por Pinochet, que obstruía a abertura de novos processos penais voltados para os responsáveis dos crimes cometidos. Essa ação foi sustentada pelo então presidente do Chile como a “justiça possível” na democracia incompleta chilena. O relatório final da Comissão Rettig foi um documento irrefutável da violência estatal e dos crimes cometidos pelas forças armadas e de segurança. Em

suma, as experiências desses dois países tiveram um grande impacto regional e internacional, tanto no plano legal e discursivo das instituições internacionais de direitos humanos e das redes transnacionais de ativistas, quanto nos estudos comparativos sobre as temáticas dos direitos humanos, da memória e da justiça transicional (Jelin, 2004 e 2009; Sikkink, 2011). A partir da década de 1990 e, sobretudo, no primeiro decênio do novo século, os processos sócio-políticos desses quatro países revelaram, no entanto, importantes mudanças e desdobramentos inesperados. Em termos de implementação de políticas de justiça transicional, assistiram-se aos julgamentos penais amplos na Argentina (com anulação das leis de anistia) e seletivos no Chile e no Uruguai (apesar das leis de anistia, mas com mudança em suas interpretações); aos programas extensos de reparação às vítimas em todos os países; às comissões nacionais da verdade no Brasil, Uruguai e Chile; às reformas das instituições militares na Argentina, etc. Ao mesmo tempo se desenvolveram e avançaram, a velocidade e alcance variáveis, processos mais amplos de memorialização e políticas públicas específicas de memória que se expressaram na criação de centros de memória, memoriais, museus, sinalizações e marcas das experiências ditatoriais do passado (Jelin, 2002, 2004 e 2009; Atencio, 2014; Lessa, 2013; Stern, 2010).2 Cabe salientar, entretanto, que tais mudanças aconteceram em estreita interação com as profundas transformações geopolíticas, econômicas, ideológicas e culturais que acompanharam o fim da guerra fria, a aceleração e intensificação dos processos de globalização, a multiplicação de conflitos armados e “novas guerras”, que desestabilizaram diversas regiões e países do planeta. Nesse sentido, destaca-se a centralidade normativa alcançada pelos direitos humanos,

2 Sobre estas últimas experiências nos quatro países, ver os Anais do Workshop Internacional do presente relatório.

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junto aos valores da democracia e do próprio capitalismo neoliberal, na ordem global liberal pós-guerra fria, sua transformação conceitual, incorporação no direito humanitário e no direito penal internacional, além de sua hegemonia discursiva entre as instituições internacionais e os atores não estatais (Moyn, 2010; Gómez, 2009). Entre outras implicações decorrentes dessa “revolução dos direitos humanos” e do “humanitarismo compassivo” que tomou conta do clima ideológico da época (Gómez, 2012 e 2014), surge e se difunde a noção e a prática internacionalizada de justiça transicional, que envolvem círculos acadêmicos, instituições e ONGs internacionais, redes de ativistas e governos. Enquanto que, em distintas partes do mundo, multiplicavam-se os processos concretos que adotavam políticas e mecanismos de justiça transicional (comissões de verdade, programas de reparação, julgamentos penais, reformas de instituições etc.) como resposta aos crimes contra a humanidade e às graves violações dos direitos humanos do passado recente (Olsen, Leigh e Reiter, 2010; Roth-Arriaza e Mariezcurrena, 2006).

canálise), especialmente na Europa. Resgatam-se trabalhos clássicos do período entre guerras (Halbwachs, 1994 e 1997; Benjamin, 2007) enquanto cresce um fecundo e diversificado debate contemporâneo no campo acadêmico (Kosselleck, 2012; Nora, 2009, Ricoeur, 2007; Assman, 2013; Pollak, 2006; Reyes Mate, 2010; LaCapra, 2008; Todorov, 2000; Sarlo, 2006; Dosse, 2004). Este debate teórico teve uma influência crucial na configuração e no desenvolvimento teórico do campo de pesquisa latino-americano em torno das temáticas dos direitos humanos, da memória e da justiça transicional. No que diz respeito à memória, ela não é entendida como uma mera recordação subjetiva do passado, baseada na experiência direta e transmissão comunicativa entre épocas e gerações. Nem é compreendida como destinada a desvanecer-se com a morte das pessoas afetadas pela lembrança ou pela simples passagem do tempo e o inexorável trabalho do esquecimento para, a partir disso, tornar-se um objeto distante da pesquisa histórica rigorosa (Koselleck, 2012). O que o mundo atual mostra é um significado inédito da memória na cultura contemporânea e um papel de importância crescente na vida pública e política (Assman, 2011; Huyssens, 2004). Esse protagonismo é reforçado com as memórias traumáticas de acontecimentos violentos do passado recente, em que a memória experiencial dos testemunhos da época se empenha em traduzir-se em uma “memória cultural de posteridade” (Assman, 2011:19). Vale dizer que os processos de recordação, nos níveis social e institucional, convertem a memória em algo vivo e aberto, para o qual se requer não somente suportes materiais que a protejam (centros de memórias, memoriais, monumentos, museus, marcas e sinais no espaço público, arquivos, relatórios de comissões de verdade, registro dos processos penais etc.), bem como políticas específicas de memória que a impulsionem. Mas a memória cultural ou social, que expressa os sentidos e os marcos interpretativos desse passado (e que depende para tanto de suportes e de políticas concretas de memória), não pode subtrair-se das relações de poder e

Em paralelo à globalização dos direitos humanos, e em convergências e tensões com ela, assiste-se à culminação de um movimento transnacional da memória traumática, como parte da ascensão da memória na cultura e na política contemporânea (Huyssens, 2004 e 2013; Traverso, 2011). As raízes remontam ao pós-II guerra mundial, como consequência do genocídio nazista e dos crimes de guerra julgados pelo tribunal de Nuremberg imposto pelas potências vencedoras. De fato, a mobilização da memória como fenômeno social se desencadeia a partir das décadas de 1970 e 1980, encontrando no Holocausto uma espécie de paradigma ou modelo exemplar do qual se foram alimentando as memórias de outras experiências históricas mais recentes ou mais distantes de massacres e atrocidades em massa, em distintos lugares do mundo. Ao mesmo tempo, a memória como categoria de pensamento se desenvolve a partir das mais diversas perspectivas (Filosofia, História, Sociologia, Antropologia, Estudos Culturais, Psi-

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dominação que constituem a sociedade em momentos e cenários determinados de sua história, e, consequentemente, das lutas políticas entre memórias rivais, com seus esquecimentos e silêncios, além de suas pretensões de reconhecimento e de hegemonia.

expressaram distintas formas de resistência à ditadura, constituindo verdadeiros reservatórios e suportes materiais e simbólicos da memória neles contida. São, portanto, territórios de memória de repressão e resistências, onde se põem em jogo a construção e a transmissão do conhecimento e do significado da razão política que comandou a violência do passado, os quais, sem deixar de estar voltados para o futuro (no imperativo incerto, porém ética e politicamente indispensável na democracia, da “não repetição” ou do “nunca mais”), estão ancorados no processo político atual de interações estratégicas, subjetividades, evocação de sentidos, formas de ação coletiva, decisões e impactos que envolvem os principais atores sociais e estatais. Dentre os protagonistas, cabe destacar as associações e coletivos sociais que não querem esquecer os crimes da ditadura nem os legados de violência institucional e social que ainda organizam o presente, e que lutam, em nome dos direitos humanos, por memória, verdade e justiça. Em antagonismo com os anteriores, encontram-se grupos e instituições que, dentro e fora do Estado, apoiam e justificam a repressão estatal extrema do passado contra opositores políticos, acusando as demandas por memória, verdade e justiça de “revanchismo”, como possíveis ameaças à reconciliação nacional. Por fim, é preciso ressaltar o papel do próprio governo que, na última década, com não poucas ambivalências e contradições internas, tanto discursivas quanto práticas, tomou iniciativas e intensificou políticas importantes em matéria de reparação, verdade e memória, mas não de justiça (por causa da vigência da lei de anistia e de sua interpretação dominante), invocando explicitamente os direitos humanos e a justiça transicional. Tais políticas, no entanto, têm se mostrado, além de tardias e inconclusas, bastante desiguais: enquanto os programas de reparação às vítimas alcançaram um patamar elevado de realização, e se deram passos significativos na produção e sistematização de conhecimentos sobre a natureza, responsabilidade e consequências da violência do estado durante a ditadura (acervo de arquivos, depoimentos de testemu-

Esse campo de pesquisa em expansão, entretanto, não deixa de revelar que as relações que se estabelecem entre as temáticas dos direitos humanos, da memória e da justiça transicional mostram tensões, oposições e diferenças difíceis de superar. Isso fica evidente na maneira em que se contrapõem, sob a roupagem da indiferença recíproca, os estudos da memória e os da justiça transicional a respeito da questão da memória histórica e social, em geral, e das políticas de memória, em particular (Pinto, 2013). Ainda assim, como acima exposto nos exemplos de Brasil, Argentina, Chile e Uruguai durante as transições e pós-transições, não se pode negar que entre elas também existem numerosas sobreposições, pontos de confluência e complementariedades. Por isso, não surpreende o esforço de autores na tentativa de aproximar os estudos da memória e os da justiça transicional, de modo a beneficiar-se de perspectivas e insights multidisciplinares para uma melhor compreensão e análise da imbricação dinâmica que se desenvolve entre o processo mais amplo e durável de construção da memória social (e dos ciclos de memória) e os processos mais restritivos e intensos de memorialização e de políticas concretas de memória levadas à frente pelo Estado e por diversos atores sociais em cenários e conjunturas determinadas (Atencio, 2014; Lessa, 2013; Barahona de Brito, 2011; Jelin, 2009). Afinal, é através dessa complexa e conflituosa dinâmica que uma sociedade constrói, em contextos históricos específicos e disputas políticas no presente, os sentidos da experiência de seu passado recente e as expectativas de futuro (Koselleck, 2012). Este projeto de pesquisa aborda, sem pretensão de exaustividade, lugares no estado do Rio de Janeiro, onde o regime militar operou com seus dispositivos de vigilância, repressão e aniquilamento, e onde se

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nhas, relatórios de diferentes comissões oficiais - especialmente o da recente Comissão Nacional de Verdade), os avanços nas políticas públicas de memória, nos processos memoriais mais amplos e na construção da memória social sobre a ditadura ainda se revelam muito precários, fragmentários e descontínuos. A despeito da configuração de uma narrativa maior de “reconciliação pela memória”, porém uma memória limitada, pois não pretende questionar nem a origem nem o caráter dessa reconciliação. Nesse sentido, o estado do Rio de Janeiro não é uma exceção no cenário nacional, apesar de ter sido uns dos epicentros principais do acionar repressivo do regime militar. Por isso, este projeto de pesquisa aspira a contribuir, em alguma medida, através dos resultados previstos, para os processos de ressignificação dos lugares de memória da ditadura no estado.

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DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES E PRODUTOS


FORMAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA

No primeiro semestre de atividades, foram realizados nove encontros de formação teórico-metodológicos com toda a equipe, nos quais foram definidos o conteúdo do projeto, seus objetivos e cronograma. Esses encontros de formação também funcionaram como espaços de discussão substancial da bibliografia levantada a priori sobre memória, ditadura militar brasileira e políticas de memória e reparação. Além disso, foram realizados encontros mensais para averiguação do andamento das frentes de pesquisa, com acompanhamento e avaliação das atividades programadas para cada mês.

DA EQUIPE No início das atividades do projeto, houve uma preocupação em delimitar a metodologia de pesquisa, levando em consideração a problemática do lugar como um reservatório de memória e nas possibilidades de ressignificação do espaço público. Por isso, uma prerrogativa que se mostrou fundamental para concretizar os resultados acordados com a FAPERJ e com a CEV-Rio foi a formação da equipe em torno da bibliografia sobre memória e história do passado recente.

Junto à leitura das políticas de memória na América do Sul levantadas pela Universidade do Chile, foram estudadas as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujo escopo tenha sido memória, regimes ditatoriais e justiça de transição; os relatórios finais das Comissões da Verdade do Chile e da Argentina. E, ainda, foram lidos autores que são referenciais para a temática tais como Walter Benjamin, Kathryin Sikkink, Elizabeth Jelín, Tzvetan Todorov, Reyes Mate, Aleida Assmann, Pierre Nora e, especificamente no caso brasileiro, Carlos Fico, Demian Melo, entre outros.

Para tanto foi realizado um levantamento bibliográfico inicial pertinente ao tema e aos resultados almejados. Nesse sentido, a primeira fase do projeto, entre os meses de junho e novembro de 2014, consistiu no estudo da literatura contemporânea sobre memória, justiça de transição, relações entre memória, história e testemunho, historiografia específica do período da ditadura e da transição brasileira, bem como das experiências internacionais concretas de políticas e lugares de memória. Além disso, foram realizados levantamentos sobre núcleos de pesquisa de justiça de transição e estudos de memória no plano internacional e sua produção (especialmente aqueles que privilegiam o tema dos processos de memorialização e políticas concretas de memória); sobre bibliografia que auxiliasse o mapeamento dos lugares de memória no Estado do Rio de Janeiro; sobre a produção acadêmica circunscrita no Brasil entre os anos 1964 e 2014 com o tema da ditadura militar brasileira; e, ainda, um levantamento das principais políticas públicas de memória realizadas na América do Sul, principalmente os casos da Argentina, Chile e Uruguai, cujas experiências estimularam a discussão e conscientização da vivência subjetiva da memória no espaço coletivo.

Como atividade adicional não prevista anteriormente, no primeiro semestre de atividades, entre agosto e dezembro de 2014, foi oferecida uma disciplina no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio, intitulada “Tópicos Especiais em Direitos Humanos: memória, verdade e justiça” coordenada pelos professores José María Gómez e Bethânia Assy, e com a colaboração da professora Luciana Lombardo, que ofereceu o suporte de formação necessário para os membros da equipe de pesquisa (inclusive alunos de graduação). Essa disciplina, aberta a outros estudantes interessados na temática, contou com 15 encontros divididos entre os eixos: i) memória e verdade em perspectiva histórica; ii) experiências históricas latino-americanas em perspectiva comparada e iii) comissões de verdade na justiça transicional. Além de propiciar o núcleo-rígido de bibliografia,

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que viria a nortear os trabalhos de pesquisa da equipe, a disciplina serviu como suporte complementar para consolidar a formação teórica e metodológica sobre o projeto e, consequentemente, os seus resultados finais. É importante pontuar que esse levantamento bibliográfico não se restringiu aos meses iniciais, mantendo-se ao longo do projeto. Com o avanço dos meses, as discussões passaram a privilegiar o estudo dos locais e eventos previamente definidos pela equipe, em função da realização dos seus produtos finais. As leituras ofereceram o suporte primário para o mapeamento dos lugares de repressão. Porém, a atividade de identificação desses lugares demandava também uma pesquisa das informações pertinentes e específicas do próprio lugar. Além disso, o processo de escrita envolveu várias etapas de revisão, inclusive por generosas contribuições dos convidados externos ao projeto e especialistas nos temas, o que significou, evidentemente, uma formação sistemática e continuada de toda a equipe, sobretudo dos bolsistas de Iniciação Científica. Em suma, a equipe consolidou sua formação teórica por meio de encontros sistemáticos quinzenais, levantamento de bibliografias primária e secundária e participação na disciplina sobre direito à verdade, à memória e à justiça ministrada pelos professores associados ao presente projeto. Esse esforço foi necessário para delimitar a metodologia de trabalho que moldou os produtos que foram acordados com a CEV-Rio, bem como para dar continuidade ao projeto até seu término em maio de 2016.

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ENCONTROS DE TRABALHO

de cooperação no que se refere à metodologia de mapeamento de lugares de memória. No Rio de Janeiro, os membros da equipe do projeto participaram das visitas aos prédios onde funcionaram o antigo DOI-CODI e o antigo DOPS, em setembro e novembro de 2014, respectivamente. As duas visitas aconteceram em diligências solicitadas pela CNV e pela CEV-Rio, e foram acompanhadas por ex-presos políticos, oferecendo um material elementar para a produção dos produtos do projeto, especificamente a escrita dos verbetes sobre locais de repressão e das recomendações de políticas públicas para o Estado do Rio de Janeiro.

(i) Visitas técnico-científicas Durante o planejamento do Workshop sobre políticas de memória, foi identificada a necessidade de realizar encontros com especialistas na temática da memória para definir, com maior precisão, o objetivo do evento e seu planejamento. Entre agosto e outubro foram realizados dez encontros com gestores de espaços de memória e acadêmicos envolvidos diretamente no tema e seis visitas técnico-científicas a espaços de memória nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, além das cidades de Córdoba, Rosário e Buenos Aires na Argentina. A escolha por esses lugares específicos se justificou por eles serem centros de produção de referência sobre o tema em questão, bem como por terem sido os primeiros centros destinados a sensibilizar a comunidade política sobre o passado recente de violações de direitos humanos.

Já na Argentina, foram realizadas três visitas técnicas a espaços de memória pioneiros, muito distintos entre si, nas quais ocorreram reuniões com seus respectivos gestores: Ludmila Catela, no Archivo Provincial de la Memoria (Córdoba), Rubén Chababo, no Museo de la Memoria (Rosário) e Eduardo Jozami, do Centro Cultural de la Memoria Haroldo Conti no espaço Ex-ESMA (Buenos Aires). Além dessas visitas e reuniões de trabalho, foram realizados outros cinco encontros de trabalho com especialistas em políticas de memória. As reuniões ocorreram com Valeria Barbuto e Gonzalo Conte na organização não-governamental Memoria Abierta e com Matias Cerezo no Centro Cultural de la Memoria Haroldo Conti, ambos sediados no espaço Ex-ESMA (Buenos Aires); com Elizabeth Jelin, no Nucleo de Estudios sobre Memoria do Instituto de Desarollo Económico y Social – IDES (Buenos Aires); com Fabiana Rousseaux, no Centro de Asistencia a Víctimas de Violaciones de Derechos Humanos Dr. Fernando Ulloa (Buenos Aires); além de uma entrevista com a Dra. Patricia Tappatá Valdez, diretora geral do livro “Memorias en la Ciudad”, publicado por Memoria Abierta em 2009, produto pioneiro de mapeamento de lugares de memória.

Na cidade de São Paulo foram realizadas duas reuniões: uma com Katia Felipini Neves, coordenadora do Memorial da Resistência de São Paulo, e outra com Maurice Politi, diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política de São Paulo. Além disso, foi feita uma visita técnico-científica ao Memorial da Resistência de São Paulo, único espaço institucionalizado de memória sobre a ditadura existente no Brasil. Cabe assinalar que as reuniões de trabalho e a visita técnica foram bastante esclarecedoras acerca dos processos de concepção museológica do Memorial da Resistência de São Paulo e das distintas frentes, já desenvolvidas e em andamento, em termos de atividades culturais e pedagógicas e de futuros projetos de mapeamento de lugares na cidade de São Paulo, assim como de produção de informação a esse respeito. Esses encontros foram importantes para estreitar vínculos

As distintas visitas e reuniões com gestores dos referidos espaços de memória na Argentina foram especialmente informativas no que se

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refere às diversas possibilidades de concepção de espaços e sua multifuncionalidade (áreas museológica, cultural, pedagógica, arquivística e de pesquisa). A concepção, a institucionalização e o funcionamento desses espaços de memória constituem significativas referências, para além de sua especificidade, para pensar o caso do Rio de Janeiro, objeto da presente pesquisa, do ponto de vista político-institucional e da experiência de trabalho conjunto entre gestores, especialistas, grupos de vítimas e de organizações de direitos humanos. Por isso, as reuniões de trabalho foram centrais na troca de experiências e expertise para a elaboração dos produtos de pesquisa de nosso projeto, tais como o livro de lugares de memória e as recomendações de políticas públicas de memória a serem dirigidas à CEV-Rio.

motivo da participação de dois membros da equipe – as bolsistas Fernanda Ferreira Pradal de doutorado e Andrea Schettini de Capacitação Técnica – no workshop realizado pelo Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição (IDEJUST) no dia 26 de março de 2015 na Universidade de São Paulo (USP). O workshop se voltou para a discussão do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e para a atuação das Comissões Estaduais da Verdade. Nessa oportunidade, as pesquisadoras realizaram um encontro de trabalho com Renan Quinalha (IDEJUST/USP) e James Green (Brown University – EUA). Por fim, entre os dias 9 e 11 de abril foram realizados mais cinco encontros de trabalho com Gonzalo Conte no espaço do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio, nos quais se discutiram questões fundamentais do projeto de um livro sobre lugares de memória no Estado do Rio de Janeiro. Especialista em cartografias de memória sobre a ditadura argentina, ele foi coordenador executivo do livro “Memorias en la Ciudad”de 2009, que é referência pioneira na América Latina no mapeamento de lugares de memória.

O Workshop, ocorrido em novembro de 2014, trouxe importantes especialistas sobre o tema de memória e justiça de transição, o que propiciou a realização de reuniões de trabalho mais específicas, paralelas ao evento. As reuniões foram realizadas com Paulo Abrão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Vicente Rodrigues do Projeto Memórias Reveladas, Margarita Romero da Asociasión por la Memoria e Derechos Humanos do Chile, Loreto Lopez da Universidade de Santiago do Chile e Dario Colmenares do Centro de Paz y Reconciliación do Chile. Também houve a oportunidade de realizar novas reuniões de trabalho com Katia Felipini do Memorial da Resistência de São Paulo, Ludmila da Silva Catela do Archivo Provincial de La Memoria de Córdoba e Gonzalo Conte do Projeto Memoria Abierta da Argentina. Com esses encontros foi possível avançar em discussões, dúvidas e sugestões sobre o mapeamento dos locais de repressão, metodologia de pesquisa e aprofundar o conhecimento dos limites e potencialidades das experiências de outros Estados e países para pensar o caso do Estado do Rio de Janeiro.

Paralelamente, foram realizadas reuniões sistemáticas de trabalho com a CEV-Rio, contabilizando nove no total: cinco na primeira parte de atividades da pesquisa, entre os meses de junho e dezembro de 2014 e quatro em 2015. As primeiras reuniões tiveram como pauta a apresentação integral do projeto e diversos temas relevantes sobre políticas de memória e eventos a serem organizados a propósito dos 50 anos do golpe de 1964. A reunião que aconteceu em maio de 2014 envolveu todos os grupos de pesquisa aprovados no edital FAPERJ 38/2013 e dos representantes dos Arquivos públicos (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e Arquivo Nacional), com fim de apresentar os respectivos projetos de pesquisa, bem como as informações sobre o acesso aos arquivos disponíveis no Estado. As demais reuniões que aconteceram no mesmo ano discutiram o subsídio de do

No segundo semestre de atividades da pesquisa, foram realizadas mais duas reuniões de trabalho. A primeira reunião aconteceu pelo

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cumentação pela CEV-Rio à equipe e as atividades de pesquisa em desenvolvimento. Já na segunda parte do projeto, em 2015, houve mais quatro reuniões, entre os meses de abril e junho, cuja pauta foi a apresentação da primeira versão de textos, imagens e mapas do livro dos lugares de memória, além da avaliação do cronograma definitivo da entrega dos produtos.

pesquisa sobre a ditadura nos livros didáticos de História, realizada pela professora Luciana Lombardo e pela equipe do projeto, teve a dupla preocupação de refletir sobre a formação das novas gerações de cidadãos brasileiros e daqueles que cuidarão da segurança do país, nos colégios militares e academias de polícia. Portanto, o ensino da história da ditadura nessas instituições e os materiais didáticos utilizados precisam ser também discutidos.

Ressaltamos que a equipe participou ativamente dos fóruns mensais organizados pela CEV-Rio, nos quais diversos temas de investigação e de políticas públicas pertinentes a seu mandato são objeto de debate. Outra forma de parceria e colaboração tem sido a participação de membros da equipe no grupo de trabalho sobre o DOPS, no âmbito da CEV-Rio, em que são discutidos os temas de concepção de um futuro espaço de memória, bem como estratégias de institucionalização do mesmo.

A primeira parte do evento teve caráter expositivo, contando com o relato do professor Ilmar Rohloff de Mattos, do Departamento de História da PUC-Rio, sua experiência como estudante universitário e como professor de História durante a ditadura, do professor José María Gómez, coordenador do projeto e com Nadine Borges, presidente da CEV-Rio. Esse momento de reflexão inicial foi seguido pelas atividades das oficinas, objetivo central da jornada, nas quais professores e estudantes tiveram a oportunidade de discutir fontes bibliográficas e alternativas que pudessem sensibilizar alunos em relação ao tema da ditadura militar.

O intenso diálogo com especialistas e as visitas a centros de memória foram, certamente, um ponto central para o desenvolvimento da pesquisa, no sentido de elucidar as condições de possibilidade para a elaboração dos produtos finais.

Para tanto, cada oficina propiciou um determinado tipo de suporte para debater distintas temáticas, entre elas destacam-se: trechos de documentários; testemunhos de ex-presos políticos, perseguidos e torturados; documentos oficiais do Estado e dos órgãos de repressão; fontes visuais, como charges e fotos; e, ainda, uma oficina que se dedicou exclusivamente a analisar os trechos sobre a repressão e as graves violações de Direitos Humanos em diferentes livros didáticos aprovados pelo Programa Nacional de Livro Didático (PNLD), além de um exemplar adotado em colégios militares.

(ii) Jornada de Ensino de História e Ditadura A equipe do projeto promoveu no dia 22 de outubro de 2014 na PUC-Rio a “Jornada de Ensino de História e Ditadura”. A proposta da atividade foi discutir as práticas pedagógicas do ensino da história da ditadura e o conteúdo dos materiais didáticos, com o objetivo de avaliar o panorama atual, além de propor novas abordagens e encaminhamentos para que o ensino de História seja pensado em uma perspectiva de educação em Direitos Humanos. A importância dessa

A jornada foi responsável em embasar a pesquisa sobre ensino de história nas escolas, visto que ela promoveu o encontro com alunos e professores da rede de ensino fundamental e médio. Certamente, os resultados que puderam ser aferidos nas oficinas realizadas funcionaram como suporte inicial para levantamento das insuficiências

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de conteúdo sobre o período ditatorial brasileiro, suscitando uma reflexão crítica sobre mecanismos pedagógicos que pudessem reverter esse quadro educacional.

cerramento do evento. O primeiro dia também foi marcado por uma conferência, aberta ao público, e contou com a presença de alunos da universidade, estudiosos do tema e outros interessados. Simultaneamente à primeira sessão, também com o intuito de dar publicidade ao debate sobre a ditadura, foram apresentadas cenas de teatro no Pilotis da PUC, pela Companhia Completa Mente Solta de Teatro.

(iii) Workshop Internacional sobre Politicas de

O Workshop permitiu que os especialistas expusessem suas experiências na área e, durante as discussões, se mostraram sensíveis ao caso de políticas de memória para o Estado do Rio de Janeiro. Assim, o diálogo foi proveitoso para o grupo de trabalho da PUC-Rio, tanto no sentido do desenvolvimento das recomendações, quanto no que diz respeito à produção dos outros produtos do projeto.

Memória na América do Sul e África do Sul A realização do workshop teve como fase inicial a criação de um canal de diálogo com especialistas em políticas de memória no âmbito dos países da América Latina e África do Sul. Foram convidados como participantes a compartilhar suas experiências neste campo de atuação: Karin Van Marle da Universidade de Pretoria (África do Sul), Ludmila Catela, diretora do Archivo Provincial de la Memoria de Córdoba (Argentina), Vicente Rodrigues do projeto Memórias Reveladas do Arquivo Nacional (Brasil), Kátia Felipini, do Memorial da Resistência do Estado de São Paulo (Brasil), Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia (Brasil), Rosa Cardoso, membro da Comissão Nacional da Verdade (Brasil), Cristina Gómez do Parque de la Memoria, Gonzalo Conte do projeto Memoria Abierta (Argentina), Margarita Romero da Associación por la Memoria y los Derechos Humanos Colonia Dignidad (Chile), Loreto Lopez do Programa de Psicologia Social de la Memoria da Universidade do Chile (Chile), Alberto Marchesi, da Universidad de la Republica (Uruguai), Darío Colmenares do Centro de Memoria, Paz y Reconciliación, de Bogotá (Colombia), além de integrantes da CEV-Rio e dos próprios professores pesquisadores e bolsistas vinculados ao presente projeto.

Os temas de cada sessão foram definidos pelas experiências ocorridas em cada país, sendo os palestrantes agrupados conforme o critério de nacionalidade. Ao final, foram expostos por parte de alguns membros da equipe da PUC, a metodologia, o desenvolvimento, as expectativas e os desafios encontrados e para alcançar os objetivos do projeto. Neste sentido, a apresentação aos convidados especialistas possibilitou um ambiente de reflexão e enriquecimento mais profundos para o desenvolvimento do projeto.

(iv) Encontro sobre Recomendações de Políticas de Memória para o Estado do Rio de Janeiro A elaboração de recomendações de políticas públicas de memória foi consolidada por meio de uma ampla pesquisa sobre medidas de memorialização para a reparação simbólica necessária às vítimas do período ditatorial e como instrumentos de conscientização da não re

O Workshop ocorreu durante três dias, entre 17 e 19 de novembro, sendo dividido em quatro sessões, além das mesas de abertura e en-

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petição de violações sistemáticas de direitos humanos. Levando em consideração essas prerrogativas, a formulação das recomendações foi resultado do estudo da produção acadêmica-intelectual sobre memorialização, direitos humanos, justiça de transição e direito à verdade e à justiça, e dos diálogos com especialistas do tema no Brasil e em outros países, fundamentais para pensar medidas relevantes para o estado do Rio de Janeiro.

relevantes que aconteceram no Brasil e na América do Sul e com sugestões de órgãos responsáveis e colaboradores de cada medida. A exposição das recomendações promoveu um canal de diálogo e intercâmbio de experiências que foi enormemente enriquecedor para repensar limites e potenciais do que a equipe do projeto tinha proposto inicialmente. As considerações levantadas pelos participantes, cuja atuação prática lhes confere um papel referencial no tema sobre direitos humanos e ditadura militar brasileira, foram incorporadas às propostas de recomendações desenvolvidas no âmbito da pesquisa. Em suma, esse encontro fortaleceu a percepção da considerável insuficiência histórica de políticas públicas que privilegiam a cultura em direitos humanos, a homenagem às vítimas do regime militar e a temática da memória e do ensino e, ainda, formalizou uma constatação generalizada de que ainda há muito que fazer no Estado do Rio de Janeiro em termos de processos de memorialização.

Uma vez que o núcleo rígido dessas propostas de recomendações foi estabelecido, a equipe do projeto organizou um evento que funcionou como espaço de discussão e reflexão sobre essas medidas, envolvendo representantes de movimentos sociais relacionados à luta pelos direitos humanos. O objetivo desse evento foi atender as demandas desses diferentes grupos em relação às políticas públicas que se relacionam com o regime militar brasileiro e seu legado, permitindo que a equipe também aprimorasse suas propostas iniciais. Tal evento, intitulado “Encontro sobre Recomendações de Políticas de Memória para o Estado do Rio de Janeiro”, contou com apoio da CEV-Rio e foi realizado na sede da CAARJ, no dia 10 de julho de 2015. Participaram os próprios membros da Comissão do Rio, representantes dos demais projetos de pesquisa contemplados pelo edital 38/2013 da FAPERJ, bem como grupos e indivíduos que atuam no campo da memória e justiça como os membros do grupo Tortura Nunca Mais-RJ, Instituto de Estudos da Religião (ISER), militantes do OCUPA DOPS, membros da Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul (CEV-RS), Grupo Filhos e Netos e projeto Clínicas do Testemunho vinculado à Comissão da Anistia do Ministério da Justiça. No encontro, a equipe teve a oportunidade de apresentar quatro eixos de recomendações, a saber: (i) Centros de Memória, (ii) Monumentos, Marcas e Sinalizações de Memória, (iii) Políticas de Educação e Cultura em Direitos Humanos e (iv) Ensinos e Práticas de Memória nas Escolas. Em cada eixo, as propostas eram ilustradas com exemplos

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ATIVIDADES EM FUNÇÃO DOS

locais identificados são trabalhados enquanto repositórios de memória de eventos relacionados à repressão e à resistência, de caráter coletivo, que tiveram lugar em cidades e zonas rurais do Estado do Rio de Janeiro. Por isso, o livro será composto pelo mapa do Estado e de cada município, onde se podem identificar lugares de memória sobre a ditadura, os quais funcionam como índices dos pontos mapeados. Cada lugar será representado por um texto, um mapa de localização e imagens relacionadas à sua história. O objetivo central da proposta é propiciar ao leitor, o acesso à história de cada um desses lugares, contada a partir dos eventos singulares ali ocorridos, dos atores que dele fizeram parte e dos testemunhos existentes.

PRODUTOS (I) LIVRO DOS LUGARES DE MEMÓRIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Para tanto, o livro se estrutura em três dimensões fundamentais e interdependentes: a territorial, a temporal e a temática. A temporalidade busca dar conta dos marcos temporais da ditadura militar e dos períodos de transição para o regime democrático, bem como de sua normalização. A territorialidade, por sua vez, pretende expor o uso – seja por ocupação ou controle - do espaço físico pelas estratégias de repressão e pelas formas de resistência à ditadura. Por fim, a dimensão temática diz respeito aos principais temas de pesquisa que compõem um quadro mais amplo sobre as experiências de distintos grupos sociais na relação com o arbítrio e a violência da ditadura, seja na experimentação direta destes ou na produção de resistências.

A atividade de elaboração do livro dos lugares de memória no Estado do Rio de Janeiro tem sido a tarefa prioritária dos esforços dos pesquisadores e bolsistas do projeto. Além da equipe, um grupo de consultores externos e pesquisadores especialistas, já elencados nos agradecimentos, têm contribuído para o aperfeiçoamento do trabalho. A proposta do livro consiste em abordar a história da ditadura militar a partir dos lugares de memória situados no estado do Rio de Janeiro, de modo a propiciar outra compreensão do funcionamento do complexo dispositivo repressivo, marcado pela vigilância, censura, atentados, prisões, tortura, assassinatos e desaparecimentos de opositores políticos. A proposta de uma nova leitura do sentido histórico do regime militar também é apresentada a partir da identificação de uma diversidade de formas de resistência cultural, manifestações de protesto e lutas sociais e políticas que marcaram o período. Dessa maneira, busca-se produzir um livro que seja ferramenta pedagógica, oferecendo suporte à reflexão sobre a violência, arbítrio e controle imanentes ao projeto de sociedade que, sob a roupagem de legalidade, impulsionou a ditadura, bem como sobre as diferentes formas de resistência que se desenvolveram no seu longo período vigência e suas conexões com os processos sociais do presente.Nesse sentido, os

Dessa forma, o livro apresenta uma rede de lugares, marcados territorialmente, conectados entre si no quais, textualmente, as dimensões temporal e temática se sobrepõem e se articulam, o que expõem a complexidade e multiplicidade das estratégias de poder específicas da ditadura militar e das experiências sociais neste longo período histórico. Em outras palavras, a proposta do livro é sobrepor a uma cartografia de lugares, uma topografia – temporal e temática – que toma os lugares (topos) como repositórios que articulam a história factual às

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memórias traumáticas e testemunhais, enquanto elemento central, daqueles que por estes lugares passaram, durante o longo período da ditadura militar no estado do Rio de Janeiro, assim como aos processos sociais do presente, quando pertinente.

dados orais e audiovisuais. Durante o primeiro semestre de atividades foram mapeados lugares e temáticas pertinentes à proposta inicial do livro. Em um primeiro momento, realizou-se pesquisa preliminar em que foram levantadas produções já existentes sobre espaços de memória, inclusive aquelas relativas à localização de lugares de memória no Estado Rio de Janeiro. Posteriormente, realizou-se o mapeamento de tais espaços.

No que se refere à metodologia, tem sido realizadas pesquisas bibliográficas, documental, de história oral e iconográfica relevantes tanto para o mapeamento de lugares quanto para a construção do texto, a seleção de imagens e a confecção dos mapas relativos ao Estado, aos municípios e a cada lugar selecionado.

Neste primeiro momento, foram levantadas as produções das seguintes organizações e instituições: (i) Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ); (ii) Instituto de Estudos da Religião (ISER); (iii) a Comissão Nacional da Verdade (CNV); (iv) a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio); e (v) Comissões Municipais da Verdade do Estado do Rio de Janeiro.

Também foi pensada uma metodologia de trabalho para a estruturação dos textos sobre os lugares. Para tanto, ao longo da escrita e, complementarmente ao debate sobre metodologia desenvolvido no interior da equipe, foram realizadas duas oficinas com os bolsistas com a presença de profissionais especialistas no tema: a professora do departamento de História da FGV, Ângela Moreira, que tratou de sua experiência nos arquivos do Superior Tribunal Militar e na equipe do Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro do CPDOC; e a professora Thereza Vianna, doutora em Letras e revisora da Editora da UFRJ, realizou a oficina de escrita com o objetivo de orientar o trabalho de escrita dos verbetes e discutir a forma estilística que a narrativa deverá assumir de acordo com as possibilidades concretas e as decisões da equipe de pesquisadores. Assim, a escrita e a revisão dos textos tem se baseado em parâmetros construídos a partir destas oficinas e também com a colaboração da Prof. Adrianna Setemy, pesquisadora da UFRJ e da CNV.

Com relação ao material produzido pelo GTNM/RJ, constavam lugares de repressão, locais de assassinato de militantes, assim como o Memorial do Cemitério de Ricardo de Albuquerque. Também constavam as iniciativas de nomeação de ruas em homenagem aos mortos e desaparecidos pela ditadura. No que tange à produção do ISER, organização de direitos humanos do Rio de Janeiro, foi consultado o resultado do projeto “Cartografias da Ditadura”, trabalho iniciado em 2011, que tem como objetivo a construção coletiva e colaborativa, de caráter permanente e processual de uma plataforma virtual de mapeamento dos lugares atravessados pela ditadura militar, no que se refere à repressão e à resistência, no Rio de Janeiro.1

No que tange à pesquisa preliminar, ao mapeamento de lugares e à pesquisa específica para elaboração dos textos, tem sido articuladas a bibliografia geral sobre ditadura no Rio de Janeiro; a devida cronologia legislativa e factual relevante; os relatórios das comissões de verdade; a bibliografia específica sobre cada lugar, evento e personagens e fontes orais. Estas últimas constituem depoimentos de testemunhos, entrevistas, documentos e iconografia pesquisados nos arquivos e bancos de

1 Os lugares mapeados pela “Cartografia da Ditadura” estão distribuídos em seis filtros: (1) aparelhos (locais destinados a reuniões de um grupo político clandestino, guarda de material, esconderijo ou moradia de seus membros); (2) atentados (locais onde foram realizadas ações por indivíduos ou grupos associados direta ou indiretamente ao aparato militar com o objetivo agredir os adversários da ditadura ou

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Quanto ao trabalho realizado pela CNV, foram analisados três relatórios parciais sobre os lugares de repressão. São eles: “Relatório preliminar da pesquisa dos lugares clandestinos”,“Quadro parcial das instalações administrativamente afetadas ou que estiveram administrativamente afetadas às forças armadas e que foram utilizadas para perpetração de graves violações de DH” e “Relatório Preliminar de Pesquisa sobre a ‘Casa da Morte de Petrópolis’”.

nha e dois da Aeronáutica. Por sua vez, o último dos relatórios analisados trata da “Casa da Morte” de Petrópolis. Sua construção se deu a partir dos depoimentos dos sobreviventes de outros centros, colhidos pelo próprio Estado brasileiro, do depoimento de Paulo Malhães feito à CNV e, principalmente, do testemunho de Inês Etiene Romeu, única sobrevivente do local. Trata-se de um trabalho que reúne informações acerca dos presos políticos que por ali passaram e também nomes que compunham a cadeia de comando do aparelho repressor.

O primeiro apresenta uma análise de sete lugares clandestinos de tortura e desaparecimento forçado, utilizados pela ditadura como parte de seu aparato repressor. Destes, três se localizavam no estado do Rio de Janeiro: i) Casa de São Conrado; ii) Casa da Morte de Petrópolis e; iii) Sítio São João de Meriti. Cada um conta com o endereço do local, os anos de funcionamento (quando conhecidos), a que órgão repressor estava associado, os nomes e informações básicas das vítimas e o tratamento que a elas foi dado no local. O segundo relatório lista instalações relacionadas às forças armadas que foram local de repressão e resistência, trazendo informações sobre os presos e torturados (e, eventualmente, mortos) no seu interior, bem como sobre a cadeia de comando militar relacionada ao local. O trabalho organiza as instalações, dividindo-as por sua relação ao Exército, à Marinha ou à Aeronáutica. No estado do Rio de Janeiro, foram apontados três locais do Exército, dois da Mari-

No que se refere à produção da CEV-Rio, e especificamente a identificação de estruturas, locais e instituições do aparato repressivo ditatorial no Estado, pode ser encontrada no relatório parcial relativo ao trabalho realizado até o mês de junho de 2014. Nesse documento constam depoimentos e testemunhos, assim como esclarecimentos quanto à forma de trabalho (divisão em Grupos de Trabalho) e às dificuldades de acesso aos arquivos das Forças Armadas. Além disso, como resultado da relação institucional com a CEV-Rio, foi fornecida à equipe uma lista de 28 espaços de repressão, já identificados em seu trabalho investigativo. Buscou-se mapear também a atuação de outras comissões da verdade, públicas e privadas, que atuam no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, dentre as quais se destacam oito comissões municipais e seis institucionais. As Comissões da Verdade criadas por Universidades (UFRJ; UFRRJ; UFF), a comissão da OAB-RJ e aquelas que foram criadas por sindicatos (SindipetroRJ; SinPRO-RJ)2 atuam no estado do Rio de Janeiro. Os municípios do Rio de Janeiro que contam com Comissões próprias são: Macaé, Volta Redonda, Barra Mansa, Niterói, Nova Friburgo, São Gonçalo, São João de Meriti e Duque de Caxias.

criar um clima de instabilidade política que permitisse a radicalização das formas da repressão); (3) espaços de homenagem (espaços públicos que fazem referência, no presente, a agentes ou acontecimentos do período da ditadura); (4) manifestações (lugares públicos onde aconteceram distintas manifestações de contestação à ditadura); (5) mortos e desaparecidos (lugares, públicos e privados, abertos e fechados, relacionados às mortes e desaparecimentos de opositores à ditadura provocados pelo Estado); e (6) prisão e tortura (espaços, oficiais e clandestinos, onde ocorreram práticas de tortura e onde opositores da ditadura foram mantidos presos). Cfr.: http://www.cartografiasdaditadura.org.br.

2 Pesquisa realizada a partir das informações publicadas no III Relatório do ISER de monitoramento da Comissão Nacional da Verdade.

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A equipe deu início ao mapeamento a partir do levantamento3 apontado anteriormente e de uma pesquisa bibliográfica preliminar. Para cada lugar de repressão selecionado foi produzida uma ficha contendo elementos e requisitos de forma unificada. A ficha continha (i) o nome e sigla do local; (ii) o endereço; (iii) o critério, ou seja, qual o critério de definição do local (por exemplo, centro oficial ou centro clandestino de prisão); (iv) o histórico do lugar/edifício e, por fim, (v) a posição na estrutura da repressão, ou seja, o papel do centro de prisão na estrutura militar repressiva da ditadura. Concomitantemente, foi realizado o mapeamento de lugares relacionados à resistência cultural, em relação aos quais foi dirigida especial atenção à memória imaterial e produção cultural do período: acontecimentos culturais como performances, shows, apresentações de teatro, assim como prisões e atos de repressão relacionados a estes eventos; nome de artistas e envolvidos nos acontecimentos; os livros e filmes citados e as edições que foram censuradas; jornais, publicações e semanários.

oposição à ditadura militar. Aprofundou-se ainda a investigação, através da pesquisa bibliográfica, dos atentados realizados por grupos de extrema direita e do controle exercido pela censura contra outros grupos teatrais do Rio de Janeiro. (iii) No campo das artes plásticas, grande parte dos artistas em atividade no período produziu trabalhos de contestação contra as violações e arbítrios da ditadura, considerando o objetivo do livro de mapear locais, escolhemos o Museu de Arte Moderna (MAM/RJ) como um local de memória da resistência artística e também de censura. (iv) No campo musical, além da reconhecida importância dos festivais de música realizados no Maracanãzinho, além da pesquisa de shows e eventos realizados em lugares como a antiga boate Sucata, em que músicos que foram presos e perseguidos durante a ditadura militar se apresentavam em parceria com artistas plásticos como Hélio Oiticica. (v) No campo da imprensa, a pesquisa bibliográfica colaborou para investigação dos locais que sofreram perseguição e controle por parte da censura, como o jornal Pasquim, a Rádio Nacional, a Editora e Livraria Civilização Brasileira, entre outros.

A variedade de tipos de lugares e dos campos da produção cultural levantados demonstra a amplitude que a “resistência cultural” como categoria analítica apresenta em sua própria definição. Para a nossa pesquisa, consideramos os seguintes locais de resistência cultural: (i) o movimento estudantil (UNE, CPC, UME) através das organizações dos centros acadêmicos atuantes como o CACO, da Faculdade Nacional de Direito, a luta dos estudantes por melhores condições no restaurante Calabouço, entre outros eventos ocorridos no estado do Rio Janeiro. (ii) No campo teatral, iniciamos o mapeamento pelo Teatro Opinião/Arena sede do Show Opinião, tido como um dos primeiros espetáculos de

Como resultado do primeiro semestre de pesquisa foi produzida análise de algumas temáticas associadas aos lugares mapeados. Dentre as temáticas, destacamos: Estrutura da Repressão; Entidades de classe; Golpe de 1964; Universidades e movimento estudantil; Manifestações; Resistência Cultural, Censura e Expurgos; Sindicatos e Trabalhadores; Movimento religioso e ditadura; Remoção de favelas; Repressão no campo e conflito agrário; Repressão, resistência e homossexualidades; Apoio civil empresarial à ditadura; Atentados; Anistia e Abertura Política; Justiça Militar; Violência de Gênero; e Repressão, resistência e Cultura Negra. Dentre os municípios do Estado do Rio de Janeiro onde foram identificados lugares de memória, destacamos até o presente momento: Rio de Janeiro (com a grande maioria de lugares), Angra dos Reis, Sepetiba, Barra Mansa, Cabo Frio, Cachoeiras de Macacu, Duque de Caxias, Macaé, Niterói, Nova Iguaçu, Paraty, Petrópolis, São Gonçalo e Volta Redonda.

3 Foi pertinente para o mapeamento o levantamento realizado sobre a produção do GTNM/RJ, do ISER, da CEV-Rio, das comissões municipais da verdade de Niterói, Volta Redonda e Macaé, e das comissões setoriais do Sindicato dos Professores da UFF e da Reforma Sanitária.

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Até o momento foram mapeadas noventa e cinco localizações, além de três centros clandestinos de sequestro, tortura e morte não localizados ou não investigados. Há ainda treze possíveis inserções que aguardam confirmação em função do andamento da pesquisa. Contudo, até a conclusão do livro, no primeiro semestre de 2016, outros lugares ainda não identificados poderão ser incorporados. Para isso, serão realizadas consultas com grupos da sociedade civil de familiares de mortos, desaparecidos, ex-presos políticos, entre outros, para ampliar o mapeamento realizado até o presente momento, que conta com casos considerados “emblemáticos”. Cabe ressaltar que o levantamento de locais de detenção, eventos de repressão, eventos e movimentos de resistência, jornais, sindicatos, igrejas, etc no estado do Rio de Janeiro não é exaustivo.

vos de história oral e testemunhos concedidos às comissões de verdade (CNV, CEV-Rio e comissões municipais). Os pesquisadores do projeto também consultaram as transcrições provenientes de entrevistas do acervo do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), do banco de dados da CEV-Rio e das audiências públicas da CNV e da CEV-Rio. Recentemente, foram feitas entrevistas para subsidiar as pesquisas iniciais. Por meio delas buscaram-se informações relativas à perseguição a homossexuais durante a ditadura militar (pesquisas realizadas por Renan Quinalha e James Green) e ao reconhecimento de espaços de prisão e tortura, como o DOPS/GB e o DOI-CODI. Além disso, nos dias 23 e 24 de setembro de 2014, membros da equipe do projeto participaram de visitas aos prédios onde funcionaram o antigo DOI-CODI e o antigo DOPS. Ambas as visitas ocorreram em diligências solicitadas pela Comissão da Verdade do Rio, acompanhadas por ex-presos políticos para o reconhecimento do local. Além disso, foi feito um percurso pelo centro da cidade do Rio de Janeiro com Gonzalo Conte, recorrendo o trajeto OAB – Cinelândia - Clube Militar - Associação Brasileira de Imprensa – Departamento de Ordem Política e Social (DOPS/GB). Este último lugar tem uma significação especial em razão da reivindicação atual de movimentos da sociedade civil e da própria CEV-Rio para que se torne um espaço de memória e dos direitos humanos na cidade.

No segundo semestre, a elaboração dos textos avançou de acordo com a seguinte dinâmica: (1) pesquisa específica e escrita da primeira versão do texto sobre o lugar; (2) revisão de conteúdo e forma por parte dos professores pesquisadores, da bolsista de doutorado, da bolsista TCT e de especialistas voluntários; e, (3) revisão por parte de consultores externos das áreas da História e do Direito, especialistas na temática de cada verbete. A pesquisa e a escrita sobre cada lugar têm sido relacionadas com a produção historiográfica e com os documentos presentes em diferentes arquivos. Ressalta-se que grande parte da pesquisa tem sido feita nos acervos documental e iconográfico do Arquivo Nacional, do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, da Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional, do acervo do Projeto Brasil Nunca Mais, do acervo da Comissão Nacional da Verdade e de acervos arquivísticos específicos, quando pertinente4. Da mesma maneira, tem sido utilizados acer-

Por fim, cabe ressaltar que, ao longo do terceiro semestre, estão sendo elaborados mapas e plantas, por um arquiteto urbanista (integrado à equipe), além do projeto gráfico do livro, por uma equipe de design selecionada.

Memória Fluminense e o Núcleo de Memória, Informação e Documentação da UERJ e o arquivo privado do Prof. James Green, Professores da Brown University, 4 Dentre eles, por exemplo, estão o Núcleo Memória da PUC-Rio, o Centro de

no Estados Unidos.

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(II) RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICAS

tas aos centros referenciais de memória e durante as atividades do Workshop em novembro de 2014.

PÚBLICAS DE MEMÓRIA

A primeira etapa da pesquisa, voltada para a América Latina, se sustentou primordialmente pelas informações provenientes da Red Latinoamericana de Sitios de Memoria, Coalização Internacional de Sítios de Consciência, Memoria Abierta, Comissão de Anistia do Brasil, Secretaria de Direitos Humanos da Argentina e a publicação (2009) do Centro de Direitos Humanos da Universidade do Chile, intitulada “Políticas Públicas de Verdade e Memória em 7 países da América Latina: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai”. Esse documento, particularmente, ofereceu um levantamento inicial de 247 políticas públicas de memória adotadas por esses países até o ano da sua publicação. Então, para oferecer um panorama mais atualizado, a pesquisa alcançou o número total de 288 políticas. A grande maioria das políticas referem-se a formas de reconhecimento públicos e pedidos de perdão, à construção de memoriais e centros de memória, à mudança de nome das ruas e praças que faziam homenagem a agentes da repressão, a políticas de educação em direitos humanos, à atividades de manutenção de arquivos, à criação de redes de memória, dentre outras.

As propostas de recomendações de políticas públicas de memória para o Estado do Rio de Janeiro são dispositivos que visam colocar processos de memorialização no centro da pauta governamental a fim de, em primeiro lugar, oferecer uma reparação simbólica às vítimas de violações de direitos humanos e, em segundo lugar, sensibilizar as novas gerações em relação aos eventos de um passado recente. As políticas de memória, portanto, funcionam como um mecanismo institucional que permite a visualização de vozes, memórias e narrativas, que até então estavam marginalizadas no espaço público. Em geral, as memórias estão inscritas em um local delimitado territorialmente, funcionando como um símbolo do imperativo categórico do “Nunca Mais”, mas são vulneráveis ao usos e apropriações que decorrem dos conflitos de interpretações sobre memória. Por isso, a necessidade do reconhecimento formal ou simbólico por parte do Estado, para que determinadas memórias não sejam silenciadas e esquecidas.

Na segunda etapa da pesquisa buscou-se analisar os processos de memorialização em âmbito nacional, muitos dos quais foram impulsionados pelos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) entre 2012 e 2014. Esse levantamento foi norteado pelas leituras do relatório final da CNV, relatórios finais ou parciais das demais comissões estaduais da verdade, informações disponibilizadas pela Comissão de Anistia vinculada ao Ministério da Justiça, além de produções acadêmicas que se preocupavam com políticas de memória no Brasil.

No intuito de refletir sobre o caso do Estado do Rio de Janeiro, o projeto realizou uma pesquisa em três etapas: a primeira foi caracterizada pelo amplo levantamento de experiências concretas de políticas de memória desenvolvidas em outros países da América Latina. A segunda se voltou para as medidas que foram realizadas em nível nacional. A terceira consistiu em um levantamento dos processos de memorialização no Estado do Rio de Janeiro para identificar ausências e avanços. A pesquisa foi complementada com os resultados das reuniões de trabalho com especialistas no tema, realizadas nas visi-

A terceira e última etapa da pesquisa destinou-se ao levantamento das políticas já existentes no Estado do Rio. Para isso, foram analisadas as produções da CNV, da CEV-Rio, das Comissões Municipais

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da Verdade do Estado do Rio de Janeiro e do Instituto de Estudos da Religião (ISER).

dade de Santiago no Chile e Dario Colmenares, do Centro de Paz y Reconciliación de Bogotá, Colômbia.

Metodologicamente, cada levantamento foi dividido em dois momentos. O primeiro tratou de classificar as políticas em três grandes grupos: (i) políticas de espaços de memória; (ii) outras políticas relevantes (por exemplo, políticas de sinalizações e renomeações de logradouros públicos); e (iii) políticas de educação e intervenções culturais. Após essa sistematização, foi realizada uma análise das experiências concretas de políticas de memória, levando-se em consideração os contextos institucionais próprios de cada país, as características específicas dos processos de construção e implementação das referidas políticas e as recentes análises e balanços críticos dessas experiências.

A fim de melhor atender às expectativas dos atores, coletivos e organizações da sociedade civil que atuam no Rio de Janeiro no campo da memória, verdade e justiça, foi realizado o evento “Encontro sobre Recomendações de Políticas de Memória para o Estado do Rio de Janeiro” em parceria com a CEV-Rio, no qual foram apresentadas as propostas iniciais de recomendações elaboradas pelo projeto de pesquisa. O objetivo desse encontro foi a de coletar informações, demandas, além de ouvir críticas para aprimorar a formulação de políticas públicas de memória. Em suma, o objetivo desse movimento de pesquisa foi o de fornecer, a partir da análise de experiências concretas desenvolvidas em outros países e estados brasileiros, subsídios para a elaboração de recomendações específicas sobre políticas públicas de memória a serem implementadas em âmbito estadual.

Além do levantamento das medidas institucionais voltadas para o direito à memória e à justiça, a elaboração das propostas de recomendações foi embasada pelo Workshop Internacional sobre políticas públicas de memória, que forneceu uma ampla compreensão crítica das principais experiências implementadas na Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia, África do Sul e em outros estados brasileiros. Também foram de fundamental importância as consultas e encontros com gestores e especialistas em políticas de memória na América Latina e Brasil, a saber: Paulo Abrão, da Comissão de Anistia do Ministério de Justiça; Maurice Politi do Núcleo de Preservação da Memória Política de São Paulo; Ludmila da Silva Catela do Archivo Provincial de la Memoria de Córdoba; Eduardo Jozami do Centro Cultural de la Memoria Haroldo Conti; Elizabeth Jelin do Nucleo de Estudios sobre Memoria do Instituto de Desarollo Económico y Social; Patricia Tappatá Valdez, diretora geral do livro “Memorias em la Ciudad”; Vicente Rodrigues do Projeto Memorias Reveladas; Katia Felipini, do Memorial da Resistência de São Paulo; Valeria Barbuto e Gonzalo Conte, do Projeto Memoria Abierta, Argentina; Margarita Romero, da Asociasión por la Memoria e Derechos Humanos do Chile; Loreto Lopez da Universi-

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(III) ENSINO DE HISTÓRIA DA DITADURA

Sendo assim, o primeiro eixo de atuação do projeto, no que tange o ensino de história, foi aprofundar a pesquisa sobre políticas de ensino da temática da ditadura em outros países do Cone Sul e mapeá-las com o objetivo de subsidiar a proposição de políticas educativas para o Brasil e, mais especificamente, para o estado do Rio de Janeiro.

NAS ESCOLAS

O segundo eixo consistiu em pesquisar as formas pelas quais o tema da ditadura e seu legado aparecem nas diretrizes e orientações curriculares, tanto em âmbito nacional quanto estadual. Entendemos que esses documentos, formulados pelo Ministério da Educação e pelas Secretarias de Educação estadual e municipais, constituem um conjunto heterogêneo, caracterizando um momento peculiar da história do ensino de história. Algumas das propostas sugerem novos métodos e técnicas de ensino, além de introduzir novos conteúdos. Outras apresentam apenas listagens de conteúdos a serem trabalhados pelo professor em sala de aula. No entanto, todos eles podem ser considerados instrumentos de intervenção estatal no ensino e, nesse sentido, representam projetos de formação de cidadãos, conceito este que pode ser utilizado com diferentes fins ao longo do tempo. É importante considerar as clivagens inerentes entre o currículo preativo, normativo e escrito pelo poder educacional instituído e o currículo como prática na sala de aula, também chamado de currículo interativo.1 Sabemos que, embora exista uma determinação sobre o que e como ensinar, estabelecida em âmbito nacional, estadual, municipal e local, o trabalho efetivamente realizado em sala de aula pela interação entre professor e estudantes transcende aquilo que foi formalmente institucionalizado.

No âmbito do projeto, foram realizadas pesquisas voltadas para a prática de ensino de história da ditadura pós-64. O objetivo é propor ferramentas que modifiquem as metodologias de ensino deste tema e propor novas questões e abordagens, identificadas como lacunas, com vistas reforçar a significação dos direitos humanos no ensino. Consideramos que o ensino é um aspecto fundamental das políticas de memória, visto que contribui para a construção e legitimação social de iniciativas que visam a uma nova memorialização dos espaços. Trazer memórias silenciadas, e muitas vezes conflitantes, sobre a violência política e social exercida pelo Estado brasileiro durante o período ditatorial, bem como as múltiplas formas de resistência política, social e cultural àquele regime, implica levar adiante iniciativas pedagógicas que atuem na disputa de hegemonia sobre o período e resultem em intervenções para a mudança no presente. Nesse sentido, o avanço das pesquisas relativas às políticas de ensino sobre o tema da ditadura em países do Cone Sul foi fundamental para percebermos a enorme lacuna existente no Brasil com relação a iniciativas nesse âmbito. Países como Argentina, Chile, Peru e Paraguai possuem larga experiência na implantação de políticas educativas, nas esferas formal e informal, específicas sobre o ensino da temática da ditadura e seu legado. Esse conjunto de políticas visa, em um primeiro momento, divulgar esse conhecimento para as novas gerações e, em um segundo momento, estimulá-las a refletir sobre os impactos do regime ditatorial em âmbito local, nacional e internacional, de forma que os estudantes possam se apropriar desse conhecimento e ressignificá-lo, analisando a sua realidade e o seu entorno no presente.

1 BITTENCOURT, Circe.“Capitalismo e cidadania nas atuais propostas curriculares de história”. In: BITTENCOURT, Circe (Org.) O saber histórico na sala de aula. 2 ed. São Paulo: Contexto, 1998. p.11-27.

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Por esse motivo, para os fins deste projeto, julgamos essencial articular a pesquisa nos documentos normativos (segundo eixo) com a sistematização da Jornada de Ensino de História e Ditadura, realizada em outubro de 2014 e organizada pela professora Luciana Lombardo (Departamento de História) no âmbito deste projeto. O trabalho de sistematização da jornada constitui o terceiro eixo de atuação. A Jornada teve como objetivo a realização de um encontro para ouvir diretamente alunos e professores de História, das redes pública e privada, e contou com um total de 44 participantes. No primeiro momento do evento, o Professor Ilmar Rohloff de Mattos, do Departamento de História da PUC-Rio, proferiu palestra sobre sua experiência enquanto aluno da antiga Faculdade Nacional de Filosofia e como professor da educação básica e do ensino superior durante a ditadura militar. Num segundo momento da Jornada foram organizadas quatro oficinas, com a participação de alunos e professores de história, para discutir as diferentes possibilidades de abordagem da temática da ditadura em sala de aula com o uso de fontes históricas e recursos didáticos diversos. Em cada oficina distribui-se material e discutiu-se um tipo de ferramenta possível para o trabalho com a temática da ditadura: documentários, fontes textuais, fontes visuais e livros didáticos.

Quanto ao primeiro resultado, foi enfatizada a importância da ampliação da divulgação e acesso dos professores a diferentes fontes históricas sobre o período da ditadura militar; a necessidade de produção de novos conteúdos sobre o tema nos livros didáticos e a produção de paradidáticos; a menção, com a respectiva contextualização histórica, à temática dos Direitos Humanos nos materiais didáticos da disciplina de História; a demanda de capacitação de professores para uma Educação em Direitos Humanos no estado do Rio de Janeiro; a busca mais sistemática para estabelecer relações entre o passado ditatorial e o presente nos materiais didáticos; a importância de relacionar o regime militar brasileiro com seus congêneres na América Latina, bem como as colaborações repressivas entre esses regimes; a facilitação e viabilização pelas secretarias de educação de realização de visitas externas aos lugares de memória do regime militar; a intenção explícita de aproximar políticas de memória e políticas de ensino no estado do Rio de Janeiro; o uso mais sistemático de testemunhos e relatos dos diferentes grupos atingidos pelas práticas repressivas do Estado ontem e hoje. Com relação ao segundo resultado, podemos subdividi-lo em quatro partes: livros didáticos (a), fontes visuais (b), documentários (c) e fontes textuais (d).2 No item (a), a maior parte dos participantes considerou que a abordagem da tortura e das violações aos direitos humanos nos livros didáticos é tratada de forma genérica e simplista, cabendo ao professor propor uma perspectiva problematizadora do tema. Em geral, o conteúdo sobre a ditadura nos livros didáticos não sensibiliza o estudante, pois não propõe uma reflexão que parta de aspectos já conhecidos pelos jovens. Assim, a maneira pela qual o tema é abordado nos livros provoca pouco impacto e reduzido interesse, sendo apresentado como parte de um passado acabado e distante no tempo.

A intenção era promover um debate em que os professores relatassem suas experiências ou a viabilidade dos usos desses materiais. Durante as oficinas, foram preenchidos questionários e relatados os debates em mesas redondas sobre as questões propostas. A sistematização dos resultados da Jornada proporcionou dois resultados: um conjunto de propostas para o ensino de história e ditadura em uma perspectiva de Direitos Humanos (1) e um exercício de análise sobre o uso de diferentes recursos didáticos na sala de aula, incluindo experiências reais relatadas e novas perspectivas de abordagem (2).

2 A identificação das fontes históricas usadas nas oficinas está presente no anexo deste relatório.

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Com relação ao item (b), a totalidade dos participantes concordou que o uso de fontes visuais é fundamental para a compreensão do período histórico da ditadura militar no Brasil. Afirmou-se que se trata de um material que sensibiliza e estimula a reflexão, podendo ser combinado com outros recursos didáticos, possibilitando que os alunos percebam permanências e rupturas entre a ditadura e a democracia atual, principalmente no que se refere à continuidade da truculência policial e da prática da tortura pela polícia em comunidades de baixa renda. De acordo com os participantes, as imagens também possibilitam uma abordagem transversal da temática dos Direitos Humanos e dos conceitos de Estado, Liberdade, Democracia e Justiça na sociedade brasileira atual.

impacto e sensibilização nos estudantes do que as fontes visuais e audiovisuais, cabendo ao professor utilizá-la em conjunto com outros recursos didáticos e promover a relação passado-presente. A maioria dos presentes conhecia as fontes textuais usadas na oficina, mas julga menos comum a utilização de documentos oficiais em sala de aula e mais usual o trabalho com reportagens jornalísticas sobre o período. Todos os participantes concordaram com a possibilidade de relacionar passado e presente a partir da análise dos documentos textuais, mencionando os resquícios autoritários do Estado brasileiro, a continuidade dos argumentos e valores moralistas nos discursos oficiais, a permanência de alguma forma de censura na imprensa e do monopólio dos meios de comunicação.

No item (c), a totalidade dos participantes considerou que o uso de documentários sobre o período ditatorial é relevante para a compreensão daquele período histórico, pois causam impactos, sensibilizam e provocam a reflexão crítica sobre a importância da luta pelos direitos humanos nos dias de hoje. Parte dos presentes considera, no entanto, ter dúvidas acerca da veiculação de imagens explícitas de violência em sala de aula. Metade dos presentes desconhecia os filmes apresentados e a outra metade conhecia, porém não costumava trabalhar com esse tipo de mídia no ensino da disciplina. Todos os participantes consideraram que os documentários podem ser um importante recurso didático para a disciplina de sociologia também, facultando uma abordagem interdisciplinar da temática da ditadura.

Tanto a sistematização dos resultados da Jornada quanto à análise das diretrizes e orientações curriculares constituíram elementos importantes para a elaboração do relatório para uso pedagógico em educação formal e não formal, base da construção de recomendações para o ensino de história e ditadura. O quarto eixo de atuação do projeto no que tange o ensino de história foi a análise dos livros didáticos de história (ensino fundamental e médio) e sociologia, aprovados no último Plano Nacional do Livro Didático (PNLD)3, visando alcançar uma sistematização dos capítulos sobre a ditadura. Os PNLD são listas trienais dos livros aprovados na seleção feita por um corpo técnico de especialistas a convite do Ministério da Educação e que, portanto, podem ser adotados pelas escolas públicas a critério dos professores. Foram lidos 18 livros, totalizando 324 páginas. Desses, sete eram para ensino fundamental, um não especificado e dez para ensino médio, sendo dois desses de sociologia. Somente dois desses livros não integravam o Plano Nacional do Livro

Com relação ao item (d), todos os participantes julgaram importante utilizar fontes textuais, oficiais ou não, no ensino de história e ditadura, pois estas permitem uma compreensão mais aprofundada e clara sobre o funcionamento do regime militar, atribuindo materialidade ao tema e proporcionando ao aluno a reflexão sobre discursos contraditórios proferidos pelo próprio regime. No entanto, o conjunto de participantes considerou que as fontes textuais produzem menos

3 Foram analisadas as listas de livros de Ensino Médio de 2013, ainda em utilização, e a lista para o Ensino Fundamental de 2014.

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Didático. É possível dizer que o quadro dos livros é bem heterogêneo, embora seja possível apontar para algumas tendências.

tiva. As propostas são complementares, pois se reforçam mutuamente. Isoladas, no entanto, não apresentam as mesmas possibilidades de impacto.

Um dos principais elementos que se buscou identificar nestes livros foi uma abordagem crítica ao conjunto de graves violações de direitos humanos, como tortura e desaparecimento. É possível dizer que todos os livros já citam a existência de tortura, embora parte significativa deles não trate o tema com profundidade. No que se refere aos desaparecimentos e às mortes, a maioria deles apresenta abordagem generalizante. Em cinco livros não constam informações e somente em quatro existem dados específicos, como o número de vítimas e/ou histórias concretas. O quadro fica mais claro quando percebemos que nenhum dos livros de história cita a expressão “Direitos Humanos” no corpo do texto. Esta aparece somente em trechos de documentos de dois livros de história, em um deles o texto refere-se aos discursos políticos do presidente norte-americano Jimmy Carter. Uma análise mais completa das tendências observadas nos livros didáticos encontra-se na segunda parte deste relatório, no tópico “Ensino de História”.

Cabe ressaltar que uma das propostas de recomendação, relativa à reformulação dos critérios de seleção dos livros didáticos de história para o PNLD, ultrapassa a alçada do Governo do Estado do Rio de Janeiro, devendo ser encaminhada ao Ministério da Educação. Convém destacar que nossa sugestão inicial propunha a reformulação dos conteúdos dos livros didáticos no que tange à temática da ditadura empresarial-militar e seu legado no Brasil. No entanto, considerando que os livros são produzidos por editoras privadas com liberdade para contratar sua equipe de produção, entendemos que a delimitação e seleção de temas e metodologias mais importantes para a construção da cidadania são de responsabilidade do Estado brasileiro, além dos professores, funcionários e diretores das escolas. Nessa perspectiva, a partir do estudo do processo de inclusão da temática História e Cultura Afro-brasileira e Indígena nos currículos escolares, sugerimos que o MEC também enfatize o ensino da ditadura, as violações aos direitos humanos naquele período e as múltiplas formas de resistência ao regime ditatorial que ocuparam a cena do país a partir de 1964 e, seguem até hoje, marcadas pelo desconhecimento por parte de enormes setores da população brasileira. Essa mudança pode ser feita a partir de um projeto de lei que altere e/ou emende a LDB (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), considerando as demandas históricas de movimentos sociais e grupos de familiares de setores atingidos pela repressão.

Resultados As atividades citadas anteriormente serviram de base para a elaboração de um relatório de balanço sobre o ensino de história sobre a ditadura nas escolas com vistas a auxiliar a formulação de propostas de recomendações para o relatório final da Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio). Nesse sentido, foi elaborado um documento que visa apontar reflexões iniciais sobre o “estado da arte” do ensino da temática da ditadura militar e seu legado no ensino básico, além da apresentação de algumas experiências de políticas de ensino de história e ditadura no Cone Sul. Em seguida, foram expostas quatro propostas de recomendações, acompanhada por órgãos responsáveis e justifica-

Diferentemente das reivindicações pelas alterações na LDB relacionadas ao ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena, que mostraram a existência de uma obrigação socialmente compartilhada e o reconhecimento público por parte do Estado brasileiro de promover políticas reparatórias às populações afrodescendentes, as

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demandas pela recuperação da memória dos significados do regime ditatorial ainda se encontram marcadas pelos combates individuais, dos familiares e grupos diretamente atingidos. A despeito dos avanços das pesquisas acadêmicas e da abertura gradual dos arquivos da repressão, o significado histórico do golpe de 1964 e suas heranças na conformação da sociedade democrática pós-transição, cujos impactos ultrapassam o plano individual e/ou familiar, ainda é pouco debatido e reconhecido publicamente. É nesse sentido que se faz urgente a intervenção pedagógica do Estado para fomentar discussões mais qualitativas sobre essa temática na educação básica. Conforme descrito anteriormente, no item Encontros de trabalho, as propostas de recomendação para o ensino de história sobre ditadura foram apresentadas à CEV-Rio e representantes de movimentos sociais no dia 10 de julho de 2015, em evento organizado pelo projeto em parceria com a própria CEV-Rio para discutir propostas de recomendações de memória e educação. Além da exposição, foi realizado um debate, que serviu para aprimorar as propostas iniciais. Por fim, salientamos que essa pesquisa não está concluída e terá continuidade até o mês de maio de 2016. Alguns desdobramentos podem ser destacados: finalizar a análise dos livros didáticos; avançar no estudo bibliográfico sobre história, memória e ensino; organizar um fórum com professores de história das redes pública e privada do estado do Rio de Janeiro para debater as propostas de recomendação e pensar em outras vias de encaminhá-las ao poder público. Essas atividades contribuirão para a produção de um relatório de balanço mais completo que irá acompanhar as propostas de políticas reparatórias na esfera educacional.

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PARTE II

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INTRODUÇÃO

Nesta segunda parte do relatório, serão expostos os produtos de pesquisa que irão subsidiar o trabalho da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio). Em um primeiro momento, será apresentada a Topografia da Repressão no Estado do Rio de Janeiro. Em seguida, serão expostas Recomendações de Políticas Públicas de Memória, que encontram-se divididas em 3 eixos: “Centros de Memória e Memoriais”,“Monumentos, Marcas e Sinalizações” e “Política de Educação e Cultura em Direitos Humanos”. O terceiro produto consiste em uma investigação sobre o Ensino de História sobre ditadura militar nas escolas, além da elaboração de três recomendações sobre o tema. O quarto e último produto apresentado são os anais do Workshop Internacional sobre Política de Memória na América Latina e na África do Sul.



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TOPOGRAFIA DA REPRESSテグ


INTRODUÇÃO

A presente Topografia da Repressão consiste em um exercício de sobreposição, a uma cartografia de lugares, uma topografia – temporal e temática – que toma os lugares (topos) como repositórios, que articulam a história factual às memórias traumáticas e testemunhais daqueles que por estes lugares passaram durante o período da ditadura militar e, quando pertinente, aos processos sociais do presente no estado do Rio de Janeiro. Dessa forma, apresenta-se uma rede de lugares, marcados territorialmente, conectados entre si, no quais, textualmente, as dimensões temporal e temática se sobrepõem e se articulam, o que expõe a complexidade e multiplicidade das estratégias de poder específicas e das experiências sociais neste longo período histórico em que consiste a ditadura militar. O golpe civil-militar de 31 de março de 1964 representou um corte na lógica de exceção e de violência recorrente na história política brasileira. Orientado pela Doutrina de Segurança Nacional, disseminada durante a Guerra Fria e, no Brasil, com a criação da Escola Superior de Guerra (ESG), e por um projeto econômico nacional-modernizante, o regime ditatorial pós-64 levou à frente uma dupla tarefa. Por um lado, se constituiu em“instrumento de reenquadramento”1 de setores

1 PADRÓS, Enrique Serra. América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado. Rio de Janeiro: História e Luta de Classes, n.4, jul.2007, p.43-49.


populares fortemente mobilizados no campo e nas cidades, em sindicatos e movimentos sociais de caráter heterogêneo. Desde meados da década de 1950, amplos setores de trabalhadores moviam-se em torno de um projeto “nacionalista-reformista”, defendendo maior autonomia de atuação com relação ao Estado e um conjunto de reformas de base, que garantissem o desenvolvimento nacional articulado a um amplo planejamento de reforma agrária.2 Por outro lado, o regime ditatorial marcou a inserção do Brasil num novo padrão de acumulação capitalista, baseado na crescente associação do capital nacional com o estrangeiro. Os governos pós-64 adotaram uma política de estabilização econômica, frente à estagnação do crescimento econômico acelerado brasileiro que vinha desde fins da Segunda Guerra Mundial. Para aplacar o processo inflacionário dos primeiros anos da década de 1960, os governos militares adotaram uma política fiscal, creditícia e trabalhista que, segundo eles, garantiria as condições de expansão do setor privado para retomar o crescimento econômico do país. O Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), apresentado pelo governo de Castelo Branco em 1964, tinha exatamente esses objetivos. Em linhas gerais, o regime ditatorial buscou criar melhores condições para atrair capitais estrangeiros; optou pelo aumento da flexibilidade na contratação e demissão de trabalhadores, substituindo as indenizações pagas pelo empregador pelo mecanismo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS)3; promoveu

a intervenção nos sindicatos mais ativos para evitar a eclosão de greves; reorganizou o sistema financeiro com a centralização dos capitais bancários; aumentou o crédito e as cadernetas de poupança para incentivar as vendas e promoveu a indústria da construção civil. A partir de 1968 a nova política econômica passou a dar resultados visíveis, proporcionando o aumento do produto Interno Bruto (PIB), obtido com a ampliação do financiamento externo e das exportações. Entre 1968 e 1973, os governos militares se basearam nos elevados índices de crescimento da economia para construir o que ficou conhecido por “legitimação pela eficácia” no “milagre brasileiro”, concepção positivista que permeava o imaginário de setores militares e seus aliados civis que, junto com o nacionalismo, procuravam divulgar a imagem de um Brasil que, a despeito de populoso, extenso e com altos índices de pobreza, poderia alcançar status de “potência”. Nesse cenário, tornaram-se conhecidas as propagandas de “Brasil, grande”, “Pra frente Brasil!” e “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Esse modelo de crescimento econômico, no entanto, além de obstaculizado pela crise internacional do petróleo a partir de 1973, mostrou sérios obstáculos no que tange aos índices sociais. Com a divulgação do Censo Demográfico de 1970 tornou-se clara a piora na distribuição de renda no Brasil desde a década de 1960 e a ideia de que tal

sião da aposentadoria. A remuneração do fundo e o destino das aplicações eram controlados pelo governo, por isso teria funcionado como uma“poupança forçada”.

2 NEVES, Lucília de Almeida. Trabalhadores na crise do populismo: utopia e reformismo. In: TOLEDO, Caio Navarro de (Org.). 1964: Visões críticas do golpe. Democracia e reformas no populismo. 2 ed. Campinas, S.P.: Editora Unicamp, 2014, p.69-92.

Cf: PRADO, Luiz Carlos. O “milagre brasileiro”: crescimento acelerado, integração internacional e distribuição de renda 1963-1973. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucia de Almeida Neves (Org.). O Brasil republicano. O tempo da ditadura. v.4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. VALERIANO, Maya Damasceno. O processo de precarização das relações de trabalho e a legislação trabalhista: o fim da

3 Com a criação do FGTS o empregador passava a ser obrigado a depositar em

estabilidade no emprego e o FGTS. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal

nome do empregado uma percentagem da remuneração paga para a formação de

Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História,

um fundo que poderia ser usado em caso de dispensa sem justa causa ou na oca-

2008.


crescimento acelerado, como apontaram os economistas de oposição da época4, não poderia ocorrer desvinculado da ampliação da miséria de amplos setores da sociedade. Desse modo, tratava-se de um crescimento econômico que não encontrou barreiras em questões como a desigualdade social ou a piora das condições de vida da maioria da população. A legitimidade do regime militar foi buscada principalmente entre os setores das classes médias, profundamente eufóricos com a expansão de suas possibilidades de consumo de bens duráveis, como eletrodomésticos e automóveis, a partir do alargamento do crédito. Os investimentos provenientes das recém-criadas Cadernetas de Poupança e do FGTS permitiram alavancar a indústria da construção civil, tanto a residencial, com o Banco Nacional de Habitação (BNH), quanto de infraestrutura com as grandes obras de modernização, que privilegiavam as empresas privadas nos ramos mais lucrativos, reservando para as estatais as áreas mais custosas como energia e telecomunicações. A política econômica do regime militar, inspirada na fala do próprio presidente Emílio Garrastazu Médici “o Brasil vai bem, mas o povo vai mal”, foi amplamente divulgada com a propaganda nacionalista da modernização, ao passo que, nos porões do regime, os adversários foram duramente reprimidos. Distintos movimentos de oposição formados por sindicalistas, estudantes, camponeses, movimentos de guerrilha, associações de moradores e indígenas foram coibidos com o uso de métodos refinados de vigilância, controle, sequestro, tortura e desaparecimentos forçados, todos pouco ou nada conhecidos por extensos setores da população. As duas tarefas constituíam dois lados

de uma mesma moeda: o mundo dos negócios associado aos subterrâneos da repressão.5 Na realização desta razão política, a ditadura montou uma estrutura complexa e não homogênea de órgãos e diretrizes e estabeleceu uma prática e uma dinâmica de espionagem e repressão que, embora sofrendo variações significativas ao longo dos vinte e um anos de regime, tiveram alcance, intensidade, capilaridade e eficácia inéditos. O agir repressivo desta rede de órgãos foi imediato, a partir do golpe, com a instauração do Ato institucional no 1 (AI-1) e a chamada “operação limpeza”, que caçou mandatos, suspendeu direitos políticos, e teve por alvo, fundamentalmente, militares, sindicalistas e políticos.6 A partir de então começou a delinear-se a tensão interna no seio das forças armadas e uma “aliança ambígua” entre o que seriam os “moderados” e os “linha dura” mais diretamente vinculados aos órgãos de inteligência e repressão, embora ambos fizessem parte de um mesmo sistema em que a cadeia hierárquica militar operava.7 Os Atos Institucionais (AI) eram baseados em instrumentos de legalidade criados pelo regime, como alternativa à constituição de 1946, e constituíram uma estrutura que foi variando ao longo do tempo e ganhando cada vez mais eficiência. O sistema de informação e repressão, com o fortalecimento do poder e influencia da chamada “linha dura”, contou com a permissão para investigar prender e interrogar, erigindo-se como polícia política. Este processo se desenvolveu especialmente a partir do AI-2, em 1965, que extinguiu partidos políticos

5 ARANTES, Paulo. 1964, o ano que não terminou. In: SAFATLE, Vladimir & TE4 Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares. Cf: FURTADO, Celso. O Brasil pós-“milagre”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. TAVARES, Maria da Conceição & ASSIS, José Carlos. O grande salto para o caos: a economia política e a política econômica do regime autoritário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

LES, Edson. (Org.) O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p.205-236. 6 FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.34-35. 7 Idem, p.21.


e garantiu amplos poderes ao presidente, encontrando seu momento culminante na outorga do AI-5, em 1968, em que garantias constitucionais foram suspensas. Esse espiral repressivo teve como mote o combate à “escalada do terrorismo”, da “subversão” e dos “inimigos do Estado”, transformando as estruturas e funções, intensificando o agir repressivo e a disseminação do terror do Estado. Os alvos primordiais nessa fase eram estudantes e opositores de esquerda. Nesse sentido, duas foram as características básicas das profundas alterações realizadas na estrutura do sistema de segurança do Estado ressaltadas pelo Relatório Brasil Nunca Mais8. A primeira se referiu ao gigantismo e à contínua proliferação de órgãos de segurança. A segunda consistiu na tendência a uma grande autonomia à operatividade dos organismos criados, o que resultou em tensões entre algumas figuras, sem que deixassem de estar inseridos em uma estrutura altamente hierarquizada e desejadamente repressiva9. Em uma primeira etapa, o regime se limitou a hipertrofiar os órgãos de repressão política já existentes antes de 1964. Conforme avançou a resistência popular, no entanto, passou-se à criação de organismos mais adaptados à nova legalidade, dotados, por vezes, de uma estrutura clandestina e orientados a atuar à margem dos clássicos institutos jurídicos de proteção de direitos. Nesse sentido, o AI-5 e a absoluta autoridade dos altos comandos militares serviram de proteção ao trabalho das forças repressivas, independentemente dos métodos utilizados10.

8 ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985.

Assim, a prática da repressão política nunca foi exercida por uma única organização, mas pela combinação de diversas instituições, com preponderância de atuação das Forças Armadas e com importante participação das Polícias Civil e Militar. Além destas, contou-se também com a participação de civis que financiavam, apoiavam ou participavam das ações repressivas, o que comprovadamente ocorreu em São Paulo, a partir de 1969, por meio da Operação Bandeirantes (Oban) e, posteriormente, com os Destacamentos de Operações de Informações – Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), instalados em diversas capitais do país,11 sendo o DOI-CODI do 1o Exército, no Rio de Janeiro um dos principais elementos desta rede. A produção de informações, em termos burocráticos e operacionais, ocorreu em âmbito nacional e organizou-se hierarquicamente: em suas bases estavam as salas de tortura e no topo a Presidência, o Conselho de Segurança Nacional (CSN) e o Serviço Nacional de Informações (SNI)12. Na execução do papel de coordenador do Sistema, o CSN delegava plenos poderes ao SNI, criado por lei em 13 de junho de 1964. O SNI tinha sede em Brasília e possuía orçamento que tramitava de forma secreta, sendo destinado à gestão das atividades de informação em todo território brasileiro, sendo presidido pelo general-presidente e tendo como secretário o chefe da Casa Militar da Presidência da República13. Era responsável pelas principais ações de contra-informação, chegando a contar com oito agências regionais em capitais e podendo ainda criar “núcleos de agência em cida-

11 BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Comissão Nacional da Verdade – Brasília: CNV, 2014, p.122.

9 ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil Nunca Mais. Tomo I: O Regime Militar, p.

12 ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil Nunca Mais. Tomo I: O Regime Militar,

67.

p.69.

10 Idem.

13 Idem.


des menores, de acordo com a necessidade”14. No Rio de Janeiro, a agência se localizava no 13o andar do edifício do Ministério da Fazenda, na Avenida Presidente Antônio Carlos, no centro da cidade. Além disso, houve, a partir de 1967, ampliação do controle do SNI sobre a administração pública por meio das chamadas Divisões de Segurança e Informações (DSIs), existentes em cada ministério civil e as Assessorias de Segurança e Informações (ASIs) em outras instituições como universidades, fundações e empresas públicas. Cabia a cada ministro “proporcionar às DSI, em regime de prioridade, assessoria especializada temporária e recursos suficientes para o desempenho das atividades, estudos e levantamentos necessários à produção de informações de interesse para a política ministerial (...)”15, conforme o Decreto 60.940/1967. A importância do SNI no funcionamento geral do sistema pode ser evidenciada por alguns indicadores precisos: seu comandante, com título de ministro, era um dos quatro que mantinha encontro diário com o presidente da República16. Além disso, foi deste órgão que saíram dois dos presidentes militares desde 1964: Emilio Garrastazu Médici (1969-1974) e João Batista Figueiredo (1979-1985). Conforme aponta o Relatório Brasil Nunca Mais, a função do órgão era investigar a vida de civis e militares indicadas aos cargos de administração, acompanhar o trabalho de organismos mais diretamente voltados para a repressão política e criar fichários registrando cidadãos que tevessem sido detectados como agentes ou meros simpatizantes

dos mais diversificados tipos de atividade crítica ao regime17, abastecendo a presidência com informações consideradas de relevância. Vale mencionar que dado o grau de sofisticação e burocratização do dispositivo de informação e repressão, foi criada a Escola Nacional de Informações (EsNI), em maio de 1971,18 a quem cabia a preparação e treinamento especializado de agentes de informação voltada para o treinamento especializado dos mesmos. As forças armadas estavam no cerne organizacional do SNI e da chamada “comunidade de informações”, termo utilizado pela ditadura para referir-se à rede de informações em âmbito federal estruturada para produzir e difundir informações relevantes para a segurança nacional.19 Os órgãos das três Armas que atuavam diretamente na repressão, subordinadas aos Estados-Maiores de cada uma delas, executando as diretrizes oriundas do escalões superiores correspondiam ao Centro de Informações do Exército (CIE), criado em 1967; o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e o Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA)20. Este trio assumia caráter militar e policial, uma vez que se afirmavam mais capazes que os órgãos civis21, o que também gerava tensões nas relações no interior do dispositivo repressivo. O CIE, que funcionava no centro do Rio de Janeiro, no Palácio Duque de Caxias, preponderava sobre os demais, sendo o mais forte e

17 Ibidem, p.70. 18 ISHAQ, Vivien; FRANCO, Pablo; SOUSA, Teresa. A escrita da repressão e da 14 FICO, Carlos. Como eles agiam. Op. Cit., p.82-83. 15 ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil Nunca Mais. Tomo I: O Regime Militar,

subversão, 1964-1985. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012, p.139. 19 Idem, p. 109.

p.70.

20 Ibidem.

16 Idem, p.71.

21 FICO, Carlos. Como eles agiam. Op. Cit., p.90-92.


atuante ao longo dos governos militares22. Também conhecido como edifício do antigo Ministério da Guerra, o prédio do onde funcionava o CIE é também citado em testemunhos de ex-presos políticos que passaram pelo DOI-CODI e pela Casa da Morte de Petrópolis, aparelho repressivo montado pelo CIE. O CENIMAR, único existente antes de 1964, se notabilizou particularmente no período imediatamente posterior ao golpe e foi reestruturado em 1971, sendo consideravelmente fortalecido23. Foram três as sedes no CENIMAR no Rio de Janeiro, todos locais nos quais opositores foram torturados e presos: 5º andar do prédio central do Ministério da Marinha, Ilha das Flores e Ilha das Cobras. O CISA, criado em 1970 a partir das experiências do CENIMAR e do CIE, logo passou a ser representado no Rio de Janeiro pelo Escalão Recuado do CISA (ReCisa) e esteve ligado às numerosas prisões efetuadas pelos agentes da Aeronáutica, que encaminhavam muitos presos à unidade da Base Aérea do Galeão24 e ao Terceiro Comando Aéreo Regional (III COMAR), localizado nas proximidades do aeroporto Santos Dumont, onde diversas pessoas foram levadas para prestar depoimento e serem interrogadas no período. Entre 1969 e 1970, foram criados os CODI (Centro de Operações e Defesa Interna), no Exército, formalizando um comando que abrangia também as duas outras Armas. Os órgãos militares também desempenhavam operações de segurança que ultrapassavam os limites da

coleta de informação, e eram coordenados pelos CODI25. Cada CODI contava ainda com um ou mais Destacamento de Operações e Informações (DOI), encarregado de executar as prisões, investigações e interrogatórios. Os DOI-CODI eram comandados por um oficial do Exército, em geral, major ou coronel, e tinham orçamento regular. Para a instrução de inquéritos encaminhados à Justiça, os DOI se articulavam com o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e o Departamento de Polícia Federal (DPF) de maneira que, em geral, o DOI-CODI se encarregava dos interrogatórios e remetia os presos indiciados ao DOPS ou à DPF para a formalização do inquérito26. No Rio de Janeiro, o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), histórica polícia política da antiga capital da República, era o órgão vinculado ao Departamento Estadual de Segurança Pública (DESP) do então Estado da Guanabara. Este órgão que era quase sempre comandado por um oficial superior do Exército27, exerceu papel central no dispositivo repressivo em articulação com o DOI-CODI, o CENIMAR, o CIE e o CISA, além da Polícia Militar e da Polícia Federal. Os textos a seguir evidenciam a atuação desse dispositivo repressivo montado pela ditadura, baseado no medo e na vigilância, e que impôs censura, prisões, torturas, assassinatos e desaparecimentos no Rio de Janeiro, podendo ser compreendido não somente no seu modo de agir, mas também nos efeitos gerados para aqueles que foram seu alvo. Esta topografia se propõe a propiciar ao leitor o acesso à história de cada um desses lugares, contada a partir dos eventos singulares

25 FICO, Carlos. Como eles agiam. Op. Cit, p.90. 22 Idem. 23 ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil Nunca Mais. Tomo I: O Regime Militar, p.71. 24 Idem.

26 BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Comissão Nacional da Verdade – Brasília: CNV, 2014, p.13. 27 ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil Nunca Mais. Tomo I: O Regime Militar, p.75.


ali ocorridos, dos atores que dele fizeram parte e dos testemunhos existentes. Nesse sentido, os locais identificados são trabalhados enquanto repositórios de memória de eventos relacionados à repressão e à resistência, de caráter coletivo, que tiveram lugar em cidades e zonas rurais do Estado do Rio de Janeiro. Por isso, a Topografia da Memória será composta pelo mapa do Estado e de cada município, onde se podem identificar lugares de memória sobre o dispositivo repressivo da ditadura, os quais funcionam como índices dos pontos mapeados. Cada lugar será representado por um texto, um mapa de localização e imagens relacionadas à sua história. O objetivo central da proposta é propiciar ao leitor o acesso à história de cada um desses lugares, contada a partir dos eventos ali ocorridos, dos atores e dos testemunhos. No município do Rio de Janeiro, foram mapeados o DOI-CODI, o DOPS/GB, a Base Aérea do Galeão, a Chacina do PCBR, a Chacina de Quintino, o Hospital Central do Exército, a Ilha das Cobras, a Invernada de Olaria, o Presídio de Frei Caneca, o Presídio Talavera Bruce, a Vila Militar e a 4ª Subseção de Vigilância do Alto da Boa Vista. Em Niterói, constam o Centro de Armamento da Marinha, o DOPS/RJ, a Fortaleza de Santa Cruz e o Estádio Caio Martins. Em Macaé, a Delegacia de Polícia e o Clube Ypiranga. Além dos lugares mencionados, também fazem parte do documento: o BIB (Barra Mansa), a Casa da Morte (Petrópolis), a Ilha das Flores (São Gonçalo), os Navios-prisão (Baía de Guanabara), o Presídio da Ilha Grande (Angra dos Reis) e alguns centros clandestinos de sequestro, tortura ou desaparecimento não investigados ou não identificados, sendo eles a Casa de São Conrado, o Sitio de São João de Meriti e a Usina de Cambahyba.



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MAPA DOS LUGARES DE MEMÓRIA DA REPRESSÃO NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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DEPARTAMENTO DE ORDEM POLÍTICA E

recimento forçado e morte de pessoas durante a ditadura militar, formado pelo Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA), Serviço Nacional de Informações (SNI) e os DOI-CODI. A fama da polícia política a tornou conhecida e temida por amplos segmentos sociais durante ditadura. Por esse motivo, o local atualmente é conhecido como o “prédio do DOPS”.

SOCIAL (DOPS/RJ) (Localização: Rua da Relação, no40, Centro, Rio de Janeiro, RJ)

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

Ao longo da história republicana brasileira, distintos órgãos com função de polícia política funcionaram no edifício, que fora concebido como uma dentre as várias construções destinadas a enaltecer o Estado republicano e a modernização urbana, em curso no início do século XX. Em 1908, um decreto do Congresso Nacional autorizou a construção do edifício que primeiro sediou a Repartição Central de Polícia e serviços anexos. Encomendado ao arquiteto Heitor de Mello, o projeto em estilo eclético objetivou refletir o significado da função policial, mesclando a exuberância do monumento com sofisticação e

Entre dezembro de 1962 e março de 1975, o edifício histórico da esquina entre a Rua da Relação e a Rua dos Inválidos, no centro do Rio de Janeiro, foi sede do Departamento de Ordem Política e Social do antigo Estado da Guanabara (DOPS/GB). O DOPS/GB foi a polícia política da ditadura militar, um dos principais órgãos do complexo sistema repressivo de vigilância, perseguição, prisão, tortura, desapa-

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severidade, para alçar a atividade policial à esfera de cientificidade e afirmar simbolicamente a manutenção da ordem. A construção teve duas fases, sendo a primeira entre 1908 e 1910, quando foram construídas duas alas em L, formando a frente e as laterais ao longos das ruas, e a segunda em 1922, em que foram erguidas outras duas alas também em L, fechando a forma panóptica que o edifício guarda até hoje. Durante as primeiras décadas do século XX, a atuação da Polícia Central do Distrito Federal era dirigida ao controle da emergente população urbana, largamente pobre e negra – por meio da repressão à “vadiagem” dos “sem trabalho”, das “casas de batuques”, da capoeira, da prática de “magia” e “curandeirismo” - e, em relação à organização política, aos movimentos de trabalhadores e aos imigrantes europeus difusores do ideário anarquista no Rio de Janeiro. A atuação dos órgãos que estiveram instalados no edifício da Rua da Relação no 40 foi marcada pela função institucionalizada de polícia política. Em 1933, durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas (19301934), com uma reforma da Polícia Civil do Distrito Federal, foi criada a Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS) subordinada diretamente ao Chefe de Polícia, Filinto Strubing Müller (19331942), para exercer a função de polícia política, em substituição à 4a Delegacia Auxiliar de Polícia. Independente da Polícia Administrativa e Judiciária, a DESPS era composta pelas seções de Segurança Política, Segurança Social e Armas e Explosivos, além de um cartório, um gabinete técnico, uma sala de detidos, um arquivo geral e outros serviços. Em 1938, após o golpe que instaurou o Estado Novo (1937-1945) e manteve Getúlio Vargas no governo em uma ditadura, baseado na Lei de Segurança Nacional de 1935, a DESPS passou por ampliação e foi criada a Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS).

Fonte: Memórias Reveladas

Durante a permanência de Vargas no poder, especialmente entre 1935 e 1945, após os levantes comunista, de 1935, e integralista em 1938, membros das organizações a eles ligados sofreram monitoramento,

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censura, perseguição, prisões, tortura e assassinatos. Foi o caso de trabalhadores atuantes no movimento operário, de críticos da esquerda ligados ou não ao Partido Comunista do Brasil (PCB) e à Aliança Nacional Libertadora (ANL), como Graciliano Ramos1, Carlos Marighella, Francisco Solano Trindade, Gregório Bezerra, Apolônio de Carvalho e Luiz Carlos Prestes, entre outros. Membros da Ação Integralista Brasileira (AIB), como Severo Furnier, líder do levante, também foram presos, mortos ou deportados.

mo”, que resultou em nova cassação do registro do Partido Comunista do Brasil (PCB) em 1947, na criação da Escola Superior de Guerra (ESG) em 1949 e, já em 1953, na adoção da nova Lei de Segurança Nacional. O policiamento “anti-insurreicional” ganhava contornos cada vez mais fortes. Neste período, a polícia política passou por um processo de desenvolvimento em sua organização e complexidade, estabelecendo os alicerces dos mecanismos de repressão utilizados a partir de 1964 pela ditadura militar. Com exceção de um dirigente, o órgão foi chefiado exclusivamente por militares de médio escalão nestes anos. Suas atividades voltaram-se à investigação do PCB, das associações de bairro, escolas de samba, associações de mulheres, entre outros,2 constituindo o centro de uma rede de monitoramento político, em que era o principal produtor e armazenador de informações. Além disso, a partir de 1957, o General Amauri Kruel, então Chefe de Polícia do Distrito Federal, junto a outros policiais, como Cecil Borer, marcante agente da polícia política brasileira, montaram uma técnica repressiva, simbolizada pelo que ficou conhecido posteriormente como “Esquadrão da Morte”. Estes grupos de agentes de “elite” da polícia atuavam em diferentes delegacias e batalhões, dentre eles a chamada Invernada de Olaria e a 4a Subseção de Vigilância do Alto da Boa Vista, delegacias famosas pelas torturas e mortes denunciadas em jornais nas décadas de 1950 e 1960.

Um dos casos emblemáticos da repressão na era Vargas, ainda em 1936, foi a captura e prisão de Olga Benário e Luiz Carlos Prestes. Do edifício da Rua da Relação de Olga Benário, judia, alemã e grávida de Anita Leocádia, filha de Prestes, foi enviada ao nazismo alemão, que a executou em uma campo de concentração depois de dar a luz à filha. A história de Prestes, Olga e Anita Leocádia ganhou repercussão internacional e foi um dos símbolos da luta contra a ditadura do Estado Novo de Vargas. Em 1944, com a reforma realizada na Polícia Civil do Distrito Federal, foi criado o Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), com atribuições nacionais e locais, divisões de polícia técnica, marítima, aérea, de fronteiras e a de polícia política e social. A função de polícia política passou a ser exercida pela Divisão de Polícia Política e Social (DPPS), que teve outras nomenclaturas ao longo dos anos, e funcionava com duas delegacias e serviços de investigações e informações. O período entre 1945 e 1964 foi caracterizado em termos formais pelo sistema político democrático com a possibilidade da atuação de setores sociais organizados. Entretanto, no contexto do pós-II Guerra Mundial, com o acirramento da chamada Guerra Fria, a atuação da polícia política direcionou-se para a denominada “caça ao comunis-

O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS/GB) foi criado em 1962, após a transferência do distrito federal para Brasília, no governo de Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1960-1964). Vinculado diretamente ao Departamento Estadual de Segurança Pública,

1 A experiência da prisão foi narrada por Graciliano Ramos em “Memórias do

2 DUARTE, Leila Menezes; ARAUJO, Paulo Roberto Pinto de. A contradita: polí-

Cárcere” publicado em 1953.

cia política e comunismo no Brasil. APERJ: Rio de Janeiro, 2013. p. 24 e 25.

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comandado em geral por um oficial do Exército3, na prática, o DOPS/ GB herdou e atualizou as funções da polícia política, centralizando as informações sobre a “ordem política e social” vindas de outros estados4. Sua estrutura administrativa, inicialmente definida pelo Decreto “N” nº 28 de 15 de julho de 1963, era composta por: Serviços de Operações (Seções de Atividades Antidemocráticas, Atividades Estrangeiras e de Ordem Pública); Serviço de Investigações; Serviço de Fiscalização de armas e explosivo; e Serviços Técnico; além da Seções de Diligências Especiais e de Administração. Posteriormente, em 1967, o Decreto “N” nº 942 alterou a denominação do Serviço de Operações para Divisão de Operações e do Serviço de Investigações para Divisão de Informações, bem como criou o Serviço de Buscas, Divulgação e Operações Especiais. Em 1969, a Divisão de Operações foi ampliada com a criação da Seção de Buscas Especiais (SBE) e da Seção de Buscas Ostensivas (SBO). Foram ainda criadas a Secretaria de Proteção e Segurança (SPS) e a Seção de Controle de Tumultos (SCT), subordinadas ao Serviço de Operações Especiais da Divisão de Operações. Essas transformações administrativas refletiram o processo de “agigantamento” desse órgão de polícia política para exercer vigilância e controle semi-ostensivos e municiar outros órgão da chamada comunidade de informações.

com os estados. Com a outorga do Ato Institucional no 2, em 1965, a Justiça Federal voltou a ter órgão de primeira instância nos estados e foram criadas delegacias regionais da polícia federal. Em 1967, o órgão federal passou a denominar-se Departamento de Polícia Federal (DPF).5 Com a fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 1975, os DOPS desses dois estado foram substituídos pelo Departamento Geral de Investigação Especiais (DGIE), constituído principalmente do Departamento de Polícia Política e Social (DPPS), que exerceu as funções de polícia política compatibilizando a ação na capital e no interior. No período da chamada “distensão política”, sua atuação sofre mudanças, voltando-se em larga escala para o monitoramento dos atos dos movimentos associativos que se reorganizavam, no final da década de setenta, para os eventos públicos e as notícias de jornal sobre a ditadura. O DGIE foi extinto oficialmente em 1983. Durante a ditadura militar, houve uma grande expansão da estrutura do DOPS/GB, em termos administrativos e de pessoal, o que reflete a importância do órgão enquanto parte, junto às Forças Armadas, de uma engrenagem de informação, espionagem, perseguição, tortura, morte e desaparecimento. O DOPS acompanhou a hipertrofia da máquina repressiva, integrando-se a órgãos já existentes e recém instituídos, para aumentar sua eficiência.6 Seus agentes participaram durante toda a ditadura de operações conjuntas com as Forças Armadas, realizando batidas policiais nas ruas e em locais específicos, cumprindo milhares de “pedidos de busca”, para monitorar, prender, interrogar sob tortura, assim como eliminar os opositores políticos, muitas vezes forjando versões oficiais falsas sobre as mortes ocorri-

A separação entre a Polícia Federal e a Polícia Civil da Guanabara, realizada pela transferência da capital federal, gerou uma imediata preocupação do governo com a articulação entre os serviços policiais federal e estadual. Logo em maio de 1960 foi criado o Serviço de Polícia Interestadual e, em junho de 1963, o DFSP passou a poder assinar convênios para o intercâmbio de informações sobre identificação

3 Projeto Brasil Nunca Mais. Tomo IV – As Leis Repressivas, p. 13. 5 APERJ. DOPS: a lógica da desconfiança. Op. Cit. p. 43. nota 4.

4 APERJ. DOPS: a lógica da desconfiança. 2 ed. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Justiça, Aperj, 1996. p.43.

6 Brasil Nunca Mais. Relatório. Tomo I. O Regime Militar. p. 72.

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das. O DOPS/GB também foi o órgão responsável pela emissão dos chamados atestados de antecedentes, necessários para que as pessoas conseguissem emprego, em geral em órgãos públicos. A atividade de infiltração e monitoramento já realizada nas décadas anteriores perdurou e se aprofundou, possibilitado intervenções militares nas organizações de trabalhadores da cidade e do campo e de estudantes, além da perseguição a militares resistentes ao golpe, a militantes do partido comunista e, posteriormente, a membros das organizações de esquerda armada.

preliminares” realizados no DOI-CODI.8 Além disso, Heleno Cruz, ex-soldado do corpo de fuzileiros navais da Ilha das Flores (junho de 1970 a junho de 1971), afirmou à CNV que as sessões de tortura eram conduzidas por oficiais do CENIMAR, agentes cedidos pela Polícia Federal e pelo DOPS/GB.9 Também documentos oficiais demonstram, no caso do assassinato do engenheiro e preso político Raul Amaro Nin Ferreira, que o comandante do I Exército, Sylvio Frota, ordenou em 11 de agosto de 1971 que o comissário Eduardo Rodrigues e o escrivão Jeovah Silva, ambos do DOPS/GB, se apresentassem ao diretor do Hospital Central do Exército para interrogá-lo.10 Raul Amaro morreu sob torturas, neste mesmo interrogatório.11

Durante seu funcionamento, a sede do DOPS/GB serviu como centro de prisão, tortura e morte, além de uma espécie de centro de triagem de presos que, em seguida, eram encaminhados para outros centros oficiais ou clandestinos para serem interrogados sob tortura e, inclusive, mortos, como o Estádio Caio Martins, a Ilha das Cobras, a Ilha das Flores, o DOI-CODI e a Base Aérea do Galeão. De lá, ocorriam, também, transferências para presídios como o Talavera Bruce e o Complexo Frei Caneca.

No que se refere à atuação conjunta do DOPS/GB com o Centro de Informações do Exército (CIE) e seus centros clandestinos de sequestro, tortura e desaparecimento, investigações da CNV sobre o paradeiro de Antônio Joaquim e Carlos Alberto corroboram a participação do órgão. Documentos oficiais demonstram que o DOPS/GB ficou encarregado de investigações, por solicitação do Capitão José Brant Teixeira do CIE, sobre uma ação de distribuição de documentos para possibilitar o retorno dos opositores políticos banidos em 1971. De acordo com a CNV, essas informações corroboram as informações de Inês Etienne Romeo de que ambos foram sequestrados e levados à

A interligação do DOPS/GB com as Forças Armadas pode ser conferida tanto em depoimentos de agentes do Estado quanto em testemunhos de ex-presos políticos. Segundo o general de Brigada Adyr Fiúza de Castro o Centro de Operações e Defesa Interna (CODI), parte integrante do DOI-CODI do 1º Batalhão de Polícia do Exército (1º BPE), contava com um representante do DOPS, além de outros da Polícia Federal e do Sistema Nacional de Informações (SNI).7 Segundo o Relatório Brasil Nunca Mais, os Inquéritos Policiais Militares (IPMs) eram formalizados pelo DOPS ou pela Polícia Federal, com o objetivo de conferir uma “tramitação legal” ao conteúdo de “interrogatórios

8 Brasil Nunca Mais. Relatório. Tomo I. O Regime Militar. p. 74. 9 COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Volume I. Comissão Nacional da Verdade – Brasília : CNV, 2014. p. 159. 10 FERREIRA, Felipe C. Nin; Ferreira, Raul C. Nin; Zelic, Marcelo. Raul Amaro Nin Ferreira: relatório. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2014. Cfr. Ofício no360/DOI, do Ministério do Exército.

7 BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Volume I. Comissão Nacional da Verdade – Brasília : CNV, 2014. p. 141. Cfr. Arquivo CNV,

11 FERREIRA, Felipe C. Nin; Ferreira, Raul C. Nin; Zelic, Marcelo. Raul Amaro Nin

00092.001629/2013-18.

Ferreira: relatório. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2014.

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Casa da Morte de Petrópolis.12

Lima, Carlos Eduardo Pires Fleury, Marcos Pinto de Oliveira, Lígia Maria Salgado Nóbrega, Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo, Wilton Ferreira, Edu Barreto Leite, Luiz Paulo da Cruz, Cloves Dias de Amorim e Luiz Carlos Augusto. Também passaram pelo órgão Alberto Aleixo, morto em decorrência de torturas e maus tratos no Hospital Souza Aguiar, e Caiupy Alves de Castro, desaparecido desde 1973.

Dentre os presos políticos, oficialmente reconhecidos até o momento, que foram mortos em decorrência da ação de agentes do Estado durante a ditadura, José de Souza, membro do Sindicato dos Ferroviários do Rio de Janeiro, negro, é um exemplo de morte no interior do prédio da Rua da Relação em 1964. Em depoimento prestado à Comissão de Direitos Humanos e Assistência Jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ), outro preso político, José Ferreira, relatou:

O edifício tem dois espaços de prisão distintos os quais o órgão dispunha para separar homens e mulheres. As mulheres iam para o Depósito de Presos São Judas Tadeu, no térreo. Os homens iam para a carceragem do terceiro andar, onde se encontra ainda hoje uma sala com proteção acústica que parece ter servido como sala de tortura, uma cela conhecida como “ratão”, outra como “maracanã”, entre outras. Ambas as carceragens contam com solitárias. (ver plantas do térreo e do 2o pavimento a seguir)

ter chegado às dependências do DOPS/GB por volta do dia 8 de abril de 1964 e ter sido mantido em uma sala do edifício com cerca de 100 pessoas, inclusive José de Souza. Relatou que ao longo do período em que estiveram detidos perceberam que “quando os presos iam prestar depoimento, voltavam normalmente desmaiados” e que “constantemente escutava gritos e tiros de metralhadora nas dependências do DOPS”. Disse que José de Souza se encontrava bastante nervoso pelo fato de estar preso. Segundo o relato, no dia 17 de abril, os presos que ocupavam a sala mencionada foram acordados por agentes da repressão avisando que o corpo de José de Souza havia sido encontrado no pátio da delegacia.13

O testemunho de João Figueiró corrobora o histórico violento das polícias políticas que funcionaram no edifício. O ex-militante do PCB, aos 88 anos testemunhou à CEV-Rio, em 4 de novembro de 2013, quando afirmou: As minhas unhas foram arrancadas duas vezes: na ditadura do Vargas e na ditadura militar.(...) Eu me sinto mal [próximo ao prédio], pois me faz lembrar quando a gente estava no pau de arara e na cadeira do dragão. Eu não posso ouvir um miado de gato de noite, porque me faz lembrar as torturas dos companheiros e os gritos deles. É horrível. Tenho pesadelos. Isso não passa nunca.14

Agentes do DOPS/GB também estiveram, comprovadamente, envolvidos na morte de Reinaldo Silveira Pimenta, Marcos Antônio da Silva

14 Agencia Brasil.“Comissão da Verdade do Rio quer transformar antigo prédio do

12 BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Volume I. Comis-

Dops em centro de memória”, de 04 de novembro de 2013. Disponível em: http://

são Nacional da Verdade – Brasília : CNV, 2014. p. 538.

memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-11-04/comissao-da-verdade-do-rio-quer-transformar-antigo-predio-do-dops-em-centro-de-memoria.

13 BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Volume III. Comissão Nacional da Verdade – Brasília : CNV, 2014. pp. 143 e 144.

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camentos e choques elétricos da mesma maneira que os presos políticos em todo Brasil, depois no DOI-CODI, foram torturados. O que significa que a polícia civil na época utilizava esses mesmos meios. Depois de algum tempo, Jairo de Lima, titular da Delegacia de Forças da época ... resolveu fazer uma visita ao DOPS (...). A decisão foi entregar então ao DOI-CODI, à época o Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército, no dia 20 de julho de 1969. Sofri no DOI-CODI as mesmas torturas que comecei a sofrer aqui [no DOPS], por muito mais tempo, muito mais rebuscadas em sua busca de informação, mas sendo aplicado somente o mesmo método. (Testemunho de Newton Leão Duarte concedido à CEV-Rio)

A atuação do DOPS/GB após o golpe de 1964 foi retratada no testemunho prestado por Newton Leão à CEV-Rio também em audiência no dia 4 de novembro de 2013: (...) o DOPS funcionava nesse prédio, e o DOPS era o principal organismo de repressão aos movimentos políticos. Nesse período todos nós, estudantes e participantes do movimento estudantil (…) a nossa sombra, nosso medo, nossa assombração eram as equipes daqui. Essas equipes atuavam ostensivamente nas manifestações, ostensivamente nas universidades, quem era estudante universitário na época deve lembrar dos camburões cinzas com uma faixa amarela escrito “DOPS”. Eles eram ostensivos. E eram também secretos, escondidos, infiltrados nos movimentos e manifestações. Então durante esse período, de 1966 à 1968, essa era a casa da repressão.(Testemunho de Newton Leão Duarte concedido à CEV-Rio)

Outros depoimentos de ex-presos demonstram a utilização de tortura no interior da sede do DOPS. Em 1968, Samuel Henrique Maleval, membro do Sindicato dos Bancários, foi preso durante a passeata dos 100 mil e, ao lembrar que os torturadores do DOPS/GB batiam com porretes, afirma:

Além disso, seu depoimento demonstra a relação entre a polícia civil, as forças armadas e figuras conhecidas do chamado “Esquadrão da Morte” na execução da repressão:

Sangrávamos muito na boca, nas mãos, nas pernas. Perdi vários dentes, mas muitos perderam a vida.15

A minha primeira visita à esse prédio ocorreu em 1969, já militando na ALN, quando fui detido - eu e um companheiro, Jorge (…) que era menor à época e eu tinha 19 anos - pelo policial Mariel Mariscot de Matos, um agente da Delegacia de Força de Roubos e Furtos de Automóveis, combatendo evidentemente os esforços que nós combatentes revolucionários utilizámos para nossas ações. Eu fui trazido aqui, para um prédio que era anexo a esse prédio aqui do DOPS. Onde hoje está esse belíssimo prédio da secretaria de segurança, isso aí na verdade era uma sede de anexo da Delegacia de Forças de Roubos e Furtos de Automóveis que funcionava exatamente aqui. Nessa delegacia aqui eu e o companheiro Jorge (...) fomos barbaramente torturados por espan-

Também em 1968, Paulo Gomes, esteve preso no DOPS/GB e relatou as torturas vividas: No dia 31 de outubro de 1968 eu fui violentamente torturado. Eles me deixaram cinco horas com os braços abertos com uma lista telefônica

15 Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro.“Ex-dirigentes do Sindicato dos Bancários do Rio testemunham sobre crimes da ditadura militar”. Disponível em: http:// cutrj.org.br/noticias/ex-dirigentes-do-sindicato-dos-bancarios-do-rio-testemunham-sobre-crimes-da-dita-9828/. Acessado em: 24/07/15.

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em cada mão, em cima de uma lata. E eu não resistindo, apesar de ser novo naquela época, [recebia] porrada, telefones, socos... Eu respondi ao processo na Primeira Auditoria do Exército da I Região Militar e fui condenado a doze meses de prisão. Na volta, dentro de camburão[...], eu tentei fugir [...]. Eu fui subjugado, trazido novamente aqui para o DOPS e fiquei cinco dias em um solitária. Uma cela infecta, imunda, sem água sem banheiro, sem nada. Foram dias terríveis esses cinco dias.16 (Paulo Gomes. Relato concedido ao Jornal O Globo para a reportagem de 15/01/2013 intitulada “No porão da Ditadura”.) (ver planta do 2o pavimento a seguir)

encontrado em minha residência. Fiquei sob interrogatório, sendo agredida verbalmente, ininterruptamente, por toda aquela noite e parte do dia seguinte.” (Cecília Coimbra. Testemunho encaminhado à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro e à Comissão Nacional da Verdade)

Os depoimentos de mulheres presas e torturadas dão conta da violência de gênero, tanto na dimensão psicológica quanto física da tortura, como forma de aprofundar as violações sofridas: “Em 26/08/1970, à tardinha, o Serviço de Buscas do DOPS/RJ invadiu minha residência, onde apreendeu dezenas de livros e alguns documentos. Fui presa e levada, junto com meu marido José Novaes, pelo inspetor Jair Gonçalves da Mota – que parecia chefiar a operação – para a Sede do DOPS/RJ, à Rua da Relação. Ao chegar ao 2º andar do prédio do DOPS/RJ, recebeu-nos, com gritos, impropérios e palavrões, o diretor do DOPS/RJ à época, o delegado Mário Borges que me intimidava aos berros: “Fale, sua puta comunista, com quantos você trepou?”. Fui separada de meu marido, sendo levada para uma sala – naquele 2º andar – onde dois homens que não consegui identificar (um deles era alto, forte, mulato, com cabelos pretos, curtos e bem encaracolados) – revezavam-se no interrogatório. Queriam que eu escrevesse sobre minhas atividades “subversivas” e informasse a origem de um dos documentos

16 Relato de Paulo Gomes concedido ao Jornal O Globo para a reportagem de

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

15/01/2013 intitulada “No porão da Ditadura”. Disponível em:

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Maria Helena Pereira relata a situação de tortura que a levou a abortar e lhe deixou sequelas que causaram outro aborto meses depois:

ainda, embora eu já tivesse perdido o filho. (…) Eles não me mandaram levar nada para lá, então havia uma possibilidade de eu voltar para o DOPS e, de fato, eu voltei. No meio da noite. Depois de 5-6 meses, [o advogado] conseguiu meu relaxamento de prisão. Quando eu saí eu fui ao medico. Depois desse tempo todo sem atendimento nenhum…” (Maria Helena Pereira. Testemunho concedido à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro)

“(...) Fui presa em 20 de janeiro de 1972. (...) Fui levada para o DOPS. E, lá, um sujeito que não sei se o nome é verdadeiro ou falso, era o mais violento. Era o Capitão Jair. Comecei logo a apanhar. Imediatamente ele começou a me dar chute, e chute na barriga, me bateu muito de palmatória e me espancou. E aí logo eu comecei a perder sangue e abortei, ali mesmo. Ele dava muito soco, telefone, mas principalmente ele batia muito na barriga. E eu dizia: mas por que você me bate tanto na barriga? E ele dizia: Porque é menos um comunista. E continuava a bater, bater e bater. E aí eu comecei a sangrar muito. Eu nem falava nada na verdade, na hora, estava muito abestada. E aí eles me levaram para a solitária. Que era lá em baixo no depósito. Ali eu fiquei. Não tive assistência, não tive nada. A solitária que eu fiquei não tinha nada. Nada. não tinha cama, nada. Só tinha o buraco do “banheiro”, chamado “boi”. Não tinha banco não tinha nada. Ali, só as presas comuns tinham acesso. Elas viram aquele sangue todo e me deram uns panos. Pareciam panos de chão. Uma coisa meio suja. Mas era o que tinha. Eu não lembro quanto tempo eu fiquei na solitária. Eu me lembro que toda hora eles me subiam para fazer interrogatório.(...) Eu fiquei talvez uma semana, dez dias. Sem nenhuma assistência, sem nada. E todo dia eu subia. Apanhava mais um pouco. Descia. Apanhava mais um pouco. Descia. Até que eles me colocaram na cela comum onde tinha duas presas políticas e as outras eram presas comuns. Nós procurávamos uma cela só para presas políticas. Mas ali não havia espaço. Ali era um depósito. Todo mundo ia para lá e de lá, para Talavera Bruce etc.. (...) Mesmo na cela comum, virava e mexia eu era chamada para depor, apanhava um pouco mais, amaçavam estupro, passavam a mão em mim, tiravam a roupa. Acho que nada aconteceu não era porque eles eram decentes. Era por um certo nojo… aquela sangueira toda… (...) Até que eu fui mandada para o CENIMAR. Ali a barra pesou mais

Fonte: Acervo Correio da Manhã do Arquivo Nacional Legenda: presos políticos no interior do edifício do DOPS/GB em 1969

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As carceragens do DOPS também foram utilizadas para cumprimento de pena por alguns presos. O relato de Newton Leão Duarte também descreve o cotidiano daqueles que estiveram presos por maiores períodos no DOPS, assim como o significado que este lugar tinha:

Ana Miranda relata sua experiência ao longo do tempo que esteve detida, após três anos presa em São Paulo, no chamado “Depósito de Presos São Judas Tadeu”, no térreo do edifício (ver planta do térreo a seguir):

Eu vim para o DOPS por volta de agosto ou setembro de 1970 e fiquei aqui durante uns três meses até ser transferido para a Penitenciária Frei Caneca, com vistas à ser mandado para o Presídio de Ilha Grande. Aqui no DOPS, na época, existia uma espécie de clima de tranquilidade. Todos que saiam do DOI-CODI, ou que vinham do CENIMAR ou outra organização militar, chegavam aqui com a ilusão, ou pelo menos com a esperança, de que não houvesse mais sevícias e torturas. Realmente, em geral, não havia. Digo em geral porque sempre que havia alguma necessidade de investigação, éramos levados de volta ao DOI-CODI, ao CENIMAR, ao CISA para novos interrogatórios ou transferidos para outros Estados onde estivessem ocorrendo outras investigações. Nada garantia que não haveria mais tortura, mas de qualquer maneira o ambiente era mais tranquilo. Essa tranquilidade era extremamente preocupante. (...) Era um paraíso perverso. (...) Nós tínhamos a possibilidade de fazer boas discussões políticas. Essa situação era boa mas também era dúbia, conflitante. Todos nós tínhamos desconfiança que houvessem infiltrações. Era muito fácil os militares infiltrarem agentes que no coletivo participassem das discussões políticas e levassem as informações. Isso era uma espécie de fantasma que nós carregávamos. Fantasma, esse, que eu vim a confirmar quando vim buscar minha documentação do Arquivo Público do Rio de Janeiro e descobri lá relatórios de agentes infiltrados onde elencavam referências, nomeavam todos os presos, diziam e descreviam comportamento de cada um, as ideias ali, e davam sugestões de novas infiltrações. (Newton Leão Duarte. Testemunho concedido à CEV-Rio)

Finalmente, fui transportada para o Rio. Me levaram de volta par ao DOI-CODI. (...) Fiquei no DOI-CODI por uma semana, sem contato com a minha advogada. (...)Depois fui levada para o depósito de presos São Judas Tadeu. Aqui, no térreo desse prédio. (...)Havia uma série de presos comuns por uma série de delitos. A maioria ainda não condenada. Nossa cela abrigava os de “alta periculosidade”. (…)O barulhoera infernal o dia inteiro, desde cedo, pois a cela era fechada. (...) A quantidade de ratos e baratas eraindescritível. Está vendo essa rua branquinha e limpinha, varrida? Era um nojo.Era um lixo.Com as baratas subindo em torrentes em um portão de ferro no verão, tenho sonhos até hoje. (...) Havia dias de calor em que as baratas decidiam voar. Só das grandes. Bem alimentadas com muito lixo. Ratinhos havia poucos. (...) O pavor era com os ratões. Asratazanas que soltavam guinchos à noite e às vezes entravam na cela. Eram de grades de ferro as celas, então era aberto. As presas pediam para as famílias que trouxessem gatos, mas não adiantava. As ratazanas afugentavam os gatos. Eram bravas. Eram leões. Leões do DOPS.

Como não sabiam como tratar as presas políticas, eu era a única que não podia sair no pátio e, portanto, tomar banho de sol. 9 meses sem sol. (...) quando voltei ao Rio a minha liberdade condicional já havia sido pedida, mas foi negada (...) pelo Superior Tribunal Militar. Por isso acabei ficando 9 meses aí.(Testemunho de Ana Miranda Bursztyn concedido à CEV-Rio)

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O DOPS/GB e seu sucessor DGIE também foram os órgãos responsáveis pela perseguição política de milhares de pessoas por meio do monitoramento e do recebimento, processamento e armazenamento de informações. Geraldo Cândido, operário durante as décadas de 1960 e 1970, membro da CEV-Rio, relatou o percurso de perseguição política e monitoramento ideológico envolvendo as administrações das empresas, os sindicatos sob intervenção da ditadura e o DOPS, durante uma audiência CEV-Rio realizada em frente ao edifício:

A principal ferramenta para a perseguição política de milhares de brasileiros era o chamado “Atestado de Antecedentes Políticos e Sociais” ou “atestado de ideologia” ou “atestado de bons antecedentes”, emitido pelo DOPS, até a extinção do órgão em 1983, pelo Governador Leonel Brizola. Um exemplo de como operava essa perseguição também foi relatado por Geraldo Candido:

“Quando eu estava trabalhando no Galeão. Um dia meu chefe falou assim: “Olha, a empresa pediu atestado de ideologia política de todo o pessoas que está trabalhando aqui”. Ai eu pensei: “Me ferrou”. Porque eu sabia que não ia conseguir. (...) Eles deram entrada aqui no DOPS no atestado de ideologia. Aí quando voltou, ele disse: Olha o teu não veio. (...) Aí eu vim aqui. (...) falei com o Chefe de Gabinete do Diretor (..). Ele disse “Você não. Você de jeito nenhum. Você só pode conseguir aqui o atestado se você trouxer um documento assinado por três grandes empresários ou por três oficiais das Forças Armadas”. (...) Por isso, eu perdi o emprego.” (Geraldo Candido. Testemunho concedido à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro)

(…) Um dia eu fui chamado. Trouxeram cinco operários aqui para esse prédio. (…) O Sindicato entregou uma lista para o DOPS. (…) Esses cinco são os envolvidos na panfletagem dentro da fábrica e nas pichações. Passei a noite aqui, fui liberado. (…) Não tinha nada contra mim. Ninguém tinha falado nada. Só que eu fui demitido da fábrica. (…) A partir daí eu passei a viver uma vida difícil porque passei a ser muito monitorado. Quando arranjava emprego, trabalhava um mês, dois meses, e era demitido. Ficavam um tempão, depois arrumava emprego, ficava um mês, dois mêses, três meses, depois era demitido. Eu arrumava emprego porque eu era qualificado. (…) Só que eu entrava na fábrica era demitido por causa da perseguição (…) porque eu estava na lista negra do departamento de segurança. Fiquei até 1978 nessa situação. Não podia mais pagar aluguel da casa porque se vivia desempregado. Fui morar no morro do Complexo do Alemão com dois filhos pequenos. Morar no morro não tem nada demais. O problema era que eu vivia desempregado e as vezes não tinha dinheiro nem para comprar alimentação para a mulher e os filhos. (…) Assim como eu milhares de trabalhadores sofreram por perseguição política. Eles colocavam você numa lista e depois informavam para as empresas que as pessoas era “militantes” ou “agitador comunistas” (…) com um monte de histórias que eles contavam e algumas coisas não são nem verdadeiras. Mas eles faziam assim.” (Geraldo Candido. Testemunho concedido à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro)

Após a extinção do DGIE, em 5 de fevereiro de 1983, os acervos das polícias políticas do Rio de Janeiro foram transferidos para a sede da Superintendência da Polícia Federal na Rua Venezuela, no 2, Centro. Conforme reportagem do Jornal do Brasil, a operação de mudança de um volume de oito caminhões ocorreu sem nenhuma informação oficial e foi realizada por uma firma de mudança privada e dez agentes do órgão.17 Somente em 1992 os documentos foram recolhidos ao

17 Jornal do Brasil. “Gato Preto carrega o DPPS para a Polícia Federal”. p. 19. 6 de fevereiro de 1983.

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Arquivo Público do estado do Rio de Janeiro (APERJ), por meio de ato do Ministério da Justiça. Nesse conjunto documental, encontrava-se o acervo do DOPS/GB que continha uma série de documentos como prontuários individuais, livros de protocolo de correspondência recebida e expedida, registro dos serviços de plantão da delegacia, livro de frequência dos servidores, livro de registro de certidões, registro de porte de armas e registro do serviço fotográfico.

das demandas dos familiares e dos ex-presos políticos, promoveu a reparação pecuniária pelos crimes cometidos pelo Estado brasileiro, mas deixava à cargo dos familiares o ônus probatório sobre a morte ou o desaparecimento de seus entes queridos. O acervo ainda forneceu aos atingidos pela violência do Estado nos anos da ditadura os insumos necessários para a obtenção de reparação pecuniária e simbólica perante a Comissão de Anistia, criada no âmbito do Ministério da Justiça. O acervo documental foi também uma das principais fontes de pesquisa da CNV, entre os meses de abril de 2012 e dezembro de 2014.

O trabalho de recolhimento, contudo, não foi tranquilo, tendo sido marcado por uma série de dificuldades impostas aos pesquisadores, desde problemas na transferência dos arquivos para a sede do APERJ até o mau estado de conservação dos mesmos. À época, Cecília Coimbra, então presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, notificou a retirada, por parte da Polícia, de grande parte da documentação que continha informações sobre desaparecidos políticos:

Por sugestão de Darcy Ribeiro, durante o primeiro governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, com o objetivo de que o prédio não mais fosse um “espaço policial”19, em 7 de maio de 1987, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), deliberou seu tombamento provisório com a seguinte fundamentação:

“em 1992 (...) vimos claramente, nos arquivos do DOPS/RJ, como os documentos sobre os desaparecidos foram retirados pela Polícia Federal. Não há nenhuma prisão, é como se eles não tivessem existido”18.

“Seu tombamento visa à preservação das qualidades arquitetônicas notáveis, mas é também e, sobretudo, um marco e testemunho histórico das lutas populares pela conquista de liberdade e lugar de memória dos que ali foram torturados pela defesa de suas ideias políticas”.20

Apesar dos obstáculos enfrentados, o acervo revelou ser uma valiosa fonte de investigação do funcionamento dos órgãos da repressão e de informações sobre os presos políticos que por lá passaram. A publicização dos referidos documentos permitiu, por exemplo, que os familiares das vítimas da ditadura reunissem a documentação necessária a ser apresentada perante a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, pela Lei 9.140/94. Tal Comissão, muito aquém

Em 2000, Moacir Werneck de Castro publicou um artigo no Jornal do Brasil propondo que o prédio da Rua da Relação fosse destinado para sediar o APERJ. Segundo Jessie Jane, ex-presa na ditadura, historiadora e ex-diretora do APERJ, o autor “vocalizava um antigo desejo de um brasileiro que, como ele, havia vivido um tempo em que a sim-

19 Souza, Jessie Jane Vieira. Rua da Relação, 40: disputas pela memória. (texto pu-

18 Tortura: Nunca Mais. Entrevista de Cecília Coimbra. In: Tempo, Rio de Janeiro

blicado nas redes sociais em 2014).

,vol. 1, 1996, p. 166-183. Disponível em: http://www.historia.uff.br/tempo/entrevistas/entres1-1.pdf. p.9.

20 Idem.

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ples menção daquele endereço era motivo de pavor.”21 Imediatamente abraçada pelo então presidente da FAPERJ, Fernando Pelegrino, a proposta foi trabalhada como solução para a necessidade de o APERJ ter sede própria e para a ampliação de sua capacidade. Em uma intervenção recente, Jessie Jane lembra:

de mortos e desaparecidos e pesquisadores. Este grupo de trabalho realizou algumas diligências no edifício e concluiu, com o suporte de pareceres técnicos do Arquivo Nacional e do APERJ, que documentos de relevância histórica do encontram-se em avançado e permanente estado de deterioração e sob risco de destruição. Estes documentos compreendem certificados de registro de armas e explosivos; de registro de porte de armas das décadas de 1940 a 2011; escalas de serviços e outros documentos referentes ao Departamento De Pessoal; fichas com pareceres sobre idoneidade moral e profissional da segunda metade da década de 1960; pacotes fechados em sacolas plásticas com conteúdo indeterminado e caixas com informações sobre pessoas e operações policiais.24

“Superadas as maiores resistências na cúpula da polícia, a almejada cessão do prédio para o Arquivo ocorreu no início de 2002 em uma cerimônia na qual estavam presentes representantes do legislativo estadual, secretários de Estado, o grupo Tortura Nunca Mais e dezenas de pessoas que, no passado, ali estiveram como prisioneiros. Na ocasião, o então Secretário de Segurança, cel. Josias Quintal, transmitiu a gerência do prédio para a direção do APERJ. Imediatamente os habeas data passaram a ser emitidos na nova sede do arquivo.”22 O projeto de sede do Arquivo Público no edifício se propunha a produzir uma nova leitura sobre aquele espaço: “a criação de um memorial sobre as lutas políticas e sociais ocorridas ao longo da República reafirmava o compromisso da sociedade brasileira com a democracia e com a liberdade”.23 No entanto, não foi dada continuidade àquele projeto e o prédio continuou se deteriorando. Recentemente, no ato de posse da CEV-Rio, no dia 08 de maio de 2013, o então governador Sérgio Cabral fez uma promessa pública de transformar o prédio em um Memorial sobre a ditadura, o que gerou a criação do Grupo de Trabalho DOPS (GT DOPS), coordenado pela CEV-Rio e com participação de ex-presos políticos, familiares

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio Legenda: Arquivos em deterioração ainda armazenados dentro do edifício

21 Idem.

24

22 Idem.

CEV-Rio. Relatório sobre as últimas diligências da CEV-Rio ao Prédio do

DOPS. em 24/11/2014 e 27/11/2014.

23 Idem.

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Trata-se de um projeto que busca promover a memória da resistência e das lutas sociais, mantendo sempre viva a relação entre as violências cometidas pelo Estado no passado e no presente. Ao longo desses dois anos, uma série de atividades políticas e culturais foram organizadas em frente ao prédio do ex-DOPS, como projeção de documentários, debates, exposição de fotos, grafite, apresentações de dança e de peças teatrais, roda de capoeira, roda de samba e a promoção de debates sobre a construção de um centro de memória da resistência e dos direitos humanos. Apesar da intensa mobilização, as reivindicações ainda não foram atendidas pelo governo do estado.

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio Legenda: Arquivos em deterioração ainda armazenados dentro do edifício

Durante os anos após o fim da ditadura militar no Brasil, diversas associações ex-presos e perseguidos políticos e familiares de mortos e desaparecidos que lutam por memória verdade e justiça sobre a repressão da ditadura militar demandam a possibilidade de ressignificação do lugar conhecido como o “prédio do DOPS”. Se no passado, ali era um local de prisão, tortura e morte de opositores da ditadura, hoje, apesar de desativado, o local ainda está associado à repressão policial. Como mais um passo desta reivindicação, em 13 de dezembro de 2013, foi lançada a Campanha OCUPA DOPS, que reúne movimentos de ex-presos políticos, familiares de mortos e desaparecidos e instituições de direitos humanos. O objetivo da campanha é transformar o prédio em um local de reflexão e debate democrático e em um centro de memória vinculado a políticas de direitos humanos e de cultura.

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Referências bibliográficas:

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Fonte: Acervo NDH PUC-Rio Legenda: Intervenção da Campanha Ocupa DOPS no edifício

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https://www.youtube.com/watch?v=446xO8gQkfU#t=22 NEDER, Gizlene. Discurso jurídico e ordem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995. Tortura: Nunca Mais. Entrevista de Cecília Coimbra. In: Tempo, Rio de Janeiro ,vol. 1, 1996, p. 166-183. Disponível em: http://www.historia.uff.br/tempo/entrevistas/ entres1-1.pdf.

SOUZA, Jessie Jane Vieira. Rua da Relação, 40: disputas pela memória. (texto publicado nas redes sociais em 2014). Site da campanha “Ocupa DOPS”: http://ocupa-dops.blogspot.com.br INEPAC sobre o bem tombado “Antigo DOPS – Departamento de Ordem Política e Social”. Número do processo: E-18/300.071/87. Disponível em: http://www.inepac. rj.gov.br/index.php/bens_tombados/detalhar/270. Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro. “Ex-dirigentes do Sindicato dos Bancários do Rio testemunham sobre crimes da ditadura militar”. Disponível em: http:// cutrj.org.br/noticias/ex-dirigentes-do-sindicato-dos-bancarios-do-rio-testemunham-sobre-crimes-da-dita-9828/. Acessado em: 24/07/15. Jornal do Brasil. “Gato Preto carrega o DPPS para a Polícia Federal”. p. 19. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=57506&Pesq=gato%20preto. Souza, Jessie Jane Vieira. Rua da Relação, 40: disputas pela memória. (texto publicado nas redes sociais em 2014). Campanha Ocupa DOPS. Blog: www.ocupa-dops.blogspot.com.br.

A planta de reconhecimento foi elaborada com base nos testemunhos dos ex-presos políticos Ana Miranda Bursztyn e Newton Leão, além das diligências realizadas pela CEV-Rio.

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1979, o DOI-CODI/RJ, órgão subordinado ao I Exército e responsável por centralizar e coordenar a execução de ações repressivas, como a captura, o sequestro, a tortura, o assassinato e o desaparecimento de indivíduos acusados de oposição à ditadura militar. À época, o 1º BPE era composto por comandante, subcomandante, Estado-maior (com 4 seções), quatro Companhias de Polícia e uma Companhia de Comando e Serviço. Essa última era formada por seis pelotões, dentre os quais destaca-se o Pelotão de Investigações Criminais (PIC), responsável por investigar e punir crimes cometidos por militares. Foi precisamente no prédio do PIC, uma estrutura de dois andares localizada nos fundos do 1ºBPE, que o DOI-CODI/RJ foi instalado em 1970, transformando-se em um dos principais centros de prisão ilegal, tortura, morte e desaparecimento forçado do estado do Rio de Janeiro. Vale ressaltar que o PIC já era utilizado como local de prisão e tortura antes mesmo da denominação DOI-CODI ser definida em 1970. Ademais, o 1ºBPE abrigou o DOI-CODI ao mesmo tempo em que manteve seu funcionamento enquanto batalhão de polícia. Por isso, muitas vezes, nos testemunhos de ex-presos políticos, o local é referenciado tanto como DOI-CODI, PIC ou Polícia do Exército (PE) da Barão de Mesquita.

DESTACAMENTO DE OPERAÇÕES DE INFORMAÇÕES – CENTRO DE OPERAÇÕES E DEFESA INTERNA DO RIO DE JANEIRO (DOI-CODI/RJ) (Localização: Rua Barão de Mesquita, nº425, Rio de Janeiro, RJ)

O 1º Batalhão de Polícia do Exército (1º BPE), localizado na Rua Barão de Mesquita na Tijuca, abrigou, pelo menos entre os anos de 1970 e Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

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A criação do DOI-CODI foi resultado de uma política de Estado, adotada pela ditadura militar no final da década de 1960 e início dos anos 1970, que buscava destruir as organizações de esquerda por meio do desenvolvimento de uma estrutura repressiva mais “eficiente”, na qual os diversos órgãos (militares e policiais, federais e estaduais), atuariam de forma conjunta e coordenada no combate à, por eles designada, “subversão”. Esse modelo havia sido primeiramente testado em São Paulo com a implementação, em 1 de julho de 1969, da Operação Bandeirantes (OBAN),“órgão oficial estruturado para integrar e centralizar as ações de combate à subversão e ao terrorismo”.

de coleta de informações mais integrada e técnicas mais “sofisticadas” de neutralização dos opositores políticos, que incluíam novas formas de tortura e de aniquilamento. Em razão de sua eficácia na desestruturação dos grupos de esquerda em São Paulo, o padrão da OBAN foi nacionalmente difundido por meio do sistema DOI-CODI, a partir de outubro de 1970. Em cumprimento à Diretriz Presidencial de Segurança Interna (de 29 de outubro de 1970), que consolidava o Sistema de Segurança Interna no País (SISSEGIN), foram criados DOI-CODI nos estados do RJ, SP, PE e no DF. No ano seguinte, o mesmo se deu no PR, MG, BA, PA e CE e, em 1974, no RS. Apesar de comumente conhecidos como DOI-CODI, tratava-se, na realidade, da junção de duas estruturas diferentes: os CODI, que tinham a função de planejar e coordenar as medidas de defesa interna, e os DOI, que eram órgãos mais operacionais, destinados a realizar o “trabalho sujo”. Ambos possuíam estrutura mista, sendo formados por integrantes da Polícia Civil, da Polícia Militar, da Polícia Federal e das três Forças Armadas, sob o comando do Exército. Nota-se que tal sistema foi implementado por meio de diretrizes secretas formuladas pelo Conselho de Segurança Nacional, ratificadas pelo Presidente da República e operacionalizada pelos ministros e comandantes militares. Com efeito, com as “adequações” impostas ao Poder Judiciário à época (através da edição dos Atos Institucionais e da Lei de Segurança Nacional de 1967) e com a proliferação dos DOI-CODI, consolidou-se uma nova fase repressiva da ditadura militar, cuja marca central foi a intensificação do monitoramento e vigilância e o aperfeiçoamento das técnicas de tortura enquanto meio de obtenção de informação.

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

Financiada por empresas privadas (como o Grupo Ultra, a Ford e a General Motors), a OBAN coordenava o trabalho de diferentes instâncias repressivas, englobando tanto a análise de informações como a realização de interrogatórios e de ações de “combate”. A nova experiência havia surgido como resposta às demandas de setores militares mais radicais que se mostravam insatisfeitos com a estrutura repressiva existente no final da década de 1960, considerada lenta e despreparada para combater as chamadas “ações terroristas”. Naquele contexto, prevalecia entre os agentes da repressão a visão de que a ação de múltiplas organizações de esquerda demandava uma política

Com a instalação do DOI-CODI no Rio de Janeiro, na Rua Barão de Mesquita, a estrutura original do PIC (que, por sua vez, foi transferido para outra unidade do pátio do 1º BPE) passou por uma série de reformas. Sabe-se que entre 1969 e 1972 foram realizadas obras no prédio buscando atender às necessidades específicas do DOI-CODI/RJ, sem que isso impedisse o concomitante funcionamento do novo órgão em seu interior.

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DOI-CODI/RJ. Segundo Dulce Pandolfi, presa em agosto de 1970 nas dependências do DOI-CODI/RJ: O prédio tinha dois andares. Diferentemente do que muitos dizem, aquele lugar não era um “porão da ditadura”, um local clandestino. (…) eu estava numa dependência oficial do Exército brasileiro. Uma instituição que funcionava a todo vapor, com todos os seus rituais, seus símbolos, seus hinos, sua rotina. (…) No andar térreo, tinha a sala de tortura, com as paredes pintadas de roxo e devidamente equipadas, outras salas de interrogatório com material de escritório, essas às vezes usadas, também, para torturar, e algumas celas mínimas, chamadas solitárias, imundas, onde não havia nem colchão. Nos intervalos das sessões de tortura, os presos eram jogados ali. No segundo andar do prédio havia algumas celas pequenas e duas bem maiores, essas com banheiro e diversas camas beliches. Foi numa dessas celas que passei a maior parte do tempo. (Dulce Pandolfi. Testemunho concedido a CEV-Rio em 28 de maio de 2013) De acordo com relatos de ex-presos políticos, as principais mudanças foram implementadas a partir de 1972, quando o DOI-CODI/ RJ passou a importar técnicas de tortura de outros países. Além de celas solitárias, foram construídas no edifício salas especiais de tortura, como a “geladeira” (que permitia a alteração brusca de temperatura), uma cela totalmente branca e outra totalmente pintada de preto (que produziam um perverso e sutil dano psíquico aos indivíduos em razão da percepção monocromática que lhes era imposta) bem como uma sala sonorizada (destinada a produzir barulhos ensurdecedores). Cada cela passou ainda a ser monitorada por meio de um sistema de escuta.

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

Guiadas pela lógica da “funcionalidade da repressão”, as principais mudanças objetivavam permitir a diversificação e “sofisticação” das práticas e tecnologias de tortura empregadas contra presos políticos. Dentre as principais mudanças, destacam-se inicialmente: a construção de uma porta exclusiva, que permitia a entrada e saída do prédio pela rua lateral (Av. Maracanã), evitando que os presos levados para o DOI-CODI/RJ passassem pelo interior do batalhão; a ampliação dos refeitórios dos oficiais e dos sargentos, em resposta ao expressivo aumento do efetivo; a construção de novas celas; e a adaptação das salas do PIC para a realização de interrogatórios pelos agentes do

(…) Foi preso por duas vezes em 1973, no DOI-CODI, mas já era outra fase: o prédio tinha sido mudado, com salas de interrogatório acústicas, com vidro face a face, para acareações sem que um pudesse ver o outro;

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espaço.

tinha um púlpito para que o interrogador fizesse anotações sem que o torturado visse; que antes o pau-de-arara era improvisado entre arquivos, mas depois era tudo preparado, parecia um consultório médico ou dentista; que havia salas chamadas geladeiras, para resfriar, tinham luzes fortes para não deixar o torturado dormir, havia aparelhos para fazer barulho forte; que o torturado era torturado de capuz, e isso era bem pior porque não se sabia quando iria levar um soco ou choque; que os presos raramente ficavam sem capuz, e então era mais difícil reconhecer alguém; que nesta época não consegui reconhecer ninguém. (Newton Leão Duarte. Testemunho concedido ao Ministério Público Federal)

(…) Estava já há cerca de dois meses na Vila Militar quando em final de agosto fui levada de novo para o DOI-CODI. Essa possibilidade não passava pela minha cabeça. Tinha me convencido de que tudo aquilo acabara. (…) Estava tão desesperada que me deram uma injeção e fui levada quase desmaiada para a Barão de Mesquita. Lá estava tudo mudado. As celas tinham cama e lençol e os aparelhos de tortura foram substituídos por celas com controle de som e de temperatura, as chamadas geladeiras. Os presos eram colocados sem poder dormir, sem comer e em temperaturas baixíssimas. (…) Hoje, me parece que o DOI-CODI da Barão de Mesquita, a partir desse momento, foi reservado para presos que passariam por esse “interrogatório científico”. Ao mesmo tempo, os militantes das organizações armadas considerados chaves foram sumariamente condenados a morte. Não iam para o DOI-CODI. Iam ser torturados e assassinados em outros lugares, como a Casa da Morte em Petrópolis. (Lúcia Murat. Testemunho concedido a CEV-Rio em 28 de maio de 2013)

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

A partir de agosto de 71 as torturas ficaram mais sofisticadas. Quando eu cheguei, as torturas, os métodos de obterem confissão, eram basicamente a força física. Muito pescoção, muito tapa, muito soco, muito chute, vez ou outra choque elétrico nos dedos e órgãos genitais. Às vezes introduziam objetos na vagina ou no ânus. Estes eram os métodos iniciais. Eu entrei em maio, tive um mês de preleção, comecei a dar guarda em junho e mais ou menos em agosto começaram as obras na parte térrea do prédio do Pelotão de Investigação Criminal (PIC) para construção de celas mais sofisticadas. Eles construíram lá embaixo quatro celas. Construíram uma cela-geladeira, onde realmente se chegava a baixíssimas temperaturas, uma câmara toda forrada de isopor e amianto. Construíram também uma cela com vários botões do lado de fora com os quais você controlava e emitia ruídos e sons altíssimos para o preso ter sensações de desequilíbrio. Tinha uma cela

O ex-soldado Marco Aurélio Magalhães, que à época prestava serviços no DOI-CODI/RJ, esclareceu, em entrevista concedida em 1986 ao Jornal Folha de São Paulo, as mudanças estruturais ocorridas no

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totalmente negra, onde a pessoa não enxergava nada e não conseguia nunca acostumar a visão àquele grau de escuridão. Em compensação, tinha uma cela toda pintada de branco onde os presos perdiam a noção de hora, de tempo. Os presos lá em cima, do segundo andar, onde estavam as celas comuns, se guiavam pelos toques do corneteiro, para saber se estava amanhecendo, se o coronel estava saindo ou chegando, se era hora de almoço. Os presos ficavam nas celas totalmente isoladas perdiam a noção de tempo e de espaço. (Soldado Marco Aurélio Magalhães. Entrevista concedida ao jornal “Folha de São Paulo” em 1986) O caminho percorrido pelos presos ao chegarem ao DOI-CODI/RJ normalmente iniciava-se na “sala de triagem” ou sala de “espera”, localizada no primeiro andar do prédio, para onde eram levados a fim de deixarem seus pertences pessoais. O interrogatório e a tortura, muitas das vezes, começavam já nesse primeiro momento. Posteriormente, os presos costumavam ser levados às salas individuais, também situadas no primeiro andar, onde eram torturados. O objetivo era evitar o contato inicial com outros indivíduos e obter rapidamente informações sobre eventuais encontros, esconderijos ou a localização de outros militantes, visando a captura e prisão de opositores à ditadura. Vale ressaltar que, a partir de 1972, a regra consistia em manter os presos sempre nus e com capuz para evitar que os torturadores fossem identificados. Após interrogatório, os presos eram removidos para celas coletivas (feminina ou masculina) – espaços conhecidos como “Maracanã” – situadas no segundo andar do edifício, onde, em regra, a tortura diminuía. A mudança era possível pois, por um lado, o preso já não tinha mais tanta “utilidade” para o sistema naquele momento, posto que já havia sofrido todo tipo de sevícia a fim de “entregar” as informações desejadas, e, por outro lado, permitia que novos presos fossem encaminhados às celas individuais para serem interrogados sob tortura. O depoimento de Álvaro Caldas ilustra o percurso imposto aos militantes no interior do DOI-CODI/RJ:

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio Lengenda: Ex-presos políticos identificam os lugares por onde passaram.

Foi preso no início de 1970, no mês de fevereiro (…) que foi levado diretamente ao DOI-CODI, 1º Batalhão de Polícia do Exército na Rua Barão de Mesquita, que era o maior centro de tortura da ditadura (…) que a tortura serve para obter informação e rapidamente, para que pudessem efetuar novas prisões; que então o preso é detido e vai imediatamente para a tortura; (…) que lá ficou preso quarenta e poucos dias; que foi muito torturado no DOI-CODI, tendo chegado e foi espancado com chutes, socos, foi empurrado na parede, tudo antes de entrar na sala da tortura; (…) que o depoente ficou numa sala de espera sendo socado, levando pontapés de vários militares, que passavam e batiam, xingando o depoente de “comunista filho da puta”; que, depois de 3 horas mais ou menos, foi levado para a “sala roxa”, como era chamada a sala de tortura porque ela tinha uma luz do lado de fora meio roxeada; (…) que o depoente ficou 40 dias do DOI-CODI; que ao lado da sala de tortura, havia várias celinhas, todas no andar térreo do prédio (PIC, no

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fundo do pátio do quartel); que o prédio do PIC (o DOI-CODI) tinha um portão lateral, e quem quisesse podia entrar no DOI-CODI não podia atravessar o quartel; que o depoente ficou nessas celas contíguas uns 4 ou 5 dias, e delas se pode ouvir tudo (…); depois de 4 ou 5 dias o depoente subiu para o andar de cima, ficando preso numa cela grande chamada “Maracanã”(…); que foi posto em liberdade em junho ou julho de 1972. (Álvaro Machado Caldas. Testemunho concedido ao MPF)

um sistema de ar frio; que no teto dessa sala existia uma lâmpada fortíssima; que ao ser fechada a porta ligavam produtores de ruídos cujo som variava do barulho de uma turbina de avião a uma estridente sirene de fábrica; que por diversas vezes foi medicado por um elemento que dizia que o interrogando não resistiria por muito tempo. (Gildásio Westin Consenza. Testemunho apresentado nos autos do processo da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça nº 2005.01.52188)

Testemunhos de ex-presos políticos dão conta da diversidade de métodos de tortura que eram aplicados durante os interrogatórios, como choques elétricos (aplicados por meio de diferentes aparelhos),“pau-de-arara” (barra de ferro que atravessa entre os punhos amarrados do indivíduo e a dobra de seu joelho, de modo que seu corpo fica pendurado na barra situada acima do chão),“cadeira-de-dragão” (cadeira na qual o preso permanecia amarrado com correias e placas de espuma; seus dedos dos pés e das mãos eram amarrados com fios elétricos que produziam choques), “empalamento” (introdução no ânus do preso de um cassetete com pregos), afogamento, uso de animais (como baratas, ratos, jacarés e cobras) e a utilização das celas mencionadas anteriormente, capazes de causar enorme desconforto sensorial (frio, barulho e luminosidade). Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

Foi torturado, no DOI-CODI do I Exército [...], recebeu golpes de cassetete, murros, choques elétricos, aplicados por um magneto; que, ao cair, devido aos choques, era pisoteado; que, naquele local, sofreu empalamento com um cassetete elétrico e com um cabo de vassoura; que a sua boca era constantemente cheia com sal e tornou-se difícil dizer quantos dias passou sem tomar água; que inúmeras foram as vezes em que foi jogado a um cubículo que denominavam de “geladeira”, que tinha as seguintes características: sua porta era do tipo frigorífico, medindo cerca de dois metros por um metro e meio; suas paredes eram todas pintadas de preto, possuindo uma abertura gradeada ligada a

Legenda: Ex-presos políticos identificam as celas.

Fomos levadas pra PE. Já chegou lá em sessão de tortura. (…) Eles me botaram em pé um tempão pra poder parar a circulação. (…) Comecei a levar porrada, fui jogada no chão (…). Fiquei cheinha de hematoma no corpo todo, no seio, tudo. Choque elétrico, cadeira do dragão, choque elétrico nas mãos e nos pés. Os meus dedos todos descascaram, os pés também ficaram em carne viva. Choque elétrico no ânus. 72 horas nessa brincadeira. Ai chegou um momento que o Magalhães começou “não

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se narrar aquilo que é indescritível.

dá mais choque nessa puta não, porque choque ela tira de letra”. Ai eu pensei “ai meu deus, vou me livrar do choque”. Eu já estava desesperada com os choques. Que ilusão. Me botaram no pau-de-arara, com os choques. E no pau-de-arara começaram a me rodar que nem galeto. E colocaram uma gravação. Eu não sei se era microfone porque não dava pra ver porque a cabeça fica assim né. Que dizia “Adriana (que era meu nome de guerra), não adianta tentar resistir. A sua organização já caiu toda. O Apolônio está aqui. O Mario Alves tentou resistir e nós enfiamos um cacetete no ânus e ele não resistiu, ele morreu”. Tudo pra me intimidar. (Maria Dalva Bonet. Testemunho prestado a CEV-Rio)

(…) que foi transferida para o DOI da PE da B. Mesquita, onde foi submetida a torturas com choque, drogas, sevícias sexuais, exposição de cobras e baratas; que essas torturas eram efetuadas pelos próprios oficiais (…) (Janete de Oliveira Carvalho. Projeto Brasil: Nunca Mais)

(…) o próprio Nagib fez o que ele chamava de tortura sexual científica. Eu ficava nua, com um capuz na cabeça, uma corda enrolada do pescoço passando pelas costas até as mãos, que estavam amarradas atrás da cintura. Enquanto o torturador ficava mexendo nos meus seios, na minha vagina, penetrando com o dedo na vagina, eu ficava impossibilitada de me defender, pois se eu me movimentasse meus braços para me proteger eu me enforcava e instintivamente voltava atrás. Ou seja, eles inventaram um método tão perverso em que aparentemente nós não reagíamos, como se fôssemos cúmplices de nossa dor. Isso durava horas ou noites, não sei bem. Era considerado um método de aniquilamento progressivo. E foi realmente o período em que eu mais me senti desestruturada, mais do que em toda a loucura dos primeiros dias. Porque você já sabe o que é a tortura e ela parece que nunca terá fim. (Lucia Murat. Testemunho concedido a CEV-Rio em 28 de maio de 2013)

Merece destaque o tratamento conferido às mulheres presas no DOI-CODI, sistematicamente humilhadas, violentadas e discriminadas por questões de gênero. As torturas perpetradas contra as presas – nudez forçada, violências sexuais (como, por exemplo, o estupro) , uso de animais (como baratas, ratos, cobras e jacarés) em contato direto com o corpo feminino, dentre outras – visavam atingir precisamente a sua condição de mulher e, consequentemente, anular a sua dignidade e aniquilar qualquer traço de humanidade. Com efeito, durante as agressões, as mulheres eram frequentemente rotuladas pelos torturadores como prostitutas, adúlteras e esposas ou mães desvirtuadas, cujo papel social deveria permanecer restrito às funções do lar e longe da esfera política, tradicionalmente compreendida como um lugar a ser ocupado somente pelos homens. A maternidade foi outro elemento utilizado pelos torturadores para desestabilizar as presas políticas, sendo comuns ameaças que envolvessem seus filhos ou que afirmassem que as mesmas se tornariam estéreis. As torturas e as péssimas condições a que estavam submetidas no DOI-CODI/RJ foram responsáveis por causar abortos, bem como infecções e outras doenças graves às mulheres ali detidas. Alguns relatos de mulheres torturadas no interior do 1º BPE da Rua Barão de Mesquita contribuem para resgatar a memória desse espaço, expondo o árduo exercício de

Durante os mais de três meses que fiquei no DOI-CODI, fui submetida, em diversos momentos a diversos tipos de tortura. Uma das mais simples, como socos e pontapés. Outras mais grotescas como ter um jacaré andando sobre o meu corpo nu. Recebi muito choque elétrico e fiquei muito tempo pendurada no chamado “pau de arara”: os pés e os pulsos amarrados em uma barra de ferro e a barra de ferro colocada no alto, numa espécie de cavalete. Um dos requintes era nos pendurar no pau

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de arara, jogar água gelada e ficar dando choque elétrico, nas diversas partes do corpo molhado. Parecia que o contato da água com o ferro potencializava a descarga elétrica. (…) Por conta, sobretudo, da grande quantidade de choque elétrico, fiquei com o corpo parcialmente paralisado. Achava que tinha ficado paralítica. Aos poucos fui melhorando. Fiquei um bom tempo sem descer para a sala roxa. Mas ouvir gritos dos outros companheiros presos e ficar na expectativa de voltar, a qualquer momento, para a sala roxa era enlouquecedor. (…) No dia 20 de outubro, dois meses depois da minha prisão e já dividindo a cela com outras presas, servi de cobaia para uma aula de tortura. O professor, diante dos seus alunos, fazia demonstrações com o meu corpo. Era uma espécie de aula prática, com algumas dicas teóricas. Enquanto eu levava choques elétricos, pendurada no tal do pau de arara, ouvi o professor dizer: “essa é a técnica mais eficaz”. Acho que o professor tinha razão. (Dulce Pandolfi. Testemunho concedido a CEV-Rio em 28 de maio de 2013)

rados. As torturas foram tudo que você pode imaginar. Pau de arara, choque, violência sexual, pancadaria generalizada. Quando chegamos lá, tinha um corredor polonês. Todas as mulheres que passaram por ali sofreram com a coisa sexual. Isso era usado o tempo todo.” (Jessie Jane. Testemunho reproduzido no livro “Luta, substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura)

Os guardas que me levaram, frequentemente encapuzada, percebiam minha fragilidade e constantemente praticavam vários abusos sexuais contra mim. Os choques elétricos no meu corpo nu e molhado eram cada vez mais intensos. Me senti desintegrar: a bexiga e os esfíncteres sem nenhum controle. ‘Isso não pode estar acontecendo: é um pesadelo... Eu não estou aqui...’, pensei eu. O filhote de jacaré com sua pele gelada e pegajosa percorria o meu corpo... ‘E se me colocam a cobra, como estão gritando que farão?’. Perdi os sentidos, desmaiei. Em outras momentos, era levada para junto de meu companheiro quando ele estava sendo torturado. Inicialmente, fizeram-me acreditar que nosso filho, de três anos e meio, havia sido entregue ao Juizado de Menores, pois minha mãe e meus irmão estariam também presos. Foi fácil cair nessa armadilha, pois vi meus três irmãos no DOI-CODI/RJ. Sem nenhuma militância política, foram sequestrados em suas casas, presos e torturados. (Cecília Coimbra. Testemunho reproduzido no livro “Luta, substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura)

Minha filha nasceu em setembro de 1976, durante o governo Geisel. Eu tive de fazer o parto num hospital privado, fiz uma cesariana, sofri muita pressão. Eles diziam que tinha de fazer como na Indonésia: matar os comunistas até a terceira geração para eles não existirem mais. E depois, a entrega da minha filha foi muito difícil. Eu a entreguei para a minha sogra, pois minha família estava toda no exílio. Foi a pior coisa da minha vida, a mais dolorida. A separação de uma criança com três meses é muito dura para uma mãe, é horrível. É uma coisa que nunca se supera. É um buraco. De toda a minha história, essa é a mais dramática. A minha gravidez resultou do primeiro caso de visita íntima do Rio de Janeiro. Meu marido estava preso em Ilha Grande e, quando da passagem do governo Médici para o Geisel, havia uma reivindicação para que nos encontrássemos. Fazia cinco anos que não nos víamos. Foi nessa conjuntura que eu fiquei grávida. A nossa prisão foi muito violenta. Fomos levados para o DOI-CODI, onde fomos muito tortu-

Era comum ainda a participação de médicos em interrogatórios realizados no interior do DOI-CODI/RJ, onde cumpriam funções tais como auxiliar e supervisionar os atos de tortura para determinar se o preso poderia seguir sendo seviciado ou se seria preciso diminuir o grau de violência a fim de evitar a sua morte (o que implicaria na impossibilidade de se obter as informações desejadas), bem como reanimar as vítimas e ministrar-lhes medicamentos, quando necessário.

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Quando a tortura era tanta que o preso não respondia aos cuidados médicos prestados nas dependências do DOI-CODI/RJ, eles eram então enviados ao Hospital Central do Exército (HCE). Alguns depoimentos dão conta da colaboração dos médicos com a ditadura militar:

Logo que fui levada ao DOI-CODI/RJ - depois de três dias no DOPS — recebi na cela onde estava, um pouco antes de a tortura começar, uma estranha ‘visita’: Amílcar Lobo, que se disse médico. Ele tirou minha pressão e perguntou se eu era cardíaca. Ou seja, preparou-me para a tortura, para que esta fosse mais eficaz. (Cecília Coimbra. Testemunho reproduzido no livro “Luta, substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura)

Sou médico (...) me formei em 1968, na antiga UEG, hoje UERJ. (...) a minha atividade política era um pouco como médico prestando assistência a pessoas que estavam procuradas pela ditadura militar, pessoas não só que passavam mal e iam ao meu consultório, como pessoas também que se feriam em ações de combate contra a ditadura. Fruto disso, um grupo de médicos foi preso em 1972. Eu fui um deles, junto com outros colegas (...). Fui levado para o DOI-CODI, na Barão de Mesquita. (...) Seria desnecessário dizer o que aconteceu em termos de tortura e todo tipo de maus-tratos, de barbaridades. Depois de algum tempo, eu vim de uma sessão de tortura. Eu vim muito mal, muito debilitado, inclusive com uma perfuração no tímpano. Eu tive meu tímpano direito perfurado e a partir daí eu comecei a ter uma piora do meu estado de saúde. Eu dividia a cela no DOI-CODI com outro preso político, de nome Otoniel (...). Ele, muito preocupado com o agravamento do meu quadro, com febre e falando coisas desconexas, começou a gritar que “precisava de um médico”. Foi trazido um médico para me atender. Esse médico era o Ricardo Fayad, que foi meu colega de turma. Durante seis anos, nós convivemos na mesma turma na faculdade de ciências médicas da faculdade da UERJ. E durante esses seis anos a gente tinha divergências políticas do movimento estudantil, eu pela esquerda e ele como pessoa de direita. E quando eu vi o Ricardo Fayad eu fiquei um pouco, com algum tipo de esperança de que ele pudesse pelo menos avisar a minha família onde eu estava (...). Ele simplesmente chamou o torturador e falou pro torturador que eu ainda poderia dar informações, que não era um caso grave, que podia continuar no interrogatório. O próprio torturador disse “quem tem um colga desses, não precisa ter inimigo”. (Luiz Roberto Tenório. Testemunho concedido à Comissão Nacional da Verdade em 28 de outubro de 2014)

Passados esses primeiros dias, eu fui largada no corredor, de capuz. Eu ficava meio desmaiada, meio dormindo. Até que fui levada para a enfermaria. Na enfermaria, depois de algum tempo comecei a tomar antibióticos. Não podia andar, minha perna direita estava muito inchada e não mexia, meus pulsos estavam feridos, assim como os seios e os pés. (…) Na enfermaria, os médicos que me trataram eram os mesmos que nos “assistiam” na sala de tortura: Amilcar Lobo e Ricardo Fayal. (Lucia Murat. Testemunho concedido a CEV-Rio em 28 de maio de 2013) De acordo com dados fornecidos pela Comissão Nacional da Verdade, do total de presos políticos que passaram pelas dependências do DOI-CODI, ao menos 49 foram mortos, dentre os quais 33 permanecem desaparecidos até a presente data . Roberto Cietto (1969), Mario Alves de Souza Vieira (1970), Jorge Leal Gonçalves Pereira (1970), Celso Gilberto de Oliveira (1970), Carlos Alberto Soares de Freitas (1971), Rubens Beirodt Paiva (1971), Aderval Alves Coqueiro (1971), Antônio Joaquim de Souza Machado (1971), Joel Vasconcelos Santos (1971), Gerson Theodoro de Oliveira (1971), Mauricio Guilherme da Silveira (1971), Mário de Souza Prata (1971), Marilena Villas Boas Pinto (1971), Aluízio Palhano Pedreira Ferreira (1971), Paulo Costa Ribeiro Bastos (1972), Sérgio Landulfo Furtado (1972), José Mendes de Sá Roriz (1973) e Armando Teixeira Fructuoso (1975) são alguns dos mortos e desaparecidos políticos vinculados à ação do DOI-CODI/RJ e reconhecidos pelo Estado brasileiro.

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Fonte: Acervo CNV

Durante o período da chamada “distensão política”, iniciada no governo do General Ernesto Geisel (1974-1979), os DOI-CODI entraram em relativa decadência. Em meados da década de 1970, com a destruição das principais organizações armadas e com o fim da Guerrilha do Araguaia, tais órgãos, no ápice de suas estruturas repressivas, passaram a buscar novos “inimigos internos” que justificassem a sua existência. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), cuja opção contrária à luta armada era explícita, e sua relação com o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição consentida pelo governo ditatorial, foram então escolhidos como a mais nova ameaça a ser combatida. Foi nesse contexto que foi realizada a Operação Pajuçara (1973-1976), responsável por matar 19 lideranças do PCB, das quais 11 permanecem até hoje desaparecidas.

Abalado pelas crescentes denúncias de tortura, desaparecimento forçado e assassinatos, que ganharam ainda maior repercussão com a morte de Vladmir Herzog (1975) e de Manoel Fiel Filho (1975), ambos no DOI-CODI do II Exército, em São Paulo, o governo militar se viu obrigado a reduzir as atividades dos DOI-CODI, levando à sua posterior extinção no início da década de 1980. Mais recentemente, foram realizadas três diligências no 1º BPE, situado, ainda hoje, na Rua Barão de Mesquita no bairro da Tijuca. A primeira, ocorrida em 21 de agosto de 2013, não obteve êxito frente à negativa do Exército de permitir a entrada dos membros da CEV-Rio nas dependências do batalhão. A segunda, realizada no dia 23 de setembro de 2013, foi autorizada pelo Ministro da Defesa e con-

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tou com a presença de membros da CEV-Rio, de senadores e deputados federais que puderam finalmente entrar no local. A terceira, por sua vez, realizada em 24 de setembro de 2014, teve a participação de membros da CNV e da CEV-Rio, acompanhados de ex-presos políticos torturados no interior do DOI-CODI nos anos da ditadura militar. Durante essa última visita, foi possível reconhecer as salas de tortura e remontar o percurso realizado pelos presos no interior do edifício. Para os ex-presos políticos que participaram da diligência, entrar no edifício onde funcionou o DOI-CODI foi um ato reparatório de alto valor simbólico. No ano de 69, eu estive aqui e passei pelos horrores que nós todos que nos opúnhamos a ditadura militar vivemos aqui nesse espaço, em que acabamos de visitar. (…) Eu hoje trabalho nas Clínicas do Testemunho como terapeuta e sei das dores de todos aqueles que foram torturados ou tiveram seus familiares desaparecidos ou mortos. Eu sei perfeitamente o quanto é importante que as autoridades brasileiras possam reconhecer o que aconteceu, porque é nesse reconhecimento que se processa um outro país e que se afirma o nunca mais. Posso afirmar pra vocês que a negação que tem se feito pelas Forças Armadas no Brasil faz um mal profundo não só para a nação como para todos aqueles que, como nós, vivemos esse suplício aqui dentro. É preciso que as Forças Armadas reconheçam para que haja um novo país e para que haja efetivamente uma reparação pelas violações cometidas e pelos crimes de lesa humanidade aqui cometidos. (Vera Vital Brasil. Testemunho prestado durante diligência realizada ao 1º BPE no dia 23 de setembro de 2014)

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

As disputas entre as diferentes memórias que perpassam esse espaço podem ser notadas na luta travada, já no período democrático, em torno do prédio do PIC, sede do DOI-CODI durante a ditadura militar. Nos primeiros anos da década de 1990, frente à tentativa do Exército de vender o edifício, um conjunto de moradores do entorno do 1º BPE iniciaram uma campanha para impedir a venda e transformar o espaço em um centro de cultura contendo teatro, jardins, parques e um museu à memória da luta pela liberdade. Foi feito um manifesto com 236 assinaturas que serviu posteriormente para o processo de tombamento do edifício na Subsecretaria de Patrimônio Cultural da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Finalmente, no dia 29 de março de 1993, o 1º BPE foi tombado pela lei municipal 1.956/93, em razão de “seu relevante valor histórico e arquitetônico”. A proposta de tornar o local um centro de memória, contudo, não se materializou, posto que o Exército ocupa o espaço até hoje. Posteriormente, em agosto de 2013, o Ministério Público Federal e a CEV-Rio apresentaram ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

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Referências Bibliográficas

Nacional (IPHAN) um pedido de tombamento do prédio onde historicamente funcionou o DOI-CODI/RJ, localizado nos fundos do 1ºBPE. De acordo com o MPF, tal medida busca combater o “negacionismo” e “silenciamento” (próprios da cultura de amnésia que prevalece em nosso país), fomentar uma consciência política de não repetição das violações de direitos humanos no presente, e reparar simbolicamente a sociedade, os ex-presos políticos e os familiares de militantes mortos e desaparecidos no interior do DOI-CODI/RJ. Mais recentemente, em setembro de 2014, foi inaugurado na praça Lamartine Babo, localizada em frente ao 1º BPE, um busto do ex-deputado Rubens Paiva, preso, torturado, assassinado no interior do DOI-CODI em 1971, e cujo corpo permanece até hoje desaparecido. Tais medidas, ainda que de alcance limitado, constituem, nas palavras de Álvaro Caldas (ex-presos político e atual membro da CEV-Rio), um importante passo na luta pela recuperação da verdade histórica, empreendida atualmente em nosso país.

ISHAQ, Vivien; FRANCO, Pablo; SOUSA, Teresa. A escrita da repressão e da subversão, 1964-1985. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012. BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Comissão Nacional da Verdade – Brasília: CNV, 2014. BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Quadro parcial das instalações administrativamente afetadas ou que estiveram administrativamente afetadas às Forças Armadas e que foram utilizadas para perpetração de graves violações de direitos humanos. Brasília: CNV, 18 de fevereiro de 2014. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/ relatorio_versao_final18-02.pdf. BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO RIO DE JANEIRO. Documento enviado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) requerendo o tombamento do prédio do DOI-CODI. Rio de Janeiro: agosto, 2013. CALDAS, Álvaro. Tirando o capuz. 5ªEdição. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. 41ª Edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2014. BETTAMIO, Rafaella. DOI-CODI carioca: Memória e cotidiano no “Castelo do Terror”.

Estou entrando lá dentro a segunda vez já sem capuz. É um momento de grande significação política para nós que estamos nessa luta pela recuperação da verdade. Semana passada, foi inaugurado um busto do Rubens Paiva na Praça Lamartine Babo, aqui ao lado. Falando nessa cerimônia, eu propus que nós fizéssemos ali uma espécie de museu a céu aberto, já que instalar um centro de memória aqui dentro parece uma coisa mais difícil, embora não devamos abandonar essa perspectiva. Mas se fizermos na praça, nós poderemos colocar la, além do Rubens Paiva, Mario Alves e outros que foram aqui torturados; fazer uma laje com o nome de todos que estiveram aqui porque é um registro para a história importante que nós estamos conquistando agora. (Álvaro Machado Caldas. Testemunho prestado durante

Dissertação de mestrado apresentada no programa de pós-graduação em História, Política e Bens culturais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC/FGV. Rio de Janeiro: 2012. FICO, Carlos. Como eles agiam - Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Editora Record: Rio de Janeiro, 2001. Notícia do jornal Folha de S.Paulo intitulada “Ex-soldado decide falar sobre torturas a presos políticos”, 19/9/1986. Brasil Nunca Mais Digital: Acervo Raul Amaro Nin Ferreira. Pasta Documentos, pp. 459-460. MERLINO, Tatiana; OJEDA, Igor (Orgs.). Luta, substantivo feminino: Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura. São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010. p. 125)

diligência realizada ao 1º BPE no dia 23 de setembro de 2014)1

1 Disponível em: : https://www.youtube.com/watch?v=jaEOKCI1fNs

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A planta de reconhecimento foi elaborada com base nos testemunhos dos ex-presos políticos Ana Miranda Bursztyn, Newton Leão e Paulo Cesar Ribeiro; nas diligências realizadas pela CNV e pela CEV-Rio; e pelo relato do soldado Marco Aurélio Magalhães ao Jornal Folha de S. Paulo, em 1986.

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escala: 1/125

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VILA MILITAR

car os riscos de endurecimento do regime, como ocorrido em 1965, com a instauração do AI-2, e em 1968, com o AI-5. Dentro da Vila, o pavilhão onde ocorriam as graves violações de direitos humanos foi identificado por Silvio Da-Rin1 , ex-preso político, durante visita com a equipe da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Apesar das reformas ocorridas após a ditadura, o pavilhão apontado se encontra logo após o portão da Vila Militar. Dentro dele, havia um corredor com três salas onde eram realizados os interrogatórios com tortura (lado esquerdo) e um conjunto de quatro celas “solitárias” (X1, X2, X3, X4) onde os presos políticos permaneciam isolados (lado direito). As celas não possuíam banheiro, mas o que apelidaram de “boi”, um buraco no chão onde os presos faziam suas necessidades.

(Localização: bairro de Deodoro, zona oeste, Rio de Janeiro)

Construída no começo do século XX, a Vila Militar é um bairro da zona oeste do Rio de Janeiro planejado para reunir numerosas construções que viabilizassem o exercício e o treinamento de militares. Ela abrange mu-seus do Exército e da Aeronáutica, escolas de formação, batalhões e presídios. Durante a ditadura, muitos opositores do regime lá foram presos e torturados, sendo alguns deles mortos em suas dependências.

Foto: Google Earth

A Vila Militar era um dos locais mais temidos no período ditatorial. Os jornais da época usavam a expressão “a Vila vai descer” para indi-

1 Conforme: http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/422-ex-presos-politicos-reconhecem-local-de-tortura-na-vila-militar

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Além de ter sido local de prisões, torturas e mortes, os estabelecimentos da Vila Militar também foram utilizados para a exposição e o aprendizado das técnicas de interrogatório e tortura. No dia 8 de outubro de 1969, realizou-se, na 1ª Companhia de Polícia do Exército da Vila Militar, uma aula para cerca de cem militares – dentre eles, oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica –, cuja temática eram as modalidades de tortura, suas características e efeitos. Durante a aula, ministrada pelo tenente Ailton Joaquim, chefe da seção de informações da 1ª Companhia, dez presos políticos foram utilizados como cobaias para as demonstrações de diversas modalidades de tortura: pau-de-arara, latas abertas – onde o preso era obrigado a se apoiar descalço –, choques elétricos, palmatória e pedaços de ferro roliço utilizados para esmagar os dedos2 .

Nós três fomos conduzidos juntos para o DOI-CODI [antigo PIC] no batalhão do Exército na rua Barão de Mesquita na Tijuca, onde ficamos por alguns dias até sermos levados para a Vila Militar, onde fiquei em torno de 40 dias. Por ser menor de idade fui encaminhada ao Juizado de Menores, onde fui solta, tendo que cumprir alguns procedimentos por mais algum tempo. (Maria Luiza Melo Marinho de Albuquerque, em depoimento à CNV, 4 de novembro de 20144 ) O caso de maior repercussão ocorrido na Vila Militar foi o do estudante de medicina Chael Charles Schreier. Chael foi preso com Maria Auxiliadora Lara Barcelos e Antônio Roberto Espinosa, no dia 21 de novembro de 1969, em uma casa no bairro de Lins de Vasconcelos, município do Rio de Janeiro. Os três militantes da VAR-Palmares foram levados para o Batalhão da Polícia do Exército, na Vila Militar, sendo vítimas de sessões de tortura que levaram à morte de Chael no dia seguinte. Inúmeros jornais internacionais noticiaram este ocorrido, como o New York Times, Le Monde e The Times.

Além de ser conhecida pelas aulas com cobaias, a Vila Militar também retinha em suas celas crianças e adolescentes por meio de prisões ilegais e arbitrárias. Em 1969, aos 16 anos, Maria Luiza Melo Marinho de Albuquerque foi presa na Vila Militar pelo agente do Centro de Informações do Exército (CIE), Paulo Malhães. Sendo consultado, o juiz de menores Alyrio Cavallieri proferiu decisão autorizando a permanência de Maria Luiza na Vila Militar até a conclusão do inquérito desejado pelos militares. Somente após isso, a jovem seria levada ao Juizado de Menores3 :

A versão oficial para a morte de Chael, registrada pelo II Exército, dizia que os três militantes: “reagiram violentamente com disparos de revólver, espingarda e mesmo com bombas caseiras. Da refrega, os três terroristas saíram feridos, sendo Chael o que estava em estado mais grave. Foram medicados no Hospital Central do Exército (HCE), entretanto Chael sofreu um ataque cardíaco, vindo a falecer5” . Os sobreviventes Maria e Antônio, no entanto, desmentiram essa versão

2 Relatos de Ângelo Pezzuti da Silva, Maurício Vieira de Paiva e Murilo Pinto da Silva – alguns dos presos torturados nessa aula – constam do projeto Brasil: nunca mais. In BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. p. 351.

4 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014, p. 308.

3 “(...) autorizo continue dita menor à disposição das autoridades militares, onde se encontra, até que se ultime o aludido inquérito, após o que deverá a mesma

5 BRASIL, Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.

menor ser encaminhada a este Juízo” - BRASIL. Comissão Nacional da Verdade.

Direito à Memória e à Verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos

Brasília: CNV, 2014, p. 308.

Políticos. Brasília : Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007, p. 110.

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em depoimentos prestados à Auditoria Militar, denunciando as torturas sofridas pelos três e a consequente morte de Chael durante o interrogatório6 . Alegaram, ainda, que na última vez em que viram Chael na Polícia do Exército, ele tinha o pênis dilacerado e o corpo ensopado de sangue. Apontaram, em juízo, o nome dos torturadores e responsáveis pela sua morte: capitão João Luís, tenente Celso Lauria e capitão Airton Guimarães7.

os militares impediram que os familiares soubessem das verdadeiras causas de sua morte. A repercussão das denúncias de tortura teria levado o Estado a modificar suas práticas repressivas. Passou-se a praticar com maior frequência o desaparecimento dos corpos das vítimas, que eram enterrados com nomes falsos (ou como indigentes, em valas clandestinas) ou eram lançados em lagos, rios ou no mar.

No dia 25 de julho de 2014, o sargento Euler Moreira de Moraes, responsável pela prisão de Chael, revelou em depoimento à CNV que capturou o estudante em ação com uso de gás lacrimogêneo, sem necessidade de uso de revólver, entregando-o ileso à prisão. Esta declaração do sargento confirma os depoimentos de Maria Auxiliadora e Antônio Espinosa e evidencia que Chael morreu sob tortura na 1ª Companhia da Polícia do Exército (PE) da Vila Militar. O corpo de Chael foi entregue à família embalsamado e em caixão lacrado, tendo sido proibida, pelos militares do II Exército, a realização do ritual judaico de sepultamento, que inclui um banho no cadáver. Dessa forma,

A passagem pela Vila Militar também marcou tragicamente o destino de Maria Auxiliadora. Durante o exílio, ela escreveu um pouco de suas memórias:

Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus cantos mais íntimos. Foi um tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos sufocados, um grito no escuro8.

Maria cometeu suicídio em 1976 – dois anos depois do ocorrido – atirando-se nos trilhos da estação de metrô Charlottenburg, em Berlim, cidade onde estava exilada.

6 Isto também se comprova pelo depoimento do coronel Carlos Luiz Helvécio da Silveira Leite, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 24/02/1988. Conforme declarou na entrevista, esse oficial estava de plantão quando recebeu a comunicação da Vila Militar de que o universitário paulista havia falecido naquela dependência durante o interrogatório. O coronel, que fora membro do Centro de Informações do Exército, declarou que o oficial por ele enviado para esclarecer os fatos lhe disse: “Fiquei encabulado de ver o corpo despido e o número de equimoses e sevícias que o cadáver apresentava”. No laudo da necropsia, não consta qualquer descrição de entrada ou saída de projéteis no corpo de Chael. 7 BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Espe-

8 BRASIL, Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.

cial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília : Secretaria Especial dos Direi-

Direito à Memória e à Verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos

tos Humanos, 2007. p. 110.

Políticos. Brasília : Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007, p. 418.

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Atualmente, a Vila Militar permanece como a região com maior número de unidades militares da América Latina, somando 51 quartéis. Além disso, há ainda museus em funcionamento, como o Museu Aeroterrestre da Brigada de Infantaria Paraquedista e o Museu Histórico do Regimento Escola de Infantaria 57º BIMTz.

CNV e CEV-Rio fazem diligencia na Vila Militar com a presença de ex-pre-

Referências bibliográficas

sos políticos. Fonte: Acervo CNV

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014.

No dia 23 de Janeiro de 2014, a CNV realizou visita à Vila Militar acompanhada de ex-presos políticos. Eles ajudaram a identificar o local onde ocorreram as torturas e detenções ilegais e arbitrárias durante o período ditatorial. Além da visita, houve uma audiência sobre a Vila Militar, onde foi ouvido o ex-líder do grupo VAR-Palmares, Antônio Roberto Espinosa, preso com Maria Auxiliadora Lara Barcelos e Chael Charles Schreier. Antônio Roberto afirmou ter sofrido, junto a Chael e Maria Auxiliadora, torturas físicas e psicológicas de diferentes tipos, como agressões, choques elétricos e sessões no pau-de-arara: “Meu pênis chegou a ser amarrado a um arame, que era puxado por um militar que corria e eu tinha que seguir”9 . Antônio explicitou, ainda, a questão de gênero na tortura contra Maria, em que prevaleciam sevícias de cunho sexual, com frequentes agressões verbais e ameaças de retirada de seus mamilos.

BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Direito à Memória e à Verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. RIO DE JANEIRO. Comissão Estadual da Verdade. Relatório Parcial: Maio de 2013/ Junho de 2014. Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2015.

9 Conforme: http://www.abi.org.br/audiencia-publica-ouve-vitimas-de-tortura-na-vila-militar-no-rio/

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ILHA DAS COBRAS

sou a pertencer ao mosteiro de São Bento. No início do século XVII, por medo das invasões holandesas, o governo de Portugal providenciou para que uma fortaleza ali fosse construída. Outras duas foram levantadas até o fim do XVIII. Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil e a campanha da Brigada Real da Marinha contra o ataque de tropas francesas em Caiena (Guiana Francesa), em 21 de março de 1809 os fuzileiros navais passaram a ocupar a Fortaleza de São José da Ilha das Cobras, onde permanecem desde então.

(Localização: Baía de Guanabara, Centro, Rio de Janeiro)

Fonte: Flicker Max Maxunterwegs

Durante a ditadura militar (1964-1985), as dependências da Ilha das Cobras, cujo acesso se dá pelo centro da cidade do Rio de Janeiro, foram utilizadas como local de prisão e tortura de marinheiros insurgentes e de militantes perseguidos políticos pelo Estado brasileiro. No período colonial, a ilha havia servido para o desembarque e cativeiro de africanos trazidos para o Rio de Janeiro. Posteriormente, pas-

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No caso da Revolta da Chibata, a repressão partiu da Marinha contra os próprios marinheiros. Houve uma insurgência por melhorias nas condições de trabalho na armada brasileira, tendo como ponto importante em sua pauta a luta contra os castigos corporais (a chibata era usualmente utilizada em rituais punitivos). Na reação estatal, João Cândido e mais dezessete marinheiros foram colocados, na noite de natal de 1910, em uma prisão subterrânea na Ilha das Cobras. Após quatro dias de calor insuportável, sede, fome, detritos espalhados e sufocação por pó de cal, apenas João Cândido e João Avelino Lira saíram vivos do local: A impressão era de que estávamos sendo cozinhados dentro de um caldeirão. Alguns, corroídos pela sede, bebiam a própria urina. Fazíamos as nossas necessidades num barril que, de tão cheio de detritos, rolou e inundou um canto da prisão. A pretexto de desinfetar o cubículo, jogaram água com bastante cal... o líquido, no fundo da masmorra, se evaporou, ficando a cal. A princípio, ficamos quietos para não provocar poeira. Pensamos resistir os seis dias de solitária com pão e água. Mas o calor, ao cair das 10 horas, era sufocante. Gritamos. As nossas súplicas foram abafadas pelo rufar dos tambores. Tentamos arrebentar a grade... Nuvens de cal se desprendiam do chão e invadiam os nossos pulmões, sufocando-nos. A escuridão, tremenda. A única luz era um candeeiro a querosene. Os gemidos foram diminuindo, até que caiu o silêncio dentro daquele inferno. (Relato de João Cândido para Edmar Morel)

Fonte: Fundação Biblioteca Nacional João Cândido saindo escoltado do Hospital Central do Exército

É preciso destacar que a utilização da ilha para a repressão de movimentos sociais e a prática de graves violações de direitos humanos não teve início com a ditadura militar de 1964. Podem ser citados os episódios da Inconfidência Mineira (1789-1792), da Revolta da Chibata (1910) e da perseguição aos membros da campanha ‘O petróleo é nosso’ (1952-1953): tanto Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, quanto João Cândido, líder da revolta da Chibata, passaram pela prisão da Ilha das Cobras; José Pontes Tavares, Eliezer Bandeira de Aquino e Arno Riepe, participantes da campanha do petróleo, sofreram tortura nas dependências da ilha.

Um pouco antes do golpe de 1964, a Ilha das Cobras fez parte de um episódio importante. Em 1962, havia sido fundada a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB). Essa associação, ainda que sem reconhecimento oficial, aos poucos se expandiu (com sucursais nas cidades de Ladário, Natal, Recife e Salvador) e passou a ser forte preocupação para a Marinha. O ano de 1963 pre-

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senciou a duplicação do número de greves e uma explosão de movimentos sociais no Brasil. Muitas organizações de esquerda lutavam pelas reformas de base, contando com o apoio da União Nacional dos Estudantes (UNE), do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), da Confederação Nacional dos Trabalhadores de Indústria (CNTI), do Pacto de Unidade e Ação (PUA), entre outras. Foi nesse contexto que a AMFNB viu a oportunidade de ingressar na cena política e lutar por reformas que melhorassem as difíceis condições de vida e de trabalho dos marinheiros. Ainda em 1963, elegeu-se a diretoria da associação tendo como presidente o marinheiro sergipano José Anselmo dos Santos (também conhecido como ‘‘cabo Anselmo’’, a mesma figura que, no início dos anos 1970, entregou ex-companheiros à equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS/SP.)

intimidação, a AMFNB ainda acrescentou às suas demandas o reconhecimento oficial da associação, a melhoria do tratamento a bordo, a oficialização do traje civil e a permissão para estudar. Em março de 1964, programou-se a comemoração do segundo aniversário da associação com uma série de atividades. No dia 25, dois mil marinheiros compareceram à sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Havia também estudantes, sindicalistas e presenças como a do deputado Leonel Brizola e do marinheiro João Cândido (líder da revolta de 1910). Também foram defendidas as reformas de base do presidente João Goulart. Sílvio Mota, então ministro da Marinha, enviou um contingente de fuzileiros navais para prender os principais organizadores do evento. Eles saíram do quartel general da Ilha das Cobras. Chegando à sede do Sindicato, no entanto, acabaram por aderir à manifestação. No dia seguinte, houve a prisão de marinheiros, logo em seguida anistiados por João Goulart. Essa revolta foi um dos principais episódios imediatamente anteriores ao golpe de 1964.

Fonte: Acervo Correio da Manhã do Arquivo Nacional Legenda: Comício no Sindicato dos Metalúrgicos

A repressão, no entanto, não permitiu que a oportunidade se concretizasse. Em janeiro de 1964, dezesseis integrantes da associação foram enquadrados no Código Penal Militar. Mantendo-se firme apesar da

Fonte: Acervo Correio da Manhã do Arquivo Naciona Legenda: Militares ao lado de fora do Sindicato dos metalúrgicos

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No contexto repressivo da ditadura militar que se seguiu, a Ilha das Cobras teve um papel de destaque por ter servido como sede para o Centro de Informações da Marinha (Cenimar). Criado em 21 de novembro de 1957, pelo Decreto no 42.688, o Centro era subordinado ao Estado-Maior da Armada e possuía um diretor (capitão de mar e guerra) e um vice-diretor (capitão de fragata). Nos primeiros anos do pós-64, o Cenimar focou em questões internas da própria Marinha. Com o decreto no 68.447 de 1971 e com o aumento da luta armada por algumas organizações da esquerda, o Centro recebeu a incumbência de combater a “subversão”, assumindo a função de produção de informações dentro da Marinha, o que antes era realizado pelas Segundas Seções.

zileiros Navais, localizado no sítio histórico da Fortaleza de São José. Este integra o corredor cultural do centro da cidade do Rio de Janeiro, situado nas instalações que, desde o fim da campanha contra os franceses em Caiena (Guiana Francesa, 1809), foram ocupadas pelos componentes da Brigada Real da Marinha, origem do atual Corpo de Fuzileiros Navais. O circuito expositivo do Museu compõe-se de dois túneis subterrâneos que foram construídos para servir como uma ligação segura entre as fortalezas erguidas pelos portugueses a partir do século XVIII. Neles estão expostas medalhas, documentos, pratarias, material arqueológico, fotografias, equipamentos e armamentos.

Além dessa função, o Centro possuía agentes infiltrados em movimentos de esquerda. Ele teve acesso aos principais grupos atuantes na época: o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), a Ação Libertadora Nacional (ALN), o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o Partido Operário Comunista (POC), o Partido Operário Revolucionário Trostskista (PORT), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), entre outros.

Referência bibliográficas ALMEIDA, Anderson da Silva. Herdeiros do dragão: a rebelião dos marinheiros de 1964. Revista Perseu, n. 5, ano 4, 2010. CAMINHA, João Carlos G. Recordações e reflexões politicas de um militar apolítica.

Os cárceres existentes na Ilha das Cobras foram usados pelo Cenimar não apenas para a repressão de marinheiros insurgentes, mas também para os demais presos políticos. Serviram como lugar de detenção ilegal e arbitrária e tortura dos aprisionados. Encontrava-se na ilha, ainda, a embarcação Custódio de Mello. Este navio de guerra da Marinha brasileira, de origem japonesa, foi construído para transporte de tropas e lançado ao mar em 10 de junho de 1954. Enquanto esteve na base de fuzileiros navais da Ilha das Cobras, entre abril de 1964 e janeiro de 1965, a embarcação serviu de prisão para marinheiros insurgentes, muitos vindo do navio Princesa Leopoldina.

Revista Marítima Brasileira, v. 121, jan.-mar. 2001. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC). COMISSÃO DE FAMILIARES DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS; INSTITUTO DE VIOLÊNCIA DO ESTADO; GRUPO TORTURA NUNCA MAIS RJ e SP. Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964. São Paulo: Imprensa oficial do Governo do Estado de São Paulo, 1995. MACHADO, Catia Conceição Faria. Revolucionários, Bandidos e Marginais: presos políticos e comuns sob a ditadura militar. Niterói: UFF, 2005. Dissertação. MOREL, Edmar. A revolta da chibata. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

Atualmente, funciona na Ilha das Cobras o Museu do Corpo de Fu-

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NAVIOS-PRISÃO

que precederam o golpe ou, simplesmente, não apoiavam as decisões dos altos comandos militares. Havia também, não obstante, civis considerados como inimigos do golpe, líderes sindicais dos trabalhadores portuários e militantes de esquerda.

(Localização: Baía de Guanabara)

Acervo Correio da Manhã do Arquivo Nacional Legenda: Navio Princesa Leopoldina

Segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), os navios eram adaptados e transformados em centros de carceragem clandestina: havia divisão em pequenas celas, bem como a utilização de compartimentos como solitárias e para punição (caldeiras, frigorífico, local para despejo de fezes). Outra razão para transformar esses navios em prisões foi a necessidade de manter os acusados em isolamento, dificultando o acesso de familiares, dos advogados, da imprensa e garantin-

Em 1964, primeiro ano da ditadura militar, devido à superpopulação dos cárceres e à necessidade da obtenção rápida de locais prontos para receber presos políticos, as Forças Armadas utilizaram navios militares e particulares como prisão. A maioria de seus presos era composta por militares ligados a atividades costeiras, em especial os pertencentes à Marinha e à Aeronáutica. Muitos haviam participado de insurgências

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do que a população permanecesse afastada desses locais de reclusão.

público. Isto fica demonstrado pelo aviso estampado nas páginas do jornal Correio da Manhã, no dia 08 de abril de 1964, dado pelo almirante Zilmar Campos de Araripe Macedo aos membros dos iates clubes e clubes de regatas:

O atual presidente do Movimento Democrático pela Anistia e Cidadania (MODAC), Raimundo Porfírio Costa, contou à CNV que não somente como cárcere eram utilizadas as embarcações. Segundo seu relato, em 1964, quando ele era então cabo da Marinha, ficou encarregado de receber os presos no navio Bracuí. Lá, eles eram fichados e depois enviados ao navio Princesa Leopoldina. A Comissão não encontrou documentos que comprovassem o caso, mas em sua pesquisa no Livro do Navio, no Centro de Documentação Histórica da Marinha, faltavam as páginas referentes a março e abril de 1964.

O navio mercante ‘Princesa Leopoldina’, fundeado na Baía de Guanabara, a meia distância do alinhamento dos faroletes das Ilhas Laje e Vilegagnon, serve atualmente como navio-presídio. O acesso a esse navio está sujeito à fiscalização e depende de prévio assentimento das autoridades navais. Face à situação acima enunciada, a área de fundeio do referido navio (caracterizada por um círculo de 500 metros de raio em tôrno dêle) é considerada zona interditada, correndo o risco de ser hostilizada, com arma de fogo, qualquer embarcação que se aproxime.1

A embarcação Princesa Leopoldina pertenceu à Companhia Costeira de Navegação e foi tomada pela Marinha para o uso como presídio improvisado nos dias subsequentes ao 1o de abril de 1964. Entretanto, ela não foi a primeira. Conforme consta no jornal Última Hora2, esta seria a terceira nau a exercer tal função, estando os navios Ary Parreiras e Raul Soares já completamente lotados (a capacidade do primeiro era de 1.000 presos), embora não se soubesse o local onde estariam estacionados. Há poucas informações sobre as condições do navio-prisão Ary Parreira. Entretanto, as fontes são mais densas quanto aos usos do Raul Soares. Dois livros apresentam relatos de testemunhas que foram mantidas encarceradas em suas celas: “Raul Soares – um navio tatuado em nós”, no qual Lidia Maria de Melo conta a experiência de seu

Navio princesa Leopoldina Fonte: Acervo Correio da Manhã do Arquivo Nacional

Assim, constituiu-se uma frota de navios-prisão que compunha o aparato repressivo e funcionava oficialmente com o conhecimento

1 Correio da Manhã - 08/04/1964, p.12. 2 Última Hora - 09/04/1964, p.02 e 21.

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pai, e “Navio Presídio – a outra face da revolução”, escrito e lançado pelo jornalista Nelson Gatto no ano de 1965, sendo automaticamente censurado e apreendido pela polícia política. Em ambos os casos, os presos denunciam as torturas e condições degradantes. Todavia, os relatos fazem referência ao período em que o navio estava sob o comando do almirante Júlio Bierrenbach, em Santos. Segundo a CNV, o navio teria chegado em São Paulo no dia 24 de abril de 1964, tendo permanecido em águas cariocas, então, somente durante os primeiros dias da ditadura.

Fonte: Jornal Última Hora de 09 de Abril de 1964

Fonte: Jornal Diário Carioca

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demonstravam interesse sobre os acontecimentos políticos ou o estado de seus companheiros presos, evitando falar sobre o tratamento que receberam ou condições de higiene do local.. O jornal conseguiu ainda obter de fonte não-oficial a informação de que haveriam 500 presos no navio Princesa Leopoldina, a maioria dos quais continuava em completa clausura. Posteriormente, outras “visitas” foram realizadas nos mesmos moldes.

Fonte: Jornal do Brasil 09 de maio de 1964 de 30 de Maio de 1964

Os periódicos destacam ainda a condição de total reclusão dos presos. No dia 8 de maio de 1964, o jornal Última Hora noticia “Suspensa a incomunicabilidade: 17 oficiais já visitados por parentes”3. Ninguém além de oficiais autorizados e presos era permitido dentro das embarcações, e, por isso, as visitas eram realizadas em terra, sendo os presos levados a um ponto de encontro no Forte de São João, na Urca. A imprensa não podia acompanhar esses eventos – apenas aos jornais O Globo e Jornal do Brasil foi permitido o acesso – mas os parentes relataram ao jornal Última Hora que não sabiam informar o motivo das prisões ou por quanto tempo permaneceriam presos, afirmando que ainda não haviam sido interrogados. Os encarcerados também não

Fonte: Acervo Correio da Manhã do Arquivo Nacional Legenda: Presos desembarcando no Forte de São João, na Urca

3 Última Hora - 08/05/1964, p.03.

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A pesquisa realizada pela CNV registrou que estaria também em funcionamento o navio-prisão Custódio de Mello. Pertencente à Marinha, com armamentos e possibilidade de uso para transporte de tropas, este foi transformado em navio-prisão entre abril de 19645 e janeiro de 1965, período em que teria permanecido atracado no cais leste da Ilha das Cobras do Porto do Rio de Janeiro. Sua estrutura era de quinze camarotes convertidos em celas, em sua maioria para marinheiros, muitos vindo do navio Princesa Leopoldina.

Legenda Forte São João Fonte: Acervo Correio da Manhã do Arquivo Nacional

Até maio de 1964, o jornal Última Hora anuncia também que existia uma previsão de o navio Leopoldina deixar de ser usado como prisão e voltar à Companhia Costeira. Por isso, os presos estavam sendo gradativamente transferidos para outros locais em terra: “Dos 150 militares presos [no navio], 60 já foram transferidos para terra, uns libertados definitivamente, alguns condicionalmente e outros transferidos para prisões em quartéis de Exército, como CPOR, Fortaleza de Laje e Forte Duque de Caxias”4.

4 Última hora – 08/05/1964, p.03.

5 Última Hora - 30/04/1964, p.02.

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Referências bibliográficas

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. Volume 1 (p. 309) e volume 2 (p. 26-27). GATTO, Nelson. O Navio-Presídio: a outra face da revolução. São Paulo: Edimax, 1965. JORNAL CORREIO DA MANHÃ. 08 de abril de 1964. JORNAL ÚLTIMA HORA. 09 de abril de 1964. __. 30 de abril de 1964. __. 08 de maio de 1964.

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BASE AÉREA DO GALEÃO

Centro de Informações da Marinha (Cenimar) constituiu as três mais temidas siglas do período, já que além de produtores de informações esses órgãos também estiveram envolvidos em detenções, interrogatórios e torturas.

(Localização: Estrada do Galeão, s/nº, Ilha do Governador, Rio de Janeiro)

Fonte: Acervo Google

Em 1923 o governo Federal fez as primeiras desapropriações de terrenos da região para a construção do Centro de Aviação Naval do Rio de Janeiro da Marinha Brasileira. Posteriormente, com a criação do Ministério da Aeronáutica através do Decreto-Lei n. 3.142, de 25 de maio de 1941, o Centro de Aviação Naval foi extinto e suas instalações passaram a servir como uma das bases nacionais da então recém criada Força Aérea Brasileira (FAB), sob denominação de Base Aérea do Galeão, subordinada à 3ª Zona Aérea (atual III COMAR). A criação da Base Aérea do Galeão foi determinada pelo decreto-lei n. 3.302, de 22

Durante a ditadura instalada no Brasil a partir do golpe militar de abril de 1964, a Base Aérea do Galeão abrigou um centro clandestino de tortura, desaparecimento forçado e morte, operado por agentes e altos oficiais da Aeronáutica. A partir de 1970, passou a abrigar a sede do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA), órgão de informações instalado no âmbito do Ministério da Aeronáutica e que juntamente com o Centro de Informações do Exército (CIE) e o

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de maio de 1941. Em suas imediações funciona, desde 1945, o Aeroporto Internacional do Galeão – Antônio Carlos Jobim.

Moreira Burnier – tiveram formação no exterior, na Escola das Américas, localizada no Fort Gulick, base das Forças Armadas norte-americanas no Panamá, bem como no Brasil, na Escolha Superior de Guerra (ESG) e na Escola Nacional de Informações (EsNI), ligada ao Serviço Nacional de Informações (SNI).

A Base Aérea do Galeão ficou conhecida na década de 1950 como“República do Galeão”, em referência às investigações do caso do“atentado da rua Toneleros”, episódio que marcou a derrocada do governo do presidente Getúlio Vargas. Na madrugada do dia 5 de agosto de 1954, um dos principais opositores ao governo Vargas, o jornalista Carlos Lacerda, sofreu uma tentativa de assassinato em frente à sua residência, na Rua Toneleros, no bairro de Copacabana. O major-aviador Rubens Vaz, que cuidava de sua segurança, foi morto e Lacerda ficou ferido. Após a abertura de um Inquérito Policial Militar (IPM) sob responsabilidade da Aeronáutica, os suspeitos pelo atentado passaram a ser encaminhados à Base Aérea do Galeão, onde foram submetidos a interrogatório pelas autoridades militares. Sob um rigoroso esquema de segurança no local, nenhum tipo de informação sobre a investigação ou sobre os detidos era dado à imprensa. Houve denúncias de que os presos foram submetidos a torturas durante os interrogatórios no interior da Base Aérea, dentre os quais Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Vargas. Um dos policiais que atuava no local à época era o delegado Cecil Borer, que posteriormente se tornou diretor do Departamento de Ordem Política e Social da Guanabara (DOPS/GB) e um reconhecido torturador a serviço do regime militar.

A partir de 1970, o CISA e os demais órgãos que faziam parte da “comunidade de informações” passaram a integrar o Sistema Nacional de Informação (SISNI), ao qual cabia assegurar o perfeito funcionamento do sistema, determinando a execução de atividades de informações, normatizando, supervisionando e fiscalizando todos os órgãos participantes, a fim de que um fluxo constante de informações mantivesse o governo informado de tudo. O SISNI trabalhava com informações propriamente ditas e contra-informações, isto é, a tentativa de neutralizar a atividade de informações dos inimigos, tanto no Brasil como no exterior. Seu órgão central era evidentemente o SNI, o qual produzia as informações que subsidiavam as atividades dos órgãos de repressão. Quanto aos agentes da comunidade de informações, constituíam uma espécie de “corpo de especialistas”, produtores de um discurso que legitimava a espionagem e subsidiava as atividades repressivas, uma vez que suas avaliações acerca da “ameaça subversiva” ou da “escalada do movimento comunista internacional” representavam a “verdade” ou a “versão autorizada”.Em 1971, o CISA foi transferido para Brasília, mas manteve o Escalão Recuado do CISA (ReCisa) na cidade do Rio de Janeiro, uma vez que o foco da repressão ainda concentrava-se no eixo Rio-São Paulo. O Decreto n. 85.428, de 27 de novembro de 1980, alterou a denominação do órgão para Centro de Informações da Aeronáutica, mantendo, no entanto, a mesma sigla, CISA. O órgão foi extinto em 1988, substituído pela Secretaria de Inteligência da Aeronáutica (Secint).

A partir de 1970, passou a funcionar no interior da Base Aérea do Galeão a sede do CISA. Instituído em maio de 1970, como substituto do Núcleo do Serviço de Informações e Segurança da Aeronáutica (Nu-SISA), primeiro serviço de informação criado pela Aeronáutica em 1968, o CISA tinha por objetivo desenvolver atividades de inteligência, coordenando a produção e difusão de informações e contra-informações no âmbito do Serviço de Informações de Segurança da Aeronáutica (SISA). Os militares que faziam parte do órgão – dentre os quais destaca-se um de seus fundadores, o brigadeiro João Paulo

Durante o seu período de atuação, o CISA orquestrou, especialmente

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entre os anos de 1970 e 1979, investigações e operações militares que culminaram em prisões ilegais, desaparecimentos forçados e assassinatos de militantes políticos considerados “subversivos” pelo regime. Dentre as investigações efetuadas pelo órgão, ressalta-se a colaboração de agentes do CISA no levantamento de informações sobre o paradeiro de Carlos Lamarca, militante do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) morto na “Operação Pajussara”, em 17 de setembro de 1971, no interior da Bahia.

forma de punição por falta de disciplina ou mau comportamento. Segundo o Relatório Final da CNV, Adir Figueira, cabo da aeronáutica que trabalhava na Estação de Comunicação da Base Aérea do Galeão, em 1978, relatou ter sido preso em uma cela solitária e torturado com golpes de cassetete durante duas semanas por ter esbarrado no então Ministro da Aeronáutica, Joelmir Campos de Araripe Macedo, ao entrar com urgência na sala de tráfego Militar. Já José Bezerra da Silva, cabo da aeronáutica durante o regime militar, relatou ter sido preso e torturado após opinar sobre o excesso cometido em sessões de torturas contra presos políticos. Belmiro Demétrio, ex-militar caçado, afirmou, por sua vez, ter sido preso e torturado na Base Aérea por ter dito para seu comandante, durante uma partida de futebol, que nada tinha contra o presidente João Goulart. Alguns presos políticos que passaram pela Base Aérea do Galeão, dentre eles Alex Polari de Alvarenga, José Roberto Gonçalves de Rezende, Manuel Henrique Ferreira e Jessie Jane, denunciaram as violações sofridas durante o período em que estiveram detidos no local:

O Dossiê da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o dossiê elaborado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e o relatório final da Comissão Nacional da Verdade registram casos de militantes presos, torturados e mortos nas dependências da Base Aérea do Galeão, dentre os quais destacam-se: Severino Elias de Mello, morto no local em 30 de julho de 1965; José Gomes Teixeira, preso por agentes do CISA em 11 de junho de 1971 e levado para a Base Aérea do Galeão, onde foi torturado, com a finalidade de que informasse aos agentes da repressão a localização de Carlos Lamarca; Ivan Mota Dias, preso por agentes do CISA em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em 15 de maio de 1971, e levado a Base Aérea do Galeão, permanecendo desaparecido até os dias de hoje; e Stuart Edgar Angel Jones, sequestrado por agentes da repressão em 14 maio de 1971 e levado para a Base Aérea do Galeão, onde foi torturado e morto, permanecendo até hoje desconhecido o paradeiro de seu corpo.

É difícil descrever o terror, o sofrimento e as humilhações que me foram infligidas durante 54 dias ininterruptos. As formas mais usuais de tortura foram os choques elétricos em diversas partes do corpo (incluindo a língua e os órgãos genitais), espancamentos, afogamentos, simulação de fuzilamento, privação de alimento, de água e de sono. Além disso, fui submetido a injeções de pentotal sódico (soro da verdade), interrogatórios durante as madrugadas, passeios de carro encapuzados, ameaças de retaliação a familiares e todos os tipos de pressão e tortura psicológica.

O local também é referido nos depoimentos de militares que ali foram presos e torturados por terem se oposto ao golpe de abril de 1964, à forma violenta como eram conduzidos os interrogatórios àqueles que eram considerados suspeitos ou inimigos do regime ou ainda como

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O caso do sequestro desses dois argentinos é ilustrativo no sentido de elucidar o caráter da cooperação repressiva que se estabeleceu entre os países do Cone-Sul ao longo da segunda metade do século XX e que se intensificou e se sistematizou durante as ditaduras militares da região por meio da Operação Condor. Em relação à essa orquestração de uma cooperação repressiva internacional entre as ditaduras do Cone Sul, observa-se dois eventos fundamentais que permitiram uma nova compreensão sobre um sistema transfronteiriço de repressão que se instituiu de maneira clandestina ao longo das décadas de 1960 e 1980 na região: em primeiro lugar, a descoberta dos documentos da polícia secreta do ditador paraguaio Alfredo Stroessner, em dezembro de 1992; e, sem segundo lugar, a gradativa publicidade e disponibilidade de documentos nos arquivos do Brasil sobre o período das ditaduras militares na América do Sul. A partir do acesso à esses documentos, então, pode-se produzir um substancial material bibliográfico e analítico sobre o funcionamento das estruturas de repressão nos países da região, suas especificidades, as condições de superação de antigas rivalidades regionais históricas em prol de uma colaboração mais estratégica e, por fim, a realização de operações conjuntas sob a coordenação dos Estados Unidos, chegando à Operação Condor, quando se alcançou o nível mais alto de conjugação de esforços no sentido de um padrão internacional de perseguição e destruição dos chamados“inimigos internos”. Um dos principais pontos demonstrados nessas pesquisas foi que a base fundamental da coordenação entre esses governos ditatoriais foi a troca de informações. O início desse intercâmbio foi identificado um pouco antes de outubro de 1975, quando se supôs ter sido dado início oficial à Operação Condor em uma reunião convocada pelo governo chileno a fim de discutir com os principais representantes do setor de inteligência dos países do Cone Sul métodos mais eficazes de combate à subversão em nível regional, sob a alegação de que estava em curso um processo de união das esquerdas por meio da Junta de Coordenação Revolucionária (JCR).

(Depoimento de Alex Polari, dado a Comissão da Anistia – processo nº 2003.01.15080 –, publicado no relatório final da CN V)1. Os primeiros cinco dias foram os mais difíceis não apenas pela perda de liberdade, por entrar em uma situação desconhecida, uma novidade desagradável. É que esses cinco primeiros dias correspondem a primeira fase da tortura. Era intensa, aniquiladora. (Depoimento de José Roberto Gonçalvez Rezende, dado a Comissão de Anistia – processo nº 2005.01.50959 –, publicado no 1º relatório preliminar na CNV)2

Em razão de sua proximidade com o Aeroporto Internacional, a Base Aérea do Galeão cumpriu ainda papel estratégico para a prisão de militantes exilados e de estrangeiros que tentavam retornar para o seu país de origem ou entrar no Brasil. Em 1980, em um período caracterizado pela abertura política no Brasil, Horácio Domingo Campiglia e Mônica Susana Pinus de Binstock, dois cidadãos argentinos e integrantes da organização político-militar Montoneros, foram presos ao desembarcarem no Aeroporto do Galeão no dia 12 de março durante uma escala de um voo vindo do México. Eles foram sequestrados por oficiais do Batalhão 601, também de origem argentina, em uma operação autorizada pelo Exército brasileiro. Do Galeão, eles foram direcionados para a prisão clandestina “El campito”, no Campo de Mayo, na Argentina e desde então permanecem desaparecidos.

1 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. – Brasília: CNV, 2014, Vol. I. p. 754. 2 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Preliminar de Pesquisa sobre o “Quadro Parcial das instalações administrativas afetadas ou que estiveram administrativamente afetadas às Forças Armadas e que foram utilizadas para perpetração de graves violações de direitos humanos” / Comissão Nacional da Verdade. – Brasília: CNV, Fevereiro de 2014, p. 44.

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As pesquisas aos arquivos da repressão combinada à análise de documentos diplomáticos produzidos pelos países da região comprovam que a chamada Operação Condor foi, na realidade, a continuação de uma longa tradição de cooperação e de troca de informações entre autoridades policiais e militares da região, muitas vezes mediadas pela ação das representações diplomáticas, com o intuito de controlar os riscos de infiltração de grupos estrangeiros indesejáveis através das fronteiras internacionais.

No período inicial da abertura política, o Galeão foi também palco de manifestações pela anistia e pela liberdade dos presos políticos e dos militantes exilados. Nos meses que se seguiram à aprovação da Lei da Anistia (Lei 6.683), em 28 de agosto 1979, o aeroporto do Galeão foi um dos principais locais por onde passaram os exilados políticos que retornaram ao Brasil. Familiares e amigos somaram-se às centenas de integrantes do movimento pró-anistia que encheram os saguões do aeroporto para a recepção daqueles que regressavam. Fernando Gabeira, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Francisco Julião, Marcio Moreira Alves, Dulce Maia, Helena Salém e Luís Carlos Prestes, esse último recebido por uma comitiva de cerca de dez mil pessoas, foram algumas das figuras públicas que puderam retornar do exílio no final da década de 1970.

Fonte: Acervo CNV No dia 30 de maio de 2014, a CNV, em conjunto com a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), realizou diligência na Base Aérea do Galeão. Cinco testemunhas, dentre as quais três militares (Adir Figueira, Jório Gonçalves Dantas e José Bezerra da Silva) que serviram na Aeronáutica durante o período da ditadura e estiveram presos nas dependências do Galeão, identificaram diferentes locais onde eram efetuadas as prisões, os interrogatórios e as sessões de tortura. De acordo com o relato dos ex-militares, os militantes políticos eram levados para salas ou celas oficiais localizadas no prédio de custódia da Base Aérea, no prédio do antigo Pelotão de Investigação Criminal da Polícia da Aeronáutica ou ainda para o prédio do comando da Base Aérea, onde funcionava o Setor de Investigação e Justiça, todos parte do complexo da Base Aérea do Galeão. Havia ainda um conjunto de celas clandestinas subterrâneas destinadas aos presos políticos, onde era proibida a entrada de oficias que não fos-

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Apesar de comprovadas as graves violações de direitos humanos perpetradas no interior da Base Aérea do Galeão, a Aeronáutica insiste até hoje em negá-las, adotando um posicionamento comum às três Forças Armadas que se recusam a pedir perdão à sociedade brasileira pelos crimes do passado.

sem autorizados pelo CISA e pela Companhia de Polícia da Aeronáutica (PA). O acesso ao “presídio subterrâneo” do CISA era restringido por uma cancela, localizada no pátio anterior, onde ficava um guarda a paisana limitando a circulação dos oficiais. Os presos que por ali transitavam eram mantidos encapuzados para dificultar o reconhecimento do espaço. O conjunto de celas foi parcialmente soterrado com 30 toneladas de concreto na década de 1980 e o que restou do local foi transformado em uma área de lazer chamada “Clube do Mickey”. Diziam que enquanto estavam torturando os presos aqui dentro, a banda de música que ficava naquele prédio aqui do lado ficava tocando aqui. Quando a banda de música estava tocando, nós sabíamos que estava havendo sessão de tortura. (Testemunho de José Bezerra da Silva, concedido à Comissão Nacional da Verdade)

Fonte: Acervo CNV

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Referências bibliográficas:

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BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade.

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“Quadro Parcial das instalações administrativas afetadas ou que estiveram administrativamente afetadas às Forças Armadas e que foram utilizadas para perpetração de

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CNV, Fevereiro de 2014. Vídeo da diligência da CNV e da CEV-Rio à Base Aérea do Galeão: http://www.cnv. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Preliminar de Pesquisa sobre o

gov.br/images/pdf/Sindicancia-Forca-Aerea.pdf

“Caso Stuart Edgard Angel Jones” / Comissão Nacional da Verdade. – Brasília: CNV, Junho de 2014. BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. BURNIER, João Paulo Moreira. João Paulo Moreira Burnier (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC, 2005. 188 p. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/historal/ arq/Entrevista633.pdf PROJETO BRASIL NUNCA MAIS, Arquivo Brasil Nunca Mais Digital: Pasta Heloísa Amélia Greco 2003, p.213. SETEMY, Adrianna Cristina Lopes. Sentinelas das fronteiras: o Itamaraty e a diplomacia brasileira na produção de informações para o combate ao inimigo comunista (1935-1966). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em História Social,

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HOSPITAL CENTRAL DO EXÉRCITO

terrogatório; e forjar laudos periciais de vítimas mortas por agentes do Estado. O local encontra-se ainda associado à morte e ao desaparecimento forçado de militantes que faziam oposição à ditadura, dentre os quais destacam-se: Manoel Alves de Oliveira, que faleceu em 1964 no interior do HCE, após ser preso e torturado na Vila Militar; Raul Amaro Nin Ferreira, morto em 1971 após ser interrogado e torturado nas dependências do hospital; e Marilena Villas Boas, que faleceu em 1971 no interior do hospital após ter sido ferida em um suposto tiroteio1.

(HCE) (Localização: Rua Francisco Manoel, nº 126, Benfica, Rio de Janeiro, RJ)

Fonte: Acervo CNV

Criado em 1890, através de decreto assinado pelo então presidente Marechal Manoel Deodoro da Fonseca (1889-1991), o Hospital Central do Exército substituiu o antigo Hospital Militar que existia des-

O Hospital Central do Exército (HCE) foi uma importante peça na estrutura repressiva montada pela ditadura militar no estado do Rio de Janeiro. O espaço cumpriu duas funções principais: recuperar os presos políticos que haviam sido torturados em outros órgãos oficiais ou clandestinos, para que pudessem ser novamente submetidos a in-

1 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. Volume III.

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de 1768 em um antigo casarão no Morro do Castelo. A mudança de nome foi acompanhada pela construção de novas instalações do Hospital, no bairro de Benfica, centro do Rio de Janeiro, inauguradas em junho de 1902.

Fonte: Acervo CNV Fonte: Acervo CNV

Durante a ditadura militar, os militantes encaminhados para o HCE ficavam detidos em dependências específicas do hospital, sendo a principal delas uma carceragem/enfermaria, descrita no croqui em destaque, elaborado por ex-presos políticos.

A decisão dos agentes da repressão de internar os presos políticos visava, em regra, a garantir a recuperação física das vítimas para que, posteriormente, pudessem ser novamente interrogadas sob tortura, bem como a possibilitar a continuidade das torturas psicológicas. Tal constatação se evidencia em uma série de testemunhos. O caso de Estrella Bohadana é um dos mais emblemáticos. Detida e torturada no 1º Batalhão de Infantaria Blindada de Barra Mansa, e posteriormente levada ao DOI-CODI, onde foi submetida a violentas torturas que lhe causaram um aborto, Estrella foi encaminhada ao HCE, onde já chegou em estado de coma. Nas palavras da militante:

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O estado em que se voltada da tortura era, em geral, um estado muito muito lamentável. Realmente se não fosse essa ida pro hospital… Eu cheguei lá, entrei em coma e perdi a noção de tudo. Quando voltei, eu já estava dentro de uma cela, dentro do hospital. E aí foi um período longo, sem poder andar, com muitas fragilidades físicas. Mas mesmo assim, os depoimentos continuam, lá dentro mesmo do Hospital, claro que sem tortura física, mas visivelmente com a tortura psicológica, emocional, quer dizer, com muitas ameaças. Você está presa no hospital e ser ameaçada “assim que sair do hospital, vamos te quebrar, vamos acontecer, vamos te sumir”. Então, era um negócio muito violento, do ponto de vista emocional. Lá mesmo no HCE, tive contato com outros companheiros. Marcos Arruda, que estava na ala masculina, que também tinha sido barbaramente torturado. Ali, ninguém tinha sido menos que barbaramente torturado. E porque não suportou fisicamente, foi parar no hospital. O hospital não era garantia de nada. Eu, por exemplo, quando saí do hospital, voltei a ser torturada. Voltei para Barra Mansa e lá voltei a ser torturada, tudo de novo. Quer dizer, quando eu achava que a coisa já tinha parado. Porque realmente, o que podem querer de um preso depois de três meses de tortura? Não tem mais nada de informação pra dar. Existe o lado sádico, maquiavélico (…) De fato, era uma situação de absoluta desigualdade. (Testemunho de Estrella Dalva Bohadana, concedido ao Projeto “Torre das Donzelas” 2)

No DOI-CODI do Rio de Janeiro, a única pessoa que eu retenho o nome é o capitão Gomes Carneiro, que liderou o meu transporte do Hospital Central do Exército para o DOI-CODI, no dia 22 de dezembro de 1970. Eu passei no DOI-CODI três dias de terror, até o dia 25 de dezembro, dia de natal, sendo que a noite inteira do natal eu passei ouvindo gritos de torturados e esperando a minha vez de ser levado. Talvez eu tenha sido poupado porque eu tive uma convulsão. Eles pararam de me dar remédio durante três dias e aí me levaram de volta para o HCE. (…) O diretor do HCE na época era o general Galeno, o vice-diretor era o tenente-coronel Dr. Aquino e ainda havia os Drs. Oscar, Elias e Mota. O chefe da segurança foi o major Sadi, depois substituído pelo capitão Morais, que nos tratava excepcionalmente como seres humanos. O responsável pelo tratamento de presos e presas era o major Boia que preparava a gente pra voltar pra tortura quando tivesse melhorado. (Testemunho de Marcos Arruda, concedido à CEV-Rio em 20143) Maria Dalva Bonet, por sua vez, em depoimento prestado ao Ministério Público Federal, afirmou ter sido levada ao HCE em razão das torturas a que fora submetida nas dependências do Pavilhão de Investigação Criminal (PIC), para onde foi novamente encaminhada após sua recuperação:

Marcos Arruda, em testemunho cedido à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), relatou ter sido transferido do HCE diretamente para o DOI-CODI, destacando que o hospital servia para “preparar” os militantes para novos interrogatórios:

(…) em 28 de janeiro de 1979 foi presa pela segunda vez; (…) que foi levada para o PIC (Pavilhão de Investigações Criminais), que viraria o DOI-CODI/RJ, na Polícia do Exército na Rua Barão de Mesquita; (…) que foi parar no HCE porque tinha hematomas dos fios de cabelo à ponta do pé; que perdeu a pele das mãos e dos pés por causa dos choques; (…) que depois do HCE, a depoente voltou para a Barão de

2 Testemunho disponível em: http://www.torredasdonzelas.com.br/vozes-da-

3 Testemunho disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AfyfGMQ-

-memoria-videos/estrella-dalva-bohadana/.

2TWM

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Mesquita, já não mais para o DOI-CODI/RJ, mas para a enfermaria; que nesse período não foi fisicamente torturada, mas os militares iam lá apenas para atazanar a vida da depoente; que a depoente não andava, e os militares iam lá para dizer que a depoente ficaria paralítica; que contavam barbaridades que faziam com outros militantes presos. (Depoimento de Maria Dalva Bonet, prestado ao Ministério Público Federal4)

de interrogarem o preso Raul Amaro Nin Ferreira”. Posteriormente, em 12 de agosto, relatório do Ministério do Exército revelou que “o marginado declara aliado do MR-8; em nosso entender pelo material encontrado em seu poder e pelos laços que mantém com Eduardo Lessa Peixoto de Azevedo, Raul Amaro é militante da Organização com vida legal. Não houve tempo para inquiri-lo sobre todo o material encontrado em seu poder”6. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade (CNV), esse documento é um indício de que a morte de Raul ocorrera sob interrogatório dentro do HCE.

Mas há evidências de que, além de espaço para a recuperação de presos políticos, o HCE era ele próprio palco de interrogatórios e tortura física. Foi o que recentemente se comprovou no caso de Raul Amaro Nin Ferreira, membro da rede de apoio ao MR-8, preso em 1º de agosto de 1971, levado para o DOPS e, posteriormente, para o DOI-CODI, onde foi interrogado sob tortura. Devido à violência sofrida, em 4 de agosto daquele ano, Raul foi levado ao HCE por recomendação de um oficial médico, onde faleceu cerca de uma semana depois. Investigação empreendida pelos familiares de Raul Amaro e pela CEV-Rio constatou que Raul fora interrogado nas dependências do hospital no dia 11 de agosto, conforme atestado em ofício do Ministério do Exército5. Tal documento informa que, naquela data, Sylvio Frota, comandante do 1º Exército, ordenou a apresentação do comissário Eduardo Rodrigues e do escrivão Jeovah Silva ao diretor do HCE “a fim

Mais recentemente, o parecer médico-legal, elaborado pelo perito Nelson Massini e apresentado em audiência pública organizada pela CEV-Rio em agosto de 2014, comprovou que Raul Amaro foi fisicamente torturado no interior do HCE, em pelo menos dois momentos distintos. O laudo aponta a existência de “diferença de quantidade e tipos de lesões descritas entre o exame feito na admissão no Hospital Central do Exército e as descritas no exame cadavérico que são em maior número do que as que constam do exame admissional”7, o que indica que Raul sofreu novas lesões após dar entrada no hospital. O perito conclui que as lesões foram “oriundas de um processo de sofrimento físico (tortura)”. Esse foi o primeiro caso em que se comprovou a prática de torturas físicas no interior de um hospital militar durante a ditadura. Para além da assistência e cooperação com a prática de prisão ilegal e tortura, o HCE desempenhou outra função central na estrutura

4 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO RIO DE JANEIRO. Documento enviado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) requerendo o tombamento do prédio do DOI-CODI.

6 BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL: Acervo Raul Amaro Nin Ferreira. Pasta Do-

Rio de Janeiro: agosto, 2013.

cumentos, p. 90. Ofício no 363/ DOI, 12/8/1971. Ministério do Exército – QuartelGeneral do I Exército.

5 BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL: Acervo Raul Amaro Nin Ferreira. Pasta Documentos, p. 81. Ofício no 360/ DOI, 11/8/1971, Ministério do Exército – Quartel

7 RIO DE JANEIRO. Comissão Estadual da Verdade. Parecer Médico-Legal sobre a

General do I Exército.

tortura e morte de Raul Amaro Nin Ferreira nos anos de chumbo. Agosto de 2014.

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da repressão: forjar laudos periciais de vítimas da repressão. Tal ação se dava, principalmente, por duas razões: para ocultar as verdadeiras causas da morte de militantes, assassinados por agentes do Estado; e para ocultar a sistemática prática de tortura contra opositores à ditadura. Para tanto, os médicos, na maioria dos casos, concediam declarações atestando a morte do indivíduo no interior do hospital, quando, na realidade, o mesmo já havia chegado morto em suas dependências; atribuíam falsas versões ao óbito das vítimas, alegando ter ocorrido “suicídio”,“atropelamento” ou “morte em tiroteio”, quando, de fato, as mesmas haviam sido assassinadas por agentes estatais; bem como omitiam, em seus laudos, dados sobre as lesões corporais que indicavam a ocorrência de tortura.

tes profissionais foram cúmplices da prática de graves violações de direitos humanos. Com efeito, durante a ditadura, a participação de médicos em ato de tortura incluía a sua presença em interrogatórios a fim de supervisionar as ações e reanimar o indivíduo, ministrando-lhe tratamento antes, durante ou depois de ser torturado. Durante as sessões de tortura, o médico determinava se o preso poderia continuar sendo seviciado ou se era preciso diminuir o grau de violência a fim de que o torturado não perdesse a consciência e pudesse, portanto, seguir dando informações. A participação dos médicos abarcava, ainda, a omissão de provas e a falsificação de relatórios, autópsias e certidões de óbito. Era frequente, nesse sentido, o acobertamento de sinais evidentes de sevícias e a ocultação da real causa mortis daqueles que foram assassinados. Havia, por fim, a ocultação de corpos. Os médicos legistas, comumente vinculados à Secretaria de Segurança Pública, contribuíram, em alguns casos, para o desaparecimento forçado de militantes. No Rio de Janeiro, pode-se identificar nomes de médicos que serviram aos propósitos do regime militar. São eles: Rubens Pedro Macuco Janini, Amílcar Lobo, Ricardo Agnese Fayad, Olympio Pereira da Silva8.

Vale ressaltar, nesse sentido, o caso de Severino Viana Colou, morto em 1969, nas dependências da 1ª Companhia de Polícia do Exército, na Vila Militar de Deodoro, no Rio de Janeiro. O auto de autópsia, lavrado pelo serviço médico do HCE, reiterava a versão oficial de que Severino havia se suicidado no interior de sua cela. A equipe pericial da CNV conseguiu desconstruir dita versão e identificar as inconsistências do laudo, tendo concluído que Severino fora assassinado por agentes da repressão. De acordo com a CNV, sua morte ocorreu “por homicídio por estrangulamento, ou por outra causa porventura omitida pela análise médico-legal”. Outro caso relevante é o de José Mendes de Sá Roriz, membro do Partido Comunista Brasileiro, que, de acordo com a CNV, foi morto sob tortura em 1973 no interior do DOI-CODI. Sua certidão de óbito declarava, contudo, que José Mendes havia morrido dentro do HCE e não definia a causa de sua morte, afirmando que a determinação desta dependeria “dos exames laboratoriais solicitados”.

Em 23 de setembro de 2014, a CNV e a CEV-Rio realizaram diligência no HCE a fim de buscar os prontuários médicos relativos ao período da ditadura militar e de identificar os locais para os quais os presos políticos eram levados no interior do hospital. Os prontuários não foram encontrados, tendo o Exército negado a existência dos mesmos. Apesar das alterações ocorridas no interior do espaço, principalmente em razão de obras realizadas a partir do final da década de 1980, ex-presos políticos que acompanharam a diligência – Marcos Arruda, Ana Miranda e Paulo César Ribeiro – conseguiram reconhecer o pré-

A história do HCE traz à tona uma importante discussão sobre a atuação de profissionais médicos durante a ditadura militar. Em vez de salvar vidas e atentar para a saúde dos enfermos, alguns des-

8 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. Volumes I, p. 877, 918, 923, 926.

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dio no qual provavelmente ficava situada a carceragem/enfermaria à época de suas prisões.

No dia 09 de dezembro de 2014, a CEV-Rio realizou uma audiência pública para entregar os prontuários médicos de três militantes

Fonte: Acervo CNV

Fonte: Acervo CNV

Posteriormente, em 14 de novembro de 2014, o Ministério Público Federal, com o apoio da Polícia Federal, cumpriu mandado de busca e apreensão no interior do HCE. Uma denúncia anônima, feita ao MPF, revelara que prontuários de presos políticos foram deliberadamente escondidos nas vésperas da diligência feita pela CNV e pela CEV-Rio em setembro daquele ano, e estariam escondidos em um prédio anexo ao hospital. Durante a operação, foram encontrados, em uma sala trancada de um prédio adjacente, prontuários de 1940 a 1969 e de 1975 a 1983, além de sacos plásticos com fichas de pacientes atendidos durante a ditadura militar, ficando comprovado que o Exército havia, de fato, ocultado documentos relevantes. Foram ainda localizados, na mesma ocasião, dossiês com nome, foto e informações de membros e assessores das comissões que haviam anteriormente participado da diligência.

que ficaram internados no HCE no período de 1970 e 1971: Maria Dalva Bonet, Abigail Paranhos e Vera Silvia Magalhães. A documentação foi encontrada pela Comissão nos arquivos do ditador Médici, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Essa foi mais uma evidência de que os presidentes militares sempre estiveram cientes das torturas praticadas pelos agentes da repressão e de que os prontuários existem e estão sendo ocultados pelo Exército brasileiro, em pleno período democrático. Até hoje, familiares de mortos e desaparecidos, bem como ex-presos políticos, lutam para ter acesso aos seus prontuários médicos.

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Referências bibliográficas BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. Volumes I, II e III. BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL: Acervo Raul Amaro Nin Ferreira. Pasta Documentos, p. 81. Ofício no 360/ DOI, 11/8/1971, Ministério do Exército – Quartel General do I Exército. BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL: Acervo Raul Amaro Nin Ferreira. Pasta Documentos, p. 90. Ofício no 363/ DOI, 12/8/1971. Ministério do Exército – Quartel- General do I Exército. FERREIRA, Felipe Carvalho Nin; FERREIRA, Raul Carvalho Nin; ZELIC, Marcelo. Relatório Raul Amaro Nin Ferreira. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO RIO DE JANEIRO. Documento enviado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) requerendo o tombamento do prédio do DOI-CODI. Rio de Janeiro: agosto, 2013. RIO DE JANEIRO. Comissão Estadual da Verdade. Parecer Médico-Legal sobre a tortura e morte de Raul Amaro Nin Ferreira nos anos de chumbo. Agosto de 2014.

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COMPLEXO PENITENCIÁRIO FREI CANECA (Localização: Rua Frei Caneca, nº 463, Estácio, Rio de Janeiro, RJ)

Fonte: Acervo Correio da Manhã do Arquivo Nacional

Erguidos em meados do século XIX, sob o governo de D. Pedro II, os prédios que compuseram a então Casa de Correção do Brasil obedeciam ao modelo de prisão moderna, que visava à correção dos “marginais” através do trabalho e inspirava-se no conceito de panóptico de Jeremy Benthan, cujo objetivo consistia em produzir nos presos a sensação de estarem sendo controlados e observados constantemente. O conjunto, que foi uma das primeiras penitenciárias da América Latina, foi construído na região do Catumbi, próximo ao Morro do Barro Vermelho (posteriormente chamado de Morro de São Carlos), com a utilização de mão de obra escrava, bem como de homens livres e libertos, considerados vadios ou mendigos. Em meados de 1860, o conjunto arquitetônico era composto por cinco estabelecimentos penais: a Casa de Correção (voltada para o trabalho dos presos), a Casa de Detenção (direcionada para presos que aguardavam julgamento), a prisão do Calabouço (destinada aos escravos), o depósito de africanos livres, além do Instituto de Menores Artesãos (destinado aos jovens

O Complexo Penitenciário Frei Caneca foi utilizado, desde o início da ditadura militar, como local de detenção de presos políticos acusados de se insurgirem contra o regime. No final dos anos de 1970, transformou-se em importante palco de resistência e reivindicações, tendo sido ali iniciada, em julho de 1979, a Greve Nacional de Fome dos presos políticos, realizada em prol da anistia ampla, geral e irrestrita.

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detidos por vadiagem ou mau-comportamento). Em regra, o perfil dos encarcerados era majoritariamente formado por negros, pobres e imigrantes (em grande parte de origem portuguesa).

sindicalistas e militares insubordinados, acusados de se oporem ao golpe de Estado e à ditadura militar com ele instaurada. À época, encontravam-se detidos no local marinheiros que participaram da Revolta dos Marinheiros em março de 1964, bem como integrantes do levante da Base Aérea de Brasília de 1963 (também conhecido como a Revolta dos Sargentos). Deu-se ainda nesse cenário a prisão de cerca de trinta homens, egressos da Guerrilha de Caparaó (1966-1967), movimento armado de oposição ao regime militar, formado por ex-militares cassados, que teve lugar na Serra do Caparaó, na divisa entre Espírito Santo e Minas Gerais.

Durante o Estado Novo (1937-1945), o local foi submetido a reformas e passou a se chamar Penitenciária Central do Distrito Federal. A partir de 1951, foram construídas as unidades penitenciárias Professor Lemos Brito e Milton Dias Moreira e, em 1960, foi erguido o Presídio Hélio Gomes, em um prédio anexo à Casa de Detenção (também chamado de presídio provisório ou presídio de passagem, para onde eram encaminhados presos que aguardavam julgamento). O conjunto, denominado Complexo Penitenciário Frei Caneca, ocupava um espaço de aproximadamente 66.000 m² e ficou conhecido por ter sido o local de detenção de figuras eminentes da sociedade brasileira, como Luis Carlos Prestes, Olga Benário, Nise da Silveira, Apolônio de Carvalho, Mario Lago e Graciliano Ramos, detidos durante a ditadura de Getulio Vargas, acusados de tentarem instaurar o comunismo no país. Inspirado pelo tempo de clausura, Graciliano escreveu o livro“Memórias do Cárcere”, no qual narra a experiência vivida naquele espaço: Sala estreita, acanhada; homens de zebra a mexer-se em trabalhos aparentemente desnecessários. Por que me encontrava ali? Devo ter feito essa pergunta, devo tê-la renovado. Impossível adivinhar a razão de sermos transformados em bonecos. Provavelmente não existia razão: éramos peças do mecanismo social - e os nossos papéis exigiam alguns carimbos. A degradação se realizava dentro das normas.1

A partir de 1964, o Complexo Frei Caneca, em especial a Penitenciária Professor Lemos Brito, abrigou integrantes de movimentos sociais, Fonte: Acervo Exposição Fotográfica “30 anos de luta pela anistia no Brasil” 1 RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. Ed. Record: 2011, volume único.

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Entre 1960 e 1980, o trabalho ou o estudo eram obrigatórios para os presos do Complexo, que contava ainda com biblioteca e cursos educativos, ainda que extremamente precários. Em julho de 1968, os presos da Frei Caneca organizaram o I Festival de Música e Poesia do Sistema Penitenciário da Guanabara, que recebeu mais de cem trabalhos e foi transmitido ao vivo pela TV Tupi. O poema vencedor intitulava-se “Regresso” e havia sido escrito por André Borges, preso comum que adquiriria posteriormente a condição de preso político em razão de sua fuga do presídio, na qual investiu parte do prêmio recebido, e de seu envolvimento em ações contra a ditadura militar.

Ainda durante a ditadura militar, o Presídio Hélio Gomes, parte do Complexo Frei Caneca, serviu de espaço para a guarda de presos políticos, lotados no Instituto Penal Cândido Mendes, em Ilha Grande, que eram encaminhados ao Rio de Janeiro para cumprir pendências perante a Justiça Militar. Alex Polari, ex-preso político, relata sua experiência no local em um poema publicado no livro Inventário de Cicatrizes (1978).

NOITES NO PP (Presídio H. Gomes)

Estou aqui, pessoal, na C-8 nossa cela de passagem nesse famigerado Presídio Hélio Gomes ex-PP,

No ano seguinte, em 1969, o presídio viu nascer em seu interior o Movimento Armado Revolucionário (MAR), originado do convívio entre militares, detidos por insubordinação ainda no momento inicial da ditadura, e presos comuns. Seis presos políticos (Avelino Capitani, Marcos Antônio da Silva Lima, Antônio José Duarte, Antônio Prestes Paula, Benedito Alves de Campos e José Adeildo Ramos) e três presos comuns (André Borges, Roberto Cietto e José Michel Godói) protagonizaram, em 26 de maio de 1969, uma espetacular fuga do presídio. Planejada durante vários anos, a fuga contou com o apoio de um grupo armado, formado por integrantes da organização já soltos, que resgatou os presos na penitenciária. No momento da operação, um agente penitenciário foi morto e três pessoas ficaram feridas. Em liberdade, o grupo buscou implementar a segunda etapa do plano que consistia em formar um foco de guerrilha na região da Serra do Mar, próximo a Angra dos Reis. Sem conseguir concretizar sua meta, os militantes acabaram sendo novamente presos e alguns deles mortos. Esse foi o caso de Roberto Cietto, preso, torturado e morto em setembro de 1969 no prédio do PIC, no 1º Batalhão de Polícia do Exército, onde posteriormente funcionaria o DOI-CODI/RJ. Por sua vez, Marcos Antônio da Silva Lima foi morto em janeiro de 1970, em uma operação organizada pela Polícia do Exército da I Região Militar e pelo DOPS/GB.

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Presídio Policial,

rodeado de faqueiros bichas, fanchones guardas e faxinas. No alto de minha beliche de pedra leio o semanário Opinião,

autores latino-americanos e vez ou outra espio a TV. Porto apenas uma cueca Zorba fumo incontáveis cigarros Hollywood bebo infindáveis canecas de café Pelé e em vez de grilhetas, calço as legítimas sandálias Havaianas. Discuto a formação do Partido os males da monogamia


relembro tiroteios e trepadas e breve, após o confere, ainda com as feridas da última visita na capela, sonharei com os anjos pendurados em paus-de-arara celestes.

A partir de 1975, já na chamada distensão política, o Complexo Frei Caneca foi o destino de um grande número de militantes políticos detidos pelo regime militar, acusados de violarem a Lei de Segurança Nacional (1969). Por essa lei, ficava estabelecida a prisão perpétua e a pena de morte no Brasil e os condenados por crimes nela previstos, tivessem conotação política ou não, seguiam o mesmo processo na Justiça Militar e cumpriam as mesmas penas em presídios e celas comuns. Os presos para lá enviados eram originários majoritariamente do Instituto Penal Cândido Mendes em Ilha Grande, de onde já reivindicavam sua transferência fazia algum tempo, argumentando que a distância do continente dificultava as visitas de familiares e que, enquanto presos políticos e ideológicos, deveriam permanecer detidos em um local destinado apenas a eles. Em 1975, após uma série de protestos e greves de fome realizadas pelos presos, iniciou-se a transferência, mas os mesmos foram inicialmente encaminhados de Ilha Grande para uma ala do Presídio Esmeraldino Bandeira, em Bangu, onde aguardaram o término das obras da Penitenciária Milton Dias Moreira. Em 1976, concluiu-se a mudança e o Complexo Frei Caneca tornou-se conhecido como um presídio político, dando importante passo para o reconhecimento da existência de presos políticos em nosso país, algo reiteradamente negado pelos governos militares.

Fonte: Acervo Exposição Fotográfica “30 anos de luta pela anistia no Brasil” Legenda: Cinema Iris

No Complexo, os presos políticos, aproximadamente 59, foram alocados em um refeitório desativado da Penitenciária Milton Dias Moreira, reformado especialmente para abrigá-los, e apelidado ironicamente por eles de “Cinema Íris”. O espaço continha trinta celas com banheiro que alojavam dois presos em cada e permaneciam abertas durante o dia. Havia ainda um espaço coletivo com televisão e uma cozinha para uso comum. Ali dentro, os presos tinham acesso a jornais e revistas e podiam ser frequentemente visitados. A proximidade do centro da cidade facilitou o encontro com seus familiares e advogados, permitindo um maior contato com o mundo exterior. Mas o reconhecimento da condição de presos políticos e as conquistas dela resultantes, foram produto de anos de resistência nos cárceres e de muitas lutas precedentes. Nas palavras de Gilney Viana e Perly Cipriano:

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A sobrevivência político-ideológica, essencial para os presos políticos, se tornava dramática. O simples, mas fundamental, para nós inarredável, reconhecimento de nossa condição de presos políticos nos custou anos e anos de resistência, de esforços, preocupação, mil lutas a cada dia, diante de cada guarda, policial, soldado, tribunal militar, comandante ou diretor de prisão. Muitas vezes tivemos que travar a luta em três frentes: pela sobrevivência física (às vezes atacada pela alimentação deficiente e pela precária assistência médica); pelo respeito aos mais elementares direitos da pessoa humana (ostensivamente violados, incluindo aqui a luta contra as torturas e maus tratos de que eram vítimas os presos comuns); e pelo respeito aos direitos cidadãos, em especial à nossa condição de presos políticos.2

Fonte: Jornal Tribuna da Imprensa 23 de julho de 1979.

Naquele momento, os governos militares eram objeto de crescentes denúncias de torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados. No final de 1978, o AI-5 foi revogado, restituindo-se o direito ao habeas corpus. A liberdade e a anistia dos presos políticos tornaram-se, então, as principais bandeiras de luta contra a ditadura. Alguns presos foram libertados através de indultos ou por meio da redução de suas penas, prevista na nova Lei de Segurança Nacional, editada em dezembro de 1978, após a pressão dos movimentos sociais. À atuação do Movimento Feminino pela Anistia e dos Comitês Brasileiros pela Anistia somavam-se, dentre outros atores, ONGS internacionais, exigindo a volta dos militantes exilados e a libertação dos presos políticos por todo o Brasil.

Fonte: Acervo Exposição Fotográfica “30 anos de luta pela anistia no Brasil” Legenda: 32º dia da Greve de Fome dos presos

Foi precisamente no Complexo Frei Caneca que a luta pela anistia atingiu maior visibilidade. A primeira ação nesse sentido data de 1977, quando os presos políticos da Penitenciária Milton Dias Moreira, em solidariedade às companheiras detidas no Presídio Feminino Talavera Bruce, em Bangu, aderiram à greve de fome promovida pelas presas para denunciar os maus tratos às quais eram constante-

2 CIPRIANO, Perly, VIANA, Gilney A. Fome de liberdade: a luta dos presos políticos pela anistia. 2ª Ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 40.

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mente submetidas e reivindicar a transferência para uma ala especial do Complexo Frei Caneca. Apesar do apoio à greve, que contou ainda com a participação de militantes detidos no Presídio Lemos Brito, de Salvador, na Bahia, a mobilização não surtiu efeito e as militantes não foram transferidas.

raria 32 dias, teve adesão de presos de outros estados e contou com o apoio de várias entidades (como a OAB e a CNBB) e de artistas e intelectuais (como Gilberto Gil, Luís Melodia, Jorge Mautner, Chico Buarque, Milton Nascimento, Oscar Niemeyer, Darcy Ribeiro, Ziraldo e Antônio Houaiss), tendo obtido ampla repercussão nas mídias nacional e internacional. Seu objetivo era pressionar o Congresso Nacional a aprovar uma Lei de Anistia ampla, geral e irrestrita, contrária à proposta de anistia parcial, apresentada pelo governo, que excluía os presos políticos considerados “terroristas”. De acordo com Gilney Viana e Perly Cipriano, presos no Complexo Frei Caneca, a anistia era um assunto central naquele momento e envolvia:

(…) todo o processo de prisões arbitrárias, torturas, processos e julgamentos viciados, entraves políticos da parte da Justiça Militar para nossa soltura, os longos anos de cárcere em condições muitas vezes degradantes e desrespeitosas aos direitos humanos e de cidadãos, e especialmente de presos políticos, os casos dos companheiros assassinados nas câmaras de tortura e a responsabilidade das autoridades do regime sobre tudo isso. Pretendíamos fazer ver que a questão Anistia não se resumia à simples votação do projeto, mas compreendia todo o processo político pelo qual a sociedade questionava o regime militar e almejava sua substituição por um regime democrático.3

Visita de Políticos aos presos políticos Fonte: Acervo Exposição Fotográfica “30 anos de luta pela anistia no Brasil”

A mesma estratégia foi utilizada posteriormente, mas dessa vez com maior repercussão. Em 1979, os presos políticos que permaneciam detidos no Complexo Frei Caneca (dentre os quais: Paulo Roberto Jabur, Gilney Viana, Carlos Alberto Sales, Jesus Parede Soto, Jorge Santos Odria, Jorge Raimundo Junior, Antônio Pereira Mattos, Perly Cipriano, Paulo Henrique Oliveira da Rocha Lins, Alex Polari, Nelson Rodrigues, Manoel Henrique Pereira, José Roberto Rezende, Helio da Silva e José André Borges) iniciaram, no dia 22 de julho, uma greve de fome em prol da anistia ampla, geral e irrestrita. A greve, que du-

3 CIPRIANO, Perly, VIANA, Gilney A. Fome de liberdade: a luta dos presos políticos pela anistia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 66.

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reformada em 1978, passou a permitir a progressão para o regime de liberdade condicional, condição esta que, para alguns, perdurou por muitos anos, às vezes até à aprovação da Constituição Federal de 1988.

Fonte: Acervo Exposição Fotográfica “30 anos de luta pela anistia no Brasil” Legenda: Visita de intelectuais, entre eles Oscar Niemeyer e Darcy Ribeiro Fonte: Acervo Exposição Fotográfica “30 anos de luta pela anistia no

A greve de fome, que atingira alcance nacional, teve fim no dia 22 de agosto de 1979, quando foi aprovada, no Congresso Nacional, a Lei de Anistia, posteriormente sancionada pelo General João Batista Figueiredo em 28 de agosto daquele ano. A luta, porém, estava longe de ter fim. A lei aprovada excluía da anistia todos os presos políticos considerados responsáveis por atentados terroristas e assassinatos e ainda previa a figura do “crime conexo”, que acabou sendo interpretado como uma extensão da anistia aos agentes estatais perpetradores de graves violações de direitos humanos. Por conta disso, muitos militantes não puderam retornar do exílios e os presos envolvidos nos chamados “crimes de sangue” não foram libertados de imediato. Alguns tiveram que cumprir integralmente a condenação, enquanto outros tiveram suas penas readequadas pela Lei de Segurança Nacional que,

Brasil” Legenda: primeira refeição após a greve de fome dos presos

Após a libertação dos presos políticos, o anexo da Penitenciária Milton Dias Moreira, até então destinado exclusivamente a eles, passou a concentrar os presos comuns, condenados pela Lei de Segurança Nacional. William da Silva Lima, detido no local, descreve, em seu livro “Quatrocentos contra um”, a situação do presídio em 1983: Estamos num anexo do presídio Milton Dias Moreira, no complexo da rua Frei Caneca, especialmente construído há poucos anos para receber os presos políticos que aguardavam a anistia. Eles já foram, deixando vagos os lugares que agora são nossos. A nova direção do

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sistema insiste em nos manter isolados. Somos 34 presos e apenas uma certeza: tão cedo não sairemos daqui, pelo menos pelas vias legais. Há mais de 10 anos a maioria de nós roda como peão pelas cadeias do Rio de Janeiro. Fugir novamente, para não apodrecer – é o que resta.4

A partir dos anos de 1990, o espaço, anteriormente reformado para abrigar os presos políticos, foi transformado em prisão para ex-policiais e ex-guardas penitenciários, recebendo o nome de Penitenciária Petrolino Serling de Oliveira. O Complexo Frei Caneca englobava à época as seguintes unidades penais: Penitenciária Lemos Brito, Penitenciária Milton Dias Moreira, Penitenciária Petrolino Serling de Oliveira, Presídio Hélio Gomes, Casa de Custódia Romeiro Neto (para mulheres), Presídio feminino Nelson Hungria, Hospital Penal Fábio Soares Maciel, Presídio Hélio Gomes e o Instituto de Classificação e Tratamento Nelson Hungria. Ao longo dos anos, o Complexo ficou conhecido pelas frequentes denúncias de tortura e pelas péssimas condições de alimentação, higiene e habitação às quais estavam submetidos os detentos, agravadas pela superlotação das celas.

Fonte: Marcos Cruz. 7/04/1996

Em 2003, frente ao mau estado de conservação e à situação de insegurança vivenciada na região, com as recorrentes rebeliões e fugas de presos, além dos constantes tiroteios no morro do São Carlos, o governo estadual decidiu desativar o Complexo Frei Caneca. Naquele mesmo ano, o presídio feminino Nelson Hungria foi transferido para o Complexo penitenciário de Bangu. Três anos depois, em novembro de 2006, foram desativadas e demolidas, as penitenciárias Milton Dias Ferreira, Lemos Brito e Romero Neto. O que restou do conjunto foi implodido no dia 13 de março de 2010, mantendo-se apenas o pórtico, tombado pela prefeitura do Rio de Janeiro em 2006. Em 2012, o artista plástico Carlos Vergara lançou o livro “Liberdade”, no Memorial de Resistência de São Paulo, reunindo fotografias da demolição do Complexo Frei Caneca, cujo terreno deu lugar a um projeto de moradia popular.

4 LIMA, William da Silva. Quatrocentos contra um: Uma história do comando vermelho. 1ª Ed: Editora Vozes, 1991. p. 18.

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Referências Bibliográficas: BRASIL. Ministério da Justiça. Comissão de Anistia. 30 anos de luta pela anistia no Brasil: greve de fome de 1979/ organização de Daniela Fratz [et al.]. Brasília: Comissão de Anistia, MJ: 2010. PESSOA, Gláucia. Casa de Correção. Disponível em: http://linux.an.gov.br/mapa/?p=6333 ARAÚJO, Carlos Eduardo. Da casa de correção da corte ao Complexo Penitenciário da Frei Caneca: um breve histórico do sistema prisional no Rio de Janeiro, 18342006. In: Cidade Nova Revista, nº 1/2007. pp. 147-162. VERGARA, Carlos. Liberdade. Ensaio crítico Moacir dos Anjos; participação espe-

Foto: Ana Carolina Fernandes. 15/08/2

cial Silviano Santiago; versão em inglês Rebecca Atkinson. Rio de Janeiro : Suzy Muniz, 2012. Disponível em: http://www.cvergara.com.br/shared/pdf-vergara-baixa-res.pdf FARIA, Cátia. Revolucionários, bandidos e marginais: presos políticos e comuns sob a ditadura militar. 2005. Tese de Doutorado. Dissertação, PPGH/UFF. FREITAS, Alípio. Resistir é preciso. Rio de Janeiro: Record, 1981. MELLO, Marisa. História da Construção do Complexo Presidiário da Frei Caneca. In: VERGARA, Carlos. Liberdade. Rio de Janeiro: Governo do Estado, 2010 [jornal publicado por ocasião da exposição Liberdade na Escola de Artes Visuais do Parque Laje, no Rio de Janeiro]. ALVERGA, Alex Polari. Inventário de cicatrizes. Rio de Janeiro: Comitê Brasileiro pela Anistia, 1978. LEVINO, José. A greve dos presos políticos pela anistia, em 1979. Disponível em: http://jornalggn.com.br/blog/iv-avatar/a-greve-dos-presos-politicos-pela-anistia-

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-em-1979-0 JORNAL DO BRASIL. Dom Eugênio se fez porta-voz dos presos políticos, mas defendia anistia restrita. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/ 511378-dom-eugenio-se-fez-porta-voz-dos-presos-politicos-mas-defendia-anistia-restrita TERRA. Penitenciária de 172 anos será demolida no Rio. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI1316488-EI306,00-Penitenciaria+de+anos+sera+demolida+no+Rio.html ROCHA, Carla. Construído no Império, Complexo no Frei Caneca, por onde passou o escritor Frei Caneca. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/construido-no-imperio-complexo-da-frei-caneca-por-onde-passou-escritor-graciliano-ramos-3040722 JORNAL ÚLTIMA HORA. 22 de março de 1983. SUSSEKIND, Elizabeth. Estratégias de sobrevivência e de convivência nas prisões do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas - Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC). Rio de Janeiro: 2014. CIPRIANO, Perly, VIANA, Gilney A. Fome de liberdade: a luta dos presos políticos pela anistia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. Acervo Exposição Fotográfica “30 anos de luta pela anistia no Brasil” Homenagem aos 50 anos de militância política de Perly Cipriano e Gilney Viana. Disponível em: http://dhnet.org.br/

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INSTITUTO PENAL TALAVERA BRUCE

la Abreu e Tania Fayal, permaneceram ali detidas. Inaugurada no início da década de 1940, a Penitenciária se prestava a acolher mulheres que cumpriam pena privativa de liberdade. Até então, as mulheres ficavam detidas em presídios masculinos, em alas diferenciadas das reservadas aos homens. A motivação desta separação, ao contrário de evidenciar uma preocupação com a melhoria das condições de vida das detentas, baseou-se na ideia de que a presença feminina nos presídios gerava emoções perniciosas entre os homens, motivo pelo qual elas deveriam ser mantidas afastadas. Até a década de 1950, o funcionamento da instituição sustentava-se em premissas conservadoras acerca dos papeis de gênero, tendo por objetivo a ressocialização e adequação das detentas às funções sociais então consideradas apropriadas para as mulheres. Com esse intuito, a administração do espaço foi, em um primeiro momento, designada às Irmãs do Bom Pastor, que mantinham vigilância constante sobre as presas, impondo-lhes um comportamento em conformidade com a moral cristã e os “bons costumes”. Em 1955, o local passou a ser administrado pela direção da Penitenciária Central e, em 1966, ganhou autonomia administrativa, recebendo o nome Talavera Bruce, com o qual segue até hoje.

(Localização: Estrada do Guandu do Sena, no 1902, Gericinó, Rio de Janeiro, RJ)

A penitenciária, que ocupa uma área de cerca de 17.000 m2, dos quais 8.000 m2 são edificados, possui um portão principal com grades de ferro e é cercada por muros de três a cinco metros de altura. As presas políticas, para lá encaminhadas a partir do início dos anos 1970, ficavam, em regra, detidas em um pavilhão exclusivo, separada das demais presas. O espaço contava com um pátio interno e se dividia em duas galerias. A primeira galeria era formada por celas de aproximadamente dois metros de comprimento por um de largura. A segunda galeria, por sua vez, permanecia sempre fechada por uma grade de ferro, próxima da qual situavam-se o banheiro e o fogão, ambos de uso coletivo das internas.

A Penitenciária Talavera Bruce, parte do complexo de Gericinó (também conhecido como complexo penitenciário de Bangú), foi a primeira unidade prisional no estado do Rio de Janeiro destinada a abrigar somente mulheres. Na década de 1970, militantes políticas acusadas de oposição à ditadura militar, dentre as quais Estrella Bohadana, Inês Etienne Romeu, Jesse Jane, Zenaide Machado de Oliveira, Maria Luiza Araújo, Dulce Pandolfi, Ieda Santos, Iná Meireles, Sandra Dias, Lei-

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ções da prisão, com celas mínimas e insalubres, bem como a imposição de castigos (como a permanência em solitárias e em celas sujas, com animais em seu interior) e de isolamento forçado (na área destinada ao manicômio judicial). Dulce Pandolfi, Jesse Jane e Estrella Bohadana resgatam, em suas narrativas, a memória do espaço:

Nessa galeria, tinha um corredor grande, com várias celas (...). Eram celas pequenas, que tinham uma cama beliche (dessas camas feitas de alvenaria), um vaso sanitário (dividido por uma mureta baixa) e um espaço em frente à cama, em que a gente, geralmente, colocava uma estante pequena com os objetos pessoais.1 As celas permaneciam abertas de manhã e eram fechadas durante a noite, cabendo às próprias presas políticas a limpeza do pavilhão. As militantes tinham direito a tomar banho de sol por uma hora diariamente e, nos sábados, podiam receber visitas por duas horas. Estes encontros eram, no entanto, marcados pela constante vigilância dos agentes de segurança, que costumavam deixar os familiares esperando por longas horas e que, não raro, estragavam objetos pessoais e alimentos que eram levados às presas, sob o argumento de que os estariam inspecionando. Como forma de retaliação às presas, quando grupos de esquerda realizavam ações contra o regime militar, as correspondências, os banhos de sol e as visitas eram suspensas pela direção do presídio.

Durante a minha estadia no DOPS fui levada para o Instituto Médico Legal, IML, para fazer um exame de corpo de delito. Achavam que eu seria uma das presas políticas trocadas pelo embaixador suíço, sequestrado no dia 8 de dezembro (…) Mas, no final de dezembro, ao invés de sair rumo ao Chile, como os companheiros que foram trocados pelo embaixador suíço, eu fui transferida para o presídio Talavera Bruce, em Bangu, zona norte do Rio de Janeiro. Depois de ter ficado ali quase seis meses, enfrentando uma barra bastante pesada, fui transferida para o presídio Bom Pastor, em Recife. (…) Eu acuso a diretora do Presídio Talavera Bruce em Bangu, no Rio de Janeiro, que me deixou durante seis meses sozinha, isolada, numa cela mínima, insalubre, chamada solitária. Em solitárias semelhantes estavam, naquele mesmo período, as presas políticas Estrela e Jessie Jane. (Dulce Pandolfi. Testemunho concedido a CEV-Rio em 28 de maio de 2013)2

De modo geral, as presas políticas encaminhadas ao Presídio Talavera Bruce já haviam passado por outros centros de prisão e tortura como, por exemplo, o DOPS/GB, o DOI-CODI/RJ ou o 1º BIB de Barra Mansa. Por conta disso, algumas militantes chegaram ao presídio bastante machucadas e ainda com marcas das sevícias a que haviam sido anteriormente submetidas. Apesar de não se ter notícia da realização, no interior da penitenciária, de interrogatórios sob tortura, relatos de ex-presas políticas destacam as péssimas condi-

Eu me encontrava no Presídio Talavera Bruce saindo do CISA, do Sistema de Informação da Aeronáutica, após ter sido presa no dia 1º daquele mesmo ano. Aquele era um tempo difícil nas prisões, vivíamos sob muitas restrições. Quando cheguei a Bangu, bairro onde se localiza o presídio sobre o qual nos referimos aqui, o coletivo de presas políticas

1 Entrevista com ex-presa política do Talavera Bruce concedida à Rodrigo Fonseca Vieira, In: SANTOS, Rodrigo da Fonseca Vieira Justen dos. Memória e Informa-

2 ACERVO CEV-Rio. Testemunho de Dulce Landolfi concedido em Audiência

ção: Ex-prisioneiras políticas e espaço prisional. - XII Encontro regional de História,

Pública realizada no dia 28 de maio de 2013. Disponível em: https://www.youtube.

Anpuh-Rj. 2006.

com/watch?v=ZwyKtFdZrKk

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era composto por militantes de várias organizações, e eram em grande número. No princípio não me permitiram ir para o pavilhão onde estavam aquelas companheiras. Fui mantida em isolamento por muitos meses em um corredor onde ficavam presas comuns consideradas malucas, isto é, presas que haviam sido enquadradas no artigo 121 do Código Penal. No início de 1971, chegaram outras companheiras que também foram levadas para este mesmo lugar. Me refiro especificamente à Dulce Pandolfi, Estrella Bohadana, e outra companheira que ficou pouco tempo entre nós, que se chama, ou se chamava, Margarida, uma companheira da AP, se não me engano. Em meados de 1971, creio que foi em junho ou julho, fomos incorporadas ao coletivo (…) (Jesse Jane Vieira de Souza, testemunho prestado a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva, em 7 de junho de 2013)3

ficar de castigo por desobediência à direção do presídio, a ficar num negócio chamada surda, que é uma cela baixinha, cheia de bicho, e que você fica ali dentro sendo punido. (Estrella Bohadana. Testemunho prestado a Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda)4 História marcante do Presídio Talavera Bruce, que expõe as dificuldades enfrentadas pelas mulheres presas, foi a de Jesse Jane e sua filha, Leta. Militante da Ação Libertadora Nacional, Jesse Jane foi capturada em julho de 1970 por agentes da repressão e levada para o DOI-CODI/RJ. Condenada pela Justiça Militar a dezoito anos de prisão, permaneceu presa no Talavera Bruce por nove anos. Nesse período, conseguiu autorização judicial para casar-se com seu companheiro, Colombo Vieira de Souza, detido no Instituto Penal Cândido Mendes, em Ilha Grande. Em 1975, após conquistarem o direito à visita íntima, Jesse engravidou na prisão. Um mês antes do nascimento da filha, a militante foi transferida para o hospital penitenciário, permanecendo isolada em uma pequena cela. Frente à recusa dos hospitais militares de realizarem o parto, Jesse Jane, com a ajuda financeira de outros companheiros, foi encaminhada para uma clínica particular, onde foi mantida sob constante vigilância policial. Leta nasceu no dia 20 de setembro de 1975. Dois dias depois, mãe e filha voltaram para o presídio Talavera Bruce, onde permaneceram juntas por alguns meses. Tanto no hospital quanto no presídio, Jesse recebeu ameaças de militares que afirmavam que matariam sua filha, realizando o que eles chamavam de operação Jacarta (em referência à matança de comunistas realizada na Indonésia). Para que a filha não crescesse entre as grades do presídio, Jesse entregou Leta aos cuidados da família de seu companheiro. Nas palavras da ex-militante:

Depois desse período [no BIB de Barra Mansa], eu fui levada de volta pro Rio. Fiquei no DOPS fazendo depoimento dois ou três dias, com uma tortura já mais branda, porque eu também já tava toda quebrada. E fui mandada pro Presidio Talavera Bruce. Lá, eu cheguei toda enfaixada por causa das costelas que doíam muito. Tava com tudo quebrado, toda roxa. E ai já tinham presas companheiras no pavilhão de presas políticas. Não fui mandada para esse pavilhão porque elas iriam testemunhar o estado em que eu cheguei. E ai me colocaram na ala do presídio que era de doentes mentais. E lá eu fiquei. Encontrei a companheira Jesse Jane e Dulce Pandolfi. Cada uma numa cela isolada. E ali ficamos durante muito tempo, isoladas e privadas de contato com as outras companheiras. (…) Eu mesma cheguei a

3 COMISSÃO RUBENS PAIVA. Transcrição da 49ª audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva (oitiva dos depoimentos sobre o caso Solange Gomes). 7 de junho de 2013. Disponível em: http://verdadeaberta.org/

4 ACERVO COMISSÃO MUNICIPAL DE VOLTA REDONDA. Áudio do depoi-

upload/003-transcricao-audiencia-publica.pdf

mento prestado por Estrella Bohadana.

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As memórias relacionadas ao nascimento da minha filha me transportam para situações contraditórias. De um lado, a imensa felicidade com a chegada daquele pequenino ser, que nos trazia esperanças, alegrias e ao mesmo tempo, angústias pela consciência de que não poderíamos tê-la conosco. E, de outro lado, a preocupação pelo futuro que poderíamos vislumbrar para nossa filha, já que estávamos condenados a muitos anos de prisão e não sabíamos quanto tempo mais viveríamos sob a ditadura. Havia ainda a ausência da minha família, que se encontrava no exílio. (…) Leta permaneceu comigo somente nos primeiros meses de vida, quando a entreguei aos cuidados da família do Colombo. E aquele foi o momento mais dramático em toda a minha existência. Uma dor dilacerante, sem igual. Pela legislação penitenciária, Leta poderia permanecer no presídio até os 6 anos, na creche que existia à época, quando então teria que ser entregue à família ou a um juiz. Eu optei por tirá-la daquele ambiente entendendo que ela não deveria crescer entre aquelas grades e que deveria ter uma vida familiar normal entre os primos e desfrutar a sua infância como todas as crianças têm direito. (…) No dia 6 de fevereiro de 1979 fomos soltos e, na saída da prisão, lá estava ela. Linda, no colo das avós – minha mãe, rompendo com as proibições que a impediam de voltar ao país, resolveu que naquele momento estaria ali – e, ao longo da ponte que liga o Rio a Niterói, cidade em que residimos até hoje, ela ia nos mostrando o barco, a lua, como se estivesse entendendo tudo o que ocorria. Ficou acordada a noite inteira e, na manhã seguinte, pegou o pai pela mão e foi apresentá-lo aos gatos da casa. (Jesse Jane Vieira de Souza. Testemunho disponível no livro “Infância Roubada: crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil”)5

Leta também testemunhou sobre sua experiência enquanto filha de ex-presos políticos, abordando a dimensão traumática transgeracional da ditadura militar.

5 São Paulo (Estado). Assembleia Legislativa. Comissão da Verdade do Estado de

6 São Paulo (Estado). Assembleia Legislativa. Comissão da Verdade do Estado de

São Paulo“Rubens Paiva”. Infância Roubada, Crianças atingidas pela Ditadura Mili-

São Paulo“Rubens Paiva”. Infância Roubada, Crianças atingidas pela Ditadura Mili-

tar no Brasil. / Assembleia Legislativa, Comissão da Verdade do Estado de SãoPaulo.

tar no Brasil. / Assembleia Legislativa, Comissão da Verdade do Estado de SãoPaulo.

– São Paulo : ALESP, 2014. p.158-159.

– São Paulo : ALESP, 2014. p.153-155.

Pra mim, ser uma anistiada política, filha de pessoas que lutaram contra os absurdos da ditadura militar brasileira é, e sempre foi, razão de grande orgulho. Meus pais e seus amigos são o que toda criança sonha: são heróis de verdade que ultrapassaram seus limites e suas próprias mazelas pelo bem comum. No entanto, com esse status de “filha de heróis”, vem também o outro status, o de “filha de terroristas”. Com esse, vem o silêncio, o medo de saberem quem você é e o que você pensa. Esse medo me acompanha até hoje. (…) Quanto à minha experiência no presídio, obviamente não tenho memória. Mas todas as vezes que eu vejo a lua cheia, lembro dos meus pais dizendo que essa é a “Lua de Letinha”, porque lhes mostrava no dia em que foram soltos, como se eu estivesse adivinhando que eles não tiveram oportunidade de ver o mundo fora do presídio. Porém, apesar da falta de memória específica, eu me lembro do sentimento. Esse sentimento me acompanha até hoje. Nos momentos importantes da vida ele me retorna, como se um clic interno me acendesse e informasse “isso é importante, seja forte, siga em frente, faça o que é preciso, ouça o entorno, observe, fale menos, se proteja e, sobretudo, proteja os seus”. É um sentimento, uma coisa não mensurável, uma urgência. (Leta Vieira de Souza. Testemunho disponível no livro “Infância Roubada: crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil”)6

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Como forma de resistência e de denúncia das situações humilhantes e desrespeitosas a que eram submetidas, as presas políticas realizaram greves de fome no interior do presídio. Entre os anos de 1970 e 1972, foram feitas duas greves, cuja principal reivindicação era a melhoria das condições da alimentação oferecida às detentas. Em 1977, a estratégia seria novamente utilizada, dessa vez em prol da transferência das militantes para uma ala especial do Complexo Frei Caneca, onde encontravam-se outros presos políticos. Essa última greve contou com a adesão de presos políticos dos presídios Milton Dias Moreira (no Complexo Frei Caneca), Esmeraldino Bandeira (em Bangu) e Lemos de Brito (Salvador, BA), mas, apesar do amplo apoio, a reivindicação não foi atendida.

Fonte: Jornal do Brasil 08 de Novembro de 1977

Com a aprovação da Lei de Anistia, em 1979, o presídio Talavera Bruce deixou de abrigar presas políticas. A libertação das militantes, apesar de representar uma importante vitória na luta contra a ditadura, não alterou o cotidiano de violações de direitos humanos no interior do presídio. Como bem destacado pela ex-presa política Estrella Bohadana, aquele espaço era para as presas comuns o que o centro de tortura era para as presas políticas.

Fonte: Jornal do Brasil de 07 de Dezembro de 1977

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Realmente, na prisão, a pior coisa é quando você perde a noção do tempo e do espaço. São dois elementos fundamentais para você se manter minimamente lúcida. E isso eles tiram. A luz fica eternamente acesa, então você não sabe se é dia ou se é noite. E a quantidade de medicamentos é absurda. (...) O que pra nós, presas políticas, acontecia nos cetros de tortura, pra presa comum, acontece dentro do próprio presídio. A tortura se dá ali dentro. (…) Nós, presas políticas, já estávamos sob a guarda dos advogados. Quando você chega no presídio, dificilmente podem desaparecer com você. Mas a presa comum, não. Tudo se passa ali. Ali é um centro de tortura também. Não é só tortura pelas péssimas condições, pela quantidade de gente. Mas no caso do pavilhão de doentes mentais, pela quantidade de medicamento que se recebe, que é uma coisa de louco. Nós conseguíamos burlar isso, colocando remédio aqui, fingindo que tomava e não tomava. Mas as presas comuns, não. Pelo menos uma se suicidou e nós sabíamos que ela ia se suicidar. Chegamos a avisar pra guarda e eles diziam “não, é porque vocês não entendem nada do presídio, todas dizem que vão se suicidar”. Até o dia em que ela se suicidou realmente. (Estrella Bohadana. Testemunho prestado a Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda)7

co na garantia dos direitos fundamentais das mulheres submetidas à medidas de restrição de liberdade, evidenciando as continuidades de um passado que se atualiza constante em nosso presente:

No encarceramento feminino há uma histórica omissão dos poderes públicos, manifesta na completa ausência de quaisquer políticas públicas que considerem a mulher encarcerada como sujeito de direitos inerentes à sua condição de pessoa humana e, muito particularmente, às suas especificidades advindas das questões de gênero. Isso porque há um conjunto de direitos das mulheres presas que são violados de modo acentuado pelo Estado, que vão desde a desatenção a direitos essenciais como à saúde e, em última análise, à vida, até aqueles implicados numa política garantidora de direitos sociais como a educação, o trabalho e a preservação de vínculos e relações familiares.8

Bibliografia consultada:

A violação dos direitos das mulheres presas ainda é ponto central a ser enfrentado no âmbito do sistema carcerário do estado do Rio de Janeiro. De acordo com dados do Departamento Penitenciário do Ministério da Justiça/DEPEN, entre 2007 e 2011, houve expressivo aumento da população carcerária feminina do estado, passando de 1.463 para 1.908 detentas. O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à tortura do Rio de Janeiro apontou, em seu relatório do ano de 2012, a histórica omissão do poder públi-

SANTOS, Rodrigo da FonsecaVieira Justen dos. Memória e Informação: Ex-prisioneiras políticas e espaço prisional. - XII Encontro regional de História, Anpuh-Rj. 2006. VIANA, Gilney; CIPRIANO, Perly. Fome de Liberdade: a luta dos presos políticos

8 ALERJ. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório anual. 7 ACERVO COMISSÃO MUNICIPAL DE VOLTA REDONDA. Áudio do depoi-

2012. Disponível em: http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2013/01/

mento prestado por Estrella Bohadana.

RELATÓRIO-ANUAL-MEPCT-RJ-2012.pdf

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pela anistia. 2ª Ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos Vivos – Análise Sociológica de uma Prisão de Mulheres. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999. SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa. Comissão da Verdade do Estado de São Paulo“Rubens Paiva”. Infância Roubada, Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil. / Assembleia Legislativa, Comissão da Verdade do Estado de SãoPaulo. – São Paulo : ALESP, 2014. p.158-159. ALERJ. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório anual. 2012. Disponível em: http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2013/01/RELATÓRIO-ANUAL-MEPCT-RJ-2012.pdf

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4ª SUBSEÇÃO DE VIGILÂNCIA DO ALTO

de detenção de presos políticos durante o período da ditadura militar, e, assim como a Invernada de Olaria, ganhou manchetes em jornais por conta das arbitrariedades cometidas em suas dependências nas décadas de 1960 e 1970.

DA BOA VISTA

O local abrigou inicialmente o Posto Policial do Alto da Boa Vista que, a partir de 29 de agosto de 1960, passou a ser a sede do Comissariado do Alto da Boa Vista.1 Situado na confluência das estradas que levavam à Mesa do Imperador, à Vista Chinesa e à Furnas-Jacarepaguá, o prédio recebeu muitos presos oriundos dos movimentos de greve, que começavam a emergir no cenário político, principalmente após a renúncia do presidente Jânio Quadros.

(Localização: R. Boa Vista, 196, Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro RJ)

Fonte: Jornal Última Hora de 9 de novembro de 1960

A reportagem do Última Hora, de 9 de novembro de 1960, relata que o Comissariado do Alto da Boa Vista recebeu mais de 80 grevistas, levados até lá por policiais da antiga Delegacia de Ordem Política e Social do Estado da Guanabara (que, em 1962, deu origem ao Departamento de Ordem Política e Social do Estado da Guanabara – DOPS/ GB) para prestar esclarecimentos após comparecerem a uma assembleia no Teatro João Caetano, no centro do Rio. Diante da falta de

Situada na zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, a 4ª Subseção de Vigilância da Polícia, também conhecida como “Invernada do Alto da Boa Vista”, foi um dos locais utilizados pelos militares como centro

1 ÚLTIMA HORA.“Posto de Comissariado”, edição de 30 de agosto de 1960, p. 2.

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capacidade do local para comportar tamanha quantidade de presos, os mesmos ficaram empilhados nas celas, demonstrando a inadequação do local para este tipo de operação2. Ainda assim, tornou-se um dos principais destinos de pessoas encarceradas durante as operações da polícia que, auxiliada pela tropa de choque, intensificou sua atuação com o objetivo de combater as agitações populares que emergiam com a renúncia de Jânio.

subordinado ao então Departamento Especial de Segurança Pública do Estado da Guanabara (DESP), não ofereciam condições necessárias para a permanência de presos, conforme denunciou o jornal Última Hora em 6 de outubro de 1961: “Quem se aproxima do Comissariado defronta com uma construção muito branca, despida de enfeites e que lembra, à primeira vista, uma Casa de Saúde particular. Da porta de entrada, um corredor leva diretamente aos cubículos, passando-se, antes, por uma pesada porta de aço. (...) Nenhum ruído atravessa as portas de cimento, reforçadas de 20 em 20 centímetros por barras de ferro, dispostas em meio da argamassa. (...) A “sala de banhos” também conhecida como “Sauna”, na gíria policial, consiste de um cubículo inteiramente cimentado, de 2 metros por 4 de profundidade e em cujo teto estão instalados 3 poderosos chuveiros, controlados do lado de fora. (...) Fechada a porta, o sombrio “banheiro” torna-se mais horripilante pela escuridão total. Os banhos eram aplicados em políticos e estudantes sistematicamente depois da meia noite, e duravam até às 6 da manhã. Enregelada para que não apanhasse pneumonia, a vítima era então, retirada para um cubículo adjacente, sem camas ou mesmo jornais, e também recoberto de cimento até uma altura de 2 metros, no qual a “paisagem” interna de um cimento enervante é quebrada pelo vaso sanitário. Nada mais. Nem sequer ruído de trânsito. Às vezes, os gritos abafados daqueles, que em outros xadrezes, experimentavam a palmatória ou a tortura do ‘pau-de-arara’”.5

Foi nesse contexto que o coronel Ardovino Barbosa montou um quartel general (QG) dentro do Comissariado do Alto da Boa Vista. Jornais à época noticiaram, inclusive, a requisição por parte do coronel de mais quinze camas para alojar sua tropa no local, evidenciando sua intenção em aumentar a quantidade de presos ali recebidos e, consequentemente, de soldados para ordenar o novo contingente.3 Durante a crise política enfrentada no ano de 1961, a polícia militar, sob as ordens do governador Carlos Lacerda, atuou de maneira extremamente truculenta, gerando diversas denúncias à Assembleia Legislativa – por parte de estudantes, líderes sindicais, trabalhadores e, ainda, membros da própria Polícia Militar – a respeito do tratamento dispensado aos presos tanto no Comissariado do Alto da Boa Vista, como na Invernada de Olaria, onde tais denúncias corriam no sentido de configurarem verdadeiros “campos de concentração”4 e tortura. Já neste período é possível perceber que as instalações do Comissariado,

No ano seguinte, em 13 de julho de 1962, outro episódio apresenta o local como palco das arbitrariedades policiais características do governo de Carlos Lacerda: a prisão de motoristas que partici-

2 ÚLTIMA HORA.“Prisões em Massa”, edição de 9 de novembro de 1960, p. 12. 3 ÚLTIMA HORA. “GB: Sexto dia da crise: Polícia em Ação”, edição de 30 de agosto de 1961. 4 Termo utilizado de forma recorrente nas reportagens do periódico Última Hora sobre os presídios do Comissariado do Alto da Boa Vista e da Invernada de Olaria.

5 ÚLTIMA HORA.“’UH’ devassa ‘campos de concentração’ na Guanabara! – Estu-

Conforme série de matérias intitulada “’UH’ devassa ‘Campos de Concentração no

dantes e operários torturados nas jaulas da Polícia”, edição de 5 de outubro de 1961,

Rio”, edições de 5, 6 e 7 de outubro de 1961.

p. 7.

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pavam da greve do Sindicato dos Condutores de Veículos Rodoviários e Anexos. Neste evento, os presídios da Invernada de Olaria, bem como o Presídio Fernandes Viana, 11º e 19º distrito policial, e finalmente, o Presídio do Alto da Boa Vista, concentraram grande número de grevistas (um total aproximado de 300 pessoas). Vários dos detidos apresentaram sinais de espancamento, ocasionando a abertura de uma CPI para investigar as arbitrariedades cometidas no local. À época, o jornal Última Hora publicou:

vendo, dormindo no chão. Dali nós íamos para o confessionário de culpa, descíamos dentro de um camburão da polícia num calor miserável, 28 pessoas até o 2º Tribunal do Júri.7 Durante o contexto de prisões de ex-militares e do posterior encaminhamento dos mesmos ao Comissariado do Alto da Boa Vista a prisão do ex-militar, conhecido como cabo Anselmo, marcou a história do lugar. Cabo Anselmo chefiara o movimento de rebeldia dos inferiores da Armada na Marinha e posteriormente ficou conhecido por entregar companheiros às forças repressivas. Anselmo foi preso no DOPS e então transferido para o Comissariado do Alto da Boa Vista.8

“O cinismo, as contradições, e a frieza daqueles policiais deixaram patente a culpabilidade nos crimes denunciados (...). Todos negaram sequer conhecimento do que é “Pau de Arara”, “Cristo Redentor”, “Choque Elétrico”, “Telefone”, “Anjinho” e “Diadema”, deixando perplexos os deputados, principalmente ao afirmarem que os sinais de sevícias constatados nos exames periciais eram provocados pelas próprias vítimas.”6

Ainda que o prédio não possuísse estrutura adequada para abrigar uma grande quantidade de presos foram realizadas, no período, inúmeras requisições de transferência de pessoas encarceradas em outras unidades prisionais para o Alto da Boa Vista. Um exemplo são os pedidos vindos do Presídio Fernandes Viana9, onde a superlotação das celas tinha tornado insuportável a permanência dos presos no local. Em resposta a uma dessas solicitações, o Diretor do Presídio Fernandes Viana, Tenente Coronel José Pinto Lemos, explica ao Juiz Auditor da Marinha, o seguinte a respeito da delegacia do Alto da Boa Vista:

Em 1964, após o golpe militar, o Comissariado do Alto da Boa Vista passou a figurar como 4ª Subseção de Vigilância. Nesta ocasião, de acordo com o periódico Correio da Manhã de 23 de setembro de 1964, o lugar passou a receber muitos ex-militares que se encontravam presos, sob a custódia da Marinha. Dentre eles, encontrava-se o fuzileiro naval Paulo Novaes Coutinho, que contou à Comissão Nacional da Verdade:

7 COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Depoimento de Paulo Novaes Coutinho em 4 de maio de 2013. 8 CORREIO DA MANHÃ. “Anselmo abandonou asilo e foi preso”, edição de 24

(...) nos jogaram num depósito de presos no Alto da Boa Vista, onde hoje é o Corpo de Bombeiros lá em cima, dormindo 15 pessoas num quarto de 15 por 30 no chão, um banheiro, aquele banheiro quadrado onde você tem que ficar de cócoras fazendo cocô e urinando com todo mundo

de maio de 1964. 9 Como alguns exemplos de solicitações de transferências vale destacar: Petição de Arnaldo de Assis Murthê requerendo transferência para o Presídio Especial do Alto da Boa Vista, em 05/10/64. 21/01/1965; Petição de Tarcísio Alves Cunha solicitando transferência para o Presídio do Alto da Boa Vista. Solicitação de transferência

6 ÚLTIMA HORA.“Show de cinismo e frieza prova culpa de carrascos”, edição de

do preso Paulo Gonçalves Oliveira, do presídio Fernandes Viana, onde dividia a cela

21 de agosto de 1963.

com “maconheiros”, para o Presídio do Alto da Boa Vista.

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da Boa Vista, fato reafirmado pelo coronel Paulo Malhães em depoimento à Comissão da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-RJ). Na mesma ocasião, Malhães apontou ainda que a 4º Subseção de Vigilância do Alto da Boa Vista era utilizada como um centro de detenção e interrogatórios por agentes ligados à repressão, como o então detetive civil Fernando Gargaglione.

“(...) Não existe no Alto da Boa Vista, nenhum Presídio. O que existe é um Posto Policial, onde se encontram recolhidos alguns presos, entre eles ex-militares, que ali foram abrigados em virtude deste depósito não dispor de local para alojá-los. Tanto o Posto Policial do Alto da Boa Vista, como o Anexo da Quinta da Boa Vista, não têm administração própria e os presos que neles se encontram estão subordinados, administrativamente, à direção deste Depósito, inclusive as apresentações nos locais para onde são requisitados (...)”10 Outros relatos indicam que a 4º Subseção de Vigilância do Alto da Boa Vista foi usado como centro de prisões e torturas também em 1970. Na noite do dia 1º de novembro, os advogados Heleno Fragoso, Augusto Sussekind de Moraes Filho e George Tavares, que à época defendiam presos políticos, foram sequestrados e levados ao Alto da Boa Vista, sem qualquer processo que justificasse suas detenções, e sem que tivesse sido formulado qualquer tipo de acusação. Esses relatos constam do livro intitulado “Advocacia em tempos difíceis”, em que George Francisco Tavares, lembra: Eu fui para o subsolo, passando por um corredor que era chamado de “corredor geladeira”, onde tiraram o meu capuz e minha roupa, eu fiquei nu. O lugar era um gelo terrível! Por isso o chamavam de corredor geladeira.11

Fonte: Google Street View

Sobre Gargaglione, Malhães afirmou, tanto no mencionado depoimento à CEV-Rio, quanto em posterior entrevista concedida ao jornal O Dia, em 30 de maio de 2014, que se tratava de um detetive da Polícia Civil, regularmente acionado pelos centros de repressão como o DOI-CODI, o DOPS e a Vila Militar, para ocultar corpos de vítimas da ditadura12, constando ainda da lista de torturadores do Brasil Nunca Mais como detetive civil lotado no DOPS. Em 2013, em matéria publicada pelo jornal O Globo, em 6 de outubro,

Atualmente, o prédio onde funcionou a “Invernada do Alto da Boa Vista” abriga a unidade do Corpo de Bombeiros do Alto

10 Secretaria de Segurança Pública do Estado da Guanabara. Ofício 27239 de 25 de novembro de 1964, Resposta ao Ofício nº1988/64. Conforme: http://bnmdigital. mpf.mp.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=BIB_01&PagFis=85647 11 SPIELER, Paula e QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo (Coord.). Advocacia em tem-

12 O DIA.“Malhães caçou argentinos asilados”, em edição de 30 de maio de 2014

pos difíceis: ditadura militar 1964-1985. Curitiba: Edição do Autor, 2013,p. 305.

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REFERÊNCIAS:

o nome de Gargaglione foi novamente relacionado a autoria de crimes. Dessa vez, a reportagem dizia que o ex-detetive, junto com ex-militares também ligados à ditadura, eram responsáveis pela organização e pelo controle do jogo do bicho no Rio de Janeiro.13

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. – Brasília: CNV, 2014 SPIELER, Paula e QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo (Coord.). Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar 1964-1985. Curitiba: Edição do Autor, 2013. Pg. 305 Secretaria de Segurança Pública do Estado da Guanabara. Ofício 27239 de 25 de novembro de 1964, Resposta ao Ofício nº1988/64. Conforme: http://bnmdigital. mpf.mp.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=BIB_01&PagFis=85647 ÚLTIMA HORA.“UH devassa ‘campos de concentração na Guanabara! – Estudantes e operários torturados nas jaulas da Polícia”, edição de 5 de outubro de 1961. ÚLTIMA HORA.“Show de cinismo e frieza prova culpa de carrascos”, edição de 21 de agosto de 1963. ÚLTIMA HORA.“Posto de Comissariado”, edição de 30 de agosto de 1960, p. 2 ÚLTIMA HORA.“Prisões em Massa”, edição de 9 de novembro de 1960, p. 12. O GLOBO. “Bicho cresceu no Rio com a ajuda de torturadores”, edição de 6 de outubro de 2013. O DIA.“Malhães caçou argentinos asilados”, edição de 30 de maio de 2014. RIO DE JANEIRO. Comissão Estadual da Verdade. A memória do Terror Comissão Estadual da Verdade. – Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2014. (Depoimento Paulo Malhães)

13 O GLOBO.“Bicho cresceu no Rio com a ajuda de torturadores”, edição de 6 de outubro de 2013

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INVERNADA DE OLARIA

chamava o campo de boiada do “Matadouro da Penha”, um abatedouro de bois. Já em meados do século XX, o local se transformou em um dos principais locais da repressão no estado do Rio de Janeiro, sendo inclusive apelidada de “Casa do Diabo”.

(Localização: Rua Paranapanema, 769, Olaria, Rio de Janeiro, RJ)

Fonte: Google Street View

Na década de 1950, o Rio de Janeiro passava por um momento de crescente criminalidade. Frente a esse quadro e atendendo às reivindicações de comerciantes, o governo criou um grupo de elite da Polícia Estadual civil, o Serviço de Diligências Especiais (SDE), sediado em um terreno de 3.000 metros cedido pelos militares e diretamente ligado ao gabinete do chefe da polícia do então Distrito Federal, general Amaury Kruel. Na década de 1960, um grupo de policiais, oriundos do SDE e escolhidos pelo ex-secretário de segurança Luis França, acabou conhecido como os “Doze Homens de Ouro”, famosos pelo alto número de execuções realizadas. Assim como os “Homens de Ouro”, outros agentes, dirigidos pelo detetive Milton LeCocq, também deixaram marcas pela truculência de suas ações. Após o assassinato do detetive,

Situada em um bairro da zona norte da cidade do Rio de Janeiro, a 2ª Subseção de Vigilância da Polícia, também conhecida como Invernada de Olaria, abrigava uma delegacia famosa nos anos 1960 e 1970 pela violência policial, a qual foi por diversas vezes manchete em jornais cariocas que denunciavam as torturas sofridas pelos presos no local. A criação da Invernada tem suas raízes no final do século XIX e início do século XX. Na época, “Invernada de Olaria” era como se

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seus companheiros fundaram a“Scuderie LeCocq”, que continuou atuando na repressão e esteve envolvida em diversos casos de execuções, passando a ser chamada de“Esquadrão da Morte”.

ocorridas na delegacia, relacionando-as inclusive com a figura de Cecil Borer, um agente que desde 1932 atuava na polícia política e estava ligado a grupos de extrema direita. O jornalista Amado Ribeiro afirmou, em 05 de outubro de 1961:

As pressões para que a turma de elite da polícia fosse desfeita tiveram início ainda em 1958, com a morte, durante operação realizada pelo grupo, do motorista Edgar Farias de Oliveira, empregado da TV Tupi. Enfim, o Serviço foi pulverizado, sendo parte absorvida pela Invernada de Olaria, então subordinada ao Departamento Estadual de Segurança Pública (DESP). A delegacia era responsável pela vigilância da região que compreende desde a Praça da Bandeira até a Pavuna. Contava, na época, com 50 policiais.

A ‘Invernada’ de Borer tem tudo de um campo de concentração, inclusive cercas de arame farpado. O prédio, propriamente dito, onde estão situados os xadrezes, forma um bloco compacto, branco e azul com um teto de enorme laje, que, visto do alto, assemelha-se a uma ‘casamata’ inexpugnável1. Batista de Paula, também jornalista e preso nessa época, conta ao jornal sobre o local para onde foi levado: Não via nada, não sabia onde estava. (...) Sabia apenas que estava em uma prisão, um xadrez infecto, com as paredes pintadas de um negro denso e opaco. (...) Somente pela madrugada, quando ouvi latidos e uivos de cães, pude constatar que me encontrava recolhido na “Invernada” de Olaria, ao lado do canil mantido pela Polícia Militar, na Rua Paranapanema.2 Em 13 de dezembro de 1962, ocorreu a prisão do advogado das Ligas Camponesas Clodomir Santos de Moraes, junto à sua companheira Celia Lima e ao motorista José Francisco da Silva. Acusados de estarem carregando armas em seu carro, eles foram levados à Invernada

Fonte: Jornal Ultima Hora de 5 de outubro de 1961 1 ULTIMA HORA. Edição de 05/10/1961. Página 07. Disponível em: http://me-

No início da década de 1960, a Invernada realizou, com o aval do governador Carlos Lacerda, uma série de detenções políticas, principalmente de estudantes e líderes sindicais. Frente às denúncias realizadas pelos que nela foram presos, relatando as torturas sofridas, o jornal Última Hora publicou uma série de reportagens sobre algumas das violências

moria.bn.br/pdf2/386030/per386030_1961_03461.pdf

2 ULTIMA HORA. Edição de 05/10/1961. Página 07. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf2/386030/per386030_1961_03461.pdf

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de Olaria, onde sofreram diversas torturas. Somado à esse caso, foi divulgada na impressa a denúncia de que a polícia estaria sistematicamente assassinando mendigos e desovando seus corpos no Rio da Guarda.

3

Fonte: Jornal Correio da Manhã. 19 de Setembro de 1963.

Frente a tais acusações, cria-se em 1963 uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que indiciou quinze detetives para apurar a veracidade das declarações prestadas. Durante a CPI, Clodomir, Célia e Francisco são ouvidos e acareados com seus algozes. Confirmando as acusações contra os policiais, os três laudos do exame de corpo de delito atestaram a presença de lesões corporais causadas por ação contundente. O jornal Correio da Manhã acompanhou o caso e publicou, em 07 de novembro de 1964, um depoimento de Clodomir descrevendo o que passara na Invernada:

Fonte: Jornal Correio da Manhã. 19 de Setembro de 1963.

Pouco mais tarde fui encaminhado para uma cela onde havia cerca de vinte pessoas (...). Como não morasse no Rio eu não sabia bem o que se tratava, mas os companheiros de cela logo esclareceram: a Invernada era o local de assassinatos, espancamentos e torturas. Alguns exibiam as mãos inchadas de palmatória; um deles tinha o corpo todo cortado a gilete porque, não suportando as torturas, tentara se matar. (...) Aí

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o Departamento de Polícia Política e Social (DOPS), o presídio da Quinta da Boa Vista e o posto policial do Alto da Boa Vista. Ao longo da ditadura, a Invernada continuou chamando atenção pelo número de prisões,torturas e mortes no seu interior, o que passou, contudo, a ser progressivamente ocultado em função da censura e do endurecimento da repressão.

começou o suplício: Felipão [detetive Felipe Mathias Altério] batia com a palmatória na sola dos pés e os outros, em todas as partes do corpo. Dali a pouco, um dos detetives, do tipo ‘lombrosiano’, passou a aplicar choques elétricos nos ouvidos. A dor era insuportável. Perdi os sentidos várias vezes, mas os policiais me obrigavam a recuperá-lo. (...)3

Um caso paradigmático foi a morte da militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), Aurora Maria do Nascimento Furtado, em 10 de novembro 1972, em razão da brutalidade policial. Aurora fora capturada por agentes da 2ª Subseção de Vigilância na região de Parada de Lucas e levada sob espancamentos para a Invernada de Olaria. Na delegacia, a militante sofreu diversas sessões de tortura e seu corpo foi entregue mutilado aos familiares. A advogada Eny Moreira, que acompanhou o caso, declarou à Comissão Nacional da Verdade: A última coisa que fizeram com ela, foi apertar um torniquete que eles ironicamente chamavam de “Coroa de Cristo” (...).. A Aurora tinha um pano branco cobrindo o corpo e muitas flores. (...) A gente ficou ali tentando tapar aquelas feridas para que o pai e a mãe da Aurora não vissem aquilo. (Depoimento de Eny Moreira, prestado à Comissão da Verdade). Renato Tapajós, cunhado de Aurora, testemunhou à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo:

Fonte: Correio da Manhã. 13 de Agosto de 1963

Com o golpe de 1964, a Invernada de Olaria continuou sendo utilizada. Logo nos primeiros dias do regime militar, ela se transformou em um dos principais destinos de quem era detido, juntamente com

Ela foi pendurada no pau de arara com o joelho destroçado pelo tiro que havia levado. Aplicaram-lhe choques, pancadas e finalmente a coroa de cristo, que é uma tira de metal com parafusos, colocada na testa e parte de trás do crânio. Essa tira aperta a cabeça até que os olhos saltem e danifique profundamente o cérebro. É uma tortura para matar, com um nível de dor inimaginável. (Depoimento de Renato Tapajós, prestado à

3 CORREIO DA MANHÃ. Edição de 07/11/1964. Página 03. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20 196&pesq=invernada%20de%20olaria

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Comissão da Verdade). O laudo necroscópico de Aurora revelou 29 perfurações provocadas por tiros, além de cortes e queimaduras no corpo. Seu crânio também apresentava uma perfuração de 2 cm que decorreu do uso do instrumento de tortura. Tapajós ainda contestou a versão oficial, apresentada pelos órgãos da repressão à ocasião, de que a militante teria sido confundida com uma traficante de drogas e que por isso teria sido torturada pelos policiais da Invernada de Olaria: ‘‘Dizer que ela foi torturada por policiais comuns é tirar a responsabilidade dos membros do DOI-CODI e pelo que soubemos havia membros do serviço secreto da Aeronáutica na tortura de Lola’’. Essa afirmação de Renato Tapajós, que associa o trabalho dos agentes da Invernada com outras esferas da repressão, já havia sido anunciada em 1964 pelo jornal Correio da Manhã. Na coluna “Doença e Cura”, em 16 de setembro, ao criticar o governador Carlos Lacerda e acusá-lo de colocar parte de seu aparato policial à disposição do CENIMAR, questionava-se: ‘‘Quem calou quando tanta gente era perseguida ou torturada? Quem autorizou as torturas no DOPS, na Invernada de Olaria, e a utilização dos seus agentes nos espancamentos do Cenimar?’’. Atualmente, o prédio em que funcionava o centro de detenção e tortura retornou aos militares e abriga o 16º Batalhão da Polícia Militar, que atua na região de Olaria, Penha, Penha Circular, Parada de Lucas, Vigário Geral, Jardim América, Brás de Pina e Cordovil. O aquartelamento é dividido com o Batalhão de Ações com Cães.

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CHACINA DE QUINTINO

riam sido resultado de uma troca de tiros entre os agentes do governo e os militantes. No entanto, a conclusão das investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio) desmentem esta versão, demonstrando que a operação policial foi realizada com o único objetivo de executar os três militantes, o que configura uma chacina1.

(Localização: Av. Suburbana, no 8.985, casa 72, Quintino, Rio de Janeiro, RJ)

Fonte: Acervo CEV-Rio

A ação foi realizada por agentes do Departamento de Operações e Investigações do I Exército (DOI-CODI), com o apoio do Departamento

Em 29 de março de 1972, foram assassinados Lígia Maria Salgado Nóbrega, Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo e Antônio Marcos Pinto de Oliveira, militantes da VAR-Palmares, organização de resistência ao regime, em uma operação policial realizada contra um aparelho do grupo - uma residência no bairro de Quintino, na zona norte do Rio de Janeiro. James Allen Luz, outro militante da VAR-Palmares, também estava presente na casa, mas conseguiu fugir. A versão oficial, por anos sustentada pelas Forças Armadas, é a de que as mortes te-

1 Chacina é a denominação adotada pela CNV para se referir a execuções sumárias praticadas por agentes estatais contra um grupo de três ou mais pessoas no mesmo local. São homicídios violentos e simultâneos, em que as vítimas não apresentam chance de defesa, estando em condições de reação inferiores às dos executores. Conferir o Relatório da CNV, volume I, página 480.

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de Ordem Política e Social do Estado da Guanabara (DOPS/GB) e da Polícia Militar. Oito dias depois do assassinato dos militantes, diversos jornais noticiaram o ocorrido, transcrevendo a versão oferecida pelos militares de que teria havido um tiroteio.

sobre como se sucedeu a operação em Quintino: O tiroteio comeu... o tiroteio comeu... Só a polícia que atirava. Quando eles [as vítimas] viram que o negócio estava feio assim, tentaram entrar na casa 70 por trás que tinha muito caminho e eles queriam fugir por trás né, por essa rua. E a polícia metralhou. Agora trocou a janela que era de madeira, mas estava cheia de buraco de bala até pouco tempo. E essa moça que parecia que era feia [Aurora Maria Nascimento Furtado], ela veio assim se rendendo. Aí já viu né? Pá! E ela caiu ali. Caiu ali onde tem a garagem. Então foi uma coisa terrível. (...) Aí ficou meses as pessoas ali tomando conta e tal. (...) Não, eles [as vítimas] não reagiram, não deu tempo. Eles [a polícia] esperaram anoitecer e tal e ficaram todos ali escondidos, ali onde tinha um muro. Eles [as vítimas] saíram mortos (...). (Testemunho de Heloisa Helena de Almeida concedido à CEV-Rio)

Fonte: Acervo CEV-Rio

Entretanto, vizinhos que testemunharam o ocorrido afirmaram aos pesquisadores da CEV-Rio que os agentes do Estado cercaram a casa desde o final da tarde do dia 29, preparando o ataque que ocorreu à noite. Lembraram ainda que os disparos não partiram de dentro do imóvel, apenas de fora2, contestando as informações prestadas pelos órgãos de segurança até então. Em depoimento, Heloisa Helena de Almeida, vizinha do aparelho onde ocorreram as execuções, afirmou

2 Depoimentos em áudio prestados por quatro vizinhos da casa onde ocorreu a Chacina. Disponível no acervo da CEV-Rio.

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Em testemunho às comissões da verdade que realizaram a audiência pública sobre o caso, Iara Lobo de Figueiredo, filha de Maria Regina, uma das vítimas da chacina, revelou que, à época dos fatos: (...) meus tios foram reconhecer o corpo de minha mãe (...) não puderam sequer tocar no corpo de minha mãe, nem para trocar sua roupa, que observaram, os meus tios médicos, que ela estava toda metralhada, mas que havia manchas roxas de hematomas por todo corpo, que a perna esquerda abaixo do joelho estava inchada, apresentando uma ferida com infecção (...) (Testemunho de Iara Lobo de Figueiredo concedido à CEV-Rio e à CNV) Na mesma ocasião, Fátima Setubal, irmã de Marco Antonio, lembrou que o enterro do irmão à época foi realizado sob vigilância de policiais, que intimidavam a família: Os policiais estavam armados lá no Cemitério São João Batista no Caju (...) e eles, quando minha mãe começava a rezar, muito religiosa que era e a chorar mais alto, eles chegavam armados e falavam `Não pode falar alto. Não pode chorar alto’ (Testemunho de Fátima Setubal concedido à CEV-Rio e à CNV)

Fonte: Acervo CEV-Rio

Os testemunhos foram ainda corroborados com as conclusões dos peritos da CNV, que, em audiência pública organizada pela CEV-Rio, em outubro de 2013, tiveram acesso ao laudo de local elaborado pelo Instituto Carlos Éboli, com 20 fotografias, bem como a laudos de exames cadavéricos das três vítimas. A análise permitiu concluir que não havia armas perto das vítimas no momento do ataque e que restos de pólvora não foram encontrados em seus corpos, provando que não houve disparos por parte dos militantes contra os agentes de segurança. Restou ainda comprovado que as vítimas apresentavam lesões produzidas por projétil de arma de fogo em locais do corpo que caracterizam ação rápida dos agressores, com intuito de execução.

Francisco Nóbrega, irmão de Lígia Maria, que era gestante de dois meses e foi a primeira militante executada na operação, a despeito de sua rendição, também se recordou: Um dia a televisão estampou a o rosto de três jovens apresentados como terroristas que resistiram à prisão e foram mortos pela polícia. O choque foi imenso, para meus pais principalmente. Mais tarde fui ao Rio com meu tio (...) fazer o reconhecimento do corpo (...) Notei o tiro no braço, a perfuração na cabeça (...). Meu pai que sofria de angina, silenciosamente se consumiu e o acontecido com a filha nascida em sua terra

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

amargurou seus últimos meses e apressou a sua morte. (Testemunho de Francisco Nóbrega concedido à CEV-Rio e à CNV)

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. _____. Comissão Nacional da Verdade. Arquivo. 00092.001880/2014-63 (testemunhos em áudio de quatro vizinhos da casa onde ocorreu a chacina) RIO DE JANEIRO. Comissão Estadual da Verdade. Audiência pública de 29 de outubro de 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PL9n0M0Ixl2jcOKnhwGKquVlnVEPnM099x

Fonte: Jornal Correio da Manhã. 6 de Abril de 1972

A execução sumária, utilizada pela repressão para calar opositores ao regime, e a sua dissimulação com o argumento de que teria havido resistência à prisão, é uma prática que sobreviveu à transição para a democracia. Ela ocorre com frequência até os dias de hoje, contra jovens negros, moradores de comunidades, com a referência ao instituto do “auto de resistência” com o objetivo de “legalizar” o crime.

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CHACINA DO PARTIDO COMUNISTA

PCBR/GB”. A nota, publicada na edição do Jornal do Brasil1, deu destaque especial às ações das forças de segurança que “prosseguindo operações contra grupos terroristas remanescentes, desbarataram duas importantes células do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR)”2. A informação que narrava a morte de seis militantes políticos do PCBR veio a público na segunda quinzena do mês de janeiro de 1973, mas as ações conduzidas pelos agentes do Estado que provocaram a morte desses jovens militantes haviam ocorrido antes, no dia 29 de dezembro de 1972. A razão pela qual o evento não havia sido noticiado, segundo os agentes de segurança, foi para garantir “o sigilo necessário ao prosseguimento das operações”.3

BRASILEIRO REVOLUCIONÁRIO (PCBR) (Rua Grajaú, no 321 – Grajaú – Rio de Janeiro)

O ponto de partida para as ações que culminariam na morte de seis militantes foi a prisão de Fernando Augusto da Fonseca (“Sandália”), em Recife, Pernambuco, no dia 26 de dezembro de 1972. Durante o interrogatório a que foi submetido, Fernando Augusto teria revelado informações sobre dois “aparelhos” do PCBR e que teria encontros marcados (“pontos”) com os outros integrantes da organização ainda no mesmo mês no Rio de Janeiro, o que justificou sua transferência para a cidade4. A nota divulgada pelo serviço de Relações Públicas do I Exército informa que Fernando Augusto da Fonseca teria acompanhado os agentes do Estado até o bairro do Grajaú, onde teria um encontro, enquanto que, concomitantemente, outros agentes se dirigiram para o segundo

1 Jornal do Brasil,“Seis terroristas mortos na Guanabara”, edição de 17 de janeiro de 1973, p.16.

No dia 17 de janeiro de 1973, viria a público a primeira versão oficial do episódio que passaria a ser conhecido como a Chacina do PCBR. De acordo com nota divulgada por órgãos de segurança do Estado brasileiro, “em ações simultâneas, realizadas em pontos diferentes da Guanabara”, havia sido destruído o “grupo de fogo terrorista do

2 Jornal do Brasil,“Seis terroristas mortos na Guanabara”, edição de 17 de janeiro de 1973, p.16. 3 Arquivo CNV, 00092.000583/2014-09. 4 Relatório CNV, Volume III, p.1113.

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“aparelho”do PCBR, localizado no bairro de Bento Ribeiro. De acordo com essa mesma nota, nos dois locais, os militantes teriam reagido violentamente. Ainda segundo a versão divulgada pelo Exército, em uma rua sem saída do Grajaú, Fernando Sandália foi ao encontro de companheiros que estariam o esperando dentro de um carro de marca Volkswagen. Estes, ao perceberem que Fernando estava sendo usado como “isca”, não teriam hesitado em alvejá-lo. Isso teria culminado em um intenso tiroteio que levou à explosão do carro, matando por carbonização os militantes José Bartolomeu Rodrigues, Getúlio de Oliveira Cabral (“Gogó”) e José Silton Pinheiro. Segundo a mesma versão oficial, existiria mais um militante no carro que teria conseguido fugir, embora ferido5. Enquanto isso, no segundo “aparelho” no bairro do Bento Ribeiro, os militantes foram cercados pelos agentes de segurança. No relato oficial consta que eles teriam reagido ao cerco usando, inclusive, granadas. Incapazes de se livrar do bloqueio, dois militantes teriam se entregado. Supostamente devido ao intenso tiroteio, porém, outros dois militantes foram mortos: Valdir Sales Saboia e Luciana Ribeiro da Silva, nome falso de Lourdes Maria Wanderley Pontes6.

5 Relatório CNV, Volume I, p.482. Fonte: Jornal do Brasil de 17 de Janeiro de 1973

6 Relatório CNV, Volume I, p.482.

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Há muitas evidências que fragilizam a versão contada pelos documentos oficiais. Em primeiro lugar, não há em nenhum meio oficial ou midiático informação sobre os nomes dos militantes que se entregaram ou que fugiram. E, conforme depoimento da esposa de Fernando Sandália, Sandra Maria Araújo da Fonseca, eles tinham uma viagem marcada para visitar parentes em Belo Horizonte, o que desmente que Fernando teria um encontro marcado com seus companheiros. Presa e levada ao DOI-CODI/Recife junto com o marido, Sandra o viu pela última vez no dia da prisão e só soube da sua morte no dia em que a chacina foi noticiada – dia 17/017.

Já no caso do tiroteio na Rua do Grajaú, na altura do no 321, consta que, quando o 2º tenente da 20º Delegacia foi averiguar o caso do veículo em chamas, encontrou o delegado do DOPS Gomes Ribeiro, que alegou ter sido aquele “um serviço de rotina do interesse da segurança nacional”9. O corpo de Fernando, encontrado próximo ao veículo, possuía escoriações no rosto e no tórax, ou seja, marcas de tortura10. Em uma perícia realizada na investigação, a CNV identificou que o fusca tinha o tanque de combustível intacto e sua carroçaria não possuía marcas de disparo, o que levou a concluir que o veículo foi carbonizado de dentro para fora, i.e., a explosão foi evidentemente forjada11.

No caso do “aparelho” em Bento Ribeiro, o suposto tiroteio aconteceu na rua Sargento Valder Xavier de Lima no 12 – que é justamente o nome de um militar morto em Salvador em 1970 por uma ação empreendida pelos militantes do PCBR. As fotos da perícia comprometem a versão de um tiroteio e do uso de granadas: o corpo de Lourdes Maria foi encontrado encostado em uma parede, com 3 tiros visivelmente dados em sequência no tórax e um tiro no pulso direito, característico de autodefesa. Ainda assim, não há vestígios significativos de sangue, o que seria esperado depois de sofrer esses ferimentos. Já no caso do Valdir, no atestado de óbito consta que ele veio a óbito no bairro do Grajaú. Ademais, as necropsias realizadas pelos legistas Roberto Blanco dos Santos e Helder Machado Paupério indicaram que os corpos apresentavam rigidez muscular generalizada. Isso significa dizer que eles teriam que ter falecido entre as 14h e 15h, e não às 23h, horário em que a perícia chegou ao “aparelho”, supostamente após o fim do tiroteio. Essas evidências tornam questionável, então, afirmar que esses militantes vieram a falecer nesse local8.

A entrada desses militantes no IML também apresenta elementos que contrariam a versão oficial. Embora todos os corpos tenham dado entrada às 2h30 do dia 30 de dezembro – e a sequência indiscreta sugere que os corpos não vieram diretamente do local de falecimento -, foram dadas versões diferentes de óbito para cada militante. Por exemplo, os corpos carbonizados foram descritos pela perícia no local como impossíveis de identificação, dado o seu estado. Mas na entrada do IML não houve dificuldades em identificá-los como os corpos de Getúlio de Oliveira Cabral, José Bartolomeu Rodrigues e José Silton Pinheiro12. Para além da fragilidade técnica dos laudos médicos, há testemunhas que apontam contradições na narrativa apresentada pelos órgãos de repressão, como por exemplo, o depoimento de José Adeildo Ramos, recolhido pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polí-

9 Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos website, s.d. 10 Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007.

7 Arquivo CNV, 00092.002175/2014-83.

11 Relatório CNV, Volume III, p.1113.

8 Relatório CNV, Volume III, p.1113; Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007.

12 Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos website, s.d.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ticos (CEMDP), que afirma que esteve preso com Fernando Augusto da Fonseca e que Fernando foi morto em decorrência das torturas nas dependências do DOI-CODI/Recife. Também à CEMDP, o ex-preso político Rubens Manoel Lemos declarou, em 1996, que tanto Fernando quanto José Silton Pinheiro e Getúlio de Oliveira Cabral “foram colocados, já mortos, dentro de um carro da marca Volkswagen, que foi incendiado no Rio de Janeiro”13.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. Volume 1 (p.481-482) e volume 3 (p. 1090-1122). __. Direito À Verdade e À Memória: Comissão especial sobre mortos e desaparecidos. 1ª Edição. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. __. Acervo de Mortos e Desaparecidos Políticos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos website, s.d. Disponível em: < http://cemdp.sdh.gov.br/modules/de-

Ainda que a fragilidade da versão oficial seja evidente, não houve maiores avanços investigativos sobre o que realmente aconteceu na Rua Grajaú no dia 29 de dezembro de 1972.

saparecidos/acervo/ficha/cid/120>. JORNAL DO BRASIL. “Seis Subversivos Morrem em Tiroteios com Autoridades”, 17 jan 1973. Hemeroteca Digital website, s.d. Disponível em: < http://memoria. bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&pesq=graja%u00fa&pasta=ano+197>

13 Relatório CNV, Volume III, p.1113.

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FORTALEZA DE SANTA CRUZ (Localização: Estrada General Eurico Gaspar Dutra, s/n, Jurujuba, Niterói, RJ)

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

Situada na entrada da Baía de Guanabara, entre os morros do Pico e do Macaco, a fortaleza de Santa Cruz serviu de presídio logo nos primeiros dias da implantação do regime militar, em abril de 1964. Recebeu políticos e militares cassados nos atos iniciais do governo. Posteriormente, no decorrer da ditadura, a fortaleza também serviu para o encarceramento de outros presos políticos e de prisioneiros comuns.

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

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Ocupando um ponto estratégico na geografia fluminense, a fortificação foi construída na virada do século XVI para o século XVII. Pelo cálculo do governo português, tratava-se de garantir a defesa do porto da cidade do Rio de Janeiro. De fato, a fortaleza teve papel predominante no controle do Rio de Janeiro pelos portugueses, uma vez que oferecia proteção contra os ataques de estrangeiros durante os períodos da colônia e do império. Também se destacou no século XIX, tendo sido responsável por salvaguardar o escoamento pela baía dos metais preciosos oriundos de Minas Gerais. Da fortaleza saíram os ataques contra os navios que participavam da Revolta da Armada, em 1893, e contra o Forte de Copacabana e o encouraçado São Paulo, na Revolta Tenentista, em 1922. Em seu histórico como presídio, a fortaleza de mais de sete mil metros quadrados era conhecida pelas péssimas condições das masmorras que serviram de cárcere para os presos oriundos de batalhas navais. Por ela também passaram figuras eminentes como José Bonifácio, Euclides da Cunha e Bento Gonçalves.

Em situação semelhante, o coronel Kardec Lemme também foi levado para a fortaleza logo após o golpe. Seu filho, Luiz Carlos Teixeira Lemme, comentou sobre a prisão do pai, cujo nome constava na primeira lista de cassações divulgada pelo regime: ‘‘Essa fortaleza tem um lugar cavado na pedra. Então tem um lugar onde a água sobe e entra água na cela. Foi lá que ele foi interrogado’’2. Kardec Lemme foi expulso do Exército pelo Ato Institucional nº 1 e durante o regime sofreu outras prisões, tendo passado pela Polícia do Exército na rua Barão de Mesquita, Rio de Janeiro, onde funcionava o DOI-CODI. Além de Lemme e Proença, estiveram presas nesses momentos iniciais figuras eminentes na política brasileira, como Miguel Arraes, transferido de Recife em 1965 e levado para o complexo militar em Niterói.

No período da ditadura militar, a fortificação foi o destino de diversos militares e políticos cassados. Dentre eles, o então capitão Ivan Cavalcanti Proença, que foi preso inicialmente na Fortaleza de São João, de onde foi levado à Niterói: Preso, conduziram-me, escoltado ao Forte São João (Urca), onde uma lancha já me aguardava. Início de noite. Fui levado, pela baía, chuva e mar revolto, à Fortaleza Santa Cruz; o colega major com metralhadora, mas não apontada para mim. A lancha encostou numa espécie de barranco e, por uma trilha, subimos as alamedas. Fui conduzido a um alojamento e, nova surpresa: já estavam ali, presos, alguns oficiais amigos e outros que conheci ao longo do processo e movimentos de apoio às Reformas, a Jango e a Brizola.1

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

Paulo: Oficina do Livro, 2004. 2 REDE BRASIL ATUAL. Ditadura: adolescente sofreu nove dias de tortura por ter pai 'comuna safado'. Disponível em http://www.redebrasilatual.com.br/ci-

1 PROENÇA, Ivan Cavalcanti. O golpe militar e civil de 64: 40 anos depois. São

dadania/2013/03/ditadura-adolescente-sofreu-nove-dias-de-tortura-por-ter-pai-comuna-safado.

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Após 1967, o local se institucionaliza como presídio do Exército, no qual há testemunhos da ocorrência de tortura. Em 1968, com a promulgação do Ato Institucional nº 5, o antropólogo Darcy Ribeiro foi levado para o presídio-fortaleza, onde ficou por volta de quatro meses, sendo então conduzido para o presídio da Ilha das Cobras, no qual completou nove meses de prisão. Entre 1969 e 1970, Umberto Trigueiros, ex-militante do grupo MR-8, também esteve na fortaleza:

Já na década de 1970, os militares realizaram uma espécie de ‘laboratório’ com os presos da fortaleza. Tratava-se de tentar o que se chamou de ‘recuperação’ dos encarcerados, uma série de técnicas (por exemplo, a distribuição desigual de punições) para quebrar a coesão que formavam entre si, procurando diminuir ao máximo sua resistência física e psicológica4. Nesse sentido, em 1974, para isso foram transferidos do presídio da Ilha Grande, para a fortaleza, os presos políticos Jarbas Marques, Rômulo Albuquerque, Otoni Fernandes, Paulo Henrique Oliveira da Rocha Lins, André Borges e Alípio de Freitas. Posteriormente, os presos políticos que se encontravam nos quartéis também sofreram transferência para as celas da fortificação. Alípio de Freitas relatou:

Houve uma época que me levaram para a Ilha das Flores, onde funcionava o Cenimar (Centro de Informações da Marinha). Lá, era tortura mesmo. E o sujeito ainda tinha que assistir à tortura dos outros. Aqui levei muita porrada, mas não foi como no Cenimar.3

Fomos recebidos na Fortaleza, já encapuzados, pelo Tenente Q.O.A., Ivo e pelo Sargento Barbosa, obrigados a ficar nus. (...) Depois da revista, ainda encapuzados e sob ameaças absolutamente idiotas para quem já passara pelo DOI-CODI, fomos conduzidos à Cela B, que, entre outras coisas, já tinha sido um depósito de escravos. A Cela B, bem como a Cela A, que fica ao lado, é uma imensa caverna cavada em parte na rocha pura, com água escorrendo pelas paredes cheias de fungos e musgos, sem mais ventilação do que a que pode entrar pelo seu único portão, construído de grossas barras de ferro. Esse seria o lugar onde a 5ª Seção do I Exército tentaria a operação de recuperação.5

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

4 FARIA, Cátia. Revolucionários, bandidos e marginais: presos políticos e comuns sob a ditadura militar. Niterói: UFF, 2005. Dissertação de mestrado.

3 O GLOBO. Ex-preso político volta à Fortaleza de Santa Cruz 45 anos depois. Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/bairros/ex-preso-politico-volta-fortale-

5 DE FREITAS, Alípio. Resistir é preciso: memória do tempo da morte civil do

za-de-santa-cruz-45-anos-depois-12023452#ixzz3WoYgW6e2

Brasil. Rio de Janeiro: Editora Record, 1981.

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Preso no mesmo período que Alípio, Rômulo Albuquerque destacou o histórico do local, relembrando a tortura sofrida pelos presos e a greve de fome que ele e seus companheiros fizeram como forma de protesto: Saímos da mão da PM e ficamos nove meses sob a custódia do Exército brasileiro (...) Ali foi o lugar onde estiveram presos escravos, onde esteve Andresito Artigas, um herói do Paraguai, Giuseppe Garibaldi etc. Um lugar que foi usado no período colonial como masmorra, como centro de tortura. Tanto que na Fortaleza de Santa Cruz tinha um lugar que chamavam de ‘cova da onça’, por causa dos gritos dos torturados que pareciam com o urro de uma onça, onde eles faziam o serviço completo. (...) Foi nesta prisão histórica, (...) que nós fizemos uma greve de fome6.

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

Com a distensão do regime, desativou-se o presídio político. No período de 1983 a 1987, a fortaleza sediou o 8º Grupo de Artilharia de Costa Motorizado (8º GACosM), comandado pelo ex-presidente Ernesto Geisel. Este último foi homenageado em 1999 pela instalação, na unidade, do “Grupo Ernesto Geisel”. Com a construção de uma malha viária que facilitou o acesso à fortificação, a fortaleza de Santa Cruz se tornou um dos principais pontos turísticos da cidade de Niterói.

6 TELES, Janaína de Almeida. As denúncias de torturas e torturadores a partir dos cárceres políticos brasileiros. In: Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, v. 16, n. 1, 2014.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGENCIA BRASIL. Empresa Brasil de Comunicação. Filha de Ernesto Geisel doa acervo militar do pai ao Museu do Exército. Disponível em: http://memoria.ebc. com.br/agenciabrasil/node/595478 . TELES, Janaína de Almeida. As denúncias de torturas e torturadores a partir dos cárceres políticos brasileiros. In: Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, v. 16, n. 1, 2014. FREITAS, Alípio de. Resistir é preciso: memória do tempo da morte civil do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Record, 1981. FARIA, Cátia. Revolucionários, bandidos e marginais: presos políticos e comuns sob a ditadura militar. Niterói: UFF, 2005. Dissertação de mestrado. Disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2005_MACHADO_Catia_ Conceicao_Faria-S.pdf . GRUPO VOZES. Verbete Darcy Ribeiro. Disponível em: http://grupovozes.com. br/novo/professores/lucia/capitulosLivros/DARCY%20verbete.pdf INSTITUTO MIGUEL ARRAES. Exílio. Disponível em: http://institutomiguelarraes.com.br/home/?page_id=71 . O GLOBO. Ex-preso político volta à Fortaleza de Santa Cruz 45 anos depois. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/ex-preso-politico-volta-fortaleza-de-santa-cruz-45-anos-depois-12023452#ixzz3WoYgW6e2 PROENÇA, Ivan Cavalcanti. O golpe militar e civil de 64: 40 anos depois. São Paulo: Oficina do Livro, 2004. REDE BRASIL ATUAL. Ditadura: adolescente sofreu nove dias de tortura por ter pai 'comuna safado'. Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/03/ditadura-adolescente-sofreu-nove-dias-de-tortura-por-ter-pai-comuna-safado RIBEIRO, Miguel Ângelo. Categorias analíticas do espaço e turismo: o exemplo da Fortaleza de Santa Cruz, Niterói/RJ. In: GEOgraphia, v. 8, n. 16, 2010. _____. Geografia e Turismo. O Exemplo da Fortaleza de Santa Cruz, Niterói/RJ. Disponível em: http://www.simonsen.br/rds/geo/artigo1.php .

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CENTRO DE ARMAMENTO DA MARINHA

dio foi comprovada, pelo menos 89 também estiveram encarcerados no CAM.

(Localização: Ponta d’Areia, Niterói)

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

Construído entre os anos de 1644 e 1666, na localidade conhecida como Ponta da Armação, o complexo militar voltado para a barra da Baía de Guanabara tem sua origem relacionada à pesca baleeira durante o século XVII. O conjunto de edifícios que abrigou o Centro de Armamento da Marinha desenvolveu ainda atividades relacionadas ao “aprimoramento tecnológico” e à “defesa do país”1. No período da ditadura militar, serviu como lugar de prática de graves violações aos direitos humanos.

O Centro de Armamento da Marinha (CAM) foi um dos locais usados pelo governo militar, logo após o golpe de 1964, para prender e torturar opositores ao regime, sobretudo operários navais de Niterói ligados ao sindicato da categoria. A utilização desse centro pela repressão esteve diretamente relacionada ao funcionamento do primeiro estádio-prisão da América Latina, Caio Martins, também localizado na cidade de Niterói. Dos 399 presos políticos cuja passagem pelo está-

1 Informação retirada do site oficial da Marinha, disponível em: <https://www1. mar.mil.br/dhn/?q=node/97>

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Os agentes de segurança que atuavam no centro submetiam os presos políticos a torturas físicas e psicológicas, dentre as quais se encontram situações de simulação de fuzilamento2. Segundo o testemunho à Comissão Municipal da Verdade em Niterói (CMV-Niterói) feito por Benedito Joaquim Barbosa (que esteve preso no Centro de Armamento da Marinha após passar pelo DOPS/RJ e antes de ser levado para o presídio da Frei Caneca), no CAM ele e seus companheiros passaram por diversas sevícias:

boletins expedidos pelo DOPS, o Centro de Armamento da Marinha recebeu pessoas consideradas como as mais perigosas para a nova ordem que se instaurava3. O local foi ainda o destino de mais de 100 pessoas ligadas, principalmente , ao Sindicato dos Operários Navais, segundo noticiado pelo mesmo jornal no dia 25 de maio de 19644. Dentre os militares presos por ordem do regime golpista, encontravam-se os almirantes Candido de Aragão e Washington Frazão Braga, respectivamente ex-comandante e ex-subcomandante do corpo de fuzileiros navais, além dos capitães de Mar e Fragata Paulo da Silveira Werneck e René Mangarinos Torres e dos tenentes José Atinos e Glauco Prado Lima5.

tivemos a cabeça afogada num tanque de lavar roupa cheio d’água e o pau comeu, né... Colocaram várias vezes cigarro aceso nas nádegas para que nós disséssemos onde se encontravam as armas do sindicato... Fomos espancados a ponto que quebraram meu queixo e minha camisa ficou totalmente molhada de sangue, né... (Testemunho de Joaquim Barbosa dos Santos à CMV-Niterói)

O CAM recebeu ainda o ex-governador do estado do Rio de Janeiro, Badger da Silveira, preso por fuzileiros navais e posteriormente transferido para a Escola Naval por interferência do secretário Heleno Nunes, além de diversos cidadãos acusados de participação nos “Grupos de Onze”6. Em 06 de agosto de 1964, o jornal Última Hora denunciava as condições em que os presos instalados no CAM se encontravam:

Corroborando as acusações de maus-tratos, José Gonçalves contou também à CMV-Niterói as dificuldades enfrentadas por ele e por seus companheiros que se encontravam detidos no CAM:

O Sr Dilson Aragão declarou a UH que o tratamento dispensado pelas autoridades navais a seu pai, durante os 124 dias de prisão, foi péssimo. A cela em que está recolhido, no Centro de Armamento da Marinha (...) é de uma umidade doentia, ainda mais para um homem com mais de 50 anos, como o Almirante Aragão. A comida também é da pior qualidade, ‘simplesmente intragável’, como classificou Dilson. O Almirante

Comida... Quando chegavam dois soldados na porta do salão, metiam o pé naquele panelão e a comida se espalhava pelo chão. Só cabeça de peixe... Era salve-se quem puder. Os companheiros, por solidariedade, davam um pedacinho pra um, um pedacinho pra outro (...). Pra fazer as necessidades fisiológicas era um buraco no chão, com uma metralhadora na frente e outra nas costas. Passamos humilhação e dificuldade. (Testemunho de José Gonçalves à CMV-Niterói)

3 Jornal Última Hora – 07/04/1964 – página 06. 4 Jornal do Brasil – 25/05/1964 – página 05.

Em 07 de abril de 1964, o Jornal do Brasil noticiou que, de acordo com

5 Jornal do Brasil – 30/05/1964 – página 05. 6 Jornal Ultima Hora – 18/07/64 – página 03. 2 Relatório Parcial da Comissão Municipal da Verdade de Niterói, página 42.

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e à Comissão Municipal da Verdade em Niterói, o sindicalista Jayme Navas corroborou as denúncias de maus tratos feitas pelo jornal ainda em 1964. Lembrando-se de sua prisão realizada em junho daquele ano, afirmou:

Candido Aragão foi preso no dia 4 de abril ficando detido inicialmente na Fortaleza de Lajes, onde permaneceu cerca de dois meses, impedido de receber qualquer visita de seus familiares. Depois, passou três dias no navio Princesa Leopoldina, período em que foi submetido a seguidos interrogatórios. Finalmente, foi transferido para o Cento de Armamento da Marinha, onde aguarda o momento de sua libertação7.

Os militares invadiram a minha casa e, como não me encontraram, levaram o meu irmão e meu pai como reféns. Eles só seriam soltos se eu me apresentasse no Centro de Armamento da Marinha. Foi o eu que fiz. Passei 68 dias naquele local sem direito a tomar banho e pegar sol (Testemunho de Jayme Navas concedido em evento realizado pela CEV-Rio, pela CMV-Niterói e pela CNV)

Em decorrência das péssimas condições em que se encontrava, que o impediam de ter acesso a tratamento médico digno, o almirante Candido Aragão teve que passar por uma cirurgia para tentar recuperar a visão um ano após a sua detenção ilegal na Fortaleza das Lajes e no Centro de Armamento da Marinha8. O jornal Última Hora realizou nova denúncia em 14 de outubro de 1964 acerca das condições a que suboficiais e sargentos da Armada eram submetidos no CAM e no presídio de Ilha das Cobras. No CAM, segundo consta em nota publicada, havia 50 militares reclusos que se encontravam:

À época dos fatos, o jornal Correio da Manhã também deu voz às denúncias, publicando em 21 de junho do mesmo ano o apelo das esposas de funcionários do Lóide Brasileiro que se encontravam detidos no presídio de Neves e no CAM, uma vez que estes últimos permaneciam incomunicáveis10.

impedidos de ter acesso ao pátio e tem permissão para banhos de sol apenas uma vez por mês. A permissão para visitas de parentes é dada segundo o arbítrio do diretor (...). Entre os prisioneiros, encontram-se o suboficial Sebastião Lopes de Almeida, o primeiro-sargento João Ibsen Vieira Alves, o segundo-sargento Aristóbulo Oliva Boaventura da Silva e o terceiro-sargento Otávio Batista de Medeiros, qualificados no último dia 5 na 1ª Auditoria, sob a acusação de fazerem parte da Associação de Suboficiais e Sargentos da Marinha, entidade com existência legal.9 Em depoimento prestado em 2013 à Comissão Estadual da Verdade

7 Jornal Última Hora – 06/08/1964 – página02. 8 Correio da Manhã – 10/06/1965 – página 05. 10 Jornal Correio da Manhã – 21/06/1965.

9 Jornal Última Hora – 14/10/1964 – página 03.

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Fonte: Acervo de Diretoria de Hidrografia e Navegação

Fonte: Jornal Última Hora, de 24/04/64

Já desativado como centro de prisão e tortura, o CAM foi extinto em 1978 pelo decreto 82.615. Em substituição, suas funções foram absorvidas pelo Centro de Mísseis e Armas Submarinas da Marinha (CMASM), localizado na Ilha do Engenho, no Rio de Janeiro. O prédio que abrigou o CAM, em Ponta d’Areia, é considerado patrimônio histórico-naval brasileiro. Nele funciona, atualmente, o Espaço da Memória Histórica da Diretoria de Hidrografia e Navegação, sem que o período de violações de direitos humanos cometidas naquele espaço seja contado como parte de sua história.

O CAM foi utilizado nos primeiros dias após o golpe, seguindo a mesma lógica que o estádio Caio Martins, em decorrência da superlotação das instalações da Secretaria de Segurança, num momento em que ocorreram sucessivas prisões ilegais que visaram à neutralização de quaisquer resistências ao golpe de 1964, e que geraram a necessidade de se utilizar outros locais como centros de detenção. Durante o regime, ele continuou a ser o destino de opositores, dentre eles, o político Vladimir Palmeira, preso em 13 de dezembro de 196811, após a decretação do Ato Institucional nº 05 pelo então presidente Costa e Silva.

11 Informação retirada de: http://www.vladimirpalmeira.com.br/ano1968_7. html.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Marinha do Brasil: Diretoria de Hidrografia e Navegação. Disponível em: https://www1.mar.mil.br/dhn JORNAL O GLOBO. Rio de Janeiro, 30/03/2014, Caio Martins serviu como xadrez para 1800 pessoas. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/caio-martins-serviu-como-xadrez-para-1800-pessoas-12023868#ixzz3O9dT8VkZ JORNAL ÚLTIMA HORA. Rio de Janeiro, 07/04/1964, 24/04/1964, 18/07/1964, 06/08/1964, 14/10/1964. Disponível em: http://www.arquivoestado.sp.gov.br JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, 25/05/1964, 30/05/1964. Disponível em: http:// www.jb.com.br/paginas/news-archive JORNAL CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro, 10/06/1965, 21/06/1965. Disponível em: http://bndigital.bn.br/artigos/correio-da-manha/ NITERÓI. Comissão Municipal da Verdade. Relatório Parcial: junho de 2014. Niterói: CMV-Niterói, 2014. PALMEIRA, Vladimir. O ato cinco. Disponível em: http://www.vladimirpalmeira.com.br/ano1968_7.html SEQUEIRA, Renata. Testemunhos no RJ contam história da repressão ao Sindicato dos Operários Navais. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/346-testemunhos-contam-historia-da-repressao-ao-sindicato-dos-operarios-navais-de-niteroi-e-sao-goncalo

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ESTÁDIO CAIO MARTINS

bém ligado ao DOPS/RJ e à Polícia Militar1.

(Localização: Rua Presidente Backer, s/n, Santa Rosa, Niterói, RJ)

Foto: Acervo NDH PUC-rio

Localizado numa região de fácil acesso e próximo ao centro da cidade de Niterói, o complexo Caio Martins, nomeado em homenagem a um jovem escoteiro, serviu como um dos mais relevantes centros de iniciação desportiva para as crianças e adolescentes desde a sua construção nos anos 40. O conjunto, que ocupa uma área de aproximadamente 50.000 metros quadrados e abriga o estádio conhecido pelo mesmo nome, foi construído durante a ditadura de Getúlio Vargas. Inaugurado em 20 de julho de 1941, por desejo do então governador do estado Ernani do Amaral Peixoto, que objetivava realizar em Niterói os jogos do Campeonato Carioca, o estádio foi uma das subsedes da Copa do Mundo de Futebol de 1950 e o palco de importantes

O complexo esportivo Caio Martins foi o local onde funcionou o primeiro estádio destinado à prisão em massa na América Latina. Logo nos primeiros dias após o golpe militar, pessoas acusadas de oposição ao regime foram presas nesse estádio de forma ilegal e arbitrária. Embora coordenado pelas Forças Armadas, o estádio-presídio era tam-

1 COELHO, Maria José H.; ROTTA, Vera (org.). Caravanas da anistia: o Brasil pede perdão. Brasília: Ministério da Justiça, 2012, p. 258.

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partidas de futebol enquanto concessão do clube Botafogo Futebol e Regatas.

de detenção, foram mantidos no estádio-prisão enquanto os agentes de segurança deliberavam sobre seu destino e davam andamento a seus inquéritos policiais. Foram ilegalmente detidos operários navais, metalúrgicos, advogados, médicos e camponeses de diversos municípios do estado do Rio de Janeiro e que, em muitos casos, continuaram tendo sua vida marcada pela perseguição política ao longo da ditadura. Em investigações realizadas pela Comissão Municipal da Verdade em Niterói (CMV-Niterói) no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), foi localizada documentação produzida à época da ditadura pelos órgãos da repressão que pode comprovar a passagem de, pelo menos, 339 presos pelo Caio Martins. Não obstante, os testemunhos prestados à CMV-Niterói por ex-presos políticos apontam um número superior a mil. Segundo os dados levantados, os presos foram alojados nas arquibancadas de concreto. Havia uma distinção de acordo com o nível de escolaridade e aqueles que possuíam ensino superior podiam ficar no espaço originalmente destinado ao vestiário dos atletas. Os depoimentos prestados à CMV-Niterói demonstram que os presos que por ali passaram sofreram torturas psicológicas e tratamento degradante. Nas palavras de Benedito Joaquim dos Santos, presidente do Sindicato dos operários navais de Niterói, em abril de 1964:

Fonte: Jornal O Fluminense, de 23 de abril de 1964. Publicado no Relatório Parcial de pesquisa e atividades da Comissão da Verdade de Niterói

O exército coloca para nós, para cada preso, um soldado com fuzil e baioneta… nós não podíamos fechar o banheiro, nós tínhamos que ocupar o vaso sanitário de porta aberta, com o soldado com fuzil apontado para a nossa cabeça (Testemunho à CMV-Niterói de Benedito Joaquim dos Santos, ex-presidente do Sindicato dos operários navais de Niterói)

Em abril de 1964, como resultado das primeiras decisões do regime golpista, o estádio Caio Martins recebeu presos realocados de outros centros de detenção, tendo em vista a lotação que as dependências do Exército e da Polícia experimentavam naquele momento. As prisões eram realizadas com o objetivo de neutralizar as possíveis resistências ao novo governo. O local abrigou presos políticos que ali ficaram sem qualquer garantia judicial ou explicação oficial acerca do motivo de seu encarceramento. Muitos, que já haviam passado por outros locais

José Soares Gonçalves, que foi levado do Centro de Armamento da Marinha (CAM) para o estádio-presídio no mesmo período afirmou sobre as condições em que se encontravam os presos no local:

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Era uma peneira, época de chuva não tinha um canto que não chovesse… a gente ficava ali… a comida vinha da polícia militar. Quando chegava aqueles panelão [sic] de carne seca ou bucho, já tava tudo qualhado de banha em cima. Era aquilo que a gente comia. (Testemunho à CMV-Niterói de Benedito Joaquim dos Santos, ex-presidente do Sindicato dos operários navais de Niterói)

Segurança, Major Paulo Biar, ordenasse a soltura daqueles que não possuíam nota de culpa formada4. Apesar dessa ordem, muitos continuaram detidos de maneira ilegal e sem garantias. Foi o caso de Geraldo Alcino de Moura, um operário cuja família passou necessidades financeiras por conta de sua detenção, chegando a solicitar doações através do jornal para que pudesse se alimentar5. Somente em 10 de junho de 1964 foi anunciada a desativação do presídio6, e já no dia 20 desse mesmo mês7 o estádio abrigou um concurso de Miss Estado do Rio de Janeiro8.

O jornal Última Hora, denunciando a sucessão de detenções ilegais e arbitrárias, destacou que entre os presos estavam o deputado Francisco Alves, o ex-diretor do Plano Agrário Irênio Matos Pereira, o ex-advogado da SUPRA, Roberto Paiva Muniz, o médico Luiz Tubenchelack, do diretório do PSB, o marítimo Emilio Bonfante Demaria além do jornalista Ezíquio Araújo. O jornal também divulgou o caso de Jairo Mendes, presidente do sindicato dos jornalistas do estado do Rio, que, apesar de seu estado de saúde frágil, encontrava-se detido ilegalmente no ginásio2. O jornal denunciou ainda a prática de tortura no estádio-presídio. Os detentos Pedro Mayrink, ex-presidente do Sindicato dos Rodoviários de Niterói e São Gonçalo, e o ex-deputado Afonso Celso Monteiro relataram terem sofrido diversas sevícias enquanto estiveram no estádio-presídio e revelaram ‘‘que além de encarcerados em solitárias, ambos são despertados alta madrugada com banhos de água gelada para serem interrogados. Depois do massacre dos estudantes da Universidade Rural, do modo mais hediondo possível, como duvidar de novas selvagerias policiais?’’ 3.

Mesmo diante da existência de diversos testemunhos de ex-presos políticos, as Forças Armadas não reconheceram a utilização do estádio como centro de prisão em massa no período da ditadura. Contrariamente, restou comprovado tanto pela CMV-Niterói quanto pela Comissão Nacional da Verdade (CNV)9 que se tratou de uma instituição inserida na ordem regular do Estado10. São atualmente públicos documentos assinados pelo denominado Diretor do Presídio Caio Martins aos agentes do DOPS, encaminhando a este centro alguns dos presos do estádio.

4 Jornal Última Hora - 19/05/1964, página 09. 5 Jornal Última Hora - 04/06/1964. 6 Diário Carioca - 10/06/1964, página 04.

Em 19 de maio de 1964, o jornal ainda publicou matéria divulgando a tomada de depoimentos que se sucedia no Caio Martins com a presença de 10 comissários e escrivães. Pressões da população, que condenava a atitude do governo, fizeram com que o Secretário de

7 Diário Carioca - 12/06/1964, página 06. 8 Jornal Última Hora - 12/06/1964.

NITERÓI. Relatório Parcial de Pesquisa e Atividades da Comissão Municipal da Verdade de Niterói. Niterói: CMV-Niterói, 2014; BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014, volume I, tomo I. 9

10 KNAUSS, Paulo; MAIA, Eric. Niterói, 1964 – Memórias da Prisão Esquecida.

2 Jornal Última Hora - 23/05/1964.

A Operação Limpeza e o cárcere político do Caio Martins. Revista Acervo, Rio de

3 Jornal Última Hora - 06/06/1964, página 03.

Janeiro, v. 27 , n º 1, p. 99-120, jan./jun. 2014, p. 16.

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de utilização de estádios de futebol como presídio ainda seria repetida em 1973, no Estádio Nacional, Chile, onde foram concentrados presos políticos que se opunham ao golpe militar. Recentemente, organizações da sociedade civil têm reivindicado que o Caio Martins seja transformado em centro de memória referente às violações ocorridas durante a ditadura militar. A mesma demanda já havia sido proposta por integrantes do Fórum dos Operários Navais, em outubro de 2010, durante a realização da 45a Caravana da Anistia pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). O pedido foi corroborado em maio de 2012, no lançamento da Comissão Municipal da Verdade de Niterói, pelo ex-presidente do Sindicato dos Operários Navais Benedito Joaquim dos Santos, preso em 1964 no estádio Caio Martins. No mesmo ano, a Comissão Estadual de Reparação do Estado do Rio de Janeiro também realizou no estádio uma cerimônia de reparação, reunindo mais de 120 pessoas para homenagear alguns perseguidos políticos.

Fonte: Relatório da Comissão Municipal de Niterói

O Caio Martins, após ter seu uso subvertido pelo aparato repressor em 1964, voltou a sediar eventos e campeonatos esportivos. A experiência

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Referências bibliográficas

AGÊNCIA BRASIL. Governo do Rio faz ato de reparação a presos vítimas da ditadura militar. Agência Brasil website, s.d. Disponível em: <http://agencia-brasil. jusbrasil.com.br/noticias/3141551/governo-do-rio-faz-ato-de-reparacao-a-presos-vitimas-da-ditadura-militar> BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. COELHO, Maria José H.; ROTTA, Vera (org.). Caravanas da anistia: o Brasil pede perdão. Brasília: Ministério da Justiça, 2012. DIÁRIO CARIOCA. Rio de Janeiro, 10/06/1964, 12/06/1964. Disponível em: <http:// bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/> JORNAL ÚLTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19/05/1964, 23/05/1964, 04/06/1964, 06/06/1964, 12/06/1964. Disponível em: <http://www.arquivoestado.sp.gov.br> KNAUSS, Paulo; MAIA, Eric. Niterói, 1964 – Memórias da Prisão Esquecida. A Operação Limpeza e o cárcere político do Caio Martins. Revista Acervo, Rio de Janeiro, v. 27 , n º 1, p. 99-120, jan./jun. 2014. NITERÓI. Relatório Parcial de Pesquisa e Atividades da Comissão Municipal da Verdade de Niterói. Niterói: CMV-Niterói, 2014.

Ato na entrada do Caio Martins, em maio de 2012. Fonte: Niterói pela Memória, Verdade e Justiça

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Na Praça da República, centro da cidade de Niterói, o Palácio da Polícia – sede regional da Polícia Civil – abrigou o Departamento Autônomo de Ordem Política e Social do Estado do Rio de Janeiro (DOPS/ RJ), órgão de polícia política criado através do Decreto n. 580, de 11 de outubro de 1938, com o objetivo de controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao governo instituído. A atuação do Departamento se intensificou durante a ditadura do Estado Novo (19371945) e a ditadura militar instalada a partir do golpe de abril de 1964.

DEPARTAMENTO AUTÔNOMO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - DOPS/RJ

Construído no início do século XX, o prédio em estilo eclético faz parte de um conjunto urbanístico em torno da praça ajardinada que reúne órgãos públicos do poder político, da educação, da cultura e da repressão. O projeto, idealizado em 1913, tinha por objetivo fazer da Praça da República um grande centro cívico em Niterói. No centro da praça se ergueu o Monumento à República, sendo ela circundada pela Biblioteca Pública Estadual, pela Câmara Municipal de Niterói (antiga Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), pelo Liceu Nilo Peçanha (antiga Escola Central) e pelos antigos Palácio de Justiça e Palácio da Polícia.

(Localização: Avenida Ernani do Amaral Peixoto, 577, Centro, Niterói, RJ)

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

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Nos primeiros dias após o golpe de 1964, centenas de pessoas foram presas no estado do Rio de Janeiro e levadas para a capital, Niterói, sendo distribuídas entre o DOPS/RJ, os batalhões da Polícia Militar, o Centro de Armamento da Marinha (CAM) e o ginásio Caio Martins. De acordo com o Relatório Parcial de pesquisas empreendidas pela Comissão Municipal da Verdade em Niterói, a cidade também foi o cenário de ações repressivas nos primeiros momentos da ditadura: o Sindicato dos Operários Navais, um dos principais focos de articulação e luta política durante as décadas de 1950 e 1960, teve sua sede invadida e destruída no dia seguinte ao golpe. Em consequência da superlotação das dependências policiais da cidade, por causa do grande número de prisões efetuadas em um curto período, o ginásio Caio Martins foi ocupado por presos políticos, tornando-se o primeiro estádio prisão da América Latina. De acordo com as pesquisas da Comissão da Verdade de Niterói, as instalações do ginásio foram usadas como presídio até meados de julho de 1964. As pessoas permaneciam detidas aguardando o momento de ser levadas para prestar depoimento em outras unidades prisionais, como o DOPS/RJ, o DOPS/GB ou o CAM.

06/04/2008) O depoimento de Emilio Bonfante Demaria corrobora as denúncias ao lembrar as circunstâncias de sua detenção nos primeiros dias de abril de 1964: Transportados para o DOPS de Niterói, somente aí fomos reconhecidos como líderes sindicais; Emílio Bonfante Demaria, capitão de longo curso; Nelson Pereira Mendonça, 1° comissário; Benedito Joaquim dos Santos e Álvaro Ventura da Costa Filho, operários navais, todos, porém, Conselheiros da Federação Nacional dos Marítimos, os dois últimos, além disso, respectivamente, Presidente do Sindicato dos Operários Navais do Rio de Janeiro e Delegado do IAPM, naquele Estado. (...) Presenciando a chegada de mais presos conduzidos sob espancamentos (...); nesse ambiente de terror, éramos qualificados, sendo aberta a janela da sala daquele sobrado e sugerido-nos verbal e frequentemente, que nos suicidássemos, atirando-nos por ela a exemplo de outros presos, para minorar os nossos sofrimentos e poupar-lhes o trabalho de fuzilamento. (Depoimento presente no livro ``Torturas e torturados``, de Marcio Moreira Alves)

O ex-presidente do Sindicato dos Bancários em Niterói, Firmino Silveira Moura, preso no DOPS/RJ nas primeiras semanas após o golpe, afirmou:

Ele rememorou ainda os seguintes fatos transcorridos no DOPS/RJ: Ao transitarmos pelo corredor, a caminho do xadrez, Nelson foi espancado a cassetete. Aí existiam, já, quase cem presos num local exíguo. Não havia onde dormir. Os degraus de uma escada de acesso ao sótão eram cedidos pelos demais aos companheiros mais idosos e cansados, para repousarem sentados. Dois desses companheiros, desesperados, atiraram-se dessa escada, tentando o suicídio. (...) À vista dos demais presos fomos espancados, exceto Nelson, a esta altura reconhecido irmão-maçom do dito sargento. Depois fomos recolhidos à cela nº 7, de onde eu fui retirado logo a seguir, para ser mais espancado, como de fato

Uma situação horrível, preso dormindo em cima de folha de jornal porque não tínhamos nada, e era um xadrez que comportava no máximo umas dez pessoas, mas tinha trinta, quarenta... Então, houve momentos em que uns dormiam e outros ficavam em pé, porque não dava pra todo mundo dormir, e aquelas privadas cavadas no chão, acocorado. E começou a chegar um pessoal do interior, desses rurais, desses camponeses, chegaram com diarreia. Então, foi uma coisa horrorosa. (Entrevista concedida ao Laboratório de História Oral e Imagem do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, realizada em

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o fui, sob a alegação de que diante das minhas responsabilidades, merecia ser mais castigado corporalmente. (Depoimento presente no livro ``Torturas e torturados``, de Marcio Moreira Alves) Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

A atuação do DOPS/RJ, contudo, não se restringiu aos primeiros momentos após a instauração da ditadura militar. O Departamento funcionou ativamente na repressão organizada pelo regime ao realizar buscas, apreensões e prisões no estado do Rio de Janeiro. No seu prédio, além das condições insalubres, os presos foram submetidos a torturas psicológicas e a sucessivos interrogatórios que envolviam violência física. E à medida que o regime avançava, o órgão continuou cooperando com outras esferas da repressão. Em depoimento prestado à Comissão Municipal da Verdade em Niterói, Rosalina Santa Cruz, detida em 1971, fez as seguintes afirmações sobre o tempo em que esteve presa no DOPS em Niterói:

O DOPS/RJ foi extinto em 1975, em meio ao processo de abertura política conduzido pelo então presidente general Ernesto Geisel. Em 26 de janeiro 1983, o Instituto Estadual de Patrimônio Cultural (INEPAC) tombou o prédio e todo o conjunto da Praça da República. Atualmente, o imóvel abriga a 76ª Delegacia de Polícia, a Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) e a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Os tempos de prisão e tortura ocorridos no DOPS-RJ, no Estádio Caio Martins e no Centro de Armamento da Marinha durante a ditadura militar foram objeto da exposição “Ditadura em Niterói”, que aconteceu entre março e junho de 2015, no Solar do Jambeiro, em Niterói. A mostra reuniu documentos e depoimentos disponibilizados pela Comissão da Verdade da cidade.

Foi nesse DOPS, aqui nessa cidade. Eu fui presa no Rio de Janeiro, do DOI-CODI do Rio eu fui trazida para aqui. Minha mãe não sabia, ninguém sabia onde eu estava sequestrada (...) atravessei a barca e desci aqui nessa cidade de Niterói (...) posso lhe contar que aqui nesse DOPS passei por coisas também muito sérias. Fui presa eu, o padre que aqui foi trazido, padre Jefferson da Conceição (...) começaram a nos bater aqui nesse DOPS de Niterói quando veio os militares do DOI-CODI porque tinham descoberto em nossa casa material que nos incriminava. Eles vieram aqui nesse DOPS e começaram a nos bater de forma absurda. (...) Foi nesse DOPS que aconteceu isso, o Sr. Delegado me chamou e me perguntou se eu estava grávida, (...) eu já tinha mais de 20 dias em tortura (...) neste dia, a equipe do DOI-CODI chegou aqui, no DOPS e me pendurou numa parede, algemou meu companheiro no mesmo quarto e me deram joelhadas na barriga até sangrar. (Testemunho de Rosalina Santa Cruz prestado à Comissão da Verdade de Niterói em 26/03/2014)

Referência bibliográficas ALVES, Marcio Moreira. Torturas e torturados. Rio de Janeiro: Empresa Jornalística, 1967. AMARAL, Luciana Pucu Wollmann do. Barreto,“bairro operário”: trabalhadores, política e associativismo em uma comunidade operária fluminense nos anos 1940 e

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1950. Mundos do Trabalho, v. 3, n. 5, p. 114-135, 2011. ARQUIVO NACIONAL. História Administrativa Departamento Autônomo de Ordem Política e Social. Disponível em http://www.an.gov.br/mr/Multinivel/ Exibe_Pesquisa_Reduzida.asp?v_CodReferencia_ID=14 .Acesso em: 17/05/2015 CÂMARA DE NITERÓI. Câmara em Revista. Disponível em: http://camaraniteroi. rj.gov.br/wp-content/uploads/2014/07/72b33b33a53025e1de4f42e8134b3afa9280b1c9.pdf . Acesso em: 17/05/2015. COMISSÃO DA VERDADE DE NITEROI. Relatório Parcial de Pesquisa e Atividades. Niterói, 2014. Disponível em: http://media.wix.com/ugd/c7392d_e1ac16a6136a46ca88ed41d870d812fa.pdf . Acesso em: 17/05/2015 GUÍA DE ARCHIVOS Y FONDOS DOCUMENTALES. Departamento Autônomo de Ordem Política e Social. Disponível em: http://atom.ippdh.mercosur.int/index. php/departamento-autonomo-de-ordem-politica-e-social-do-estado-do-rio-de-janeiro-dops . Acesso em: 17/05/2015 INEPAC. Bens Tombados. Bens que integram a Praça da República. Disponível em: http://www.inepac.rj.gov.br/index.php/bens_tombados/detalhar/130 . Acesso em: 17/05/2015 KNAUSS, Paulo; MAIA, Eric. Niterói, 1964 – Memórias da prisão esquecida: a Operação Limpeza e o cárcere político do Caio Martins. Revista Acervo, v. 27, n. 1, p. 99-120, 2014. MAZZACARO, Natasha. O Globo.“Caio Martins Serviu de Prisão para 1800 pessoas.”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/caio-martins-serviu-como-xadrez-para-1800-pessoas-12023868 . Acesso em: 17/05/2015. NITERÓI PELA VERDADE, MEMÓRIA E JUSTIÇA. Disponível em: https://niteroipelaverdade.wordpress.com/ . Acesso em: 17/05/2015. PORTAL AQUI TEM NITERÓI! . Palácio da Polícia. Disponível em: http://www. aquitemniteroi.com.br/products/palacio-da-policia/ . Acesso em: 17/05/2015

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ILHA DAS FLORES

legalização da sua situação. No início do século XX, por volta de 1917, a ilha passou a Ministério da Marinha por conta da primeira guerra mundial. Em 1919, retornou ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Antes mesmo de 1964, a hospedaria já possuía parte de seu espaço adaptado como presídio, tendo sido utilizado pela Marinha em diversos momentos históricos.

(Localização: Avenida Paiva, s/n, Neves, São Gonçalo)

Fonte: Acervo Hospedaria Ilha das Flores Antiga Hospedaria da Ilha das Flores

Localizada na baía de Guanabara, a Ilha das Flores foi um dos principais centros de tortura da ditadura militar (1964-1985) vinculados ao Centro de Informações da Marinha (Cenimar), no Rio de Janeiro, perdendo centralidade após a criação do DOI/CODI, no final dos anos 1960 e início dos 70.

Em 1966, encerraram-se as atividades da hospedaria (que tinha funcionários morando no local) e se instalou na ilha o Centro Nacional de Treinamento (CENATRE), uma escola de estratégias para oficiais militares administrada pela Marinha. Esta tomou posse da ilha em 1969, ano em que foi montado, sob o comando do capitão de mar e guerra Clemente Monteiro Filho, um centro de detenção

No último quarto do século XIX, a partir de 1877, a ilha foi utilizada como hospedaria para imigrantes que chegavam ao Rio de Janeiro. Eles permaneciam em quarentena, aguardando informações sobre a

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ilegal e de tortura, localizado na Ponta dos Oitis, ao norte do terreno. No local existiam pequenas casas usadas para realizar tortura e guardar os equipamentos utilizados nessas sessões, levadas a cabo por agentes cedidos pelo DOPS e pela Polícia Federal.

no local entre 1969 e 1971. O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) aponta os seguintes nomes de agentes vinculados à prática de tortura na ilha: Alfredo Magalhães (capitão de mar e guerra), Clemente José Monteiro Filho (capitão de mar e guerra), Júlio Saboya de Araújo Jorge (capitão de corveta) e José Lino Coutinho da França Netto (tenente-médico)1. O mesmo documento traz o relato de tortura da ex-presa política Tania Marins Roque, que igualmente testemunhou as sevícias sofridas por membros do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8):

Fui mandada para a Ilha das Flores, que na época [em 1969] era o maior centro de tortura, depois é que foi o DOI-CODI, né? Lá eu fiquei sozinha numa cela primeiro, muito doente porque fiquei com otite devido ao sopapo que levei, né? E depois eu fiquei, puseram junto comigo a Ziléia, que era do MR-8 na época, mas depois tiraram ela logo [...] o pessoal do MR-8 que tava preso junto comigo na Ilha das Flores, em outras celas, eles foram barbaramente torturados. Eu vi pessoas passando ensanguentadas (Testemunho de Tania Marins Roque à CNV)

Fonte: Acervo CEV-Rio

Durante os quatro anos de funcionamento do centro de detenção ilegal e de tortura na Ilha das Flores, este permaneceu clandestino. Dessa forma, os presos políticos lá chegavam incomunicáveis e sem ter suas prisões oficializadas. Diretamente vinculado ao funcionamento da ilha durante a ditadura, o Cenimar foi o responsável pelas inúmeras violações de direitos humanos realizadas naquelas dependências. Ele organizava a transferência de presos políticos de outros centros da repressão (cabe destacar aqueles localizados no Estado do Paraná, como informam os depoimentos de vários ex-presos de São Gonçalo) para o presídio da ilha. Consta que cerca de 200 pessoas foram presas

Como é descrito por ex-militantes, a Ponta do Oitis era o local onde ocorriam as torturas: (...) pegaram uma casinha que a gente chamava de Casa Vermelha, que era um centro de horrores. Todo o esquema de tortura lá, equipamentos... E era uma tortura... Vinha gente de tudo que era lugar torturar

1 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014, p. 876, 886, 907 e 909.

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a gente. (...) afastada do pavilhão e atrás da casa da burocracia, do comando da Ilha das Flores. Tem o pavilhão, tem umas casas brancas e era lá atrás, a Ponta dos Oitis. Tudo muito antigo. Está demolido esse negócio.2 Era um lugar lindo, bucólico, com umas árvores floridas, com o mar batendo e tinha uma casinha branca no canto. (...) Devo ter sido o quarto a ser levado. Cheguei lá e os caras me tiraram a roupa, me deram bofetão, porrada, o cacete, mas ainda era um troço muito leve. Mandaram-me segurar uns fios de magneto, ficaram dando choques e jogaram água salgada por cima. Uma sessão de duas horas, mas não foi uma porradaria.3

Fonte: Acervo CNV Casa na Ponta dos Oitis

Como o presídio da Ilha das Flores era um centro clandestino, não havia oficialização da prisão de muitos militantes, funcionando como um local de atordoante clausura. Somente depois que era permitida a comunicação com familiares a prisão era oficializada. Quando se passava para os comunicáveis, você sabia que a tua prisão já tinha sido oficializada. Antes disso, você era preso clandestino, até porque se eles quisessem matar você não tinha sido preso.4 Os presos chegavam na ilha incomunicáveis e só depois de semanas essa situação era alterada. As celas dos comunicáveis ficavam voltadas

2 Cf. SCELZA, Maria Fernanda Magalhães. Entre o controle e a resistência: o Presídio da Ilha das Flores como espaço de luta e afirmação de identidade de exprisioneiros políticos. Anais do XXIV Simpósio Nacional de História. Rio Grande do Sul: UNISINOS, 2007.

4 Idem.

3 Idem.

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para o Rio de Janeiro. O acesso era feito através de pequenas escadas e portões gradeados. Todas eram amplas, comportando uma média de três beliches. De acordo com a linha do comando da ilha (mais ou menos rígida), elas ficavam abertas ou não. Nos momentos em que era permitida a abertura das celas, os presos tinham a comunicação facilitada. Além de trocarem informações e debaterem política, realizavam diferentes tipos de cursos e atividades físicas coletivas5.

Humberto Trigueiros Lima que, em 1969, era estudante com 21 anos, afirma que: Antônio Rogério da Silveira afirmou ter sido torturado por meio de choques elétricos, pancadas, pau-de-arara, tanto na Polícia Federal do Paraná, como na Base Naval da Ilha das Flores, sendo que ai, por ordem do encarregado do Inquérito, Capitão de Mar e Guerra Clemente José Monteiro Filho; que pode ainda constatar que àquela época Antônio Rogério estava evacuando sangue, o que começou a acontecer depois de ter sido submetido a choques elétricos no ânus (...)7 O depoimento de Iná de Souza Medeiros que, em 1969, era estudante com 21 anos, declara que: (...) foi levada à presença do Clemente, encarregado do Inquérito, na Ilha das Flores, sob a alegação de que iria prestar esclarecimentos; que o Comandante indicou outro local para que o guarda a conduzisse; que assim foi levada para uma casa abandonada chamada Ponta dos Oitis; que lá três pessoas … que pertenciam ao CENIMAR … mandaram a declarante despir-se; … foi espancada com fio molhado; … como não encontrassem palmatória, começaram a espancá-la com a mão mesmo; … foi amarrada por fios e passaram a lhe aplicar choques elétricos; que neste estado permaneceu até à noite, quando foi conduzida para a cela; … vê como estão sendo torturadas as moças do outro Inquérito, chamado de Inquérito de Ação Popular, chefiado também pelo Comandante Clemente; que essas moças passaram … várias torturas ainda piores que as da declarante; … levaram ferro na unha, choque elétrico, afogamentos (...)8

Fonte: Acervo CEV-Rio Legenda: Edificação onde eram as celas que permaneciam os presos políticos

A ilha foi o principal centro de tortura antes do DOI-CODI/RJ6. Há diversos depoimentos das torturas sofridas no local. O depoimento de

5 SCELZA, Maria Fernanda Magalhães. Partido da Ilha das Flores: memória e identidade de ex-prisioneiros políticos. XII Encontro Regional de História, ANPUH-RJ, 2006.

7 Brasil Nunca Mais, pag. 190 à 192 do Volume II – “As Torturas”.

6 Idem.

8 Brasil Nunca Mais, pág. 208 à 210 do Volume II – “As Torturas”.

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A terceira denúncia, de Sebastião Medeiros Filho que, em 1969, tinha 23 anos, afirma que: (...) depois de ter sido torturado no Paraná, foi transferido para a Ilha das Flores onde foi colocado num banheiro sem cama, completamente despido durante treze dias, quando foi retirado para assinar o depoimento (…); que as verdadeiras declarações que fez em presença do Comandante Clemente não foram transcritas no seu depoimento9 As declarações de Luiz Carlos de Souza Santos sobre Tiago Andrade de Almeida, feitas em 1969, informam que: (...) em 28 de maio de 1969 foi colocado diante de Tiago Andrade de Almeida, completamente esquartejado, com inflamações no ouvido devido aos “telefones”, sendo segurado, pois não se agüentava em pé, pelos policiais vindos do Paraná, segundo lhe consta por ordem do Comandante Clemente.10

Fonte: Acervo CEV-Rio

A denúncia de Marta Mota Lima Alvarez que, em 1969, era estudante com 20 anos, relata que:

Durante a visita da CVN, ex-presos políticos na Ponta dos Oitis relatam sua passagem pelo espaço

(...) o seu depoimento era batido na casa do… Clemente, na Ilha das Flores, para onde era levada a depoente; que este depoimento era lido e interrompido várias vezes com ameaças de torturas e pancadas se a depoente não concordasse com o que havia sido feito no dito depoimento; … que na Ilha das Flores lhe tocavam a corneta no ouvido; que o Comandante Clemente entrou no recinto e lhe disse que não podia fazer nada.11

Após a criação do DOI/CODI, o centro de detenção ilegal e de tortura da Ilha das Flores foi extinto. Em uma visita ao local, realizada em 2014 por ex-presos políticos junto à CNV, relatou-se o uso das seguintes formas de tortura na ilha: pau-de-arara, choque, telefone, palmatória e, especificamente no caso das presas mulheres, o uso de toalhas molhadas e o abuso e ameaça sexuais. Nesta visita, os ex-presos reconheceram no atual comando da base o local onde era realizada a triagem, os interrogatórios e a tortura psicológica. Também foi reconhecida a atual sala de ginástica da base como o local em que os presos recebiam visitas aos finais de semana.

9 Brasil Nunca Mais, pags. 705-706 do Volume III – “As Torturas”. 10 Brasil Nunca Mais, pag. 788 do Volume III – “As Torturas’’.

Uma parceria da Marinha com a Universidade Estadual do Rio de

11 Brasil Nunca Mais, pag. 191 do Volume III – “As Torturas”.

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Referências bibliográficas

Janeiro criou, em 2012, o Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, que hoje abarca também um museu a céu aberto sobre os tempos da imigração. Neste museu, porém, não há referências às torturas ali praticadas pelo regime militar e sobre a prisão clandestina que ali se instalou. Apesar da recomendação, realizada pela Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), para a transformação da Ilha das Flores em um espaço de memória, o local continua funcionando como uma Base de Fuzileiros Navais e Tropa de Reforço.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. RIO DE JANEIRO. Comissão Estadual da Verdade. Relatório Parcial: Maio de 2013/ Junho de 2014. Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2015. SCELZA, Maria Fernanda Magalhães. Entre o controle e a resistência: o Presídio da Ilha das Flores como espaço de luta e afirmação de identidade de ex- prisioneiros políticos. Anais do XXIV Simpósio Nacional de História. Rio Grande do Sul: UNISINOS, 2007. _____. Partido da Ilha das Flores: memória e identidade de ex-prisioneiros políticos. XII Encontro Regional de História, ANPUH-RJ, 2006. RIDENTI, Marcelo. Que história é essa? In: Vários Autores. Versões e ficções: o seqüestro da história. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 1999.

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CASA DA MORTE DE PETRÓPOLIS

Casa, estima-se, com base nos relatórios preliminar e final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que aproximadamente vinte militantes passaram pela residência, dos quais seis foram comprovadamente torturados e mortos. De todos os presos políticos que para lá foram levados restou viva apenas uma testemunha, Inês Etienne Romeu.

(Localização: Rua Arthur Barbosa, n. 50 [antigo 668], Caxambú, Petrópolis, RJ)

Legenda: Foto da casa tirada em novembro de 1973. Fonte: Acervo CNV

Em 1971, a casa foi cedida ao Exército por seu proprietário, o empresário descendente de alemães e colaborador da ditadura, Mário Lodders. No interior da casa, o Centro de Informações do Exército (CIE) montou um aparelho repressor para onde encaminhou presos políticos para serem interrogados sob torturas visando à desmobilização dos grupos armados de resistência à ditadura. Inês Etiene Romeu conta como foram suas primeiras impressões no centro clandestino de detenção:

A Casa da Morte, residência localizada na cidade de Petrópolis, região serrana do estado do Rio de Janeiro, funcionou como centro clandestino de tortura, execução e desaparecimento forçado durante a ditadura militar, especialmente entre os anos de 1971 e 1974. Apesar de não se ter certeza do número de pessoas que estiveram presas na

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(...) chegando ao local, uma casa de fino acabamento, fui colocada numa cama de campanha, cuja roupa estava marcada com as iniciais do C.I.E. (Centro de Informação do Exército), onde o interrogatório continuou, sob a direção de um dos elementos que me torturara em São Paulo1

De acordo com a CNV, a Casa da Morte representou uma mudança na estratégia repressiva da ditadura militar. De 1964 a 1969, as torturas e execuções de opositores políticos eram encobertas por falsas versões de suicídio, atropelamento, tiroteio, e o corpo da vítima geralmente era entregue aos familiares em caixões lacrados, acompanhado de certidão de óbito atestando uma falsa versão para a morte. À medida que as denúncias de tortura no Brasil foram ganhando repercussão internacional e alguns casos ganharam visibilidade - tais como a morte do militante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), Chael Charles Schreier, em novembro de 1969 no interior do 1º Batalhão da Polícia do Exército da Vila Militar, e o desaparecimento do ex-deputado federal pelo estado de São Paulo, Rubens Paiva, visto pela última vez no DOI-CODI/RJ, em 21 de janeiro de 1971 -, a ditadura militar brasileira passou a investir na prática de desaparecimento forçado como política de Estado, a fim de evitar que a imagem do governo continuasse se desgastando perante a opinião pública internacional.

Fonte: Jornal O Globo. 29 de junho de 2012

Um dos motivos pelo qual os militares levavam os presos políticos para a Casa da Morte era submetê-los a torturas para que repassassem aos órgãos de repressão informações sobre a atuação das principais organizações políticas de esquerda e, assim, utilizá-los como

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Depoimento de Inês Etienne Romeu prestado em 1979. 1

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“agentes infiltrados”. De acordo com Paulo Malhães, pertencente ao Movimento Anticomunista (MAC) e ex-agente do CIE, um dos militares responsáveis pelo funcionamento da Casa da Morte, os presos que não concordavam em colaborar com o regime,“seguiam destino”, ou seja, eram mortos. Declarações de agentes da repressão apresentaram versões sobre os métodos utilizados para o desaparecimento dos corpos das vítimas que passaram pela Casa. O ex-sargento Marival Chaves afirmou perante a CNV que era comum a prática do esquartejamento como mecanismo utilizado para dificultar a identificação dos corpos. O coronel reformado Paulo Malhães corroborou essa informação ao declarar, em depoimentos prestados também à CNV e à CEV-Rio, que os militares utilizavam técnicas como a retirada dos dentes e dedos das mãos dos corpos dos militantes que eram jogados em rios da região para impedir sua localização e seu reconhecimento.

Fonte: Acervo CNV Inês Etienne Romeu, durante julgamento no auditório do Exército do Rio, em 1972, após ter sido solta da Casa da Morte.

A sociedade brasileira só tomou conhecimento da existência da Casa da Morte no final dos anos 1970. A denúncia sobre o local foi feita por Inês Etienne, militante e dirigente da VAR-Palmares, que foi mantida ilegalmente presa na Casa entre os dias 8 de maio e 11 de agosto de 1971. A estratégia utilizada por Inês Etienne para escapar com vida foi “aceitar” a condição de “infiltrada” e logo depois se entregar à Justiça Militar, tornando-se, então, oficialmente presa. Só depois de cumprir a pena de 8 anos de prisão, na Penitenciária Talavera Bruce, em Bangú, no Rio de Janeiro, e ser anistiada, Inês denunciou, em 1979, a existência do centro de repressão de Petrópolis a Eduardo Seabra Fagundes, então presidente da Ordens dos Advogados do Brasil (OAB). Em 27 de abril de 2015, Inês Etienne faleceu em sua casa na cidade de Niterói. Fonte: Acervo CNV Inês Etienne Romeu, durante depoimento prestado à CNV em 2014.

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Inês Etienne contou como foi o período em que esteve clandestinamente detida na Casa da Morte, durante o qual foi diversas vezes submetida a torturas físicas e psicológicas, e estuprada mais de uma vez, além de ter sofrido outras sevícias sexuais praticadas pelos militares que atuavam na Casa:

abril de 1971, no Cemitério São Francisco Xavier, no Rio de Janeiro. Investigações conduzidas pela CEV-Rio revelaram que Marilena foi morta sob tortura, após seu sequestro, desmentindo a versão oficial de que ela fora morta em um tiroteio no momento da prisão, no bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro.

(...) fui levada à sala de torturas, onde me colocaram no ‘pau de arara’ e me espancaram barbaramente. Foram aplicados choques elétricos na cabeça, pés e mãos. Queriam conhecer o meu endereço na Guanabara, mas consegui, apesar de tudo, ocultá-lo, para proteger uma pessoa que lá se encontrava.2

No relatório final das atividades da CNV foi publicada uma lista com treze nomes de militantes que podem ter tido passagem pela Casa da Morte, mas que não haviam sido citados por Inês em seus depoimentos: Celso Gilberto de Oliveira, Antônio Joaquim Souza Machado, João Batista Rita, Joaquim Pires Cerveira, Eduardo Collier Filho, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, David Capistrano da Costa, José Roman, Ana Rosa Kucinski Silva, Wilson Silva, Walter de Souza Ribeirto, Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto, Issami Nakamura Okano.

Em depoimento, a ex-militante listou o nome de dez desaparecidos políticos sobre os quais teve notícia enquanto esteve na Casa. Desses nomes, pesquisas realizadas pela CNV indicam indícios de que os seis listados a seguir teriam sido mortos em Petrópolis: Carlos Alberto Soares de Freitas, Mariano Joaquim da Silva, Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, Heleny Ferreira Telles Guariba, Walter Ribeiro Novaes e Paulo de Tarso Celestino da Silva. A respeito de outros três nomes mencionados por Inês Etienne, Ivan Mota Dias, José Raimundo da Costa e o deputado Rubens Paiva, ainda não há qualquer indício ou comprovação de que tenham passado pela Casa da Morte. Marilena Villas Boas Pinto foi a única vítima mencionada no testemunho de Inês Etienne sobre a Casa, cujo corpo foi resgatado do Hospital Central do Exército (HCE) e enterrado por seus familiares, em 8 de

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Depoimento de Inês Etienne Romeu prestado em 1979. 2

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

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Referências: Em 1979, a casa foi vendida a outro particular, que ainda hoje vive no local. Mais recentemente, em agosto de 2012, a Prefeitura de Petrópolis editou um decreto pelo qual declarava o imóvel como de utilidade pública para fins de desapropriação. Em 2013, o decreto foi reeditado, e passou a incluir também o imóvel vizinho, de número 210, pois no período da ditadura os dois imóveis faziam parte de um mesmo lote em que funcionava a Casa da Morte.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Preliminar de Pesquisa sobre a “Casa da Morte de Petrópolis” / Comissão Nacional da Verdade. – Brasília: CNV, Março de 2014. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. – Brasília: CNV, 2014. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório da viagem à cidade de Petrópolis/RJ. Brasília: março, 2014. RIO DE JANEIRO. Comissão Estadual da Verdade. Relatório Parcial / Comissão Estadual da Verdade. – Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2014. RIO DE JANEIRO. Comissão Estadual da Verdade. A memória do Terror / Comissão Estadual da Verdade. – Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2014. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Depoimento de Inês Etienne Romeu

Fonte: Acervo NDH PUC-Rio

prestado em 1979. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/upload/doc/ DEPOIMENTO_INES.pdf. Jornal O Dia, de 13 de maio de 2015.“Guerrilheiros teriam sido mortos sob tortura

Em Petrópolis, o movimento Comitê Petrópolis em Luta (CPL) e o Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) organizam atos artísticos e políticos com o objetivo de rememorar a violência e os crimes contra a humanidade cometidos no interior da Casa da Morte durante a ditadura militar. Além deles, outros movimentos de diretos humanos vem atuando na luta pela transformação do local em um centro de memória.

após matar major”. Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2015-05-13/guerrilheiros-teriam-sido-mortos-sob-tortura-apos-matar-major.html. Acesso em 17/07/2015. Jornal ta

rotina

O

Globo, da

Casa

de da

Morte

23/06/2012. em

“Torturador

Petrópolis”.

Disponível

conem

http://oglobo.globo.com/brasil/torturador-conta-rotina-da-casa-da-morte-em-petropolis-5300155#ixzz3gCBK0u1i . Acesso em 17/07/2015.

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1º BATALHÃO DE INFANTARIA

marcada pela violenta perseguição a membros da igreja católica que atuavam no sul do estado do Rio de Janeiro e a operários e lideranças sindicais, relacionados principalmente à Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Diversas organizações de esquerda também foram perseguidas, como o Partido Operário Comunista (POC), a Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e a Ação Popular (AP).

BLINDADA DO EXÉRCITO (BIB) (Localização: Rua Prefeito João Chiesse Filho, Centro, Barra Mansa, RJ)

Foto: Paulo Dimas

O complexo de pavilhões do 1º Batalhão de Infantaria Blindada do Exército (1º BIB), sediado no município de Barra Mansa, funcionou como centro de detenção e tortura de opositores à ditadura militar no período compreendido entre 1964 e 1973. A atuação do 1º BIB ficou

A partir do golpe de 1964, o 1º BIB passou a desempenhar diferentes funções na estrutura repressiva desenvolvida por setores militares e por empresários na região sul-fluminense, em especial nas cidades de Volta Redonda (sede da CSN), Barra Mansa e Resende (sede da Academia Militar das Agulhas Negras – AMAN, maior academia militar da América Latina). No caso da CSN, o início da ditadura apenas intensificou uma profunda articulação que já existia entre a Companhia e o 1º BIB, havendo inclusive uma polícia que atuava no interior da siderúrgica. No dia 1º de abril, as tropas do 1º BIB reprimiram três focos de resistência ao golpe militar na região: a Rádio Siderúrgica Nacional, principal meio de comunicação de massa de Volta Redonda, que nesse dia realizou, ocupada por trabalhadores, discursos a favor da legalidade e da greve; a CSN, palco de movimento grevista organizado por seus operários já nas primeiras horas do golpe; e o Sindicato dos Operários Metalúrgicos de Volta Redonda (Sindicado dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Barra Mansa, Volta Redonda e Resende), onde uma multidão de

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trabalhadores armou trincheiras dentro da sede e nas calçadas ao seu redor. Nas palavras de um dos trabalhadores resistentes:

Nos dias que se seguiram ao golpe, ocorreu a prisão em massa de operários e lideranças sindicais, executada através da conexão de dirigentes da CSN com tropas militares da região. De acordo com dados levantados pela Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda (CMV-VR), nos dias 1º e 2 de abril, ao menos 11 trabalhadores foram detidos no 1º BIB. Até o final desse mês, o número aumentou para 48 pessoas, levadas presas para o BIB ou para a AMAN. Tais prisões foram resultado do Inquérito Policial Militar da CSN (IPM-CSN 1569/64), instaurado para apurar a atuação dos trabalhadores no movimento grevista do dia 1° de abril e, posteriormente, para investigar a ação do “Grupo dos Onze” em Volta Redonda.

A madrugada de 31 de março para 1° de abril a noite toda o sindicato ficou mobilizado ligado na Rádio Nacional na tal Cadeia da Legalidade. Eu estava dentro do Sindicato. Eu fui mais ou menos duas horas da manhã. O batalhão do BIB não tinha chegado ainda. (…) E lá, no sindicato, ficou a expectativa sobre os acontecimentos, 9 horas da manhã, 10 horas, 11 horas. Daí dois colegas nossos foram à Via Dutra e viram a tropa do regime acantonados em Arrozal. O Lima Neto já estava preso. O BIB tava sufocando o movimento. (Testemunho de Joel Mendonça, concedido à Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda1)

Em 1968, houve uma caça aos militantes da Ação Popular (AP) na região de Volta Redonda. Instaurou-se um IPM em decorrência de ofício proveniente da CSN. Dois militantes indiciados, funcionários da Companhia, foram detidos pela polícia da usina e entregues à 18ª Região Policial de Volta Redonda. Outros foram fichados, em sua maioria também funcionários da CSN. A repressão contra a AP resultou, em 30 de abril de 1968, na prisão de doze pessoas e sua condução ao 1° BIB sob acusação de pintar inscrições em muros e distribuir panfletos subversivos. A atuação do 1º BIB se destacou ainda pela repressão a movimentos católicos de oposição à ditadura. De fato, a perseguição contra setores progressistas da igreja católica ocorreu desde o início do regime. Essa tensão aumenta, a partir de 1968, pela guinada à esquerda tomada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) com a entrada de dom Aloisio Lorscheider na secretaria-geral; e, nos anos 1970, pelo posicionamento mais claro da Conferência contra o regime militar. Nesse percurso, alguns bispos identificados pelos militares como“clero progressista”se tornaram alvo da ação da comunidade de

Foto: Acervo CNV

1

COMISSÃO MUNICIPAL DA VERDADE DE VOLTA REDONDA. Relatório

Parcial. Maio de 2014.

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segurança e de informações2. No contexto sul-fluminense, o principal representante do “clero progressista” era dom Waldyr Calheiros, nomeado bispo da Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda no ano de 1966. Símbolo de resistência à ditadura e defensor da luta operária, dom Waldyr fundou em 1966 a Juventude Diocesena Católica (JUDICA), com o objetivo de unificar a juventude católica de Volta Redonda e de Barra do Piraí. Em 1967, o bispo teve seu primeiro desentendimento com o governo militar, ao se recusar a atender o pedido do comandante do 1º BIB, Coronel Armênio Pereira, para que realizasse uma missa em homenagem ao aniversário do golpe, no dia 31 de março, na Igreja de São Sebastião, em Barra Mansa. Como resposta, o Coronel armou um altar em frente à Igreja e chamou o capelão militar para celebrar a missa no lugar de Dom Waldyr. Ainda nesse ano, no dia 5 de novembro, quatro integrantes da JUDICA, Carlos Rosa de Azevedo, Natanael José da Silva, Jorge Gonzaga e Guy Michel Camille Thibault, foram presos por agentes do 1º BIB por distribuir, em um bairro operário, panfleto que criticava a ditadura militar, denunciava as injustiças sociais no Brasil e convocava os trabalhadores a se unirem na luta contra o regime. Parte do conteúdo do panfleto anunciava:

Presos no interior do 1º BIB, os jovens foram mantidos incomunicáveis e denunciados por crime contra a Lei de Segurança Nacional. No dia 11 de novembro de 1967, a residência episcopal sofreu uma busca por provas que incriminassem os quatro detidos e os vinculassem à atuação de dom Waldyr. Dentre os materiais considerados subversivos encontrados pelos militares, estavam os livros: “Cuba, estopim do mundo”, de Athos Vieira de Andrade; “Além das torres do Kremlin”, de Flávio Costa; “Síntese de doutrina social”, de Gabriel Galache; “Uma escola social”, de D. Aranzadi e C. Giner; e “A Revolução Brasileira”, de Caio Prado Jr. A partir de então, dom Waldyr e muitos dos sacerdotes da Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda passaram a ser perseguidos. Os quatro jovens foram condenados pelo Superior Tribunal Militar (STM): Guy Michel, com a ajuda de dom Waldyr, conseguiu viajar para a França e foi condenado à pena de banimento à revelia; Natanael foi condenado a nove meses de prisão e Jorge Gonzaga a dez meses de prisão, ambos no quartel da Aeronáutica, situado na Av. Brasil; Carlos Rosa foi condenado a quinze meses de prisão na Base Aérea de Santa Cruz. Apesar das prisões, o período que antecedeu o Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, foi marcado por intenso ativismo da Ação Católica na região sul-fluminense, através do Movimento Ação, Justiça e Paz, liderado por dom Waldyr, e de grupos de jovens cristãos, como a Juventude Operária Católica (JOC). Contudo, com o recrudescimento da ditadura militar, em 1968, durante o governo do marechal Costa e Silva, intensificou-se ainda mais a repressão exercida pelo 1º BIB.

No Brasil, morrem, por dia, 1000 crianças vítimas da FOME. Para cada morto que nos fica, como resultado da fome, da miséria, da doença, frutos da exploração dos Estados Unidos, vai pra os cofres americanos a soma de CR$ 2.500.000,00. Este governo é anti-cristão. Lançou a classe média à pobreza e a classe pobre à miséria. É uma DITADURA à serviço do imperialismo americano. Pois, os operários são massacrados, sem salários, sem direitos, forçados a leis desumanas e ao alto custo de vida.

2

No dia 10 de janeiro de 1969, agentes do batalhão efetuaram a prisão de estudantes, intelectuais e operários que participaram da comemoração pelos vinte anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, evento organizado com a colaboração da Diocese de Barra do Piraí/Volta Redonda, no dia 8 de dezembro de 1968. À época, o 1º

FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrêaneos da Ditadura militar:

espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 192.

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BIB era responsável também por controlar os movimentos artísticos e culturais que ocorriam na região, tendo enviado um censor para registrar o referido evento. Dentre as pessoas detidas e levadas para o 1º BIB na ocasião estavam os jovens Bernardo Maurício, Lincoln Botelho e Vicente Melo, que faziam parte de um grupo de teatro que se apresentara na comemoração, além dos professores Waldyr Amaral Bedê e Antônio Carlos Santini, que assessoravam dom Waldyr. Como forma de protesto, o bispo dirigiu-se ao quartel do 1º BIB, no dia 14 de janeiro de 1969, e declarou-se preso em solidariedade aos demais, permanecendo no local por cerca de onze horas. O comandante do batalhão, coronel Armênio, recusou-se a colocá-lo em detenção.

arbitrárias de pessoas suspeitas foram irritando os cidadãos e gerando conflitos no seio das famílias. Por outro lado, a defesa que fazíamos dos presos, denunciando as arbitrariedades nas igrejas - único meio de comunicação -, foi criando uma aceitação por parte da população. (Dom Waldyr Calheiros, em testemunho prestado ao CPDOC entre os meses de agosto de 1998 e março de 19993)

O primeiro caso conhecido de tortura no interior do 1º BIB teve como vítima Genival Luís da Silva, sindicalista metalúrgico e membro do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Preso pela segunda vez no batalhão, em 1969, ele foi submetido a sessões de tortura durante três meses. Ao tomar conhecimento de tais fatos, dom Waldyr enviou ao comandante do 1o Exército, general Tasso, uma carta denunciando as violações. Em resposta, instaurou-se um Inquérito Policial Militar (IPM), chamado de “IPM da tortura”, conduzido pelos próprios militares denunciados. As investigações concluíram que as denúncias eram inverídicas. Como forma de retaliação, os militares instauraram o chamado “IPM da subversão””, que pretendia investigar as ações do bispo e de mais 16 padres por crime contra a segurança nacional. Tal inquérito, porém, foi arquivado após um longo e desgastante processo.

Em decorrência do AI-5, uma série de outras prisões foram efetuadas pelo 1º BIB, especialmente de operários e lideranças do Sindicato dos Metalúrgico de Volta Redonda, dentre eles Lima Neto, Nestor Lima, Odair Aquino e José Bonifácio de Castro. Outros militantes, vinculados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e à Ação Popular (AP) também ficaram detidos no batalhão: Dercide Guimarães, Luís Seixas Bono, Lúcio Andrade, Seu Nicanor (o “velho”), Benedito Matos da Costa (Beni), Lenine Abdiel de Souza, Nilton Carraro Machado, Gerson da Cunha Basto, Manoel Izaac de Carvalho, Queribino, Dias Leão, Nilson Costa, Joaquim Leocádio, pastor Geraldo Marcel, Elmo, Aristides, João Nepomuceno, Geraldo Leal Ribeiro e Brasil Lul Diogo. Como aponta dom Waldyr, Na época do regime militar, quem mandava na cidade era o coronel comandante do BIB, destaque em todas as manifestações públicas. O prefeito, nomeado pelo governo, não passava de figura decorativa. O patrulhamento constantemente feito pelo Exército dava a impressão de que todos nós estávamos prisioneiros, submissos e aplaudindo por onde passavam. Eram ostensivamente arrogantes. As prisões sucessivas e

3

COSTA, Celia Maria; PANDOLFI, Dulce; SERBIN, Keneth (org.). O Bispo

de Volta Redonda: memórias de Dom Waldyr Calheiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 90.

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Sofreu na própria carne a tortura de esporadas de calcanhares nas suas costelas, “telefones” nos ouvidos e choques de altas voltagens nas mãos, pés, língua e no pênis, provocando inflamação entre os músculos e os ossos. (…) Em uma das sessões de tortura no “arquivo”, enquanto ele levava choques elétricos, João Cândido tinha suas varizes da perna furadas e ensanguentadas; Hélio Medeiros era queimado com cigarro aceso, onde escreviam Hélio na sua perna. (…) Os perpetradores da tortura foram o sargento Pires, cabo Alberto, cabo Cruz, tenente Tenório e sargento Souza. (…) Foi testemunha da “procissão” no pátio do quartel, altas horas da noite, onde estavam nus, algemados juntos, o padre Natanael e Edir Inácio, e Estrella Dalva atrás com fios elétricos no corpo, levando choque para cantar a música “Jesus Cristo, eu estou aqui” (Edir Alves Souza. Testemunho prestado à CMV-VR no ano de 2014)

Edificação do 1° BIB, provável local conhecido como ‘‘submarino’’ Fonte: Acervo CNV

A partir de 1970, a atuação do 1º BIB passou a ter vinculação direta com o DOI-CODI/RJ, órgão recentemente instituído para centralizar e coordenar as ações repressivas levadas a cabo pelo I Exército. A tortura tornou-se, então, prática reiterada no interior do batalhão. Há registros da utilização de celas solitárias, do “submarino” (cela fechada, sem iluminação ou ventilação, estreita e de teto baixo), do ‘‘cubículo’’ (ambiente minúsculo onde colocavam até quarenta pessoas), da pocilga, do depósito de armas (lugar sem janelas, muito quente e abafado, sem água potável) e do próprio rio Paraíba do Sul (prática de afogamento). Os detidos eram submetidos a sessões de tortura em um pavilhão chamado “arquivo”, próximo ao rio, localizado em um espaço mais afastado do complexo de pavilhões do quartel. Edir Alves Souza, membro da JOC e estudante da Escola Técnica da CSN à época, relata que:

Legenda: Edir Alves Souza, ex-preso político Fonte: Acervo CNV

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Ainda no ano de 1970, o Comando da Guarnição Federal de Barra Mansa e Volta Redonda começou a realizar ações mais diretamente voltadas para a perseguição e prisão de militantes considerados subversivos. Era um momento de desorganização de movimentos da guerrilha armada, com a morte de Carlos Marighella, em 1969, e de Joaquim Câmara Ferreira, em 1970, dirigentes da Ação Libertadora Nacional (ALN). Por conta disso, o 1° BIB assume papel de maior proeminência na atividade repressora da região, recebendo o aval das instâncias superiores para a prisão de todos que, direta ou indiretamente, estivessem envolvidos ou comprometidos com ações subversivas. É nesse cenário que se dá a prisão do padre Natanael de Moraes Campos, assistente eclesiástico da JOC, que levaria ao episódio até então inédito de tortura contra um padre realizada no 1° BIB.

minhas pernas. (Estrella D’Alva Bohadana em depoimento à CMV-VR em março de 2013) Cerca de uma semana depois, agentes do 1º BIB levaram Estrella ao DOI-CODI/RJ, onde sofreu um aborto causado pelas torturas. Ela foi encaminhada ao Hospital Central do Exército (HCE) e lá chegou em estado de coma após uma tentativa frustrada de cortar os pulsos para escapar às sevícias. Logo após sua recuperação, mandaram-na de volta ao 1º BIB, tendo sido submetida a mais sessões de tortura. Depois de um mês detida no Batalhão de Barra Mansa, Estrella passou pelo DOPS/GB, onde prestou depoimento e logo foi transferida para a ala psiquiátrica do Presídio feminino Talavera Bruce, permanecendo detida por oito meses.

Outro caso importante, que ilustra a relação do 1º BIB com outros órgãos da estrutura repressiva montada pela ditadura militar, foi o da ex-militante Estrella D’Alva Bohadana. Estudante universitária do curso de arquitetura em Barra do Piraí e integrante da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop) e, posteriormente, do Partido Operário Comunista (POC), Estrella foi presa pelo 1º BIB aos dezenove anos de idade, em novembro de 1970, e torturada no interior do Batalhão.

Outro caso marcante ocorrido no 1º BIB envolveu a prisão, tortura e morte de soldados em dezembro de 1971. Em razão de uma sindicância interna, instaurada para apurar uma suposta denúncia de tráfico e de consumo de drogas no interior do batalhão, 15 soldados foram presos e torturados. Quatro deles, Geomar Ribeiro da Silva, Wanderlei de Oliveira, Juarez Monção Virote e Roberto Vicente da Silva, todos com 19 anos de idade, morreram em decorrência das torturas. Contando com o apoio de dom Waldyr e da CNBB, a irmã do soldado Geomar, Geralzélia Ribeiro da Silva, denunciou o caso à justiça. Após 108 dias de investigação, a Justiça Militar, de forma inédita, indiciou os agentes do 1º BIB envolvidos no caso por tortura e assassinato. Todos os acusados - oito militares e dois policiais civis - foram condenados e presos. Essa foi a primeira e única vez que o Exército brasileiro, em plena ditadura militar, no ápice do governo do general Emílio Garrastazu Médici, reconheceu a prática de tortura, assassinato e ocultação de cadáver no interior de uma unidade militar. Arquivou-se o Inquérito Policial Militar instaurado para investigar o suposto tráfico e uso de drogas no 1º BIB por falta de provas.

A primeira noite, quando eu cheguei - a primeira coisa foi uma espécie de grande levantamento - e já começou um ensaio de sessão de tortura com muito choque elétrico na língua, nos seios, na vagina e nas mãos. Depois, o que eles chamavam de telefone, e muito soco no abdômen. Essa foi a primeira noite, em que eu fui para uma cela gelada, um cubículo, sem nenhum agasalho, e sem lençol nem nada. (…) no segundo dia, a coisa começou a piorar. Além do choque que se intensificou, entrou o pau de arara. (…) fiquei muito tempo no hospital ainda paralítica, depois eu voltei a andar com muita dificuldade. (…) O pau de arara bloqueia, arrebenta os tendões. Eu só tenho vivo 60% dos tendões das

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Referências bibliográficas

Em 1972, após mais de 16 anos de funcionamento, o ministro do Exército transformou o 1º BIB no 22º Batalhão de Infantaria Motorizada (BIMtz), extinguindo, assim, o principal órgão de repressão militar na região sul-fluminense do estado do Rio de Janeiro durante a ditadura militar. Apesar da ausência de registros sobre prática de tortura no 22o BIMtz, este batalhão continuou funcionando como centro de perseguição política aos militantes da região, com ação fundamental durante a repressão às greves dos anos 1980. Atualmente, o espaço do complexo de pavilhões do 1º BIB é sede do Parque da Cidade, local de lazer dos moradores de Barra Mansa. As instalações do antigo prédio do Batalhão abrigam hoje um circo, o comando da Guarda Municipal, a Secretaria de Desenvolvimento Rural da cidade e um Tiro de Guerra. Em razão das inúmeras denúncias de graves violações de direitos humanos ocorridas no interior do Batalhão entre 1964 e 1973, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) – em parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda (CMV-VR) e a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio) – realizou, em outubro de 2014, uma diligência no local para identificar os espaços de tortura descritos por ex-presos e seus familiares.

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CLUBE YPIRANGA (Localização: Rua Presidente Sodré, 22, Centro, Macaé) * Esquina com a Rua Tenente-Coronel Amado

Fonte: Arquivo Patrimônio Público

Fundado em 1926, o Ypiranga Futebol Clube dispunha de um área social destinada à realização de bailes e festas de grande prestígio entre os moradores de Macaé. Tinha igualmente um ginásio com quadra para a prática de vários esportes e que também serviu, em algumas ocasiões posteriores, como espaço para shows de artistas como Ivan Lins e Roberto Carlos. Durante a década de 1950, a recentemente criada Rádio Estação de Macaé, que em pouco tempo obteve grande popularidade, teve sua sede instalada no prédio do Clube, lá permanecendo durante alguns anos. Desde a década de 1920, o Clube Ypiranga funcionou como um importante centro para a sociedade macaense. Entretanto, no contexto do golpe militar de 1964, conjuntamente às atividades sociais e esportivas lá praticadas, o ginásio do clube foi utilizado como prisão temporária para trabalhadores locais considerados suspeitos de subversão.

No contexto do golpe de 1964, os sindicatos e demais organizações de luta trabalhista passaram a ser duramente reprimidos sob o argumento de associação à subversão, sobretudo de orientação comunista. Por conta da repressão que se seguiu ao golpe, com milhares de prisões sendo realizadas, os agentes do Estado responsáveis por tais ações frequentemente recorriam a locais de detenção clandestinos, tais como navios e estádios, uma vez que a quantidade de pessoas presas extrapolava a capacidade das delegacias, quartéis e presídios.

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Além disto, estes locais permitiam a ação dos agentes estatais sem supervisão. Sendo assim, tais prisões em massa eram realizadas de forma ilegal e arbitrária, sendo frequentes as violações de direitos e muitas vezes a ocorrência de tortura. Os locais de detenção eram incompatíveis com o respeito a condições dignas de tratamento, sendo via de regra insalubres e superlotados.

as famílias dos presos por vezes não eram notificadas.

Fonte: Acervo CEV-Rio

Uma das particularidades do uso da parte esportiva do Clube Ypiranga como local de detenção foi a continuidade das atividades da parte social do clube, em contraste com o que ocorreu no Estádio Caio Martins. A realização de festas prosseguiu normalmente, havendo inclusive relatos de que os frequentadores do Clube conheciam a situação dos presos lá mantidos1.

Fonte Acervo Comissão da Verdade de Macaé

Tal prática, disseminada por todo o país, ocorreu também na cidade de Macaé, que possuía grande concentração de operários – sobretudo ferroviários – e de camponeses. O local escolhido para manter os presos políticos foi o ginásio do Clube Ypiranga, que serviu como uma prisão de triagem, de onde os presos eram enviados para prestar depoimento no Forte Marechal Hermes, na delegacia (atual posto da Polícia Federal), ou – dependendo da avaliação dos agentes da repressão – para outros centros de repressão na cidade do Rio de Janeiro. Seguindo os procedimentos comuns nos casos de prisões arbitrárias,

Após o período da ditadura militar, o Clube Ypiranga gradualmente entrou em decadência. Atualmente, o prédio se encontra em estado precário de conservação e seria leiloado em razão das altas dívidas

1 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014, volume 2, p. 74.

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Referências bibliográficas

contraídas pelo clube ao longo dos anos. Entretanto, uma desapropriação realizada pela prefeitura da cidade conseguiu evitar o leilão e a possível destruição do prédio histórico.

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29.07.2015. <http://www.odebateon.com.br/site/noticia/detalhe/7837/clube-ypiranga-berco-da-historia-social-e-cultural-de-macae>. Acesso em: 29.07.2015.

Fonte: Acervo Comissão da Verdade de Macaé

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DELEGACIA DE POLÍCIA CIVIL (Localização: Rua Governador Roberto Silveira, no 247, Centro, Macaé, RJ)

Fonte: Google Street View

No dia 1º de abril de 1964, Macaé é palco de uma greve geral na antiga Rua Direita liderada pelos trabalhadores e com a presença de camponeses. Contudo, com o estabelecimento de um Comando militar provisório, a ação sindical ferroviária perde consideravelmente sua força, especialmente devido a cassação daqueles que possuíam mandato parlamentar. Destacam-se os vereadores Walter Quaresma Costa, Alberto Ramires da Costa e Alcebíades Vieira e, com eles, os seus respectivos suplentes Ricardo Moacir Leite e Santos, Waldir Curvelo e Abílio Miranda em Reunião Extraordinária da Câmara Municipal de Macaé no dia 20 de abril do mesmo ano.

Durante a década de 60, a cidade de Macaé viu o ápice do movimento operário ferroviário. A atuação do sindicato se concretizava não somente por meio de paralizações e manifestações contrárias à situação degradante do trabalho, mas também por vias parlamentares, nas quais os vereadores e deputados eleitos representaram a categoria garantindo avanços em direitos tais como o 13º salário e insalubridade.

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Ainda no dia do golpe, o novo governo provisório empreendeu uma grande onda de prisões, levando-os à Delegacia Civil e ao Forte Marechal Hermes. Devido a incapacidade de alocar esses presos – compostos de trabalhadores ferroviários, advogados, jornalistas e camponeses -, o Clube Ypiranga foi usado como carceragem provisória antes de enviá-los aos DOPS/GB.

tica relatada por Lauro Martins eram as simulações de fuzilamento no terreno baldio ao lado da delegacia, embora não haja evidências de algum preso fuzilado. Ele conta que alguns presos eram retirados durante à noite e, momentos depois, ouviam-se tiros. Como eles não voltavam para a cela, isso causava uma forte apreensão aos demais presos.

Esteve na delegacia também o líder da associação camponesa da região Generino Teotônio de Luna que foi levado para o DOPS/GB no mesmo ano e, de acordo com o testemunho da sua filha, Marta de Luna dos Santos, foi submetido à tortura durante os seis meses que esteve preso em Niterói. Lauro Martins, por sua vez, esteve preso na delegacia durante 4 dias antes de ser transferido ao Clube Ypiranga. Enquanto preso, ele relatou que recebeu pisões e ameaças.

Atualmente, a delegacia se tornou um posto da Polícia Federal na cidade.

Referências bibliográficas FONSECA, Eilton. Estação Bedengó: uma trilha de lutas dos ferroviários macaenses. Rio de Janeiro: Editora Achiamé, 1996. RIBEIRO, Gleyce Fernandes. O Baile, a Ordem e o Esquecimento: o Clube Ypiranga e as memórias do Regime Militar em Macaé. Relatório da Comissão Municipal da

As prisões começaram imediatamente, demorou um pouco mais para os ferroviários porque nós ainda estávamos de greve e eles esperavam que voltássemos ao trabalho para nos prender. Muitos voltaram e outros não, mas os que voltavam eram encaminhados para a cadeia, onde hoje é a delegacia da polícia federal, ali eles nos colocavam em celas pérfidas misturados com os bandidos, sofremos muito. Eles nos pegavam aos poucos pois ali não cabia todo mundo, aí faziam uma espécie de triagem por periculosidade que eles achavam que cada um tinha, daí eles mandavam para o Rio, para presídios que não sei quais são ou nos mandavam para o Ypiranga. (Testemunho de Lauro Martins à Comissão Municipal da Verdade de Macaé)

Verdade de Macaé, 2014.

A delegacia possuía duas celas no segundo andar e uma sala subterrânea a qual era denominada como “cela pavorosa”, pois era um subsolo sem eletricidade e com uma única porta de entrada. Essa sala era usada pelos agentes da repressão para punirem os presos que não ofereciam respostas satisfatórias durante os depoimentos. Outra prá-

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INSTITUTO PENAL CANDIDO MENDES

lecimentos de reclusão pelo seu caráter de isolamento, o que tornava quase impossível a fuga dos detentos e os deixava afastados da sociedade. Em 1894, criou-se o primeiro estabelecimento carcerário na antiga fazenda Dois Rios, situada no mar de fora da Ilha Grande. Extinguida e reorganizada em 1903, a Colônia Correcional Dois Rios foi o destino de contraventores e cidadãos considerados ‘‘vadios’’, entre eles os denominados“menores viciosos”, as prostitutas e os capoeiras. A colônia visava à “correção pelo trabalho”, empregando os detentos em atividades agrícolas. Em 1942, as edificações da Colônia Correcional Dois Rios foram utilizadas para a instalação da Colônia Agrícola do Distrito Federal. Esta recebeu, inicialmente, os presos transferidos da ilha de Fernando de Noronha, entre eles os envolvidos na Intentona Comunista de 1935. Também passaram pelo presídio João Francisco dos Santos, conhecido como a icônica Madame Satã, e o escritor Graciliano Ramos, cuja experiência na prisão inspirou a criação da obra Memórias do Cárcere, na qual narra a vida dentro do presídio e as sevícias às quais eram submetidos aqueles enviados ao centro de detenção. Com o fim da 2ª Guerra Mundial, o presídio passou a receber os presos comuns e em 1963 foi transformado no Instituto Penal Candido Mendes.

(Localização: Dois Rios, Ilha Grande, Angra dos Reis, RJ)

Instalado em Ilha Grande (ilha situada na baía da Ilha Grande, costa oeste do Estado do Rio de Janeiro), o Instituto Penal Candido Mendes recebeu grande número de presos comuns e políticos durante a ditadura militar. Ao longo de seu funcionamento, o presídio se tornou conhecido pelas torturas físicas e psicológicas e pelo tratamento degradante despendido aos internos por parte de agentes de segurança. Localizada entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, na região conhecida como Costa Verde, a ilha foi escolhida para abrigar estabe-

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los presos para representá-los frente à administração do presídio1. O início desse contato com presos políticos na Ilha Grande foi relatado por William da Silva Lima no livro 400 Contra Um: uma História do Comando Vermelho em que narra: Logo depois [da fuga da penitenciária Lemos de Brito em 26 de maio de 1969], os presos políticos que estavam no continente foram transferidos para uma galeria da Ilha Grande, isolados dos demais. Foi, para todos, um choque. Eu convivia diretamente com cerca de cinquenta deles, a maioria marinheiros, muito integrados à coletividade, hábeis no artesanato, nos esportes e nas artes. A transferência desses companheiros para a Ilha Grande modificou nossa rotina. Pouco podíamos fazer, mas fizemos, pelo menos simbolicamente: reorganizamos e levamos à vitória o 25 de Março, time de futebol que lembrava a data do levante que trouxera os marinheiros à prisão2. Fonte: Acervo Museu do Cárcere

Ainda que, para aqueles considerados pela repressão como uma ameaça ao regime, a condição de preso político gerasse um caráter de oficialidade ao encarceramento, diminuindo assim os riscos de ser assassinado ou de se tornar um desaparecido do regime, a permanência no IPCM trazia condições de vida degradantes. Os testemunhos relatam as precárias condições da prisão, com edifícios em ruínas, falta de higiene nos cômodos e banheiros, falta d’água, além de celas superlotadas e úmidas. Os detentos doentes não contavam com qualquer

Com o golpe de 1964, e, sobretudo após 1969, com a edição da Lei de Segurança Nacional, muitas pessoas acusadas de oposição ao regime militar foram enviadas ao instituto, dividindo o espaço com presos comuns. O térreo e o primeiro andar do edifício central eram destinados a estes presos, enquanto o segundo andar era ocupado por presos políticos, em um regime ainda mais fechado. Esta convivência gerou um processo de politização dos presos comuns, que passaram a ter contato com hábitos de organização como a constituição de um fundo coletivo, ou seja, uma despensa comum onde os alimentos trazidos aos presos pelos familiares eram guardados e depois partilhados entre todos, e de um colegiado, ou seja, um pequeno grupo escolhido pe-

1 MALAVOTA, Leandro Miranda. O início da falange vermelha. In: XXIII Simpósio Nacional de História. Anpuh-Londrina, 2005, p. 3. 2 LIMA, William da Silva Quatrocentos contra um: uma história do Comando Vermelho/ William da Silva Lima — 2. ed.— São Paulo: Labortexto Editorial, 2001. p.38-39.

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atenção médica e ficavam em meio aos demais detentos3.

Jorge Raimundo Jr. e Romulo Noronha de Albuquerque4. No impresso, os presos, que reivindicavam a transferência para o Complexo Penitenciário da Frei Caneca, afirmavam sobre a prisão:

Destaca-se ainda a existência da cela conhecida como “surdo”, nome atribuído a uma espécie de solitária, onde os presos acusados de mau comportamento eram trancados e ficavam impossibilitados de frequentar os banhos de sol. A situação precária levou os presos a protestarem diversas vezes com a realização de greves de fome. Em oitiva pública promovida pela Comissão Nacional da Verdade e pela Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, em 2013, o marinheiro Joaquim Aurélio de Oliveira, preso por participar de uma reunião no Sindicato dos Marinheiros e levado para o presídio em Ilha Grande, lembrou-se de ter participado desta forma de protesto:

(...) o aspecto mais grave deste isolamento liga-se ao fato de favorecer enormemente a prática de violências e arbitrariedades contra presos políticos e comuns. Ainda no início do mês passado, os jornais divulgaram a notícia do assassinato de dois internos deste presídio, vítimas dos espancamentos que sofreram nas mãos de guardas e policiais militares. A este relato poderíamos acrescentar incontáveis outros. Esta realidade particular, entendida dentro de uma envolvente mais ampla, isto é, das constantes violações dos direitos humanos dos presos políticos brasileiros, levou-nos a concluir que nossa permanência aqui significa a perspectiva de um aniquilamento lento, ou então, uma saída mais rápida, configurada em nosso massacre (...)5

Participei de uma greve de fome de 16 dias. Nossa luta era sair de lá da Ilha, porque nossas esposas não tinham como ir ver a gente. Elas se cotizavam, pegavam barcos frágeis para atravessar a baía, correndo risco de ficar à deriva. Com essa greve de fome eu quase morri, parecia aquelas pessoas do holocausto. Minha boca e garganta encheram de afta, eu não conseguia nem tomar o soro. Mas eu não morri, e estou aqui para contar essa história. (Testemunho de Joaquim Aurélio de Oliveira concedido à CNV e à CEV-Rio)

Outras denúncias foram feitas ao médico Benjamin Albagli em 1970 que solicitou uma visita ao estabelecimento penal de Ilha Grande a fim de verificar a real condição dos presos. Fez-se a solicitação à Secretaria de Justiça do antigo estado da Guanabara, em nome da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, vinculada ao Ministério da Justiça. Recebida a autorização, Albagli constatou a situação altamente precária dos detentos e, a partir de então, passou a também ser perseguido pela repressão6.

Em 5 de maio de 1975, dezenas de presos políticos elaboraram um abaixo assinado denunciando as péssimas condições do presídio e solicitando sua transferência para o continente. Dentre os presos que assinaram o documento, encontravam-se Zaqueu José Bento, Paulo Roberto Jabour, Alex Polari de Alverga, Manoel Henrique Ferreira, Carlos Alberto Sales, Fernando Palha Freire, Paulo Sergio Paranhos,

4 Disponível em: http://arquivosdaditadura.com.br/documento/galeria/ conjunto-documentos-sobre-situacao-preso-0 5 GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2014. 6 Disponível em: http://www.documentosrevelados.com.br/depoimentos-tortu-

3 PEREIRA, Vany Leston Pessione. Ilha Grande: a masmorra verde. In: Âmbito

ras-denuncias-ditadura/medico-foi-perseguido-pela-ditadura-por-denunciar-tor-

Jurídico, Rio Grande, XII, n. 62, mar 2009.

turas-aos-presos-da-ilha-grande/

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No início dos anos 1980, com a abertura política, os jornais começaram a publicar matérias corroborando as denúncias de uso da tortura de maneira sistemática no instituto. É o caso do Jornal do Brasil, que em 17 de dezembro de 1981 trouxe à tona a declaração do então diretor do Departamento do Sistema Penitenciário (DESIPE), Antonio Vicente, confirmando a existência de tortura no Presídio Candido Mendes. Segundo a manchete: “Desipe admite que presos da Ilha foram torturados”7.

os detentos enumeram outros casos específicos: falta de respeito para com as visitas, colocação de maconha em determinados lugares para forjar flagrantes, incitamento à rebelião, instalação de presos rebeldes em celas onde há camas com estrados de ferro, propiciando a fabricação de estoques para que se matem entre si, humilhação sistemática para provocar rebeldia, esquecimento de detentos em celas surdas, negativa de alimentação.9

Uma das formas de tortura denunciadas era aplicada aos presos que tentavam fugir e ficou conhecida como “pinguim”. A denúncia partiu da promotora Nilda Maria Baptista, da Comarca de Angra dos Reis, tendo sido publicada pelo jornal O Globo em abril de 1982. Descreveu-se o tratamento dado a três presos que tentavam fugir do Instituto Penal e que, ao serem encontrados por policiais da instituição, foram amarrados em árvores, já exaustos da fuga, e colocados na “posição vertical, amarrados a pedaços de madeiras fincados ao chão”. Outro pedaço de madeira atravessava as costas dos detentos “de modo que seus pés não tocassem o solo, ficando, em consequência, todo o peso do corpo sustentado pelos braços”. A promotora ainda acrescenta que o tenente responsável pela tortura acionava a manivela de um aparelho que dava choque elétrico nos torturados8.

Fonte: Acervo Correio da Manhã do Arquivo Nacional

Em março de 1983, o periódico Última Hora também publicou matéria de página inteira denunciando o tratamento recebido pelo detentos no presídio:

Apenas em 1994 o presídio foi definitivamente desativado e implodido por decisão do então governador Leonel Brizola. Hoje, ainda é possível encontrar ruínas da construção que abrigou o IPCM. O local foi entregue pelo governo do Estado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que mantém ali um ecomuseu, o Museu do Cárcere.

Além de outras acusações, como falta de assistência médica ou jurídica, maus-tratos físicos, falta de qualquer tipo de diálogo com a direção,

7 JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, 17/12/1981, p. 14. 9 JORNAL ÚLTIMA HORA. Rio de Janeiro, 28/03/1983, p. 13.

8 PEREIRA, Vany Leston Pessione. Op. cit.

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Fonte: Acervo Museu do Cรกrcere Legenda: Museu do Cรกrcere

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CENTROS CLANDESTINOS DE SEQUESTRO, TORTURA OU DESAPARECIMENTO NÃO INVESTIGADOS OU NÃO IDENTIFICADOS

USINA DE CAMBAHYBA (Localização: Trecho da estrada RJ-224, sentido Espírito Santo, localidade de Cambahyba, Campos dos Goytacazes, RJ)

Fonte: INEPAC.

Há fortes indícios de que, a partir dos anos 1970, agentes da repressão utilizaram os fornos da Usina de Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, para incinerar os corpos dos presos que eram assassinados em centros de prisão e tortura – clandestinos e oficiais, fazendo-os desaparecer. O principal depoimento sobre o local e sobre a incineração dos corpos é o do ex-delegado do DOPS do Espirito Santo, Cláudio

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Guerra, que teve suas memórias publicadas no livro "Memórias de uma Guerra Suja", em 2012.

Estávamos no final de 1973. Precisávamos ter um plano. Embora a imprensa estivesse sob censura, havia uma resistência interna e no exterior contra os atos clandestinos, as torturas e as mortes. Tínhamos problemas com pressões políticas fortes. A primeira tentativa foi a de um intercâmbio de cadáveres. A equipe do Rio passou a despachar os corpos para São Paulo e vice-versa. Mas isso não foi suficiente para manter a discrição no ocultamento dos corpos (...) Falei então sobre o forno da indústria [Usina de Cambahyba] para Perdigão e Vieira. Alertei que enterrar corpos em cemitérios clandestinos ou jogá-los ao mar - operação comandada pelo Cenimar - já eram técnicas manjadas, que não tinham a mesma eficácia de antes. Relatei minha amizade e afinidade ideológica e de confiança com Hely e os dois me acompanharam até a usina de Campos. O local foi aprovado.3

Em depoimento para a Comissão Nacional da Verdade no dia 23 de julho de 2014, o ex-delegado identificou 19 corpos que foram incinerados no local e afirmou que a técnica era utilizada para o desaparecimento dos mesmos. Segundo Cláudio Guerra, a técnica de ocultação de cadáveres por incineração em Cambahyba teria começado a partir de 1974 ou 1975:

[...] nesse período aí, 74, 75, na mudança da política americana, começou uma pressão muito grande em cima daqui do governo por causa do desaparecimento de corpos. Precisava. Os coronéis que estavam no comando do país [...]. Eles eram os coronéis. Queriam um meio de desaparecer mesmo. Então foi dada essa ideia de se incinerar os corpos porque aquilo: ‘Ah, cortou em pedaços, jogou em tal lugar’. Houve essas práticas. Não estou dizendo que não houve, houve. Agora de 75 para cá foi mudado o sistema. Era incinerado. Então, qual era a logística? Era apanhado à noite, levado de noite [...].1

A Usina de Cambahyba – ou Complexo Agroindustrial de Cambahyba – foi uma das principais indústrias do município de Campos. A Usina era formada por um conjunto de sete fazendas de cerca de 3500 mil hectares que pertenciam ao ex-vice-governador do Rio de Janeiro Hely Ribeiro Gomes. Em 1979, chegou a ocupar 6.763 hectares. O ex-delegado, antes da escolha da usina, já frequentava a região exercendo uma influência sobre os fazendeiros que necessitavam de armas para combater os conflitos no campo advindos das possíveis desapropriações originadas pela reforma agrária:

Em seu livro, Cláudio Guerra afirma que em certo momento durante o regime, por volta de 1973, havia sido iniciada uma discussão sobre o que fazer com os corpos das pessoas assassinadas pela repressão2:

mata muito alta lá embaixo. E é ali que eram jogados os corpos. É como se fosse um mirante, ao lado de uma pedreira. Ali era feita a desova de corpos de criminosos 1 Comissão Nacional da Verdade, Relatório Final, Volume I, p. 520.

comuns, que a Scuderie Le Cocq usava frequentemente. Acompanhei alguns casos e esse foi um dos motivos da mudança do esquema de desaparecimento de corpos.

2 Em seu livro, Guerra afirma que havia um cemitério clandestino da Floresta da

Mais um dia, menos dia, tudo seria descoberto. Foi essa época que discutimos com

Tijuca: "Ajudei a atirar corpos por um penhasco da Floresta da Tijuca. Nesse local

Perdigão e Vieira a ideia de cremação dos corpos na usina de Campos. Isso foi no

foram jogados presos políticos apanhados no DOI-CODI da Barão de Mesquita, na

final de 1973." (Guerra, 2012, p.65-66).

Tijuca. Para ir até lá, você deve chegar pelo outro lado da cidade, no sentido Jacarepaguá. Não consigo precisar exatamente o local, mas é um despenhadeiro, uma

3 Guerra, 2012, p. 50-51, 52.

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mento de um diálogo7.

Com as transações de armas contrabandeadas pelo Trotte, passei a exercer influência sobre os fazendeiros que precisavam dessas armas para proteger suas terras das possíveis desapropriações advindas da reforma agrária ou de conflitos no campo. Eu fornecia para eles carteiras do DOPS, o que, de alguma maneira, legalizava o uso das armas, garantindo o seu porte. Constituí uma rede informal entre esses fazendeiros do Rio de Janeiro, parte de Minas Gerais, Espirito Santo e da Bahia.4

Guerra teria utilizado seu próprio carro para buscar os corpos dos presos políticos mortos por agentes da repressão no centro clandestino de prisão e tortura em Petrópolis, conhecido como Casa da Morte, e também no DOI-CODI do Rio de Janeiro. O trabalho era realizado à noite e os corpos, entregues em sacos plásticos, eram levados até o município de Campos para a Usina e jogados nos fornos para cremação.

A partir de então, ele desenvolveu amizades com os proprietários, sendo que uma dessas amizades foi com ex-vice-governador Hely Gomes e sua família, donos da Usina de Cambahyba. A família era ligada à TFP – Tradição, Família e Propriedade – e tinha grande poder de mando no local. Guerra costumava viajar para a casa de praia deles, em Atafona, para passar o final de semana5. Dessa forma, passou a frequentar a usina e entender seu funcionamento, o que teria levado a sugerir a cremação para Freddie Perdigão, do SNI, e Antônio Vieira, do Cenimar, que aprovaram o local:

Segundo Guerra, em retribuição à utilização dos fornos, a Usina recebia benefícios dos militares. Em um período de dificuldades econômicas, os usineiros da região estavam pendurados em dívidas, com exceção da Usina de Cambahyba, que tinha acesso fácil a financiamentos e outros benefícios que o Estado poderia prestar8. Além disso, Guerra afirma que Freddie Perdigão solicitou que ele sabotasse as outras usinas concorrentes de Cambahyba, jogando carbureto na plantação e queimando a cana de açúcar. O ex-delegado contou com a ajuda de dois funcionários da usina, Zé Crente e Vavá, que davam cobertura para que nenhum imprevisto ocorresse. Zé Crente já faleceu e o ex-motorista Erval Gomes da Silva, o Vavá, é única testemunha viva da queima dos de corpos9:

O forno da usina era enorme, ideal para transformas em cinzas qualquer vestígio humano. E o melhor para eles: pertencia a uma única família. Não havia sócios, logo qualquer envolvimento de outras pessoas, além da família Ribeiro, estaria descartado.6

Quem pilotava o forno era o gerente, chamado Zé Crente, e outro funcionário, Vavá. O forno nunca era desligado e as operações passaram a ocorrer no fim do expediente. Zé crente e Vavá davam cobertura para que nenhum imprevisto acontecesse, como, por exemplo, um funcionário

No depoimento para a Comissão Nacional da Verdade (CNV), Guerra confirmou que um dos motivos para a escolha da Usina foi o fato de que ela era a única que possuía um único dono, enquanto as outras eram controladas por grupos econômicos, dificultando o estabeleci-

4 Op. Cit., p. 51.

7 Depoimento para a Comissão Nacional da Verdade em 23 de Julho de 2014.

5 Op. Cit., p.53.

8 Guerra, 2012, p.58.

6 Op. Cit., p.52.

9 Comissão Nacional da Verdade, Relatório Final, Parte I, p. 521.

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“queima de arquivo” pelo ex-delegado, diante de João Lysandro Ribeiro, também conhecido como João Bala, filho do ex-vice-governador Hely Ribeiro, Vavá e do cabo do Exército Marco Antônio Povoleri, que trabalhou no DOI-CODI do Rio de Janeiro. O corpo do tenente teria sido jogado ao forno para apagar qualquer resquício do crime.

voltar por ter esquecido um objeto.10

Guerra identificou, no depoimento prestado à CNV, as vítimas que foram incineradas: João Batista Rita, Joaquim Pires Cerveira, David Capistrano da Costa, João Massena Melo, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, Eduardo Collier Filho, José Roman, Luiz Ignácio Maranhão Filho, Armando Teixeira Fructuoso, Thomaz Antônio da Silva Meirelles Netto, Ana Rosa Kucinski e seu marido, Wilson Silva.

Desde a publicação do livro, porém, houve uma contestação sobre a possibilidade da cremação dos corpos a partir de declarações da filha do ex-vice-governador Hely Gomes, Cecilia Ribeiro Gomes. Em um vídeo publicado na internet12, ela afirma que Hely nunca foi amigo íntimo de Guerra e que nunca teve uma casa em Atafona, como a que o ex-delegado alega ter frequentado. Além disso, ela diz que seria impossível cremar corpos na usina pelo tamanho dos fornos, e que o seu funcionamento 24 horas por dia inviabilizaria a ocorrência desses crimes sem que ninguém presenciasse.

O ex-delegado afirmou também ter matado o tenente Odilon Carlos de Souza nos anos 1980: Quando o SNI começou a se desmantelar por conta da abertura política, houve uma série de assassinatos de pessoas que serviam ao regime, uma grande queima de arquivos comandada pelos militares, que temiam que seus crimes fossem revelados. (...). Foi quando me deram a ordem para matar o tenente Odilon. Ele tinha se tornado um homem perigoso e estava incomodando o Coronel Perdigão. Essa missão tinha um significado grande para mim. Eu tinha uma grande desconfiança de que Odilon era o assassino de Rosa Maria Cleto, minha mulher, morta em 2 de dezembro de 1980. (...) - matou minha mulher para colocar a culpa em mim. O olho dele cresceu e ele passou a fazer trabalhos por conta própria, pegar empreitadas nos estados vizinhos. Eu avisei o Coronel Perdigão e ele me pediu que o eliminasse.11

Em maio de 2012, o ex-delegado visitou a usina acompanhando uma equipe de peritos da CNV. Durante essa visita, o delegado federal Kandy Takahashi localizou Erval Gomes da Silva, o Vavá13. No encontro, Vavá refutou todas as alegações de Cláudio Guerra e afirmou não o conhecer, porém, ao ser colocado em uma ligação via Skype com o ex-delegado, identificou-o de pronto: "Oi, doutor Guerra!"14. O delegado federal Takahashi quis levá-lo a Vitória para prestar um depoimento. Quem o impediu de ir foi o advogado Carlos Alberto Tavares Senra, acionado após a mulher de Vavá procurar a vereadora Cecília, filha do dono da usina, Hely Ribeiro15.

Guerra afirma que matou o tenente após uma pausa de uma viagem de rotina entre Vitória e Rio de Janeiro, na hora do almoço. O tenente do Exército Odilon Carlos de Souza teria sido morto por

12 Resposta de Cecília Ribeiro Gomes à Cláudio Guerra no canal do youtube. YouTube, 18 maio de 2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8nfP6mgMh7g&feature=player_embedded> 13 Comissão Nacional da Verdade, Relatório Final, Volume I, p. 802.

10 Op. Cit, p.52.

14 Auler, 2013.

11 Guerra, 2012, p. 198.

15 Op. Cit.

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Em nova diligência da CNV na Usina Cambahyba, em 10 agosto de 2014, peritos apuraram que o ex-delegado mantinha relações com funcionários que lá trabalharam na década de 1970. No laudo pericial16, há fotos da filha do ex-delegado com a filha do "Vavá", o que revela que de fato se conheciam. Além disso, duas informações obtidas pela equipe pericial da CNV reforçam a verossimilhança das declarações do ex-delegado: a data de fabricação das caldeiras, em 1974, como consta na placa instalada no local, e o tamanho das portas dos fornos, suficiente para colocar um ou mais corpos, o que refutaria a alegação da filha do dono da usina. Também ficou constatado que os fornos alcançavam temperaturas eficientes para a queima de corpos17. Além disso, o cheiro dos corpos em cremação era amenizado pelo vinhoto utilizado no local, o que contribuía para a dissimulação da ação. A usina foi desativada em 1996 e, em 1998, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) considerou as terras improdutivas e aptas para a reforma agrária. Em 2000, o MST ocupou a propriedade da usina, porém os assentados foram despejados em 2006. Em junho de 2012, a Justiça Federal de Campos deu nova decisão favorável à desapropriação e reassentamento de famílias pelo Incra. Hoje cerca de 200 famílias ocupam a usina para a produção de diferentes gêneros alimentícios, no chamado Acampamento Luís Maranhão. A desapropriação, no entanto, ainda se encontra em processo judicial.

Fonte: Acervo CNV

16 Comissão Nacional da Verdade. Laudo pericial Usina de Cambahyba em 10 de agosto de 2014. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/images/pdf/laudos/relatorio_usina_cambahyba.pdf>

Fonte: Acervo CNV

17 Comissão Nacional da Verdade, Relatório Final, p. 512.

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CEV-RJ - Por que ele inventaria isto? Malhães – Porque ele é um inventor (...) CEV-RJ - Coronel, e estas histórias... o senhor já ouviu falar um pouco das histórias dele. Esta coisa que ele fala da irmandade, isto da usina. Tudo isto o senhor acha que não tem sentido? Malhães – Eu acho impossível o Perdigão ter mandado alguém ser queimado em uma usina. Fonte: MST/Rio de Janeiro

CEV-RJ - Por ser o que ele era?

Apesar dos fatos anunciados pelo ex-delegado, resta necessária a ressalva de que não há outro testemunho sobre os acontecimentos no local. Em depoimento prestado à Comissão Estadual do Rio de Janeiro, em 18 de fevereiro de 2014, Paulo Malhães, coronel reformado, alegou não ter conhecimento da cremação de corpos na Usina Cambahyba (o que pode se tratar de contra-informação):

Malhães - Por ser o que ele era. Acho impossível. CEV-RJ - Ele faria o quê? Malhães – Ele usaria o nosso processo. Entendeu? Então, eu acho que isto é falso. Ele é metido, eu larguei ele justamente por causa disto, porque ele é metido a falador, é metido a .. entendeu?18

CEV-RJ - Queimar nos fornos da Usina Cambahyba? Malhães – Ih, nunca, nem tinha conhecimento disto. (...) CEV-RJ - Mas nada destas coisas faz sentido para o senhor, o senhor acha que é tudo invenção? Quando o senhor ouve do Claudio Guerra, a Usina Cambahyba, isto para o senhor parece uma piada? Malhães – É piada. É piada. Isto é mentira.

18 Depoimento de Paulo Malhães para a Comissão Estadual da Verdade do Rio.

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Referências Bibliográficas

SÍTIO NÃO-IDENTIFICADO DE SÃO

AULER, Marcelo. O Algoz e o Crematório. Carta Capital, 22 de abril de 2013. Dispo-

JOÃO DO MERITI

nível em: < http://www.cartacapital.com.br/politica/o-algoz-e-o-crematorio-8528. html>

(Localização: Km 69 da Via Dutra, próximo a Vassouras)

COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO RIO. Testemunho de Paulo Malhães concedido em 18 de fevereiro de 2014, realizado em audiência pública “Testemunhos da Verdade”. Rio de Janeiro: CEV-Rio. Disponível em: <http://www.cev-rio. org.br/wp-content/uploads/2014/05/depoimentomalhaes.pdf>

No km 69 da BR-116, próximo a Vassouras, no dia 08 de novembro de 1968, o carro VW 349884-SP bateu na traseira de um caminhão, ocasionando a morte do casal João Antonio Santos Abi Eçab e Catarina Helena Xavier Pereira (nome de solteira), militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN). Nos jornais19, o acidente foi noticiado destacando a presença de armas e munição no automóvel e a suspeita policial de que os militantes estariam envolvidos na execução do capitão do Exército dos Estados Unidos Charles Rodney Chandler, ocorrida no dia 12 de outubro do mesmo ano.

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Brasília: CNV, 2014. _____. Depoimento de Cláudio Guerra concedido à Comissão Nacional da Verdade em 23 de julho de 2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=h9ydg5FLHdE> GONDIM, Carlos Henrique Naegeli. A desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária pelo descumprimento da função social da propriedade nas condicionantes ambiental e trabalhista: o caso da Usina Cambahyba. Conteúdo Jurídico, 19 dez 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-desapropriacao-de-imovel-rural-para-fins-de-reforma-agraria-pelo-descumprimento-da-funcao-social-da-propried,51544.html>

Esta foi a versão dada pela polícia política e pelo Exército, que rapidamente se dirigiram ao local do acidente e reportaram o ocorrido. Entretanto, segundo voto de Belisário Santos Jr, relator do processo de Catarina Helena Abi Eçad na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o carro não foi periciado, nem o caminhão no qual ele bateu, apenas uma metralhadora, que havia sido rapidamente apreendida. Fotos foram proibidas20 e testemunhas apresentaram informações desconexas.

GUERRA, Cláudio. Memórias de uma Guerra Suja. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.

Assim perdurou oficialmente a versão falsa sobre a morte do casal Abi

19 Jornais Diário de Notícias e Correio da Manhã, 09 de novembro de 1968. 20 Conforme informou o fotógrafo Julio Hofgeker ao jornal Última Hora no dia 22 de novembro de 1968.

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Eçab: como um infortúnio ocorrido em plena lua de mel. Versão esta que passou a ser publicamente contestada em 2001. Em depoimento para o jornalista Caco Barcelos, da TV Globo, e, posteriormente, em oitiva para a CEV-SP e CNV, o ex-soldado Valdemar Martins de Oliveira contou o que realmente haveria ocorrido com o casal. Este começou a ser investigado pelo Exército logo após a morte do militar americano, havendo a suspeita de que os estudantes estariam associados ao ocorrido. Durante algum tempo, seus movimentos foram acompanhados de perto e registados e, naquela tarde de novembro, um grupo de agentes da repressão foi enviado em operação para Vila Isabel, onde os dois jovens foram sequestrados.

destaca que: “Não obstante tenha ordenado uma série de diligências, o delegado Vanderico de Arruda da Morais [DOPS] não acredita que o casal de estudantes tenha participado dos assaltos a bancos ou da morte do capitão Chandler, oficial norte-americano metralhado”21. Todavia, ainda que criticassem a desorganização dos órgãos policiais e a fragilidade da história, os jornais em nenhum momento apontavam abertamente a possibilidade de assassinato ou apresentavam qualquer indicativo do envolvimento do sítio de São João do Meriti nos fatos. O sítio de São João do Meriti foi um dos centros clandestinos utilizados pela ditadura militar. Teria permanecido no esquecimento não fosse o testemunho de Valdemar Martins. Quando entrevistado pela equipe da rede Globo, Valdemar tentou descobrir a localização da chácara com o auxílio da emissora. Todavia, a busca não teve sucesso. Apesar da ausência de maiores informações, em entrevista para a CEV-Rio, o coronel Paulo Malhães confirmou a existência de uma casa e seu uso como local de tortura:

Como declara Valdemar, os agentes da repressão seguiram com o casal até a estrada da Cascatinha, quando o tiraram do carro com violência. João Antonio e Catarina foram ameaçados e interrogados sob tortura nesse trecho do caminho. Foram conduzidos desmaiados pelo restante do trajeto até um sítio em São João do Meriti. Lá, os agentes da repressão utilizaram um pau de arara improvisado que já estava no local para continuarem a tortura de Catarina Helena, que saiu novamente inconsciente. Igual foi o destino de João Antônio. Ao fim deste segundo interrogatório, o comandante da operação conclui que o casal não tinha mais utilidade para o Exército. Atirou na cabeça de ambos. Nenhum dos dois estava envolvido na morte do coronel americano.

CEV-RJ - E aqui na Baixada, quem é que fez um aparelho? Se não me engano em São João de Meriti.... CEV-RJ - Tinha isso, coronel? Um sítio aqui.? Disseram que tinha um sítio aqui? Um sítio aqui em São João, o senhor lembra disso?

Os corpos do casal foram então colocados no carro e o teatro foi encenado. Os jornais receberam as informações a serem noticiadas. As certidões de óbito de João Antônio e Catarina Helena registravam como causa da morte “fratura de crânio com afundamento (acidente)”. E o segredo do sítio de São João do Meriti permaneceu intacto.

Malhães – Conheci....22

Alguns jornais chegaram até a questionar a versão oficial da morte dos jovens, como consta na notícia intitulada “Delegado não acredita que estudantes mataram Chandler”, do Diário da Noite, no qual se

21 Diário da Noite, 19 de novembro de 1968, p.40. 22 Depoimento de Paulo Malhães a CEV-Rio.

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CASA DE SÃO CONRADO

Entretanto, não se tem conhecimento de mais informações sobre o sítio, inclusive sobre a sua localização e proprietário.

(Localização: desconhecida, São Conrado)

Referências Bibliográficas

A casa de São Conrado era um imóvel alugado pelo Cenimar (Centro de Informações da Marinha) que funcionava como um centro clandestino de prisão e de tortura no começo da década de 1970, no qual também atuava o DOI23, a partir do delegado Sérgio Paranhos Fleury e sua equipe. Com poucos testemunhos sobre a casa, sua localização permanece desconhecida, mas sua existência foi confirmada tanto pelo coronel Paulo Malhães à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, quanto pelo ex-sargento Marival Chaves, que afirmou em depoimento haver outro centro clandestino no Rio sob o comando de Sérgio Fleury, além da casa de Petrópolis. O jornalista Ottoni Guimaraes Fernandes Junior foi preso na casa de São Conrado em 21 de agosto de 1970. Em seu testemunho para a Comissão Nacional da Verdade (CNV), o jornalista descreve os momentos de sua prisão:

BRASIL. Direito À Verdade e À Memória: Comissão especial sobre mortos e desaparecidos. 1ª Edição. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. _____. Direito À Verdade e À Memória: Luta, Substanttivo Feminino: mulheres torturadas, desaparecidas e mortas. MERLINO, Tatiana; OJEDA, Igor (Org.). São Paulo/ Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres/ Secretaria Especial dos Direitos Humanos/ Editora Caros Amigos, 2010. COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO RIO. Testemunho de Paulo Malhães concedido em 18 de fevereiro de 2014, realizado em audiência pública “Testemunhos da Verdade”. Rio de Janeiro: CEV-Rio. Disponível em: <http://www.cev-rio. org.br/wp-content/uploads/2014/05/depoimentomalhaes.pdf> COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE RUBENS PAIVA. 402ª audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva (oitiva do depoimento de Valdemar Martins de Oliveira sobre o caso de Catarina e João Antonio Abi-Eçab).

Me botaram em um carro, me vendaram, me botaram um capuz. [...] Aí eles me levaram. Na época, eu achei estranho, porque mesmo encapuzado eu percebia que a gente estava indo para o sul e eu imaginava que eu ia ou para a Barão de Mesquita, que era o centro de tortura do DOI-CODI do Rio de Janeiro, ou para o Galeão, que era outro centro de tortura, ou para o Cenimar, que era no 1o Distrito Naval na praça Mauá. Eu estava indo pelo cheiro do mar, pelo barulho da onda, eu estava indo para o sul. Como militante eu tinha que conhecer a cidade como a palma da mão. Aí, depois passou uma estrada de terra, eu imaginei que podia estar indo para o Alto da Boa Vista, mas sabia que era

16 de maio de 2013. Disponível em: < http://www3.al.sp.gov.br/historia/comissao-da-verdade/fichaJoaoAntonioSantosAbiEcab.html> COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Brasília: CNV, 2014. Volume 1 (p.481-482) e volume 3 (p. 1090-1122). _____. Relatório sobre Centros Clandestinos. Brasília: CNV, 2014. JORNAL CORREIO DA MANHÃ, 09 de novembro de 1968. JORNAL DIÁRIO DA NOITE, 19 de novembro de 1968. JORNAL DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 09 de novembro de 1968. JORNAL ÚLTIMA HORA, 22 de novembro de 1968.

23 Depoimento de Paulo Malhães para Comissão Estadual da Verdade do Rio.

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Referências Bibliográficas

para o sul e estranhei muito isso. Aí eles pararam em um pátio de cascalho, os policiais me agarraram pelo braço, descemos uma escada, uns degraus de pedra, entramos em uma sala de madeira que dava acesso por sua vez a uma sala com piso de madeira, eu vou contar esse detalhe porque depois tem como identificar a casa. Então eu percebi claramente, primeiro, eu passei um patamar, devia ser uma ligação entre essa parte onde estava a escada e a casa, a casa era mais sólida, mas você percebia que o piso era de madeira. Eles me jogaram no chão, começaram a me torturar, já no chão desse quarto, no nível da entrada.24

ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Projeto Brasil: Nunca Mais. São Paulo: Editora Vozes, 1985. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório sobre Centros Clandestinos de Tortura. Brasília: CNV, 2014. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório Final. Brasília: CNV, 2014. _____. Testemunho de Ottoni Fernandes concedido em 12 de novembro de 2012, realizado na 1ª audiência pública da CNV com a CEV-São Paulo. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=faHShtLLdis>

O jornalista identificou que a casa era composta de dois pavimentos. Na parte superior havia uma varanda e, em baixo, um banheiro que tinha como uma das paredes a pedra do morro em que se localizava a casa25. Tratava-se de uma residência de alto padrão em estilo colonial. Porém, não havia luz nem água e toda energia era fornecida por um pequeno gerador. Ainda, da varanda era possível ver o antigo Hotel Nacional: a casa estava na encosta oposta à torre do hotel.26

COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO RIO. Testemunho de Paulo Malhães concedido em 18 de fevereiro de 2014, realizado em audiência pública “Testemunhos da Verdade”. Rio de Janeiro: CEV-Rio. Disponível em: <http://www.cev-rio. org.br/wp-content/uploads/2014/05/depoimentomalhaes.pdf>

É sabido, pelo testemunho do jornalista, que no local os presos políticos sofriam tortura. Ele relatou a tortura do preso político Eduardo Collen Leite, o Bacuri, morto em São Paulo após passar pela casa de São Conrado. Na casa passavam cerca de 20 policiais comandados pelo delegado Fleury e pelo comandante Amorim Vale que aplicavam torturas físicas, como espancamentos, pau de arara e choques elétricos. Até hoje não se sabe a sua localização exata.

24 Comissão Nacional da Verdade, Volume I, p.804. 25 Arquidiocese de São Paulo. Projeto Brasil: Nunca Mais, Tomo V, Vol.3, p.405. 26 Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final, Vol I, p.806.

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RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE MEMÓRIA


INTRODUÇÃO

Esta seção se dedica às propostas de recomendações de políticas públicas voltadas para a concretização do direito à memória e à verdade. Passados mais de 50 anos do golpe, pouco se avançou institucionalmente em termos de reparação simbólica. As propostas reunidas foram elaboradas a partir da constatação de ausências significativas de políticas públicas de memorialização, de caráter cultural, educativo, de homenagem e, principalmente, de iniciativas relativas aos lugares utilizados como centros de prisão e tortura durante a ditadura militar pós-64. Os processos sociais de memorialização de experiências vividas na ditadura – por meio de decisões e ações no espaço público envolvendo instituições estatais e atores sociais – surgem nas transições políticas e se desenvolvem de formas variadas em períodos de normalização democrática, em especial, nos países da América Latina. Trata-se de processos que estão intimamente relacionados com as demandas por verdade e justiça de atores que foram afetados pela repressão específica da ditadura, como ex-presos políticos, vítimas de torturas e perseguições, familiares de mortos e desaparecidos. Essas iniciativas, cuja origem se remete às lutas provenientes de movimentos de direitos humanos e outras formas de organização político-social requerem, no entanto, reco-


nhecimento e suporte institucional do Estado para viabilizar propostas de trabalho de memórias subterrâneas e portadoras de narrativas, que produzem sentidos sobre o passado, assim como sobre sua atualização no presente. Constituem uma luta pela legitimidade política de narrativas até então desconsideradas, cujo reconhecimento público contribui para a transmissão de memórias coletivas. O contexto destas reivindicações é marcado, cada vez mais, por um consenso em torno da ideia de que não se pode construir uma democracia sem esquecer o passado. Portanto, trazer à tona as memórias de um passado repressivo ditatorial é uma intervenção crucial para se refletir criticamente sobre a violência no contexto presente em que se vive. Nessa perspectiva, as demandas por memória normalmente partem de iniciativas de grupos e indivíduos que encontram no Estado um espaço privilegiado para que os processos de memorialização sejam concretizados por meio de reparações, estabelecimento de datas comemorativas ou emblemáticas, memoriais, renomeação de logradouros, centros de memória e medidas de musealização – iniciativas conhecidas como “políticas públicas de memória”. Nesse sentido, o Estado tem um papel primordial em tais empreendimentos, porque ele é o responsável por elaborar e executar políticas de memória, seja como pauta política ativa, seja por omissões. É por meio do seu reconhecimento formal ou simbólico que algumas narrativas se estabilizam, se desenvolvem, ganham visibilidade e têm chance de exercer seu potencial pedagógico com maior amplitude. A implementação de políticas de memória não implica a imposição de uma única memória, mas o oferecimento de espaços de diálogo e reflexão, que tragam para a superfície memórias subterrâneas de um passado de violência e repressão. No estado do Rio de Janeiro, até os dias atuais, não foram desenvolvidas políticas públicas de memorialização e reparação simbólica calcadas no direito à verdade, à memória e à justiça. As medidas de memória implementadas desde o fim ditadura militar foram inauguradas em gestões

pontuais durante a década de 1980 e início dos anos 1990, sempre a partir de reivindicações de familiares de mortos e desaparecidos e ex-presos políticos, e tem um caráter frágil, fragmentado e disperso. Esse processo ocorre a despeito da posição central que o estado do Rio de Janeiro teve, enquanto palco de resistência e repressão, de eventos simbólicos de contestação e lugares importantes da estrutura da repressão, dentre eles os centros oficiais e clandestinos de prisão e tortura. No que se refere às iniciativas em nível municipal, houve a nomeação de logradouros públicos como homenagens aos mortos e desaparecidos da ditadura militar, concentradas na década de 1980 e realizadas em áreas periféricas da cidade do Rio de Janeiro e em zonas de expansão de fronteira imobiliária, localizadas nos bairros da Barra da Tijuca, Recreio, Santa Cruz, Paciência e Bangu (ver Anexo III). Estas foram iniciativas e conquistas importantes dos movimentos de familiares e ex-presos políticos reunidos no GNTM/RJ acolhidas por parlamentares. Outras iniciativas pontuais ao longo dos últimos vinte anos foram relativas a nomeações de logradouros e alguns monumentos de homenagem e placas em edifícios no Rio de Janeiro, Nova Iguaçu e Petrópolis. Por sua vez, na década de 1990, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ conseguiu identificar três cemitérios que receberam mortos enterrados como indigentes durante os anos 1960 e 1970, os cemitérios Ricardo de Albuquerque, Cacuia e Santa Cruz. Somente em dezembro de 2011, após anos de reivindicações dos familiares de mortos e desaparecidos e ex-presos políticos, foi inaugurado o Memorial do Cemitério de Ricardo de Albuquerque, no qual constam os nomes dos 14 militantes assassinados pelos agentes da repressão. Mais recentemente, em um cenário mais amplo de mobilização em decorrência do marco dos 50 anos do golpe, a Comissão da Verdade do Rio, em conjunto com as secretarias estaduais de Assistência Social e Direitos Humanos e de Educação, promoveram a renomeação da Escola Presidente Costa e Silva, em Nova Iguaçu, para o nome Abdias


Nascimento, no dia 13 de dezembro de 2013. Além disso, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, por meio da campanha “Trilhas da Anistia”, ergueu o “Monumento ao Nunca Mais”, na Cinelândia, em homenagem aos militares cassados com o golpe de 1964. Nesse contexto, também foram instaladas placas pela prefeitura do Rio de Janeiro em um projeto denominado “Circuito da Liberdade” que, no entanto, segue representando uma iniciativa pontual e sem conexão com outras iniciativas e atividades. Por fim, na Praça Lamartine Babo na Tijuca, o Sindicato dos Engenheiros do Estado do Rio de Janeiro instalou um busto em homenagem a Rubens Paiva, próximo ao 1º Batalhão de Polícia do Exército, onde funcionou o DOI-CODI do 1o Exército. A despeito dessas iniciativas pontuais, a maioria dos símbolos da ditadura permanece onde foram instalados, nas áreas centrais da cidade do Rio de Janeiro e em bairros como Leme e Maracanã, na forma de logradouros públicos e monumentos que homenageiam ditadores, além dos nomes de escolas públicas, como as Escolas Municipais Presidente Arthur Costa e Silva em Botafogo, Presidente Médici em Bangu e Castelo Branco em Sulacap no município do Rio de Janeiro. Dentre os logradouros e monumentos destacam-se a Avenida Castelo Branco e a Rua Presidente Ranieri Mazzili no município de Petrópolis; a estátua do Presidente Castelo Branco no Leme no munícipio do Rio e a Ponte Presidente Costa e Silva, mais conhecida como Ponte Rio-Niterói, que recentemente teve seu pedido de renomeação negado pela Justiça Federal. Assim, as iniciativas públicas de memória desenvolvidas pelo governo estadual e municipal se revelam ainda mais frágeis quando comparadas com a permanência de homenagens a ditadores e a fatos políticos relacionados aos “feitos” do regime militar. Simbolizam a promoção da amnésia histórica, constituem a negação de medidas de reparação simbólica e abrem caminho para as continuidades da violência de Estado no presente.

Na contramão da tendência anterior, o processo de construção de arcabouços jurídicos e institucionais que visam à recuperação da memória histórica de períodos de repressão militar tem assistido a um crescimento gradual, tanto em nível internacional quanto em nível nacional. Em um terreno sujeito a disputas, apropriações, tensões e omissões, este avanço reflete o grau de desenvolvimento de experiências pioneiras de políticas de memorialização de alguns países como Alemanha e Espanha na Europa, e Argentina, Chile e Uruguai na América Latina. Em âmbito internacional, tem-se como referência normativa o documento “Princípios Fundamentais para as Políticas Públicas sobre Lugares de Memória” do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do MERCOSUL (IPPDH) que, com o objetivo de estimular a integração regional, promove o desenvolvimento de políticas públicas de memória, como forma de aprofundar as memórias e identidades dos membros do MERCOSUL. Este arcabouço aponta para: (i) a valorização de memórias historicamente subjugadas, (ii) a centralidade da participação da sociedade e, em especial, dos atingidos nesse processo, (iii) a importância dos lugares de memória como patrimônio histórico e cultural, (iv) a possibilidade de o Estado cumprir suas obrigações em relação ao direito à verdade, à memória, e à justiça, bem como de reparação simbólica. No Brasil, em nível federal, a lei que instituiu a Comissão Nacional da Verdade, Lei no 12.528 de 18 de novembro de 2011, prevê políticas públicas como forma de prevenção à continuidade da violência institucional em seu art. 3º, VI. Em nível estadual, a Lei no 6.335/12 que instituiu a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro também aponta, no art.4º, V, como um dos objetivos centrais da comissão: “recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos”. Além disso, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), instituído pelo Decreto Federal no 7.037 de 21 de dezembro de 2009,


no que concerne ao tema da memória e justiça - na Diretriz 24, objetivo estratégico I, ações programáticas “a”,“c” e “d”- prevê a organização de recursos para criação e gestão de centros de memória sobre o período de repressão política no país, bem como a identificação, por meio de sinalizações e placas, de locais que tenham sido espaços de violações e crimes contra a humanidade. Além disso, o PNDH-3– Diretriz 25, objetivo estratégico I, ação programática “c” – previu a proibição de designação de estabelecimentos e logradouros públicos com nomes de indivíduos direta ou indiretamente responsáveis por violações de direitos humanos, assim como a alteração da designação de locais que contenham nomes de agentes da repressão. No campo da cultura, o Plano Nacional de Cultura no art. 1º, V e VI, prevê o direito à informação, à crítica cultural e à memória. Ao se considerar estas previsões, no que se refere ao desenvolvimento de políticas culturais, deve-se compreender os lugares de memória recomendados para futuros centros de memória como bens culturais e passíveis de musealização de acordo com o Decreto 8.124/2013 (que regulamenta os termos do Estatuto dos Museus - Lei no 11.904/2009 – e da lei que institui o Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM - Lei no 11.906/2009). De acordo com o referido Decreto, em seu art. 2º, bens culturais são “todos os bens (...) que se transformam em testemunhos materiais e imateriais da trajetória do homem sobre o seu território”. O mesmo dispositivo legal, em seu inciso III prevê que bens culturais que podem ser musealizados são aqueles “de interesse público (...) considerados individualmente ou em conjunto como portadores de referência ao ambiente natural, à identidade, à cultura e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (grifo nosso). As previsões deste quadro jurídico recente, relativo ao campo cultural, recepciona de modo coerente as propostas de transformação e musealização de ex-centros de prisão e tortura em centros de memória.

O Plano Nacional Setorial de Museus, elaborado para oferecer as principais coordenadas em eixos de setor museológico e implementado pelo IBRAM nos termos do inciso XI do art. 3º da Lei 12.343/2010 (Plano Nacional de Cultura), oferece também referências importantes que acolhem a implementação de políticas públicas de memória e sua relação com a sociedade, especialmente o que é previsto no Eixo II sobre cultura, cidade e cidadania pelas Diretrizes no 3, 4, 9 e 12. Estas diretrizes asseguram o acesso ao conhecimento por meio de espaços museais como principal fonte de formação cidadã, compreendida também com a relação do indivíduo e seu pertencimento à uma sociedade política, que partilha símbolos, narrativas e imaginários comuns. Neste sentido, a Diretriz no 4 prevê o espaço do museu“como mecanismo dinâmico de referência cultural para as cidades, como um bem simbólico necessário para a afirmação de identidades, valorizando a memória e os saberes, promovendo a integração das comunidades locais”. A relação do espaço da cidade – e, especificamente, a identificação de lugares de memória – com atividades educativas voltadas para os direitos humanos está embasada pela Diretriz no12 na qual se afirma “a cidade como espaço democrático propício à musealização, fomentando ações museológicas de largo espectro, em interlocução com estratégicas patrimoniais que a legitimem enquanto cidade educadora”. Além disso, o plano prevê intervenções governamentais e programas de apoio à revitalização de espaços públicos a fim de que sejam usados como programas museais, de acordo com a Diretriz 9, na qual se prevê, em sua Estratégia 1“a restauração de espaços públicos para a instalação de centros de memória”. Em suma, as políticas públicas de memória que englobam não somente a construção de centros de memória, mas também sinalizações por meio de placas, memoriais, monumentos e renomeação de logradouros estão embasadas por um arcabouço jurídico institucional que deve ser articulado à concretização do direito à verdade, à memória e à justiça.


A partir da concepção de políticas públicas de memória, do contexto de ausências de iniciativas permanentes e com o devido respaldo do Estado do Rio de Janeiro e considerando-se o arcabouço jurídico acima levantado, serão apresentadas, a seguir, propostas de recomendações a serem desenvolvidas pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, com a condição central de serem construídas em conjunto e com o protagonismo aos atores da sociedade civil. É certo que a adoção dessas medidas não implica um esgotamento ou superação do tema da ditadura militar brasileira; ao contrário, a memória como um instrumento dinâmico está sempre sujeita a críticas, transformações e ressignificações. A implementação dessas recomendações pode suscitar novas discussões e reivindicações, mas elas consolidam uma plataforma disparadora para políticas públicas de memória , ainda não existentes no Estado do Rio de Janeiro. As recomendações a seguir estão divididas em três eixos de atuação: (i) Centros de Memória e Memoriais, que dispõe sobre a construção de espaços musealizados articulados a atividades culturais e educativas sobre o período da ditadura militar brasileira. (ii) Monumentos, Sinalizações e Marcas de Memória, que aponta medidas de sinalizações em lugares que foram centros de repressão, construção de monumentos em homenagens às vítimas do período ditatorial e renomeação de logradouros públicos. E, por fim, (iii) Políticas de Educação e Cultura em Direitos Humanos, no qual são recomendadas intervenções de cunho cultural que promovam uma educação voltada para os direitos humanos e que enfatizem o período da ditadura militar.


EIXOS

Neste sentido, serão apresentadas a seguir cinco recomendações que tiveram por base as demandas sociais históricas pelo conhecimento da verdade e pela possibilidade de ressignificação de lugares relacionados à violência do passado por meio da produção de memória social; as experiências relevantes de outros países e estados brasileiros; e o arcabouço jurídico-normativo específico existente no Brasil.

EIXO I: CENTROS DE MEMÓRIA E MEMORIAIS

1. Criar um centro de memória sobre a violência

As recomendações a seguir referem-se à criação de centros de memória e memoriais em lugares que serviram como centros prisão e tortura durante a ditadura militar no Estado do Rio de Janeiro. Centros de memória podem ser compreendidos como suportes complexos de memória e reflexão sobre o período da ditadura e sobre as experiências lá vividas por diversos grupos sociais, podendo ser instalados em lugares que foram ou não centros de prisão. Esses lugares concentram também comemorações e homenagens àqueles que servem de referência, de forma ativa e pedagógica. A função central destes dispositivos consiste em evocar a história e as memórias por meio de diferentes atividades artístico-culturais, pedagógicas e de pesquisa. Assim, podem propiciar a ressignificação simbólica de lugares e também promover a relação entre processos sociais vividos no passado e os que se vivem no presente, por meio do acesso à informação e à promoção da reflexão crítica. Por sua vez, os memoriais, que podem ou não estar instalados em locais significativos de memória, constituem uma intervenção de caráter permanente, com o objetivo de preservar e divulgar informações sobre um evento histórico ou realizar homenagem à pessoas, fatos e eventos. O memorial funciona, então, como um mecanismo de recordação, sem estar necessariamente vinculado a um acervo artístico ou documental, de forma que mantenha presente uma memória específica.

de Estado, a resistência e os direitos humanos no edifício sede do antigo DOPS/GB, situado à Rua da Relação n o 40, centro, na cidade do Rio de Janeiro, com autonomia funcional e econômica, nos seguintes termos:

• Destinar a integralidade do prédio à construção do centro de memória, que contemple as áreas museológica, pedagógica, cultural, de pesquisa em direitos humanos e de suporte aos órgãos estaduais de direitos humanos e aos movimentos sociais; e que ofereça equipamentos educativos e culturais públicos; • Destinar, por meio de lei específica, orçamento público para o processo de construção e implementação, assim como para a manutenção do centro de memória; • Instituir um regime compartilhado de gestão, por meio de um

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conselho gestor, composto por membros do Estado, representantes de grupos da sociedade civil e de universidades atuantes na temática da ditadura e da violência de Estado, com plena autonomia funcional para a construção, a implementação e a manutenção do centro de memória;

portanto, em um símbolo material da violência estatal antes e durante a ditadura militar. Funcionando entre 1962 e 1975, o DOPS/GB foi um órgão central na estrutura da repressão durante a ditatura por ter sido encarregado da produção e fornecimento de informações; centralização da informação de outros estados, execução de operações e buscas para a perseguição política; monitoramento e censura; execução de prisões arbitrárias e de pessoas ainda desaparecidas; e torturas de presos políticos e mortes não investigadas em suas próprias dependências. O tombamento do edifício pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), de 1987, é justificado pelo reconhecimento do edifício como: “marco e testemunho histórico das lutas populares pela conquista de liberdade e lugar de memória dos que ali foram torturados pela defesa de suas ideias políticas”. A luta social histórica pelo acesso aos arquivos e pela ressignificação do lugar tem reunido diferentes iniciativas de familiares de mortos e desaparecidos, de ex-presos políticos, perseguidos e outros atores sociais. Como seu desdobramento, no ato de posse da CEV-Rio, foi selado o compromisso, pelo então Governador Sergio Cabral, de construção do centro de memória e a tarefa de formação de um grupo de trabalho para formular um plano de uso pela Comissão. Este documento foi formulado pelo Grupo de Trabalho DOPS no âmbito da CEV-Rio - composto por membros da comissão, dos movimentos sociais, de instituições não governamentais e das universidades - e devidamente entregue ao Governo do Estado do Rio de Janeiro. Para maior detalhamento sobre o lugar, pode ser consultada a Topografia da Repressão, neste relatório.

• Garantir o acesso ao fundo arquivístico das Polícias Políticas do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, assim como ao acervo documental do Instituto Médico Legal relativo ao período 1964-1985, por meio de suportes digitais, no centro de memória, sem prejuízo de outros fundos documentais pertinentes sobre a ditadura e violência de Estado.

Órgão responsável: Secretaria de Estado da Casa Civil.

Órgãos colaboradores: Secretaria de Estado de Cultura; Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos; Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – ALERJ.

Justificativa:

No Rio de Janeiro, diferentemente do que ocorre nos Estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, não há nenhum centro de memória sobre a ditadura. O edifício do antigo DOPS/GB, como bem cultural público, passível de musealização, de acordo com o Decreto federal 8.124 de 17/10/2013, art. 2o, III, cumpre todos os requisitos para exercer essa função pública uma vez que: i) é uma referência

O edifício situado à Rua da Relação, no 40, que foi sede da Repartição Central de Polícia da República a partir de 1910 abrigou a polícia política de Getúlio Vargas, desde 1933, e foi uma agência fundamental da repressão durante a ditadura militar após 1964, constituindo-se,

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em termos materiais e imateriais de distintos períodos da história do aparato repressivo republicano brasileiro e, especialmente, do período da ditadura militar entre 1964 e 1985, sendo tombado pelo INEPAC por este motivo; ii) encontra-se preservado enquanto testemunho material daquele período, apesar do mal estado de conservação do edifício; iii) tem sido reivindicado pelos movimentos de perseguidos, ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos e outros atores sociais, desde o fim da ditadura até os dias de hoje; e iv) encontra-se atualmente sem destinação efetiva de suas instalações e em permanente deterioração, dispondo em seu interior, inclusive, de documentação relevante sobre sua atuação durante a ditadura, conforme pareceres do Arquivo Nacional e do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.

mória, fortalecimento de ações de apropriação de outros espaços de memoria e investigação sobre outros centros clandestinos,

• Memoria da Resistência - São Paulo, Brasil. 2008. O Memorial da Resistência é a primeira experiência de um centro de memória no Brasil e a única desenvolvida em um ex-centro de prisão e tortura.

Fundamento jurídico: Decreto Federal nº 7037/2009 - Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH III, Eixo VI; Diretriz 24, objetivo estratégico I; Lei Federal nº12.528/11, Art.1o; Lei Estadual nº6335/12 , Art. 2º; Art. 4º, V; Lei Estadual nº 7035/2015 – Sistema Estadual de Cultura e Plano Estadual de Cultura; Decreto Federal nº 8.124/2013 Plano Nacional Setorial de Museus; Lei Federal nº 12.343/10 – Plano Nacional de Cultura; Lei Federal nº 11.904/2009 – Estatuto de Museus.

Experiências relevantes: • Museo de la Memoria. Rosário, Argentina. 1998. Com a missão institucional de promover o acesso ao conhecimento e à pesquisa sobre direitos humanos na Argentina e na América Latina o museu, além de abrigar exposições permanentes e temporárias, é integrado por um centro documental, uma biblioteca especializada, área de extensão educativa e auditório para mais de 120 pessoas.

• Archivo Porvincial de la Memoria e Ex-D2 - Departamento de Informaciones de la Policía de Córdoba (D2) - Córdoba, Argentina. 2006. Com uma proposta de gestão compartilhada e participativa, o Ex-D2 tem como áreas de trabalho aquelas relativas à documentação e conservação, pesquisa de fundos documentais sobre o período, acervo audiovisual, arquivo de história oral, promoção da pedagogia da me-

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2. Criar um centro de memória no imóvel que

Órgãos colaboradores:

funcionou como centro clandestino de prisão,

Secretaria de Estado de Cultura; Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos; Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – ALERJ; Prefeitura de Petrópolis; Fundação de Cultura e Turismo da Prefeitura de Petrópolis; Câmara dos Vereadores do Município de Petrópolis.

tortura e morte, conhecida como Casa da Morte, na cidade de Petrópolis, situada à Rua Arthur Barbosa 50 (antigo 668-A), no Quarteirão Suíço, bairro de Caxambu, de modo a:

Justificativa:

• Garantir a conclusão da desapropriação do imóvel;

A chamada Casa da Morte funcionou como centro clandestino de tortura, execução e desaparecimento forçado durante a ditadura militar, especialmente entre os anos de 1971 e 1974. A casa foi cedida ao Exército por seu proprietário para que o Centro de Informações do Exército (CIE) montasse um centro clandestino para onde encaminhou presos políticos para serem interrogados, sob torturas, visando a desmobilização dos grupos armados de resistência à ditadura.

• Construir um centro de memória que contemple as áreas museológica, pedagógica, cultural e de pesquisa histórica e em direitos humanos; • Destinar, por meio de lei específica, orçamento público para o processo de construção e implementação, assim como para a manutenção do centro de memória;

A histórica luta de familiares de mortos e desaparecidos, ex-presos políticos, perseguidos e outros atores sociais, em especial, de Inês Etiene Romeo, sua única sobrevivente, buscou o reconhecimento público do relato e ainda persegue o conhecimento da verdade sobre o que foi o órgão repressivo instalado naquela casa, a identificação do paradeiro dos mortos e desaparecidos políticos que por lá passaram, assim como as identidades dos agentes do Estado e sua responsabilidade pelas violações de direitos humanos nela cometidas. Nesse sentido, a reivindicação pela ressignificação deste lugar gerou, em 23/08/2012, a assinatura do Decreto Municipal 966/2012 pelo então Prefeito de Petrópolis Paulo Mustrangi, reconhecendo o interesse público para fins de desapropriação do imóvel.

• Instituir um regime compartilhado de gestão, por meio de um conselho gestor, composto por membros Estado, representantes de grupos da sociedade civil e da universidade atuantes na temática da ditadura e da violência de Estado, com plena autonomia funcional para a construção, a implementação e a manutenção do centro de memória.

Órgão responsável: Secretaria de Estado da Casa Civil.

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A casa de Petrópolis é o único centro clandestino do Estado de que se tem conhecimento preciso, mesmo que ainda incompleto, acerca de sua localização e funcionamento, o que a torna um lugar crucial na história recente do Estado do Rio de Janeiro. A Casa da Morte, como bem cultural passível de musealização, de acordo com o Decreto federal 8.124 de 17/10/2013, art. 2o, III, cumpre todos os requisitos para exercer essa função pública uma vez que: i) é uma referência em termos materiais e imateriais no que se refere ao aparato repressivo do período da ditadura militar entre 1964 e 1985, ii) encontra-se preservado enquanto testemunho material deste período, iii) tem sido demandada pelos movimentos de perseguidos, ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos e outros atores sociais, desde o fim da ditadura até os dias de hoje, iv) tem a potencialidade de impulsionar o conhecimento sobre a história da articulação de forças políticas pró-ditadura na região de Petrópolis, assim como proporcionar o reconhecimento de um possível segundo centro clandestino.

2004. Localizado na Rua Virrey Cevallos 638, a casa de propriedade privada passou a ser utilizada pelas Forças Aéreas, Polícia Federal e Exército como centro clandestino de detenção durante o ano 1977. O grupo “Vecinos de San Cristóban contra la impunidad” tomou a iniciativa de iniciar trabalhos de recuperação do local. A desapropriação do imóvel, considerada de utilidade pública, ocorreu em 2004.

Fundamento jurídico: Decreto Federal nº 7037/2009 - Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH III, Eixo VI; Diretriz 24, objetivo estratégico I; Lei Federal nº12.528/11, Art.1o; Lei Estadual nº6335/12 , Art. 2º; Art. 4º, V; Lei Estadual nº 7035/2015 – Sistema Estadual de Cultura e Plano Estadual de Cultura; Decreto Federal nº 8.124/2013 Plano Nacional Setorial de Museus; Lei Federal nº 12.343/10 – Plano Nacional de Cultura; Lei Federal nº 11.904/2009 – Estatuto de Museus.

Experiências relevantes:

3. Criar de um centro de memória nas instala-

• Casa Memoria José Domingo Cañas - Santiago, Chile. 2002.

ções da sede do Ypiranga Futebol Clube, situada

Casa privada, localizada na rua José Domingo Cañas no 1367, em que funcionou como centro de detenção e tortura a cargo da Direção de Inteligência Nacional em 1974, com o nome de“Cuartel Ollague”. No ano de 1999, iniciou-se um movimento em defesa da casa, que tinha por objetivo construir o Coletivo de Rescate de la Casa de José Domingo Cañas 1367. Em 2002, um dos lotes foi declarado Monumento Histórico Nacional.

na Avenida Presidente Sodré, no 22, Centro, na cidade de Macaé, nos seguintes termos:

• a) Garantir a desapropriação do edifício para a construção de um centro de memória que contemple as áreas museológica, pedagógica, cultural, de pesquisa e desportiva.

• Casa de Memoria Virrey Cevallos - Buenos Aires, Argentina.

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• b) Destinar, por meio de lei específica, orçamento público para o processo de construção e implementação, assim como para a manutenção do centro de memória.

“comunistas”, tendo eles se perfilado no muro externo do clube. A Coordenadoria Especial Macaé 200 anos, criada em 2013 para desenvolver um projeto de comemoração do aniversário da cidade previu a criação de um museu em suas instalações. Além disso, a demanda dos grupos locais de ex-presos políticos, de sindicatos e outros atores sociais, bem como o trabalho de memória realizado por estes em conjunto com a Comissão Municipal da Verdade de Macaé e em articulação com a CEV-Rio, geraram uma demanda à Prefeitura, em 2014, acerca das condições legais do edifício.

• c) Garantir a participação da sociedade civil local no processo de construção e implementação, assim como na gestão do centro de memória. Instituir um regime compartilhado de gestão, por meio de um conselho gestor do Centro, composto por membros Estado, representantes de grupos da sociedade civil e da universidade, com plena autonomia funcional no processo de construção, na implementação e na manutenção do centro de memória.

Macaé não dispõe, na região central da cidade, de um ginásio público que possa ser usado pela população local, nem para treinamento de equipes locais nem como espaço de memória sobre a cidade no período da ditadura. O Ypiranga Futebol Clube, como bem cultural passível de musealização, de acordo com o Decreto Federal 8.124 de 17/10/2013, art. 2o, III, cumpre todas as exigências para exercer essa função pública uma vez que: i) é uma referência em termos materiais e imateriais no que se refere ao aparato repressivo do período da ditadura militar entre 1964 e 1985 em Macaé, ii) encontra-se preservado em parte enquanto testemunho material daquele período, apesar do estado de deterioração de suas instalações iii) tem sido demandado por grupos de perseguidos e ex-presos políticos e outros atores sociais locais, iv) encontra-se atualmente sem destinação efetiva de suas instalações e em permanente deterioração e iv) tem a potencialidade de impulsionar o conhecimento sobre a história da cidade de Macaé no que se refere ao período da ditadura militar entre 1964 e 1985 e de servir a outras destinações públicas relevantes para a sociedade macaense.

• d) Disponibilizar o acervo documental do clube para consulta pública no centro de memória.

Órgão responsável: Secretaria de Estado de Cultura. Órgãos colaboradores: Secretaria de Estado de Esporte, Lazer e Juventude; Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos; Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – ALERJ; Prefeitura de Macaé; Fundação Macaé de Cultura da Prefeitura; Câmara dos Vereadores do Município de Macaé.

Justificativa: O Ypiranga Futebol Clube foi um dos três centros de prisão da Cidade de Macaé. Reconhecido centro da elite local, suas atividades sociais não foram suspensas durante o período em que, pelo menos, 160 presos políticos estiveram em cárcere, no ginásio do clube, em condições violadoras de seus direitos. Foi também naquele lugar que uma marcha católica ocorreu para excomungar os presos políticos por serem

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4. Tombar as instalações do Complexo Esportivo

Experiências relevantes:

Municipal Caio Martins e criar um memorial no

• a) Estádio Victor Jara – Santiago, Chile. 2003.

Ginásio Caio Martins, localizado à Rua Presiden-

Após o golpe em setembro de 1973, o estádio desportivo situado na zona oeste de Santiago – na época chamado Estádio Chile – foi usado como um centro de tortura e prisões, chegando a ter mais de 600 presos nos primeiros dias do regime ditatorial chileno. Em 2003, ele foi renomeado em homenagem ao cantor Victor Jara, vítima de graves torturas e assassinado pelos agentes da repressão no local. O espaço, que ainda funciona como um centro de atividades esportivas, possui uma placa que lembra as violações de direitos humanos cometidos no local com um poema do cantor chileno.

te Backer, s/n, Santa Rosa, na cidade de Niterói, com o objetivo de:

• Preservar a memória histórica do lugar e seu testemunho histórico relativo a sua função enquanto Presídio Caio Martins. • Resgatar e publicizar a história do estádio enquanto presídio durante a ditadura militar.

Fundamento jurídico: Decreto Federal nº 7037/2009 - Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH III, Eixo VI; Diretriz 24, objetivo estratégico I; Lei Federal nº12.528/11, Art.1o; Lei Estadual nº6335/12 , Art. 2º; Art. 4º, V; Lei Estadual nº 7035/2015 – Sistema Estadual de Cultura e Plano Estadual de Cultura; Decreto Federal nº 8.124/2013 Plano Nacional Setorial de Museus; Lei Federal nº 12.343/10 – Plano Nacional de Cultura; Lei Federal nº 11.904/2009 – Estatuto de Museus.

• Homenagear a resistência à ditadura militar e todos e todas que ali estiveram presos.

Órgão responsável: Secretaria de Estado de Cultura. Órgãos colaboradores: Secretaria de Estado de Esporte, Lazer e Juventude; Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos; Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – ALERJ; Prefeitura de Niterói; Secretaria de Cultura de Niterói; Câmara dos Vereadores do Município de Niterói.

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Justificativa:

período, iii) é um bem cultural que preserva uma memória coletiva e, portanto, possui valor histórico, cultural e de valor afetivo inestimável, e iv) tem sido demandado como um local de memória pelos movimentos de perseguidos, ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos e outros atores sociais, desde o fim da ditadura até os dias de hoje.

O Caio Martins foi o primeiro estádio na América Latina a ter parte de suas instalações utilizada como presídio, onde torturas foram cometidas contra os presos políticos. Estima-se que mais de mil pessoas lá estiveram presas, de acordo com testemunhos de ex-presos políticos. A histórica luta dos grupos de perseguidos e ex-presos políticos objetiva o reconhecimento público do que ali se passou, assim como o reconhecimento da luta levada a cabo pelos grupos de resistência à ditadura da cidade de Niterói. A construção de um memorial tem sido demanda recorrente dos grupos sociais locais, uma vez que o Caio Martins constitui um símbolo do que foi a repressão da ditadura na cidade. Em 4 de junho de 2012 foi realizada uma cerimônia da Comissão Estadual de Reparação do Rio de Janeiro no estádio para a concessão de reparação e a homenagem a ex-presos políticos. Em 17 de julho de 2013, no ato de posse da Comissão Municipal de Niterói, com a presença de representantes da Comissão Nacional da Verdade e da CEV-Rio, Benedito Joaquim dos Santos, ex-presidente do Sindicato dos Operários Navais, aos 84 anos, pediu que o estádio fosse transformado em um memorial.

Experiências relevantes: • a) Estadio Nacional - Santiago do Chile. 2014. O Estádio Nacional funcionou como “campo de concentração” entre setembro e dezembro de 1973, período imediato após o golpe militar no Chile e chegou a contar com 40 mil pessoas presas. Declarado monumento histórico nacional em 2003, conta com sete áreas de proteção especial (entre eles alguns vestiários, arquibancadas e corredores que possuem relação direta com o período de cárcere) que compõem o projeto Estádio Nacional, Memorial Nacional. Esse projeto visa preservar o valor histórico do estádio por meio de atividades pedagógicas. No setor norte do estádio, que não recebe público e mantém a arquitetura da época, contém uma faixa dizendo: “Um povo sem memória é um povo sem futuro”.

O estádio Caio Martins constitui um bem de interesse público, visto que ainda é utilizado para atividades esportivas profissionais. Porém, como o estádio foi um símbolo da repressão ostensiva a diversos grupos sociais na cidade de Niterói após o golpe de 1964 e primeiro estádio a servir como “campo de concentração” de presos políticos na América Latina, ele é um bem cultural passível de tombamento, de acordo com a Constituição Federal de 1988, art, 215 e 216, seção II, e tem condição de exercer essa função pública uma vez que: i) é uma referência em termos materiais e imateriais no que se refere ao aparato repressivo do período da ditadura militar entre 1964 e 1985 em Niterói, ii) encontra-se preservado enquanto testemunho material deste

Fundamento jurídico: Constituição Federal seção II – Da Cultura: Tombamento, Arts. 215 a 217; Decreto-lei no25/1937; Decreto Federal nº 7037/2009 - Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH III, Eixo VI; Diretriz 24, objetivo estratégico I; Lei Federal nº12.528/11, Art.1o; Lei Estadual nº6335/12 , Art. 2º; Art. 4º, V.

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5. Criar um centro de memória nas instalações

parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda e a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), realizou uma diligência no local para identificar os espaços de tortura e colher depoimentos dos ex-presos e seus familiares.

do antigo 1 o Batalhão de Infantaria Blindada, na cidade de Barra Mansa nos seguintes termos:

Atualmente, o espaço do complexo de pavilhões do 1º BIB é sede do Parque da Cidade, sem referências ao que ocorreu ali durante a ditadura, gerando um apagamento deste capítulo da história da região e do lugar. As instalações do antigo 1º Batalhão de Infantaria Blindada do Exército (1º BIB), como bem cultural público passível de musealização, de acordo com o Decreto Federal 8.124 de 17/10/2013, art. 2o, III, tem todas as condições de exercer essa função pública uma vez que: i) é uma referência em termos materiais e materiais e imateriais da atuação do aparato repressivo especialmente relacionado ao período da ditadura militar entre 1964 e 1985 na região; ii) encontra-se preservado enquanto testemunho material deste período; iii) tem sido demandado pelos movimentos de perseguidos, ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos e outros atores sociais, iv) tem a potencialidade de impulsionar o conhecimento sobre a história da articulação de forças políticas pró-ditadura na região, assim como sobre informações que estão por ser descobertas sobre a utilização de suas instalações e sobre o paradeiro de desaparecidos políticos.

• Garantir a investigação e pesquisa sobre as instalações remanescentes no lugar, relativas ao período da ditadura. • Resgatar e publicizar sua história enquanto órgão da repressão durante a ditadura militar. • Homenagear a resistência à ditadura militar e todos e todas que ali estiveram presos.

Órgão responsável: Secretaria de Estado de Cultura. Órgãos colaboradores: Prefeitura de Barra Mansa, Fundação de Cultura de Barra Mansa da Prefeitura de Barra Mansa, Câmara dos Vereadores do Município de Barra Mansa.

Justificativa: Experiências relevantes:

O 1º Batalhão de Infantaria Blindada do Exército (1º BIB) funcionou durante a ditadura militar como centro de perseguição política da região. O complexo de pavilhões do 1º BIB funcionou também como centro de detenção e tortura de opositores à ditadura militar no período compreendido entre 1964 e 1973. São inúmeras as denúncias de graves violações de direitos humanos ocorridas no interior do Batalhão. Em outubro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade, em

• a) Centro Cultural por la Memoria de Trelew – Argentina, 2014. A base da aeronáutica Almirante Zar de Trelew foi palco do assassinato de 16 presos políticos pelos agentes da repressão da ditadura argentina. O episódio conhecido como “Massacre de Trelew” motivou a construção de um centro de memória em 2014 no local, no qual

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EIXO II: MONUMENTOS, SINALIZAÇÕES

contém homenagem às vítimas e mostras artísticas que promovem o direito à memória e à justiça.

E MARCAS DE MEMÓRIA • b) El Olimpo – Buenos Aires, Argentina. 2003. Este eixo se destina às sinalizações que evocam memórias de um período ou evento, as quais consistem em intervenções pontuais – seja por meio de placas, renomeação de logradouros e construção de monumentos em lugares públicos, a fim de realizar uma reparação simbólica às vítimas e à sociedade como um todo. Constituem, portanto, processos de memorialização, que interpelam espaços coletivos a fim de redimensionar e expandir a experiência subjetiva de produção de significados. As sinalizações tornam presentes ausências e propiciam a capacidade de projetar ou de se criar identidades com um determinado passado não necessariamente vivido, mas intimamente espacializado. Esses gestos permitem, então, criar uma importante socialização política e histórica com determinadas memórias territorialmente vinculadas a um local ou a um evento.

Foi espaço de um centro clandestino de detenção em Buenos Aires durante seis meses, de agosto de 1978 a janeiro de 1979. Alojou cerca de 700 detidos, dentre os quais apenas 50 sobreviveram. Em 2003, mediante a Lei 1197, a Legislatura da Cidade Autônoma de Buenos Aires o declarou“Lugar Histórico”.

• c) Parque por La Paz Villa Grimaldi – Santiago, Chile. 1997. Destinado a se tornar um quartel, o espaço se tornou um local de tortura e extermínio durante o regime militar chileno até 1978, no qual, estima-se que passaram cerca de 4.500 prisioneiros, dentre os quais 229 desapareceram ou foram assassinados pelos agentes da repressão. Foi vendida a uma construtora nos anos 80 e depois demolida. Somente em dezembro de 1997, depois das demandas por parte de ex-presos políticos e familiares, o local é inaugurado como um parque e funciona como um espaço de memória e homenagem às vítimas do período ditatorial.

O Estado do Rio de Janeiro ainda não dedicou atenção necessária e suficiente ao tema das torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados ocorridos no período da ditadura militar, visto que os processos de memorialização são consideravelmente incipientes e fragmentados no âmbito do Estado. Por isso, as recomendações seguintes anseiam superar essa fragilidade, mas não se pretendem exaustivas, pois essas medidas podem revelar outras memórias vinculadas a um determinado lugar e estimular novas demandas. Acrescentamos ainda o fato de que, como a memória enquanto imaginário coletivo não se desenvolve fora de um quadro espacial, a construção de marcas e sinalizações são importantes para a coesão de uma coletividade que partilha um passado e um presente comum. Por isso, políticas públi-

Fundamento normativo: Decreto Federal nº 7037/2009 - Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH III, Eixo VI; Diretriz 24, objetivo estratégico I; Lei Federal nº12.528/11, Art.1o; Lei Estadual nº6335/12 , Art. 2º; Art. 4º, V; Lei Estadual nº 7035/2015 – Sistema Estadual de Cultura e Plano Estadual de Cultura; Decreto Federal nº 8.124/2013 - Plano Nacional Setorial de Museus; Lei Federal nº 12.343/10 – Plano Nacional de Cultura; Lei Federal nº 11.904/2009 – Estatuto de Museus.

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cas de memória devem ser pauta constante por parte das instâncias governamentais com vistas a garantir uma melhor compreensão histórica do período ditatorial no Brasil.

A localização do monumento na cidade do Rio se justifica pelo desejo dos ex-presos políticos, familiares e do próprio arquiteto. Cabe ressaltar que o Estado do Rio de Janeiro possui um número inexpressivo de monumentos que se destinam à temática da memória e da verdade.

Em suma, entende-se aqui que as sinalizações de memória no espaço público são um dos mecanismos que propiciam a discussão ampliada sobre o passado recente de repressão e ressignificam a memória que circunscrevemos em prédios e lugares. As ações sinalizadoras materializam a importância de não se esquecer para consolidar uma ética cidadã de não repetição. Essas recomendações, portanto, visam promover a construção de reservatórios de memória por meio de encontros geracionais – o que efetiva não somente a democracia, a desconstrução de discursos dominantes e a pluralidade, mas também concretiza o direito fundamental à verdade, à memória e à justiça.

Órgão responsável: Assembleia Legislativa do Município do Rio de Janeiro/ Prefeitura do Rio de Janeiro

Órgãos colaboradores: Secretaria de Estado Assistência Social e Direitos Humanos/ Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro

1 - Construir o monumento “Arco da Maldade” projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer em ho-

Experiências relevantes:

menagem às vítimas do regime ditatorial.

• a) Monumento Mujeres en la Memoria – Santiago, Chile. 2006. O monumento homenageia as mulheres vítimas da repressão, relembrando as 198 vítimas da ditadura, das quais 26 eram mulheres grávidas, 12 mortas e 14 desaparecidas. A iniciativa teve como antecedente o projeto de lei “Mujeres en la Memoria” apresentado em junho de 1992.

Justificativa: O projeto desenhado por Niemeyer para o Grupo Tortura Nunca Mais- RJ representa o indivíduo atravessado pela maldade de um período sombrio, caracterizado pelas torturas, mortes e desaparecimentos até hoje não esclarecidos devidamente. Projetado para ser erguido no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, a obra é uma homenagem simbólica às vítimas e familiares afetados pelo regime militar, bem como é um dispositivo de não esquecimento para as novas gerações.

• b) Monumento El Ojo que Llora – Lima, Peru. 2005. Monumento de pedra representando um olho que chora. Ao redor, há pedras menores com o nome das pessoas da comunidade campesina de Llinque que foram mortas, torturadas ou desaparecidas por causa

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Condor, censura e propaganda do regime, parti-

do conflito armado interno entre os anos 1980 e 2000. Foi declarado patrimônio cultural em 2013.

dos e organizações políticas, sindicatos e traba-

• c) Monumento Tortura Nunca Mais – Recife, Pernambuco. 1993.

lhadores, universidades e movimento estudantil, repressão no campo e conflito agrário, movimen-

Concebido pelo arquiteto piauiense Demetrio Albuquerque, foi o primeiro monumento construído no país em homenagem aos mortos e desaparecidos políticos brasileiros. Fica na Praça Padre Henrique na Rua da Aurora.

to religioso e ditadura, resistência cultura, remoção de favelas, violência de gênero, resistência e homossexualidade, anistia e abertura política e

Fundamento normativo: Decreto Federal n. Decreto 7.177/2010 Programa Nacional de Direito Humanos (PNDH-III) – Eixo VI, Diretriz 24, objetivo estratégico I. Relatório da Comissão da Verdade - Lei Federal n.12.528, de 18 de novembro de 2011. Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Estado do RJ – Lei Estadual n.6.335, de 24 de outubro de 2012.

justiça militar. Justificativa: Esta medida visa sinalizar e evidenciar espaços públicos a fim de redimensionar e expandir a experiência subjetiva de memórias e produção de sentidos sobre o passado, no presente. A rigor, não há políticas públicas desta natureza no Estado do Rio de Janeiro relativas à ditadura militar. Essas sinalizações poderiam se dar por meio de placas, monumentos de homenagem, “praças-museus”, entre outras, que permitam uma maior participação da sociedade na promoção e construção de políticas de memória, bem como intervenções artísticas. Podem estar localizadas em espaços onde ocorreram violações ou em espaços de grande circulação.

2 - Sinalizar - por meio de placas com material de alta durabilidade - lugares que evoquem a memória, os quais direta ou indiretamente se relacionem às violações de Direitos Humanos do período militar brasileiro ou às diversas formas de resistência ao regime, considerando os seguintes temas: estrutura de repressão, operação

258


Órgão responsável:

Projeto municipal “Marcas da Memória” indicando violações de Direitos Humanos: i) O Palácio da Polícia, onde presos políticos foram torturados durante o regime militar, recebeu uma placa sinalizando que ali, no segundo andar, houve tortura e homicídios nas salas onde funcionaram o Dops/RS. ii) Em frente ao Instituto Estadual de Educação Paulo Gama, no bairro Partenon, em Porto Alegre, para lembrar a prisão de mais 80 policiais militares durante a ditadura. Antes de virar escola, o prédio abrigou o Presídio Militar Especial, em 1964. iii) casarão localizado no número 600 da Rua Santo Antônio – conhecido como “Dopinha”, o local abrigou um centro clandestino de tortura entre 1966 e 1971.

Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e Gabinete das Prefeituras dos Municípios

Experiências relevantes: • Placas em ex-Centros Clandestinos de Detenção – Argentina, 2006. A Resolução 1309 do Ministério da Defesa da Argentina dispõe sobre a colocação de placas em estabelecimentos militares e onde funcionaram centros clandestinos de detenção entre 1976 e 1983. Foram colocadas placas também remetendo ao golpe de Estado na sede do Ministério e nas sedes das chefias de cada uma das Forças Armadas. Essa resolução abrange todo território nacional.

Fundamento normativo: Decreto Federal n. Decreto 7.177/2010 - Programa Nacional de Direito Humanos (PNDH-III) – Eixo VI, Diretriz 24, objetivo estratégico I. Relatório da Comissão da Verdade - Lei Federal n.12.528, de 18 de novembro de 2011. Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Estado do RJ – Lei Estadual n.6.335, de 24 de outubro de 2012.

• Casona Cooperativa de Viviendas - Montevideo, Uruguai. 2002. Foram colocadas placas recordatórias em homenagem aos desaparecidos políticos da “Casona Cooperativa de Viviendas”, nas quais está escrito: “Durante a ditadura funcionou neste prédio um centro clandestino de detenção e tortura (1977-1979). Para este lugar, foram transferidos opositores da ditadura, dentre eles o (professor Julio Castro), torturado até a morte em agosto de 1977, que até a presente data encontra-se desaparecido”.

• Projeto Placas de Memória – Porto Alegre, Rio Grande do Sul. 2014.

259


3 - Alteração de nomes de colégios das redes es-

Órgãos colaboradores:

taduais e municipais com designação de pesso-

Secretaria de Estado Assistência Social e Direitos Humanos do estado do Rio de Janeiro/ Familiares, alunos e ex-alunos.

as que tenham sido responsáveis por violações de direitos humanos durante a ditadura militar e

Experiências relevantes:

que essa alteração seja realizada por meio de um

• Escola Zelmar Michelini – Montevideo, Uruguai. 2001.

processo deliberativo na comunidade escolar e

Por meio da Lei municipal 17.365, e atendendo a demanda de professores e alunos, a escola n.113 do departamento de Montevideo passou a ser chamada de“Zelmar Michelini”, político uruguaio morto em Buenos Aires em 1976.

levando em consideração expressões de diversidade cultural, social e de gênero. Justificativa:

• Colégio Estadual Carlos Marighella – Salvador, Bahia. 2014.

Essa medida é fundamental para evitar que sejam prestadas homenagens a indivíduos que foram responsáveis por graves violações de Direitos Humanos e gerar reflexão crítica sobre o passado no presente. Não há uma política pública no Estado do Rio de Janeiro que atente para os casos de escolas que realizam esse tipo de homenagem, havendo apenas casos isolados de renomeações. Esses gestos simbólicos articulados a atividades pedagógicas são fundamentais para construção de uma cultura de respeito aos direitos humanos.

Por demanda de alunos e professores, o governo do Estado da Bahia reconheceu a mudança de nome do Colégio Estadual Presidente Emílio Garrastazu Médici para Carlos Marighella. Outro colégio conseguiu mudar o nome de Colégio Estadual Humberto Alencar Castelo Branco para Madiba Nelson Mandela.

• Colégios Estaduais no estado do Maranhão – 2015. A Secretaria de Estado da Educação do Maranhão identificou dez escolas em nove municípios maranhenses que possuíam nomes de ex-presidentes do Brasil que governaram o país sob o regime militar. O processo de mudança ocorreu com base no Decreto 30.618, de 2 de janeiro de 2015, que veda a atribuição de nome de pessoa viva a bem público, de qualquer natureza, pertencente ou sob gestão do Estado

Órgão responsável: Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro/ Secretaria de Educação dos Municípios

260


do Maranhão ou das pessoas jurídicas da administração estadual indireta. No decreto, a vedação é estendida a nomes de pessoas, ainda que falecidas, que tenham constado no relatório da Comissão da Verdade - de que trata a Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011 - como responsáveis por crimes cometidos na a ditadura militar.

Colégios da Rede Municipal Cidade Nome Campos dos GoytaE.M. Marechal Arthur da cazes Costa e Silva

Fundamento normativo: Decreto Federal n. Decreto 7.177/2010 Programa Nacional de Direito Humanos (PNDH-III) – Eixo VI, Diretriz 24, objetivo estratégico I. Relatório da Comissão da Verdade - Lei Federal n.12.528, de 18 de novembro de 2011. Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Estado do RJ – Lei Estadual n.6.335, de 24 de outubro de 2012.

Campos dos Goytacazes

E.M. Presidente Castelo Branco

Rio de Janeiro

E. M. Presidente Arthur da Costa e Silva E.M. Castelo Branco

Rio de Janeiro

Rio de Janeiro

E. M. Presidente Humberto de Alencar Castelo Branco

Rio de Janeiro

E.M. Presidente Médici

Rio de Janeiro

E. M. Castelo Branco

Rio de Janeiro

E. M. General Humberto de Souza Mello

Rio de Janeiro

C.M. Presidente Castelo Branco

São Gonçalo

C.M. Presidente Castelo Branco

Lista não exaustiva de colégios identificados: Colégios da Rede Estadual Cidade Nome Campos dos GoytaC.E. General Dutra cazes Mesquita

Seropédica

C.E. Presidente Castelo Branco C.E. Presidente Dutra

Endereço Av. Souza Mota, s.n. – Parque Vera Cruz Praça Porto Alegre, 105 – Presidente Juscelino U.F.R.R.J. Estrada Rio-São Paulo, KM 47, s.n.

261

Endereço Avenida Zuza Mota, s.n. - Parque Presidente Vargas Rua Prefeito Edgar Nunes Machado, s.n. - Pecuária Rua Assunção, 257 - Botafogo Rua Pacheco Leão, 1004 – Jardim Botânico Avenida Marechal Fontenelle, 4519 – Magalhães Bastos Rua João de Lacerda, s.n. – Bangu

Avenida Marechal Fontenele, 4519, Sulacap Rua Oito de Dezembro, 275, Vila Isabel Rua Manuel Teixeira Campos Junior, 53, Santanésia, Piraí Rua Carlos Gianelli, s.n. Boacu


4 - Enfatizar o contexto ditatorial e o histórico de

Órgão responsável:

lutas na descrição das placas de nomes de ruas

Assembleias Legislativas dos Municípios/ Prefeituras dos municípios do Estado do Rio de Janeiro

e de praças que foram nomeadas com designa-

Fundamento normativo: Decreto Federal n. Decreto 7.177/2010 Programa Nacional de Direito Humanos (PNDH-III) – Eixo VI, Diretriz 24, objetivo estratégico I. Relatório da Comissão da Verdade - Lei Federal n.12.528, de 18 de novembro de 2011. Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Estado do RJ – Lei Estadual n.6.335, de 24 de outubro de 2012.

ções de mortos e desaparecidos políticos.

Justificativa: Uma das medidas de reparação realizadas institucionalmente foi a nomeação de novas ruas e praças com nomes de mortos e desaparecidos políticos. Porém, muitas dessas placas contendo essas designações não enfatizam as informações sobre o período ditatorial e histórico de lutas nas quais essas pessoas estavam envolvidas. Por isso é necessário que i) essas placas, em pelo menos três sentenças, evidenciem que esses nomes foram vítimas da ditadura militar. ii) no caso de desaparecidos, indicar essa informação. iii) em praças que possuem nomes de mortos e desaparecidos políticos, destinar uma placa contendo o histórico e o contexto ditatorial no qual essa pessoa viveu. Destacam-se os casos já existentes dos bairros de Bangu, Recreio dos Bandeirantes, Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila Nova Esperança na cidade do Rio de Janeiro e a Praça Carlos Lamarca localizada no bairro de Bangu, também no município do Rio de Janeiro.

5 - Criação de um programa de alteração dos nomes de logradouros públicos tais como ruas, pontes, viadutos e praças que homenageiam direta ou indiretamente torturadores, responsáveis e violadores de direitos humanos do período ditatorial que envolva a participação e deliberação da população local com atos artístico-culturais e considerando, nesse processo de renomeação, a diversidade cultural, social e de gênero.

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Justificativa:

Órgão responsável:

Essa medida é fundamental para evitar que sejam prestadas homenagens a indivíduos que foram responsáveis por graves violações de Direitos Humanos e gerar reflexão crítica sobre as permanências do passado no presente. Não há no Estado do Rio de Janeiro uma política pública de renomeação desses logradouros, apenas iniciativas dispersas de nomeação de novas ruas com nomes de mortos e desaparecidos da ditadura e, em geral, em lugares de urbanização recente. Além disso, retirar o nome de indivíduos responsáveis por torturas, assassinatos e desaparecimentos é uma forma de reparação simbólica vital para as vítimas e familiares. Um exemplo evidente é a Ponte Presidente Costa e Silva que liga os munícipios do Rio de Janeiro e Niterói, na qual o Ministério Público Federal solicitou a mudança em 2014, mas o pedido foi negado pela Justiça Federal do Rio de Janeiro no começo deste ano. Todavia, a conscientização sobre esse período histórico e as formas pelas quais esse passado se perpetua no presente não se concretiza apenas com renomeações de logradouros públicos. Esse processo deve ser acompanhado de um amplo e irrestrito diálogo com a população local, por meio de atividades pedagógicas e culturais. Nesse sentido, a medida proposta deve i) identificar todos os logradouros com nomes de responsáveis por violações de direitos humanos, ii) sensibilizar os moradores de determinado logradouro sobre o tema da memória e justiça por meio de debates e encontros, iii) estimular diálogos para o processo de renomeação com associações de moradores e demais atores sociais relevantes, iv) realizar eventos culturais e artísticos no momento de mudança de nomes. Em suma, a medida deve fomentar o diálogo com a sociedade civil e sensibilizá-la sobre a importância do tema, possibilitando uma maior compreensão da história da ditatura militar no Brasil, além de um movimento de vigilância para que esse passado não se repita mais.

Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ)/ Secretaria de Estado Assistência Social e Direitos Humanos/ Câmaras Municipais do Estado do Rio de Janeiro/ Associações de moradores dos bairros.

Experiências: • Programa “Ruas da Memória” – Município de São Paulo, São Paulo. 2015. A Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo lançou o programa em que envolve a participação direta da sociedade civil no processo de renomeação de logradouros que homenageiam pessoas envolvidas direta ou indiretamente com os crimes de violação de direitos humanos praticados durante a ditadura militar brasileira. O objetivo é a sensibilização acerca do tema da memória e justiça O programa atua por meio de debates, intervenções artísticas e saraus culturais, nos quais os moradores discutem a importância da memória e conhecem a história de repressão na própria cidade.

• Calle Mártires de la Democracia – La Paz, Bolívia. 2009. Por iniciativa do munícipio, houve uma mudança de nome da rua Harrington – onde oito dirigentes do Movimento de Esquerda Revolucionário foram assassinados em 1981 – para rua “Mártires de la Democracia”. Foi feita uma cerimônia especial para inaugurar a placa.

263


• Calle de la Memoria – Rosário, Argentina. 2008.

Lista não exaustiva de logradouros: Logradouros públicos que Homenageiam agentes ou episódios ligados ao regime militar

Por meio de decreto do munícipio de Rosário, a rua Puerto Norte passou a ser chamada Calle de la Memoria em recordação aos fatos históricos da ditadura. A renomeação aconteceu com um evento artístico e cultural.

Nome

Lugar

Informações

Ponte Baía de Guanabara Conhecida também como Ponte PresiRio-Niterói, liga os municípios do dente Rio de Janeiro e de Niterói. ComeCosta e çou a ser construída em 1968 e foi Silva finalizada em 1974. Homenageia o segundo presidente da ditadura, o general Arthur da Costa e Silva, responsável pela assinatura do decreto que autorizou a sua construção. Praça Entre a Avenida Praça cujo nome homenageia o Presi- Presidente Castelo terceiro presidente da ditadura, o dente Branco e a Avenida general Emílio Garrastazu MédiEmílio Professor Manuel ci, que governou o país de 1969 a Garras- de Abreu, no en- 1974. Antes de assumir a presidêntazu Mé- torno do estádio cia, foi chefe do Serviço Nacional dici Maracanã de Informações (SNI) em 1967 e comandante do III Exército. Avenida Mais conhecida Avenida em homenagem ao priPresicomo Avenida meiro presidente da ditadura milidente Radial Oeste, lo- tar, o marechal Humberto de AlenCastelo calizada no bairro car Castelo Branco, que governou Branco Maracanã o país de 1964 a 1967. Em 2013, foi palco de manifestações populares e repressão militar durante a Copa das Confederações da FIFA.

• Rua José Carlos da Mata Machado – Belo Horizonte, Minas Gerais. 1994. A primeira rua no Brasil que retira um nome associado com a ditatura militar brasileira. A rua Dan Mitrione, no Bairro das Indústrias, passou a se chamar José Carlos da Mata Machado. Dan Mitrione era um agente norte-americano que veio ao Brasil para treinar os policiais na aplicação de torturas, especialmente a técnica de tortura com choques sem deixar marcas, na qual era especialista. Fundamento normativo: Decreto Federal n. Decreto 7.177/2010 Programa Nacional de Direito Humanos (PNDH-III) – Eixo VI, Diretriz 24, objetivo estratégico I. Relatório da Comissão da Verdade - Lei Federal n.12.528, de 18 de novembro de 2011. Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Estado do RJ – Lei Estadual n.6.335, de 24 de outubro de 2012.

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Avenida Bairro Retiro, no 1º Através da lei nº 3.929 de 1978, a Castelo Distrito de Petró- cidade de Petrópolis homenageou o Branco polis ditador Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura, que governou o país de 1964 a 1967. Outro documento do processo da homenagem é o Ofício nº PRE 170/78, em 3/7/78, do Projeto de Lei nº 667/78 de autoria de José F. de Azevedo. Travessa Bairro Valparaíso, Através da lei nº 4.400 de 1986, Briga1º Distrito de Peoriunda de Antonio E. C. Gonçaldeiro trópolis ves, P.L. nº 1292/85, foi homenageaEduardo do Eduardo Gomes, petropolitano, Gomes ex-tenentista e conspirador ativo, presente na campanha contra Vargas em 1954 e no Golpe de 1964. Tal golpista é considerado o patrono da Força Aérea Brasileira. Estrada Bairro Fazenda In- Através da lei nº 6.900 de 2011 foi Mare- glesa no 1º Distrito homenageado Eduardo Gomes, pechal de Petrópolis tropolitano, ex-tenentista e conspido Ar rador ativo, presente na campanha Eduardo contra Vargas em 1954 e no Golpe Gomes de 1964. Tal golpista é considerado o patrono da Força Aérea Brasileira. Projeto 2076/11 de autoria dos vereadores Baninho e Thiago Damaceno.

Rua Presidente Ranieri Mazzilli

Bairro Valparaiso, 1º Distrito de Petrópolis

Através da lei nº 4.399 de 1986, Ranieri Mazzilli teve seu nome homenageado em uma rua de Petrópolis. Mazzilli, como presidente da Câmara dos Deputados na época do Golpe de 1964, foi peça fundamental para o sucesso do levante militar, pois aceitou a farsa da renúncia de Jango assumindo interinamente a presidência e passando a mesma posteriormente para os militares. Avenida/ Situado sobre a rua Viaduto cujo nome faz menção ao Viaduto Frei Caneca, no episódio do golpe militar em 1964. 31 de Centro Citado pelo relatório parcial da CEMarço V-Rio como um exemplo de “espaço central” da cidade que deve ter seu nome alterado.

6 - No caso específico do município do Rio de Janeiro, revisar a lei ordinária n o 4.762/2008 que impede a mudança de nomes de logradouros cujo nome esteja oficialmente reconhecido por um período de tempo maior de 20 anos. Justificativa: Uma das prerrogativas fundamentais para que haja a devida homena-

265


EIXO III: POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO E

gem simbólica às vítimas, mortos e desaparecidos do regime ditatorial – em espaços públicos - é a renomeação de logradouros com nomes de responsáveis direta ou indiretamente por atos de lesa-humanidade; essa demanda é reconhecida amplamente tanto em nível nacional quanto internacional, embora ainda enfrente dificuldades evidentes. Portanto, esse dispositivo do município do Rio de Janeiro fere as demandas por parte de atores relevantes de ressignificar o espaço público em que vivem, bem como impede a sensibilização necessária de toda a população local em relação aos temas da ditadura, memória e justiça. Além disso, essa medida representa uma profunda incompreensão da dinâmica social, pois nega a iniciativa cidadã de transformar a cidade em que se vive e de decidir medidas de cunho público.

CULTURA EM DIREITOS HUMANOS Uma educação em Direitos Humanos consiste na formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através de atividades que promovam valores sociais, como a igualdade, a solidariedade, a liberdade, a cooperação, a tolerância, a justiça e a paz. Esses valores abrangem igualmente o resgate e o reconhecimento das memórias de violações cometidas em nosso passado. Nesse sentido, as políticas de educação e cultura em Direitos Humanos sobre a temática da ditadura militar teriam, em primeiro lugar, uma função de colocar em pauta os conflitos de memórias em torno do passado ditatorial brasileiro. Em segundo lugar, teriam uma função pedagógica de esclarecer qual é nossa responsabilidade enquanto cidadãos (visando à formação de uma figura de cidadão crítico, participante, responsável e comprometido com a mudança de nossa cultura individualista e conformista que tolera práticas sociais violadoras de direitos humanos para amplas parcelas da população, especialmente pobres e negros), o que são direitos humanos (direitos considerados essenciais a todas as pessoas, sem distinção de sexo, nacionalidade, cor da pele, etnia, posição política, orientação sexual, religião, etc), como promovê-los, de modo a fazer deles uma prática diária vivida no cotidiano. Em terceiro lugar, as políticas de educação e cultura em Direitos Humanos têm a função de criar uma reflexão do presente a partir do passado, visando perceber quais práticas e estruturas oriundas dos tempos de repressão ditatorial permanecem sob o proclamado estado democrático de direito.

Órgão responsável: Assembleia Legislativa do Município do Rio de Janeiro Fundamento normativo: Decreto Federal n. Decreto 7.177/2010 Programa Nacional de Direito Humanos (PNDH-III) – Eixo VI, Diretriz 24, objetivo estratégico I. Relatório da Comissão da Verdade - Lei Federal n.12.528, de 18 de novembro de 2011. Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Estado do RJ – Lei Estadual n.6.335, de 24 de outubro de 2012

A eficácia das políticas de educação e cultura em Direitos Humanos depende do fortalecimento da relação entre a educação formal e a informal, de maneira que ambas se articulem e se complementem

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continuamente. Nesse sentido, propõe-se, nesse eixo, duas recomendações sobre a temática abordada acima:

folheto “Trilhas da Memória da Ditadura Militar” em formato digital, junto à possibilidade de emulação dos trajetos elaborados pelo projeto“Trilhas da Memória da Ditadura Militar”em formato digital.

Órgãos responsáveis: Secretaria de Estado de Cultura (SEC), Prefeituras dos Municípios do Estado do Rio de Janeiro.

1. Criar um projeto de “Trilhas da Memória da Ditadura Militar” na capital e nos municípios do

Órgãos colaboradores: Secretaria de Estado Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), Secretaria de Estado de Turismo (SETUR), Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH).

Rio de Janeiro o qual: • Contemple os principais espaços de repressão estatal e de resistência à ditadura militar no (s) município (s) do estado do Rio de Janeiro;

Justificativa: O projeto Trilhas da Memória da Ditadura Militar possibilita aos moradores das cidades contempladas outro modo de descobrir sua cidade e de com ela se relacionar. O projeto favoreceria o trabalho de reconstrução de memórias, ainda subterrâneas, dos locais marcados pela violência e pela resistência no período da ditadura militar, além de permitir que tais memórias permaneçam vivas na experiência cotidiana dos moradores da(s) cidade(s), através da identificação dos locais e do contato com o que neles ocorreu.

• Produza um mapa da memória com as marcações dos locais das Trilhas, levando em consideração a proximidade entre eles, e com mais de uma possibilidade de trajeto para o percurso; • Marque no chão da (s) cidade (s) contemplada (s), os possíveis trajetos que ligam os locais marcados pelo projeto; • Sinalize os locais das “Trilhas da Memória da Ditadura Militar” permitindo que os transeuntes tenham acesso não só ao nome do local, mas ao que foi o seu funcionamento no interior do dispositivo repressivo da ditadura militar e quais violações de Direitos Humanos foram lá perpetradas;

Experiências relevantes:

• Conte com um folheto “Trilhas da Memória da Ditadura Militar” – a ser distribuído em escolas, aeroportos, centros de turismo e outros espaços – que contenha o mapa da memória junto a um anexo com pequenos textos sobre as violações de direitos humanos ocorridas em cada local;

• Rutas de la Memoria: Construyendo Memorias en una Lima de Todos Implementado em 2014 pela Gerencia de Cultura da Municipalidad Metropolitana de Lima, este projeto traz oito rotas a serem realizadas pela metrópole de Lima com a finalidade de homenagear as vítimas

• Por fim, conte com uma plataforma eletrônica que contenha o

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Fundamentos Normativo: Lei n. 7035/2015 - Plano Estadual de Cultura, Eixo 2, especialmente as Estratégias 2.3.1, 2.3.2, 2.3.4, 2.3.5 ; Lei n. 12.528/2011 – Comissão Nacional da Verdade; Lei n. 6335/2012 – Comissão Estadual da Verdade do Estado do Rio de Janeiro; Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (III. Educação Não-Formal); Decreto Federal n. 7037/2009 - Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH III, Eixo VI; Diretriz 24; Lei Federal n. 12.528/11, Art.1º; Lei Estadual n. 6335/12 , Art. 2º e Art. 4º, V; Lei Federal n. 12.343/10 – Plano Nacional de Cultura.

daquela capital entre os anos de 1980 e 2000.

• Ruta de la memoria de Santiago do Chile Implementado em 2009 pelo Ministerio de Bienes Nacionales, trata-se de um projeto que traça um percurso por numerosos Centros de Memória e Memoriais na cidade de Santiago. Conta com um folheto digital e impresso que, além de ser um mapa com a sinalização de cada local da rota, traz também pequenos textos que explicam o que ocorreu naqueles locais no período ditatorial.

2. IMPLEMENTAR PROGRAMA DE

• Freedom Trail Inaugurado em 1951 pela Câmara de Comércio de Boston, o Freedom Trail atravessa a cidade com uma faixa vermelha feita de pedras, marcando os lugares emblemáticos da história da Independência estadunidense. A iniciativa conta com uma plataforma digital.

HISTÓRIA E MEMÓRIA NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO A FIM DE SUBSIDIAR A FORMULAÇÃO E A REALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE MEMÓRIA,

• Livro Recife Lugar de Memória Distribuído pela prefeitura de Recife em 2012, o livro Lugar de Memória, além de ser um guia turístico para a visitação de espaços de memória, é um documento histórico que contém vários roteiros em direção aos lugares de luta e resistência do povo pernambucano (não se restringindo ao período da ditadura militar). A publicação é resultado de uma parceria entre a prefeitura de Recife, por meio da Secretaria de Direitos Humanos e Segurança Cidadã (SDHSC) e o Ministério da Justiça, que financiou o projeto. Além da versão online, o livro também será apresentado no formato impresso e distribuído pela SDHSC.

HISTÓRIA E ENSINO, CONTANDO, PARA ISSO, COM OS SEGUINTES PROJETOS BASE (LISTA NÃO TAXATIVA):

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• Sessão Ditadura Militar nas Bibliotecas Parque Estaduais (BPE)

disso, o projeto contaria com opções de cursos sobre a temática dos direitos humanos e da ditadura militar nos museus que oferecem essa possibilidade.

Esta iniciativa visa sinalizar um espaço, dentro das Bibliotecas Parque do Estado do Rio de Janeiro, reservado a filmes e livros (de ficção e de não ficção) que abordem a temática da ditadura militar no Brasil. Outra ação seria oferecer oficinas e cursos, bem como visitas guiadas a estudantes e professores das escolas públicas sobre os temas “ditadura militar” e “direitos humanos” nas BPE.

• Memória vai à escola Esta iniciativa visa levar às escolas municipais e estaduais do estado do Rio de Janeiro uma metodologia diferenciada, pensada previamente a partir de um diálogo com os diretores e professores das escolas, que possibilite a elaboração de aulas expositivas e dialogadas, de uma galeria de fotos da época e de personalidades históricas a serem apresentadas às turmas, além da seleção de vídeos, relatos, músicas e filmes a serem exibidos aos alunos com a finalidade de aproximá-los da temática da Ditadura Militar e de aprofundar a compreensão sobre a resistência ao regime ditatorial no Brasil.

• Biblioteca Itinerante dos Direitos Humanos Visando gerar uma reflexão sobre os sentidos e legados da violência do passado no presente, esta iniciativa consiste na criação de uma biblioteca itinerante que divulgue a discussão sobre as violações de direitos humanos do período ditatorial brasileiro para as áreas mais afetadas pela pobreza e criminalidade. Além de contar com um acervo de livros (de ficção e de não ficção) e filmes que abordem a temática da ditadura militar no Brasil, a biblioteca itinerante contaria com sessão de filmes, peças de teatro, shows de música, grafite e outras expressões e atividades artísticas, que sensibilizem o público para o tema da Ditadura e dos Direitos Humanos.

• KIT Direitos Humanos e Ditadura O projeto KIT Direitos Humanos e Ditadura tem a finalidade de auxiliar o trabalho docente no que tange o tema da ditadura militar no Brasil. Kits com livros, filmes e materiais acessórios sobre o tema da ditadura seriam entregues nos colégios públicos do Estado do Rio de Janeiro, no sentido de garantir uma abordagem multidisciplinar do tema. Nesse sentido, seria reservada uma semana no calendário escolar para a utilização dos elementos do Kit, por meio de atividades como: sessão de filmes, rodas de leitura, debate sobre músicas, poemas e produções artísticas do período ditatorial. A utilização do Kit não pode ser pensada sem um curso a ser oferecido aos professores das escolas, com a função de melhor orientá-los e prepará-los na abordagem e metodologia do tratamento desse tema nas salas de aula.

• Ditadura Militar no Plano museológico Esta iniciativa visa incluir no plano museológico de todos os museus do Estado do Rio de Janeiro uma sinalização referente à ditadura militar, de forma a permitir: 1) o acesso aos fatos ocorridos no período ditatorial brasileiro, principalmente nos Museus de história; 2) uma reflexão sobre o contexto das obras produzidas nos anos 60, 70 e 80, principalmente nos Museus de arte contemporânea e moderna. Além

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Órgãos responsáveis:

nhos, infantis e filmes, o projeto BPE promove também experiências interativas como oficinas, laboratórios, plataformas multimídia, etc. O Programa de Educação da Biblioteca Parque Estadual tem como objetivo fortalecer as redes de conhecimento a partir do estabelecimento de dinâmicas que integrem a biblioteca e a escola. As visitas guiadas à biblioteca constituem o eixo central do programa de educação e atingem alunos, educadores e todos os visitantes que desejem ampliar repertórios e investigar novas formas de explorar a biblioteca e seu acervo. Além de atender a grupos de alunos, a BPE oferece também visitas preparatórias voltadas aos profissionais das redes pública e privada, e educadores em geral.

Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro e superintendências: Leitura e Conhecimento, Museus, Audiovisual e Artes; Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ), Secretarias Municipais de Educação do Estado do Rio de Janeiro e Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH).

Justificativa: A conjugação de políticas diversas sobre história, memória e ensino no âmbito de um programa possibilita a ação combinada entre secretarias de estado para planejar e executar iniciativas que visem à consolidação de uma rede de referências de educação e memória. O programa visaria à execução dos projetos base, além da produção de materiais virtuais, audiovisuais e gráficos; o oferecimento de oficinas, cursos e visitas a centros de memória; à realização de atividades de formação docente e discente e ao estímulo à produção de pesquisas sobre o passado recente e seus efeitos locais.

• Biblioteca Itinerante do SESC-Rio Com objetivo de facilitar o acesso a livros nas periferias das grandes cidades e encurtar a distância entre o leitor e o livro, o SESC Rio lançou, em 2013, o “BiblioSesc”, uma biblioteca itinerante. O projeto conta com dois caminhões, equipados com milhares de romances nacionais e estrangeiros, jornais, revistas e gibis. A ideia do SESC-Rio é que as unidades móveis percorram o mesmo circuito durante um ano, cada bairro recebendo duas visitas mensais, possibilitando o empréstimo de livros pelo prazo de 15 dias. Além disso, o projeto conta com atividades que incentivam a formação de leitores, como contação de histórias, rodas de leitura e oficinas literárias. Para solicitar o empréstimo de livros, é necessário apresentar documento de identidade e comprovante de residência. A devolução é feita no mesmo local. Atualmente, existem 55 unidades móveis do BiblioSesc circulando por todo o Brasil.

Experiências relevantes:

• Biblioteca Parque Estadual (BPE) A BPE é uma iniciativa da Secretaria de Estado de Cultura e é gerida pela Organização Social Instituto de Desenvolvimento e Gestão. O projeto já conta com a Biblioteca Parque de Manguinhos, a Biblioteca Pública de Niterói e a Biblioteca Parque da Rocinha. Criado para oferecer um acervo com livros de ficção, de não ficção, de arte, quadri-

• Projeto “A memória vai à escola”

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Visando efetivar o direito à memoria e à verdade histórica, a CEV-Amapá desenvolveu o Projeto “A Memória vai à Escola”, com objetivo de levar ao espaço escolar e acadêmico do estado a temática da ditadura civil-militar, para que esse período da história do Brasil seja conhecido e debatido em sala de aula, a fim de que ele não seja esquecido e não mais aconteça. Nesse sentido, foram realizadas palestras sobre os temas: “O regime ditatorial no Brasil e no Amapá”,“Processo de redemocratização (lei de Anistia)”,“Justiça de transição (Comissão da Verdade)”, “Direitos humanos (trajetórias e conquistas)” e “Cultura da paz (educar para a paz)”. Para o alcance do objetivo proposto, foram utilizados os seguintes procedimentos: palestras expositivas e dialogadas, exibição de vídeo e recursos lúdicos como: exposição de fotos de personalidades históricas, músicas, poesias e peças teatrais.

Herzog), Vala clandestina de Perus – desaparecidos políticos, um capítulo não encerrado da história brasileira (Editora Instituto Macuco) e K, relato de uma busca (Editora Cosac Naify). Os Kits são entregues aos educadores mediante participação em uma formação oferecida pelo mesmo projeto. Essa formação tem duração de aproximadamente três horas e além de apresentar um panorama sobre o período, aborda o material do KIT e estimula os educadores a pensarem em práticas em sala de aula e em suas comunidades. Fundamentos Normativo: Lei n. 7035/2015 - Plano Estadual de Cultura, Eixo 3 e 5, especialmente as estratégias 3.1.1, 3.1.2, 3.1.5, 5.1.2, 5.1.4, 5.4.2, 5.4.3; Lei n. 12.528/2011 – Comissão Nacional da Verdade; Lei n. 6335/2012 – Comissão Estadual da Verdade do Estado do Rio de Janeiro; Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (III. Educação Não-Formal); Decreto Federal n. 7037/2009 - Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH III, Eixo VI; Diretriz 24; Lei Federal n. 12.528/11, Art.1º; Lei Estadual n. 6335/12 , Art. 2º e Art. 4º, V; Decreto Federal n. 8.124/2013 - Plano Nacional Setorial de Museus; Lei Federal n. 11.904/2009 – Estatuto de Museus; Lei Federal n. 12.343/10 – Plano Nacional de Cultura.

• Kit DMV: Levando em consideração a insuficiência do material didático disponível nas escolas, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo distribuiu, entre 2014 e 2015, um conjunto de publicações (KIT DMV) em todas as bibliotecas públicas municipais e para aproximadamente 350 escolas da rede de ensino do município de São Paulo. O objetivo é permitir que os professores se aprofundassem na temática da ditadura, fomentando também o trabalho em sala de aula. O Kit DMV é composto por Cartaz com arte do cinquentenário do golpe, assinada por Elifas Andreato e os seguintes documentários: ‘O dia que durou 21 anos’, de Camilo Tavares; ‘1964 um golpe contra o Brasil’, de Alípio Freire; ‘Verdade 12.528’, de Paula Sacchetta e Peu Robles. Estão presentes também curtas-metragens do Festival ENTRETODOS sobre direito à memória e à verdade. O material oferece ainda uma publicação atualizada da Constituição de 1988 e os livros: A construção da democracia e liberdade de expressão: o Brasil antes, durante e depois da constituinte (Editora Instituto Vladimir

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ENSINO DE HISTÓRIA DA DITADURA MILITAR NAS ESCOLAS


INTRODUÇÃO

Ao discutir a temática da ditadura no Ensino de História, a primeira questão que nos devemos colocar é: “a ditadura é um conteúdo como outro qualquer no ensino de História?”. Acreditamos que não e por isso o tema é tão relevante. E por que acreditamos que o tema merece um tratamento especial? Para aqueles que atuam no ensino de História em seus mais variados níveis, o pós-64 ainda se encontra como um terreno em disputa e que tem sido objeto de intensas batalhas pela memória entre diferentes grupos da sociedade. Como as escolas não estão isoladas da sociedade, essas tensões evidentemente se manifestam no espaço escolar e, com frequência, vemos entrar em conflito as visões de estudantes, professores, diretores e pais de alunos. Por ser recente, esse passado está atravessado por memórias traumáticas, experiências pessoais que muitos gostariam de apagar, lembranças incômodas, esquecimentos sintomáticos, além de posicionamentos políticos divergentes no passado e no presente que acirram conflitos entre distintos sujeitos. Por conta dos encontros e desencontros que as escolas propiciam, o ensino da ditadura na educação formal oferece um caso privilegiado para a reflexão sobre o papel da educação como política de memória. E é nesse ponto que as atividades educativas, políticas curriculares e os materiais pedagógicos assumem um lugar de destaque em nosso projeto de pesquisa na PUC-Rio.


O projeto tem o objetivo de refletir sobre as políticas públicas de memória no Brasil e em outros países da América Latina e, em uma perspectiva comparativa, oferecer um balanço das experiências acumuladas - bem-sucedidas ou não - para auxiliar a Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio) na elaboração e no desenvolvimento de políticas de memória para o Estado do Rio de Janeiro. Assim, pensar o ensino de História das ditaduras de maneira articulada com uma perspectiva mais ampla de educação em Direitos Humanos e como parte de uma política de “não repetição” tem sido uma preocupação central para nossa equipe de pesquisa. Com o objetivo de propor recomendações sobre ensino da ditadura para o relatório final da CEV-Rio, nos debruçamos sobre a análise de orientações curriculares nacionais e estaduais, de maneira a observar como o tema da ditadura e seu legado são tratados nos documentos oficiais do Ministério da Educação e da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Esses documentos servem para orientar a construção das propostas curriculares, a serem trabalhadas na disciplina de história em escolas públicas e particulares, de ensino fundamental e médio. Para compreender de que modo o tema da ditadura é ensinado atualmente nas escolas também nos debruçamos sobre a análise de parte dos livros didáticos aprovados no último Plano Nacional do Livro Didático (PNLD). Em que pese a inconclusão da pesquisa, já é possível esboçar algumas primeiras conclusões. Convém ainda pontuar que o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), concluído em dezembro de 2014, também apresentou propostas de recomendação sobre o ensino de história sobre ditadura, na educação formal, não formal e militar. Entendemos, no entanto, que é necessário aprofundar e melhor especificar tais recomendações no âmbito dos estados, a fim de que as propostas de políticas tenham

mais eficácia. Por isso, apresentamos também alguns exemplos de políticas reparatórias na esfera educacional realizadas em outros países do Cone Sul, em âmbito estadual e nacional, a fim de que sirvam para subsidiar nossa análise sobre o desenvolvimento de tais políticas no Brasil e no estado do Rio de Janeiro.


A temática da ditadura no ensino de história

res distintos da sociedade. A memória da ditadura tem sido acionada na sua dimensão de direito, por grupos de atingidos ou familiares, mas “a evocação pública dessa memória não implica uma obrigação socialmente compartilhada”. Em outras palavras, os usos da memória na demanda por direitos, a despeito de sua gradual legitimidade, ainda carrega mais a marca dos combates individuais (mesmo em se tratando de grupos) do que a dos imperativos morais (HEYMANN, 2007).

Compreendemos que o ensino sobre a ditadura empresarial-militar deve estar localizado na chamada Educação em Direitos Humanos (EDH). Abordar a temática da ditadura em sala de aula é considerar, dentre outros muitos aspectos, a repressão e a violência estatal contra amplos setores da sociedade, que se mostraram críticos a tal regime. Essa repressão pode ser compreendida não apenas como violência física e psicológica, mas como retirada de direitos, arrocho salarial para amplas camadas de trabalhadores, vigilância permanente, aumento da exploração e da miséria no campo e nas cidades, desorganização de movimentos sociais, confisco do direito de resistir abertamente. Nesse sentido, o estudo do período não está restrito à identificação das violações ou de sua compreensão apenas do ponto de vista do regime ditatorial. Trazer um assunto do passado e julgá-lo prioritário na formação de jovens e adultos brasileiros é entender que esse passado é parte do presente, pois os conflitos sobre como processá-lo permanecem (JELIN, 2002).

Na luta contra a denominação de “país sem memória”, as iniciativas educativas ganham enorme relevância, pois podem expandir um conhecimento qualitativo e crítico sobre esse passado“ocultado”e sobre o próprio presente, analisando-o desde uma perspectiva histórica e não “presentista”. Como afirmou o historiador Carlos Fico,“o golpe de Estado de 1964 é o evento-chave da história do Brasil recente. Dificilmente se compreenderá o país de hoje sem que se perceba o verdadeiro alcance daquele momento decisivo” (2014). É a partir dessa perspectiva, que concebe práticas educativas como políticas de memória e de “não repetição”, nas quais o resgate de memórias contribui para compreender o período ditatorial e o pós-ditatorial, além do caráter inconcluso de nossa transição, que iremos desenvolver a análise que se segue.

No caso brasileiro, o tema passou a ser evocado com mais frequência nas “descomemorações” dos 50 anos do golpe de 1964 e com os trabalhos das Comissões da Verdade e de Anistia. Ainda assim, são reduzidas as políticas de verdade, memória e justiça que, quando reivindicadas, esbarram na manutenção da lei de anistia de 1979, de caráter amnésico, e na ausência de julgamento dos sujeitos envolvidos na repressão.

Ditadura e seu legado nas diretrizes e orienta-

Verificamos no Brasil uma espécie de “excesso de esquecimento”, em que predomina o léxico da conciliação e da cordialidade e onde a expressão dos conflitos, em torno do passado recente, apenas começa a ganhar o espaço público. Não obstante alguns avanços conquistados nos últimos anos na reparação pelos crimes da ditadura, não houve uma discussão ampla acerca da memória do período, incluindo seto-

ções curriculares As Diretrizes Nacionais para a Educação Básica, publicadas em 2012 em Diário Oficial, apresentam como um de seus eixos as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, resultado da revi-

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são, em 2006, do Plano Nacional para a Educação em Direitos Humanos (PNEDH). Tal plano configura-se como política educacional de Estado, voltada para cinco áreas: educação básica, superior, não formal, mídia e formação de profissionais dos sistemas de segurança e justiça. O PNEDH orienta a formação de sujeitos de direitos, articulando as seguintes dimensões: apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre direitos humanos e a sua relação com os contextos internacional, nacional e local; afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços da sociedade; formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente em níveis cognitivo, social, cultural e político; desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados e fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, da proteção e da defesa dos direitos humanos, bem como da reparação das violações.

ditatorial não aparece nas orientações curriculares propriamente. Verifica-se uma preocupação mais central com a abordagem dos direitos humanos enquanto “luta pelo reconhecimento e universalização da dignidade da pessoa humana” e da educação em direitos humanos como “ferramenta para a consolidação da democracia, para o fortalecimento de grupos tradicionalmente excluídos de seus direitos e para a promoção do aluno como um sujeito de direitos”. Tais concepções, de acordo com o documento, devem ser inseridas na abordagem dos conteúdos das diferentes disciplinas, relacionadas ou não com conteúdos já existentes. O propósito do documento nacional não é delimitar a abordagem da temática nas diferentes disciplinas, mas apenas servir como uma“referência de valores”, devendo estar presente não apenas na elaboração de currículos, mas também na gestão escolar, nos materiais didáticos e na formação docente. Não são apontados, portanto, caminhos objetivos para que tais valores possam ser estabelecidos na prática. Valores sem materialidade e sem contextualização acabam transformando-se em “palavras vazias” e pouco contribuem para que se avance na questão.

As Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, fundamentadas no PNDH anterior, fazem uso de uma concepção bastante ampla de Direitos Humanos e funcionam como um princípio norteador para a elaboração de projetos político-pedagógicos, gestão escolar, produção de materiais didáticos e formação de professores para os diferentes níveis e modalidades de ensino. O documento aponta três possibilidades de organização dos currículos das instituições de educação básica e superior: pela transversalidade; como conteúdo específico de uma das disciplinas já existentes no currículo escolar ou de maneira mista, combinando transversalidade e disciplinaridade.

Também recorremos à análise de outro documento, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), publicados em 1997, os quais servem para orientar a construção do currículo em cada disciplina. Os PCNs não sofreram uma revisão desde que foram publicados em 1997, não apresentando, portanto, as diretrizes instituídas pelo PNEDH de 2006. Neles não há uma listagem de conteúdos, mas orientações gerais que objetivam estruturar conteúdos que o professor vai escolher trabalhar. Foram traçados objetivos para a disciplina de História, bem como caminhos teóricos e metodológicos.

Apesar de fazer um histórico da educação em direitos humanos no Brasil, remontando ao período da redemocratização na década de 1980 e a presença daquela bandeira nos movimentos sociais que se reorganizavam na nova configuração política brasileira pós-ditadura, a relação da EDH com as violações de direitos ocorridas no período

O documento apresenta uma suposta liberdade de trabalho para o professor, mas sua demarcação teórico-metodológica se insere no bojo das mudanças verificadas nas políticas educativas brasileiras na

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década de 1990. Nelas, a utilização da lógica da competência e da racionalidade técnica para os currículos escolares foi um marco (CERRI, 2004: 219).

Outro exemplo importante desse processo de luta na educação foi a extinção das disciplinas de Educação Moral e Cívica (EMC), Organização Social e Política (OSPB) e Estudo dos Problemas Brasileiros (EPB), bem como o fim dos cursos de licenciatura curta em Estudos Sociais, que vigoraram durante os 21 anos de regime militar e nos primeiros anos dos governos pós-ditadura. A sua extinção dos currículos foi resultado das lutas dos anos 1980, que colocaram muitas críticas à forma pela qual o ensino de história estava organizado. As novas políticas da década de 90 separaram os currículos de História e Geografia, demanda histórica de parte significativa dos docentes naquele contexto (SILVA; FONSECA, 2010).

Os Parâmetros do Ensino Médio para a disciplina de história, inseridos no volume “Ciências Humanas e suas Tecnologias”, não fazem menção à temática da ditadura nem às violações de direitos humanos. Utilizam a concepção de“Nova História”, enfatizando o estudo da diversidade e da pluralidade dos sujeitos, bem como dos grupos historicamente excluídos, suas formas de ser, pensar e agir. O foco sugerido para o ensino da história se encontra no processo de constituição de identidade sociais e coletivas de homens e mulheres de“carne e osso”. Descartam-se análises estruturais e abordagens macroestruturais dos processos históricos.

Consideramos, no entanto, como parte da luta do presente, que a memória em sua relação com a história também deve ser apresentada para abarcar o estudo do passado recente brasileiro. Com isso queremos dizer que utilizar a memória no ensino de história é trazer disputas, conflitos e inquietudes ao presente. Como afirmou o historiador português Fernando Rosas:

O uso da memória como ferramenta da história é abordada somente a partir da identidade étnica e a relação entre memória e história é evocada para contribuir na compreensão da constituição de grupos identitários diversos que constituem a sociedade brasileira. Esse é um debate importante e vem ganhando ênfase nas políticas educativas de fins da década de 1990. O texto atual da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e a lei nº 4528/2005, que estabelece as diretrizes para a organização do sistema de ensino no estado do Rio de Janeiro, reiteram a ênfase no estudo da História do Brasil por meio da tríade “das matrizes indígena, africana e europeia” na formação do povo brasileiro (art.26). É importante lembrar, no entanto, que o foco do caráter formativo da História na constituição da identidade, da cidadania, da alteridade, do respeito à pluralidade cultural e à democracia foi resultado das lutas da década de 1980, no contexto da redemocratização e da Constituinte. Percebe-se que, apesar de esses valores se encontrarem no texto da lei e das orientações de forma generalizante, foram produtos sociais de lutas históricas, inscritas na “materialidade” da própria história do Brasil recente.

(...) os diferentes tipos de investimento em torno da Memória surgem-nos como um processo social complexo de construção das legitimidades que sustentam as formas de estar, de transformar ou de conservar o mundo em que vivemos. (...) Ou seja, não há um só e verdadeiro discurso sobre a Memória, não há memórias objetivamente puras, há memórias que conflituam, que se tentam anular, em última análise, quer se queira ou não, que tomam partido, pela intermediação de quem as convoca, face às grandes escolhas de cada situação, de cada conflito, de cada época. (ROSAS, 2009: 85)

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A incompletude do processo transicional brasileiro e a ausência de políticas integrais no âmbito da justiça de transição constituem batalhas do presente, que necessitam do resgate e da reflexão acerca das memórias do período ditatorial. Nesse sentido, o trabalho com a memória pode e deve ser feito pela preocupação com as omissões deixadas pela ditadura e pela redemocratização. Entendemos que a evocação da memória deve ser feita de um lugar particular, de uma demanda no presente. Para isso, é importante historicizar as memórias, como afirma Jelin (2002), “reconhecer que existem mudanças históricas nos sentidos do passado, assim como um lugar designado às memórias em diferentes sociedades, climas culturais, espaços de luta política e ideológica”. Considerar a importância da abordagem do tema da ditadura no currículo de história não é tratá-lo como mais um tema do passado brasileiro. Trata-se de uma questão que ainda apresenta ecos e que possibilita que os estudantes, longe da memorização ou do acúmulo de conhecimentos, analisem o assunto a partir de suas inquietudes e experiências cotidianas. Ressignificar um conteúdo do passado a partir de sua compreensão no presente é uma arma para a não repetição de políticas repressivas ou excludentes de Estado.

Nessa perspectiva, vale a pensa reforçar que o uso da memória no ensino de história é de suma importância, mas deve nos ajudar a identificar o processo de constituição do pensamento hegemônico ou da história dos “vencedores”, construídos a partir de silêncios, omissões, verdades implícitas, “de decorrências do senso comum invisivelmente imposto” (ROSAS, 2009). Que elementos não foram ditos ontem e continuam sendo pouco ditos hoje? Por quê? Não basta reconhecer os erros do passado, é preciso entender o que moveu a ação política dos diferentes atores e do próprio Estado brasileiro. Dessa forma, ensino de história e memória podem ser ferramentas para a não repetição. Se as diretrizes e orientações curriculares de caráter nacional não abordam a temática da ditadura com a devida importância, os documentos da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ) também apresentam insuficiências. Em 2011, a SEEDUC-RJ publicou o Currículo Mínimo para todas as disciplinas do Ensino Fundamental e Médio. Tal documento apresenta as competências e habilidades básicas que devem estar contidas nos planos de curso e nas aulas. Sua institucionalização gerou enormes polêmicas na comunidade escolar. Por ter resultado de um processo feito às pressas e com pouca representatividade entre os professores da rede pública estadual, o Currículo Mínimo foi visto como uma normatização “de fora para dentro”, sem agregar o conjunto do corpo docente nas discussões sobre “o que”,“como” e “por que” ensinar História. Seus objetivos foram identificados à logica dos resultados de aprovação e financiamento, e não como instrumento para estimular a reflexão crítica (QUIRINO, PEREIRA, LEAL, OLIVEIRA, 2012).

De certo modo, os PCN’s apresentam a perspectiva da EDH traçada nas Diretrizes Nacionais, mesmo que aquele documento tenha sido formulado antes. Todavia, a preocupação identitária numa perspectiva cultural se sobrepõe a outras perspectivas de análise: social, política, econômica. No afã de criticar e “superar” a abordagem de história dominante nos anos 80, de caráter estrutural e, muitas vezes de viés político-institucional, os PCN’s acabam expressando uma concepção excessivamente “culturalista” das experiências históricas. Esquece-se da perspectiva de processo histórico, dos conflitos sociais, das motivações político-ideológicas, dos interesses econômicos para centrar no estudo dos grupos identitários e sua ausência na constituição de uma história do Brasil contada a partir da perspectiva dos “vencedores”.

O Currículo Mínimo de História privilegia a abordagem cronológica dos acontecimentos, delimitada a partir dos marcos da História europeia (Pré-História, Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea) e se propõe a fazer uma seleção de conteúdos que abarque a realidade dos vários continentes. Assim, episódios da História da África, das

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Américas e da Ásia são trazidos para o currículo de acordo com a cronologia da história europeia. Esse processo traz alguns problemas, dentre eles o fato de esses conteúdos funcionarem como “apêndices” e não contribuírem para o estudo da história desses territórios e suas sociedades antes da colonização europeia.

nos a pensar o presente. No entanto, é importante que os conceitos escolhidos para se trabalhar em sala de aula não sejam expressões generalizantes, que sirvam para caracterizar regimes políticos que tiveram lugar em condições bastante específicas e foram movidos por interesses políticos, ideológicos, econômicos e sociais diversos. Conceitos como “totalitarismo” e “populismo” podem abarcar uma infinidade de relações de poder e relação Estado/classes sociais, carregando extensas polêmicas no âmbito acadêmico. É fundamental que o saber escolar se articule e se complemente com o saber acadêmico, mas, da forma como está sugerido no documento, os professores devem trabalhar a distinção dos conceitos sem um rigor muito preciso.

No que se refere à abordagem do período ditatorial brasileiro, o documento menciona esse conteúdo em dois momentos: no 9º ano do ensino fundamental e no 3º ano do ensino médio. No ensino fundamental, o currículo mínimo propõe que o professor discuta os conceitos de revolução, populismo e ditadura a partir do conteúdo da “Era Vargas”. No 4º bimestre, as aulas de história devem permitir que o estudante compare “as diversas relações de poder democráticas e ditatoriais”no Brasil contemporâneo,“compreenda os movimentos de dominação e resistência na ditadura militar e no processo de redemocratização”, contextualize “os diferentes agentes que contribuíram para as sucessivas crises político-econômicas no Brasil” e “analise a situação socioeconômica brasileira após a estabilização financeira”. No ensino médio, o professor deve trabalhar com o conteúdo sobre “sistemas totalitários na Europa do século XX: nazifascismo, ditaduras na América Latina e Estado Novo no Brasil”. Ao final do bimestre o aluno deve saber “identificar as diferenças entre os conceitos de totalitarismo e ditadura”e“relacionar o contexto sociopolítico com a construção das ditaduras e do populismo na América Latina”. Por último, o professor, ao trabalhar com o conteúdo referente à “Nova ordem internacional: socialismo de mercado (China), neoliberalismo e Brasil contemporâneo”, deve estimular que o estudante analise o “processo histórico de redemocratização brasileiro e seus desdobramentos”.

Outra questão a ser ressaltada é a ausência de uma diferenciação entre governo, regime, Estado e sistema. As quatro categorias se confundem no documento, dificultando que o professor trabalhe com diferentes temporalidades, a conjuntura, a média e a longa duração, e promova a reflexão sobre as permanências e rupturas nos processos históricos. Ao invés de “regime político”, o documento usa a expressão “relações de poder”, caracterizando-a como ditatorial ou democrática. Uma relação de poder é marcada por conflitos políticos e disputas entre agentes ou grupos, categorias ou classes sociais e não encerra em si todas as qualidades de um regime político. Sendo assim, relações de poder não são democráticas ou ditatoriais, mas compõem um regime político que pode ter aquelas características. Outro ponto que chama a atenção é a ausência de menção às violações de direitos humanos cometidas durante o período ditatorial e a possibilidade de abordagem do tema com diversidade de fontes documentais e depoimentos. A gradual abertura dos arquivos da repressão permite que a temática seja mais bem trabalhada nas aulas de história, a partir da utilização de documentos “sensíveis”, que mostrem a truculência do regime e atuem contra o escamoteamento da violência da ditadura brasileira (FICO, 2012).

Observamos que, como o próprio documento propõe em sua parte introdutória, o estudo da história é sugerido a partir de uma análise conceitual que antecede a sua contextualização histórica. Essa é uma metodologia interessante e funciona para instrumentalizar os alu-

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A ausência de menção à luta pela anistia e à justiça de transição, bem como da expressão“direitos humanos”revela o quanto esse tema vem sendo desconsiderado nas políticas educacionais. Mesmo que esses temas façam parte da competência “analisar o processo histórico de redemocratização brasileiro e seus desdobramentos”, eles devem ser explicitamente mencionados e destacados, sob o risco de não haver tempo hábil para a sua abordagem em sala de aula.

Os conhecimentos não são peças soltas que podem ser empilhadas ou somadas, mas apenas têm sentido em marcos interpretativos socialmente compartilhados. Nessa perspectiva, as demandas sociais que trazem para a esfera pública determinadas versões ou narrativas do passado, ou a demanda de incluir certos conteúdos do passado no currículo escolar ou na “história oficial” têm uma dupla motivação: uma explícita, ligada à transmissão do sentido do passado às novas gerações. Outra, implícita, mas não menos importante, responde à urgência de legitimar e institucionalizar o reconhecimento público de uma memória. (p.127)

Por último, o documento não aborda o contexto sócio-político que antecedeu o golpe de 1964, marcado pela ampla mobilização política das classes populares e pelo fortalecimento do movimento operário e camponês. A listagem de conteúdos não considera o acirramento dos conflitos sociais que antecedeu o golpe e os distintos interesses políticos em disputa na sociedade brasileira. Em suma, o sentido do golpe não é considerado; a repressão, a censura e o projeto econômico do regime militar não são mencionados e as lutas pela anistia “ampla, geral e irrestrita”, pela abertura e pelas reparações não são levadas em conta. No ensino médio, quando o estudante tem mais condições de compreender o período, o termo“ditadura”nem é citado no conteúdo de Brasil contemporâneo.

A autora nos ajuda a pensar que o foco central no ensino de história não é trazer uma lista de conhecimentos sobre o passado da qual o aluno precisa acumular, mas selecionar conteúdos que possam fazê-lo dialogar com as reflexões de seu cotidiano. Nessa perspectiva, podemos pensar os conteúdos não como fins, mas como meios para desenvolver o pensamento crítico e a prática da pesquisa com a história. As temáticas de nosso passado recente, em especial, a ditadura e a redemocratização, vêm ganhando espaço nos currículos escolares desde a década de 90. No entanto, esse espaço ainda é pouco explorado e enfatizado, é tratado sem a devida importância. Mesmo que o tema ainda seja abordado de forma heterogênea nos documentos normativos, livros didáticos e salas de aula, devido a sua proximidade com o presente, carece de um devido reconhecimento público, fundamental para inserir as novas gerações numa educação em direitos humanos.

Ao dificultar uma abordagem mais processual da história, o professor é levado a trabalhar com conteúdos considerados imprescindíveis em uma longa listagem. Esses conteúdos não são eleitos a partir de uma preocupação com o presente, e a temática da ditadura é apresentada como “mais uma” entre tantas. Privilegia-se o acúmulo de conhecimento, ao invés de uma reflexão crítica ou de uma abordagem metodológica inovadora. Elizabeth Jelin (2002), ao analisar a aprendizagem e formas de apreensão do passado por meio da memória, afirma que a questão principal não é somente acumular conhecimentos:

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A temática da ditadura e seu legado nos livros

são, de um modo geral, bastante desiguais.

didáticos

Apesar de alguns descompassos encontrados em alguns livros nos quais ainda aparecem incorreções factuais e teses já descartadas pela historiografia mais recente, de um modo geral a constatação é de que o tema vem sendo tratado com cada vez maior seriedade e tem ocupado cada vez mais espaço nos livros aprovados pelo PNLD.

Um dos eixos do Projeto sobre políticas de memória desenvolvido no Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio está sendo a análise dos livros didáticos aprovados pelo PNLD (Plano Nacional do Livro Didático). Os PNLD são listas trienais dos livros aprovados na seleção feita por um corpo técnico de especialistas a convite do Ministério da Educação e que, portanto, podem ser adotados pelas escolas públicas a critério dos professores.

Em nossa análise, um dos principais problemas constatados foi a tendência predominante nos livros para as narrativas que organizam cronologicamente as sucessões “presidenciais” e os Atos Institucionais, estruturadas na forma de uma história política tradicional. Além de essas narrativas dificultarem a percepção da continuidade do período ditatorial e de sua unidade ao longo do tempo, também afastam e tornam secundários todos os outros temas que costumam ser colocados à parte, dissociados da análise central, como a cultura, a censura, a propaganda e a repressão.

A análise dos capítulos sobre a ditadura feita até aqui, com base nas listas mais recentes do Ensino Médio de 2013 e do Ensino Fundamental de 2014, ainda não é conclusiva, mas já nos permite esboçar algumas considerações importantes. Também usaremos como ferramenta para a análise a sistematização dos resultados da Jornada de Ensino de História e Ditadura, organizada pelos membros do projeto na PUC-RJ, realizada em Outubro de 2014, naquela universidade. A jornada contou com a participação de estudantes e professores e a realização de oficinas temáticas sobre a ditadura e as violações.

É recorrente encontrar esses temas em quadrinhos ou seções separadas do texto central, daquela narrativa que é “cobrada” e avaliada como conteúdo principal. Ainda que a intenção dos autores e editores com essas divisões possa ser, contraditoriamente, a de dar maior destaque para certos temas, a dissociação dos conteúdos influencia a leitura de professores e alunos que tendem a desconectar a narrativa cronológica e política tradicional dos diferentes relatos sobre resistência cultural, censura à imprensa, luta armada, manifestações estudantis, testemunhos de presos políticos, depoimentos de militares e outros como assuntos desconectados.

A primeira conclusão acerca da análise dos livros didáticos diz respeito à heterogeneidade marcante na seleção dos temas, na elaboração dos conteúdos, na periodização (1964-1985 tem sido a principal tendência, mas alguns falam em “democracia relativa” após 1979) e na terminologia empregadas (regime militar, governo autoritário, ditadura são alguns dos termos encontrados), no número de páginas dedicado ao período e na maneira como cada um dos livros analisados aborda o pós-64. Ao contrário de outros temas já consagrados no ensino de História, como a Revolução Industrial, a Segunda Guerra Mundial ou a Expansão Ultramarina, que se encontram mais consolidados e uniformes nos diferentes manuais didáticos, os capítulos sobre a ditadura

Por fim, as lacunas mais evidentes estão precisamente nos temas mais sensíveis. A repressão aos trabalhadores e aos camponeses não aparece em muitos livros e a repressão aos povos indígenas, assunto que tem ganhado destaque no debate público sobre a ditadura, só se encontra em uma publicação. Outros temas raros são a Operação Con-

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dor e os atentados terroristas à bomba planejados e executados pelas Forças Armadas.

Federico Lorenz (2004) afirma o seguinte sobre o caso argentino:

Tendo em vista o objetivo da pesquisa, um dos principais elementos que buscamos identificar nos livros foram as menções à tortura, morte e desaparecimento forçado de pessoas. É sem dúvida um alívio constatar que hoje todos os livros aprovados pelo PNLD criticam a existência de práticas de tortura, mas lamentavelmente o tema não é tratado com profundidade. Mortes e desaparecimentos são tratados de forma muito geral pela maioria das obras, e somente em quatro publicações encontramos dados mais precisos como número de vítimas ou casos concretos.

Os livros didáticos incluem o tema, ainda que com maior ou menor profundidade. Mas raras vezes esses temas são discutidos nos institutos de formação docente, o que implica que os saberes prévios dos docentes pouco têm a ver com as políticas educativas, ainda que sejam eles que as tornem concretas em suas práticas cotidianas, materializadas no trabalho em sala de aula. Nesse ponto, a brecha entre as políticas públicas de memória (e a educação é um aspecto dessas políticas) e os docentes se amplia. Até o dia de hoje (2004), a presença do tema “direitos humanos” na escola depende da iniciativa do docente. A inclusão no calendário escolar de atividades, por exemplo, não garantiu o tratamento em profundidade, nem propostas de atividades específicas. (...) A escola não está isolada da sociedade: se faz apenas poucos anos que estes tópicos são discutidos socialmente, não podemos pretender um panorama distinto nas escolas. (...).

Outras lacunas preocupantes: faltam debates críticos sobre a Anistia e a Justiça de Transição, hoje praticamente inexistentes, e está ausente dos livros de História a expressão “Direitos Humanos”, embora esta apareça nos manuais de Sociologia para o Ensino Médio. É importante notar que uma completa separação disciplinar opera nesse caso, e o “conteúdo” relativo aos Direitos Humanos aparece sempre isolado de um debate concreto, historicizado ou relacionado às graves violações que ocorreram no período pós-64.

O autor diz ainda que as datas comemorativas muitas vezes renovam os problemas e reforçam as contradições, como é o caso do aniversário do golpe em março. Para muitos pais seria melhor não se discutir política nas escolas, professores resolvem muitas vezes passando um filme sobre o tema e pronto. Na Argentina, ele diz, o professor sente falta de ferramentas, recursos didáticos e fontes documentais, o que gera grandes dificuldades ao trabalhar com temas tão carregados de uma dimensão ética. Sente a carência também de espaços de reflexão e intercâmbio, apesar de querer ser objetivo no cumprimento dos currículos e programas e nem sempre estar muito aberto para “sair dos livros” ou questionar as convicções de que está certo, submetendo à crítica seus próprios pensamentos e conhecimentos.

Grande parte dos participantes da Jornada de Ensino de história e ditadura considerou que a abordagem da temática da tortura e das violações nos livros didáticos de história apresenta-se simplista, superficial e pouco problematizada, dependendo da mediação do professor para tratar de maneira mais adequada o tema em sala de aula. Os livros retratam o tema, mas não conseguem sensibilizar os alunos, apresentando o conteúdo sem relacioná-lo como as inquietações do presente. O cenário parece desolador, mas se procuramos comparar com outras épocas e contextos, perceberemos que nossas dificuldades são partilhadas por outros países e que o presente indica alguns avanços.

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Para esse historiador argentino,“o desafio parece ser o de construir pontes entre o passado e o presente, manter vivo o passado, mas antes como gerador de inquietações sobre a atualidade dos alunos do que como modelo a imitar, sentir saudade ou lamentar”. Os autores concluem a introdução dessa obra afirmando que os professores se queixam da falta de materiais e de políticas claras para o ensino do passado repressivo, mas, longe de oferecerem respostas prontas e acabadas ou, muito menos, defenderem a produção de uma nova versão oficial e autorizada da História, sua proposta é de que se construa esse espaço de maneira ativa com os alunos.

ocupam espaço vantajoso no campo, são evidentes os muitos avanços alcançados hoje no ensino de História da ditadura. Longe de ser um campo neutro e muito menos homogêneo, a universidade tem produzido um amplo leque de abordagens historiográficas sobre o golpe e desde os anos 1970 tem colocado questões fundamentais e atravessado inúmeros embates e polêmicas na produção do conhecimento sobre o período. É importante reconhecer que essas disputas e oposições dentro do campo acadêmico têm sido um dos fatores que impulsionam as pesquisas na área e são saudáveis, ao contrário de representar um problema para a escrita e o ensino da História.

No Brasil, dois estudos comparativos sobre o tema da ditadura nos livros didáticos de História dos anos 1970 até 2000 nos ajudam a compreender esse processo, um deles de Mateus Faria e Andreza Pereira (2009), o outro de Aristeu Castilhos da Rocha (2008). São dois balanços da produção de livros didáticos que apontam para uma lenta e progressiva aproximação entre o conhecimento produzido na academia e os conteúdos que efetivamente chegam aos professores da educação básica e às escolas por meio dos livros didáticos. Ambos mostram como as diferentes narrativas nos anos 70, 80 e 90 reproduzem tendências hegemônicas nas universidades em cada época e apontam na direção de uma problematização e complexificação cada vez maior do tema e do período, abandonando progressivamente as explicações simplistas em busca de uma explicação multicausal do golpe de 1964 e da ditadura.

Outras disputas de versões sobre o passado diferenciam os educadores responsáveis pelos currículos e materiais pedagógicos nas escolas militares das análises produzidas pelas universidades. Os livros didáticos ainda hoje usados em muitas escolas militares tentam consolidar uma narrativa oficial que contempla apenas uma certa memória militar sobre o período. Descolados das pesquisas mais recentes do campo acadêmico, observamos que tais manuais nem mesmo contemplam as diferentes versões das memórias militares e como regra são deixados de fora os testemunhos dos milhares de militares que se opuseram ao golpe e à ditadura, muitos dos quais foram punidos por defenderem princípios como a democracia e a legalidade violadas em 64. A história do tempo presente, em especial aquela relativa a um passado recente, traumático e sensível implica uma série de cuidados que o professor deve tomar. É preciso que estejamos muito atentos ao rigor metodológico empregado nas pesquisas que utilizamos, nos relatos de história oral e nos testemunhos que selecionamos, na análise das fontes em que confiamos. É fundamental, para isso, manter aberto o canal com a universidade e o conhecimento produzido na academia, pois o chamado “saber acadêmico” e o “saber escolar” precisam ser

Apesar da maneira como os departamentos de História nas universidades foram cerceados politicamente e colocados em segundo plano com a criação das disciplinas de Estudos Sociais, OSPB e Moral e Cívica pela ditadura; em que pese a lentidão e os muitos obstáculos enfrentados na transição para o acesso às fontes documentais oficiais sobre o período que prejudicou e continua prejudicando a pesquisa acadêmica; não obstante a existência de correntes revisionistas que

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complementares embora nem sempre caminhem em paralelo. Cabe ao professor de História em todos os níveis de ensino reconhecer os passos já percorridos pela hoje vasta produção acadêmica no campo da História e deixar o lugar de reprodutor de conteúdos dos livros didáticos de hoje ou de ontem, reproduzindo opiniões do senso comum ou de sua memória pessoal.

27º, define como diretrizes para os conteúdos curriculares da educação básica “ I - a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática.” Os critérios específicos de seleção dos livros didáticos de história do Ensino Médio ressaltam a importância de os materiais orientarem os alunos “a pensarem historicamente” e “compreenderem as situações reais da sua vida cotidiana e do seu tempo”. Também estimulam que os alunos atentem para a “historicidade das experiências sociais (...) com vistas à construção da cidadania”.

É cada vez mais necessário para o professor afastar-se dos livros didáticos e buscar outras fontes de informação, atualizar-se em relação às novas descobertas que resultam dos trabalhos das comissões da verdade, encarar o desafio cada vez mais árduo em função da velocidade com que vêm à tona documentários, livros e materiais pedagógicos diferentes, entrevistas, e mesmo conjuntos de documentos públicos e privados. De acordo com os participantes da Jornada, o uso de fontes visuais, documentários e fontes textuais contribuem mais para a sensibilização dos alunos e permitem que eles melhor se apropriem, a partir de suas próprias experiências, do conteúdo sobre ditadura e violações. Mais urgente ainda para o professor que trabalha com a história do tempo presente, com a história de um passado traumático e violento que insiste em não passar, é se perguntar quais as implicações éticas e políticas da sua ação pedagógica? Perguntar em que medida os casos de violações graves de Direitos Humanos por agentes do Estado que seguem repetindo-se, não atualizam no presente de muitos de nossos alunos os gravíssimos episódios de tortura, morte e desaparecimentos do pós-64.

Defesa da cidadania a partir de uma perspectiva de direitos integrais, incluindo o de se manifestar contra injustiças devem, portanto, orientar o trabalho do professor de todas as disciplinas e ganham especial relevo nas aulas de História. Para uma prática transformadora, o professor de História precisa reconhecer seu lugar ativo na construção de uma cultura de direitos em toda sua prática docente e, em especial, na abordagem de períodos em que a violação de direitos foi institucionalizada e normalizada pelo Estado. A permanência e as transformações nas formas de violência institucionalizada, realizadas pelo Estado brasileiro contra a população jovem, negra e de baixa renda deve ser estudada de uma perspectiva histórica, a fim de auxiliar em seu processo de desnaturalização. Acionar a relação entre história e memória para o estudo do passado recente brasileiro contribui para pensar o estado de inconclusão e incompletude de políticas reparatórias, de verdade, memória e justiça nos dias de hoje.

A LDB (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), na parte que trata “Dos Princípios e Fins da Educação Nacional”, define no artigo 2º a educação como“dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana” e que “tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. No artigo

Quem ensina sabe que, lamentavelmente, sempre existirá um enorme espaço vazio entre o que o professor acredita ensinar e aquilo que de fato se aprende em sala de aula. Por isso, o ensino de História não pode prometer e nem garantir resultados seguros, quantificáveis, previsíveis nem muito menos imediatos em termos de transformação social. A educação não salva e nem redime, sua função não é moralizar,

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reformar ou dar lições corretivas aos estudantes.

trimonial, ao sistema de ensino autoritário e elitista, ao descaso com a violência política exercida com os pobres, ao sistema patriarcal e machista, ao individualismo consumista da sociedade capitalista. Nesse sentido, o desenvolvimento de políticas que contribuam para construir uma educação em direitos humanos é fundamental, pois supera a retórica presente nas diretrizes curriculares e possibilita a mudança radical de valores. Na escola, essas políticas devem estar vinculadas à realidade concreta dos alunos, dos professores, dos diretores, dos funcionários, da comunidade que a cerca (BENEVIDES, 2003: 317).

No entanto, a educação é atividade transformadora, é prática política de intervenção sobre o mundo social e a realidade. Por isso somos muitos os educadores que partilham da certeza de que nenhum outro campo apresenta tamanho potencial de mudança, nem exige tamanha esperança no futuro.

Em âmbito estadual, essas medidas podem ser mais bem definidas e encaminhadas. Os países do Cone Sul nos fornecem inúmeros exemplos de encaminhamento de políticas reparatórias na esfera educacional. Na província de Buenos Aires foi lançado, em 2002, o programa “Jóvenes y memoria – Recordamos para el futuro”, organizado pela Comissão Estadual pela Memória. O programa visa trabalhar a temática da última ditadura militar argentina nas escolas secundárias, de forma que os próprios estudantes se apropriem das experiências passadas a partir de pesquisas realizadas em sua comunidade. O programa conta com três fases: pesquisa, sistematização e divulgação, e as escolas selecionadas recebem capacitações de professores e alunos, materiais e espaços próprios para o desenvolvimento do projeto. A partir da escolha de um tema ou uma pergunta sobre a história de sua comunidade, equipes de alunos e docentes iniciam uma investigação, entrevistando protagonistas, consultando arquivos e produzindo um relato para expor as suas conclusões. O suporte do produto final também é escolhido entre eles: um vídeo, um mural, uma peça de teatro, uma intervenção urbana, uma mostra fotográfica, um CD multimídia, uma página na web, uma revista, um livro, um programa de rádio, dentre outros. De acordo com os elaboradores do projeto:

Recomendações da Comissão Nacional da Verdade sobre o Ensino e Políticas Reparatórias de Educação no Cone Sul O Relatório Final da CNV (2014) aponta como demanda a “promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação”, reconhecendo a esfera educacional como campo fundamental para a construção de uma cultura dos direitos humanos. Para isso, propõe à administração pública a adoção de medidas para a inclusão da história política recente do país na estrutura curricular das instituições de ensino, públicas e privadas, de nível básico e superior. Entendemos que a“cultura em direitos humanos”não pode ser tomada de uma perspectiva puramente formal, relacionada às liberdades individuais do liberalismo clássico, ou de um ponto de vista retórico, sem implicação prática na realidade social. Como pontuou Benevides (2003), construir uma cultura de direitos humanos no Brasil é identificar uma necessidade radical de mudança, mexendo no que se encontra mais enraizado nas mentalidades e práticas. Em nosso país, essa construção implica em derrotar valores historicamente definidos, relacionados ao longo período de escravidão, à política oligárquica e pa-

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Os alunos formulam hipóteses, interpretam e decidem o que e como contar. A escola se transforma assim em produtora de conhecimento crítico, original e inovador. Os jovens se deslocam do lugar de receptores de relatos e conceitos sobre a história, para o de construtores de conhecimentos, com a peculiaridade de trabalhar em grupos, produzir um trabalho coletivo que terá impactos para além dos muros da escola. A receptora é a comunidade em que vivem os jovens, seus pais, seus professores, seus colegas que “recebem” relatos do passado construído com base nas perguntas das novas gerações. (Retirado de: http:// jovenesymemoria.comisionporlamemoria.net/. Acesso em: 22 jul. 2015)

de uma pesquisa feita com educadores de todo o país para pensar políticas públicas educacionais para o ensino do passado recente. Criado em 2005, com o nome “A 30 anos do golpe”, o projeto acompanhou a implantação, do ponto de vista da educação, de políticas de Direitos Humanos executadas pelo Poder Executivo. No estado de Huánuco, no Peru, a secretaria regional de educação desenvolveu em 2005 a política “Construyendo la memoria histórica em la escuela” voltada para as escolas primárias daquela região. O projeto é uma tentativa de executar as recomendações elaboradas no âmbito da Comissão da Verdade e Reconciliação, que demanda a diversificação do currículo escolar no sentido de uma educação mais democrática e plural. Sua realização se deu nas quatro províncias de Huánuco mais afetadas pela violência política levada a cabo pelo último golpe militar de 1968, que levou ao regime ditatorial de Juan Velasco Alvarado, prolongando-se até 1980. O projeto teve início com capacitações de professores e diretores de escolas selecionadas, onde foram discutidas medidas de diversificação dos currículos escolares. Em seguida, foram elaborados cadernos metodológicos para docentes, posteriormente submetidos a avaliação pelas instituições educacionais. A partir de 2007, tiveram início atividades mais amplas de capacitação e sensibilização da comunidade escolar em torno das recomendações da Comissão da Verdade e Reconciliação.

O programa acontece em cidades de grande e pequeno porte, em locais de alta e baixa renda, proporcionando resultados bastante heterogêneos. As temáticas escolhidas podem agrupar-se em torno de alguns eixos, como: biografias de desaparecidos da comunidade, reconstrução de episódios locais, de repressão ou resistência, reconstrução da vida cotidiana durante a ditadura, dentre outros. Na Argentina, o Ministério da Educação também aprovou, em 2011, o programa “Educação e Memória”, incluído no Plano Quinquenal de Educação Obrigatória e Formação Docente. Seu objetivo é “consolidar uma política educativa que promova o ensino da história recente nas aulas como uma ferramenta para a construção de uma nova cidadania política”. Resultado de lutas de organizações de direitos humanos, o programa de âmbito nacional apresenta a necessidade de inserção de conteúdos curriculares nas escolas relacionados à construção de uma identidade nacional a partir de uma perspectiva regional latino-americana; à luta pela recuperação das Ilhas Malvinas e ao exercício e à construção da memória coletiva relativa à história recente. Para isso, a política é organizada em torno de três eixos temáticos: Terrorismo de Estado: memórias da ditadura; Malvinas: memória, soberania e democracia e Ensino do Holocausto e outros genocídios. O programa surgiu a partir

Cabe lembrar que esse projeto regional está inserido no âmbito de uma política nacional de educação. Em 2005, o Ministério da Educação do Peru aprovou uma nova orientação curricular nacional para a educação regular básica, com a inclusão de um item sobre a diversidade cultural e social que engloba, por sua vez, temas sobre violência e conflito interno no Peru contemporâneo, verdade, justiça e memória coletiva.

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Em 2008, o Paraguai também implementou uma política reparatória na esfera educacional, propondo a incorporação, no currículo escolar, da disciplina “Autoritarismo en la Historia Recente del Paraguay”. A medida foi encaminhada pelo Ministério da Educação e Cultura e pela Comissão da Verdade e Justiça em nível nacional e consistiu na incorporação de uma nova disciplina voltada para a discussão da temática da ditadura entre os alunos do terceiro ciclo da educação média. O objetivo do projeto é permitir que os jovens conheçam as graves violações de direitos humanos cometidas pelo Estado durante o período ditatorial. Foram desenvolvidos materiais didáticos próprios, cursos de capacitação para docentes em todo sistema educacional do país e cursos voltados para lideranças comunitárias.

estabelecida para os conteúdos de história. Pensamos, portanto, que o estado do Rio de Janeiro pode avançar em formulações nessa esfera, superando lacunas na formação de jovens e professores e conjugando memória, história e ensino como ferramentas para a não repetição.

Propostas de recomendações para o relatório final da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro

Cabe lembrar ainda que o estado do Amapá no Brasil, por meio da Comissão Estadual da Verdade “Chaguinha”, iniciou o desenvolvimento do projeto “A memória vai à escola”, com o objetivo de levar ao espaço escolar e acadêmico do Amapá a temática da ditadura civil-militar, especialmente a memória da resistência. Com esse intuito foram realizadas palestras nas instituições educacionais, seguidas de debates, exibição de filmes, fotos, música, poesia e peças teatrais. Apesar do sucesso inicial, o projeto não pode ser levado adiante devido à mudança de governo do estado, o que provocou a sua descontinuidade.

1 - Reformular os Currículos Mínimos e as orientações curriculares municipais, a fim de garantir a inclusão do debate sobre a ditadura empresarial-militar e seu legado de forma mais profunda nas redes estadual e municipal de ensino do Rio de Janeiro.

Essas medidas não encerram a problemática da reparação na esfera educacional, mas contribuem para que, gradativamente, as novas gerações possam conhecer o passado recente de seu país, posicionando-se criticamente com relação às políticas repressivas de Estado. É importante visualizá-las de forma articulada, pensando no caráter complementar das ações de reformulação curricular, produção de material didático, formação de professores numa perspectiva de Direitos Humanos e institucionalização de datas significativas para debater a temática da ditadura nas escolas, independente da sequência

Órgão responsável: Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ) e Secretarias Municipais de Educação do Estado do Rio de Janeiro

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Justificativa:

2 – Reformular os critérios de avaliação de livros didáticos do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), de forma a incluir, na síntese dos critérios específicos da disciplina de História, abordagens qualificadas da temática do golpe de 1964 e da ditadura empresarial-militar e seu legado, que considerem uma explicação multicausal bem como as violações de direitos humanos realizadas pelo Estado brasileiro e os vários grupos sociais atingidos.

Os currículos mínimos implantados pela SEEDUC-RJ e as orientações curriculares das Secretarias Municipais de Educação embora tratem do tema da ditadura empresarial-militar no Brasil, não o fazem a partir de um debate que inclua o sentido histórico do golpe de 1964; as violações de direitos humanos ocorridas no período e os vários grupos sociais atingidos; o lento processo de transição, seus significados e desdobramentos e as lutas sociais pela memória, verdade e justiça. A exigência de que esse tema seja tratado nas escolas é essencial para transmitir o conhecimento sobre os fatos ocorridos para as novas gerações, condição para o estabelecimento de uma cultura de respeito aos Direitos Humanos que permita a reflexão crítica, e não o acúmulo de conhecimentos, sobre a permanência da violência política e social ao longo da História do Brasil.

Órgão responsável: Ministério da Educação (MEC)

Justificativa:

Fundamento normativo: Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007); Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011 – Cria a Comissão Nacional da Verdade

Os livros didáticos adotados pelo PNLD embora tratem do tema da ditadura empresarial-militar ainda priorizam uma abordagem político-institucional, dissociando a narrativa política tradicional, organizada de forma cronológica e linear, de outros temas igualmente importantes como a repressão e as violações de direitos humanos a amplos setores da sociedade, a propaganda, a censura, as diversas formas de resistência ao regime, as lutas pela anistia e o caráter conciliador e amnésico da lei de 1979, bem como seus desdobramentos para a construção do regime democrático pós-transição. A exigência de que seja criado um novo critério de seleção de livros é fundamental para que essa temática ganhe maior relevância nos livros didáticos, base de consulta para alunos e professores, possibilitando novos canais para a construção da cidadania dentro e fora das escolas e uma abordagem interdisciplinar da reflexão histórica.

Experiências relevantes: “Educação e Memória” – Argentina/ política nacional (2011); “Construyendo la memoria histórica en la escuela” – Peru, Huánuco/ política estadual (2005); “Inclusión de contenidos, recomendaciones y conclusiones del Informe Final de la Comisión de Verdad y Reconciliación en la estrutura curricular educativa de la región de Huánuco” – Peru, Huánuco/ política estadual; “Diseño Curricular Nacional de la Educación Básica Regular” – Peru/ política nacional; “Incorporación en el currículo de la materia ‘Autoritarismo en la Historia Reciente del Paraguay’” – Paraguai/ política nacional (2008).

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3 - Promover cursos de formação inicial e continuada de professores sobre história e memória do passado recente brasileiro, a fim de valorizar a temática nas salas de aula e a produção de conhecimento no âmbito da educação em direitos humanos.

Fundamento normativo: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB - Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996); Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007); Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011 – Cria a Comissão Nacional da Verdade.

Órgão responsável:

Experiências relevantes: O processo de luta para obter a inclusão da História e cultura afro-brasileira e africana nos livros didáticos brasileiros pode ser uma referência para pensarmos a inclusão mais profunda e crítica da temática da ditadura de 1964 a 1985. A Lei nº 10.639/2003 acrescentou à LDB dois artigos que estabelecem o ensino da História e cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e particulares brasileiras. Em 2004 foram aprovadas, por meio da Resolução nº 1 do CNE, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Em 2008, a lei nº 11.645 alterou novamente a LDB para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. As alterações na lei exigiram mudanças e adequações nos livros didáticos, bem como o acréscimo de novo critério de avaliação dos livros pelo PNLD.

Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ), Secretarias Municipais de Educação do Estado do Rio de Janeiro e Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH).

Justificativa: A alteração de orientações curriculares e dos conteúdos dos livros didáticos deve vir acompanhada por uma proposta de formação docente que contemple a reflexão sobre o passado recente brasileiro, nem sempre apresentada com profundidade nos cursos de licenciatura. A formação inicial e continuada deve possibilitar o estreitamento de laços entre o conhecimento acadêmico e o escolar, apresentando múltiplas possibilidades de abordagem do tema da ditadura e da redemocratização em sala de aula, propor o uso de fontes históricas diversificadas bem como o incentivo à formação docente atrelada à pesquisa e à produção de conhecimento na perspectiva dos Direitos Humanos.

Fundamento normativo: Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007); Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011 – Cria a Comissão Nacional da Verdade.

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Experiências relevantes: “Construyendo la memoria histórica en la escuela” – Peru, Huánuco/ política estadual (2005); “Incorporación en el currículo de la materia ‘Autoritarismo en la Historia Reciente del Paraguay’” – Paraguai/ política nacional (2008); “Futuro con Memoria” – Argentina, Chubut/ política estadual (2008); “Recursos de aula: fechas especiales: 24 de marzo. Dia Nacional de la Memoria por la Verdad y Justicia” – Argentina, Chubut/ política estadual (2009).

das escolas, mas também possibilita tratar de temas correlatos nas escolas estaduais e municipais.

4 - Instituir o dia 28 de março como data significativa para a abordagem da temática da democracia e dos direitos humanos

Experiências relevantes: “Recursos de aula: fechas especiales: 24 de marzo. Dia Nacional de la Memoria por la Verdad y Justicia” – Argentina, Chubut/ política estadual (2009);“Dia de la Memoria por la Verdad y la Justicia” – Argentina, Chubut/ política estadual (1996); “Dia de la Memoria por la Verdad y la Justicia” – Argentina/ política nacional (2002); “Día del Detenido-Desaparecido” – Argentina, Buenos Aires/ política estadual (2001); “Día Provincial de la Memoria” – Argentina, Buenos Aires/ política estadual (2004); “Declara de Interés Educativo las Jornadas 22 de agosto: Memoria, Verdad y Justicia” – Argentina, Chubut/ política estadual (2005); “Día de la Verdad, Justicia y Reconciliación en la Municipalidad de Huánuco” – Peru, Huánuco/ política estadual (2004).

Fundamento normativo: Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007); Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011 – Cria a Comissão Nacional da Verdade.

nas redes estadual e municipais de ensino do Rio de Janeiro, fazendo referência à morte do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto.

Órgão responsável: Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) e Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ) e Secretarias Municipais de Educação do Estado do Rio de Janeiro

Justificativa: A experiência argentina mostra que a instituição de datas significativas no calendário letivo constitui maneira eficaz para estimular o debate e a reflexão sobre o tema da ditadura, a repressão e as formas de organização política coletiva da juventude na luta por direitos. A data serve para rememorar o evento histórico, criando uma efeméride, com o desenvolvimento de atividades pedagógicas dentro e fora

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Conclusões

horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”

Aprendemos com Adorno (1995), em Educação e emancipação, que a missão da educação deve ser impedir que a barbárie se repita. Segundo o autor:

Se os Direitos Humanos são a última utopia, a educação em Direitos Humanos parece ser a melhor trilha para seguirmos caminhando.

Qualquer debate acerca das metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão” (Adorno, 1995, p. 119) . Por isso seguimos educando, ainda que sem garantia alguma de que a barbárie um dia cessará. Como nos ensina Maria Victoria Benevides (2007), a educação em direitos humanos é a “utopia que se realiza na própria tentativa de realizá-la”. A autora afirma: O educador em direitos humanos na escola sabe que não terá resultados no final do ano, como ao ensinar uma matéria que será completada à medida que o conjunto daquele programa for bem entendido e avaliado pelos alunos. Trata-se de uma educação permanente e global, complexa e difícil, mas não impossível”. (p.348). Vamos ao encontro dela na insistente e teimosa jornada de busca que nos lembra de nosso compromisso ético e político com a transformação social. Lembramos ainda da conhecida resposta dada por Fernando Birri, diretor de cinema espanhol, muito citada por Eduardo Galeano, à pergunta “Para que serve a utopia?”. Ele diz que “A utopia está lá no

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Livros Didáticos ALVES, Alexandre e Oliveira, Letícia. Conexões com a História – Volume 3. São Paulo: Moderna, 2014. BRAICK, Patricia e Mota, Myriam. História das cavernas ao terceiro milênio. Volume 3 – do avanço imperialista no século XIX aos dias atuais. São Paulo: Moderna, 2014. BRAICK, Patricia et al. Estudar história: da origem do homem à era digital. 9º ano. São Paulo: Moderna, 2014. DIAS, Adriana Machado et al. Novo Olhar. História. São Paulo: FTD, 2014. DIAS, Adriana Machado et al. Vontade de saber história. 9º ano. São Paulo: FTD, 2014. FERREIRA, Jorge et al. História. O mundo por um fio: do século XX ao XXI, volume 3. São Paulo: Saraiva Livreiros Editores, 2012. COTRIM, Gilberto. História Global. Brasil e Geral. Volume 3. São Paulo: Saraiva Livreiros Editores, 2014. VICENTINO, Claudio e DORIGO, Gianpaolo. História Geral e do Brasil. São Paulo: Editora Scipione, 2012. VICENTINO, Claudio et al. Projeto Radix – História. 9º ano. São Paulo: Scipione, 2014. MOCELLIN, Renato. História em Debate. São Paulo: Editora do Brasil, 2014. GUIMARÃES, Helena et al. Estudos de história. São Paulo: FDT, 2014. APOLINÁRIO, Maria Raquel. Projeto Arariboia. São Paulo: Moderna, 2014. VARGAS, João et al. Para entender a História. São Paulo: Saraiva, 2014. TOMAZI, Nelson Dacio. Sociologia para o ensino médio. São Paulo: Saraiva, 2012. GARCHET, Helena et al. Tempos modernos, tempos de sociologia. São Paulo: Editora do Brasil, 2012. MORAES, José Geraldo Vinci de. História Geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2012. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2012. DREGUER, Ricardo et al. Nova História, conceitos e procedimentos. 9º ano. São Paulo: Saraiva, 2014. PILETTI, Nelson et al. História e vida integrada. 9º ano. São Paulo: Ática, 2014.

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ANAIS DO WORKSHOP INTERNACIONAL


INTRODUÇÃO

Entre os dias 17 e 19 de novembro de 2014, a equipe de pesquisa do Núcleo de Direitos Humanos realizou, no campus da PUC-Rio, um Workshop internacional que contou com a participação de especialistas em temas sobre a memória de passados violentos e gestores de sítios de memória, a fim de propiciar um espaço privilegiado de discussão sobre processos de memorialização e políticas públicas de memória na América do Sul e na África do Sul. O Workshop fomentou, além do intercâmbio de saberes e experiências diferentes, o debate sobre os usos conceituais e instrumentos analíticos que viriam a ser importantes para a elaboração das recomendações de políticas públicas de memória para o Estado do Rio de Janeiro, bem como para a formulação do livro sobre lugares de memória da repressão da ditadura militar. Assim, o diálogo e a compreensão das experiências em outros Estados brasileiros e em outros países foram fontes de inspiração e reflexão, a propósito da adequação e especificidade das propostas visando o Estado do Rio de Janeiro. Após a mesa de abertura com a presença do Vice-Reitor Acadêmico da PUC-Rio, prof. José Ricardo Bergmann; o diretor do Departamento de Direito, prof. Francisco Guimaraens; o presidente da Comissão de Anistia, dr. Paulo Abrão e o então presidente da CEV-Rio, Wadih Damus, o evento foi iniciado com uma conferência aberta ao público, comparecendo investigadores, docentes, alunos de graduação e


pós-graduação de diferentes áreas das Ciências Sociais e Humanas da PUC-Rio e de outras universidades. A conferência intitulada “Processos de Memorialização da Violência Política do Passado Recente – África do Sul, Argentina, Brasil” teve como objetivo principal apresentar o quadro atual das sociedades que impulsionaram processos de memorialização dos passados violentos, envolvendo comissões da verdade ou instituindo centros de memória e até, como no caso argentino, processos penais, mas que, ao mesmo tempo, lidam, na atualidade, com enormes dificuldades diante das práticas cotidianas atuais de violência e violações dos direitos humanos que permeiam o Estado e a própria sociedade. A mesa foi mediada pela professora Bethânia Assy e estava constituída pelos palestrantes: Karin van Marle da Universidade de Pretoria (África do Sul), Ludmila da Silva Catela do Archivo Provincial de la Memoria de Córdoba (Argentina) e José María Gómez do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio e coordenador do presente projeto de pesquisa. Van Marle realizou uma reflexão crítica sobre os processos de memorialização em uma sociedade cujos laços políticos e sociais eram (e ainda são) extremamente debilitados devido a décadas de apartheid, além do peso de um passado colonial que impacta negativamente a construção da memória histórica e social. Para tanto, a autora analisa como o conceito de memória é apresentado nas constituições federais de 1994 e 1996 da África do Sul, no Ato de Promoção da Unidade e Reconciliação Nacional de 1995, na atuação e consequências da Comissão Nacional da Verdade e, por fim, nos escritos literários do país, especialmente as obras do escritor John Coetzee e da autora Antje Krog. O grande desafio que van Marle identifica é como superar o modelo de memória unificada, homogeneizada e imposta que foi construído e reiterado no processo de memorialização, bem como a fragilidade extrema do espaço criado pela Comissão, de modo a poder abrigar as distintas memórias da população. Sem a compreensão do caráter difuso e múltiplo da memória, certas memórias dominantes

ainda irão marginalizar e até silenciar outras vozes, permitindo uma expansão da violência na sociedade como um todo. Ludmila Catela contou a experiência da construção da Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA) como um lugar de memória na Cidade Autônoma de Buenos Aires na Argentina, visto que lá funcionou o maior centro clandestino de detenção do período ditatorial no país. Para a autora, o ESMA reflete o caráter paradoxal dos processos de memorialização, pois os sítios de memória não são apenas lugares nos quais se reconhecem publicamente o que aconteceu no passado, mas são, sobretudo, espaços nos quais acontecem acirradas disputas políticas no presente. Certamente, as sinalizações e marcas em lugares coletivos são fundamentais para garantir a manutenção dos laços sociais, que unem os mortos e desaparecidos com os que estão vivos. Contudo, as relações de poder que determinam a imposição de uma memória ou de uma história sob as demais, no espaço público, implicam a possibilidade de manipulação da memória, o que lhe garante uma característica peculiarmente complexa. Ou seja, a memória funciona como uma chave explicativa que permite entender os conflitos políticos que se travam em torno dos sentidos do passado nos cenários e conjunturas do presente. Ainda no mesmo dia, à tarde, houve a primeira reunião do grupo de trabalho, coordenada pelo professor e membro da CEV-Rio, João Ricardo Dornelles, que teve por pauta “Análises e Balanços de Experiências no Brasil”. Nessa reunião, foram mapeados e discutidos os avanços e lacunas sobre políticas de memória existentes em outros Estados brasileiros. Esse estado da arte inicial visava compreender as possibilidades e limites institucionais para refletir sobre como tais experiências poderiam servir de referência para o caso do Estado do Rio de Janeiro, objeto da pesquisa. Estiveram presentes na discussão Paulo Abrão da Comissão de Anistia; Rosa Cardoso, representando na época à Comissão Nacional da Verdade; Vicente Rodrigues do Me-


mórias Reveladas – Arquivo Nacional; e Kátia Felipini do Memorial da Resistência de São Paulo. Maurice Politi, embora não tenha podido comparecer ao evento, teve a gentileza de enviar o artigo prometido, no qual relata a trajetória e o trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Preservação da Memória Política (Núcleo Memória), do qual é presidente. Politi também expressa a preocupação pelas formas de apropriação da memória e o passado. Por isso, a luta pela memorialização de espaços é vital para efetivar o direito à memória e compreender as continuidades e descontinuidades de um passado violento e repressivo no presente cotidiano. As marcas em espaços coletivos funcionam, assim, de forma a garantir não somente uma reflexão crítica sobre a própria história nacional, mas sobretudo para reforçar a não repetição. Rosa Cardoso, membro e uma das coordenadoras do trabalho final da Comissão Nacional da Verdade, apresentou uma reflexão sobre o legado desta última no país. Segundo a autora, a CNV se tornou um emblemático dispositivo doutrinário para o direito à verdade, pois representou um enquadramento teórico inovador, aprofundando o conceito de justiça de transição. Isso implica dizer que a entrega do Relatório Final da CNV ao governo brasileiro não encerra o tema da memória do país, mas, ao contrário, torna-se referência normativa e importante registro e vetor de expansão política e social. Embora a Comissão não tenha dado atenção suficiente ao caráter do golpe e à atuação de civis, –também não o tratou como um empreendimento civil-militar, responsabilizando diretamente 377 agentes de Estado que foram autores de violações de direitos humanos durante a ditadura no Brasil. Vicente Rodrigues e Inez Stampa, autores do artigo apresentado em seguida, argumentam a necessidade de implementação de políticas de memória para que a chamada justiça de transição possa se concretizar plenamente no Brasil. Segundo ela, uma das formas pelas quais essa recuperação da memória do passado recente se apresenta é por meio

de informações contidas nos arquivos da repressão. Relatando a experiência do Memórias Reveladas, instituição alinhada ao marco da Lei do Acesso à Informação, Rodrigues e Stampa reforçam a importância desse tipo de mecanismo para facilitar e difundir o conhecimento da história recente do Brasil, o que garante uma maior compreensão dos valores democráticos e cidadãos. Apesar do Brasil ter se engajado em políticas de memória de forma excepcionalmente tardia em comparação aos vizinhos do continente, tais como Argentina e Chile, o país é o que possuiu o maior material arquivístico sobre a ditadura militar. A difusão dessas informações é fundamental nas lutas políticas de ressignificação e desapropriação da memória dominante, pois, sem esse esforço, a concretização da justiça se torna algo distante, multiplicando e reproduzindo práticas de impunidade e esquecimento. No dia seguinte, 18 de novembro, mais dois grupos de trabalho aconteceram. Na primeira reunião, coordenada pela prof. Bethânia Assy, o tema da discussão foi sobre “Análises e Balanços de Experiências da África do Sul e Argentina”, na qual participaram novamente Karin van Marle e Ludmila Catela, expondo as experiências na África do Sul e Argentina, respectivamente; Gonzalo Comte do grupo Memoria Abierta da Argentina e Cristina Gómez do Parque de La Memoria em Buenos Aires, Argentina. Cristina Gómez, coordenadora de Educação no Parque de La Memoria, apresentou o movimento inicial por parte da sociedade civil em estabelecer marcas e sinalizações de reconhecimento público da ditadura e os objetivos que o Parque visa atingir. Ao contrário dos centros mais conhecidos, o Parque não possui relação direta com uma situação de memória, mas ele está inscrito no movimento de atos de homenagens às vítimas do período ditatorial e anseia em manter onipresente a demanda por justiça. Esse espaço se destina a realizar uma confluência entre arte, arquitetura monumental e desenho urbano de forma em que a experiência sensorial do visitante suscita uma reflexão coletiva sobre o passado recente. É um tipo de exercício pedagógico necessário, como argumenta a autora,


que expressa a brutal realidade das ausências no presente. O segundo grupo de trabalho do dia foi sobre as “Análises e Balanços de Experiências do Chile, Uruguai e Colômbia”. Ele foi coordenado pela professora Luciana Lombardo e seus expositores foram Margarita Romero da Asociación por la Memoria y Derechos Humanos Colonia Dignidad do Chile; Loreto López Gónzalez, antropóloga do Programa de Psicología Social de La Memoria/Universidad de Chile; Aldo Marchesi da Universidad de La Republica do Uruguai e Darío Colmenares do Centro de Memoria, Paz y Reconciliación de Bogotá, Colômbia. Loreto López mapeou os processos de memorialização empreendidos pelo Chile, onde quinze centros de detenção foram sinalizados como marcas de reconhecimento público, dentre os quais sete foram recuperados pela sociedade civil para desenvolvimento de atividades cujo tema é memória e passado. Esses espaços são importantes, como mostra a autora, para realizar uma reparação simbólica às vítimas da violência do passado, porém, para além disto, são espaços que interpelam memórias e experiências que não se restringem às vítimas, garantindo, então, a reflexão coletiva sobre o passado e sua permanência no presente. Também contribuindo em relação à experiência chilena, Margarita Mendez escreve em conjunto com Karen Cea como a demanda de políticas públicas de memória foram iniciadas no país pelas demandas e luta da sociedade civil. Organizações de direitos humanos, ex-presos e familiares ultrapassaram as barreiras institucionais para criar ações de reflexão sobre a ditadura, que culminou em outras medidas e políticas por parte do Estado. As autoras evidenciam que, como no primeiro momento, a sociedade civil pôde avançar no tema da verdade e da memória, embora a concretização da justiça tenha se mostrado insuficiente. Para exemplificar essas lutas, Mendez e Cea trazem a experiência do Parque por La Paz Villa Grimaldi em Santiago e as dificuldades em transformar a Colonia Dignidad em um monumento nacional, luta na qual as autoras se engajam atualmente. Por sua vez, Aldo Marchesi apresentou o problemático caso de uma

casa em Montevideo na Rua Juan Paullier, 1190, e como a discussão sobre a construção de um centro museológico reflete os desdobramentos que o conceito de memória pode assumir. A casa funcionou como um “Cárcel del Pueblo”, no qual os militantes do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros (MLNT) prendiam embaixadores e políticos de direita, só que mais tarde viria a se tornar um centro de prisão por parte dos militares. O processo de transformar a propriedade em museu está em suspenso no momento, mas o caso evidencia a dificuldade de encaixá-la em algum eixo de luta de memória, visto que é um passado que tanto a esquerda quanto a direita não querem recordar. Além de ser um caso significativo para compreender a complexidade do tema sobre a memória nas tensões políticas e as permanências da violência na sociedade uruguaia. E, por fim, no último artigo da seção, Darío Colmenares discorre sobre a experiência do Centro de Memoria, Paz y Reconciliación em Bogotá, Colombia, que, ao contrário das demais experiências do Cone Sul, ainda vive em uma situação de conflito armado que dura mais de 60 anos, o que implica graves inconstâncias nos registros de relatos e de vítimas. Contudo, Colmenares argumenta que, devido a íntima relação entre sítios de memória e políticas públicas, a importância de existir um centro de memória na Colômbia é crucial para oferecer à sociedade um espaço de reflexão crítica sobre a violência política no país e, não à toa, o centro assume um protagonismo ao se tornar um eixo articulador do processo de paz e reconciliação nacional. Em suma, as exposições e os artigos dos convidados nacionais e estrangeiros, foram uma importante contribuição para o conhecimento e avaliação das experiências abordadas e, consequentemente, do tema geral dos processos de memorialização de passados traumáticos. O evento representou também um avanço significativo em termos de reflexão crítica sobre os problemas de conceitualização, dilemas e desafios maiores que enfrenta a complexa e sempre conflituosa construção da memória social e deesse tipo tão singular de políticas públicas


de memória debatidas. Além disso, foi uma importante interpelação e estímulo, já salientada, para a elaboração das recomendações de políticas de memória e do livro dos lugares de memória da repressão da ditadura para o Estado do Rio de Janeiro. O diálogo e o debate com especialistas da temática “memória, verdade e justiça” e gestores de espaços de memória têm sido, portanto, uma experiência fecunda para aprimorar as perspectivas e os instrumentos analíticos que guiam o desenvolvimento das atividades de pesquisa deste projeto. E confirmou ainda mais a consciência de quanto o Brasil e, em particular, o estado do Rio de Janeiro, apesar dos avanços realizados nos últimos anos, continua atrasado em matéria de processos de memorialização do passado da ditadura militar. Por último, cabe ressaltar que os artigos a seguir são dos especialistas nacionais e estrangeiros convidados ao Workshop Internacional. Esses artigos, junto aos trabalhos de quatro membros da equipe do NDH (José María Gómez, Bethânia Assy, Fernanda Pradal e Andrea Schettini) e o dos representantes do Grupo de Trabalho DOPS da CEV-Rio (Fábio Cascardo e Pedro Bomfim), que foram comunicados e discutidos no evento, farão parte de um livro a ser publicado nos próximos meses, sob o título de “Violência política e processos de memorialização de passados recentes: Brasil, América do Sul, África do Sul”.


FOLDER DO WORKSHOP

Workshop

Vice-Reitoria AcadĂŞmica

Políticas de Memória na AmÊrica do Sul e à frica do Sul: balanços, perspectivas e diålogos

produção infojur / coordenação de informĂĄtica e multimĂ­dia Direito PUC-Rio SURMHWR JU¢Ć›FR 5RGULJR 0XQL]

17/11

18/11

19/11

ABERTURA: 10 - 10:30H Vice-Reitor AcadĂŞmico da PUC-Rio Prof. JosĂŠ Ricardo Bergmann Diretor do Departamento de Direito Prof. Francisco Guimaraens Presidente da ComissĂŁo de Anistia Dr. Paulo AbrĂŁo Presidente da ComissĂŁo Estadual da Verdade do Rio de Janeiro Wadih Damus

WORKSHOP – SESSĂƒO 2: ANĂ LISES E BALANÇOS DE EXPERIĂŠNCIAS DA Ă FRICA DO SUL E DA ARGENTINA 9 -13H (COM COFFEE BREAK)

WORKSHOP – SESSĂƒO 4: POLĂ?TICAS DE MEMĂ“RIA PARA O ESTADO DO RIO DE JANEIRO: ANĂ LISES E PROJEÇÕES (COM PARTICIPAĂ‡ĂƒO DE CONVIDADOS ESPECIAIS) 9 -13H (COM COFFEE BREAK)

CONFERĂŠNCIA (ABERTA AO PĂšBLICO): 10:30 -13:30H Processos de memorialização da violĂŞncia polĂ­tica do passado recente: Ă frica do Sul, Argentina e Brasil Coordenação Bethania Assy (NĂşcleo de Direitos Humanos – PUC-Rio) Palestrantes .DULQ YDQ 0DUOH 3UHWRULD 8QLYHUVLW\ 3UHWRULD ‚IULFD GR 6XO

/XGPLOD GD 6LOYD &DWHOD $UFKLYR 3URYLQFLDO GH OD 0HPRULD &´UGRED $UJHQWLQD

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ALMOÇO – 13:30 -15H WORKSHOP – SESSĂƒO 1: ANĂ LISES E BALANÇOS DE EXPERIĂŠNCIAS DO BRASIL 15 -19H (COM COFFEE BREAK) Coordenação JoĂŁo Ricardo Dornelles Expositores 3DXOR $EU¤R &RPLVV¤R GD $QLVWLD Ɔ 0LQLVWÂŞULR GD -XVWL¨D

Rosa Cardoso (ComissĂŁo Nacional da Verdade) 9LFHQWH 5RGULJXHV 0HP´ULDV 5HYHODGDV Ɔ $UTXLYR 1DFLRQDO .DWLD )HOLSLQL 0HPRULDO GD 5HVLVWÂŤQFLD 6¤R 3DXOR %UDVLO

Nadine Borges (ComissĂŁo Estadual da Verdade do Rio de Janeiro)

Coordenação Bethania Assy Expositores .DULQ YDQ 0DUOH 3UHWRULD 8QLYHUVLW\ 3UHWRULD ‚IULFD GR 6XO

&ULVWLQD *´PH] 3DUTXH GH OD 0HPRULD %XHQRV $LUHV $UJHQWLQD

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ALMOÇO – 13-14:30H WORKSHOP – SESSĂƒO 3: ANĂ LISES E BALANÇOS DE EXPERIĂŠNCIAS DO CHILE, URUGUAI E COLĂ”MBIA 14H30MIN -18H30MIN (COM COFFEE BREAK) Coordenação Luciana Lombardo Expositores 0DUJDULWD 5RPHUR $VRFLDFL´Q SRU OD 0HPRULD \ ORV 'HUHFKRV +XPDQRV &RORQLD 'LJQLGDG 6DQWLDJR &KLOH

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Coordenação JoĂŁo Ricardo Dornelles /XFLDQD /RPEDUGR 3URMHWR 3ROÂŽWLFDV 3ÂťEOLFDV GH 0HP´ULD SDUD R (VWDGR GR 5LR GH Janeiro – NDH PUC-Rio) )HUQDQGD 3UDGDO 3URMHWR 3ROÂŽWLFDV 3ÂťEOLFDV GH 0HP´ULD SDUD R (VWDGR GR 5LR GH -DQHLUR – NDH PUC-Rio) $QGUHD 6FKHWWLQL 3URMHWR 3ROÂŽWLFDV 3ÂťEOLFDV GH 0HP´ULD SDUD R (VWDGR GR 5LR GH -DQHLUR – NDH PUC-Rio) 5HSUHVHQWDQWH GR *UXSR GH 7UDEDOKR VREUH R '236 GD &RPLVV¤R (VWDGXDO GD 9HUGDGH GR Rio de Janeiro ENCERRAMENTO DO EVENTO ALMOÇO – 13H


CARTAZ DO WORKSHOP

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THE POLITICS OF MEMORY, THE

the context of constitutionalism and thirdly some critical responses to the TRC. Fourthly I focus on a politics of memory through the lens of nostalgia and consider how memory has come to the fore in some literary writings. I share a concern, namely to what extent the politics of memory in South Africa has succeeded to create public spaces for debate and dissent, to disclose possibilities for critique, to allow ambiguity and complexity or to what extent it instead attempted to close down debate, to force a common understanding, a unified memory, to master past, present and future.

PROMISE OF CONTITUTIONALISM, RECONCILIATION AND REPARATION AND CRITIQUE IN POST 1994 SOUTH AFRICA

Anne Coombes (2003:10) in an earlier work titled History after apartheid mentions her interest in the “tension represented by two kinds of historical research”. The one she describes as a “history from below”, a history of “the people”. This account attempts to include the exclusions of many voices as well as the“structural violence”of official apartheid history. One way of expanding our sense of history is by including also oral history. However, Coombes notes the problems in this version, for example the extent to which it “homogenize[s] its subjects as primary ‘representative’ of a larger political ideology”. She identifies a second approach in the TRC’s approach of taking individual experience as a way of unearthing a new national history in the aftermath of apartheid. Coombes’ investigation is to ask how “one might embody new national histories in the public sphere that engaged larger structural narratives and material conditions and individual lived experiences without reducing their public expression to either some monolithic representation of “the struggle” or some unlocated individualized experience …”. A number of years after she posed this question South Africa continues to struggle with the complex issue of history, memory and the construction of spaces for multiple and contesting narratives to come to the fore. Coombes ended her 2003 work with a focus on suggestions that were made at the time on how to engage with and respond to how the history of South Africa and the South African nation have been represented in South

KARIN VAN MARLE 1 Introduction In this chapter on the politics of memory in post 1994 South Africa I reflect on four main issues: Firstly how memory, the past has been taken up in both the 1994 and 1996 Constitution; the National unity and Reconciliation Act of 1995, and the workings of the South African Truth and Reconciliation Commission. Secondly I recall some of the ways in which commentators have engaged with memory within

1 Karin van Marle é professora da Universidade de Pretoria na África do Sul. Seus temas de estudo são jurisprudência pós-apartheid, teoria crítica do direito, direitos humanos, direito constitucional e direito e literatura.

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Africa House on Trafalgar Square in London. She highlights that all of the artists who were commissioned to do proposals for change/ reconstructions agreed on the need to expose how ‘different understandings of the past inform the present’ in their work (p.295). Their proposals suggested instead of obliterating the past to rather disclose and “create the possibility of a new set of meanings. (p.295)”

how to create a new space holding the statute and alternative images that could reflect multiple and contested histories. The Rhodes statute however was removed and since the beginning of the UCT events many cries have gone up for the removal of other statutes and monuments reminiscent of colonialism and apartheid. An important feature of the Rhodes must fall campaign is how a politics of memory became a politics of the present – the continuance of past exclusion, violence and marginalising were central, the statute of Rhodes a symbol of a past that is still ever present. It is probably too early to predict how the politics of memory in South Africa will be influenced by these debates. Below I return to how memory has been taken up in and by official documents and institutions; I recall some of the discourse and also early critical responses before I turn to different understandings of nostalgia and literary works on memory.

Recent events have shed another light on these questions and debates and might change the nature and direction of the politics of memory in present and future South Africa. In March of 2015 a student at the University of Cape Town, Chumani Maxwele, flung excrement at the statute of Cecil John Rhodes that brought to life a campaign urging that “Rhodes must fall”. Cecil John Rhodes was a coloniser of note, a man who caused the death of many and who in his life openly declared his view of the white race as superior to other races. Multiple views, comments and debates were posted on the electronic media reflecting opposing positions. However there were two main views, one that the statute of Rhodes must go, be destroyed, extinguished, and the other that it should be ‘redefined’ and kept to “force him … to witness surroundings that tell him and the world that he is now living in a constitutional democracy” (Sachs 2015). The latter view was most prominently expressed by former constitutional court justice and activist Albie Sachs in an article published in the City Press. Sachs recalls how as a student he passed the Rhodes statute on his way to lectures and concedes that at that time he would have supported the statute to be melted down. However in present times his view is that to have the ‘last laugh’ there are alternatives. Sachs refers then also to how artists responded to the ‘offensive murals in South Africa house.’ His other example is the Old fort Prison in Johannesburg which is now the site of the Constitutional Court. The court built next to the former prison creates a dialogue between the past and the present and serves as a “site of conscience”. Sachs proposed that UCT, informed by the principles laid down in the Constitution should invite suggestions on

The chapter ends by returning to the issue of a politics of the present and continuances of past violence with a reflection by Vikki Bell on a photograph of one of many that went missing under the Argentinian dictatorship.

1. “Official” memory Memory has played a central role in the reconfiguring of South African society in the aftermath of apartheid. Closely related to the notion of memory, of remembering the past stand reconciliation and reparation as ways of engaging a future. The notion of memory is inscribed in the constitutional text itself. The epilogue of the interim constitution of 1994 under the heading “National unity and reconciliation” starts as follows: “This constitution provides an historic bridge between the past of a deeply divided society characterised by strife, conflict, untold suffering

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Against the framework set out in the epilogue/ post-amble of the 1994 Constitution Parliament enacted national legislation in the form of the Promotion of National Unity and Reconciliation Act, 34 of 1995 which gave life to what was called the Truth and Reconciliation Commission.

and injustice, and a future founded on the recognition of human rights, democracy and peaceful co-existence and development opportunities for all South Africans, irrespective of colour, race, class, belief or sex. The pursuit of national unity, the well-being of all South African citizens and peace require reconciliation between the people of South Africa and the reconstruction of society.

As set out in the long title and preamble of the act the main tasks of the TRC were to provide for an investigation into the past in order to obtain ‘as complete a picture as possible’; to provide the opportunity for those who committed crimes with a political objective to give full disclosure in order to qualify for amnesty; and to make recommendations for reparations. In line with these tasks three committees were established: one to investigate gross violations of human rights, one to consider applications for amnesty and one to make recommendations for reparations.

The adoption of this Constitution lays the secure foundation of the people of South Africa to transcend the division and strife of the past, which generated gross violations of human rights, the transgression of humanitarian principles in violent conflicts, and a legacy of hatred, fear, guilt and revenge. These can now be addressed on the basis that there is a need for understanding but not for vengeance, a need for reparation but not for retaliation, a need for ubuntu but not for victimisation.

The preamble of the 1996 final Constitution similarly states the past and the aim to redress: “We, the people of South Africa, recognise the injustices of our past; honour those who suffered for justice and freedom in our land; respect those who have worked to build and develop our country; and believe that South African belongs to all who live in it, united in our diversity.

In order to advance such reconciliation and reconstruction, amnesty shall be granted in respect of acts, omissions and offences associated with political objectives and committed in the course of the conflicts of the past. To this end, parliament under this Constitution shall adopt a law determining a firm cut-off date, which shall be a date after 8 October 1990 and before 6 December 1963, and providing for the mechanisms, criteria and procedures, including tribunals if any, through which such amnesty shall be dealt with at any time after the law has been passed.

We therefore, through our freely elected representatives, adopt this Constitution as the supreme law of the Republic so as to – Heal the divisions of the past and establish a society based on democratic values, social justice and fundamental human rights;

With this Constitution and these commitments we, the people of South Africa, open a new chapter in the history of our country.”

Lay the foundations for an open and democratic society in which government is based on the will of the people and every citizen is equally protected by law;

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cism and for the critic to come to the fore (Chryssostalis 2005, p.22).

Improve the quality of life of all citizens and free the potential of each person; and

George Pavlich, reflecting on critique tentatively develops what he calls “a grammar of critique” that “is an experience that welcomes what is to arrive, but preserves a tentative – and incomplete – mastery over the event. … since critical experiences are bound to life, to the welcoming of other lives, degrees of historically situated mastery and calculation are unavoidable. … Seen as a welcoming encounter with what is to come, critique’s mastery is not inevitably bound to images of founded legislation, judgment or laying down the prescriptive law of what must be done. It may even be that its grammar works against the grain of the must, the necessary, recognizing the experience that works on finite terrains by naming the threshold and welcoming other ways of being”’(2005, p.105).

Build a united and democratic South Africa able to take it rightful place as a sovereign state in the family of nations.”

The TRC had its first hearings in 1996. A preliminary report that later became the final report was published in 1999. Since then many comments, engagements and responses have been published. During 2014 many events looking back at the first 20 years of so-called democracy in South Africa took place – many of them reflected specifically on the Constitution and the entrenchment of a bill of human rights in order to trace the extent to which democracy, social justice and reconciliation amongst others have been achieved. Many of them were of a celebratory nature, looking at the achievements of the past 20 years. Others were more sober and highlighted a continuance rather than a rupture with many of the inequalities and in justices of the past. 2015 is 20 years after the promulgation of the National Unity and Reconciliation Act and 2016 20 years after the first hearings of the TRC. One could expect many events and interrogations also of these two events to take place.

A necessary and interesting question to be raised is to what extent did the TRC provide possibilities for critique, or following from Pavlich welcomed other ways of being? During the lifetime of the TRC it provided spaces for the narratives of the victims, in catharsis and in truth telling. The TRC in a sense made possible an opening up of history, political space, debate and understandings of the political that could have implied a fundamental critique/scepticism of previous/traditional representations of South African history. However, as many others have argued it also and maybe even ultimately ended up in mainly closing, limiting and stilling. The TRC, by imposing certain notions/ interpretations of reconciliation and truth closed down debate. It assisted government to argue that “bygones should be bygones” and that the country should “move forward” and this resulted in a lack of follow up of the work of the TRC. The argument that the TRC’s work should be carried forward was not taken seriously – possibly because there was no political will to do so. Suggestions of an economic TRC have become rhetorical. The work of the reparations committee was not properly followed up. The failure to prosecute those who did not

The establishment of the South African TRC in the mid-nineties was a central political moment for the country in the aftermath of apartheid. It could be argued that the TRC was born out of a moment of crisis; it was an idea that was put forward when the negotiations between the two major parties (the ANC and the NP) reached an impasse. Taking crisis as starting point in viewing the TRC retroactively might open interesting and valuable perspectives. The Greek root of the word, krisis, means judgment. From krisis derive critique, criticism and critic. Crisis then could be seen as meaning to open up a space for critique, criti-

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receive amnesty reflects negatively on the work of the Amnesty committee. There are many questions and issues that should be considered 20 years on but it is not my aim to raise or address these questions here. I consider rather some of the ways in which memory came to the fore in South Africa.

other things the achievement of a “peaceful transition”, a “non-racial democracy” (2000, p.385). Du Plessis describes the entrenchment of the values of dignity, equality and freedom as “monumental flair”. The writings by Snyman and Du Plessis provided the opportunity for other legal scholars to take these initial reflections further, to argue for example for memorial constitutionalism or as phrased by some, counter-monumental constitutionalism. At the heart of these reflections is memory, how we remember our past, engage with our past and live with our past.

2. Multiple takes on memories Many scholars have engaged with the theme of memory and how it relates to transformation. A well-known and often cited example is that of Karl Klare in suggesting a project of “transformative constitutionalism”. Klare describes the South African constitution as post-liberal, and names as one of the reasons for viewing it as post-liberal the “historical self-consciousness”, of the constitution, that memory is as it were embedded in the Constitution, and should therefore “guide” each and every interpretation and application of the Constitution.(1998, p.146) His argument is of course coming from his own theoretical and political framework (US Critical Legal Studies), which means that indeterminacy will trouble any attempt to treat memory as one-dimensional. In this vein the historical self-consciousness is one of the reasons why one can only have multiple interpretations of the Constitution.

I have referred previously to the difference between abstract and material recollection/ memory relying on work done by Martin Hall (2003; 2012). Hall focused on the life of Kabbo, a Khoi man who was captured by philologist William Bleek, highlighting their different understandings of memory (1998, p.193). Through Hall’s reading Bleek is concerned with language, with monument, with that which can be captured in order to signify timelessness. Kabbo on the other hand cares for his material surroundings, and accepts that things mean different things to different people. The latter approach could be connected with an approach of slowness, of slow reflection through which attention could be given to particularities and multiple and opposing realities. In the vein of aesthetic engagements an interesting take on the notion of memorial/ counter monumental constitutionalism was developed with reference to the site and building of the constitutional court. The constitutional court was built on the site of the old Fort where various prisoners including political opponents of the apartheid-regime through the years were held. The site itself reveals a rich history that encapsulates multiple memories. Le Roux, in a volume focussing on post-apartheid law and critique reflects on the “architectural expression” of the notion of transformative constitutionalism and memory (2007, p.59). He suggests the notion of a “labyrinth” in addition to the

Lourens du Plessis, in describing the Constitution in terms of monument and memorial was influenced by South African philosopher, Johan Snyman, who, drawing on examples from post war Germany has made a distinction between two ways of remembering, one monumental, the other memorial. (1998, p.312; 2000, p.385) The former celebrates victory in grand fashion, the latter memorialises the losses and victims of war/struggle. The excerpts from both the 1994 and 1996 constitutions above illustrate that the South African constitutional endeavour is, as Du Plessis remarked “hardly modest”, claiming among

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metaphors of bridge and clearing explored also by others. Le Roux recalls the story by Franz Kafka, “Before the law”, as read by Jacques Derrida: (1992, p.181-220). In the fable a man from the country arrives at a building where the court is located. The building has many gates and each visitor has a special gate just for him/ her to enter. However, these gates are guarded by a security officer, a gate keeper who tells the man that he cannot enter yet, he should wait. When the man peeps through the gate he sees inside the building a network of more gates, a labyrinthine network of gates and hallways, each guarded by a gatekeeper. The man waits his whole life and at the end of his life when he passes away his gate is shut. For Le Roux, Derrida’s reading and his description of the ‘quasi-transcendental conditions of law’ should be heeded: “the condition of the normative possibility of law is the impossibility of ever gaining final access to the norms of the law” (2007, p.93). What respect for the law means is to acknowledge that it can never be under total human control, law’s possibility hangs on the impossibility of grasping its origin and its place: “For law to be law, law must become fictional or mystical”(2007, p.93). This does not mean that law is disembodied or empty, but it is a place of constant dislocation. The discourse of the law does not say “no”, but says indefinitely “not yet” (2007, p.93). Turning to the architecture of the court, Le Roux argues that the foyer of the building does not only symbolise a clearing in a forest ready for a post-apartheid community to gather in (the logo of the constitutional court is justice under a tree) that in terms of Du Plessis could be read as the monumental feature, authoring the beginning of a new nation. The site of the court is also that of a rehabilitated prison that carries the traces/ the memories of the “trauma and exclusion” of the past. Le Roux describes that in the foyer of the court amongst the pillars of the court symbolising the trees we also find the original staircase of the awaiting-trial prison. This staircase for him holds multiple meanings, it could serve as a reminder of a time that should never be repeated, but at the same time it

also underscores the impossibility of making clear distinctions between past, present and future and confronts one with the possible continuance of past injustice. South African artist Judith Mason’s, Blue Dress hanging in the art gallery of the court is one example that recalls past and present violence - psychic, traumatic and material - against women, but beyond women against all vulnerable people who live precarious lives on the margins and in the centres of society. Other images concerning memory invoked in post-apartheid discourse were for example William Kentridge’s technique or process of drawing and redrawing and the palimpsest. The constitution has been described as a bridge and/ or a book, and it is interesting to note the number of adjectives that have been raised in describing the making or writing of the constitution, in an attempt to capture the nature of the South African change, for example negotiated Constitution and legal, peaceful or substantive revolution. I have referred to the distinction drawn between a monumental and a memorial engagement with the past, and thus with memory. Du Plessis, in applying this distinction to the Constitution also referred to another distinction that is not only relevant to the Constitution but like monument and memorial has implications for a politics of memory – he described the Constitution as being both author and narrator of the past. The notions of authorship and narration and the difference between the two could play an interesting role in a politics of memory. I have referred to the Epilogue of the 1994 Constitution above – two images come to the fore in the Epilogue, namely the bridge and the book. Mark Antaki notes that although the bridge has been central in a number of reflections (Mureinik 1994, p.31; Van der Walt 2001),the book has been neglected (Antaki 2013). He affirms André van der Walt’s problematisation of the bridge as a metaphor designating a simplified linearity from a bad past to a better future. Antaki, like Van der Walt emphasises the necessity of a reading that is aligned

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with the search for lines of flight/ meaning to escape closed and final definition. For Antaki, Van der Walt’s critique of the dominant interpretation of the bridge is similar to South African poet and author Antjie Krog’s ethical problem with writing a novel. He invokes David Scott’s support of tragedy rather than romance as the genre through which to narrate the change from colonial to postcolonial. The point is to question the notion of an institutional process or document (like the TRC or the Constitution) to bring forth a better future in a linear, chronological manner that denies the ambiguities and complexities involved. Antaki explores Van der Walt’s response to the dominant writings on the bridge and his invocation of “codes”, particularly two forms of dancing to problematize the notion of a linear movement from past to future, or bad to good. Central to Van der Walt’s take is the continuities at play. At stake here is the refusal to claim “a wilful imagination … a form of imagination as invention” (2013, p.63). Van der Walt’s hope lies at the end with the possibility for things to be “different” but not necessarily better.

attainment of maturity … of a form … life story as a formation”(p.69). However, there are literary genres, different kind of novels, that differ from employing the imagination as willing, as mastery, as establishing a kind of sovereign authority – such is the notion of a minor literature as written by Kafka, and supported by Deleuze and Guattari. Antaki refers to novels by Coetzee (1980 and 2000) and also Van Niekerk’s Agaat (2004, 2010) as examples that I elaborate on below. But first I turn to critiques on specifically the claim to reconciliation within the South African discourse on memory.

3. Critical memories Let’s recall the following from Antjie Krog’s Country of my skull: “In an interview after refusing to forgive Dirk Coetzee for killing and ‘braaiing’ (meaning roasting) her son, Mrs Kondile says: ‘It is easy for Mandela and Tutu to forgive … they lead vindicated lives. In my life nothing, not a single thing has changed since my son was burnt by barbarians … nothing. Therefore I cannot forgive’.”

Turning to Krog, Antaki interprets her refusal to write a novel as a refusal of ‘the fantasy that one can, somehow, know others’, a refusal“of imagination as a form of mastery in the service of both reason … and will” (2013, p.64). He elaborates on Patchen Markell’s critique of “recognition” that similarly puts the knowing and mastery into dispute. Antaki reads Krog also to reject what he calls “the literary analogue to the legal form of human rights and human-rights-based constitutionalism” (p.66). She is refusing “the authorial sovereignty that sets up a politics and an ethics of identification” that assumes that others and ourselves can be known (p.67). “The ‘novel’ Krog rejects … is a genre that thematises, performs, both self-reformation and the knowing of the pscyches of others …” (p.68). For Antaki this kind of novel might be the novel meant in the Epilogue of the 1993 Constitution – he interprets the Epilogue (and also the AZAPO’s judgment’s reliance on the Epilogue) as to reflect “a moment of self-recognition, of

Krog continues: “The dictionary definition of ‘reconciliation’ has an underlay of restoration, of re-establishing things in their original state. The Oxford says, to make friendly again after an estrangement; make resigned; harmonize; make compatible, able to coexist. The Afrikaans dictionary says: weer tot vriendskap bring [to restore to friendship], accept; not resist. But in this country, there is nothing to go back to, no previous state or relationship one would wish to restore. In these stark circumstances, ‘reconciliation’ does not even seem like the right word, but rather ‘conciliation’.” (1998, p.109). Mahmood Mamdani, commenting on the TRC has made the point

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that even though South Africans opted for restorative rather than criminal justice, they continued to follow the logic of criminal justice by focussing solely on perpetrators and political activists, whom he calls victims in the minority, and neglecting beneficiaries and the majority of ordinary black people who suffered under apartheid, victims in the majority. He argued that for reconciliation to endure, a shift should take place from focussing solely on perpetrators to beneficiaries. In this vein he warned that to prevent the constitution and bill of rights being nothing but a Hobbessian pact, a broad interpretation of rights must be followed according to which individual rights, the rights of the minority will have to be breached in order to redress the rights of the majority. It could be argued that it is exactly failure to adhere to this advice that creates the environment in which for example the Marikana massacre took place.

ple the Commission of Justice and Reconciliation led by the South African Council of Churches. He turns to the AZAPO judgment, the case where families of deceased anti-apartheid activists challenged the amnesty provision in the National Unity and Reconciliation Act. “[C]omitted to a transition towards a more just, defensible and democratic political order based on the protection of fundamental human rights. It was wisely appreciated by those involved in the preceding negotiations that the task of building such a new democratic order was a very difficult task because of the previous history and the deep emotions and indefensible inequities it had generated; and that this could not be achieved without a firm and generous commitment to reconciliation and national unity. It was realized that much of the unjust consequences of the past could not ever be fully reversed. It might be necessary in crucial areas to close the book on that past” (CCT 17/96, 2; Ramose 2012, p.25).

Magobe Ramose asks why it is that there was a law aimed at reconciliation in the “new” South Africa but not in any other country in Africa after colonialization. He notes that even though the word “truth” is not part of the official name of the act promulgated to address reconciliation (The Promotion of National Unity and Reconciliation Act) in the popular name of the commission “truth” is the first concept. One possible explanation is that the act makes provision for amnesty to be granted if“full disclosure”about criminal acts is given. But the emphasis on truth could also have something to do with the attempt to create a master narrative on the past, one true version, a single memory. Ramose recalls Wole Soyinka’s critique that to place truth within the “framework of law … was itself a restraint on the liberation of truth” (2012, p.21). In the words of Soyinka: “The problem with the South African choice is therefore its implicit, a priori exclusion of criminality and, thus responsibility. Justice assigns responsibility, and few will deny that justice is an essential ingredient of social cohesion”(Soyinka 1999, p.31; 2012, p.21). Ramose refers to the prominent role “justice” played in the struggle and also in previous commissions, for exam-

Ramose raises four objections to the judgement: Firstly he questions the negotiations that took place, mentioning that they should have taken place outside of South Africa on ‘neutral’ ground. Referring to the PAC walking out of the negotiations he criticises the ANC for continuing the negotiations. The Constitution of South Africa as the final outcome of the negotiations is for him evidence of the fact that everyone at the negotiations together with those who were not even present did not come to an agreement over the terms, specifically concerning the deliberation over natural and historical justice (p.26). With reference to the Freedom Charter he raises the call for “economic freedom in our lifetime”. He recalls Mandela’s statement during the Rivonia trial, commenting that the Freedom Charter called for “redistribution but not nationalization, of land” that the “ANC has never at any period of its history advocated a revolutionary change in the economic structure of the country, nor has it, to the best of

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my recollection, ever condemned capitalist society” (Mandela 1965, p.178-179; Ramose 2012, p.26-27). He contests if this was necessarily the correct interpretation of the charter, but notes that whatever the criticism on the ANC government’s adoption of neo-liberal policies may be, the ANC at the “negotiations” was consistent with Mandela’s understanding of the ANC not condemning capitalist society. Secondly Ramose questions the judge’s call for a closing of the book on the past saying that this would preserve the unjust outcomes of the past. Thirdly he argues that the intended establishment of a democratic political order should not be allowed to trump the right to life of those who suffered under colonialism and apartheid. In the fourth place he criticises the reliance on Ubuntu in the judgement.

for reconciliation to continue beyond the legal pursuit that backed the TRC. Ramose criticises the Christian Theological model with reference to two clergymen, one black and one white, appointed to lead the commission. This excluded women and other communities in South Africa not represented by Desmond Tutu and Alex Boraine.

4. Nostalgic and literary memories In the last section of the chapter I want to turn briefly to a distinction between restorative nostalgia and reflective nostalgia made by Svetlana Boym. She explains the distinction with reference to the roots of the word – restorative nostalgia highlights the nostos and searches for a lost home, reflective nostalgia highlights the algia, the longing. Restorative nostalgia is involved in making truth claims and in restoring tradition and is associated with national and religious revivals globally. Reflective nostalgia accepts the ambivalences of longing and belonging and is interested in thinking about multiple homes and time zones. As Boym explains, these two nostalgias should not be seen as absolutes, but as tendencies, ways in which we give shape and meaning to longing (p.41). Restorative nostalgics understand their own project as one of seeking truth, supporting nationalist revivals all over the world, engaging in modern myth-making and sometimes constructing conspiracy theories. These nostalgics want to see total reconstructions of monuments and differ from reflective nostalgics who dwell on ruins and dream about other places and times (p.41). Relying on Eric Hobsbawn’s distinction between “age-old customs” and “invented traditions”, Boym distinguishes between “habits of the past” and “habits of the restoration of the past” (p.42). What these distinctions highlight is that customs followed by “traditional” communities were not inherently or necessarily conservative - invented customs are. Invented customs rely on the loss of a sense of community

Ramose also refers to Mahmood Mamdani’s comment on the TRC and comes to the conclusion that the TRC, instead of promoting social cohesion contributed to the polarized and fractured nature of post-apartheid society. He then turns to describing what he calls the bookkeeping and the Christian theological model that the TRC followed. With the bookkeeping model he means the “periodic submission of reconciliation statements” with the core requirement that “in balancing the books, the end result should be that the final total amount on the debt side must be exactly the same as that on the credit side” (p.33). He notes three ways in which this model played a role in the TRC: First in the fixing of the time of the TRC; secondly that the people appearing at the commission acted as substitutions for financial transactions. Thirdly the assumption that once the TRC has come to an end the necessity for legal reconciliation would cease. President Mbeki’s decision to give a once off payment of R36.000 to victims that appeared at the commission as well as his decision to grant amnesty to those who didn’t apply via the TRC process without consulting the families of the victims seem to prove this aspect. Ramose notes that the continued discussions on reconciliation at universities, attached centres and institutions for reconciliation show the need for the quest

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and cohesion and offer a comfort and solace to feelings of longing. Two interesting paradoxes emerge: Firstly, the faster and stronger the urge for modernization, the more conservative and static the invented traditions and secondly the stronger the claim of continuity and authenticity the more selective is the past that is presented (Boym, p.42). Where restoration is done with the aim to re-establish, to return to some notion of origin, reflective nostalgia accepts flexibility, the impossibility of recovery and human finitude (p.49). Absolute truth is not sought, history and the passage of time is meditated on. Restorative and reflective nostalgia could focus on the same narratives, memories and symbols but the stories they tell differ (p.49). Reflective nostalgia defers an ultimate homecoming, values ‘shattered fragments of memory’ and is ironic and humorous (p.49). From the vantage of reflective nostalgia the past, or memory of the past opens a multitude if potentialities,“nonteleological possibilities of historic development” (p.50).

Since the 1990s, the theme of the past, memory and how to respond to it have been taken up by many authors reflecting specifically on the South African experience. Andre P. Brink, in one of the first volumes on the theme calls for new aesthetic responses to the changing circumstances (p.29). He notes that apartheid curtailed this theme or at least resulted in certain themes to be prioritised. For Brink it is impossible to separate the political from the personal and history from story (p.30). He rightly observes that many themes and experiences were not explored by the Truth and Reconciliation Commission and that there is space for literature and the imagination to “extend”, “complicate” and “intensify” (p.30). Concerning fiction he remarks that the “real” is never only represented but that it is always also imagined – this is of course also true for how the past is represented through the archive, and the law. Brink aptly refers to the“editing”and“re-editing” of memory (p.31). He explains how history often coincides with story and refers to the work of Charles van Onselen as bringing forth a new view of history in his narration of Kas Maine, Life of a share cropper. Brink underscores a critical approach to memory and argues for new ways of thinking about the past (p.33).

According to Boym, reflective nostalgia holds a certain ethics. The ethics reflected here opens the space for a politics that could resist and counter the pervasive orders of the day, be they late advanced capitalism, neo-colonial constitutionalism or other hegemonies.

Jacob Dhlamini in his work titled Native nostalgia (2009) might be a good example of exactly what Brink is calling for. He summarises his main question as follows: “What does it mean for a black South African to remember life under apartheid with fondness? What does it mean to say that black life under apartheid was not all doom and gloom and that there was a lot of which black South Africans could be, and indeed, were, proud?”(2009, p.13). He pre-empts possible critiques by continuing: “Only lazy thinkers would take these questions to mean support for apartheid. They do not. Apartheid was without virtue” (p.13). For Dhlamini it is important to bring to the surface that the freedom of black South Africans did not come about“courtesy of a liberation movement” (p.13). With reference to Steinberg he confirms that apartheid brought forth a “deformed world”, a world in which

Boym invokes Levinas and his notion of “anarchic responsibility” – “responsibility for the other individual in the present moment and “justified” by no prior commitment” (p.338). She mentions Nabokov’s distinction between “sensitivity” and “sentimentality”. Sensitivity according to this distinction means to be attentive and curious, tactful and tolerant but, unlike sentimentality, it does not amount to a moralism or fixed set of rules (p.338). Boym also recalls Arendt’s phrase “the banality of evil” and her support of reflective thinking, which if not followed could contribute to and participate in political evil. Following Nabokov she summarises the ethics of reflective nostalgia as follows: “through shudders and gaps, through labyrinths and gaps, through ironic epiphanies and the bullet holes of memory” (p.340).

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“order and depravity became confused with state violence and depravity” (p.13). However, for Dhlamini this doesn’t mean that black life under apartheid was caught up in a“moral void”(p.13), Dhlamini’s view here stands in contrast to how black life under apartheid often has been described, and could be compared for example with Johan van der Walt’s equation of black life under apartheid with Agamben’s description of “bare life” (Van der Walt 2005). Dhlamini, following Lewis Nkosi says that every act of a black person was not done in response to apartheid.

what he sees as ‘the anti-politics machine of the ANC’s that created a new order dominated by “political entrepeneurs” and “racial nativists” (p.20). He recalls a conversation with an official of the Ekurhuleni Metropolitian Council - established in 2000 as part of the ANC’s local government reform that amalgamated formerly black and white municipalities – in which he asked permission to view archival material on the old Germiston and Katlehong townships. The official, after hearing that he is writing a book on Katlehong responded: “But, bro, Katlehong doesn’t exist anymore. Why don’t you write a book about Ekurhuleni instead” (p.21).

Dhlamini notes the criticism against nostalgia, that to be nostalgic is seen to be bad, to be called nostalgic is an “affectionate insult” (p.16). However for him there is no need for it to be like this - nostalgia is not necessarily a longing for a past to be recovered and a rejection of the present and future. For him to be nostalgic about apartheid entails “to remember social-orders and networks of solidarity that made the struggle possible in the first place”(p.17). Reference can be made here to other writings on social movements in the past, the workings of local groups who later formed the Mass Democractic Movement and their struggle against apartheid in all forms. Dhlaimini relies strongly on Boym and her distinction between restorative and reflective nostalgia. It is in the latter version that he finds inspiration for his own work. He sees his book as part of a wider concern about a “distorting master narrative” about apartheid that dominates all history. What bothers him most about this master narrative is that it asserts that all black South Africans “experienced apartheid the same way, suffered the same way and fought the same way against apartheid”(p.18). This unified and one-dimensional version of the past denies the richness and complexity of the lives of black South Africans. I read Dhlamini’s project in the guise of a counter-archive. By questioning the mainstream narrative, the forced consensus, by reflecting nostalgically on the past he is disturbing the ideas that there is only one world view and bringing another one into the picture. He refers specifically to

Dhlamini explains that the use of “native” in his book has two meanings – on the one hand it follows the literal meaning of indigenous, from a certain place, but on the other hand it also takes up the colonial and segregationist meaning of referring to a person from African descent. He refers to views by Malinowski and Polanyi that challenged the idea that that an African could be urbanised, that one could be African and living in a city at the same time, that Africans can be “native to a city” (p.150-151). He wants readers to understand the book and the title of the book against this view. He describes his work as a meditation on“a time out of joint”- a term used also by Boym. (p.153). He refuses the reduction of black South Africans to PDI’s (previously disadvantaged individuals). In the same vein townships have been relegated to “places in need of service delivery”. “Sites of struggles” renamed as “sites of development” (p.153). Eusebius McKaiser (2009, see also Truscott 2010) in a review on Dhlamini’s book picks up on the latter issue by noting the tendency in the social sciences to make broad statements and generalised conclusions. By “examining sites” rather than “experiencing places” the complexity of township life is denied. McKaiser highlights Dhlamini’s emphasis on the “senses” (seeing, feeling, hearing, smelling, touching) in order to understand the everyday lives and relations in communities.

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David Medalie, in a piece on how the past is dealt with in post-apartheid literature, observes that a recurring idea in many post-apartheid works is the idea that the past is simultaneously known and unknown, it is familiar and strange. He refers to various views on the question whether literature could and should play the role of a unifying force (2013, p.5). Guy Butler in the 1950’s asked if literature could have “a substantial effect on society” and whether it could “help to bring about the cohesion necessary for a common culture” (p.5). Nat Nakasa in 1963 raised a similar question concerning “shared nationhood” and a “common experience” and Eskia Mphahlele in 1983 bemoaned the “absence of a national literature”. Lewis Nkosi in 1994 hoped for the “creation of a single national culture … with local variations” (p.5). Madalie responds to these views by saying that this will not be achieved, mainly because of the small readership, in other words that the role of literature is so minor that no shared identity can be forged. However, he then turns to the possible effect of the literature on those that do read - what do they say about “the textures of newness in a reconstituted society, and about the trace of the past as an element in that reconstitution?” (p.5-6). For Madalie post-apartheid South Africa in Coetzee’s Disgrace is characterised as the site for struggles about land, ownership and possession as well as a place where history and stories unfold. Coetzee in this sense is doing what Brink calls for and complicates, extends and intensifies past, present and future through his work –Coetzee had been doing this long before apartheid South Africa became called post-apartheid and his works can be regarded indeed as an archive/ counter archive of the country’s history. Medalie depicts Van Niekerk’s Agaat as an “intricate investigation” of the relationship between South Africa’s past and present:“[I]n Agaat the past is still being discovered, still emergent, still being born, still dying” (p.10). He refers to one of the characters, Jakkie who in his return to Grootmoedersdrift, the name of the farm and the main site where the story plays off, notes“an abundance that never suffices” (Van Niekerk,

p.677) and interprets this reference, in light of the novel as “a desperate attempt to fill the spaces left by loss, displacement and hollowness” (p.11). Medalie highlights the theme of artifice and of “making” in the novel, in the many references to stitching, sewing and embroidery. Milla, one of the main characters, declares that “sewing is an attempt to ‘reconcile the world with itself’” (p.11; Van Niekerk, p.387). Medalie recalls Milla’s depiction of Agaat as her “archive”,“parliament” and “hall of mirrors” (p.12; Van Niekerk, p.554). Even though Milla wishes for another language in which they could converse, one that is not caught up in the fraught relation of power, this will not realise – “such a language does not exist” (p.12).

5. Conclusion I’ve referred above to how memory became embedded in a number of institutional documents and processes. The fact that memory has been institutionalised as such could on the one hand play a constructive role in the establishment of a new society, it could assist in reminding everyone of the violence, the destruction and the exclusion of the past. At the same time it could paradoxically have the opposite effect, by forging a single memory and mastering the past, the present and future is also mastered with the effect that complexity, ambiguity and equivocation are denied, excluding again multiple vulnerabilities and “precarious life”. To my mind the distinction between a monumental and a memorial approach to memory, and a distinction between restorative and reflective nostalgia open possible ways through which to read and interpret the discourses on the past, the politics of memory. Memory work as well as further engagements with the project of reconciliation that continue and take place in places beyond those created institutionally might at the end be of greater value. The one stark fact that should be heeded in all these processes and discours-

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es is the lack of reparation, and reconstruction of the South African society, the continuance of social-inequality and poverty. However, we should also remember that as Drucilla Cornell observes “hearts starve as well as bodies” or as Mandela called for 20 years ago, South Africa needs also a “reconstruction and development programme of the soul”. One would hope that, through a politics of memory “other ways of being”, and“another language”, a“grammar of critique”could come to the fore.

ing the line of critique that has been invoked by Ramose since the changes in the mid-nineties, namely that the negotiated nature of the South African settlement, the acceptance of constitutionalism and ‘reconciliation’ should be scrutinised. In a piece titles “The revolution will not be curated”Tshepo Madlingozi questions the construction of museums as nothing but representing redemption. In his words “In a situation where the victors are the duped, as is the case with South Africa, museums stand as physical manifestations of on-going psychic manipulation”(2015). He reads most museums and thus in a way all attempts to engage with politics of memory to ‘serve as columns on the bridge of integration’ and links this with Steve Biko’s notion of “assimilation”. For him the most of the acts of memorialization (museums, monuments, Afrophone literature, truth commissions) at present all stand in the guise of “Western ways of remembering”“reinstating Western ways of being-in-the-world” and thus integration into the extant white world (2015). Madlingozi calls for “the difficult work of dismantling and displacing the memory instituted during colonization and settler indigenization” (2015).

As said in the introduction I want to conclude with reference to a reflection by Vikki Bell on the photograph of Fernando Brodsky that was taken shortly after his kidnapping in Argentinia in 1979 (2010, p.69). By engaging with the photograph Bell invokes Foucauldian biopolitics to show the continuances of the past in the present. These continuances are not drawn in any simple ways, but yet the traces are there. “Of course Fernando’s image does not contain references to this present political situation in any direct way. Yet it is possible to argue that, insofar as it might be thought to want something, it would want to promote a reflection on how his disappearance was possible that extended beyond a narration of historical events. And in pursuing that geneaological work , one is also pursuing an ethical reflection on the present one that attends to the production of political life and its caesuras ‘in the now”’(p.86).

More than two decades after the events that started the official change in South African law and politics the issue of history and the politics of memory are still unsettled and could take any one or more of a multiple of directions. But maybe before it continues it should go back and initiate the dismantling and displacement that Madlingozi and others are calling for. South African poet Antjie Krog in her latest collection, Synapse (2014, p.107) attempts to challenge language as such and create new words as a way to beckon new ways of talking, remembering and relating to each other:

In referring to the events around the “Rhodes must fall” campaign I highlighted the extent to which the claims by students focus on existing inequalities, exclusion and injustices at South African universities. The struggle for the representation of the past is a struggle for justice and redress in the present. More and more voices are follow-

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of consonants a persistent chiselling away of the plaque

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out suddenly air can stream in a new sound surface

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MEMORIAS EN ESCENA: DE LAS

interés de toda una sociedad”, lo que “impediría conocer el destino de los desaparecidos” y “la posibilidad de que la comunidad como un todo pudiera conocer la verdad histórica”.3 Con este decreto y la rápida reacción de los organismos de derechos humanos, comenzó una batalla por la memoria e inauguró un momento bisagra en relación a la necesidad de preservar los lugares que habían sido centros clandestinos de detención, como sitios de memoria. Dicho en otras palabras, posibilitó la creación de un espacio de debate sobre las políticas de memorialización, cuyo objetivo central plasmaban la necesidad de evocación de los dramas del pasado en el espacio público y desde el presente.

MICRO ACCIONES DE MEMORIA A LAS POLÍTICAS DE ESTADO EN ARGENTINA LUDMILA DA SILVA CATELA 1

En junio de 2000, la Legislatura de la Ciudad de Buenos Aires aprobó por unanimidad la ley 392, que disponía destinar los edificios donde funcionó la Escuela de Mecánica de la Armada a la instalación del denominado Museo de la Memoria. Finalmente, el 24 de marzo de 2004, durante el gobierno de Kirchner, las puertas de la ESMA se abrieron y quedó fundado así, el “Espacio para la Memoria y la Promoción y defensa de los Derechos Humanos”.

Territorios de memoria Un monumento a la pacificación nacional. Un espacio verde. Un lugar de reconciliación. Estas palabras, se anudaban en el decreto del 6 de enero del año 1998, firmado por el entonces presidente de la nación Carlos Menem. Allí donde había funcionado el mayor centro clandestino de detención (CCD) del país, la ESMA, se borraría el edificio para construir “un monumento como símbolo de la convivencia democrática y la voluntad de la reconciliación de los Argentinos”.2 Rápidamente los familiares de desaparecidos presentaron un recurso de amparo y en diciembre del año 1998, la II Cámara de Apelaciones afirmó que la intencionalidad de demoler la ESMA se contraponía “al

Parecía que ese gran fantasma enclavado en la ciudad, comenzaba a ganar otros significados. Sin dudas, esto motivó largos debates sobre quienes se “mudarían” a la ESMA y si era necesario qué todo el predio se transformase en una especie de “ciudad de la memoria”. Finalmente y en diversos momentos, organismos de derechos humanos, organizaciones no gubernamentales y dependencias del Estado comenzaron a mudar sus instituciones a los diversos edificios que se distribuyen en las 17 hectáreas.

1 Doutora em Antropologia Cultural e Mestre em Sociologia pela Universidade

Sin embargo, al cumplirse una década de la “entrega” de la ESMA, y con motivo de conmemorar esa fecha redonda, la presidenta de la

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora e pesquisadora da Universidad Nacional de Córdoba (UNC) e pesquisadora do CONICET no Museo de Antropología – UNC. Seus temas de pesquisa são violencia, direitos humanos e memoria. Atualmente é diretora do Archivo Provincial de la Memoria em Córdoba na Argentina. 2 Citado en www.pagina12.com.ar/1998/98-12/98-12-24/pag09.htm

3 Citado en www.pagina12.com.ar/1998/98-12/98-12-24/pag09.htm

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Nación solicitó la puesta e marcha de un proyecto de museo en el Casino de Oficiales. El Casino de Oficiales, es el lugar donde funcionó de manera sistemática el CCDyE (uno de los menos conocidos visualmente). Este proyecto, del cual sería muy difícil dar cuenta en esta ponencia, generó diversas reacciones, disputas y embates políticos.

sociedad civil. La ESMA es un prisma que permite comprender que los sitios de memoria no son sólo lugares de reconocimiento del pasado, sino y sobre todo terreno de disputas del presente, en el cual diversos actores sociales se enfrentan y los usan como monedas de intercambio político. No sólo muestra el derrotero político de la memoria, sino como la memoria es manipulada, usada y resignificada para hacer política.

La Legislatura de la ciudad autónoma de Buenos Aires en una carta a la Presidenta, la interpela:

Llamo a estos espacios, “territorios de memorias”.4 Esta noción abre los sentidos y las clasificaciones sobre el pasado en clave de conflicto.5 Con esta noción se enfatizaba la conquista, el litigio, la extensión de las fronteras y sobre todo la disputa que adquiere diversas temporalidad, que no está fijada en el tiempo y que irrumpe una y otra vez, cuando pareciera que la calma de los recuerdos anestesia el presente y garantiza un futuro sin conflictos. Sin embargo, como vemos en el caso ESMA, una vez más ese pasado no se salda, la memoria lo atrae como un imán a las controversias del presente.

Lamentablemente, bajo el argumento de“resignificar”, en el conjunto del predio y los edificios la ex ESMA se vienen llevado a cabo en los últimos años una serie de modificaciones y actividades que a nuestro juicio desnaturalizan el contenido de la memoria que corresponde preservar. Esto incluye eventos abiertamente partidistas del oficialismo gobernante a nivel nacional, por ejemplo un plenario nacional de la agrupación Kolina, la presentación pública de Unidos y Organizados, el famoso “asadito” del ministro de Justicia y Derechos Humanos Julio Alak a fin del año pasado y más recientemente, a principios de mayo, otra fiesta oficialista con 300 personas por la “década ganada”.

En este texto me interesa mostrar la génesis de un campo de discusión entre los actores que participan de los organismos de derechos humanos, la sociedad civil y el Estado en los procesos de memorialización. Para esto colocaré el foco, tanto en las microprácticas como en los procesos de institucionalización de la memoria por parte del Estado, para analizar cómo estas acciones se complementan, atraen o entran en conflicto.

Otras voces, más cercanas por afinidad política como es la organización HIJOS-La Plata, planteó el proyecto era “el Disneylandia de Fresneda” o “Disney en Nuñez”, apelando a las características tecnológicas y el uso de efectos de luz que se propone para la curaduría del museo. Esta discusión “interna” fue retomada por el diario Perfil, de clara tendencia opositora, disparó más alto y título: “El Museo “clandestino” que se construye en la ESMA”, en relación a los diversos mecanismos de secreto y confiabilidad que tuvieron que firmar los investigadores, que llevan adelante los contenidos del guión del museo.

4 da Silva Catela, 2001. Especialmente Cap. 5. 5 Me refiero aquí a la noción clásica de Durkheim sobre las clasificaciones en tanto formas de dividir y ordenar el mundo, aceptando que toda clasificación implica un orden jerárquico del que ni el mundo sensible ni nuestra consciencia nos ofrecen

La ESMA concentra de manera paradojal los dilemas y conflictos que se presentan en las acciones de memorialización llevadas adelante por el Estado y apoyadas o rechazadas por las organizaciones de la

modelo alguno, ya que nos encontramos muy lejos de poder clasificar espontáneamente o naturalmente. Dicho en otras palabras, las maneras de observar y analizar el pasado en tanto construcción social poblado de representaciones colectivas.

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La memoria y sus caminos.

ronda semanal de los jueves en la Plaza de Mayo a los juicios de lesa humanidad y de los graffitis a los sitios de memoria.

La cuestión entonces es plantear preguntas que permitan entender la selectividad de los procesos de memoria en palabras de Ricoeur (2004), ¿de qué hay recuerdo? ¿de quién es la memoria?

Prácticas sociales y políticas de memorialización

Según apunta Elizabeth Jelin,“en los procesos de construcción de memorias, hay parte de los actores, en diversos escenarios, cuyas luchas son por intentar imponer una y su versión del pasado como hegemónica, legítima, ‘oficial’, normal, verdadera o parte del sentido común aceptado por todos. Y esto es y será siempre cuestionado y contestado por otros” (2002). Esto arrastra consecuencias metodológicas en el análisis. Siguiendo a esta misma autora, se pueden distinguir algunos ejes. Primero, partir de una noción en plural,“las memorias”, para poder abordar los procesos ligados a sus construcciones en escenarios políticos donde se desatan las luchas sobre los sentidos del pasado; segundo, abordar el tema desde una perspectiva histórica, es decir en un devenir que implica cambios y elaboraciones en los sentidos que individuos y grupos específicos dan a esos pasados en conflicto; tercero, considerar las memorias no sólo como fuentes históricas, sino como fenómenos históricos, a partir de los cuales podemos reconstruir la génesis social del recuerdo como problema social; cuarto, reconocer que el “pasado” es una construcción cultural siempre delimitada y representada desde el presente.

De los pañuelos al Estado. En respuesta a la represión intensa y generalizada de la dictadura y el período anterior, a un año de iniciado el golpe militar, madres, padres, hermanos y esposas de secuestrados, abogados y algunos religiosos, comenzaban a reunirse, a solidarizarse frente al dolor, frente a la inexplicable situación de que sus seres queridos“no existían”, no“estaban ni vivos, ni muertos”.6 En términos generales, se puede decir, que más

6 A partir de 1975 y durante la dictadura, una serie de organizaciones se activaron o nacieron para luchar contra la violencia política y los secuestros. Si realizamos un recorte histórico tenemos, por un lado, instituciones que fueron creadas previamente a la dictadura como la Liga Argentina por los Derechos del Hombre, nacida en diciembre de 1937 como un espacio de defensa a las persecuciones al Partido Comunista; el Servicio de Paz y Justicia, fundado en 1974 por Pérez Esquivel quien era

Dicho en otras palabras, la conquista, las marcas y los sitios de memoria, implican poner en relieve por lo menos tres tipos de memoria que entran en la disputa: las dominantes, las subterráneas y las denegadas. Sin embargo, mirar la larga duración puede explicitar mejor como los procesos de memorialización en Argentina fueron desde las acciones individuales y grupales a las políticas de Estado. Intentaré un recorrido que mapee estas dos esferas, desde los pañuelos blancos de las Madres de Plaza de Mayo a la estatización de la memoria, de la

el coordinador general en toda América Latina y La Asamblea Permanente por los Derechos Humanos (APDH), constituida en diciembre de 1975 por un amplio espectro de partidos políticos y personalidades de diversos sectores, en el contexto de la violencia instaurada por la Triple A (Alianza Anticomunista Argentina). En 1976 fue creado el Movimiento Ecuménico por los Derechos Humanos(MEDH)(1976), única organización formada por integrantes del campo religioso argentino. La función de estas organizaciones después del golpe estuvo generalmente delimitada a las acciones jurídicas. Como se puede observar, todas estas instituciones llevan

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allá de todas las diferencias de cada caso particular, se puede analizar una matriz de acciones que se repitieron frente a la situación límite e inédita de la desaparición articulada en dos momentos: uno de desintegración y desagregación de los entornos cotidianos a partir del secuestro o el asesinato o muerte de un familiar, y otro de reacción, de creación de referencias culturales y estrategias políticas eficaces, tiempo que llamo de reconstrucción del mundo.7 Esta matriz, en Argentina se expresa de manera marcante en la acción colectiva de marchas y protestas, constituyendo un campo particular de hacer política, iniciado durante los años de la dictadura y todavía eficazmente utilizado.

y HERMANOS.8 La sangre era el elemento de cohesión,9 distanciaba

En ese espacio y momento de reacción y creación de referencias comunes, primaron los lazos primordiales como eje de la unión y la solidaridad: o sea la sangre de los caídos. Es interesante observar, que aunque existían organizaciones de derechos humanos anteriores, los familiares de los desaparecidos, no usaron esos espacios y, además rechazaron a los partidos políticos como herramienta o intermediarios de las denuncias. Nacieron así las organizaciones de derechos humanos que en su nominación marcan el lazo de sangre como principal eje de unión y de legitimidad. Madres de Plaza de Mayo, Abuelas de Plaza de Mayo, Familiares de desaparecidos y posteriormente HIJOS

de Plaza de Mayo–Linea Fundadora. En 1984, se creó la Asociación de ex deteni-

8 Familiares de Desaparecidos y Detenidos por Razones Políticas (1976). En abril de 1977 crean su sede (hasta ese momento utilizaba como espacio de reunión el de la APDH)y de allí partieron las primeras mujeres que decidieron ir a la Plaza de Mayo y que luego crearon la organización Madres de Plaza de Mayo (abril de 1977) y Abuelas de Plaza de Mayo (octubre de 1977). En 1979, fue creado el Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), un desprendimiento de la APDH, que actuó prioritariamente como apoyo legal y de documentación de denuncias. En 1986 las Madres de Plaza de Mayo se dividieron en dos grupos: uno pasó a llamarse Madres dos-desaparecidos. En 1995, nació H.I.J.O.S, que nuclea a hijos de desaparecidos, de asesinados, de ex–presos políticos y de exiliados. En 2002, surgió HERMANOS, que reúne a los hermanos de desaparecidos y de niños apropiados. La historia de las organizaciones de derechos humanos que actuaron durante la dictadura militar puede ser leída en Leis (1989). Para un análisis profundo sobre la historia y las prácticas de este “movimiento” de derechos humanos, ver Jelin (1994). También pueden ser consultadas las homes pages de cada organismo. 9 En los caminos para marcar identidades, aquellos símbolos que aportan “sustancia común” pasan a constituirse como símbolos altamente eficaces. Los lazos de sangre y las metáforas de parentesco son manipuladas por los diferentes grupos como poderosos medios emotivos, como medios de asociación o como marcadores de los límites inclusivos o excluyentes en el proceso de construcción de identidad y la resolución de conflictos dentro de las fronteras nacionales. La idea de sustan-

nombres que representan valores generales y universales. En ninguna de ellas se

cia común es trabajada a partir de los conceptos de Geertz (1995) cuando plantea

percibe una referencia grupal o generacional. El denominador común está pautado

los lazos primordiales como “las igualdades de sangre, habla, costumbres, que se

por la categoría derechos humanos. A partir de sus nombres y emblemas uno puede

experimentan como vínculos inefables, vigorosos y obligatorios en sí mismos [...]

percibir que, potencialmente, están destinadas a “todos”, sin distinción de épocas,

La fuerza general de esos lazos primordiales y los tipos importantes de esos lazos

situaciones o condiciones.

varían según las personas, según las sociedades y según las épocas. Pero virtual-

7 He analizado esta matriz de acciones en relación a la experiencia de los fami-

mente para toda persona de toda sociedad y en casi toda época algunos apegos y

liares de desaparecidos políticos de La Plata, pero a medida que intensifico en el

adhesiones parecen deberse más a un sentido de afinidad natural- algunos dirían

trabajo de campo en otras regiones del país, esta forma aparece resignificada en

espiritual- que a la interacción social” (pág. 222). Por su parte, en The social produ-

cada lugar. Ver da Silva Catela (2002).

tion of indifference donde Herzfeld (1993) plantea que “el simbolismo de la sangre

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a sus acciones de lo que tradicionalmente se consideraba “la política” y provocaba a las FFAA, cristianas y defensoras de la familia, en el centro de sus discursos.

cios a las Juntas militares, el reconocimiento de los CCD y la apertura de las primeras fosas clandestinas con restos de los desaparecidos. El con el retorno a la democracia, cuando se construye poco a poco el “gran relato”, se instituyen imágenes y se dota de materialidad a las nociones de terrorismo de Estado y desaparición. Las fosas comunes colocaron en la esfera de lo público el horror de la muerte, la huella y evidencia de la desaparición; los juicios a la juntas enunciaron a los culpables y mostraron sus rostros y posibilitaron dar la palabra a las víctimas; el reconocimiento de los ex CCD permitió darle voz a los sobrevivientes y el informe Nunca Más “inauguró una nueva lectura de las desapariciones, propuso un relato integrado sobre sus facetas públicas y clandestinas, instituyó un conocimiento novedoso sobre su magnitud y estableció oficialmente la responsabilidad de las FFAA en su ejercicio”. (Crenzel, 2010: 105).

Junto a la organización de estos espacios de acción, estas mujeres y hombres, fueron creando poderosos símbolos y rituales. A partir del año 1977, comenzaron a realizar una ronda semanal alrededor de la Plaza de Mayo en Buenos Aires frente a la casa de Gobierno, cada jueves, a las 15 hs. En una procesión a la Virgen de Luján, para identificarse como grupo usaron por primera vez el pañuelo blanco en sus cabezas y a medida que avanzaba la dictadura una a una fueron colgando las fotos de sus hijos en su cuerpo. En este período la memoria es transportada sobre el cuerpo de las madres, tiene un lugar público y específico de expresión: la plaza. Es en ese espacio donde se plasma la memorialización, donde se denuncia la violencia y se visibiliza lo innombrable: la desaparición de sus hijos y nietos.

Sin embargo, la compensación moral de ver a las cúpulas militares presas y al resto de los militares con procesos judiciales, duró poco. El 5 de diciembre de 1986 Alfonsín leía en cadena nacional: “sin un sólo fusil. Sólo con la fuerza moral de nuestros principios y la legitimidad popular que nos daban los argentinos, pusimos en marcha la acción de la justicia. Todos estuvieron al servicio de este gran esfuerzo personal. Me consta que las Fuerzas Armadas han aportado y están aportando su propia cuota de sacrificio [...] Pero aún nos falta concluir lo que podríamos llamar la reunión de los argentinos. Un país que encara toda esta etapa de renovación y de transformación precisa a las Fuerzas Armadas plenamente integradas a esta marcha, al Estado”.10 Nacía así la Ley de Punto Final (1986), que fue seguida de la ley de Obediencia Debida (1987), ambas conocidas como las leyes de perdón.

Los años ochenta. De la búsqueda de la verdad a la impunidad Durante los primeros años de democracia se dio una fuerte institucionalización por parte del Estado para lograr sancionar a los culpables y buscar la verdad de lo ocurrido durante la dictadura militar. Cuatro esferas serán centrales en los procesos de memorialización en este período: la creación de la Comisión de la Verdad (CONADEP), los jui-

es una vasija semántica vacía, capaz de ser rellenada con una variedad de mensajes ideológicos” (pág. 27). En todos los momentos de reactualización del conflicto por los desaparecidos, estas figuras sirven a los diferentes grupos como portadores de mensajes que, utilizados como un código, son“fáciles para interpretar”y eficaces en la construcción de las lealtades.

10 Discurso reproducido en Leis (1989: 178-82).

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Los años noventa. El Estado, indulta con una mano y repara con la otra.

Lo que era enunciado como reconciliación y reunión de los argentinos, era percibido por los familiares de las víctimas como traición, desolación y temor.

Como sucesor de Alfonsín, el presidente Menem inauguró su gobierno afirmando que sin“reconciliación nacional”no se podía gobernar y selló sus palabras con los Indultos11 presidenciales (1989-1990); estos decretos lavaron de culpas y causas las condenas que cumplían los militares de las tres primeras Juntas y las cúpulas guerrilleras. El texto del Indulto, afirmaba: “Es menester adoptar las medidas que generen condiciones propicias para que a partir de ellas, y con el aporte insustituible de la grandeza espiritual de los hombres y mujeres de esta nación, pueda arribarse a la reconciliación nacional definitiva de todos los argentinos, única solución posible para las heridas que aun faltan cicatrizar y para construir una auténtica patria de hermanos”12.

Está bien, Alfonsín condenó a los comandantes, hicieron eso muy bien. Pero después Alfonsín nos traicionó, porque saca la ley de Obediencia Debida y el Punto Final, la Obediencia Debida. Para mí en lo personal fue la traición más grande, porque de los otros sabíamos que eran unos canallas, pero con éste nosotros teníamos toda la esperanza, fue un golpe muy grande. (Amneris, Madre de Plaza de Mayo La Plata) Durante toda la década del ochenta y buena parte de los años noventa, las memorias de los familiares y víctimas de la represión oscilaron entre la toma de la palabra y el silencio. Por un lado, se siguió ocupando la plaza y realizando las rondas. Las fotografías de los desaparecidos pasaron a ocupar un lugar central, ahora a partir de soportes que día a día, irrumpían en la lectura del diario, recordando que eran parte de la comunidad imaginada de la nación.

Como se ve, después del juzgamiento “ejemplar” siguió un perdón “general”. Socialmente los indultos no pasaron desapercibidos. En las dos oportunidades las movilizaciones fueron masivas en todo el país: 63% de la población desaprobaba los indultos a los ex-comandantes, según consta en las encuestas de la época.

Por otro lado, y a partir de las leyes de perdón, los familiares y víctimas, optaron por un silencio estratégico y fortalecieron sus relatos en la construcción de memorias subterráneas, como una estrategia de rechazo a la idea de reconciliación impuesta por el gobierno nacional y exigiendo verdad y justicia.

Las palabras mágicas de la reconciliación y pacificación reaparecían como aquellas que englobaban y comprometían a todos en nombre del “bien común”, necesarias para completar el proyecto de una naci-

11 Menem indultó en dos oportunidades. La primera fue en diciembre de 1989 a pocos días de asumir el poder y favoreció mayoritariamente a militares y civiles procesados por la participación en las rebeliones carapintadas. El segundo Indulto llegó en 1990 y comprendió a todos los integrantes de las juntas militares, procesados y condenados en los juicios de 1985. 12 Texto decreto de Indulto. Boletín Oficial, diciembre de 1990, pág. 305-9.

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ón siempre inacabada. Podemos decir que estas eran consideradas por los gobiernos como políticas de memoria, en tanto miraban hacia el futuro, usaban el pasado como la herramienta para sanar las heridas.

motivaron diversas reacciones y actuaron como un divisor de aguas, la cuestión de los desaparecidos volvió a ganar una inesperada centralidad en la opinión pública. Después del indulto hubo un intervalo respecto a este tema; cinco años después retornó como un drama no resuelto. Sería demasiado extenso abordar esta transformación de manera completa. Lo que me interesa es destacar que esta confesión funcionó como un elemento de eficacia simbólica que permitió volver al debate público los crímenes del pasado, ahora en boca de un militar. Esto legitimaba lo que ya se sabía: el extermino de personas, cuya metodología era tirarlas vivas al mar.

Paradojalmente durante el gobierno de Menen se propiciaron muchas de las políticas de reparación a las víctimas y se creó la CONADI, fundamental para el reconocimiento de los niños apropiados durante la dictadura.

1995 y 1996. Un nuevo ciclo en las luchas por las memorias.

Durante este mismo año nació la organización H.I.J.O.S, Hijos por la Identidad, la Justicia contra el Olvido y el Silencio, que fue algo así como un huracán en la construcción y visibilidad de las memorias de la represión. Una nueva generación aparecía en escena, renovando prácticas y sobre todo preguntas en relación a sus padres desaparecidos. Esta generación entró en el problema de los desaparecidos por la puerta de la identidad. Si las Madres inventaron las rondas y el símbolos de los pañuelos, ellos innovaron con el escrache. A cada escrache, un sistema de actos se ejecutaban: marchas, pintadas y pegatina de carteles, se inventan consignas y canciones, etc. Como ya vimos, estos torturadores y represores se encontraban en libertad por haber quedado exentos de juicio y condena, por este motivo, la consigna

1995 fue un año bisagra en relación a la construcción de las memorias. Por primera vez un ex-marino contó públicamente cómo eliminaban a los secuestrados, todavía vivos, tirándolos desde un avión al Río de La Plata, y esto puso en evidencia que el perdón no puede dictarse en papeles ni en los discursos presidenciales.13 Sus declaraciones

13 Es importante resaltar que según Adolfo Scilingo, su confesión se originó a partir de una serie de frustraciones, en un intento por expresar su honor traicionado, a partir de la aceptación del Indulto por parte de sus superiores y por la actitud silenciosa por la que optaron después de salir de la cárcel. Su peregrinación comenzó con una serie de cartas motivadas por el Indulto; luego hubo problemas en su ascenso a capitán de fragata y finalmente como modo de solidarizarse con Rolón y Pernía dos compañeros de carrera. Según Scilingo su mayor preocupación, era que si algunos militares consiguieron ascender ¿por qué otros no iban a poder hacerlo, si de una

acentuados por Scilingo como los valores más generales donde ciertos personajes

forma u otra todos participaron de “la guerra contra el enemigo”? Convencido de

(Rolón, Astiz, Pernías, Videla) y ciertos eventos (Indulto, llegada de sus compañeros

que lo que habían hecho se encontraba dentro de los objetivos planteados de forma

vestidos de civil y sin compañía de los altos mandos a la Cámara de senadores) ju-

organizada para vencer a la “subversión”, comenzó su camino de “esclarecimiento” .

garon como disparadores de una declaración que poco a poco fue centralizándose

Primero con las autoridades militares, como corresponde a quien obedece las jerar-

en lo personal y comenzó a dibujarse como traumática sobre el pasado. Scilingo

quías y las enseñanzas de una educación militar. Se comprende así, que la necesidad

eligió así el camino de “defensa de sus compañeros, Rolón y Pernías” para “poder

de hablar no estuvo siempre basada o centralizada en los“traumas”de un pasado de

hablar” de sus asesinatos, de los desaparecidos y de sus sueños perturbadores. La

muertes, sino que otros temas actuales, como el ascenso y el “honor” militar, fueron

génesis de esta historia puede ser leída en Verbitsky (1995).

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inventada por H.I.J.O.S, decía: “Si no hay justicia hay escrache”.

las juntas); un ciclo de impunidad y silencio estratégico (con las leyes de perdón) y un tercer período que comienza con acciones judiciales, políticas de la memoria y ocupación del espacio público por parte de una nueva generación de familiares de desaparecidos, que denominaré el ciclo de las reparaciones y fertilidad de la memoria.

En marzo de 1996, se conmemoró el vigésimo aniversario del golpe militar, el clima de debate público sobre los efectos de la dictadura se densificó una vez más. Actos, homenajes, monumentos, se multiplicaron por doquier. La memoria deja así de ser un elemento ligado al testimonio/cuerpo y pasa a manifestarse en diversas marcas materiales. Fechas (como el 24 de marzo) y lugares (Plazas, CCD, Monumentos y Placas en las universidades). Desde algunos municipios y gobiernos provinciales se comenzaron a señalizar cementerios y ex CCD. (UP1 en Córdoba, Comisarías de La Plata, etc.).

Cambio de siglo. Crisis política, estatización de las memorias y creación de instituciones. El cambio de siglo, se caracterizó en Argentina, por sus años de crisis política y económica. Hubo diversos conflictos socio-políticos que terminaron con la salida del presidente de la Rúa y en menos de un mes Argentina fue gobernada por cinco presidentes diferentes. Las fechas del 19 y 20 de diciembre fueron un quiebre en la historia del país. En relación al tema de la construcción de las memorias de la represión, se generó un fenómeno interesante. Las mismas fueron reactualizadas en relación a las muertes que se dieron en la Plaza de Mayo durante esos dos días, dónde una centena de jóvenes fueron asesinados por fuerzas policiales mientras manifestaban contra la política del presidente. En este sentido, el año 2001 también funcionó como una bisagra, ahora en relación a como los nuevos grupos afectados por la represión en plena democracia, se apropiaron de los símbolos y estrategias creados durante los años setenta, estableciendo lazos y continuidades con la represión de pasado y con las organizaciones de derechos humanos que denunciaron y construyeron memorias. Así, otras madres usaron pañuelos, otros grupos convocaron a las Madres para defenderse, nuevas marcas que señalaban muertes de jóvenes manifestantes, se sumaron a los pañuelos estampados en el piso de la Plaza de Mayo.

Por parte de la política de Estado, fue un momento de políticas de reparación. Estas políticas incluyeron leyes que abarcaron desde el fin del servicio militar obligatorio para los hijos de desaparecidos, a la indemnización a presos políticos y a los familiares de las víctimas, la creación de un banco de datos genéticos para reconocimiento de niños apropiados y la aceptación de la existencia de una nueva figura que es la “ausencia por desaparición forzosa”. Por otro lado, en aquellos años, se inició en argentina una modalidad de juicios inéditos, los llamados, Juicios por la Verdad que, pretendieron poder establecer el circuito y destino que cada secuestrado transitó hasta su desaparición. El objetivo central de estos juicios no era la condena a los agentes involucrados en la represión, sino poder establecer el destino de cada desaparecido. Los jueces convocaban así a declarar a militares, sobrevivientes de los C.C.D y a otros testigos que pudieran dar cuenta de los sucedido con cada desaparecido, a partir de causas individuales promovidas por sus familiares y abogados. Los datos y las pruebas recolectadas en estos juicios fueron centrales para los que se iniciarían 10 años después. Se puede decir entonces que desde el retorno de la democracia hasta fines de los años noventa, hubo un ciclo de establecimiento de la verdad y nacimiento de las memorias (con la CONADEP y los Juicios a

En relación al gobierno nacional y provincial, durante estos años co-

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menzaron a nacer diálogos y propuestas conjuntas entre los estamentos del Estado y los organismos de derechos humanos para crear instituciones de memoria y monumentos públicos que recuerden a los desaparecidos fue creado en Rosario, el Museo de la Memoria14 y en La Plata, la Comisión Provincial por la Memoria.15. Poco a poco las memorias subterráneas se fueron modificando y accediendo a espacios de poder para constituirse en memorias dominantes.

la imposición de nombres, imágenes y señalizaciones en el espacio público. Raramente el visitante logrará desentrañar esa selva de símbolos, pero tienen una lógica y un tiempo especifico, están atadas a actores singulares y a disputas de memorias particulares, intensas, creativas, movidas por la acción colectiva, la discusión en asambleas y la cooperación entre vecinos, artistas y familiares de desaparecidos. En el año 2003, con la llegada de un nuevo presidente al gobierno nacional, se produjo un nuevo giro en relación con las políticas de construcción de memoria por parte del Estado. Uno de los elementos más significativos de este período fue la figura del presidente Néstor Kirchner, quien, sin duda, imprimió un nuevo tono a las políticas públicas de derechos humanos. Lo más significativo, en términos políticos, fue que durante esa gestión la Justicia revocó las leyes de perdón,16 lo que significó que muchas de las causas sobre crímenes de lesa humanidad pudieran nuevamente ser elevadas a juicio. Antes de esta resolución histórica se produjeron dos eventos políticos que implicaron la imposición de esta memoria dominante con la intencionalidad de “borrar” y resignificar espacios pertenecientes a instituciones militares: la expropiación de la Escuela de Mecánica de la Armada17 para transformarlo en un Espacio de la Memoria y el descuelgue de las fotos de los represores en el Colegio Militar. En un acto sin precedentes, el 24 de marzo de 2004, el Presidente, junto a todo su gabinete, participó en una ceremonia en el Colegio Militar en la cual se le or-

Es en este período donde diversas iniciativas ciudadanos pasaron a imprimir en el espacio público sus memorias locales y barriales. Si cualquier extranjero visita Buenos Aires, Córdoba o Rosario, y recorre sus calles, seguramente se tropezará con murales, plazas de la memoria, memoriales con listas interminables, escuelas rebautizadas, graffitis y dibujos, baldosas de la memoria. Estos constituyen sin duda

14 Este espacio alberga diversas actividades, desde exposiciones a investigación. Comenzó sus actividades en el año 2001 y fue creado por la legislatura de Rosario en 1998. En estos momentos hay un intenso debate ya que el Museo quiere ocupar el espacio de un bar que en los años setenta funcionó el Comando del II Cuerpo de Ejército. El edificio pertenece a privados que piden un elevado monto para su venta. El debate se centra en que parte de los legisladores y de la sociedad rosario consideran que es un absurdo pagar ese monto frente a otras necesidades de la ciudad. Las memorias entraron así en conflicto, entre quienes consideran que es necesario recuperar ese espacio para “hacer memoria” y aquellos que consideran que “hay que mirar al futuro”. 15 En la ciudad de La Plata, la Cámara de Diputados de la Provincia de Buenos

16 El 14 de junio del 2005, la Suprema Corte de Justicia de la Nación declaró la

Aires creó en el año 2000 la Comisión Provincial de la Memoria, un organismo pú-

invalidez y la inconstitucionalidad de las leyes de punto final y obediencia debida.

blico, con funcionamiento autónomo y autárquico. La Comisión está integrada por representantes de los organismos de Derechos Humanos, el sindicalismo, la justicia,

17 No reflexionaremos aquí sobre el uso de los conceptos, pero es sugestiva la no-

la legislatura, la universidad y diferentes religiones. Entre sus múltiples actividades

ción de“expropiación”para dar cuenta del traspaso de todo el Edificio de la ESMA a

desarrolla investigación y difusión a partir de cuatro áreas: la Revista Puentes, el

manos de diversas instituciones tanto del Estado como de organismos de derechos

Archivo de la D.I.P.B.A, el proyecto Memorias en las Escuelas y el Museo de Arte y

humanos, siendo que este traspaso no es una expropiación en sentido estricto del

Memoria y una Maestría en Historia y Memoria.

término.

329


denó al Jefe del Ejército que retirara los retratos de los ex presidentes de facto Jorge Rafael Videla y Reynaldo Bignone. Pocas horas después de ese mismo día se firmó un decreto que establecía la creación del “Espacio para la memoria y la promoción de los derechos humanos”, lo que culminó con una multitudinaria conmemoración frente al edificio de la Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA).18 Finalmente, se decretó feriado nacional la fecha del 24 de marzo. Los años posteriores este modelo nacional creo raíces en diversas provincias con la creación de Archivos, Museos, Sitios de Memoria. Duplicación en los ministerios de educación de políticas similares a las de nación, entre muchos otros eventos.

• La creación de un nuevo feriado nacional. Para tornar el 24 de marzo como el día de la “Verdad, la Memoria y la Justicia”. • La institucionalización de dicha fecha, que pasó ocupar un lugar de fecha recordable en el calendario escolar. Para lo que se aportan diversos materiales pedagógicos: publicaciones, manuales, videos, etc. • La inauguración de manera oficial de la reconversión de ex CCD en sitios de memoria. Iniciando la serie con el Espacio para la Memoria y la Promoción de los Derechos Humanos con y en la E.S.M.A. de manera federal y ahora reafirmada por una Ley Nacional. Hasta el momento se han señalizado 94 lugares en todo el país vinculados al terrorismo de Estado. Algunos de ellos, son sitios de memoria, otros continúan funcionando como dependencias policiales o simplemente ya no existen materialmente.

Puede decirse que hacia inicios del presente siglo el Estado argentino no limita su política a instancias formales de reconstrucción de la verdad y la justicia, sino que actúa además en espacios directamente relacionados con los tiempos y calendarios de la memoria creados y defendidos por las organizaciones de derechos humanos. Se inaugura así un momento que puede denominarse de estatización de la memoria.19

• La creación del Archivo Nacional de la Memoria. Institución que se replicó como modelo, en archivos provinciales de la memoria y secretarias de derechos humanos donde no existían.

Se pueden distinguir por lo menos cinco acciones que caracterizan esta nueva política de la memoria emanada desde el gobierno nacional y de algunos a escala provincial:

• La escritura de un nuevo prólogo para el libro “Nunca Más”. • Procesos que son legitimado con leyes y con presupuestos, que conforman parte de las planificaciones anuales de gobiernos provinciales y nacional.

18 En esa jornada, habló el presidente de la nación, junto a representantes de H.I.

De esta manera en estos últimos 35 años los procesos de construcción de memoria e identidad en torno a los desaparecidos oscilo entre una memoria corporal, construida especialmente por las mujeres, hacia una memoria ritual que expresaba el rechazo a las política públicas de impunidad emanadas desde el Estado, para finalmente anclarse en una estatización de la memoria plasmada en grandes monumentos e instituciones de memoria como museos y archivos. Se funda así un el ciclo de la estatización de la memoria.

J.O.S. También tomó la palabra, Juan, un joven nacido en la ESMA y“apropiado”por un militar. Juan había recuperado su historia unos días antes de este evento y su discurso fue, sin dudas, lo más conmovedor del acto. 19 Por estatización de la memoria me refiero al papel central que ocupa el Estado como agente de memoria y su pretensión de generar una política centralizada de memoria, negando implícitamente la pluralidad de memorias que circulan y son defendidas por diversos grupos e instituciones.

330


Dilemas y aciertos de la estatización de la memoria.

una de las políticas de mayor impacto social. Estas instituciones mixtas: memorial, museo y espacio de pedagogía de la memoria, han permitido reactivar, usar y reapropiarse del espacio urbano, generando lazos sociales y prácticas opuestas o contrarias en relación a su origen y destino durante la dictadura militar. La apertura de los mismos, en todos sus sentidos de puertas abiertas generan lugares de acción política en cada una de las ciudades dónde han sido abiertos: son espacios de diálogo, circulación y encuentro, donde se generan -o potencialmente pueden permitir- debates entre las lógicas represivas del pasado y del presente, posibilitan reflexionar y generar puentes entre las violencias de ayer y de hoy, construyen fértiles diálogos entre las generaciones.

Como todo modelo que tiende a centralizar y monopolizar un gran relato sobre el pasado reciente, esta memoria oficial provoca versiones cristalizadas y“legitimadas”por el Estado. Las mismas por un lado, silencian u opacan relatos más débiles, menos visibles, más periféricos y subterráneos: por ejemplo el de las minorías étnicas y sexuales que no logran ser audible. Por otro lado, y esto se genera de manera más directa, están aquellas memorias que son denegadas de ser incorporadas: me refiero a la que portan las víctimas de la guerrilla, las mismas generan resentimientos y odios y consiguen ciertas afinidades ideológicas con aquellos que se oponen políticamente al gobierno. Finalmente, en relación a la cristalización de UN relato, esta estatización de la memoria tiende a:

A modo de cierre

• Limitar una temporalidad que no puede ultrapasar las fronteras de la dictadura: 1976-198. Borrando así, otras temporalidades: los años previos al golpe que permitirían abrir el debate sobre la lucha armada y sobre la violencia política en democracia. En fin permitiría observar más las continuidades y no sólo las rupturas.

Las marcas públicas de la memoria, sea en una baldosa o en un museo, recuerdan a la comunidad imaginada de la Nación, que esas desapariciones fueron posibles dentro de sus fronteras. Interpelan, por lo menos a aquellos que los visitan, sobre la posibilidad de que esta experiencia puede volver a repetirse, aunque metamorfoseada. Tienen además, por lo menos la intencionalidad de concretar sus acciones en cuatro esferas de la memoria:

• Reconocer centralmente un tipo de víctima: los desaparecidos políticos. Dejando de lado otras categorías de víctimas: homosexuales, prostitutas, presos comunes, o minorías étnicas como gitanos e indígenas.

Imprimir la idea de un patrimonio que es de todos: valorizando y abriendo al público los lugares en los cuales el pasado reciente de violencia política dejó sus huellas.

• Construir la noción de violación a los derechos humanos, haciendo un uso monopólico del término solo para hablar del pasado reciente, si no más específicamente desde el 76-83. Dejando poco espacio para problematizar el presente.

Ejercitar una vigilancia conmemorativa. No hay lugares de memoria activos, sin conmemoración. Para salvar a la memoria del olvido hay que recordar regularmente los eventos que son eficaces simbó-

Por otro lado, la instalación de los sitios de memoria ha sido sin duda

331


licamente. Ceremonias anuales como el 24 de marzo, o las del 29 de mayo en Córdoba, por el Cordobazo. Sumadas a todas las iniciativas ciudadanas de plazas, baldosas, etc. .

nos para hablar casi exclusivamente del pasado reciente, en fin, de las inevitables (¿) relaciones de poder, que implica la imposición de memoria en el espacio público.

Investigar para conocer, denunciar, aportar a la justicia. Todos los sitios tienen como misión la investigación sobre los crímenes de lesa humanidad. Entre otras cuestiones, se los crea, junto a los archivos provinciales de la memoria para que “aporten datos a los juicios”. Finalmente, accionar herramientas pedagógicas. Ningún espacio de memoria es imaginable sin el “deber” del diálogo con las nuevas generaciones. Las formas de hacerlo son múltiples, desde exposiciones a acciones que impliquen la participación activa de docentes y alumnos. Estos elementos están presentes en las proposiciones, en las prácticas, en los objetivos y en las leyes de creación de estos sitios de memoria. Lo interesante es la variación de respuestas que se dan en cada caso particular, ya sea por la conformación de los grupos que llevan adelante las políticas de memoria, tanto como por las demandas externar y los grupos que luchan por ser incorporados a dichas políticas. Así, los ex CCD, las marcas urbanas, las políticas de Estado revelan lo que muchos “no vieron”, los que otros siempre “supieron y callaron”, lo que la sociedad como un todo sufrió y hoy se constituye en una memoria de todos. Se transforman también en una búsqueda constante del mantenimiento del lazo social que une a los muertos (desaparecidos y asesinados) con los que están vivos y pretenden evocar continuamente la pregunta “¿cómo fue posible?”. Sin embargo, me gustaría dejar planteado un dilema. Estos procesos de memorialización, desde las acciones más pequeñas a las políticas de Estado, tal como mostré al inicio de esta presentación con el caso de la ESMA, también revelan el lado más complejo de la memoria: el de su manipulación, el de la imposición de unas voces sobre otras (la sangre por sobre la alianza), el de la monopolización de las palabras memoria y derechos huma-

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333


O LEGADO DA COMISSÃO NACIONAL

nossa última ditadura. Em uma região que já constituíra 18 Comissões da Verdade desde 1972, e frente ao exemplo das comissões da verdade africanas, a CNV caracterizava-se como uma instituição retardatária.

DA VERDADE – CVN 1 BRASILEIRA

Tal como se vê no enfrentamento tardio à corrupção a protelada criação da Comissão expressa a condescendência de nossas elites com os malfeitos de seus pares e de suas forças da ordem, especialmente as que lhe serviram de armadura. Constituem exercícios de arrogância do poder (ilegal) de não punir. Clareiras de impunidade gestadas por quem manda no país.

Rosa Cardoso 2 Há muitas formas de avaliar o que significou e as repercussões possíveis do trabalho da Comissão Nacional da Verdade – CVN, a qual encerrou seu mandato em dezembro de 2014.

De todo modo, sob a impulsão da luta das vítimas, familiares e ativistas de direitos humanos, bem como das imposições do direito internacional dos direitos humanos, materializada na designada sentença da Guerrilha do Araguaia, como elementos de pressão mais destacados sobre o Estado brasileiro, para fazer viger o instituto da Justiça de Transição, concretizou-se no Brasil o direito à verdade sob a forma da Comissão Nacional da Verdade.

A despeito de “determinações genéticas” serem relevantes na construção de resultados, nem sempre existe racionalidade entre causas e efeitos. A ação política, como reiteradamente temos a oportunidade de aprender, é recortada por interveniências, visíveis ou sutis, que a tornam imprevisível. Que bom: se o pior sempre pode acontecer a esperança é um sentimento factível. Relativamente à CNV a luta, a persistência e a esperança dos muitos que a viabilizaram foi, afinal, premiada com um saldo positivo.

A composição da Comissão exibia uma maioria de notáveis, política e profissionalmente moldada na prestação de serviços ao Estado brasileiro em instituições como o Superior Tribunal de Justiça, a Procuradoria da República, o Ministério da Justiça e o Itamarati, em suas missões relacionadas à promoção dos direitos humanos, prenunciando o funcionamento da CNV como um órgão de Estado, atrelado à sua cultura, estrutura hierarquizada, excludência do público na discussão e tomada de decisões, segredos de Estado3.

A CNV foi instalada 50 anos depois do golpe de Estado que implantou

1 Neste texto designaremos indistintamente a Comissão Nacional da Verdade como CNV ou COMISSÃO.

Inicialmente a CNV organizou-se como um condomínio de sábios, um colegiado autossuficiente, que se acreditava capaz de cumprir

2 Rosa Cardoso é advogada e professora universitária. Graduada em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1969, é mestre em direito penal pela USP e fez o curso de doutorado em ciência política pelo Iuperj, atualmente vinculado a UERJ. Integrou o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária entre 1999 e 2002 e foi Secretária Adjunta de Justiça do Estado do Rio de Janeiro entre

3 Ver a propósito matéria publicada no nº 91, da Revista Piauí, de abril de 2014, A

1991 e 1994). Foi coordenadora da CNV, entre maio e agosto de 2013 e atualmente

Verdade da Comissão, com retrospectiva sobre o funcionamento da CNV, desde o

é presidente da Comissão Estadual do Rio (CEV-Rio).

início.

334


suas atribuições, assessorado por um conjunto de técnicos de alto nível profissional, cedidos pela burocracia estatal, universidades, centros de pesquisa, etc. Segundo a maioria da CNV esta assessoria, sem o enviezamento emocional e ideológico próprio às vítimas da ditadura, resiliente à sua pressão, com o seu saber imune à contenda política que opôs violadores e insurgentes, ajudaria a Comissão a alcançar a verdade sobre os fatos que deveria investigar e relatar.

a CNV pronunciar-se sobre a aplicação da Lei da Anistia aos perpetradores de graves violações visando cumprir suas atribuições legais. Considerava-se, também, dominantemente, que a responsabilização dos agentes devia ser apenas institucional e que a grande revelação a ser feita à sociedade brasileira consistia em a Comissão da Verdade dizer ou oficializar a versão de que as graves violações praticadas por militares estavam inseridas em cadeias de comando, cujo vértice era ocupado pela mais alta hierarquia dos governos militares, incluindo seus Presidentes da República. Até o final dos trabalhos da CNV ainda se mantinha a rejeição ou a dúvida sobre nomear os autores das graves violações5.

No espaço da CNV seriam ouvidos, em princípio reservadamente, os acusados de graves violações de direitos humanos e as vítimas que desejassem apresentar suas denúncias. Naquele momento considerava-se que audiências públicas tinham inconvenientes a serem ainda sopesados: elas viabilizariam a pressão, o assédio, as demandas e as críticas das vítimas em relação aos comissionados; exibiriam inconsistências e divergências entre os membros da CNV; exporiam agentes públicos, como eram os militares e policiais, a uma execração social antecipada, implicando em riscos de reações emocionalmente descontroladas das vítimas em relação aos seus algozes.

Iniciados, entretanto, os trabalhos de redação do Relatório Final começou a haver uma discussão sobre os termos da Lei 12.528/2011, que criara a Comissão, e sobre o conteúdo do mandato de seus membros. Ficou, então, evidente que a determinação da Lei no sentido de apurar-se “graves violações” de direitos humanos submetia a CNV a uma normativa do direito internacional dos direitos humanos que lhe predesignava o entendimento sobre um conjunto de questões. Entre estas questões é relevante destacar:

A CNV priorizou, então, inicialmente, a interlocução entre seus membros, o trabalho com as assessorias, a relação formal e cerimoniosa com as vítimas e movimentos sociais e o “silêncio obsequioso”4 com a mídia. Entendia-se que o grande feito da Comissão havia de ser a produção do Relatório Final.

• A investigação da CNV devia versar sobre graves violações de direitos humanos, ou seja, sobre a violação de direitos inderrogáveis e não passíveis de anistia e prescrição; • A CNV devia utilizar a doutrina e a jurisprudência correspondentes a estes direitos, as quais possuíam uma incidência teórica e prática sobre as decisões a serem adotadas em seu trabalho.

Do ponto de vista do conteúdo a maioria do colegiado considerava que o direito à verdade independia da judicialização da verdade. Entendia que a luta por verdade não precisava buscar a punição como uma de suas consequências. Argumentava sobre a desnecessidade de

• Tardiamente, mas não a destempo, compreendia-se que a

4 A expressão foi cunhada ou divulgada no âmbito da CNV por seu membro Pau-

5 Neste sentido há mensagens eletrônicas trocadas entre os membros da CNV

lo Sérgio Pinheiro.

durante a elaboração do Relatório Final questionando a decisão de nomear autores.

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1 – Avaliando a CNV com critérios institucionais

CNV precisava adequar-se a um conceito contemporâneo de verdade que impunha aos comissionados indicar responsabilidades, nomear autores e reivindicar-lhes a correspondente punição, afastando-se-lhes o benefício da legislação sobre anistia, com a qual vinham se protegendo de processo judiciais.

Dois meses depois da apresentação do Relatório Final, em 26 de fevereiro de 2015, a Revista Foreing Affairs publicou o artigo“Nothing but the Truth”, de autoria de Kathryn Skking e Bridiget Marchesi, fazendo uma avaliação sobre o trabalho da CNV. No artigo as autoras utilizam dados do “Trasitional Justice Reserarch Collaborative” para avaliar o desempenho das comissões da verdade criadas no mundo nos últimos cinquenta anos6.

Foi, contudo, a partir do confronto com as expectativas e reivindicações das vítimas e familiares, da crítica promovida, insistentemente, pela mídia que acompanhava as ações da Comissão, e de um processo interno de disputa de posições entre seus membros que a CNV acurou sua interpretação sobre a lei que a regia e determinava as suas escolhas.

As comissões mais efetivas, salientam as autoras, são as públicas e autônomas em relação aos poderes do Estado. Além disto as comissões devem exibir sete características específicas: ouvir testemunhos, ou seja, fazer “oitivas”; disponibilizar publicamente estes testemunhos; estimular a ampla participação do público; produzir um relatório final; tornar o relatório disponível para o público; publicar o nome dos perpetradores de graves violências e reivindicar a judicialização e punição dos mesmos.

Pressionada por estas condições a CNV ampliou o seu trabalho e a sua exposição pública, aumentou o número e melhorou a qualidade de suas audiências públicas, admitiu e buscou maior participação das vítimas, do público interessado e da sociedade em seu conjunto. Sucessivamente debateu e elaborou seu Relatório Final, disponibilizando-o, publicamente, no site da Comissão, no mesmo dia e hora em que o entregou à Presidência da República.

Considerando as mencionadas características as autoras classificaram todas as comissões da verdade constituídas no mundo, entre 1972 e 2014. Adotando o número sete como classificação máxima, verificaram que a nota média das comissões avaliadas era 3,18. Observaram, ainda, que desde a conclusão dos trabalhos da “South Africa’s Truth and Reconciliation Commission”a qualidade das comissões declinara, passando de 3,7 para 2,9. Constituídas, em geral, para ampliar a legitimidade de governos falharam na compreensão e no exercício dos

Além disto a CNV nomeou e tornou pública em seu Relatório Final a relação de um conjunto de perpetradores de graves violações de direitos humanos, os quais qualificou como autores de crimes de lesa-humanidade, demandando aos Poderes respectivos sua punição. É inegável, assim, que no curso de sua existência a CNV atualizou-se sobre as concepções contemporâneas relativas ao direito à verdade e atendeu às normas do direito internacional dos direitos humanos que regem este direito.

6 http://www.foreignaffairs.com/…/kathr…/nothing-but-the-truth Note-se que Kathryn Skking é uma especializada pesquisadora/fundadora do Transitional Justice Research Collaborative, que integra acadêmicos de três importantes universidades americanas.

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objetivos de uma efetiva comissão da verdade.

Mesmo assim, vítimas, familiares e ativistas dos direitos humanos começaram a se apropriar do conteúdo do Relatório visando formular uma estratégia para fazer avançar a luta por justiça e a implementação de outras das suas recomendações7.

O Brasil, diversamente, classificou-se na escala de 7 (sete) pontos com nota 6 (seis). A Comissão brasileira tinha de fato um problema insuperável, que a ação de seus membros não pôde corrigir: era tardia, extremamente tardia, tendo sido instalada meio século depois do início da ditadura que provocou sua existência.

Considerando esta conjuntura é importante destacar no Relatório alguns eixos significativos para a reflexão sobre o seu texto. Faremos isto priorizando a referência a questões que, a nosso juízo, tiveram nele uma apresentação suficiente. Em momento posterior examinaremos o que avaliamos como insuficiente.

Mesmo assim ela obteve média 6 (seis) frente a um cenário em que somente duas outras comissões da verdade conseguiram a nota máxima da escala. Por isso o artigo destaca a qualidade do produto apresentado pela CNV, afirmando que a Comissão realizou um “trabalho exemplar” na indicação de autores e na recomendação de seu julgamento.

Questão 1 A primeira questão que recebeu um tratamento adequado e rigoroso no Relatório foi a apresentação de um marco jurídico e doutrinário, compatível com o direito internacional dos direitos humanos, os conceitos contemporâneos sobre Justiça de Transição e o Direito à Verdade.

II – Iniciando uma avaliação do Relatório Final A tormentosa crise político-econômica que o país vive tem dificultado a discussão do Relatório Final e de suas recomendações. Algumas comissões da verdade estaduais, municipais e setoriais, com mandato mais extenso que o da CNV, vêm enfrentando o contingenciamento orçamentário dos órgãos que as instituíram e mantém, o que as impede de financiar encontros e debates visando promover uma discussão ampliada sobre o tema e suas perspectivas.

7 A autora deste texto, em particular, tem participado de discussões sobre o Relatório como foram as realizadas no mês de março de 2015, na CEV-Rio; no Memorial da Resistência, em 28/02/205, em São Paulo; na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, em 01/04/2015 e, parcialmente, em Seminário organizado pela CEV-Rio, em 16 e 17/04/2015, com Comissões da Verdade Estaduais e repre-

Representantes de movimentos sociais, que participaram ativamente da construção do Relatório e querem tornar efetivas as suas recomendações dividem, hoje, o tempo de sua militância política com o enfrentamento político à redução de direitos sociais e trabalhistas, cuja proposta encontra-se na agenda pública nacional.

sentantes da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, das Comissões de Mortos e Desaparecidos e da Anistia, do Ministério Público Federal e do Projeto Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional . Há ainda debates previstos em vários fóruns no Paraná (Comissão da Verdade Estadual, Universidade e Movimento Sindical) em meados do mês de maio, e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, no mês de junho.

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Certamente a CNV não teria alcançado esta compatibilidade se a Lei 12.528/2011 não acolhesse as referencias normativas e conceituais previstas atualmente pela ONU e por seus órgãos. Mais especificamente este resultado não seria possível se o Poder Executivo não houvesse proposto ao Congresso Nacional criar uma comissão com a configuração normativa e as atribuições impostas à CNV.

conformam a instituição designada como Justiça de Transição. Sucessivos textos normativos (Tratados, Pactos e Convenções), estudos e decisões jurisprudenciais têm enfocado ou estabelecido a conexão que existe entre o direito à verdade e os direitos à memória, à reparação e à justiça. O direito de saber a verdade, íntegra e completa sobre os fatos, bem como a identidade dos perpetradores, reclama do Estado um aprofundamento desta verdade, sua judicialização e a punição dos perpetradores, a não repetição dos fatos e a reparação das vítimas8.

Entre outras questões, ao elaborar o projeto, afinal convertido na Lei 12.528/2011, houve uma opção deliberada por justificar o funcionamento da CNV com base no exercício do direito à verdade (art. 1º), assimilando-se, assim, o conjunto de seus atuais corolários, alguns previstos na própria Lei. O legislador optou também por designar como finalidade da CNV identificar e esclarecer graves violações de direitos humanos, o que aponta a um instituto diverso dos tipos penais ou dos direitos fundamentais previstos em nossa legislação constitucional e infra-constitucional. Atribuiu, ainda, à CNV o dever de promover um esclarecimento circunstanciado dos fatos e de sua autoria, isto é, identificar e nomear os perpetradores das graves violações.

As Graves Violações Quanto à opção do legislador por estabelecer como foco da ação da CNV a investigação de graves violações de direitos humanos (e não o desrespeito a direitos fundamentais ou a prática de crimes previstos na legislação brasileira) a escolha revela a decisão de tratar as atrocidades ocorridas com o recurso a normas do direito internacional dos direitos humanos, à doutrina e aos precedentes dos órgãos internacionais competentes.

Com relação ao direito à verdade, que justifica o funcionamento da Comissão, é relevante observar que ele tem sido alargado a partir da compreensão de que o mesmo possui uma dimensão individual (direito de as vítimas e interessados saberem circunstanciadamente como ocorreram as graves violações e quem são os seus autores) e uma dimensão coletiva (correspondente ao dever do Estado de informar com precisão o que, como e por que ocorreram as graves violações, prevenindo versões revisionistas ou negacionistas dos fatos).

Destaque-se que“graves violações de direitos humanos”significa violações de direitos inderrogáveis, ainda quando ocorram situações excepcionais como a guerra, o estado de emergência, a ocorrência de catástrofes. As graves violações de direitos humanos atingem o direito à vida e à integridade pessoal, seja física ou psíquica. Atualmente seu

Desde os primórdios da construção do direito à verdade, o qual remonta ao direito internacional humanitário, fundamentando as Convenções de Genebra de 1949 e estabelecendo regras para o registro e fornecimento de informações sobre as vítimas de conflitos armados até a atualidade, o direito à verdade tem reafirmado o seu pertencimento e sua interdependência em relação aos outros direitos que

8

Ressalte-se entre estes o “Conjunto de princípios para a proteção e promoção

de direitos humanos por meio do combate à impunidade, ou, os “Princípios Joinet”, de 1997, e o “Conjunto atualizado de princípios para a proteção e promoção dos direitos humanos por meio do combate à impunidade”, de autoria de Diane Orentlicher, de 2005, e o “Estudo sobre o Direito à Verdade”, de 2006, do ACNUDH.

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conceito é projetado aos crimes de guerra, aos crimes contra a humanidade e ao genocídio.

cana Diane Orentlicher, em 2005, e pelo ACNUDH, em 2006, ambos citados na nota 7. Especialmente este último documento, o “Estudo para o Direito à Verdade”, orienta as comissões da verdade a nomearem todas as pessoas responsáveis pela prática de graves violações, tenham atuado como mandantes ou como executores, na condição de autores do fato ou de cúmplices.

O direito internacional dos direitos humanos não estabeleceu, ainda, uma relação exaustiva dos fatos que constituem graves violações de direitos humanos. De todo modo, existe, presentemente, consenso sobre um conjunto de violações que se subsumem à categoria. Integram, assim, a categoria as detenções ilegais e arbitrárias; a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes; as execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais, bem como outros tipos de morte atribuíveis ao Estado, os desaparecimentos forçados, acompanhados ou não de ocultação de cadáveres.

Enfatize-se, por fim, que apesar de a Lei 12.528/2011 estabelecer claramente as competências da CNV, os comissionados tiveram, em sua maioria, dificuldades iniciais em compreendê-las como normas a serem cumpridas. Desconsiderando a interdependência entre o direito à verdade e o direito à justiça, entre o esclarecimento das graves violações e a reivindicação e de sua punição, entre a nomeação dos autores e a crítica à sua impunidade os comissionados recusavam-se a se enquadrar nas consequências da lei a que a CNV estava submetida.

Inicialmente a CNV “deslizou” sobre um conjunto de violações de direitos, em especial, sobre a censura, a intimidação, as ameaças, tão cotidianas em um regime ditatorial. Pretendia investigá-las e relatá-las. Por fim compreendeu que seu mandato objetivava o exame das graves violações e nelas concentrou sua atenção. Além disto a CNV considerou, em seu Relatório Final, que os casos de graves violações, na maior parte das ocorrências analisadas, constituíram crimes de lesa-humanidade. Esta avaliação decorreu da circunstância de que os fatos considerados aconteceram em um contexto sistemático e generalizado de violência contra segmentos da população civil, em razão de motivos políticos e ideológicos.

Salientamos, anteriormente, que sob a pressão de diferentes fatores e mediante a continuada discussão da Lei 12.528/2011 a CNV evoluiu em suas posições, conseguindo produzir um Relatório Final suficiente e atualizado, que certamente contribuirá para o conhecimento e debate sobre a violação de direitos humanos no Brasil. Nesta construção merece destaque especial o capítulo 1, do Volume I, que apresenta um consistente relato sobre os Antecedentes Históricos da Comissão, sobre a experiência internacional das comissões da verdade e sobre o mandato legal dos comissionados.

Relativamente ao dever da Comissão de estabelecer um esclarecimento circunstanciado dos fatos e de revelar sua autoria, a Lei 12.528/2011 fixou-o expressamente em seu texto. Dissipou, assim, as dúvidas sobre a legitimidade de a CNV nomear autores diretos das graves violações a despeito de ser uma comissão sem caráter judicial.

Examinando de forma segura e contemporânea os princípios e conceitos que nortearam a CNV na interpretação do direito à verdade, e das graves violações, o capítulo 1 enriquece o Relatório com o seu rigor analítico e se coloca como referência para o trabalho de comissões estaduais, municipais ou setoriais remanescentes. Note-se, ainda, que a precisa fundamentação teórica exibida no capítulo 1 prossegue em

No que se referia ao poder de nomeação destes autores a Comissão seguiu diretriz proposta pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, mediante documento produzido pela especialista norte-ameri-

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outros capítulos, onde são analisadas em conjunto e de per se as graves violações (Quadro Conceitual das Graves Violações, Detenções Ilegais e Arbitrárias, Tortura, Violência Sexual, Violência de Gênero, Violência contra Crianças e Adolescentes, Execuções e Mortes Decorrentes de Tortura, Desaparecimentos Forçados) ou na fundamentação da algumas recomendações9.

À compreensão de que a CVN deveria fazer uma indicação de responsabilidades, a ser posteriormente considerada pelo Sistema de Justiça, ou seja, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, seguiu-se o entendimento de que no Relatório dever-se-iam nomear autores. Ressalte-se que somente duas Comissões da Verdade, desde a década de 70 do século passado, quando começaram a ser constituídas as Comissões da Verdade, a de El Salvador e a de Serra Leoa, nomearam autores.

Questão 2

A nomeação de autores suscita o inconformismo dos nomeados. Enquanto vivos sentem-se injustiçados por que consideram que foram soldados da Pátria, da sociedade e de uma causa justa, especialmente quando situada em seu contexto temporal e local. Recordando a (ausência de) ética da guerra e a luta da atual civilização norte-americana e europeia contra o terrorismo dos inimigos do Ocidente eles alegam que a sua brutalidade foi necessária, restrita, focada e comedida.

A segunda questão a ser destacada como uma vitória da compreensão das exigências contemporâneas da normativa internacional dos direitos humanos, e da coragem de implementá-la, refere-se ao tratamento dado pelo Relatório à questão da autoria das graves violações e sua correlativa responsabilização. Atendendo a diretrizes contidas na designada Sentença da Guerrilha do Araguaia (caso Gomes Lund e outros vs Brasil) a CNV promoveu uma responsabilização em três níveis dos que participaram da decisão ou execução das graves violações: a político-institucional; a dos responsáveis pelo controle e gestão de estruturas e procedimentos diretamente vinculados à promoção de graves violações; e a responsabilização pela autoria direta das condutas que caracterizavam as graves violações.

Como o Coronel Ustra, a maioria destes inconformados não reconhece a prática de graves violações. Quem a admitiu, o Coronel Malhães, no estilo do General francês Aussaresses, foi assassinado. Não pôde, portanto, dar curso à estratégia de bater no peito indignado: fizemos sim, era indispensável... Além disto, Malhães construiu uma enorme névoa no campo da localização das provas, mediante a apresentação de versões contraditórias de fatos sob investigação, frente a diferentes públicos. Foi assim no caso de Rubens Paiva. Na audiência correspondente, promovida pela CNV, Malhães afirmou explicitamente: Fizemos sim! E implicitamente: agora estamos fazendo vocês, interessados no esclarecimento destas histórias, de idiotas.

Note-se que a correspondente responsabilidade dos integrantes destes níveis, segundo a específica atuação de cada um e conforme a recomendação da CNV, pode ser atribuída aos mencionados autores nos campos do direito civil, administrativo e/ou criminal.

Mas há também o inconformismo de familiares: do filho, da esposa, do irmão. Eles afirmam: nunca tivemos notícia destes fatos. Não é verdade! E até movem ações contra a CNV.

9 Destaque-se na produção da parte teórica do Relatório o trabalho qualificado e

A CNV salienta, entretanto, em seu Relatório, que fundamenta a no-

incansável da assessora/membro do comitê de relatoria Carolina de Campos Melo.

340


meação dos autores realizada, sempre com cautela e parcimônia, em documentos, depoimentos de vítimas e testemunhos, todos exaustivamente discutidos por sua equipe. As condutas que conduziram à nomeação estão mencionadas no Relatório, especialmente no Volume III, que trata caso a caso os mortos e desaparecidos políticos e seus “algozes”. Quando vivos, estes perpetradores, desde que localizados em seus endereços, foram chamados a prestar depoimento. Muitos vieram, outros se evadiram ou internaram em clinicas de saúde para demonstrar a impossibilidade de atender à convocação da CNV.

favoráveis ao aprofundamento de nossa “Justiça de Transição”10. Já enunciamos neste texto o que designamos como graves violações. Estamos, portanto, afirmando que o Relatório apresenta casos bastante representativos do que foram as prisões ilegais e arbitrárias, a tortura, a execução sumária, arbitrária ou extrajudicial e outras mortes imputadas ao Estado, o desaparecimento forçado e a ocultação de cadáveres. Estes exemplos, associados aos casos tratados sob a designação de “Casos Emblemáticos”, às graves violações narradas no capítulo relativo a “A Guerrilha do Araguaia”, bem como às violações expostas nos Textos Temáticos, contidos no Volume II compõem, uma expressiva demonstração empírica da natureza brutal e criminosa da ditadura.

Enfim, entre os diferentes tipos de autores foram indicados 377 agentes do Estado, a maioria militares. Embora não tenha havido a indicação de empresários da área financeira, bancária, industrial, do comércio, das associações de classe da indústria e do comércio, de proprietários de terra das diferentes regiões do país, da mídia, os quais foram mandantes ou cúmplices dos agentes do Estado, foram indicados como autores membros da Polícia Civil, do Instituto Médico Legal e do Instituto de Criminalística, como delegados, policiais, médicos legistas, peritos. Há também a inclusão de alguns diplomatas e civis que atuaram como informantes.

E impossível quantificar, passados tantos anos, o número de pessoas presas e torturadas no país durante a ditadura. A forma ilegal, sem mandado de prisão e sem comunicação à Justiça, a clandestinidade dos procedimentos utilizados, os episódios de prisões massivas, acompanhadas de violência, nem sempre sucedidas de inquéritos e de prisões cautelares, impedem esta contabilidade, tanto como a da inflição de tortura. Sabemos apenas que a tortura foi a regra para os

A indicação de autoria mencionada certamente não foi exaustiva ou suficiente. Mas foi relevante e corajosa, relativamente à construção de um regime democrático, mais informado e transparente.

10 Por “Justiça de Transição” entende-se o processo proposto pelo direito internacional dos direitos humanos, nos países que tiveram guerra civil ou ditadura, para a implementação dos direitos de suas vítimas ao exercício material e simbólico dos di-

Questão 3

reitos de memória, reparação, verdade e justiça. No Brasil duas comissões relacionadas aos direitos à memória e reparação precederam a Comissão da Verdade – CNV:

A terceira questão que vale a pena destacar no Relatório da CNV é a apresentação adequada e consistente que promoveu das evidências de graves violações, seguida por um enquadramento teórico/doutrinário inovador, em relação ao que se adotava no país, gerando efeitos

a Comissão Especial para Mortos e Desparecidos Políticos – CEMDP e a Comissão da Anistia. Novos enquadramentos doutrinários adotados pela CNV modificaram o enquadramento de quem foi e continua vítima destas violações, de quem pode ser considerado seu autor e de quem pode ser imediatamente processado pelas mesmas, com independência da interpretação atualmente vigente sobre a Lei da Anistia.

341


detidos pelos órgãos repressivos ditatoriais.

denciando versões falsas apresentadas pelo Estado ditatorial sobre casos de morte e de tortura.

Estes números, que alcançam muitas centenas, seriam milhares se a eles se somassem os casos de violência no campo e contra as nações indígenas, que não estão rigorosamente registrados. A ausência de registro, neste particular, estende-se às situações de execução e outras mortes, bem como as dos desaparecimentos forçados.

Foram assim desmistificadas versões de confronto, fuga ou resistência, quando de fato tratavam-se de mortes decorrentes de tortura ou execução extrajudicial. Quanto à questão dos desaparecimentos forçados ressalte-se que a CNV, atendendo às diretrizes atuais do direito internacional dos direitos humanos, expandiu o conceito de desaparecido para nele incluir os casos em que há reconhecimento oficial pelo Estado da morte de determinada pessoa, sem haver, contudo, a identificação satisfatória de seus restos mortais.

Apesar de constituir uma relação em aberto, no Quadro geral da CNV Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos o Relatório registra 434 vítimas fatais da ditadura (1964/1985), sendo 191 caracterizadas como mortes e 243 como desaparecimentos forçados. Relativamente à questão das mortes a CNV realizou um exemplar esclarecimento circunstanciado das mesmas, resumidamente exposto no Relatório, com base em pesquisas, depoimentos e perícias. A propósito, destaquem-se as conquistas que a constituição de um núcleo de perícia criminal11, em seu interior, permitiu viabilizar referentemente a mortes e desaparecimentos. Assim, vários casos onde havia controvérsia foram resolvidos pela reconstrução de procedimentos de ação dos agentes perpetradores.

Anteriormente havia o entendimento consolidado no sentido de que constituíam desaparecimento forçado: a) os casos em que houvesse detenção da vítima, sem reconhecimento de sua prisão e paradeiro pelo Estado; b) os casos em que houvesse detenção reconhecida, seguida da negativa do Estado de fornecer informações sobre a vítima. Com a expansão do conceito de desaparecimento forçado, nos casos em que há certidão de óbito e laudo de exame cadavérico, mas os restos mortais não foram encontrados ou identificados perdura o dever estatal de encontrá-los, identificá-los e de fazer a investigação relativamente à data, às circunstâncias, à causa da morte e à ocorrência de tortura. O dever do Estado de reconhecer que houve um desaparecimento subsiste também nas hipóteses em que há uma identificação posterior, ou seja, a superação da situação de desaparecido não elimina o crime anteriormente praticado.

Reexaminando elementos materiais das peças técnicas de cada caso estudado, considerando a causa jurídica da morte constante dos documentos oficiais, revendo fotografias, laudos de local, laboratoriais, balísticos e cadavéricos, relatórios de exumação, quando existentes, levantamentos topográficos, depoimentos de vítimas e testemunhos os peritos puderam restabelecer a verdade sobre fatos ocorridos, evi-

Note-se, por fim, que o conceito expandido do desaparecido político tem significativas repercussões práticas em nosso processo de Justiça de Transição. Em primeiro lugar ele impõe uma revisão ou uma conciliação de perspectivas relativamente aos critérios utilizados, até o momento, pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos

11 Foi o comissionado Cláudio Fonteles quem trouxe o trabalho de perícia para a CNV. Após sua saída a equipe foi ampliada e demandada a atuar em questões cruciais para o Relatório por sua Gerente Executiva Vivien F.S. Ishaq.

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Políticos – CEMDP para a definição do morto e do desaparecido. Recorde-se que estes critérios visavam oferecer aos familiares e à própria sociedade uma reparação simbólica, política e material que o reconhecimento da morte podia assegurar.

A primeira recomendação/interpelação seria no sentido de que as Forças Armadas reconhecessem a sua responsabilidade institucional pela ocorrência das graves violações durante o regime ditatorial; A segunda seria que os órgãos competentes responsabilizassem penal, administrativa e/ou civilmente os autores destas graves violações, deixando de lhes aplicar os dispositivos concessivos de anistia, previstos na lei 6.683/79; A terceira recomendação prevê a adoção de medidas administrativas e judiciais de regresso contra os agentes públicos, autores de atos que geraram o pagamento de pensões ou indenizações por parte do Estado a vítimas ou familiares; A quarta recomendação propõe a proibição de comemorações do Golpe de 64; A quinta e a sexta reivindicam a inclusão de cursos sobre direitos humanos e significados contemporâneos da democracia para o ingresso, avaliação, promoção e currículo dos integrantes das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública.

Depois, ao afirmar que subsiste o dever do Estado de identificar os restos mortais da vítima, o uso do conceito expandido reforça seu status de desaparecido. Deste modo, conforme a normativa vigente no país, os algozes da vítima, se a autoria estiver esclarecida, poderão ser denunciados pelo fato do desparecimento12.

Questão 4 A última questão que queremos salientar são as Recomendações da CNV. Elas são pertinentes a questões sobre as quais a Comissão deveria se pronunciar mas são insuficientes, pois lhes falta a responsabilização de um inafastável coautor das graves violações: os empresários de diferentes tipos e os proprietários de terras, conforme explicitaremos adiante.

Sucessivamente, reproduzindo reclamos de ex-perseguidos, ex-presos políticos e de ativistas dos direitos humanos, o Relatório trata de recomendações em benefício das vítimas e dos próprios ativistas, das vítimas de abuso na área de segurança e no regime penitenciário, no interesse da sociedade com um todo, na perspectiva de mudanças legais e institucionais e recomendações para dar seguimento ao trabalho da CNV. Estas propostas a despeito de não expressares ideias novas, são recomendações justas.

De todo modo, não passou desapercebido à CNV que ela deveria principalizar em suas Recomendações o enquadramento das Forças Armadas, que representaram o braço armado do golpe e da ditadura, em uma postura e perfil compatíveis com as normas do Estado Democrático de Direito. São, portanto, oportunas e consentâneas com a construção de uma sociedade legalista e democrática as seis recomendações/interpelações que o Relatório faz.

Percebe-se, assim, que as mais destacadas recomendações do Relatório referem-se às Forças Armadas e, muito especificamente, à sua responsabilização e não aplicação dos dispositivos concessivos da anistia aos perpetradores de graves violências. Registre-se que esta recomendação está muito bem fundamentada nas normas do direito internacional dos direitos humanos, na sentença da Guerrilha do Araguaia (caso Gomes Lund e outros vs Brasil) e em outros precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos – corte IDH.

12 A propósito do tema veja-se o consistente artigo “Quem é o desparecido para a CNV?”, de Carolina de Campos Melo e Andrea Schettini, mimeo, apresentado em encontro do IDEJUST, em março de 2014.

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Sobre as insuficiências do Relatório

Esta recomendação recorda-nos, por fim, que “A racionalidade da Corte Interamericana é clara: leis de autoanistia constituem ilícito internacional; perpetuam a impunidade; e propiciam uma injustiça continuada, impedindo às vítimas e a seus familiares o acesso à justiça, em direta afronta ao dever do Estado de investigar, processar, julgar e reparar graves violações de direitos humanos ”.

Desde a sua constituição a CNV tratou a participação dos civis no golpe como uma questão marginal. Acompanhando o entendimento dominante na historiografia e no imaginário da sociedade brasileira, o golpe e a ditadura foram vistos como uma resposta autoritária e inconstitucional de nossas Forças Armadas à situação de desordem, criada por diferentes atores da cena política nacional, enquanto reivindicavam “reformas de base” e direitos controversos.

Concluindo ressalte-se que as Recomendações da CNV não tiveram até o momento uma avaliação pública e formal do Poder Executivo, seja por intermédio da Presidente da República ou mediante locução da Secretaria de Direitos Humanos. Deve-se reconhecer, contudo, que o cumprimento de sua Recomendação mais aguardada tem como ator fundamental o Poder Judiciário e muito especialmente o Supremo Tribunal Federal-STF.

Durante o período de sua existência a CNV não constituiu qualquer grupo de trabalho e investigação sobre a participação de civis no golpe. Em seu conjunto ou conforme a percepção expressa pela maioria absoluta de seus membros a CNV jamais compreendeu ou admitiu que o derruimento do Governo João Goulart correspondeu ao ápice de um movimento civil-militar e não a uma construção autônoma e sustentável das Forças Armadas.

Por isso mesmo nos dias 16 e 17 de abril passado, Comissões da Verdade de vários estados brasileiros, a convite da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, reuniram-se, no Rio de Janeiro, para discutir suas atividades na etapa sucessiva à entrega do Relatório Final da CNV13. E entre as deliberações adotadas destaca-se a de “Solicitar uma audiência pública ao Supremo Tribunal Federal para tratar do cumprimento das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da aplicação da Lei de Anistia, da judicialização dos casos de crimes de lesa humanidade e o prosseguimento dos processos já existentes.”

Apagando as nuances da estória real e refazendo-a em seus traços fundamentais, ou seja, desenhando uma justa caricatura do que ocorreu, as Forças Armadas foram um instrumento do poder civil das elites empresariais (industriais, financeiras, midiáticas), senhoriais, isto é, dos proprietários de terras no país, políticas (compreendendo o poder executivo eleito, parlamentares e deputados estaduais) e administrativas, como a burocracia estatal e as polícias estaduais, que se envolveram no golpe e na ditadura. Do ponto de vista dos civis o golpe e a ditadura subsequente foram estruturados pelo IPÊS, IBAD e, a partir da campanha eleitoral de 1962, pela ADEP, os quais constituíram no pré-64 um verdadeiro complexo14.

13 Além das Comissões Estaduais participaram da reunião representantes da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, das Comissões Especial para Mortos e Desaparecidos e da Anistia, do Ministério Público Federal e do Projeto Memórias Reveladas.

14 O IPÊS, Instituto de Pesquisa Econômicas e Sociais foi criado depois da vitoriosa

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A existência e a atuação informada e eficaz deste complexo não é uma suposição de pesquisadores e estudiosos contrários ao golpe e à ditadura, ou apenas o resultado das denúncias dos adversários políticos do regime imposto em 64. Ela está comprovada por vasta do-

cumentação coligida em CPIs e acervos particulares de participantes dos fatos mencionados, em depoimentos biográficos de militares, que protagonizaram aqueles eventos, publicada em livros de memórias ou constantes de repositórios de História Oral, como é, por exemplo, o CPDOC – Fundação Getúlio Vargas. Encontram-se também em pesquisas, teses e artigos acadêmicos. Além dos autores nacionais que estudaram e escreveram sobre o tema há também a pesquisa de um conjunto de “brasilianistas”15.

Campanha da Legalidade em 1961, tendo à frente o Coronel Golbery, que obteve sua reforma no Exército. Mantido inicialmente com contribuições de empresas, sobretudo estrangeiras, foi posteriormente subsidiado por significativos recursos da

O complexo a que nos referimos, particularmente o IPES/IBAD, integrou em rede a maioria dominante dos civis e militares que participaram da campanha contra o governo João Goulart. Ele atraiu o descontentamento de outros setores que não pertenciam originariamente ao complexo. Articulou-se com partidos políticos e com os governadores dos Estados de São Paulo, Minas, Paraná, Rio Grande do Sul, Goiás e Guanabara, os quais vincularam suas forças policiais à ação do movimento golpista.

CIA. Enquanto Golbery cuidava da parte ideológica, Glycon de Paiva dedicava-se a financeira. O IPÊS atuou discretamente em relação a sua identidade mas constituiu-se em todas as regiões do país, adquirindo grande capilaridade. Promoveu palestras, seminários, publicou e divulgou livros e panfletos, patrocinou programas de rádio, radionovelas, filmes, curta-metragens sobre atualidades, que foram exibidos em fábricas, praças, igrejas, das cidades e do interior e salas de cinema. O IPÊS teve enorme influência sobre os militares criando um movimento civil e de opinião pública que os intimava a aderir à conspiração contra o governo de João Goulart e posteriormente a participar do golpe.

Destaque-se que a “inteligência do complexo” contaminou com suas ideias uma larga parcela de militares de alto, médio e baixo escalão das Forças Armadas, trazendo-os para a campanha contra João Goulart. O IPÊS chegou a cooptar oficiais na carreira militar para colocá-los a seu serviço, ou contratar oficiais da reserva para trabalhar pelo golpe no interior das Forças Armadas16.

O IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática, foi criado em maio de 1959, durante o governo de Juscelino Kubitschek, com o apoio da Embaixada dos Estados Unidos, pelo proprietário da empresa de propaganda Incrementadora de Vendas Promotion, Ivan Hasslocher. O IBAD fazia uma propaganda ideológica pública e grosseira contra o comunismo, o governo de João Goulart e as reformas de base. Enfatizava especialmente os riscos que corriam a fé cristã e a propriedade privada, mediante a perseguição religiosa e a reforma agrária em um governo liderado pelas forças políticas então vigentes.

15 Entre os militares que nos legaram memórias citem-se Olympio Mourão Filho,

A ADEP – Ação Democrática Popular, também criada por Hasslocher, passou a exis-

Carlos Luis Guedes, Jayme Portela. Entre brasilianistas que escreveram sobre o pe-

tir na campanha eleitoral de 1962, investindo na eleição de deputados, senadores,

ríodo são muito conhecidos no país Alfred Stepan, Phyllis Parker, John W. F. Dulles.

governadores e legislativos dos 22 estados brasileiros, então existentes, que quises-

Entre pesquisadores, o que focaliza mais acuradamente o papel dos civis no golpe

sem “defender a democracia e combater a corja comunista”. Financiou a campanha

e na ditadura é René Dreifuss. Mas é também muito relevante a contribuição de

de 250 candidatos a deputado federal, 600 a deputado estadual, vários candidatos

Moniz Bandeira, José Stacchini, Gláucio Dillon Soares, Maria Celina D’Araújo, entre

a senador e oito a governador nos estados. Note-se que René Dreifuss designaria

outros.

estes organismos, atuando em conjunto, como um complexo ( 1964: A Conquista do Estado, Vozes, Petrópolis, 1986).

16 Cf. Dreifuss, op. cit.

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Deve ser bem compreendido que o conjunto dos militares que empreenderam o golpe de 64 e constituíram a ditadura não possuía formação e conhecimento suficientes sobre os fundamentos da economia nacional e internacional, nem sabiam como movimentar-se para criar um novo modelo socioeconômico no país. Desconheciam também as relações diplomáticas processadas pelo Itamaraty e essenciais para que o golpe fosse apresentado no exterior como uma reação democrática às agressões em curso e em perspectiva contra a propriedade privada, a liberdade de expressão, de crença, enfim, os direitos humanos. A ditadura que se seguiu ao golpe devia ser explicada pelo Itamaraty como um período de transição para a superação da anarquia, para o estabelecimento da ordem e para a estabilização democrática.

tanques e do pau de arara em seu Relatório Final, apresentando de forma restrita e fragmentada a participação civil no golpe e na ditadura. De todo modo, em seu volume II, dois textos tratam da mencionada participação. O primeiro deles, do ponto de vista de seu conteúdo, é o Texto intitulado “Os civis que colaboraram e participaram da Ditadura”. Especificamente o texto trata dos civis que planejaram e executaram o golpe, dos que financiaram a estrutura de repressão construída pelo Estado autoritário e dos que se beneficiaram materialmente com a ordem autoritária. Quanto ao segundo texto temático, designado como “Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical”, ele trata de violações de direitos praticadas contra os trabalhadores do país, designadamente os urbanos, durante o golpe e a sucessiva ditadura.

Tanto como a campanha que conduziu ao golpe o regime ditatorial foi organizado pelos militantes do complexo IPÊS/IBAD, sob a hegemonia da classe empresarial. Na ditadura os setores fundamentais da administração do Estado foram ocupados por empresários e tecno-empresários que formularam diretrizes políticas e tomaram decisões, tendo na retaguarda, insista-se, o complexo IPÊS/IBAD.

Neste texto a participação dos civis e, particularmente, a dos empresários, na preparação e desfecho do golpe e, em especial, no exercício da ditadura, aparecerá como produto de uma aliança civil-militar, que se fundamenta em evidências empíricas e interpretações históricas. A repressão e superexploração dos trabalhadores, no período, com o fim de paralisá-los, silenciá-los e de se produzir uma concentração mais rápida de capital, materializar-se-á na legislação trabalhista e previdenciária imposta no pós 64.

O poder econômico das elites financeiro-industriais, multinacionais, com sua associação local, assessorado por uma grande massa de ipesianos e ibadianos, tornou-se completamente hegemônico no aparelho do Estado. Apesar disto apresentou-se a Escola Superior de Guerra, onde se entrelaçavam os ensinamentos militares sobre a segurança nacional com as lições do IPÊS, como o espaço onde foram gestadas as ideias iniciais e as diretrizes para o novo governo.

Do ponto de vista da repressão cria-se um novo regime fabril, uma ditadura dentro da ditadura, uma ditadura fabril. E foi no curso da massiva violação de direitos praticada contra os trabalhadores que ocorreram as graves violações: prisões ilegais e arbitrárias, tortura, assassinatos, desaparecimento forçado, ocultação de cadáver.

Os militares puseram, então, a sua testa no frontispício do Estado ditatorial: passaram a ser a sua cara. Assumiram o exercício mais visível e direto da repressão e da violência: passaram a ser os responsáveis pela brutalidade e atrocidades do sistema.

Em todas as ações contra os trabalhadores o que se vê é uma articulação público-privada, uma ação encadeada entre civis e militares e empresários adotando iniciativas ou sendo cúmplices diretos da vio-

Foi seguindo esta interpretação que a CNV priorizou a imagem dos

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lência exercida contra os mesmos. É a partir, portanto, do relato das diversas violações aos direitos e aos corpos dos trabalhadores que se conclui que estes e seu movimento sindical foram o alvo primordial do Golpe de 64, das ações antecedentes dos golpistas e da ditadura a seguir imposta. E que, sem dúvida, os civis foram tão responsáveis pela violência que os trabalhadores sofreram como os militares. A despeito da inclusão no Relatório Final destes dois textos temáticos constata-se que a CNV não compartilhou a interpretação que o golpe e a ditadura foram um empreendimento civil-militar. Sendo assim, o entendimento adotado pelo Relatório empobreceu duas questões por ele tratadas: a caracterização do golpe e da ditadura e o tema da autoria e sua responsabilização. Nos dois casos falta a explicitação de um ator que evidenciaria o caráter elitista, classista, socialmente seletivo do golpe e da ditadura, bem como tipos de violência que não reclamaram armas ou instrumentos de tortura nas próprias mãos. Explicaria também o caráter gradual de nossa transição para a democracia onde perpetradores civis tiveram suas condutas minimizadas, mascaradas e resignificadas. Por fim, explicaria o caráter retardatário de nossa Comissão Nacional da Verdade.

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­­REGISTROS DA REPRESSÃO: OS

vil visando ao esclarecimento de casos de graves violações de direitos humanos e por maior transparência pública4.

ARQUIVOS DA DITADURA MILITAR E A

De fato, a temática dos direitos humanos tem dominado, em anos recentes, parte significativa da pauta de debates políticos no Brasil e no mundo, tanto no que se refere à política interna brasileira – por exemplo, no reconhecimento de direitos a minorias sociais –, como no que se refere à análise de fenômenos internacionais, tais como a guerra entre países, a atuação de grupos terroristas e a prática da chamada “tortura justificada”5.

EXPERIÊNCIA DO MEMÓRIAS Vicente Rodrigues 1 e Inez Stampa 2

Contudo, persiste, no Brasil, a necessidade de reforçar o entendimento coletivo de que o período da ditadura militar, que vai de 1º de abril de 1964 a 15 de março de 1985, foi marcado, na história política e social brasileira, por violações sistemáticas de direitos humanos – inclusive assassinatos, desaparecimentos forçados e pela prática da tortura por motivos políticos–, bem como pela negação de valores democráticos e pelo arbítrio do Estado.

Passados cinquenta anos do Golpe de Estado de 1964, e pouco mais de três décadas do fim do último governo militar brasileiro, o debate público sobre os direitos humanos3, no Brasil, experimenta um momento singular e desafiador, com a crescente pressão da sociedade ci-

De acordo com pesquisa publicada, em março de 2014, pelo Datafolha, para 16% da população brasileira tanto faz se o governo é democrático ou uma ditadura, 14% defendem que em certas circunstâncias

1 Graduado em Direito pela UFRJ, é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ e membro do grupo de pesquisa do CNPq Trabalhadores e Ditadura Civil-Militar no Brasil, da PUC-Rio. Assessor da direção-geral do Arquivo Nacional para o Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas

4 Exemplo disso foi a criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2011, mas

2 Graduada em Ciências Sociais e em Serviço Social pela UERJ, é doutora em

cujas atividades se iniciaram apenas em 2012, e a entrada em vigor da nova Lei de

Serviço Social pela PUC-Rio, onde é professora do Departamento de Serviço Social

Acesso às informações (Lei 12.527, de 18/11/2011/).

com inserção na graduação e na pós-graduação. Atua como coordenadora do Cen-

5 O conceito de “tortura justificada”, embora não seja de produção recente, já

tro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas

tendo sido utilizado pelos colonialistas franceses na segunda metade do século XX,

– Arquivo Nacional.

experimentou uma revalorização após os atentados de 11 de setembro de 2001, nos

3 A expressão “direitos humanos” é aqui compreendida, de forma geral, como um

Estados Unidos. Pesquisa publicada pelo jornal Washington Post, em 16/12/2014,

grupo de direitos historicamente construídos que têm como destinatários todos os

informa que para 59% dos estadunidenses, o uso da tortura após o 11/09 foi justifi-

seres humanos. Isto é, representa posições jurídicas ativas de direitos comuns a to-

cado, ao passo que apenas 31% consideram a pratica condenável e 10% não soube-

das as pessoas, pelo simples fato de serem humanas (COMPARATO, 2010).

ram ou não quiseram responder.

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é melhor uma ditadura do que um regime democrático, e 8% que não souberam responder6. As recentes manifestações de fevereiro de 2015 pintam um quadro ainda mais preocupante, de que parte expressiva da sociedade brasileira é tolerante, ou mesmo simpática, à ditadura militar7.

voltadas para a recuperação e difusão de informações contidas nos arquivos da repressão e da resistência assumem posição de destaque, em meio a tensões e disputas pela memória. Defender que a memória é um bem público não significa deixar de reconhecer que ela mesma é resultado dos contextos e dos agentes que a constroem (Carbonari, 2010). Assim, a memória pode ser apropriada e transformada para cumprir diferentes objetivos e agendas. Sobre este aspecto, cabe lembrar a afirmação de Marx & Engels (1998, p. 41) de que as“As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que tem a força material na sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força intelectual dominante”. Extrapolando a afirmação, é possível afirmar que a memória de uma época também é a memória da classe dominante, daí a importância de disputá-la.

Esse quadro de desconhecimento ou negação dos valores democráticos, associado a não responsabilização de perpetradores de violações de direitos humanos, traz impactos diretos para a atuação dos órgãos de segurança, como é evidenciado pelo fato de que a polícia brasileira mata mais e comete mais abusos hoje do que no período da ditadura, conforme reconhecido pelo próprio governo federal (SDH, 2010, p. 37). Assim, sem memória e sem justiça, reproduzem-se e multiplicam-se práticas, usos e costumes lastreados na impunidade e no esquecimento. Nesse contexto, a adoção de políticas específicas de memória para enfrentar esse passado está no centro da chamada“justiça de transição”, cujo conceito será abordado mais adiante. Por ora, cabe lembrar que a justiça de transição tem por função não somente garantir o entendimento do que ocorreu, mas, também, reforçar a compreensão de que não é possível a um povo (re)conhecer a si próprio sem entender o legado de sua história política e social. Nesse processo, as iniciativas

6 Disponível

em:

Da mesma forma, é importante observar que a memória pode ser construída e reconstruída a partir de fontes diversas, como, por exemplo, os documentos recolhidos aos arquivos brasileiros, os livros de uma determinada biblioteca pública, os registros audiovisuais de um colecionador particular ou, ainda, os relatos orais de pessoas que viveram determinadas situações. Isto é, a multiplicidade de fontes encerra desafios e possibilidades. Tendo esse horizonte em vista, buscaremos discutir, neste artigo, a experiência do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (19641985) – Memórias Reveladas, iniciativa criada pelo governo federal, em 2009, com o objetivo de promover a difusão de informações contidas em conjuntos documentais do período da ditadura. Para tanto, buscaremos caracterizar o Memórias Reveladas, o que inclui analisar criticamente seus desafios, e situá-lo como parte de um quadro mais amplo de iniciativas recentes da justiça de transição no Brasil e na América do Sul.

http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2014/03/

1433561-brasileiros-preferem-democracia-mas-sao-criticos-com-seu-funcionamento.shtml. Acesso em 12 de junho de 2014. 7 Embora o mesmo DataFolha tenha publicado, em pesquisado divulgada em 17/03/2015, que a maior parte dos manifestações foi às ruas contra a “corrupção”, e que apenas 13% dos manifestantes consideravam que a“ditadura militar era melhor ou tão boa quanto a democracia”, é de se ressaltar que os defensores da ditadura militar marcharam praticamente sem oposição entre os manifestantes “anticorrupção”, como se manifestassem uma posição aceitável ou, no mínimo, tolerável.

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O Brasil, assim como outros países sul-americanos, passou pela experiência de um regime ditatorial, com protagonismo das Forças Armadas, na segunda metade do século XX, como a Argentina (1976-1983), o Uruguai (1973-1985) e o Chile (1973-1990). Mas, ao contrário do Brasil, esses países aplicaram, logo após o reestabelecimento de eleições diretas, mecanismos de justiça de transição com o objetivo de averiguar violações de direitos humanos praticadas no período ditatorial, incluindo mecanismos judiciais voltados à punição de torturadores e assassinos.

últimos anos, com a criação, em 2009, do Centro de Referência Memórias Reveladas e, em 2011, com o estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade – CNV e com a promulgação da Lei de Acesso às Informações - LAI10.

Justiça de transição: do que se trata

Em sentido contrário, os primeiros mecanismos brasileiros foram estabelecidos apenas na segunda metade da década de 1990, isto é, quase uma década após a transição política, e sem que ocorresse a responsabilização criminal ou mesmo cível de perpetradores de violações, o que pode ser explicado, pelo menos em parte, a partir das diferentes circunstâncias históricas que condicionaram as transições do Brasil e de outros países da América do Sul8.

No Brasil, a expressão “justiça de transição” vem, em anos recentes11, popularizando-se na imprensa e na academia, o que deriva, em grande parte, da criação da Comissão Nacional da Verdade e de dezenas de outras“comissões da verdade”estaduais, municipais, universitárias etc. De forma a esclarecer o que exatamente queremos dizer quando nos referimos à justiça de transição, cabe apontar, inicialmente, que entendemos esse conceito como aquele referente ao:

Portanto, é possível afirmar que a experiência brasileira de justiça de transição, designado aqui de “justiça de transição à brasileira”, é excepcionalmente tardia9, ainda que o seu ritmo tenha se acelerado nos

Amplo espectro de processos e mecanismos utilizados pela sociedade para que esta chegue a um determinado acordo sobre violações de direi-

8 Na Argentina, por exemplo, as eleições diretas foram restabelecidas em 1983, mesmo ano no qual se encerrou o governo militar e foi instalada a comissão da

10 A Comissão Nacional da Verdade foi estabelecida pela Lei 12.528, de 18 de no-

verdade daquele país, denominada de Comisión Nacional sobre la Desaparición

vembro de 2011, mesma data de promulgação da Lei de Acesso às Informações

de Personas (Conadep). Tal rapidez derivou, em grade parte, da desmoralização do

(Lei 12.527/2011). A LAI é às vezes referida também pelo nome de Lei de Acesso a

regime militar argentino em virtude da derrota na Guerra das Malvinas (1982). Sem

Informações ou, ainda, Lei de Acesso às Informações Públicas.

tempo para organizar a transição, a maior parte dos líderes da ditatura argentina

11 Apenas a título de exemplo, cerca de 90% das matérias que trazem a expressão

terminou na cadeia, incluindo o último presidente da ditadura, Reynaldo Bignone,

“justiça de transição” no portal de jornal de maior circulação nacional, a Folha de

condenado, em 2011, aos 83 anos, à prisão perpétua por crime de lesa humanidade.

São Paulo, datam de 2008 em diante, ano em que começou a ser discutido o PNDH-

9 A experiência internacional no campo da justiça de transição não registra ne-

3 (Plano Nacional de Direitos Humanos nº 3, aprovado em 2009) que, no âmbito

nhum outro caso no qual uma Comissão da Verdade foi estabelecida mais de duas

do Estado, trouxe, pela primeira vez, a previsão de criação da Comissão Nacional da

décadas depois do fim do período de exceção ou conflito.

Verdade.

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não é uma justiça especializada13, ou temática, com competência exclusiva para tratar de casos que envolvam violações maciças de direitos humanos. Antes, trata-se de um conjunto de “mecanismos, abordagens e estratégias” ou de “processos e mecanismos” utilizados em períodos de mudança política para enfrentar um legado histórico de violações de direitos humanos. Nessa direção, Mezarobba (2009) afirma que os “mecanismos, abordagens e estratégias” consistem em iniciativas tais como:

tos humanos ocorridas no passado, de forma a garantir a responsabilização dos culpados, promover a justiça e alcançar a reconciliação. Isso pode incluir tanto mecanismos judiciais como extrajudiciais, com diferentes níveis de participação da comunidade internacional (...) (ONU, 2004, p. 4). Com base nessa definição, consagrada pela Organização das Nações Unidas – ONU, Soares (2010) formulou verbete no Dicionário de Direitos Humanos da Escola Superior do Ministério Público da União, disponível na Internet12, no qual define a justiça de transição como o:

(...) processar criminosos; estabelecer comissões de verdade e outras formas de investigação a respeito do passado; esforços de reconciliação em sociedades fraturadas; desenvolvimento de programas de reparação para aqueles que foram mais afetados pela violência ou abusos; iniciativas de memória e lembrança em torno das vítimas; e a reforma de um amplo espectro de instituições públicas abusivas (como os serviços de segurança, policial ou militar) (p. 37).

(...) conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e não judiciais) e estratégias utilizados para enfrentar o legado de violência em massa do passado, atribuir responsabilidades, exigir a efetividade do direito à memória e à verdade, fortale-cer as instituições com valores democráticos e para garantir a não repetição das atrocidades.

As comissões da verdade, bem como as iniciativas voltadas à abertura de arquivos de polícia política têm vinculação direta com a efetivação do direito à memória e à verdade14, no sentido de garantir, em primei-

Por seu turno, Teitel (2011, p. 135), ao propor uma“genealogia”da justiça de transição, defende que ela pode ser definida como “a concepção de justiça associada a períodos de mudança política, caracterizados por respostas no âmbito jurídico que têm por objetivo enfrentar os crimes cometidos por regimes opressores do passado”. Pouco difere esta definição da proposta por Van Zyl (2011, p. 47), segundo a qual a justiça de transição é“o esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos”.

13 Nesse sentido, a justiça de transição não se assemelha, por exemplo, à Justiça Eleitoral ou à Justiça Militar, que são especializadas em determinados temas. 14 É possível configurar o direito à memória e à verdade como aquele vinculado ao direto de conhecer um passado marcado por violações de direitos humanos. Trata-se, conforme aponta Silva Filho (2009, p. 78-79), de um direito transindividual que

A partir dessas definições, pode-se extrair que a justiça de transição

alcança “os mais diversos grupos da sociedade civil”. Por outro lado, é um direito que representa “as mais diversas formas de reivindicação e concretização, não estando necessariamente preso à legislação estatal”, tendo em vista que “sua formu-

12 Disponível em http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php. Acesso em

lação e reivindicação continuam a existir mesmo que a legislação imponha políticas

02 fev. 2015.

de esquecimento” (Idem, p. 79).

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ro lugar, que a verdade sobre as violações sistemáticas dos direitos humanos venha à tona e, em sequência, que os fatos relacionados a essas violações não sejam esquecidos para que não se repitam – o que pressupõe a adoção de uma série de iniciativas destinadas a garantir a preservação dessa memória.

de a década de 1990, o desenvolvimento da justiça de transição vem se dando, dentro da área dos direitos humanos, sob dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, porque a justiça de transição deixou de ser uma “aspiração do imaginário”, passando a representar “a expressão de obrigações legais vinculantes” a partir do seu progressivo reconhecimento por parte de tribunais nacionais, bem como de sua positivação na ordem internacional. Em segundo lugar, porque tem sido destacada a sua participação no processo democrático em muitos lugares do mundo, em especial na América Latina, na África e na Ásia.

Contudo, não há receita pronta para a adoção de mecanismos de justiça de transição, ou mesmo um pacote fechado de medidas necessárias, pois cada país tem seu próprio modo de lidar com o passado violento. Conforme aponta Hayner (2002, p. 7), a doutrina internacional é unânime ao afirmar que o processo de justiça de transição deve ser adaptado à realidade de cada país. Trata-se, assim, de um processo necessariamente peculiar e nacional, no seio do qual cada governo, cada sociedade, deve encontrar seu próprio caminho para lidar com o legado de violência do passado, bem como para criar mecanismos que garantam a efetividade do direito à memória e à verdade, dentre outros. Nesse mesmo sentido, aponta a autora norte-americana (Ibidem, p. 7) que após décadas de aplicação da justiça de transição em diferentes países do mundo:

Particularidades da justiça de transição “à brasileira” No Brasil, como antecedentes do processo que culminou com a criação do Memórias Reveladas, e que também deu origem à Lei de Acesso às Informações e à Comissão Nacional da Verdade, cite-se que a Lei da Anistia (Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979) determinava, logo em seu artigo 1º, que seria concedida anistia política “a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, tivessem cometido crimes políticos ou conexos com este”, além de crimes eleitorais, e aos que tiveram os seus direitos políticos suspensos, aos servidores públicos e aos dirigentes e representantes sindicais que foram punidos com fundamento em atos institucionais e complementares.

(...) resta agora muito claro que cada situação transicional vai diferir daquelas que vieram antes dela, e que e as necessidades, circunstâncias, cultura política e oportunidades potenciais vão também variar. Cada país que passa a abordar os desafios da justiça de transição o fará de forma única, de acordo com um conjunto de políticas e responsabilidades articuladas ao contexto nacional (...). Ou seja, não é possível falar de um único modelo “correto” para a justiça de transição, e não será jamais adequado impor modelos estrangeiros, por mais bem sucedidos que eles tenham sido alhures.

Apesar de sua importância histórica, a Lei da Anistia não representou a consagração integral das teses defendidas pelo movimento popular pela anistia, que propugnava por uma anistia “ampla, geral e irrestri-

De toda forma, cabe referir Van Zyl (2011, p. 48), ao lembrar que, des-

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ta”. De fato, em seu artigo 2º, o referido diploma legal excluiu da anistia todos aqueles que tivessem tomado a via da ação armada contra o regime ditatorial, ao determinar que fossem excetuados os “condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal”. Por outro lado, conforme aponta Sales (2009, p. 27):

Interessante observar que o referido dispositivo ampliou o leque de destinatários da anistia, principalmente ao deixar de fazer distinção entre aqueles que resistiram dentro da legalidade autoritária do período do regime civil-militar e aqueles que, ao contrário, tomaram o caminho das armas, como os militantes dos diversos grupos clandestinos de oposição ao regime16.

A aprovação da Lei 6.683, no dia 28 de agosto de 1979, que oficializou a anistia brasileira para os crimes praticados durante o período ditatorial, não significou o final das lutas de setores da sociedade civil pela redemocratização. Aprovada sob forte crítica do principal movimento organizado em prol da anistia, os Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs), essa lei nunca conseguiu aplacar as divergências em torno da forma como deveria ser o acerto de contas da sociedade com o seu passado ditatorial. Ao anistiar, ao mesmo tempo, torturadores e torturados, a lei abriu fissuras na sociedade que até hoje não foram fechadas.

Da mesma forma, outro marco no processo de construção da justiça de transição “à brasileira” pode ser situado com a promulgação da Lei nº 9.140, de 04 de dezembro de 1995, por intermédio da qual o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade no desaparecimento forçado e assassinato de opositores políticos no período abrangido entre 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 197917. Nesse sentido, o Estado brasileiro já reconhece, desde 1995, que as pessoas que desapareceram sob a custódia das forças de segurança do regime militar foram, na verdade, assassinadas. Esse reconhecimento possui uma significativa importância moral para os familiares de desaparecidos políticos, no sentido de afirmá-los como vítimas da repressão, e não, conforme apontava o discurso oficial do regime, como

De toda forma, a Constituição Federal de 1988 trouxe inegável avanço para o desenvolvimento da justiça de transição no Brasil. Ainda hoje, o art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)15 vem sendo utilizado como fundamento legal para a maior parte das ações de reparação tomadas pelo governo brasileiro.

16 Como exemplos desses grupos, cite-se a Ação Libertadora Nacional (ALN), a Ação Popular (AP), o Comando de Libertação Nacional (COLINA), a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e a Vanguarda Popular Revolu-

15 Diz o referido dispositivo: “É concedida anistia aos que, no período de 18 de se-

cionária (VPR). Nenhum desses grupos sobreviveu aos anos 1970, desarticulados

tembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em de-

que foram pela forte repressão do Estado ditatorial.

corrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15

17 Posteriormente, o termo final foi alterado pela Lei no 10.536, de 14 de agosto de

de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro

2002, passando a vigorar o art. 1º com a atual redação:

de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou

São reconhecidas como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham

graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos

participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no

de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeita-

período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo,

das as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e

tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas,

militares e observados os respectivos regimes jurídicos”.

sem que delas haja notícias.

353


“gente que simplesmente resolveu mudar de lado e fugir”18. Por outro lado, tem também importância para a sobrevivência financeira das famílias dos desaparecidos políticos, ao viabilizar a obtenção de pensões e indenizações através de processos administrativos ou judiciais.

aos atingidos pelos atos de exceção. Tanto é assim que, a partir de 2007, a Comissão passou a formalmente “pedir desculpas oficiais” pelos erros cometidos pelo Estado consubstanciado no ato declaratório da anistia política.

No que se refere à dimensão da reparação, cabe apontar que o art. 8º do ADCT foi regulamentado pela Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002, por intermédio da qual se estabeleceu o “Regime do anistiado político”(art. 1º, caput), o qual implica no reconhecimento aos seguintes direitos: declaração da condição de anistiado político (art. 1º, I); reparação econômica de caráter indenizatório, em virtude de punição ou ameaça de punição sofrida durante o período do regime civil-militar brasileiro (II); contagem de tempo de serviço do profissional que foi compelido a se afastar de suas atividades (III); conclusão de curso para estudantes que foram obrigados a abandonar os estudos (IV); e reintegração dos servidores públicos civis e dos empregados públicos punidos por motivos políticos (V).

Dessa forma, é possível conceituar que a primeira fase do desenvolvimento da justiça de transição, no Brasil, envolveu, principalmente, ações de reparação. Contudo, essa dimensão não se refere apenas ao aspecto financeiro, mas, também, à reparação moral ou simbólica, por meio do pedido de desculpas oficial do Estado brasileiro, além da recuperação de determinadas posições jurídicas, como a retomada de cursos acadêmicos por parte de alunos que foram perseguidos pelo regime militar, ou a reintegração de servidores públicos exonerados por motivos políticos.

Ainda sobre a dimensão da reparação, conforme apontam Abrão e Torelly (2010, p. 46):

O Memórias Reveladas e o legado documental da ditadura militar

É correta a percepção de que é a anistia brasileira – coerente com a luta histórica dos perseguidos políticos que a sustentaram – que levou a Comissão de Anistia a promover uma “virada hermenêutica” nas leituras usualmente dadas a lei nº 10.559/2002: não se trata da simples reparação econômica, mas gesto de reconhecimento das perseguições

No que se refere diretamente à abertura de arquivos da repressão política como meio de promoção do direito à memória e à verdade, o marco inicial desse processo deu-se por ocasião do V Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre (RS), de 26 a 31 de janeiro de 2005, quando foi debatida a importância dos arquivos no Brasil e na América Latina, bem como sobre sua função estratégica na garantia de direitos humanos fundamentais.

18 Esse discurso continua sendo reproduzido, de forma agressiva, por intermédio de sites e mailing lists de “clubes virtuais” de militares da reserva, tais como o “Terrorismo Nunca Mais” (www.ternuma.com.br), o “A Verdade Sufocada” (www. averdadesufocada.com) e o Clube Virtual dos Militares da Reserva e Reformados

Durante o evento, levantamentos preliminares, realizados pelo Arquivo Nacional, já apontavam que o Brasil era detentor do maior acer-

da Aeronáutica (www.reservaer.com.br). Daí a importância de detalhar as violações dos direitos humanos ocorridas no período de 1964-1985.

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vo documental sul-americano sobre a repressão política na segunda metade do século XX, dados que foram posteriormente confirmados, estimando-se, atualmente, que o acervo é composto por aproximadamente 27 milhões de páginas de documentos textuais, além de documentos em outros formatos, como o acervo audiovisual e iconográfico19.

clusive suas imagens digitais”20. Trata-se, portanto, de uma iniciativa que procura facilitar e popularizar o conhecimento da história recente do Brasil, a exemplo do Archivo Nacional de la Memória da Argentina, que também tem por objetivo geral articular diversas instituições que têm sob sua guarda acervos do período ditatorial. Antes mesmo da criação do Memórias Reveladas, cabe notar, já eram perceptíveis os primeiros movimentos em direção a abertura e difusão dos arquivos produzidos ou acumulados pela ditadura brasileira. Em decorrência do decreto nº 5.584, de 18 de novembro de 2005, já tinham sido recolhidos ao Arquivo Nacional, em sua Coordenação Regional no Distrito Federal, os documentos arquivísticos públicos produzidos e recebidos pelos extintos Conselho de Segurança Nacional - CSN, Comissão Geral de Investigações - CGI e Serviço Nacional de Informações – SNI, o que ampliou em mais de vinte vezes o acervo da Coordenação Regional sobre o regime militar, passando de 2 para 43 fundos documentais.

No referido V Fórum Social Mundial, ficou consignada a promessa governamental de se criar um centro de referência capaz de reunir, de forma sistemática, dados e informações sobre o acervo arquivístico referente ao tema da repressão e resistência política e social no Brasil, entre as décadas de 1960 e 1980, sob a guarda de diversas entidades públicas e privadas de nosso país. A proposta de constituição de um centro com tais características, formulada pela então Secretaria Especial dos Direitos Humanos, atualmente Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, resultou na criação de um Grupo de Trabalho com o objetivo de “elaborar projeto para a implantação de um centro de referência que venha a abrigar informações (...) sobre as violações dos Direitos Humanos durante o período da ditadura militar no Brasil”, conforme Portaria da SEDH nº 21, de 21 de fevereiro de 2005.

O Brasil, país cujas dimensões se assemelham a de um continente, possui uma ampla gama de instituições e entidades custodiadoras de acervos, de diversas naturezas e cronologias. Esses repositórios da cultura nacional (COIMBRA, 2010) têm grande importância para que seja possível repensar a história contemporânea brasileira, incluindo a história do último período ditatorial. Conforme aponta Silva (2008, p. 15):

O Centro de Referência Memórias Reveladas somente seria criado, contudo, em 13 de maio de 2009, tendo como objetivos institucionais “contribuir para o aprimoramento da democracia brasileira, possibilitando o acesso a documentos sobre o período do regime militar, in-

Nas sociedades contemporâneas, o direito à memória tem sido compreendido como parte dos direitos do homem. O direito à informação, com a revolução ocorrida nos arquivos a partir da Segunda Guerra Mundial, transcendeu as fronteiras nacionais - não se trata mais de uma questão restrita à cidadania. Diante da magnitude da questão, o Estado

19 O Relatório de 5 anos do Memórias Reveladas estima em 13 milhões da páginas o acervo sob custódia do Arquivo Nacional, além de outras 14 milhões de páginas sob guarda de arquivos públicos em todo o Brasil (MEMÓRIAS REVELADAS, 2014).

20 Relatório Anual do Centro de Referência Memórias Reveladas, 2009, p. 3.

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Por seu turno, a Argentina criou, em 2003, durante o governo Néstor Kirchner (2003-2007), o Archivo Nacional de la Memória, instituição ligada à Secretaria de Derechos Humanos, e encarregada de reunir, em microfilmes e meios digitais, documentos localizados em diversas instituições do país, públicas e privadas, tanto em nível municipal quanto provincial. Considerados em sua totalidade, esses diferentes acervos compreendem cerca de 2.000.000 (dois milhões) de páginas digitalizadas, além de publicações e registros de imprensa. Estão abertos à consulta, da mesma forma que os arquivos chilenos e uruguaios, isto é, com restrição de acesso a informações que possam ferir a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (SILVA, 2012; ARGENTINA, 2011).

tem o dever de zelar pela preservação e pelo compartilhamento, através da divulgação, dos conjuntos documentais que se encontram sob a sua guarda. E, ainda, procurar aquele patrimônio documental que, apesar de produzido por ele, encontra-se desconhecido da sociedade, perdido. Nesse sentido, a justiça de transição brasileira, em que pese o fato de ter se desenvolvido com excepcional atraso, conta com a vantagem estratégica na perspectiva dos direitos humanos, em relação a outras experiências sul-americanas, em especial as da Argentina, do Chile, e do Uruguai: tem a sua disposição farto material arquivístico. Apenas a título de rápida comparação, o Chile, que experimentou um regime ditatorial particularmente brutal até mesmo para os padrões sul-americanos, tem poucos registros identificados de fontes oficiais sobre o período de exceção (1973-1990). Entretanto, cabe destacar a existência de acervos privados de Organizações Não-Governamentais (ONGs) e arquivos da Igreja Católica, liberados para a consulta, com restrições para os documentos que possam vir a ferir a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. O pequeno acervo de origem pública, atualmente disponível no Archivo Nacional de Chile, foi acumulado, principalmente, a partir dos trabalhos da Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación do Chile, e tem seu acesso regulado pelo Ministério do Interior, privilegiando os tribunais, os advogados e os familiares de vítimas da repressão (CHILE, 1991; SILVA, 2012).

A criação do Centro de Referência Memórias Reveladas promoveu a articulação em rede de diversas entidades custodiadoras de acervos do período ditatorial, em todas as regiões do país. A rede é composta, majoritariamente, por arquivos públicos e centros de documentação de universidades, públicas e privadas. Como exemplo de atuação em rede, cite-se que, no âmbito dos acervos estaduais, o Memórias Reveladas desenvolveu ações em 13 estados, com o objetivo principal de garantir a preservação de acervos dos DOPS – Departamentos de Ordem Política e Social21. As ações desse projeto, realizado entre os anos de 2009 e 2011, foram patrocinadas por intermédio da Lei Rouanet (lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991), permitindo a criação de um banco de dados com informações sobre os acervos documentais da ditadura, disponível pela Internet22.

No Uruguai, da mesma forma, são poucos os acervos públicos sobre o período da repressão (1973-1985), ainda que exista um número significativo de documentos, como no caso chileno, provenientes de ONGs, com acesso regulado pelas mesmas, levando-se em consideração o resguardo da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.

21 Os DOPS atuavam como braços estaduais do SISNI – Sistema Nacional de Informações e Contrainformação, que tinha como cabeça de sistema o SNI – Serviço Nacional de Informações. 22 Contudo, cabe apontar que uma limitação do Banco de Dados Memórias Reveladas refere-se ao baixo índice de digitalização de documentos de polícia políti-

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Um dos principais desafios do Memórias Reveladas foi o estabelecimento de critérios legais para a abertura dos arquivos da ditadura. Anteriormente à aprovação da LAI (Lei 12.527/2011), o acesso a informações públicas de proveniência federal, no Brasil, encontrava-se regulado por dispositivos constantes na Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991 (derrogada), que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados para o país, e na Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005 (ab-rogada), que regulamentava a parte final do disposto no inciso XXXIII do art. 5º da Constituição, em especial no que tange a classificação de documentos públicos no grau de ultrassecretos.

não era de grande utilidade, uma vez que ambas as leis 8.159/1991 e 11.111/2005 limitaram-se a reproduzir23 o texto constitucional, ao determinarem que tanto o direito de acesso a informações, quanto o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, deveriam ser observados, sem estabelecer qualquer indicativo de como isso deveria, na prática, ser feito. O legislador, aliás, lembrou-se de estabelecer, na Lei 8.159/1991, em até 100 (cem) anos o prazo de sigilo para os documentos que versassem sobre a intimidade, esquecendo-se, contudo, de estabelecer quais seriam os critérios para a fixação desse prazo, bem como de que forma se faria a gradação sugerida pela preposição “até”.

Da mesma forma, a legislação anterior trazia a previsão de prorrogação ad aeternum do prazo de sigilo no grau ultrassecreto, embora essa faculdade tenha sido utilizada residualmente, de tal forma que, segundo Silva (2012), a questão do sigilo em razão da segurança da sociedade e do Estado praticamente não se afigurou, após 2005, como um elemento impeditivo para o acesso público à documentação do regime militar, até mesmo pelo decurso de prazo.

Some-se a essa dificuldade o fato de que os conceitos de “intimidade”, “vida privada”, “honra” e “imagem”, apesar de razoavelmente bem delimitados pela doutrina jurídica, não estão descritos em lei ou regulamento, e que a Lei 8.159/1991, ao mesmo tempo em que determinava à administração pública que franqueasse a consulta aos documentos públicos (art. 5º), também ameaçava com a responsabilização “penal, civil e administrativa” de quem violasse o sigilo da informação (art. 6º), e não é preciso muito mais24 para caracterizar o quadro de confusão e insegurança que antecedeu a aprovação da Lei 12.527/2011 (Lei de Acesso a Informações – LAI).

Contudo, quanto ao estabelecimento de critérios que pudessem nortear o acesso aos documentos do período do regime militar que trouxessem informações pessoais, a regulamentação em questão

ca, evidenciando a necessidade de novos investimentos em ações que contemplem

23 O artigo 22 da Lei 8.159/1991 estabelecia que “É assegurado o direito de acesso

esse aspecto, que é fundamental para a ampla difusão das informações contidas

pleno aos documentos públicos” ao passo que o § 1º do art. 23 estabelecia que os

nos acervos do período ditatorial. Até fevereiro de 2014, pouco mais de 30.000 re-

documentos cuja divulgação pusesse em risco a segurança da sociedade e do Esta-

presentantes digitais constavam no Banco de Dados, número modesto levando-se

do, bem como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade,

em consideração o gigantesco acervo documental brasileiro. Em sentido contrário,

da vida privada, da honra e da imagem das pessoas são originariamente sigilosos. A

o Banco de Dados traz informações sobre mais de 300.000 registros documentais

mesma dualidade pode ser encontrada nos artigos 2º e 7º da Lei 11.111/2005.

do período de 1964-1985, ainda que boa parte dos documentos em questão não tenha sido digitalizada. O Banco de Dados pode ser acessado no endereço www.me-

24 De toda forma, é possível citar, ainda, que o Decreto 5584, de 18 de novembro

moriasreveladas.gov.br. Da mesma forma, cabe destacar que disponibilizados para

de 2005, determinava, em seu art. 10, restrição de acesso aos documentos que se

consulta presencial mais de 10 milhões de documentos digitalizados do período.

referissem “à intimidade da vida privada de pessoas”.

357


Esse quadro de insegurança jurídica, como é natural, não contribuiu para o estabelecimento, no Brasil, de critérios universais e homogêneos de acesso nos órgãos detentores de acervos de polícia política. No que se refere especialmente aos órgãos federais, foi somente com a nova LAI que se estabeleceu o acesso integral25 a documentos referentes aos órgãos de repressão política no período de 1964-1985. Antes, esse acesso era restrito aos próprios retratados na documentação, ou, ainda, aos seus familiares, no caso de desaparecidos políticos ou pessoas já falecidas – e somente porque, nessas hipóteses, não era possível configurar qualquer risco de violação ao direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem de pessoas.

Os mais volumosos acervos do periodo de 1964-1985 (Arquivo Nacional) Nome do fundo Nº de páginas Serviço Nacional de Informações 3.499.974 Estado Maior das Forças Armadas 837.493 Divisão de Segurança e Informações do MRE 634.565 Conselho de Segurança Nacional 561.758 Divisão de Segurança e Informações do Ministério da 300.300 Justiça Divisão de Informações da Petrobras 282.178 Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais 196.000 Fonte: Relatório de digitalização de acervos de interesse da CNV, de 27 de maio de 2014. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2014.

Cabe apontar, também, que, apesar dos grandes avanços obtidos com a LAI, permanecem desafios para o acesso à informação produzida ou acumulada pelo Estado brasileiro no período de 1964-1985. De forma geral, podemos resumir esses desafios em relação à questão “desaparecimento” de acervos do Sistema Nacional de Informações e Contrainformação (SISNI), bem como ao fato de que diversos acervos de interesse para a reconstrução da memória histórica, tanto públicos como privados, ainda não passaram por tratamento arquivístico adequado, que permita não somente a conservação, mas também a difusão das informações contidas nesses documentos.

Atualmente, a partir de sugestões do Memórias Reveladas e do Arquivo Nacional, a LAI determina que qualquer pessoa pode ter acesso aos documentos recolhidos aos arquivos públicos, sem que precise sequer declinar as razões pelas quais deseja ter acesso a determinado documento26. No Arquivo Nacional, já é possível acessar, presencialmente, cerca de 12 milhões de documentos digitalizados, e nos quais é possível realizar a busca por palavras e expressões de forma automatizada27. A digitalização foi planejada em conjunto com a Comissão Nacional da Verdade. No quadro abaixo, estão destacados alguns desses fundos, de acordo com o volume:

Conforme indicado por Ishaq e Franco (2008, p. 36), dos 249 órgãos identificados como componentes desse sistema, apenas 15% tiveram seus acervos recolhidos ao Arquivo Nacional. Ainda que inúmeros novos recolhimentos tenham sido registrados após 2008, sobretudo entre os anos de 2011 a 2013, o que elevou o percentual para aproximadamente 20%28, a maior parte dos conjuntos documentais do

25 Alternativamente, o art. 7º da Lei 11.111/2005 permitia o acesso parcial às informações “por meio de certidão ou cópia do documento, que expurgue ou oculte a parte sobre a qual recai o disposto no inciso X do caput do art. 5º da Constituição Federal”. 26 A Lei de Acesso às Informações (LAI) aplica-se a órgãos e entidades dos três poderes, em todos os níveis da Federação. Em alguns estados, como no Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo, a LAI foi regulamenta por decretos estaduais.

28 Em grande parte, os novos recolhimentos são uma resposta à iniciativa do Mi-

27 No jargão arquivístico, foi realizada a “ocerização” (Optical Character Recogni-

nistério da Justiça, levada a efeito por intermédio do Arquivo Nacional, que solicitou

tion - OCR), isto é, o reconhecimento óptico de caracteres.

a todos os órgãos do governo federal que realizassem buscas por documentos do

358


SISNI permanece não localizada, incluindo os acervos do CIE (Centro de Informação do Exército), Cenimar (Centro de Informação da Marinha) e a maior parte do acervo29 do Cisa (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica) que, em tese, poderiam conter informações importantes sobre desaparecimentos forçados e outras violações de direitos humanos. Se levarmos ainda em consideração os conjuntos documentais que, apesar de localizados, ainda não foram objeto de tratamento arquivístico que permitisse a ampla difusão de informações, chegaremos à conclusão de que há um rico patrimônio documental sobre o período da ditadura militar a ser prospectado no Brasil.

arquivístico de acervos que foram localizados, mas que permanecem em geral inacessíveis por falta de tratamento técnico. Ou seja, não obstante a importância de tais iniciativas, faz-se necessário torná-las políticas de Estado para garantir a continuidade e o aprimoramento dessas ações. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade e, em especial, trechos dedicados a casos como o de Rubens Paiva, tornaram evidente a importância de iniciativas como o Memórias Reveladas, uma vez que os arquivos são fundamentais para que se possa promover a recuperação da história de um povo, sobretudo quando essa história se refere a um passado no qual ocorreram graves violações de direitos humanos perpetradas por motivos políticos. No caso em questão, somente foi possível desmontar a versão dos fatos dada pelo general José Antônio Nogueira Belham, implicado na morte e desaparecimento do corpo do ex-deputado Rubens Paiva, a partir da utilização de documentos de arquivo, produzidos pelo próprio Estado repressor e, atualmente, recolhidos ao Arquivo Nacional30.

Nesse sentido, o estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade representou, e talvez ainda represente, uma oportunidade ímpar para a localização de importantes registros da repressão política no Brasil, e será de fato de se lamentar se nenhuma pista sobre o destino da documentação dos centros de inteligências das Forças Armadas for descoberta até o fim das atividades da Comissão, bem como para que seja favorecida a alocação de recursos necessários ao tratamento

Ainda sobre esse aspecto, cabe apontar que a importância dos acervos da repressão, sobretudo aqueles relacionados à polícia política, não reside no fato de conterem “verdades”. Conforme alertou Marx, no volume VI de O Capital, “toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas”(1981, p.939). Nesse sentido, os acervos esclarecem menos a respeito da verdade sobre os “fatos” que os agentes da ditadura pretendiam registrar, e mais sobre a forma como se produzia e se controlava a informação durante o regime autoritário.

período de 1964-1985, em especial da documentação de órgãos do extinto SISNI. Entre os acervos recolhidos, destaca-se o da divisão de informações da Petrobras, tanto pelo grande volume (131.277 microfichas, 426 rolos de microfilmes, e 1,32m de documentos textuais), como por representarem um testemunho da repressão praticada contra a categoria dos trabalhadores petroleiros. 29 Em 2010, foram localizadas, em meio a um lote de documentos de natureza administrativa da Aeronáutica, 189 caixas de documentos do CISA, contendo, aproximadamente, 50 mil documentos referentes ao período de 1964 a 1985, incluindo informações sobre Ernesto Che Guevara, Fidel Castro e Carlos Lamarca. Os documentos foram recolhidos ao Arquivo Nacional e estão acessíveis. Não obstante, tra-

30 O relatório específico do caso Rubens Paiva pode ser encontrado no portal da

ta-se de apenas uma parcela da documentação total do CISA, e não qual é possível

Comissão Nacional da Verdade, disponível em www.cnv.gov.br. No relatório cons-

perceber que foi feita uma seleção (SILVA, 2012).

tam os documentos de arquivo utilizados pela Comissão.

359


Igual realidade se percebe nos trabalhos desenvolvidos no âmbito da Comissão de Anistia, órgão do Ministério da Justiça que promove políticas de reparação, e cujos processos são, normalmente, instruídos por depoimentos de vítimas e de testemunhas de graves violações de direitos humanos e, também, por documentos públicos, que funcionam como elemento de corroboração indireta dos relatos – documentos de polícia política, em regra, não confirmam diretamente a versão da vítima. Mas a partir das omissões e deturpações desses registros, ou do mero descuido do agente da repressão, que registrou “o que não deveria”, ou aquilo que não parecia tão importante à época, é que frequentemente se pode chegar à verdade.

denar a luta armada, ao passo que, na segunda edição, foram escolhidas obras sobre a experiência de prisioneiros da ditadura militar, o movimento de anisitia, e a guerrilha do Araguaia, o que evidencia a pluralidade de temas, bem como o potencial de pesquisa dos acervos da ditadura militar. Não obstante todas essas iniciativas, a importância das mesmas para a construção de uma política nacional de arquivos, cabe apontar que o Centro de Referência não conta com orçamento próprio, o que levanta questões a respeito da continuidade de suas atividades no futuro, isto é, de seu reconhecimento enquanto ação de Estado, bem como representa obstáculo para o aperfeiçoamento e atualização de seus recuros tecnológicos, como bancos de dados digitais. Da mesma forma, a gestão de uma rede de noventa instituições parceiras, no Brasil e no exterior – ainda que o Centro seja administrado e tenha grande parte de suas ações financiadas pelo Arquivo Nacional – requer uma estrutura robusta, ainda mais se forem levadas em consideração as assimetrias regionais típicas da realidade sócio-econômica brasileira, e seus impactos para a gestão de uma rede de cooperação32.

Outras vertentes de atuação do Centro de Referência Memórias Reveladas referem-se à promoção de eventos31 e de concurso monográfico que premia trabalhos que utilizam fontes do período da ditadura militar. O concurso, denominado “Prêmio Memórias Reveladas de Pesquisa” já se encontra em sua terceira edição, e é aberto para participação de qualquer pessoa, independente de titulação acadêmica. Na primeira edição, foram contempladas obras sobre a resistência dos marinheiros, a repressão política em São Paulo, e os “arrependidos” militantes capturados pela ditadura e forçados a, publicamente, con-

32 Fazemos referência à disparidade de recursos técnicos, financeiros e humanos entre instituições como o Arquivo Nacional em relação a arquivos públicos dotados de poucos recursos e com infra-estrutura tecnológica defasada ou praticamente

31 Cite-se, como exemplos, o Seminário Acesso a Informações e Direitos Humanos

inexistente. A título de exemplo, antes da criação do Memórias Reveladas o Arquivo

(2010), a Oficina sobre Fontes para o Estudo do Regime Militar (2010), o 1º Seminá-

Público do Estado do Ceará não possuía conexão com a Internet, ao passo que o

rio Internacional Documentar a Ditadura (2013) e o 3º Seminário Internacional O

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul não possuía quadro próprio de servidores.

Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos – Direito à Memória e à Verdade (2013),

Atualmente, em que pese a permanência de várias carências, ambos os arquivos es-

todos eventos de âmbito nacional ou internacional promovidos pelo Memórias Re-

taduais encontram-se melhor capacitados tecnicamente, e destacam-se, no âmbito

veladas, alguns em parceria com universidades e/ou com instituições parceiras do

da Rede Memórias Reveladas, pelo bom nível de organização de seus acervos sobre

Centro.

o período da ditadura.

360


Considerações finais

o Brasil é detentor do maior conjunto documental de origem pública sobre a repressão política na região sul-americana. Daí a importância do Memórias Reveladas, que busca articular diferentes instituições custodiadoras de acervos, e da nova Lei de Acesso a Informações – LAI (Lei 12.527/2011), que veio disciplinar adequadamente o acesso a essa gigantesca documentação do período do regime militar.

Neste artigo, buscou-se investigar a criação e desenvolvimento do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, identificado como um mecanismo de justiça de transição voltado para a questão dos arquivos do período da ditadura militar.

O Memórias Reveladas surge a partir de pressões da sociedade brasileira, reforçando-se a compreensão de que a memória é um bem público que se encontra na base do processo de construção da identidade social, política e cultural de um país. Nesse sentido, o Centro é o resultado visível de várias iniciativas em prol da consolidação uma política pública de valorização do patrimônio documental brasileiro.

Para tanto, foi necessário, ainda que rapidamente, discutir o próprio conceito de justiça de transição e, principalmente, refletir como ela vem se desenvolvendo no Brasil, bem como identificar as peculiaridades que a conformam.

O contínuo crescimento da rede de instituições parcerias (“Rede Memórias Reveladas”) que, em 2014, atingiu noventa integrantes, indica, por um lado, que o Memórias Reveladas é, atualmente, reconhecido como um importante pólo difusor de informações sobre o período da ditadura militar e, por outro lado, evidenciou a necessidade de ampliar e aperfeiçoar as ações do Centro de Referência.

A justiça de transição foi compreendida como um conjunto de mecanismos, abordagens e estratégias, utilizados em períodos de mudança política, para enfrentar legados históricos de violações de direitos humanos. Ou seja, falar em justiça de transição é falar em um determinado rol de ações que devem ser executadas em períodos de pós-conflito, visando a não repetição de atrocidades.

Assim, ao mesmo tempo em que se deve reconhecer os avanços dos últimos anos, faz-se necessário, também, reconhecer o muito que há a ser feito, suplantando o silêncio e o esquecimento por intermédio de ações concretas e permanentes de promoção do direito à memória e à verdade.

Por outro lado, procurou-se compreender as características próprias que a justiça de transição no Brasil pós-1985 assumiu, isto é, após o fim da ditadura militar brasileira, articulando o Memórias Reveladas a dois outros mecanismos de justiça de transição recentemente criados, a Comissão Nacional da Verdade e a nova Lei de Acesso a Informações, que têm vinculação direta com o chamado direito à memória e à verdade, compreendido como um direito transindividual de saber a verdade sobre violações de direitos humanas ocorridas no passado.

No que se refere ao acesso a informações públicas, coube apontar que

361


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364


UMA TRAJETÓRIA DE BUSCA POR

de 2001 e que tem como objetivo principal a defesa dos interesses dos ex-presos políticos e perseguidos durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985) no Estado de São Paulo.

MEMÓRIA E VERDADE. NÚCLEO DE PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA POLÍTICA

Já a partir do ano anterior à fundação do Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos, no dia 8 de janeiro de 2001, o então governador Mario Covas havia sancionado a Lei Estadual nº 10.726, que autorizou o Estado a efetuar o pagamento de indenização, a título reparatório, às pessoas que haviam sido detidas e torturadas, sob a acusação de terem participado em atividades políticas entre o dia 31 de marco de 1964 e 15 de agosto de 1979, e que haviam ficado sob a guarda e responsabilidade dos órgãos públicos do Estado ou em quaisquer de suas dependências.

DE SÃO PAULO - HISTÓRIA E BALANÇO CRÍTICO MAURICE POLITI 1

A partir da sanção desta Lei, o Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos atuou como um órgão consultivo da Comissão Especial que, constituída por 13 membros, representantes da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, da Secretaria de Segurança Pública, da Procuradoria Geral do Estado, da Assembleia Legislativa, do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana, do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, da Ordem dos Advogados do Brasil e de organizações da sociedade civil, teve como objetivo analisar os pedidos de reparação apresentados pelas vítimas.

Breve Histórico O Núcleo de Preservação da Memória Política (também conhecido como Núcleo Memória) constituiu-se inicialmente, como um grupo de trabalho do Fórum Permanente dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, entidade que foi fundada em outubro

Somente para registro, note-se que entre 2001 e 2008 (quando se encerrou o prazo para a apresentação de requerimentos) foram concedidas reparações econômicas a 1.853 vítimas de prisões políticas pelo Estado de São Paulo2.

1 Maurice Politi estudou na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), onde participou do movimento estudantil contra o regime militar. Sua participação na greve de fome enquanto esteve preso na Penitenciária Regional de Presidente Venceslau em São Paulo levou-o a escrever um diário sobre esse processo que viria a ser mais tarde o livro “Resistência Atrás das Grades”, publicado pelo autor em 2009. Atualmente é presidente do Núcleo Memória.

2 Fonte: “Ex-Presos Políticos: memórias e conquistas” São Paulo, Governo do Es-

365


Este grupo de trabalho foi o principal articulador do Primeiro Encontro Nacional dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Brasil, que aconteceu em outubro de 2007, na cidade de São Paulo, com a presença de mais de 300 pessoas vindas de todas as regiões do país.

Pinacoteca. O prédio foi palco de muitas ocupações. Construído em 1914, pelo escritório do famoso arquiteto Ramos de Azevedo, teve como seu primeiro destino abrigar os armazéns e escritórios da Estrada de Ferro Sorocabana. Foi somente a partir do ano de 1940 que, requisitado pelas autoridades estaduais, foi ocupado pelo Departamento de Ordem Política e Social, órgão que tinha como missão fundamental vigiar os movimentos sociais e políticos durante a era Vargas, assim como o fluxo migratório no Estado de São Paulo.

Neste encontro nacional de vítimas da ditadura, destacou-se a atuação do Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo como um ente catalisador das demandas dos movimentos sociais de todo o país, por Verdade, Reparação Plena e Justiça, principalmente no que tangia aos grupos de anistiados políticos. A partir daquele encontro, o grupo de trabalho que viria a constituir-se no Núcleo de Preservação da Memória Política, como entidade independente a partir do mês de maio de 2009, começou a atuar de forma mais intensa juntamente com alguns integrantes do Fórum do Ex-Presos, na pressão junto ao Governo do Estado de São Paulo, para o atendimento de uma demanda que, desde o ano 2000, era uma constante nas reivindicações por Verdade e Memória em São Paulo: a conversão do edifício onde havia funcionado a sede do DEOPS (Departamento de Ordem Política e Social) num espaço museológico de memória.

O DEOPS/SP permaneceu ativo até o ano de 1983, quando, nos últimos anos da ditadura, o órgão de repressão foi extinto pelo então governador Franco Montoro. O prédio sob a administração da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania, sediou então a Delegacia de Defesa do Consumidor até o ano de 1997, quando foi transferido para a Secretaria de Estado da Cultura, com a intenção de fazer do lugar um espaço voltado à cultura. Durante alguns anos, muitos debates ocorreram nas esferas administrativas da Secretaria sobre que tipo de ocupação poderia haver lá. Pensou-se em uma escola de teatro ou de música, numa biblioteca e até mesmo se idealizou para este espaço um Museu denominado Museu do Imaginário. Para que isso ocorresse, se procedeu a uma reforma completa no edifício que, iniciada em 1999, só foi concluída no ano de 2002. A reforma, que contemplou também obras de estacionamento para a Sala São Paulo (onde se realizam concertos de música clássica) e que fica ao lado do prédio, praticamente acabou com o espaço original das celas onde ficavam os presos políticos, deixando apenas como referência quatro celas, mas que foram devidamente“limpas”e pintadas. Optou-se então por denominar este espaço de “Memorial da Liberdade”.

O Memorial da Resistência – uma conquista Para entender melhor o processo de conversão do espaço carcerário (DEOPS) no Memorial da Resistência e o seu significado para as entidades da sociedade civil em São Paulo, é necessário conhecer a trajetória do prédio que sedia hoje o Memorial da Resistência e a Estação

Nas celas que haviam restado se expuseram fotos e cartazes da época

tado, Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania. Blanc, Claudio, 2014

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da ditadura e ali foi encenada, por um limitado período de tempo, a peça teatral “Lembrar é Resistir”. Na ocasião de sua inauguração em 2002, comentou-se, sem que se saiba hoje se procedente a observação ou não, que autoridades civis e religiosas da época afirmaram: “Neste espaço onde houve muita dor e sofrimento, agora haverá somente paz e música”, referindo-se a Sala São Paulo, que tinha sido recém inaugurada.

museológico do local e potencializando a pressão mais organizada e sistemática, entre os anos 2007 e 2008, exercida pelos integrantes do Fórum dos Ex-Presos de São Paulo e pelo grupo que viria a constituir o Núcleo Memória, encomendou para o local um Plano Museológico. Foi então formada uma equipe interdisciplinar, composta por museólogos, profissionais e artistas plásticos com experiência em artes visuais e design gráfico, pesquisadores e historiadores, que adotou como opção metodológica, a incorporação, de forma voluntária de alguns integrantes do Fórum dos Ex-Presos Políticos e do Núcleo Memória, para que estas pessoas atuassem então como “assessores de conteúdo” do novo Memorial da Resistência.

Como não podia deixar de ocorrer, a reforma empreendida e o seu resultado no espaço de detenção causou inúmeros descontentamentos aos militantes e ex-presos políticos, pois não somente apagou-se a memória do lugar, como também restou pouca informação sobre sua história. Adicionalmente, se verificou que não se havia pensado de forma orgânica e sustentável a realização de atividades educativas e culturais que explicassem o significado do local. Também o nome de “Memorial da Liberdade” não era aceito pelos militantes e ex-presos que diziam: “se houve alguma coisa que neste lugar NÃO houve, foi justamente Liberdade”.

Uma vez apresentado o projeto museológico, que contemplava converter a sede de uma das polícias políticas mais truculentas do Brasil republicano num espaço de memória e cultura, este projeto recebeu o aval e o suporte financeiro do então Secretário de Estado da Cultura, o economista João Sayad e do diretor da Pinacoteca, Marcelo Araujo. Também foi aceita pelo secretário e autorizada pelo governador do Estado a troca do nome de Memorial da Liberdade para Memorial da Resistência, por entender-se que ali havia sido sempre um espaço de repressão e resistência.

No ano de 2004, a administração do prédio foi transferida para a Pinacoteca do Estado de São Paulo para que ali instalasse uma unidade da Pinacoteca denominando o prédio como “Estação Pinacoteca”. Naquele ano e nos três anos seguintes o denominado Memorial da Liberdade permaneceu sob a gestão do Arquivo Público do Estado, por entender-se erroneamente que o espaço tinha relação com os documentos do DEOPS, guardados no Arquivo Público do Estado.

Apenas oito meses depois de iniciada a implementação do Plano, o Memorial da Resistência, primeiro projeto museológico de Memória da Ditadura Militar no Brasil foi finalmente inaugurado em 25 de janeiro de 2009, num período em que se retomava, de forma mais sistemática no país, a questão da Justiça de Transição e o Direito à Verdade, à Memória e à Justiça. Debate social que finalmente teve seu coroamento com a instalação da Comissão Nacional da Verdade em 2012, pela presidenta Dilma Rousseff.

Foi somente a partir do ano de 2007 que se iniciou uma nova história para aquele lugar, quando se transferiu a administração do Memorial da Liberdade para a Pinacoteca do Estado que já ocupava o restante do prédio. O então diretor da Pinacoteca, Marcelo de Mattos Araujo - hoje Secretário de Estado da Cultura - percebendo o potencial

Acompanhando então a trajetória do edifício e das demandas da sociedade civil, principalmente as organizações liga-

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das à defesa dos direitos humanos e à preservação da memória histórica, pode se afirmar, sem sombra de dúvida, que o Memorial da Resistência foi uma efetiva conquista da sociedade. No ano de 2014, com seis anos somente de existência, foi o sexto museu mais visitado da cidade de São Paulo, com uma visitação de aproximadamente 75.000 pessoas/ano das quais aproximadamente 30% foram de visitas educativas, organizadas especificamente para escolas, instituições de ensino e/ou grupos organizados.3

No ano de 2008, como uma contrapartida ao trabalho de assessoria desenvolvido pelo Núcleo Memória de forma voluntária, quando da elaboração do plano museológico, foi assinado um acordo com o Memorial da Resistência, para a realização de atividades educativas no auditório do Memorial. Estas atividades, organizadas sempre em parceria com o grupo de Ação Educativa e Coordenação do Memorial, de responsabilidade do Núcleo Memória foram denominadas “Sábados Resistentes”, que inicialmente previsto para acontecerem uma vez por mês, devido ao sucesso da iniciativa, rapidamente se converteram em 17 a 18 sábados por ano. Durante os sete anos de atividades ininterruptas, os Sábados Resistentes se consolidaram como uma “marca” para quem acompanha a trajetória da luta pela Verdade, Memória e Justiça no Estado de São Paulo, transformando o auditório do Memorial da Resistência num espaço de reflexão e debate a respeito dos mais variados temas, tanto ligados à História política do passado como principalmente ligando estes temas à atualidade. O espaço hoje é um ponto de encontro que acontece aos sábados à tarde, entre os veteranos resistentes do passado e os jovens resistentes da atualidade.

O Núcleo Memória e suas atividades O Núcleo Memória fundado em maio de 2009, como uma entidade independente caracteriza-se no campo jurídico como uma organização de sociedade privada sem fins de lucro, adotando, desde o início de suas atividades, uma visão e missão própria que definem a entidade. Estas consistem basicamente na promoção de políticas públicas nas questões referentes à Memória Política, na defesa dos Direitos Humanos, na defesa dos valores democráticos e de tolerância entre as pessoas e em ações educativas nessas áreas, adotando como lema: “Conhecer o passado para entender o presente e construir o futuro”.

Durante estes anos, se procedeu a variada gama de debates. Seria enfadonho enumerá-los mas salientamos temas como: a questão da impunidade ontem e hoje e a Lei de Anistia; a reflexão e apresentação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade e das diversas outras Comissões da Verdade implementadas no Estado de São Paulo; a questão dos conflitos raciais no Brasil; as diversas tendências políticas durante as manifestações políticas dos jovens tanto no passado como no presente; o que foi a repressão aos japoneses durante a era Vargas; e a repressão aos homossexuais durante a ditadura e hoje. Foram homenageados também centenas de combatentes mortos e desaparecidos políticos e seus familiares; se relembrou principalmente nos anos de “data redonda”, os principais acontecimentos da resis-

Os Sábados Resistentes

3 Dados do documento “Memorial da Resistencia-Paths of construction and solidifying sites of conscience” de autoria de Kátia Felipini Neves e Maurice Politi, a ser publicado pela Comissão de Anistia no livro “Manuela de Lugares de Memória” em idioma inglês e português no ano de 2015

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tência havida contra a ditadura. Todos estes temas de discussão foram expostos por acadêmicos, profissionais das universidades e militantes políticos de ontem e hoje, com a presença de uma média de 120 a 140 pessoas sendo a maioria jovens, em cada uma destas mais de 90 sessões que foram realizadas desde o início do ano de 2008 até o mês de abril de 2015.

simples para que possam ser utilizadas para pesquisas e trabalhos escolares, alguns títulos destas cartilhas são: “A Comissão da Verdade - porque, o que é e o que devemos fazer”; “40 anos da Guerrilha do Araguaia”; “Movimento Revolucionário Tiradentes - A guerrilha operaria”; “Grabois, Pomar e Frate - três revolucionários com 100 anos de idade”; e “O Doutor”- a trajetória da família Lucena”, entre outros títulos.

Além das exposições e debates, os Sábados Resistentes foram também palco para o lançamento de livros sobre temas ligados a resistência e para a realização anual de uma feira de livros, que recebeu a visita de mais de 400 pessoas que compareceram para comprar as publicações, ter seus livros autografados ou simplesmente conhecer os autores dos livros relacionados ao tema. Também outras manifestações culturais foram contempladas, como a projeção de filmes, leituras de peças teatrais e apresentações de grupos musicais e que formaram parte da programação dos Sábados Resistentes.

• A realização por dois anos consecutivos (2010 e 2012) de um ciclo de cinema com a exibição de filmes seguido de debate, denominado“Cinema e Memória”. Este festival com a exibição de um filme por mês, durante quase todo o ano, teve como objetivo o resgate de obras clássicas ligadas a Resistência Política do Brasil e dos países vizinhos assim como o debate do filme com especialistas ao final da projeção. Este evento foi realizado na sala Sergio Cardoso do antigo Cine Bijou, (hoje Teatro Heleny Guariba), um cinema localizado na Praça Roosevelt em São Paulo e que foi, na época da ditadura civil-militar, um local de resistência, onde se projetavam filmes considerados “subversivos”, muitos deles posteriormente censurados.

Outros projetos e atividades Com a consolidação dos Sábados Resistentes, o Núcleo Memória passou a promover outros tipos de projetos, sempre voltados à missão principal da entidade. Na participação destes projetos, o Núcleo Memória sempre buscou que o diálogo entre as gerações estivesse presente como uma forma de transmissão aos mais jovens, das experiências passadas no sentido de incentivar a participação política e o respeito aos Direitos Humanos como forma de atuação das gerações mais jovens.

• A produção do filme-documentário “1964- Um Golpe contra o Brasil” que, realizado nos anos de 2011 e 2012, contou com o apoio de uma emenda parlamentar e a cooperação da TVT (Televisão dos Trabalhadores). O filme que foi dirigido pelo jornalista e ex-presidente do Núcleo Memória Alípio Freire, apresenta mais de uma dezena de entrevistas e importante material de pesquisa e tem por objetivo mostrar e esclarecer as reais origens do Golpe de Estado de 1964. O filme teve mais de uma centena de exibições em escolas, universidades, sindicatos e espaços públicos, sendo escolhido pela Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da cidade para ser parte do kit “Direito à Memória e Verdade” que, com material didático, foi entregue a mais de 1000 escolas da rede municipal.

Entre os vários projetos, destacam-se: • A produção e impressão de cartilhas com distribuição gratuita durante os Sábados Resistentes e durante as palestras realizadas em ambientes escolares. Estas cartilhas que são pequenos cadernos impressos, de caráter não acadêmico e foram escritas em linguagem

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O Núcleo e a Coalizão Internacional de Lugares

Ainda hoje as cópias do filme são entregues de forma gratuita às escolas, bibliotecas, cine clubes e pesquisadores do tema.

de Consciência e Memória

• A realização de um curso denominado “Ditadura: História e Memória” que aconteceu em parceria com o Cursinho da Poli nos anos de 2013 e 2014 em uma de suas unidades (Barra Funda). O curso, que tem como público alvo os alunos que estão se preparando para os vestibulares e visa dar um panorama detalhado, em oito diferentes aulas de 3 horas de duração cada, das origens do golpe civil-militar, de sua ideologia e metodologia, e sua estrutura repressiva consolidada finalmente no surgimento dos DOI_CODI em todo o país e nas diversas formas de resistência ocorrida. Nas suas duas últimas aulas, o curso aborda a repressão no mundo das artes e faz o paralelismo entre a repressão militar dos anos 60/80 com a que ainda ocorre nos dias de hoje, principalmente nas periferias das grandes cidades brasileiras.

Fiel à sua missão de promover a conscientização dos organismos públicos e privados para transformar em memoriais de referência os lugares onde ocorreram violações dos direitos humanos, o Núcleo Memória tornou-se, em 2009, o primeiro membro institucional brasileiro da Coalizão Internacional de Lugares de Consciência e Memória. (na sigla em inglês: ICSC – International Coalition for Sites of Connscience). Esta entidade, que tem sede nos Estados Unidos, tem como membros mais de 185 lugares de memória no mundo, sendo mais de 35 somente na América do Sul e Central e promove a divulgação e o intercâmbio entre os diversos lugares de memória, conectando as lutas do passado com as necessidades presentes para o fortalecimento dos valores democráticos e de respeito aos direitos humanos.4

• A participação no programa “Rodas de Conversa” promovida pela ação educativa do Memorial da Resistência, com palestras, por parte de integrantes do Núcleo Memória, aos grupos de professores e alunos que visitam o Memorial. Estas atividades se inserem no marco destas visitas como um complemento indispensável para que, além de se conhecer o espaço físico e o Museu, tenha-se a oportunidade de conversar com uma pessoa que viveu o período da ditadura dentro dos cárceres na sua condição de resistente.

Como membro da rede latino-americana desta entidade, o Núcleo Memória participa da reunião regional que se organiza, a cada ano em um país diferente, para a troca de experiências e a elaboração de projetos conjuntos. Desta forma trata de dar sua contribuição ao fortalecimento do exercício da Memória Política e da defesa dos princípios democráticos em todos os países do continente. Também promove atividades conjuntas com alguns sítios de consciência, principalmente da Argentina e Chile. Um dos exemplos são os encontros denominados “Diálogos Transandinos” que se organizam anualmente pelo Memorial da Resistência e o Núcleo Memória do Brasil e alguns dos lugares de consciência do Chile, liderados pelo Museu da Memória e dos Direitos Humanos de Santiago.

4 Ver o website http://www.sitesofconscience.org

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A luta pela memorializacão dos espaços

somente pelos integrantes do Núcleo Memória, mas também em parceria com outras importantes entidades tais como: a Secção de São Paulo da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o Ministério Público Federal e a Comissão da Verdade Rubens Paiva da Assembleia Legislativa de SP. Em agosto de 2013, essas gestões tiveram um resultado positivo e, a partir desta data, se obteve do Governo Federal a cessão do prédio para que nele seja instalado o futuro Memorial da Luta pela Justiça.

Um dos problemas que afeta a memória política dos brasileiros é a tendência ao esquecimento, ou mesmo, a afirmação sempre presente de que discutir aspectos relevantes de comportamentos havidos no campo da política “é coisa do passado”. Não há dúvida que a falta de conhecimento detalhado de nossa História, principalmente entre as gerações mais jovens é certamente uma das causas de violações sistemáticas, falta de tolerância e respeito que continuam a ocorrer em relação aos Direitos Humanos, em diversos campos de atividades. Por isso, é essencial que se lute pela efetiva transformação de lugares emblemáticos da Historia em museus e memoriais que possam educar àqueles que tiveram a sorte de nascer depois dos acontecimentos traumáticos que assolaram gerações passadas. Desta maneira, além da reivindicação da conversão do espaço do ex DEOPS de São Paulo para que se tornasse o que hoje é o Memorial da Resistência, o Núcleo Memória teve, desde o início de suas atividades, a preocupação em evidenciar que havia na cidade de São Paulo mais dois espaços simbólicos e representativos do período da ditadura militar.

Para este fim, elaborou-se um projeto museológico e arquitetônico com o objetivo de converter este espaço num Memorial que não somente possa render uma homenagem aos advogados e ex-presos políticos que por lá passaram, mas que também seja um centro de ação educativa para que as gerações futuras possam saber como era “buscar justiça num momento em que no país não havia justiça”. Calcula-se que as obras de reforma e musealização deste espaço estarão concluídas no final do ano de 2016. O segundo espaço significativo na cidade, este sim mais conhecido entre os estudiosos do regime militar, é o do DOI-CODI, instalação de repressão militar que funcionou nos fundos de um terreno do 36ª Distrito Policial da Polícia Civil de São Paulo, na Rua Tutóia, bairro do Paraíso em São Paulo. Neste lugar funcionou durante os anos mais temíveis da ditadura, um centro clandestino de prisões arbitrárias e violências, principalmente no seu início quando se denominou Operação Bandeirantes (OBAN).

O primeiro caso foi o espaço destinado aos julgamentos pela Justiça Militar, de centenas de militantes da resistência contra o regime, julgamentos estes que se levaram a efeito num casarão situado na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, em São Paulo, e que foi sede das Auditorias Militares.

Neste local, verdadeira “sucursal do inferno”5 ocorreram milhares de prisões arbitrárias, sessões de torturas e mais de 50 assassinatos evidenciados no relatório da Comissão Na-

Sabendo que este casarão, de propriedade do Governo Federal, encontrava-se desocupado desde alguns anos, foi traçada uma estratégia que contemplou um intenso esforço, de mais de um ano de pressão, junto aos organismos de patrimônio da União.

5 Detalhes do funcionamento do DOI-CODI no livro “No centro da engrenagem”

Estas gestões tiveram resultado positivo e foram desenvolvidas não

de Mariana Joffily – Rio de Janeiro: Arquivo Nacional; São Paulo: EDUSP 2013

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cional da Verdade dado a conhecer no final do ano de 2014. Com o propósito de que este espaço fosse tombado pelo Governo do

Estado, foi iniciado um processo junto ao CONDEPHAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado) pelo ex-preso político e um dos fundadores do Núcleo Memória, Ivan Seixas, em conjunto com outras entidades da sociedade civil. Depois de mais de três anos de estudos por uma equipe liderada pela Historiadora Deborah Neves, finalmente o Conselho em sessão do dia 27 de janeiro de 2014 resolveu conceder o tombamento do edifício, recomendando a relatora do processo, profa. Silvana Rubino, doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP, em seu informe final ao Governo do Estado, que o local se convertesse também num Lugar de Consciência e Memória.

Balanço Crítico - os problemas que enfrentamos na busca da Verdade, Memória e Justiça. Diante do desafio que significa termos que atuar na busca incansável pela Verdade, Memória e Justiça, muitas vezes em situações onde a correlação de forças nem sempre é favorável para esta causa, existem vários obstáculos a superar, principalmente existentes em função do tempo transcorrido, da falta de maiores conhecimentos históricos e também muitas vezes oriundos do próprio descaso das autoridades. São problemas dessa ordem que o Núcleo Memória tem procurado enfrentar nos seus seis anos de existência. Se quisermos avançar num primeiro balanço critico de nossas atividades vemos que o primeiro obstáculo a enfrentar é relacionado com a falta de união que se deveria buscar em torno a certas categorias de princípios e valores. Aqueles que viveram o período ditatorial e o enfrentaram são

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atores que devem ter a preocupação de transmitir às gerações mais jovens a necessidade de também colocarem-se na vanguarda por estes mesmos valores na atualidade. A busca da Memória, Verdade e Justiça não frutificará se ficar somente como um desafio dos mais velhos. Como bem disse o cineasta chileno Alejandro Jodorowsky:“o passado há de ser usado como um trampolim e não como um sofá”. Por isso, acreditamos ser necessária a busca pela unidade de todas as entidades em todo o Brasil e que tem o mesmo objetivo, considerando que não há esforço que não valha a pena quando se trata desta luta.

a iniciativa da constituição da Comissão Nacional da Verdade e a sua extensão para diversas comissões nas esferas estaduais e de entidades da sociedade civil, é fato que não haverá um seguimento real às recomendações das mesmas, se o compromisso do Governo Federal na efetivação das mesmas, não for feito de forma séria e definitiva. O problema maior reside, neste caso, no fato de que em face de problemas mais gerais de ordem econômica e sociais, haja uma tendência a deixar em segundo plano as recomendações dos relatórios apresentados e não se crie como pedido pela sociedade civil, um órgão com poder para fazer o seu seguimento. Neste caso, o dever das entidades da sociedade civil é criar uma frente única e geral, sendo que o Núcleo Memória se vê como parte integrante dessa frente, para não esmorecer nesta luta.

Neste sentido, vemos como um sucesso o fato de que tenha surgido no país uma organização da juventude, o Levante Popular da Juventude (LJP), que passou a encarnar o que seria a segunda (ou terceira) geração de resistentes e em prol de um país mais justo e equitativo. Através de suas iniciativas, desde o ano de 2011, o Levante tem realizado atividades em todo o país que visam conscientizar a juventude para a falta de Memória e Justiça, desta maneira complementando e seguindo a natural sucessão na luta pela Justiça Social e respeito aos valores democráticos. Os escrachos contra os torturadores realizados, as manifestações de rua, os blocos carnavalescos com este tema e muitas outras ações deste tipo contradizem e estimulam todos aqueles que, por anos, pensaram que este tema só dizia respeito aos familiares de vítimas e desaparecidos políticos ou mesmo aos ex-presos políticos. Com estas ações, a sociedade como um todo, começa a se apossar do tema das violências do passado e passa a relacionar o tema da impunidade presente como uma consequência direta da falta de Justiça. Esta união entre as entidades da sociedade civil deveria ser o elo imprescindível de uma plataforma geral que existiria no país em relação à necessidade de preservação dos denominados Lugares de Memória e Consciência por todo o país.

O terceiro problema a enfrentar na questão da disseminação dos valores pela Memória Política, Verdade e Justiça é a falta de recursos, tanto humanos como financeiros. Não paira, para nós, nenhuma dúvida de que, por mais que a maioria das entidades sejam organizações sem fins de lucro, é imprescindível contar com recursos para a realização das atividades culturais e educativas, sejam elas alvos de projetos específicos ou atividades regulares e contínuas. No Núcleo Memória, embora todos os que nela atuem sejam voluntários, tivemos a coragem de enfrentar este problema de uma maneira direta. O Núcleo Memória, inicialmente mantido com contribuições de seus diretores e de um rol de amigos e companheiros, passou a receber uma ajuda de custo anual por parte do Memorial da Resistência para a realização, por mais de sete anos seguidos, dos Sábados Resistentes. Com esta ajuda de custo, o Núcleo Memória mantém uma estrutura administrativa mínima e cobre os custos da realização das atividades regulares. Ao lado desta simbólica ajuda de custo anual, conseguimos em anos anteriores trabalhar com limitados recursos obtidos para projetos específicos tais como o ciclo“Cinema e Memória”, a realização do documentário

Outro problema a enfrentar é justamente a falta de prioridade que tem o tema nas esferas oficiais. Por mais que louvemos e se aprove

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Conclusões

“1964, um Golpe contra o Brasil” e a impressão de cartilhas educativas. A crise econômica mundial trouxe uma importante redução de contribuições de organismos nacionais e internacionais de defesa dos Direitos Humanos e a inevitável priorização das mesmas para situações de carências mais endêmicas, resultado de conflitos militares e migrações importantes pelo mundo. Da mesma forma, o avanço social que teve o Brasil nos últimos dez anos quando, aos olhos de muitos, a consolidação de valores democráticos trouxe junto uma diminuição dos índices da pobreza no país teve como resultado a seletividade maior dos tradicionais doadores, o que fez com que o problema da carência de recursos se tornasse o nó górdio das entidades e por isso, senão o principal, certamente um dos mais importantes obstáculos ao avanço da mobilização pela Verdade, Justiça e Memória. No Núcleo Memória, temos consciência de que enquanto não houver uma política especifica de aplicação de recursos oficiais na consecução de programas permanentes pela Memória, tal como o importante Projeto Marcas da Memória, mantido pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça já pelo terceiro ano consecutivo ou como acontece em países limítrofes no caso da Argentina com recursos da Secretaria de Direitos Humanos para a mobilização em favor da sinalização de lugares de memória, estaremos sempre sujeitos a atividades limitadas e circunscritas a cidades especificas sem podermos ter um alcance mais geral.

Depois de sete anos de existência e de trabalho contínuo na área da Memória Política, o Núcleo Memória viu sua influência crescer e se solidificar. A entidade em São Paulo é hoje considerada, pela maioria dos que atuam na área, uma das mais sérias, prestigiosas e responsáveis. Mesmo com a falta de recursos perene com a qual luta, o balanço de suas atividades é positivo e nos alenta para seguirmos neste caminho, reforçando nossa missão de promovermos ações educativas e culturais que tenham como principal objetivo o conhecimento maior e mais adequado de um dos períodos mais violentos na História do Brasil e as lições que aprendemos com o mesmo. Esta foi uma das razões que levaram o Conselho de Administração do Núcleo em 2014, em Assembleia Geral regularmente realizada a cada ano, a pedir a qualificação pela Secretaria do Estado da Cultura como uma Organização Social (OS), no campo da Memória Política e Museologia. Sua diretoria, seguindo tal orientação, preparou toda a documentação necessária para este fim e aguarda-se uma decisão a respeito ainda neste ano de 2015. Consideramos que, uma vez que o Núcleo Memória seja qualificado como Organização Social, teremos mais possibilidades de atuação junto às autoridades, tanto estaduais como federais, ao mesmo tempo em que seus integrantes poderão finalmente tornar realidade uma de suas missões que é a de converter-se num “celeiro” para a formação e ajuda a pesquisadores que tenham o tema da Memória Política como um de seus campos de trabalho. Também queremos colocar a serviço de entidades similares nossa experiência ao mesmo tempo em que pensamos fortalecer, com a adesão de mais Memoriais e Museus que venham a ser constituídos no país, a presença do Brasil na Rede Latino Americana da Coalizão Internacional de Lugares de Memória e Consciência.

Isso sem falar na efetiva promoção e adoção da política recomendada e detalhada pelo documento do Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos (IPPDH), entidade mantida pelos países integrantes do MERCOSUL, pela efetiva transformação dos lugares onde ocorreram violações de Direitos Humanos no passado, em museus e memoriais.

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“UN PROYECTO PARA NO OLVIDAR: EL

derechos humanos2. Si bien no era la primera vez, algunos militares que participaron de la represión ilegal hicieron declaraciones públicas en varios medios de comunicación. Una de las más destacadas fue la entrevista al ex marino Alfredo Scilingo3 sobre su participación en los vuelos de la muerte. Estas declaraciones fueron de un gran impacto social ya que todas tuvieron como escenarios programas, de televisión de gran popularidad y difusión en ese momento que amplificaron lo declarado.

PARQUE DE LA MEMORIA-MONUMENTO DEL TERRORISMO DE ESTADO Y SU INSCRIPCÍON EN LOS PROCESOS DE LA MEMORIA”

Desde el regreso a la democracia, el discurso público de las Fuerzas Armadas estuvo caracterizado por la negación del carácter clandestino y sistemático de la represión, en especial el proceso de desaparición de personas. (Salvi, 2012)

CRISTINA GÓMEZ GIUSTO 1

Frente a estas declaraciones, el entonces Jefe del Ejército Martín Balza (1991-1999) hizo una declaración denominada Mensaje al país (1995) también a través de un programa de televisión. En su mensaje, no sin eufemismos y ambigüedades, y con la tranquilidad de la impunidad garantizada, el jefe del ejército, reconocía las

Entre el recuerdo y el olvido En los años noventa en Argentina, las formas de recordar socialmente se vieron transformadas. En vigencia de las denominadas leyes de Punto Final (1986) y Obediencia Debida (1987) y decretados los indultos presidenciales (1989-1990) que garantizaban la impunidad de los responsables de los crímenes cometidos durante el terrorismo de Estado, se produjeron algunos episodios que, pusieron en el centro de la discusión pública, el debate sobre la dictadura y las violaciones a los

2 En Diciembre de 1986 tras una serie de levantamientos militares el presidente Raúl Alfonsín promueve la sanción en el Congreso de la ley 23.492 de Punto Final, que fijó un plazo para la extinción de la acción penal contra toda persona incluyendo aquellas que hubieran cometido delitos vinculados a la instauración de formas violentas de acción política. En Junio de 1987, nuevas tensiones con las fuerzas armadas llevaron al gobierno a la sanción de la ley 23.521 de Obediencia Debida, que exculpó a los oficiales de bajo rango de las Fuerzas Armadas bajo la presunción sin admisión de prueba en contrario que obraron en estado de coerción bajo subordinación a la autoridad.

1 Especialista em Educação e Direitos Humanos, a autora é coordenadora de

3 El ex capitán de corbeta Alfredo Scilingo primero habló en una extensa entre-

Educação no Parque de la Memoria em Buenos Aires – um monumento em home-

vista con el periodista Horacio Vertbisky que luego escribió el libro El vuelo y luego

nagem às vítimas do terrorismo de Estado.

se presentó con su testimonio en el programa de televisión Hora Clave.

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torturas y asesinatos a cargo de los agentes estatales. Como señalan algunas investigaciones (Salvi: 2012) claramente, si bien Balza, buscaba recuperar el pacto de silencio entre los integrantes de las fuerzas de seguridad frenando las declaraciones públicas de más militares, también buscaba credibilidad y aceptación por parte de la opinión pública de las instituciones militares desprestigiadas. Para lograr este objetivo debía reconocer, de cierta manera, que las fuerzas armadas actuaron por fuera de la ley.

parlamentaria y, pese que hubo algunas voces que lo cuestionaron, la mayoría, consideró importante aprobar el proyecto. En el debate de la iniciativa, el legislador de la Ciudad de Buenos Aires, Eduardo Jozami,4 señalaba, en relación a las voces que lo cuestionaban: “Nosotros les contestamos que tenemos urgencia en mantener vivo ese pasado, que tenemos necesidad de mantener la memoria de lo ocurrido en la Argentina, porque no creemos que sea posible fundar sólidamente la democracia sino es sobre la base de la verdad de lo ocurrido, si no es sobre la base de la justicia…”

Por su parte, desde los años ochenta, los organismos de derechos humanos y los sobrevivientes se ocuparon de construir un discurso que disputara la falsificación, la negación de los hechos, el olvido y la reconciliación como manera de resolver las cuentas con el pasado. Lo hicieron sosteniendo la lucha por la búsqueda de verdad y la justicia como terreno en el que se disputan los sentidos del pasado.

También señaló que: “…que este Monumento no es el final de un ciclo, sino tal vez el comienzo. El comienzo de un ciclo que tiene que llevarnos a conocer cada vez mejor lo ocurrido en la Argentina, a reivindicar cada vez más a cada uno de los desaparecidos, con su historia, con sus ideales. Pero también señor presidente tiene que llevarnos finalmente a establecer justicia, esa justicia que hoy tenemos vedada.”

En el año 1996 se cumplieron 20 años del golpe militar, con una amplia participación de distintas organizaciones políticas, sociales, sindicales y de personas que concurrieron por fuera de las organizaciones. Los organismos de derechos humanos se plantearon la necesidad de recuperar y preservar la memoria como un tema primordial. La categoría memoria se incorporó a las tradicionales consignas “verdad y justicia” y surgen organismos que toman este tema como una reivindicación propia y demandan al Estado acciones concretas.

La amplia aceptación de este proyecto fue entendida por los actores que lo impulsaron como una especie de deuda moral de la sociedad y del Estado con las víctimas y sus familiares. Aparece la idea de la reparación simbólica con la creación de un espacio público que de cuenta de la existencia e identidad de los desaparecidos y que permita la elaboración del duelo con la presencia de signos y símbolo culturales en los diferentes dispositivos que expresan las ausencias. Asimismo la intencionalidad pedagógica del proyecto ligada a la trasmisión del legado intergeneracional del“Nunca Más”5, fue otra de las ideas clave

En diciembre de 1997 varios organismos de derechos humanos presentaron en la legislatura de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires la iniciativa de realizar un parque con un monumento que tuviera los nombres de los desaparecidos y esculturas conmemorativas. Previamente habían acordado algunas premisas: que el lugar estuviese junto al Río de la Plata, que debían estar los nombres de los desaparecidos y asesinados y que debía considerarse a las víctimas de la violencia desde Estado anteriores al golpe de Estado de 1976. El proyecto contó con un amplio apoyo político de los sectores con representación

4 Eduardo Jozami fue preso político durante toda la dictadura militar y es un activo militante de derechos humanos. Actualmente es director del Centro Cultural de la Memoria Haroldo Conti, que funciona en lo que fuera el centro clandestino de detención de la ex-ESMA (Escuela de Mecánica de la Armada). 5 El informe Nunca Más, fue elaborado a partir de la investigación que realizó la Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) sobre el fun-

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que lograron el amplio consenso señalado. (Guglielmucci, 2013)

la víctima inocente.

El Parque de la Memoria, como otros emprendimientos, estuvo ligado también a mantener activo el reclamo de justicia pese a las políticas de impunidad y olvido promovidas desde el Estado.

Este resurgimiento de la memoria, fue amplificado por la intensa participación de los medios de comunicación en la difusión de las acciones mencionadas. Se reeditaron con audio las audiencias del juicio a las juntas que en su momento no habían sido televisadas por temor a las reacciones y consecuencias. En 1998 se transmitió un documental sobre la ESMA (Escuela de Mecánica de la Armada) un centro clandestino de detención más grande en la ciudad de Buenos Aires, en un horario central por la televisión en la que un nieto recuperado relata en primera persona su experiencia. (Feld, 2002)

La memoria social sobre el terrorismo de Estado se construyó también entonces como resistencia ante las diferentes formas de clausura del pasado, silencio, olvido e impunidad. En este sentido serán los organismos de derechos humanos los que asumieron el rol preponderante de promotores del recuerdo, desplegando variadas formas de acción que se acentuaron en los años noventa.

Ese mismo año, los organismos amparados por el derecho a verdad, promovieron causas judiciales para que a través de la justicia se produzca información en torno al destino de las víctimas y promovieron juicios en países como España, Francia e Italia. Al mismo tiempo el gobierno nacional sancionó un decreto, en el que se ordenaba la demolición de la ESMA6 sitio emblemático de la represión y material probatorio de los crímenes.

Junto a diversos sectores sociales e instituciones, multiplicaron la movilización y el debate a través de actos de homenaje, artículos periodísticos, estudios académicos y manifestaciones artísticas que conmemoraron la experiencia de los años setenta. Los ejes centrales fueron la reivindicación de la movilización política y social y el homenaje a las víctimas. También aparece en escena la agrupación HIJOS (hijos e hijas por la identidad y la justicia contra el olvido), integrada por hijos de desaparecidos, asesinados, presos políticos, exiliados, que renovó el reclamo de justicia a través de nuevas prácticas y un discurso que incorporaba la dimensión política de las víctimas mediante la reivindicación de la militancia y la filiación ideológica. Durante mucho tiempo bajo la lógica de una sociedad silenciada por el terror la legitimidad de la víctima se asentaba en su despolitización, en la idea de

Fue en este momento sin duda que se inauguró una nueva etapa en las formas de recordar y se generó una bisagra en relación a la necesidad de preservar los lugares que habían sido centros clandestinos de

6 Mediante el Decreto presidencial 8/98, se disponía el traslado de las instalaciones de la ESMA. El predio, previa demolición de los edificios, se destinaría a un espacio verde de uso público donde se emplazaría un “símbolo de la unión nacional”. Esta medida motivó el repudio de los organismos de Derechos Humanos y de amplios sectores de la sociedad civil. Asimismo, un grupo de familiares presentaron

cionamiento del terrorismo de estado y la práctica de la desaparición forzada de

ante la justicia una acción de amparo. Ese mismo año la Justicia Federal hizo lugar

personas durante la dictadura argentina de 1976-1983. Ese informe ha sido central,

al reclamo y reafirmó que en virtud de sus obligaciones internacionales, el Estado

no sólo para la realización del Juicio a las Juntas militares en 1985, sino también para

es responsable de otorgar una respuesta sobre el destino de los desaparecidos a la

la promoción de una cultura de los derechos humanos en el país.

sociedad y a los familiares de las víctimas.

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detención, como sitios de memoria. (Da Silva Catela, 2014)

do y mantener vigente el reclamo de justicia, sino también recuperar las historias de vida y de militancia. Se propuso visibilizar la identidad política de las víctimas lo que supuso, poner en discusión en el seno de los organismos involucrados, diferentes visiones sobre el pasado.

Es importante recordar que desde finales de los años ochenta y hasta mediados de los años noventa, puede decirse, existía un rechazo generalizado por parte de los organismos de derechos humanos a propuestas de carácter museístico o memorialísticas dirigidas a preservar y promover la memoria pública sobre los desaparecidos7. Para algunos la única forma de evocar a los desaparecidos era a través de renovar y fortalecer la movilización para obtener verdad y justicia. Recién cuando la memoria pudo ser percibida como una herramienta de lucha contra la impunidad y que la memoria sobre el terrorismo de Estado debía formar parte de la memoria colectiva de los argentinos, los organismos, comenzaron a participar activamente de las iniciativas conmemorativas. Esto no fue un acuerdo generalizado de todos los organismos ni tuvo un sentido unívoco.

Creado con la sanción de la ley 46/1998 de la Legislatura de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, el proyecto se constituyó en una de las primeras iniciativas públicas de carácter simbólico y una experiencia inédita de participación entre agentes estatales y del sector no gubernamental para poner en práctica una política pública de memoria. En la Ciudad de Buenos Aires hubo determinados actores que concibieron a la preservación y promoción de la memoria sobre el terrorismo de Estado como una cuestión de interés público que debía ser pensada en iniciativas conmemorativas institucionales en el espacio público. (Gugliermucci, 2013)

En el Proyecto del Parque de la Memoria-Monumento a las Víctimas del Terrorismo de Estado8, los organismos buscaron institucionalizar y oficializar el recuerdo a través de la participación del Estado. Este proyecto formó parte de las acciones locales que, contrarrestaban las iniciativas del ejecutivo nacional. En tal sentido, el proyecto del Parque de la Memoria, fue una acción que buscaba no solo resistir al olvi-

El Parque de la Memoria es una clara acción sobre el espacio público. El sitio elegido, la franja costera adyacente a la Ciudad Universitaria, está atravesado por diversas relaciones con el pasado. La memoria urbana y topográfica como ausencia o presencia provocan un juego de relaciones simbólicas y alegóricas en un paisaje transformado por la arquitectura y el arte. En este lugar se creó un paisaje de rememoración y de contacto con las cosas más permanentes de la existencia: la tierra, el agua, el horizonte, la ciudad, las cosas que no pueden ser removidas y que son materiales, la arquitectura del monumento, el parque y el paisaje se han fusionado en una misma visión. (Varas, 2010) El arte como práctica social se suma a la tarea de reconstruir las memorias, restablecer desde la esfera de lo simbólico la trama cultural rasgada, desarticulada por la represión y el terror de Estado. Emprender esta tarea significa una reflexión profunda sobre el arte y los límites de la representación. En tal sentido el proyecto de esculturas convocó e interpeló a los artistas a revisar e inscribirse en los dominios propios de su práctica, es decir a privilegiar el pensamiento refle-

7 La Asociación Madres de Plaza de Mayo liderada por Hebe de Bonafini, la Asociación de Ex Detenidos Desaparecidos AEDD e HIJOS Capital mantuvieron varios años manifestaron su desacuerdo con varias iniciativas incluido el caso en estudio, ya que mantenían una actitud confrontativa con el Estado ante la falta de justicia.

8 Se proyectaron también la realización de memoriales en las ciudades de La Plata, Rosario y se crearon distintas comisiones por la memoria en diferentes ciudades del país, como la Comisión Provincial por la Memoria de la provincia de Buenos Aires, creada por resolución legislativa de la Cámara de Diputados de la provincia de Buenos Aires Nº 2117 en 1999.

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xivo por sobre el virtuosismo técnico como valor en sí mismo9. La idea de que el arte forme parte de un proyecto de memoria, asume que el arte es una herramienta que permite discutir, reflexionar, repensar e incluso generar conocimiento sobre estos temas. (Batitti, 2010)

cerrar heridas ni suplantar la verdad y la justicia, sino constituirse en un lugar de recuerdo, homenaje, testimonio y reflexión. La discusión sobre el“sitio de memoria”fue una discusión fundacional del proyecto que se consideró superada al tomar en cuenta el paisaje a orillas del Río de la Plata que alude directamente al significado y al uso del lugar. Esta ubicación permite insertar el recuerdo en el río que le dio origen y sentido a la ciudad y a los habitantes.

El Parque de la Memoria - Monumento a las Víctimas del Terrorismo de Estado alberga cuatro estelas con los nombres de los desaparecidos y asesinados (monumento), un conjunto de obras escultóricas y la sala Presentes Ahora y Siempre (PAyS) donde se desarrolla un proyecto de arte contemporáneo, parte de las actividades del programa educativo y se encuentra el Centro de Documentación con la Base de Datos de la nómina del monumento, de acceso público.

El Parque de la Memoria, no es un museo ni un lugar donde sucedieron los hechos. No está condicionado a un relato museográfico, ni tampoco está determinado a dar testimonios de hechos ocurridos en el lugar. Es un proyecto de memoria donde hay una confluencia entre el arte, la arquitectura monumental, el diseño urbano a partir de una política de memoria sobre el pasado reciente en la que intervienen variados actores.

El Parque de la Memoria se levanta frente al Río de la Plata porque a sus aguas fueron arrojadas muchas de las víctimas del accionar represivo estatal como parte de la metodología siniestra para borrar la huella de los crímenes10. Este lugar en su concepción, no pretendió

De proyecto a realidad.

9 El concurso internacional de esculturas fue un desafío enorme que se evidenció en los 665 bocetos presentados y en los procesos de construcción simbólica que estos plantearon lo que devela la dificultad de abordar desde el lenguaje metafórico

La creación de memoriales, museos, archivos, centros culturales y sitios de memoria en Argentina ha generado debates y discusiones entre diversos actores en relación a cómo debían ser esos espacios, quiénes debían gestionarlos, cómo debían ser sus relatos y fundamentalmente quiénes deben llevar adelante tales proyectos11.

del arte la temática del terrorismo de Estado. Varios de los proyectos no lograron superar los estereotipos y descansaron sobre la confianza de una relación literal entre bocetos y escritura de los proyectos. Sin embargo un número importante de artistas logró enfrentar las contradicciones que planteaba la propuesta y elaboraron proyectos que entrecruzan eficazmente poética y política y política, ética y estética. (Batitti, 2010) 10 “El monumento no se hace para decretar la muerte de nadie ni para congelar la

dio inicio a la construcción del Monumento en el año 2000, por Mabel Gutiérrez

lucha por la justicia, que es y será, siempre, la lucha por el castigo a los responsables

integrante de la Comisión Pro Monumento y presidenta de Familiares de Detenidos

del genocidio. Se hace para que todos sepan que nuestro pasado hiere el presente.

Desaparecidos por Razones Políticas.

Que le quitaron la inocencia a nuestro río.Y que la única posibilidad de redimirlo, de incorporarlo a nuestra memoria verdadera, será penetrarlo y escribirle los seres que se devoró, que le hicieron devorar… ”. Extracto del documento leído en el acto que

11 Progresivamente se realizaron encuentros a través de organizaciones guber-

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En el caso del Parque de la Memoria, con la votación de la Ley 46 en 1998 que aprueba su creación, se conformó la Comisión Pro Monumento integrada por miembros de algunos organismos de derechos humanos, un representante de la Universidad de Buenos Aires, legisladores y funcionarios del Gobierno de la Ciudad12. Esta Comisión se constituyó en el espacio central de debate y discusión para llevar adelante el proyecto inaugurándose un proceso novedoso de gestión plural entre organismos gubernamentales y no gubernamentales.

En este esquema, los organismos de derechos humanos tuvieron la misión de pautar el contenido político de memoria en las distintas líneas de trabajo y en todas las instancias de decisión jugaron un rol fundamental. (Guglielmucci, 2013) La tarea más ardua y más compleja para éstos, fue la confección de la nómina del Monumento que debía incluir a todos los detenidos desaparecidos y asesinados de todo el país durante los años setenta y principios de los ochenta hasta la recuperación de la democracia14. La confección de la nómina implicó discutir y acordar muchas cuestiones: ¿Quién y cómo iba a recabar la información obrante en diferentes fuentes y archivos? ¿Qué datos además de los nombres y la fecha de desaparición eran relevantes? ¿Cómo debía organizarse/ordenarse la información? Po primera vez los nombres estarían exhibidos en forma permanente en el espacio público. Esto implicó la compleja tarea de pensar y revisar al interior de los organismos, la categoría de víctima y de terrorismo de Estado para poder enmarcar la tarea de investigación.

La Comisión Pro Monumento tuvo tres tareas concretas: llevar adelante construcción del Monumento y del Parque en base al proyecto ganador del “Concurso de Ideas13”, elaborar la nómina del Monumento (Art. 4º y 5º Ley 46/98) con los desaparecidos de todo el país y organizar un concurso internacional de esculturas.

namentales y no gubernamentales que se fueron enfocando en el trabajo sobre los predios que funcionaron como centros clandestinos de detención con la finalidad de refuncionalizarlos como sitios de memoria. Memoria Abierta fue uno de los ac-

Los nombres que figuran en el Monumento y en la Base de Datos de consulta pública son los casos de detenidos-desaparecidos y ase-

tores clave en generar espacios de reflexión y de producción para pensar los sitios de memoria. 12 Artículo 3º (Ley 46/98). Créase la Comisión pro-Monumento a las Víctimas del Terrorismo de Estado. La misma estará integrada por: el Vicepresidente 1º de la Le-

14 Desde el inicio se trabajó con el informe de la CONADEP, información de casos

gislatura, a) once diputados, respetando la proporción en que los bloques están

de reparaciones, información de los archivos del Equipo Argentino de Antropología

representados en la Legislatura, b) cuatro funcionarios, designados por el Jefe de

Forense y con la información Secretaría de Derechos Humanos de la Nación. No

Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires, representando a las áreas que están in-

obstante, para la elaboración de este listado también se consultaron otras fuentes

volucradas en el cumplimiento de la presente Ley, c) un representante designado

libros, revistas, y los propios archivos de los organismos.

por la Universidad de Buenos Aires (UBA), y d) un representante por cada uno de

Simultáneamente, para que la nómina fuese lo más inclusiva posible, la comisión

los Organismos de Derechos Humanos, detallados en el Anexo II, el cual es parte

publicó una solicitada en los diarios que explicaba los propósitos del proyecto y se

integrante de la presente Ley.

brindaba la posibilidad de acercar información relevante a las oficinas de la comi-

13 El primer premio del“Concurso de Ideas”llevado adelante por un acuerdo entre

sión. La solicitada llevaba la firma de la Comisión pro Monumento a las Víctimas

la Universidad de Buenos y el Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires fue, el trabajo

del Terrorismo de Estado, como así también la de cada uno de los órganos que la

proyectado por el equipo de arquitectos Baudizzone-Lestard-Varas y Becker-Ferrari.

integraban.

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sinados víctimas del accionar represivo perpetuado desde el Estado abarcando el período 1969-1983. Con esta definición se buscó por un lado resaltar la desaparición como práctica preeminente y que el terrorismo de Estado como práctica represiva contra un grupo determinado, comienza antes del golpe de Estado de 1976.

dad, a través pedidos de justicia y homenajes generaron movimiento de los límites mencionados. La contundencia, masividad y funcionamiento del aparato represivo estatal sugiere que la categoría de víctima no es la aplicación automática de una fórmula o criterio meramente jurídico/administrativo sino que tal reconocimiento es parte de un proceso social más amplio en el cual diferentes categorías sociales se va construyendo y redefiniendo con la intervención de diferentes actores sociales que dan cuenta de ese pasado en disputa16.

Se inicia con aquellas personas que son asesinadas en el “Cordobazo” (Córdoba) el “Rozariazo” (Santa Fe-Rosario) y los restantes levantamientos populares que en el año 1969 se sucedieron en distintas provincias del país. Estas movilizaciones tuvieron como protagonistas a los trabajadores y a los estudiantes organizados. El período que abarca el Monumento, si bien incluye gobiernos constitucionales, está atravesado por la sucesiva implantación y vigencia del estado de sitio (noviembre de 1974- 1983), que facilitó variadas acciones represivas y que supuso la suspensión de las garantías constitucionales en todo el territorio nacional hasta el retorno a la democracia, el 10 de diciembre de 198315.

La tarea de la Comisión Pro Monumento, finalizó con la inauguración del Monumento a las Víctimas del Terrorismos de Estado en el año 2007. Estuvo presente en acto el presidente Néstor Kichner y autoridades de la Ciudad de Buenos Aires17. Tiempo después en reemplazo de la Comisión, se creó por ley, el Consejo de Gestión que mantiene esta experiencia inédita de co-gestión entre organismos gubernamentales y organizaciones de la sociedad civil.

Algunas investigaciones (Vecchioli, 2013) sugieren que pensar la categoría de víctima del terrorismo de Estado, es poner en juego límites que se fueron modificando a lo largo del tiempo. Acciones impulsadas desde el Estado como por ejemplo, las leyes de reparación que brindan un marco interpretativo, como así también acciones de la socie-

16 Por decisión de la Comisión Pro Monumento, también se incluyó los nombres de aquellos ciudadanos argentinos asesinados o desaparecidos en otros países y extranjeros asesinados o desaparecidos en Argentina que fueron víctimas de la represión en el marco del denominado “Plan Cóndor”, coordinación represiva entre distintas dictaduras militares del Cono Sur. Para el caso de los hijos de desapareci-

15 El monumento incluye aquellas personas que fueron asesinados durante he-

dos nacidos en cautiverio o secuestrados con sus padres y, a los cuales se les sustrajo

chos paradigmáticos de represión estatal, como: la Masacre de Trelew donde fue-

su identidad, se decidió que sus nombres no figuraran en el Monumento, por que su

ron fusilados 16 presos políticos en la Base Aérea Alminate Zar, 1972; la Masacre

búsqueda, aún continúa. Los niños y niñas que sí están comprendidos en la nómina

de Ezeiza, el 1973, durante el acto por el regreso del General Perón del exilio; y da

son aquellos que han fallecido por el accionar represivo.

cuenta del accionar represivo de las organizaciones parapoliciales como la Alianza Anticomunista Argentina. También comprende las víctimas en el marco del Operativo Independencia (1975-1977), a cargo del ejército en la provincia de Tucumán en

17 La Base de Datos de acceso público fue inaugurada en diciembre del 2013 y para

el noreste del país.

el año 2015 está previsto el acceso a la misma a través de la página web. Todos los años Monumento y Base se actualizan incorporando casos a la nómina.

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Si por un lado el debate y la discusión sobre la creación y destino de los sitios de memoria ha sido abundante durante muchos años, las discusiones en torno a lo que implica el momento posterior donde se ponen en movimiento las memorias que se encuentran disponibles en el espacio público, no ha sido tan amplia. (Jelín, 2014; Da Silva Catela, 2014)

contiene el imperativo ético de recuperar las identidades avasalladas, silenciadas, por un régimen de exterminio que vuelve a los crímenes cometidos, imprescriptibles, imperdonables. De esta manera el Parque y su Monumento afirman una memoria pública que transmite esta condena a las nuevas generaciones. En el sentido común post-dictatorial, que puede sintetizarse en el gesto del “Nunca Más”, hubo coincidencia en que una de las tareas principales de la educación sería mantener viva la memoria sobre la historia reciente y sentar las bases de la condena de cualquier otro intento dictatorial y genocida.

Una vez construidos o refuncionalizados los espacios, los sentidos, ideas y sentimientos que dieron origen a los proyectos, se enfrentan a múltiples y cotidianas interpelaciones por el devenir de los usos previstos y no previstos del espacio y a la cristalización de sentidos que puede producir la institucionalización/oficialización de la memoria. Algunas reflexiones y experiencias desde el proyecto educativo tal vez, puedan aportar al debate.

Puede decirse de la experiencia recogida por el equipo de educación que ese objetivo fue logrado. Casi todos los grupos de escolares, traen ideas e información de lo que fue la dictadura, la tortura y la desaparición. En la mayoría de los casos el conocimiento que tienen del tema les permite hacer una reflexión que expresa una condena moral, absolutamente necesaria, acerca de las violaciones a los derechos humanos e identifican como responsables a las fuerzas armadas. Pocos grupos conocen la dimensión de los crímenes como ofensa contra la humanidad y pueden ubicar las desapariciones como violaciones a los derechos humanos. Ocasionalmente pueden compartir y expresar ideas sobre el contexto histórico en que tuvo lugar el terrorismo de Estado. Casi todos los grupos relacionan las desapariciones y asesinatos con la última dictadura únicamente y no conectan el proceso histórico anterior (1969-1976) con la represión ilegal posterior. Algunas investigaciones (Pereyra, 2006) muestran en consonancia que, definitivamente, la escuela, es eficaz en lograr una contundente condena moral a la dictadura, pero muy ineficaz en proveer explicaciones, marcos de referencia y sobre todo en generar la pregunta sobre cómo fue posible el horror.

Una vez emplazado el Monumento a las Víctimas del Terrorismo de Estado y las esculturas conmemorativas las preguntas por los sentidos, símbolos y significados que producen los dispositivos instalados en el espacio público son variadas y a traviesan a las diferentes áreas de trabajo. Sin embargo el equipo de educación por su tarea se ve involucrado e interpelado particularmente por su intercambio permanente con el muy diverso público visitante que se acerca convocado por diferentes intereses y demandas. En esta etapa es central repensar la intención pedagógica del sitio en el sentido de dotar de significado la conmemoración para el público y las generaciones futuras (Jelín, 2014). En gran medida depende del proyecto educativo a cargo de la transmisión que los dispositivos instalados con la intención de resistir el olvido y dar sentido a ese pasado traumático, no se vuelvan objetos indiferentes e invisibles. El tipo de memoria que impulsó la creación del Parque de la Memoria,

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La memoria únicamente como un mandato moral nos acerca a un uso literal de la misma, lo que supone recuperar una parte del pasado que, en su literalidad, es inconducente más allá del propio suceso. Este modo de acercarse al pasado, no garantiza el legado intergeneracional del Nunca Más. No ayuda a proveer explicaciones más complejas que permitan que el caso singular individual o de un grupo pueda ser leído de manera ejemplar, como una categoría más general, que permita comprender acciones nuevas con agentes diferentes18.

políticas culturales más amplias19. Estas políticas dan cuenta de cómo las sociedades se responsabilizan y elaboran su pasado que se materializa, en variados espacios. Un sitio de memoria es un espacio donde se visualizan los usos del pasado, del olvido y las disputas sobre la interpretación del pasado que se actualizan en el presente. Es una escena pedagógica que invita a encontrarse con una lucha social y política por las memorias en la que intervienen diversos actores sociales. Debe transmitir cierta incomodidad, desconcierto, ofrecer respuestas pero, más que nada, despertar interrogantes. Los sitios de memoria ponen en juego ciertas decisiones que están vinculadas al sentido de cumplir la función de conservar la memoria y, a la vez, tener una función pedagógica proponiendo una narración sobre el pasado que dialogue con las condiciones del presente. Esa narración, no puede ser unívoca ni objetiva, no puede pensarse como un paquete cerrado que alguien viene a buscar. Debe estar atenta a sentidos alternativos socialmente circulantes, a otras memorias subterráneas, subalternas, que no son usualmente incluidas en los relatos. Hay que considerar, en el proceso de transmisión, las propias condiciones de recepción del presente, nuevos imaginarios generacionales, regionales y de clase que disputan el sentido sobre lo que

La educación, en tanto transmisión de un legado entre una generación y otra, sigue teniendo el desafío de contribuir a generar la trama que colabora para que la memoria no sea tradición, repetición y se cristalice en relatos e imágenes fijas que ya no interrogan el presente y el futuro de la vida en común. La transmisión no tiene una temporalidad simple, una única dirección que va desde el pasado hacia el futuro, o que se produce necesariamente desde los individuos adultos a los individuos jóvenes. Transmitir es encontrarse con el otro; escuchar, dar la palabra a los estudiantes, es una parte fundamental de la tarea educativa. Permite crear un espacio democrático de diálogo que contribuye eficazmente a la tarea de la transmisión. ¿Cómo intervenir entonces, desde un sitio de memoria para que, a treinta años del Nunca Más, no sea únicamente la condena moral, aquello que se logra transmitir? ¿Cómo revisar las construcciones de sentido común para dar paso a interpretaciones socio-históricas más complejas?

19 En los últimos años, las políticas públicas de memoria estuvieron en el centro de la atención. Se creó una política estatal de la memoria de las víctimas y sus familiares acompañada por el movimiento de los derechos humanos. En lo que respecta a la educación se sancionó la Ley Nacional de Educación 26.206 que en su art. 92 inc. b) que incorpora la memoria colectiva sobre el terrorismo de Estado y la reflexi-

Las estrategias de incorporación, circulación y enseñanza del pasado reciente, se articulan con las políticas de memoria que se inscriben en

ón sobre las causas/condiciones históricas en que tuvo lugar, como contenido escolar. Se creó el Programa Nacional Educación y Memoria bajo la órbita del Ministerio de Educación de la Nación que se ocupa de capacitaciones en todo el país, produce materiales didácticos en diversos formatos y ha desarrollado una red de educadores

18 Tzvetan Todorov en su obra Los abusos de la memoria (1995), conceptualiza la

con representantes de casi todas las provincias.

distinción entre memoria literal y memoria ejemplar.

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reciben los jóvenes. El encuentro debe ser único, anclado en el respeto y las necesidades del grupo. Es por eso que, el proyecto educativo del Parque de la Memoria, está concebido como un espacio de diálogo, conflicto, resistencias, contradicciones y también de transformación social donde las prácticas y la cultura profesional del equipo responde a un modelo dialógico y narrativo.

de arte) suponen pluralidad de visiones y apropiaciones diversas del pasado. Son trabajos de memoria que posibilitan transitar y elaborar propuestas pedagógicas entre un uso literal y ejemplar de la memoria. Permiten entrelazar eficazmente memoria e historia como modos de aproximación al pasado.

Los objetos, la narrativa del espacio y la del público visitante son los protagonistas de la experiencia. Inscribirse en esta tradición implica incorporar el punto de vista de quién se acerca a la propuesta, es preguntarse acerca de cómo y para quién trabaja un espacio de memoria. Habilitar las voces y miradas de los visitantes incluso de los casuales o de aquellos que se acercan a cuestionar la propuesta es la única forma de conectar la narrativa del espacio con el público y propiciar la reflexión colectiva. De esta manera las instituciones pasan de ser transmisoras de conocimiento, a participar junto a otros en la construcción de conocimiento. Los dispositivos disponibles para propiciar este encuentro, poseen una intencionalidad representativa y evocativa. Las esculturas emplazadas son variados modos de expresar la realidad de las ausencias, el borramiento de las identidades, la existencia de centros clandestinos de detención entre otros temas o problemas. El potencial expresivo de las mismas contribuye a la transmisión pedagógica a través de la activación de los sentidos y la mirada crítica. No son tanto los objetos los que importan sino los recuerdos, los sentimientos que suscitan, las ideas que provocan y cómo éstas, son contadas. El arte en este proyecto no fue pensado, ni es utilizado, para desplazar o trivializar la historia, los testimonios, los archivos apelando a simbología e iconografía unidireccionalmente interpretada. Se trata de recurrir a herramientas estéticas que permitan interrogar el pasado para ir construyendo respuestas (Kaufmann, 2008). Los dispositivos instalados en el Parque de la Memoria (monumento, base de datos, esculturas y muestras

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“EL OLVIDO ESTÁ LLENO DE MEMORIA:

sido utilizados como centros secretos de secuestro, tortura y exterminio durante la dictadura.

LA EXPERIENCIA DE LOS SITIOS DE

Han pasado 24 años desde el inicio de la transición a la democracia y sabemos que no era ni es posible una reconciliación política y social mientras no se logre justicia y verdad en materia de las violaciones a los derechos humanos perpetradas por agentes del Estado y civiles. En este sentido, si bien el Estado se encargó de crear comisiones de verdad y reparación que han avanzado en estas materias, proponiendo medidas concretas tendientes a la reparación de las víctimas, creemos que sigue siendo fundamental avanzar en otros ejes complementarios. Nos referimos a la creación de políticas públicas de Memoria2, entendiendo que serán ellas las que “activen la participación social, para pasar de una memoria de los hechos a una verdad moral que constituya parte de la memoria colectiva” (Beristain, 2011) y con ello trabajar por el “Nunca más”, consigna que acompaña las luchas por verdad y justicia respecto de los crímenes cometidos por las dictaduras en América Latina.

MEMORIA EN CHILE” MARGARITA ROMERO MÉNDEZ 1 – KAREN CEA 1. Presentación

Asimismo, cabe destacar que en Chile ha sido la sociedad civil, representada en las agrupaciones de familiares, ex prisioneros y organismos de derechos humanos, un actor fundamental para avanzar en los procesos de justicia y memoria vinculados a la dictadura. Son ellos quienes han llevando adelante variadas iniciativas, interpelando constantemente al Estado para que avance y se haga parte de estos procesos de memoria y democratización. Estas demandas se inician incluso en dictadura: interposición de recursos de amparo y protec-

Luego del fin de la dictadura cívico militar que asoló Chile durante 17 años y que impuso como política de Estado el secuestro, la desaparición, la ejecución y expulsión de miles de ciudadanos, se inicia en nuestro país un proceso de transición a la democracia caracterizada, en sus comienzos, por el inicio de políticas sobre verdad y reparación para algunas de las víctimas de la dictadura. Todo ello, con miras a lo que sería el objetivo fundamental del gobierno transicional de Patricio Aylwin: la reconciliación política (Lira, 2011). Paralelamente, distintas organizaciones de la sociedad civil iniciaron una serie de procesos de marcación, denuncia y recuperación de sitios que habían

2 Entendemos las políticas públicas: “como una serie de normas, decisiones y prácticas implementadas por diversos actores sociales (cuyos recursos, pertenencias 1 Margarita Romero é presidente da Associação para a memória de Direitos Hu-

institucionales e intereses varían) tendientes a resolver problemáticas políticamente

manos e Colônia Dignidade. Cea é coordenador Karen Equipe educação, extensão

definidas como de carácter social” (Instituto de Políticas Públicas en derechos Hu-

e redes Corporação Parque pela Paz Villa Grimaldi.

manos MERCOSUR, 2012).

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ción, las huelgas de hambre de los prisioneros políticos, denuncias y testimonios de prisioneros antes tribunales, encadenamientos de familiares, marchas y la marcación de lugares donde se había ejercido la represión son algunas de las iniciativas que buscaban develar la verdad negada sistemáticamente por los represores. Verdad que se mantenía bajo un velo de olvido, olvido necesario para mantener un cierto equilibrio transicional representado en la frase que define la línea política del primer gobierno democrático dirigido por Patricio Aylwin: “justicia en la medida de lo posible”.

de amnistía y la reparación para las víctimas, entre otras. Finalmente, y a partir de lo presentado, en este artículo nos interesa abordar el importante rol de la sociedad civil frente a las políticas de borramiento y ocultación que tuvo la dictadura en Chile, al iniciar tempranamente procesos de denuncia, marcación y recuperación de aquellos lugares que se vinculaban directamente con las violaciones masivas y sistemáticas perpetradas por la dictadura. Los casos de Villa Grimaldi -ex centro secreto de secuestro, tortura y exterminio llamado Cuartel Terranova por los represores- y Colonia Dignidad –enclave alemán utilizado por la dictadura como lugar de secuestro, tortura y desaparición además de ser un lugar de entrenamiento y formación de perpetradores- son espacios representativos de los procesos de memorialización3 iniciados por la sociedad civil. Veremos también, como paulatinamente, y de diversas maneras, el Estado se ha ido sumando más como un facilitador que como un generador de políticas de memoria que contribuyan a la democratización y reconstrucción histórica de las sociedades postdictatoriales o que viven procesos de transición.

A 41 años del golpe de Estado en Chile y en el marco del Seminario “Políticas de Memoria en América del Sur y en África del Sur: balances, perspectivas y diálogos”, realizado en Río de Janeiro en noviembre de 2014, cabe preguntarse ¿qué significado o qué sentido tiene la frase “justicia en la medida de lo posible” 24 años después? Creemos que esta expresión delineó las formas de enfrentar las exigencias de los sectores civiles por verdad y justicia durante todo el periodo de la transición chilena. Más aun, dicha frase evidencia que ese “en la medida de lo posible” sería más bien en la medida que permitieran aquellos que habían estado en el poder por 17 años, civiles y militares, como dice Carlos Beristain “Las transiciones se extienden en el tiempo, no tanto porque ese sea un camino ​necesario para transitar hacia un cambio político efectivo, sino porque los poderes ​políticos, económicos o militares dominantes han seguido poniendo límites a la agenda de la transición” (Beristain, 2011). Por otra parte, entender los procesos de memoria en Chile, vinculados a las violaciones a los derechos humanos perpetradas por la dictadura, significa entender que dichos procesos se dan bajo contextos políticos y sociales con dos actores centrales: el Estado y sus ciudadanos. Así, mientras los nuevos gobiernos transan y mantienen casi intacto el modelo político, económico y social impuesto por la dictadura, los organismos de derechos humanos y las agrupaciones de familiares y ex prisioneros serán quienes reclaman al Estado el fin de la impunidad, la derogación de la ley

3 Entendido como el proceso de crear memoriales públicos (FLACSO, 2007).

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2. De centros de tortura a sitios de memoria y

maldi, pues es el momento en que se organizan distintos sectores de la sociedad civil bajo el lema “Recuperemos Villa Grimaldi”. Más adelante se conformará la “Asamblea permanente por los derechos humanos de Peñalolén y La Reina” integrada por agrupaciones vecinales, familiares, compañeros y amigos de D.D. y E.P., ex prisioneros políticos, organizaciones de derechos humanos, comunidades cristianas de base, religiosos y religiosas, dirigentes políticos, entre otros. Esta asamblea impulsará una serie de iniciativas públicas destinadas a marcar y visibilizar el sitio y su historia. Paralelamente, comienzan a interpelar al Estado transicional que había asumido en marzo de 1990.

conciencia: el caso del Parque por la Paz Villa Grimaldi y Colonia Dignidad

2.1. Villa Grimaldi

Finalmente, luego de años de lucha y de diferentes tipos de acciones se logra la expropiación, recuperación y apertura de Villa Grimaldi el 10 de diciembre de 1994. Ese año presenciamos el ingreso masivo de todos los actores involucrados en su recuperación. Tres años después, el 22 de marzo de 1997, se inauguraba el Parque por la Paz Villa Grimaldi, Parque “que fue concebido con la doble intención de erigirse como símbolo de la defensa y lucha por el respeto de los Derechos Humanos y lugar de conmemoración y recogimiento espiritual” (Archivo Villa Grimaldi). En la actualidad el Parque por la Paz es gestionado por la Corporación Parque por la Paz Villa Grimaldi, entidad privada sin fines de lucro constituida en 1996 principalmente por ex prisioneros, familiares, compañeros y amigos de detenidos desaparecidos y ejecutados políticos. Desde sus inicios, la Corporación “ha establecido como objetivos centrales la recuperación y transmisión de la memoria histórica del lugar y la promoción de una educación en derechos humanos a través del vínculo entre pasado y presente” (Planificación estratégica Villa Grimaldi).

En Villa Grimaldi, actual Parque por la Paz Villa Grimaldi, funcionó desde 1973 a 1978 uno de los centros clandestinos de secuestro, tortura y exterminio de la dictadura cívico militar chilena. Se estima que por este centro pasaron 4.500 prisioneros y prisioneras, de ellos 236 fueron hechos desaparecer o fueron ejecutados. Luego del cese de las actividades represivas, hay poco conocimiento de las funciones específicas a las que fue destinado el lugar, al parecer habría funcionado como oficinas de “bienestar” para los militares en ejercicio en los organismos represivos, continuando en manos del Ejército4. En ese periodo la Villa Grimaldi sufrió un abandono, sistemático y deliberado, hasta que a fines de la década de los ochenta se inicia un proceso de destrucción significativo: en 1987 el último director de la Central Nacional de Informaciones (CNI), aparato represor que sucede a la DINA, vende el terreno a una empresa privada que inicia la demolición de las instalaciones con el objetivo de construir en el predio un conjunto habitacional. Y con ello, borrar las huellas y ocultar el lugar y los delitos allí cometidos.

Es importante entender que este proceso de recuperación de Villa Grimaldi se da en un contexto transicional que como ya se ha dicho estuvo marcado por la frase “justicia en la medida de lo posible”, de ahí que a pesar de decretar la creación de una comisión de verdad

Este hecho será central en la historia de recuperación de Villa Gri-

4 Ver www.villagrimaldi.cl

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para investigar los casos de detenidos desaparecidos y ejecutados políticos y establecer medidas de reparación, paralelamente se mantenía al ex dictador como Comandante en Jefe del Ejército durante ocho años hasta que renuncia en marzo de 1998 para asumir como senador vitalicio, cambiando “su base militar de poder por la entrada oficial a la clase política del país” (Wilde, 2007). Hasta ese momento los avances se daban en materia de verdad y reparación, pero no de justicia (Lira 2011). Se habían realizado pocos juicios a los perpetradores y eran los movimientos de derechos humanos quienes mantenían vivas las consignas de justicia, verdad y no a la impunidad bajo las que se habían iniciado los procesos de recuperación. Será la detención de Augusto Pinochet en Londres en 1998 lo que quiebre ese clima de impunidad y dará origen al“momento clave para romper algunas continuidades del pasado en las nuevas y frágiles democracias” (Beristain, 2011). Por otra parte, la detención de Pinochet, trajo a la esfera pública, a través de los medios de comunicación, no solo los testimonios de quienes fueron víctimas del terrorismo de Estado, sino que también visibilizó las demandas impulsadas por años desde las agrupaciones de familiares y los organismos de derechos humanos, generando una reactivación de los casos judiciales y poniendo en discusión el tema de la tortura, hasta ahora no incluido en las políticas de reparación.

plo que el muro que contiene los nombres de las y los detenidos-desaparecidos y ejecutados políticos de la Villa, construido en 1998, no incluyera la militancia política de cada uno/a. Un rasgo que contrasta, por ejemplo, con la referencia a éstas en el memorial de “Londres 38 Espacio de memorias”, erigido diez años después (14 octubre 2008) y en un contexto en el que se habían extendido significativamente los límites de los debates sociales sobre las memorias y, además, comenzaban a darse pasos hacia una justicia efectiva a través del procesamiento de muchos represores” (Salomone y Cea, 2014). Estas diferencias entre los contextos de la recuperación de aquellos lugares que fueron utilizados como centros clandestinos de detención durante la dictadura y los proyectos iniciados por los grupos de la sociedad civil que impulsan estas recuperaciones, caracterizará a los procesos de memoralización en Chile. En estos procesos, se conjugan preguntas tales como:“cuántas memorias se ponen en juego y se presentan en el campo de lucha por definir cuáles son los lugares que deben “ser recuperados”; quiénes deben formar parte de esos espacios y finalmente, qué relatos deben incorporarse” (da Silva, 2009). Asimismo, las múltiples respuestas a estas preguntas van configurando los procesos de recuperación de los ex centros de detención y tortura, procesos que como afirma Loreto López

Asimismo, el contexto transicional, en el que se da la recuperación y posterior construcción del Parque por la Paz Villa Grimaldi, condicionará su arquitectura en relación con otros lugares rescatados o memoriales erigidos con posterioridad a la conmemoración de los 30 años, momento en que “ya se disponía de un acervo de memoria (la mayor parte asentada en prácticas testimoniales) desarrollado por distintos colectivos, agrupaciones e instituciones” (López 32). Tal es el caso del Parque por la Paz Villa Grimaldi y de Londres 38, Espacio de memoria, como explican Salomone y Cea:

(...) no sólo trata de la señalización pública ejercida por grupos de la sociedad que los consideran significativos para una(s) determinada(s) memoria(s), sino que incluye la manipulación del espacio a través de diversas intervenciones y performances, que dependen tanto de las identidades asociadas a las memorias, como de los usos literales o ejemplares que de ellas se hace (Todorov 2000). Así, el sitio se transforma en un resultante derivado del influjo de variadas acciones, propósitos, motivaciones y funciones, que tienden a convivir en los mismos límites físicos, y que muchas veces complejizan la lectura que los visitantes pueden hacer de ellos.” (López 6).

“En un ambiente permeado por estas ideologías, se explica, por ejem-

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En este sentido, es importante decir que en nuestro país, cada sitio ha iniciado diversos, pero complementarios, procesos que van definiendo sus proyectos, relevando distintas miradas y enfoques respecto al pasado. En algunos casos, este proceso también ha significado transitar desde memoriales a sitios de memoria y conciencia, es decir, lugares que, como han definido las propias organizaciones a cargo de la gestión de estos sitios,“visibilizan y recuperan memorias e historias vinculadas a la violencia estatal en el periodo de la dictadura, y promueven la reflexión acerca de lo que ocurre en el presente, estableciendo un vínculo con las experiencias del pasado.” (Propuesta sitios de memoria a candidatos presidenciales, octubre 2013).

nalización de sus procesos” (Planificación estratégica Villa Grimaldi, 2011). Dentro de dichas áreas, las más relevantes, en tanto desarrollan proyectos en línea con los objetivos centrales de la Corporación, serán la de educación y museo. En el caso del trabajo de educación en derechos humanos desde el sitio, se enfoca principalmente en el vínculo entre pasado y presente que “consiste en relacionar la experiencia histórica del Parque por la paz Villa Grimaldi- en tanto ex centro clandestino de secuestro, tortura y exterminio- con problemáticas actuales de la sociedad vinculadas al respeto y promoción de los derechos humanos” (Archivo Villa Grimaldi). Esta opción pedagógica, posibilita transformar estos lugares en espacios de debate, reflexión y promoción no solo de las temáticas vinculadas con ese pasado traumático, sino también con las actuales discusiones de la sociedad. Por su parte, el Área de Museo, es la encargada de preservar y conservar el sitio histórico Villa Grimaldi, en tanto, sitio de memoria y monumento nacional. Asimismo, tiene a su cargo el proyecto de Archivo Oral, principal acervo de la Corporación, que reúne más de 160 testimonios, de los cuales la gran mayoría corresponden a ex prisioneros de Villa Grimaldi.

En el caso del Parque por la Paz Villa Grimaldi, se han definido cuatro áreas de trabajo: museo y archivo oral; educación, extensión y redes y comunicaciones. Cada una de ellas, ejecuta los proyectos y programas de la Corporación a partir de la misión5 y visión6 que la Corporación ha definido para la gestión del sitio mediante un proceso de planificación estratégica que fue necesario en la medida que la Corporación había iniciado un ejercicio de “mayor diversificación de sus líneas de acción, junto a una mayor formalización y profesio-

5 “Preservar y comunicar la historia de Villa Grimaldi, como sitio patrimonial Parque por la Paz, y las memorias vinculadas a las víctimas y a las acciones de Terrorismo de Estado perpetradas en el lugar, para promover la reparación simbólica y una cultura de derechos humanos como base de la convivencia democrática de nuestra sociedad” (Villa Grimaldi, 2011). 6 “Consolidarse en los próximos cinco años como referente nacional e internacional en la recuperación y la transmisión de las memorias vinculadas al Terrorismo de Estado y la promoción de una cultura de los derechos humanos a través de la gestión patrimonial del sitio, la educación en derechos humanos y el trabajo colaborativo con organizaciones afines”. (Villa Grimaldi, 2011).

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visibilización y de reconocimiento. Tal es el caso de Colonia Dignidad -recinto represivo de la dictadura- cuyo proceso también nos interesa abordar en este trabajo como una forma de cotejar ambas realidades de memorialización en Chile.

Archivo Corporación Parque por la Paz Villa Grimaldi

La historia de Colonia Dignidad se inicia con la llegada del alemán Paul Schäfer8 a Chile en 1961. Este recinto, que se constituyó como un “Estado dentro de un Estado” en Chile hasta el 2005, estaba cerrado al público y restringía la entrada a las autoridades chilenas, mientras que al interior del recinto se estaban cometiendo, impunemente, horribles crímenes como la esclavitud, la pederastia, la medicación indebida, apropiación de niños, asociación ilícita, fabricación y tráfico de armas, apropiación de tierras, tráfico de drogas, secuestro, tortura, exterminio y desaparición de personas. Crímenes que conocemos por la infinidad de testimonios y porque consta en declaraciones judiciales de los mismos perpetradores9. A pesar de todos los crímenes señalados, para este análisis nos centraremos en el rol represivo que ocupó Colonia Dignidad durante la pasada dictadura militar.

2.2. Colonia Dignidad

8 Paul Schäfer fue un predicador laico originario de Sieburg (Alemania), que llega

Imagen 1: Estudiantes del Colegio Los Cipreses comuna de Doñihue en una visita guiada pedagógica al Parque por la Paz Villa Grimaldi, 20 de noviembre 2014.

a Chile en 1961, escapando de la justicia alemana pues existía contra él una orden de detención por abuso sexual de menores. Schäfer llegó acompañado de unos 300

Hemos revisado el proceso desarrollado por el sitio Villa Grimaldi con una trayectoria de más de 20 años y que ha alcanzado un nivel de institucionalización importante durante el último tiempo7. Sin embargo, no todos los lugares de memoria en Chile han tenido la misma evolución pues como ya se ha dicho, son múltiples los factores que han influido para que estos estén en diferentes etapas de desarrollo, de

seguidores con los que se instaló en la zona precordillerana al interior de la ciudad de Parral, VII región, creando la “Colonia Dignidad”. Aquí adquirieron vastos terrenos, construyeron casas, una escuela, un hospital y desarrollaron la explotación agrícola y forestal. El trabajo de los colonos es de sol a sol, sin salario, incluye a hombres, mujeres, jóvenes y niños. Protegen la propiedad con cercos y púas y luego con sistemas de vigilancia más sofisticados para evitar fugas de colonos y el ingreso de personas ajenas al lugar.” (Archivo Asociación por la memoria y los derechos humanos Colonia Dignidad 2014).

7 Durante el año 2011 se elaboró el primer proceso de Planificación estratégica de

9 Sin embargo, ninguno de ellos ha sido condenado a penas efectivas de cárcel

la Corporación para ser aplicado entre los años 2012-2014.

por delitos de lesa humanidad.

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Los antecedentes indican10 que el vínculo de colaboración, entre Colonia Dignidad y la dictadura chilena, se dio a través de la complicidad y apoyo mutuo entre los jerarcas y colonos y la Dirección de Inteligencia Nacional (DINA). Dicho organismo en forma sistemática, secuestró, torturó e hizo desaparecer a personas desde este lugar. Tal fue el grado de relación entre la dictadura y la Colonia que el propio General Pinochet visita Colonia Dignidad en forma oficial en agosto de 1974 para tomar conocimiento de las armas allí producidas, motivo por el cual existen fundadas sospechas de que Colonia Dignidad ayudó a la dictadura en la adquisición ilícita de armamento.

ve Paul Schäfer en marzo de 2005. En ese contexto, algunos colonos abandonan el lugar instalándose en otros puntos del país o regresando a Alemania. Sin embargo, una parte importante de ellos hoy sigue viviendo en el predio, al que hoy denominan“Villa Baviera”, administrando los vastos terrenos forestales y agrícolas. Asimismo, para proteger su patrimonio estos colonos crearon en los últimos años diferentes tipos de empresas. De ellas, la que parece más incomprensible es el complejo turístico que se ubica en el mismo lugar donde muchos chilenos fueron torturados, asesinados, inhumados y exhumados para su posterior desaparición. Este carácter que se la ha dado al espacio sin duda ofende la memoria de aquellos cuyos rastros se perdieron en Colonia Dignidad. Cuesta entender entonces, que ese lugar sea hoy un espacio de recreación, y que incluso reciba apoyo económico y de asesorías de los estados de Chile y Alemania. En la misma línea, lo que preocupa es que esos estados no se han hecho cargo de hacer visible frente a la sociedad los atroces crímenes contra los Derechos Humanos cometidos en el lugar. Creemos que esta situación, junto a la ausencia de Verdad y Justicia, representa una nueva agresión a las víctimas de los crímenes de lesa humanidad cometidos en Colonia Dignidad.

Un hito en la develación de la historia de crímenes en Colonia Dignidad será la detención y proceso por pederastia del líder del encla-

10 “Está comprobado que hubo diversas relaciones entre la DINA y Colonia Dignidad. Consta que una vez constituida la DINA como “Comisión DINA” a partir de noviembre de 1973, agentes de esta organización utilizaron predios [...] de la Colonia Dignidad [...] para fines de la DINA, sea para la construcción de sus agentes o con otros fines institucionales. Consta también que una casa ubicada en calle Ignacio Carrera Pinto, ex calle Unión, N° 262 de Parral, y de la que se sabe que fue utilizada como recinto por la DINA, específicamente para una brigada de inteli-

Sin embargo, y como ha sido la tónica en nuestro país, a pesar de su uso como lugar de turismo y no de memoria y de los esfuerzos de los jerarcas del enclave y de quienes sirvieron a la dictadura desde diferentes ámbitos por ocultar la verdad de lo sucedido en Colonia Dignidad, en los últimos años, y gracias los testimonios de las víctimas, así como al incansable trabajo de abogados e investigadores, han salido a la luz nuevos detalles horrendos sobre la dimensión del rol que jugaba Colonia Dignidad en el aparato represor de la DINA y de la dictadura chilena, reconociéndose hoy como un eslabón más en la red de los numerosos centros clandestinos de secuestro, tortura y exterminio empleados para ejercer el terrorismo de Estado,

gencia regional, fue adquirida por la Sociedad Benefactora y Educacional Dignidad por escritura pública del 24 de mayo de 1974 [...]. Se sabe también que el Director de la DINA y otros agentes de esa organización visitaron la Colonia Dignidad y parecían mantener cordiales relaciones con sus dirigentes. [...]que un cierto número de personas detenidas por la DINA efectivamente fueron conducidas a Colonia Dignidad, mantenidas cautivas allí por un tiempo, y algunas de ellas sometidas a tortura, con la participación en estos hechos no sólo de agentes de la DINA sino también de personas que vivían en ese predio. [...] La Comisión recibió asimismo algunas denuncias específicas sobre detenidos desaparecidos (aparte de aquéllos que estuvieron detenidos solamente por un tiempo en Colonia Dignidad) cuyo rastro se habría perdido definitivamente en Colonia Dignidad.” (Rettig 1991).

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“Hoy existen antecedentes para afirmar que en Colonia Dignidad pueden haber sido asesinadas más de 100 personas, mientras que cientos de detenidos ahí sufrieron torturas por parte de agentes chilenos y de colonos alemanes. Con esto, Colonia Dignidad se sitúa entre los más importantes centros de tortura y exterminio de la dictadura – el más importante lugar de tortura y muerte que al día de hoy no cuenta con medida de Memoria Histórica alguna– y el único lugar de tortura y exterminio que hoy está funcionando como centro de turismo y diversión.”(Asociación por la Memoria y los Derechos Humanos Colonia Dignidad).

a las aguas que fueron mudo testigo del último, pero peor de los actos criminales perpetrados en contra de los opositores por parte de algunos de los colonos: su total desaparición física, y con ello, la pérdida de su identidad. Esta marca y acción de protesta se mantuvo todos los últimos sábados del mes entre septiembre y diciembre 2014, en el marco de la campaña nacional “¡Verdad y justicia ahora!”

Por otra parte, en esta lucha por conseguir verdad y justicia, junto con la tarea de visibilización y reconocimiento del lugar, han sido una vez más las organizaciones de la sociedad civil, son ellas las que han llevado adelante diferentes iniciativas en los últimos años. Es así como las Agrupaciones de Familiares de Detenidos Desaparecidos y Ejecutados Políticos de Talca, Parral, Linares y Chillán han encabezado acciones de protesta en el sitio mismo de Colonia Dignidad con verdaderos peregrinajes al lugar, pues cabe recordar que este se encuentra ubicado a 37.7 km de la ciudad de Parral y tiene un acceso difícil, todo con el objetivo de que no se olvide lo ocurrido en ese lugar. Imagen 2: Primera acción de protesta con ex prisioneros y organizaciones

Asimismo, en el año 2013 a 40 años del Golpe, las agrupaciones de familiares logran instalar una placa en memoria de los detenidos desaparecidos, es el PRIMER MEMORIAL por las víctimas de Colonia Dignidad, junto al puente del río Perquilauquén que se encuentra en la vecindad del lugar, y donde según testimonios judiciales, habrían sido arrojadas las cenizas de sus familiares después de haber sido secuestrados, torturados, asesinados, inhumados y exhumados ilegalmente, para borrar todo rastro de su existencia. Así, a la protesta frente a las puertas de Colonia Dignidad ahora se suma un pequeño pero potente rito: la visita al río para congregarse ante la placa recordatoria y expresar algunas palabras, para posteriormente arrojar claveles rojos

de derechos humanos al interior de Colonia Dignidad en marzo de 2013.

Archivo Asociación por la Memoria y los Derechos Humanos Colonia Dignidad Producto de esta constante actividad las agrupaciones lograron que se constituyera una mesa de trabajo sobre Colonia Dignidad con autoridades locales, pero que desafortunadamente no ha prosperado por falta de voluntad política por parte del gobierno, teniendo como único logro hasta ahora el que se retirara a la autodenominada Villa Baviera de la folletería turística oficial.

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2.3. El deber de memoria: el rol del testimonio

Paralelamente y convocados por la necesidad de avanzar en justicia, verdad y memoria, un grupo de investigadores, activistas de derechos humanos, familiares y dirigentes de Sitios de Memoria conforman la Mesa de Trabajo Colonia Dignidad desde la cual interpelan al Estado y sus instituciones, a jueces y parlamentarios con acciones tendientes a exigir respuestas a la permanente impunidad y ocultamiento de los crímenes de Colonia Dignidad. De esta instancia de trabajo nace la Asociación por la Memoria y los Derechos Humanos Colonia Dignidad, integrada por sobrevivientes del enclave alemán, familiares de detenidos desaparecidos, ex presos políticos, investigadores, activistas y abogados de causas de violaciones a los derechos humanos. Esta asociación tiene como principales objetivos recuperar y preservar las memorias de lo ocurrido en Colonia Dignidad durante la dictadura, contribuir al esclarecimiento de los crímenes allí cometidos, promover la verdad y la justicia en todos los casos, así como la reparación a las víctimas.

Quisiéramos relevar que en estos procesos de recuperación y reconstrucción de la memoria histórica de Villa Grimaldi y de Colonia Dignidad ha sido central el rol de los ex prisioneros y prisioneras. En el caso de Villa Grimaldi son ellos quienes empiezan a escribir la historia de este lugar en tanto ex centro de secuestro, tortura y desaparición, ya sea mediante los relatos entregados a jueces o en las visitas guiadas desarrolladas para estudiantes que se acercaban con sus profesores para conocer esta historia. Conscientes de lo relevantes de estas voces para la historia de nuestro país, es que se ha desarrollado el Archivo Oral de Villa Grimaldi del que ya hemos hablado. En el caso de Colonia Dignidad, cabe recordar que recién en marzo del 2013 se dan a conocer públicamente los archivos de la represión conocidos como “Fichas de Colonia Dignidad” y que además la información entregada por los perpetradores ha sido casi nula. Por ello se entiende que sea la voz de los y las testimoniantes la que ha logrado develar la verdad de lo ocurrido en estos y otros centros de detención. Desde el inicio, son ellos y ellas quienes se enfrentan en careos con los perpetradores y quienes entregan sus testimonios de diversas maneras: literarias, artísticas, judiciales, orales. Estos testimonios narran lo vivido, pero también son testimonios por delegación, de aquellos compañeros y compañeras que no pueden hablar: los desaparecido/ as y ejecutado/as.

Para finalizar, quisiéramos destacar que a menos de un año de su fundación, la Asociación ha tenido logros importantes para la causa Colonia Dignidad: se ha hecho parte de la querella de uno de los casos más relevantes de secuestro, tortura y desaparición, establece relaciones de trabajo con diferentes instituciones del Estado y autoridades de gobierno para lograr avance en las investigaciones pendientes que tanto la justicia como el Estado han soslayado durante decenas de años, permanece alerta a todo evento que involucre el lugar y a quienes lo dirigieron pronunciándose a través de declaraciones y comunicados que mantienen informada la opinión pública. Actualmente, también desarrolla un proyecto de exposición itinerante y pagina web con la que pretende difundir la historia de Colonia Dignidad y llegar a una parte importante de la ciudadanía. Asimismo, trabaja en investigaciones destinadas a conseguir que el lugar sea decretado Monumento Nacional, y en formas de recuperación de espacios en el futuro para la construcción de un Espacio de Memoria.

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3. Desafíos

Memoria en las que se incluya como algo fundamental la recuperación y mantención de los Sitios.

Durante estos 24 años se han logrado avances importantes en materia de políticas de memoria: comisiones de verdad, juicio a perpetradores, recuperación de ex centros clandestinos de secuestro, tortura y exterminio, construcción de memoriales, creación del Programa de Derechos Humanos del Ministerio del Interior, construcción del Museo de la Memoria y los Derechos Humanos el 2010, entre otros. Sin embargo, este trabajo, como es de esperar, no está exento de dificultades. Por ello, y a modo de conclusiones, nos parece relevante compartir con ustedes los desafíos que tenemos como sitios de memoria y organizaciones de derechos humanos y que creemos debieran ser de interés para la sociedad en su conjunto.

b) Consolidación del trabajo entre sitios Incluso antes del retorno a la democracia, las organizaciones de familiares, de ex prisioneros políticos y de derechos humanos, habían iniciado procesos que exigían la recuperación de lugares y la creación de memoriales vinculados con las políticas represivas de la dictadura. En los últimos años, estas acciones de recuperación se han organizado en una Red de Sitios de Memoria, la que ha sido fundamental para articular el trabajo realizado por los sitios, dando mayor fuerza y respaldo a sus demandas. Asimismo, ha sido un espacio de intercambio entre aquellos sitios con mayor experiencia en materia de gestión e institucionalización y aquellos que inician sus procesos de memoria. La fuerza de actuar unidos obviamente nos da mayores posibilidades de éxito, lo que no es una tarea fácil considerando la diversidad y particularidades de cada sitio, pero día a día trabajamos en la consolidación de esta Red.

a) Reconocimiento y validación de los Sitios que aún permanecen ocultos a la sociedad Muchos de los lugares donde se ejerció la represión permanecen aún sin un reconocimiento cabal de su valor como testimonio, la historia de lo sucedido en ellos no es de conocimiento de la ciudadanía y menos aún han tenido un trabajo de memorialización por parte del Estado. Ejemplo de ello son el caso de Colonia Dignidad descrito anteriormente, la“Casa de exterminio en Simón Bolívar”, la“Casa de Piedra del Cajón del Maipo” entre muchos otros.

c) Validación del trabajo de los sitios de memoria, su mantención y preservación Uno de los desafíos más complejos ha sido validar el trabajo desarrollado por los sitios de memoria y organismos de derechos humanos frente a las instituciones del Estado. Durante estos años, no se han dado las instancias suficientes para escuchar y acoger sus demandas, por ejemplo, integrándolas a sus programas de gobierno y/o a todas aquellas iniciativas vinculadas con el esclarecimiento de la verdad y la justicia. A modo de ejemplo, vemos que solo en el año 2010 se

Hasta hoy la recuperación de los sitios de Memoria ha sido tarea de las organizaciones de derechos humanos, activistas y vecinos de los lugares, mantenidas con trabajo voluntario y recursos de diferentes fuentes, siendo pocos los lugares que luego de años de trabajo han logrado ser financiados por el Estado. Por ello, es uno de nuestros más importantes desafíos, lograr que el Estado genere políticas públicas de

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d) El difícil acceso a la verdad

incorporan dos sitios de memoria en el presupuesto nacional, recurso fundamental para asegurar su mantención, y recién este año se incorpora uno más. El resto de los sitios, recuperados y declarados monumentos históricos, siguen en condiciones de gran precariedad, lo que pone en riesgo no solo su preservación material, sino también el trabajo de memoria y educación en derechos humanos por ellos realizado.

El derecho ciudadano a la verdad, motivo de lucha constante por conocer lo ocurrido en la historia reciente de nuestro país, ha sido obstaculizado por el Estado mediante leyes que impiden el acceso a los archivos derivados de las comisiones de verdad. Lo que contribuye a mantener la impunidad, particularmente, en lo que se relaciona con la identidad de los perpetradores. Esta falta de políticas públicas en relación a los temas de memoria y verdad, se evidencia en la escasa atención que se ha dado al único archivo de la represión, recientemente hecho público. Nos referimos al Archivo de Colonia Dignidad que contiene información central para llevar adelante nuevos procesos judiciales y esclarecer casos de detenidos desaparecidos y ejecutados políticos. Dicho archivo fue entregado en marzo de este año, después de 9 años de ocultamiento por un juez a cargo de las causas vinculadas a este centro secreto de secuestro, tortura y exterminio. Lo que exigimos en este caso es que se entreguen los recursos necesarios para su análisis exhaustivo y conservación en consideración a que son prueba irrefutable de la sistemática aplicación del terrorismo de Estado en nuestro país.

En este contexto, nos parece importante traer la propuesta de gobierno de la Nueva Mayoría, actual coalición de gobierno, respecto a los sitios de memoria “Desarrollaremos una política de recuperación de todos los sitios de memoria histórica donde se violaron los derechos humanos velando por su mantención básica y permanente. Desarrollaremos una estrategia específica para vincular a los sitios de memoria histórica con las nuevas generaciones.” (Programa de la Nueva Mayoría, 2012). Esta propuesta en el programa no señala las formas ni los tiempos en los que esta recuperación se podría dar, más aún no menciona el rol de la sociedad civil, que como ya hemos expuesto, ha sido el actor principal en la recuperación y construcción de los sitios y memoriales. Sin embargo, cabe destacar que es primera vez que un programa de gobierno se refiere a la importancia de los sitios de memoria y su rol en la transmisión de las memorias a las nuevas generaciones.

Creemos entonces, que el rol del Estado en materia de asegurar el esclarecimiento de la verdad es un eje central para cualquier política pública de memoria que se quiera impulsar y con ello fortalecer la democracia.

El desafío está entonces en establecer un diálogo permanente con el Estado para lograr la mantención de todos los sitios recuperados hoy en Chile, así como generar las condiciones necesarias para que aquellas organizaciones que llevan adelante proyectos de memoria reciban recursos desde el Estado.

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e) Participación en las iniciativas generadas desde el Estado

Böll Cono Sur, 2010. 44-56. Lira, Elizabeth.“Verdad, reparación y justicia: el pasado que sigue vivo en el presen-

Finalmente, otro desafío para las agrupaciones, organizaciones de derechos humanos y sitios de memoria se relaciona con uno de los proyectos más importantes impulsado desde el Estado: la creación de la Subsecretaria de Derechos Humanos. Este organismo, que dependerá del Ministerio de Justicia, busca ser el ente coordinador en esta materia. Creemos que un organismo de tal relevancia, no puede dejar fuera de su proceso de conformación las opiniones y propuestas de las organizaciones de los organismos de la sociedad civil, invitando al debate y discusión para el logro de acuerdos vinculantes y así contribuir a la creación de políticas públicas con participación ciudadana.

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398


LA CONSTRUCCIÓN DE LUGARES

En este contexto, la demanda por verdad y justicia interpuesta por organismos de la sociedad civil, integrados por víctimas principalmente,2 fue abriendo espacio a nuevos imperativos relacionados con el “deber de memoria”, y produciendo, por tanto, una diferenciación y especialización al interior del campo de los derechos humanos.

DE MEMORIA DEL TERRORISMO DE ESTADO EN CHILE: TRAYECTORIA Y DESAFIOS

De esta manera, el enfrentamiento del pasado represivo se presentó también como una disputa por las versiones legítimas sobre el pasado reciente, y estas versiones se configuraron como memorias colectivas, construidas por distintos sectores en base a experiencias significativas y aglutinantes.

LORETO F. LÓPEZ GONZÁLEZ 1

Entre las diversas estrategias desplegadas para construir y situar las memorias en el espacio público de la postdictadura, se encuentra el desarrollo de lugares de memoria derivados de la acción de la sociedad civil. Para el caso de las memorias vinculadas a las violaciones a los derechos humanos, se trata de memoriales, monumentos, y también lugares donde ocurrieron los crímenes, tales como ex centros de detención, lugares de enfrentamientos y asesinatos, entre otros, que se inscriben en lo que se ha llamado proceso de “memorialización” (FLACSO, 2008).

INTRODUCCIÓN

Al finalizar la última dictadura cívico militar en Chile (1973-1990), la sociedad inició el camino hacia la redemocratización, lo que no sólo significó la restitución del Estado de derecho, de institucionalidades y un sistema de gobierno democrático, sino también la necesidad de lidiar con el legado de las violaciones a los derechos humanos perpetradas por agentes del Estado, y que se habían llevado a cabo como parte de una política de terror estatal desplegada por el régimen dictatorial.

2 La noción de víctima se utiliza en tanto convención introducida por el lenguaje jurídico y de los derechos humanos (adoptada luego por el Estado), que centra su atención en la acción criminal a la que habrían sido sometidas las personas que sufrieron violaciones a los derechos humanos. Es evidente que las nociones utilizadas permiten construir un sujeto distinto de acuerdo a distintas formas de significar la experiencia, de esta manera otras denominaciones hablan de “personas victimiza-

1 Antropóloga, Magister en Estudios Latinoamericanos, miembro del Programa

das” o “personas victimadas”, también “represaliados” donde el crimen sería una

de Psicología Social de la Memoria de la Universidad de Chile.

forma de ejercer la represalia, pero no la única, etc.

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En particular, el desarrollo de este tipo de lugares a partir de la recuperación de ex centros de detención y tortura, no sólo trata de la señalización pública ejercida por grupos de la sociedad que los consideran significativos para una(s) determinada(s) memoria(s), sino que incluye la manipulación del espacio a través de diversas intervenciones y performances, que dependen tanto de las identidades asociadas a las memorias, como de los usos que de éstas se hace (Todorov, 2000). Así, el sitio viene a ser el resultado de variadas acciones, propósitos, motivaciones y funciones, que tienden a convivir en los mismos límites físicos, y que muchas veces complejizan la experiencia e interpretación que los visitantes pueden hacer de ellos.

memoria.4 Los procesos seguidos para la transformación de ex recintos de detención en lugares de memoria así como las intervenciones, gestiones, funciones y actividades que se desarrollan en ellos en la actualidad, permiten aproximarse a la potencialidad que este tipo de lugares tienen para procesar el pasado dictatorial en el presente de la postdictadura.

A la vez, la experiencia chilena ayuda a reflexionar también sobre los desafíos que este tipo de lugares de memoria deben enfrentar para convertirse en referentes capaces de trascender la contingencia de los actores y contextos que hicieron posible su surgimiento, transformándose en espacios que interpelen y convoquen a memorias y experiencias que no se restringen a la narrativa de las víctimas.

En Chile, así como en otros países del Cono Sur que vivieron dictaduras (Paraguay, 1954-1989; Brasil, 1964- 1980; Chile, 1973-1990; Uruguay, 1973-1985; Argentina, 1976-1983), la práctica del terrorismo de Estado incluyó la detención, la tortura y la desaparición de personas en el marco de redes organizadas de recintos usados para tales objetivos. De acuerdo al Informe de la Comisión Nacional sobre Prisión Política y Tortura (2004), en Chile habrían operado 1.109 de este tipo de establecimientos3.

4 Los seis sitios mencionados son: Parque por la Paz Villa Grimaldi (ex Cuar-

Actualmente en Chile existen al menos quince ex centros recintos de detención y tortura que han sido marcados y señalados públicamente con una intención conmemorativa, y siete de ellos han sido recuperados o accedidos por la sociedad civil para desarrollar allí trabajos de

tel Terranova actual); Casa de Memoria José Domingo Cañas (ex Cuartel Ollagüe); Londres 38, Espacio de memorias (ex Cuartel Yucatán); Casa Museo Alberto Bachelet (ex Nido 20); Casa Museo de la Comisión Chilena de Derechos Humanos (ex Clínica Santa Lucía); Casa de la Memoria y los Derechos Humanos de Valdivia (ex sede DINA y CNI ubicada en Vicente Pérez Rosales N° 764); Casa de Derechos Humanos de Magallanes (ex Palacio de las Sonrisas). Además, acciones de marcación y memoria se realizan en el Estadio Nacional, 3 y 4 álamos, Nido 18, la ex Comisa-

3 Una parte importante de este número corresponde a recintos actualmente de-

ría de Carabineros de Curacaví, ex salitrera Chacabuco, Pisagua (cárcel y fosa), ex

pendientes de las Fuerzas Armadas, Carabineros (policía) u otras instituciones pú-

recinto llamado “La discoteque o Venda sexy”, y el enclave alemán conocido como

blicas.

Colonia Dignidad.

400


El tiempo de la memoria

publicaron luego sus informes –Informe Rettig e Informe Valech, respectivamente-, y en su conjunto calificaron a 38.254 personas como víctimas de violaciones a los derechos humanos.

Al finalizar la dictadura en Chile, se adoptaron algunas recomendaciones de la justicia transicional5 dirigidas a enfrentar cuatro dimensiones/demandas que, si bien están relacionadas, dieron origen a conjuntos de acciones específicas: “verdad”, “justicia”, “reparación” y “memoria” (Raffin, 2006). Estas dimensiones se fundaron además en el reconocimiento de dos principales interlocutores: el Estado y aquel sector de la sociedad que había sido víctima de las violaciones a los derechos humanos.

Por su parte, la justicia tuvo como finalidad el combatir la impunidad y por lo tanto ejecutar la persecución judicial de las responsabilidades criminales. Sin embargo, no puede desconocerse que, en contextos como el chileno donde la transición a la democracia ha sido fuertemente vigilada por “enclaves autoritarios”6 que por diversos medios han buscado el silenciamiento del pasado, los procesos judiciales han contribuido además a la búsqueda de la verdad. Tal como ocurrió con la reinterpretación de la Ley de Amnistía a través de la figura del “secuestro permanente”7.

La verdad aparecía como una necesidad básica que había sido negada durante el ejercicio del terrorismo de Estado, y que comenzaba por conocer el destino de los detenidos desaparecidos, pero que también demandaba información y reconocimiento de los crímenes como hechos con estatus de verdad. En Chile el Estado constituyó dos comisiones de verdad: Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación (1991), focalizada en casos de detenidos desaparecidos y asesinados, y la Comisión Nacional sobre Prisión Política y Tortura (2004), centrada en casos de víctimas de prisión política y tortura. Las comisiones

La reparación, más que una demanda propiamente tal al mismo nivel que las anteriores, podría ser entendida como una forma de lidiar con las consecuencias de los crímenes, que una vez conocidos y dimen-

6 Los llamados enclaves autoritarios se refieren a condicionantes del proceso de redemocratización, de tipo institucionales (Constitución, leyes, etc.), ‘actorales’ (Fuerzas Armadas con poder de veto, derecha no democrática, etc.), socioculturales

5 “el conjunto de medidas judiciales y políticas que diversos países han utilizado

(valores autoritarios, conformismo, etc.) o ético-simbólicos (problemas de derechos

como reparación por las violaciones masivas de derechos humanos. Entre ellas figu-

humanos no resueltos). A los que se podría agregar como categoría propia, la pre-

ran las acciones penales, las comisiones de la verdad, los programas de reparación

sencia del ex dictador, Augusto Pinochet, en la escena pública, primero en el cargo

y diversas reformas institucionales (…)La justicia transicional no es un tipo especial

de comandante en jefe del Ejército hasta el año 1998, y luego como senador vitalicio.

de justicia sino una forma de abordarla en épocas de transición desde una situación

Veáse Garretón, 1991.

de conflicto o de represión por parte del Estado. Al tratar de conseguir la rendición de cuentas y la reparación de las víctimas, la justicia transicional proporciona a las

7 En lo fundamental, esta figura demanda la investigación de los hechos (la ver-

víctimas el reconocimiento de sus derechos, fomentando la confianza ciudadana

dad), para luego de ello, con los antecedentes disponibles, determinar si corres-

y fortaleciendo el Estado de derecho”. International Center for Transitional Justice

ponde o no amnistiar. Es decir, deben establecerse los límites y características de lo

www.ictj.org

“delictuoso”, en correspondencia con el tipo de delitos tipificados en la Ley.

401


sionados a partir de los testimonios de los afectados, deviene en un intento por compensar los daños causados y también como un reconocimiento moral del sufrimiento (Ruderer, 2010). En Chile se establecieron cuatro tipos de reparaciones: económicas, judiciales, sociales (salud, educación y en algunos casos vivienda) y simbólicas. A la vez, se crearon programas dirigidos a distintas víctimas de violaciones a los derechos humanos: exiliados, familiares de detenidos desaparecidos y ejecutados, y afectados por prisión política y tortura, entre otros.

porcionaron descripciones relativamente detalladas de las distintas formas de delitos y el comportamiento de los organismos represivos, pero además consignaron un número de personas que podían ser identificadas públicamente como “víctimas”, y a las que, por lo tanto, les concernían los hechos ocurridos porque eran las directamente afectadas.

Y más importante aún, los informes propusieron textos o capítulos que antecedían a la narración de las acciones represivas, en los cuales se proponía una interpretación de los acontecimientos narrados, intentando responder a la pregunta: por qué se produjo el Golpe de Estado y una dictadura con las consecuencias criminales descritas en los informes.

La memoria emerge como una dimensión mucho más amplia y diversa, que involucra a un espectro mayor de actores y que se relaciona tanto con la verdad como con la justicia, pues en ambos casos se requiere“invocar al pasado”. A la vez los imaginarios, discursos y representaciones del pasado incorporan también los progresos obtenidos en los ámbitos de verdad y justicia, como fuentes de información y formas de legitimación.

En conjunto, las iniciativas emprendidas en los distintos ámbitos referidos –verdad, justicia, reparación y memoria-, tanto por el Estado como por la sociedad civil, contribuyeron a abrir y configurar un espacio público en el cual debatir las versiones legítimas del pasado reciente. En el caso chileno, la centralidad de la memoria en la discusión pública se acrecentó luego de la detención de Pinochet en Londres el año 1998, inaugurando un “tiempo de la memoria” (Winn, 2014; Wilde, 2014).

Puede decirse que en el ámbito de la memoria, los informes de verdad constituyen un pilar fundamental para el debate sobre el pasado dictatorial pues otorgaron un estatus de realidad a un conjunto de hechos y experiencias que habían sido calificadas de “presuntas” por las dictaduras y sus adherentes, quienes buscaban deslegitimar la veracidad de los testimonios y denuncias en torno a las violaciones a los derechos humanos. Construyeron el marco de la “verdad factual”, sobre la cual se podrían efectuar interpretaciones pero que en sí misma era irrevocable e inalterable. Esa verdad se edificó sobre la base de testimonios de quienes, de acuerdo a las definiciones de los informes, podían ser considerados como víctimas, y sobre los documentos archivados por las distintas organizaciones que denunciaron las violaciones a los derechos humanos durante la dictadura y que prestaron asistencia judicial y de otro tipo a las víctimas.

Finalmente, luego de más de veinte años de terminada la dictadura, puede decirse que la narración y reconocimiento público de las experiencias represivas de las víctimas de violaciones a los derechos humanos, contribuyó a la consolidación del “terrorismo de Estado como memoria histórica dominante”de la dictadura (Winn, 2014), en contraposición a las memorias que representan al Golpe y la dictadura como una gesta heroica y salvadora (Stern, 2009, 2014). Se diría que las memorias del terrorismo de Estado, caracterizadas por visiones trágicas del pasado reciente, se habrían transformado en “memorias fuertes”

Luego, la verdad factual supuso describir y dimensionar los alcances de las violaciones a los derechos humanos. En este sentido, se pro-

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(Traverso, 2011), pues han logrado visibilidad y reconocimiento, siendo sostenidas por agrupaciones, instituciones e incluso el Estado.

sino que éstos requieren de una voluntad de recuerdo, es decir no cualquier objeto o lugar que pueda parecer significativo necesariamente lo es.

Lugares de memoria

Para Piper y Hevia (2013) los lugares de memoria son espacios significativos, usados y apropiados por sujetos –individuales o colectivos-, a través de acciones de recuerdo que enuncian, articulan e interpretan sentidos del pasado.

El espacio de las memorias sobre el pasado dictatorial se alimenta del señalamiento de hechos significativos, calendarios conmemorativos, lugares, personajes y estrategias de aparición y circulación que les son propias a cada memoria que ha logrado asumir una posición en el debate público. En este contexto, la construcción de lugares de memoria a partir de la recuperación de ex recintos de detención, tortura y desaparición usados por la dictadura, ha ido adquiriendo relevancia pues en ellos es posible materializar versiones del pasado que circulan en la sociedad.

Steve Stern (2000, 2009) destaca el carácter aglutinante de los lugares de memoria, pues actúan como“nudos convocantes”capaces de anudar o atar memorias sueltas, así como la capacidad de interpelar la normalidad del sujeto, manifestando la tensión que implica un nudo (en el estómago, en la garganta) producto de una situación de ruptura que lo lleva hacia una actitud más consciente.8 De las referencias anteriores se entiende que los lugares de memoria adquieren sentido cuando se asocian a intenciones y acciones orientadas por una determinada visión o lectura del pasado. Una red de diversos“nudos convocantes”referentes para las memorias contribuyen a respaldar, manifestar públicamente y comunicar versiones específicas del pasado. Y en el caso particular de los lugares de memoria actúan como mediadores entre lo que una materialidad primera ofrece, el vestigio por ejemplo, y las significaciones o sentidos atribuidos a ella por determinadas memorias colectivas, a través de procesos de calificación (marcar), descalificación (borrar) y recalificación (remarcar), que “hacen hablar al lugar” a través de “acciones específicas de emplazamiento de marcas que le dan al lugar su identidad y su posibilidad de transmitir la memoria” (Feld, 2011:15).

En coherencia con la hegemonía adquirida por las memorias del terrorismo de Estado, los lugares de memoria vinculados a la acción represiva han sido los más visibilizados, pues aportan referencias factuales a la verdad que ha sido respaldada públicamente. Ello no quiere decir que otras memorias, como las del Golpe y la dictadura como una gesta heroica y salvadora no dispongan de lugares o locaciones significativas en el territorio, capaces de convocar a sus adherentes. Para referirse a los lugares de memoria es útil considerar tres definiciones que permiten comprender el poder que este tipo de artefactos de memoria comportan para el trabajo de recuerdo. Pierre Nora (2009) se refiere a los lugares de memoria como objetos o emplazamientos donde confluyen dimensiones materiales, simbólicas y funcionales marcadas por la “intención de memoria”. No sólo se trata de locaciones o “marcas territoriales” (Jelin y Langland, 2003),

8 Stern también considera nudos convocantes a hechos, objetos, fechas y personas.

403


Es importante destacar también que las voluntades que finalmente llevan a transformar un determinado espacio en un lugar de memoria, no tienen que ver necesariamente con criterios expertos o científicos sobre su relevancia histórica o incluso material.9 Sino que al ser importantes para la memoria, responden a contextos sociales, políticos y culturales en los que situaciones del presente promueven o demandan miradas específicas del pasado. Esto es muy evidente para el caso de los lugares vinculados a la “memoria hegemónica” del terrorismo de Estado que ha prosperado en los últimos veinte años en Chile.

e incluso el renombre de calles, plazas o inmuebles, espontáneamente la ciudadanía ha ubicado marcas que señalan lugares, recuerdan acontecimientos y personas, y ha demandado el acceso y recuperación de ex recintos de detención.10 Como se mencionó, durante la dictadura en Chile habrían operado más de mil recintos de detención donde se aplicaron diverso tipo de apremios ilegítimos contra personas que fueron detenidas. Las características de estos lugares habría variado dependiendo de su función en la red represiva de la dictadura.11 Los recintos que han sido objeto de marcación, señalamiento público y posterior demanda de recuperación, han sido los ex centros de detención, tortura, muerte y desaparición que operaron en inmuebles que no albergaban instituciones públicas antes del Golpe de Estado, sino que luego de éste fueron ocupados –adquiridos, arrendados o apropiados- específicamente para fines represivos, y que al cesar la actividad en ellos, habrían sido sometidos a un proceso de “borramiento”e intento de desvinculación de su identidad represiva a través de las siguientes acciones:

Transformar ex centros de detención en lugares de memoria La transformación de ex recintos de detención, tortura, muerte y desaparición en lugares de memoria luego de la finalización de la dictadura en Chile, forma parte de los procesos de memorialización emprendidos por la sociedad civil, con apoyo (aunque a veces errático) del Estado. Mientras el Estado chileno adoptó las formas transicionales sugeridas por la experiencia internacional, que destaca la importancia de promover alternativas de reparación simbólica, en las que se encuentra la erección de monumentos, memoriales, el emplazamiento de placas

10 A solicitud de agrupaciones y colectivos de víctimas, el Estado ha financiado la erección de monumentos y memoriales en distintas partes del país. Al año 2004 se habían inaugurado en Chile 176 monumentos, memoriales, placas o renombre de espacios públicos (Loveman y Lira, 2005). Recién hacia el tercer gobierno de la transición, el Estado emprendió de manera autónoma una iniciativa de memoria de gran envergadura: la construcción de un Museo de la Memoria y los Derechos

9 Puede decirse que el carácter “artificial” (no por ello ficticio) de un lugar de me-

Humanos, ubicado en la ciudad de Santiago.

moria tiene su expresión más elocuente en los memoriales y monumentos, que siendo edificados y emplazados en espacios generalmente establecidos por los cri-

11 Silva y Rojas (2005) distinguen lugares secretos de detención y tortura, campos

terios de la planificación urbana, se transforman en lugares de memoria para agru-

de prisioneros, lugares de tránsito de prisioneros, cárceles y penitenciarías, entre

paciones y colectivos que les atribuyen usos conmemorativos.

otros.

404


Demolición: destrucción física del lugar.

Demanda de acceso: sobre todo cuando existen impedimentos para ingresar físicamente al lugar, lo que frecuentemente ocurre.

Ocultamiento: otra actividad o circunstancia desvincula al lugar de su identidad como centro de detención.

• Ingreso y acciones de apropiación: actos que incluyen situar los testimonios al interior del espacio físico, entre otras acciones, que pueden incluir tomas.

• Apropiación: por el traspaso a otro dueño se impide la acción pública en el lugar. • Simulación: se disfraza la identidad del centro al cambiar, por ejemplo, su numeración.

• Demanda de “recuperación”12: los colectivos y agrupaciones recurren al Estado, apelando a la responsabilidad política que le cabe sobre las acciones del terror estatal desplegado en el pasado.

• Aislamiento: cuando existen barreras geográficas o de accesibilidad.

• Recuperación y resignificación: dependiendo de las condiciones del lugar y del carácter y proyecto de las agrupaciones involucradas, el lugar será sometido a un programa de memoria.

• Desconocimiento: sin registro de la ubicación del centro ni relación con su identidad como centro de detención y tortura. (Silva y Rojas, 2005) • Normalización: regreso a sus funciones normales, encubriendo las labores extraordinarias desarrolladas. (López, 2010)

Durante la recuperación y tras ella, se desarrollan los debates sobre las acciones necesarias para iniciar conceptual y materialmente el proceso de transformación hacia un lugar de memoria, que se traduce en las preguntas ¿cómo llamarlo?, ¿qué hacer con y en el lugar? y ¿para qué hacerlo?, con el fin de “(re)funcionalizar” el espacio (Guglielmucci, 2011).

Luego, tras el fin de la dictadura, colectivos de víctimas, familiares y amigos, han desarrollado acciones dirigidas a la construcción de lugares de memoria sobre ex centros de detención: Señalamiento público y marcación: rayados o escraches, “velatones”, pega de afiches, actos públicos y declamaciones en su frontis o inmediaciones.

12 El verbo “recuperar” es una categoría nativa utilizada por los emprendedores

Producción y circulación de testimonios sobre el lugar en su condición de recinto de detención: en distintos medios se publican relatos de testigos (generalmente víctimas) sobre lo ocurrido en el lugar durante su funcionamiento como centro de detención.

de memoria de este tipo de lugares. Se ha instalado para denominar la acción de rescate (cuando ha peligrado la integridad física del lugar), acceso y ocupación de los lugares por parte de colectivos generalmente vinculados a las víctimas. Denota desde ya un sentimiento de pertenencia y propiedad sobre ellos, la preexistencia del dominio de las víctimas por sobre los victimarios, u otros actores considerados “ajenos” al lugar.

405


La denominación y nombramiento del lugar, ha derivado en discusiones sobre el carácter “secreto” o “clandestino” de estos lugares. Si bien en Chile el Informe Valech no establece distinciones entre “secreto” y “clandestino” refiriéndose a algunos recintos como “secretos o clandestinos”, a comienzos de los noventa el Informe Rettig ya se había referido a estos lugares como “lugares secretos de detención y tortura”. La noción de clandestinidad no sólo está asociada a lo secreto, sino también a la intención de eludir la ley, situación que no corresponde a la acción represiva del terrorismo de Estado, por cuanto ella se desplegó en un contexto donde ciertos actos considerados comúnmente como criminales o ilícitos, se encontraban legalizados. Se entiende entonces, que el carácter secreto de ciertos recintos, no está dirigido a evadir la ley, pues habrían existido decretos o normativas que amparaban legalmente su acción, sino a mantener en suspenso o duda su existencia. 13

sempeñó como recinto de detención.14

Resignificar la identidad represiva: refuncionalización del espacio, incorporando intervenciones a las estructuras existentes, que permitan adaptarlo a nuevas funciones no necesariamente vinculadas con el trabajo de memoria en torno a la condición de ex recinto de detención,15 o bien la transformación física, efectuando cambios e incorporación de elementos y estructuras que modifiquen la apariencia del espacio, con el fin de otorgarle otra identidad que, pudiendo aludir a la experiencia del pasado reciente, la trasciende. Actualmente en Chile existen siete recintos que han sido accedidos por la sociedad civil, y en los cuales se realiza algún trabajo de memoria. En ninguno de ellos se ha optado por efectuar únicamente acciones de conservación y casi nunca se ha realizado restauración y reconstrucción de los recintos. La alternativa más común es la de la resignificación y la refuncionalización.

Con relación a las alternativas de intervención física y conceptual, es posible identificar las siguientes alternativas a seguir y que son discutidas por los grupos involucrados en la recuperación:

De esta manera, lo que ha ocurrido es que las condiciones de los es-

• Conservación del lugar en las condiciones materiales en que este fue recibido.

14 Un ejemplo de esto puede ser el Memorial de la Resistencia en São Paulo, que ha restaurado algunas celdas y las ha dotado del equipamiento o mobiliario que po-

• Restauración del lugar y reconstrucción de los espacios de acuerdo a las características y funciones cumplidas mientras se de-

drían haber tenido al momento de que el inmueble funcionara como Departamento de Estado de Orden Político y Social de São Paulo (Deops/SP), entre los años 1940 y 1983. Otro ejemplo es el trabajo de conservación de una parte de la marquesina del Estadio Nacional en Chile, como testimonio del período en el cual funcionó como campo de prisioneros.

13 Es interesante que en el caso argentino la noción de “exterminio” es adicionada

15 Correspondería a la polémica suscitada el año 2007 cuando el gobierno chileno

entre las funciones mencionadas en la denominación de los centros y la condición

proponía que el inmueble de Londres 38 (ex Cuartel Yucatán), fuera destinado como

de clandestinidad, apoyando el argumento del caráter genocida de la dictadura.

sede del futuro Instituto Nacional de Derechos Humanos.

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pacios se han adaptado a nuevas funciones, por lo general sin destruir o alterar dramáticamente la materialidad e infraestructura previa.

Usos de la memoria: siguiendo los usos propuestos por Todorov (2000), en los lugares de memoria se observan usos literales y ejemplares, 17 siendo más frecuentes los primeros. Las narrativas de la excepcionalidad, propias de los usos literales, han sido frecuentes en este tipo de lugares, resistiéndose a la comparación con otras realidades y a la incorporación de sus historias particulares en una narrativa de mayor alcance capaz de aportar un marco interpretativo que conecte con la realidad nacional y los dilemas del presente.

Ahora bien, al efectuar un análisis general sobre las condiciones en las que se encuentran los lugares de memoria en Chile, es posible ofrecer el siguiente modelo síntesis de algunas de sus características: Memorias vinculadas al lugar: principalmente aquellas asociadas al terrorismo de Estado, desde el punto de vista de las víctimas de violaciones a los derechos humanos. Intervenciones realizadas en el espacio: simbólicas (esculturas, monumentos, placas recordatorias, etc.); informativas (biblioteca, señaléticas, paneles, introducción, planos de emplazamiento, audioguías, etc.); funcionales, dirigidas a la atención de visitantes y al desarrollo de tareas administrativas (oficinas, recepción, baños, etc.).

Grupos asociados al lugar: principalmente víctimas del propio lugar en su condición previa de centro de detención, familiares y amigos de víctimas. Luego, otros colectivos de víctimas, familiares y amigos de

intensa, aunque en algunos casos si hayan recibido la visita de jueces y peritos. La ausencia de esta función ha determinado además que los sitios sean intervenidos

Funciones: histórico – testimonial, dirigida a responder la pregunta ¿qué ocurrió aquí?, a través de testimonios de víctimas apoyados por otras fuentes; reparación simbólica para las víctimas, quienes encuentran en el lugar un espacio para recordar, conmemorar y rendir homenaje a muertos, desaparecidos y sobrevivientes; conmemorativa, el lugar es el escenario de un calendario conmemorativo de fechas emblemáticas nacionales e internacionales relacionadas con la memoria del terrorismo de Estado y la promoción de los derechos humanos; pedagógica, se realizan actividades educativas que utilizando la memoria específica del lugar intentan promover una reflexión sobre la importancia de los derechos humanos y los valores democráticos en el presente.16

y usados sin una previa discusión y posterior definición de zonificaciones afectas o desafectas a la intervención. Veáse López, 2013. 17 El uso literal, se refiere a la recuperación de un hecho con todos sus detalles, agotándolo en sí mismo. Para Todorov, ya sea a nivel individual o colectivo, la literalidad puede llevar a la represión del presente por el pasado, es decir a una conmemoración obsesiva del pasado. El uso ejemplar, por el contrario, es aquel en el cual el pasado es pensado como un modelo que permite comprender situaciones nuevas, sacrificando la singularidad del suceso rememorado. La experiencia privada transita al ámbito de lo público, abriendo el recuerdo a la analogía y la generalización, de ahí se extrae un ejemplo y se construye una lección, es decir, el pasado se convierte en acción para el presente. Por ejemplo, en el caso de Villa Grimaldi en los últimos años se ha elaborado un mensaje que “trasciende el detalle de lo ocurrido en el lugar, y plantea que el terror estatal ha legado crímenes que siguen en la impunidad, es decir, forman parte del presente, y a la vez el terror permitió forjar un modelo que

16 A diferencia del caso argentino, en Chile los ex centros de detención transfor-

es en el cual se desarrolla la vida de la sociedad chilena actual. La dictadura vive en

mados en lugares de memoria no han cumplido una función judicial constante e

sus consecuencias, y en el presente todos se ven afectados.” López, 2013:74

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otros lugares de memoria, personas y organismos vinculados a la defensa y promoción de los derechos humanos, organizaciones locales. En términos generales es posible plantear una distinción entre sujetos y actores según su cercanía biográfica con los hechos ocurridos en el lugar que se grafica en un conjunto de círculos concéntricos, donde el circulo interior y central es ocupado por las víctimas del lugar, sus familiares y amigos.

Aunque no es exhaustiva, es posible que la síntesis de características presentadas pueda corresponderse con la realidad de otros países, y que por lo tanto las dimensiones consideradas puedan ser utilizadas para describir y analizar otros lugares de memoria. Una primera aproximación a los lugares a través de este conjunto de dimensiones permitiría además obtener una visión general de su situación en el escenario de las memorias colectivas que circulan sobre el pasado reciente.

Institucionalidad y gobierno interno: asociaciones civiles, corporaciones o fundaciones privadas sin fines de lucro, integradas por víctimas del lugar, sus familiares y amigos, también otras organizaciones y personas vinculadas a la promoción de los derechos humanos. Internamente se organiza un equipo directivo que deriva de los integrantes antes mencionados (generalmente víctimas y familiares), que tiene por función conducir y organizar la gestión del lugar. A raíz de que en Chile no existe una política pública de apoyo a este tipo de lugares de memoria, sustentar la presencia de estructuras profesionales es muy escasa y la mayor parte de los lugares se sostienen gracias al trabajo voluntario de los colectivos de víctimas.18

Desafíos Como se ha visto en las páginas precedentes, los lugares de memoria construidos a partir de la recuperación de ex centros de detención de la dictadura en Chile, constituyen artefactos de memoria que se erigen sobre el emplazamiento, materialidad y vestigios de aquellos recintos, pero que se transforman en algo distinto en virtud del contexto postdictatorial y las voluntades políticas de actores para los cuales esos espacios resultan emblemáticos y significativos para sus memorias. En este proceso ha prevalecido la intencionalidad de memoria de las víctimas de violaciones a los derechos humanos vinculadas biográficamente con los lugares, que en la mayor parte de los casos ha estado motivada primero por denunciar los crímenes de la dictadura. En este sentido un desafío importante para los lugares de memoria ha sido trascender un activismo social y político dirigido únicamente a la denuncia del pasado y en y de algunas situaciones del presente.

18 A través del Programa de Derechos Humanos del Ministerio del Interior, el Estado chileno ha ejecutado las políticas de reparación simbólica focalizando recursos hacia la erección de monumentos y memoriales. Aunque la totalidad de lugares de memoria es de propiedad pública, el apoyo del Estado a la gestión de los lugares es débil o escasa. Por lo general los lugares de memoria han debido recurrir a diversas estrategias para proveerse de los recursos necesarios para sustentar sus actividades, lo que ha derivado en un desarrollo desigual en cuanto al alcance, envergadura y sostenibilidad en el tiempo del trabajo de memoria que se realiza en ellos.

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Por otra parte, como se mencionó, en Chile estos lugares cumplen una importante función de reparación simbólica, lo que en cierta forma los convierte en espacios de recogimiento y duelo, que deben coexistir con actividades educativas o de extensión dirigidas a otro tipo de público no víctima. Tal vez sea justamente este asunto, el equilibrio y la coexistencia de distintos sujetos e intereses relacionados a los lugares, lo que represente uno de los desafíos más importantes a considerar para la sostenibilidad social y simbólica de estos espacios.

lugar donde sucedieron hechos históricos.19 En definitiva se trata de reconocer las distintas significaciones que hay sobre un mismo lugar, considerando los distintos objetivos que se pretenden cumplir y los sujetos involucrados –gestores, víctimas y visitantes-. Para ello la gestión de los lugares requiere convocar tanto a las personas que tienen un vínculo testimonial con el lugar, como a otros que desde diferentes expertices disciplinarias puedan contribuir a que la relevancia de estos espacios trascienda social y temporalmente.

Lo anterior supone efectuar una lectura crítica sobre los objetivos y acciones que se realizan en los distintos lugares, sobre todo considerando que en Chile la mayor parte de los recintos recuperados ha demandado su protección bajo la Ley 17.288 de Monumentos Nacionales, con el fin de ser reconocidos como Monumento Nacional, con una evidente intención de ser considerados bienes públicos que formen parte del patrimonio nacional.

El poder de los lugares de memoria de la represión reside en su capacidad de comunicar un mensaje ético y moral basado en el diálogo que pueda establecerse entre las memorias que los identifican y otras memorias del pasado reciente, y entre los dilemas del pasado y el presente.

Al estar abiertos a recibir todo tipo de visitantes, los lugares de memoria trascienden el objetivo de reparación simbólica para las víctimas, y deben comenzar a preguntarse sobre los propósitos y expectativas que otros sujetos tienen sobre el lugar, el impacto que puede tener la experiencia de visita y sobre todo la comprensión que los visitantes hacen del lugar en sí mismo. Por ejemplo, un problema frecuente que se produce en estos lugares es la falta de un conjunto de información histórica básica y precisa sobre las importancia de estos lugares en la política de terror estatal, una breve historia del lugar en cuanto a lo ocurrido allí durante la dictadura y lo que ocurrió con ellos hasta el presente, una distinción clara entre las materialidades e intervenciones que constituyen vestigios y otras que han sido adicionadas con posterioridad con fines conmemorativos o informativos, sobre todo si se considera que muchos visitantes llegan motivados por conocer un 19 Si se siguen los estándares de la gestión patrimonial, un visitante nunca debiera confundir un vestigio con una reconstrucción o una recreación, y el tratamiento que se hace de ellos debiera ser también diferenciado.

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¿QUE HACEN LOS DERECHOS

nacionales de cooperación y ciertos organismos de derechos humanos, han tendido a encapsular el pasado con los lentes generados por el significado histórico que la noción de derechos humanos adquirió en el contexto de las dictaduras y las luchas de las transiciones democráticas. Dichas políticas han sido extremadamente efectivas en desarticular los argumentos negacionistas de las dictaduras y a aquellos que por diversos motivos buscaron silenciar sus crímenes. Sin embargo diversos enfoques han sugerido como el énfasis de ciertos derechos sobre otros, la lectura en clave ética del período, una visión algo ingenua del liberalismo democrático como el lugar de la no violencia, así como una interpretación despolitizada y negadora de los conflictos sociales de larga data que ayudan a explicar la reacción autoritaria han limitado la reflexión pública y social sobre variados asuntos de la experiencia histórica reciente y su potencial para pensar el impacto de aquel pasado en las actuales sociedades cono sureñas. 3

HUMANOS CON LA REVOLUCIÓN? UNA REFLEXIÓN SOBRE UN LUGAR DE LA MEMORIA DE LA HISTORIA RECIENTE URUGUAYA. ALDO MARCHESI 1

Existen lugares, experiencias, testimonios que son difíciles de reducir a las memorias emblemáticas clásicas del terrorismo de estado.4 Las memorias de los tardíos sesentas y tempranos setentas marcadas por un profundo activismo, una dura crítica al liberalismo democrático de la guerra fría por su incapacidad para resolver los problemas sociales de estos países, y una visión legítimamente de ciertas formas de violencia política dan cuenta de experiencias que son difíciles de memorializar con los criterios precedentes. Dichos militantes sufrieron las terribles consecuencias del terrorismo de estado pero sus memorias no pueden ser reducidas a dichas narrativas.

En la última década la narrativa sobre el terrorismo de estado ha ganado lugar para contar la violencia estatal desatada por las dictaduras conosureñas. A través de múltiples informes de verdad elaborados por actores estatales o de la sociedad civil y por los juicios desarrollados mayormente en Argentina y Chile se ha establecido una manera de contar la experiencia dictatorial basada en la oposición entre terror estatal y víctimas de la sociedad civil.2 En este sentido las políticas de memoria impulsadas por las agencias estatales, organizaciones inter-

1 Doutor em História da América Latina pela Universidade de Nova York (NYU), é professor da Universidad de la República em Montevideo, Uruguai desde 2007 e membro do Centro de Estudios Interdisciplinarios Uruguayos. Seus temas de pes-

3 Las perspectivas críticas que muestran los límites de estos discursos generales se

quisa são direitos humanos, história da América Latina e memória coletiva.

expresan en múltiples trabajo y perspectivas. A modo de ejemplo ver: DEL PINO, JELIN, 2003; GRANDIN, 2007; MARCHESI, 2011.

2 Tal vez uno de los casos más paradigmáticos de esta experiencia se vinculan con el caso argentino:Ver CRENZEL, 2008; SIKKINK, 2011; JELIN 2002.

4 Acerca del concepto de memorias emblemáticas ver: STERN, 2009.

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En el centro de la ciudad de Montevideo hay una casa cuya historia interpela a estos relatos más establecidos sobre el pasado reciente. La casa de Juan Paullier 1190 fue utilizada como “cárcel del pueblo” por el MLN Tupamaros y luego como centro clandestino de reclusión durante la dictadura. En la actualidad una serie de iniciativas están discutiendo la posibilidad de transformar dicha casa en un museo. Sin embargo resulta difícil generar consensos en las maneras que dicho lugar de memoria debe ser presentado. Los motivos están vinculados a lo planteado anteriormente. La casa no se inserta claramente ni en las narrativas emblemáticas propuestas por los militares y sus defensores, ni en las de los movimientos de derechos humanos. En este sentido dicha iniciativa permitiría ampliar las márgenes de dichas narrativas, complejizando la reflexión sobre la violencia, la democracia, el autoritarismo y el cambio social en su relación con los conflictos sociales y políticos de la historia uruguaya del siglo XX. Pero los límites de las memorias más establecidas operan para evitar dicho desarrollo. A continuación repasaremos la historia de dicho espacio y las discusiones que en torno a su memorialización se han dado hasta el momento.

un conjunto de sectores medios que en el contexto de la crisis económica y política (inflación, estancamiento económico) a inicios de los sesentas comienzan a radicalizarse. La prosperidad de los cincuentas, un período de extremado optimismo expresado en el concepto “como el Uruguay no hay”, comenzó a enfrentar un estancamiento y luego una crisis económica estructural que duró dos décadas. Lo económico fue el emergente de una crisis más estructural que refería al final del estado benefactor que había ensayado el batllismo y el neo batllismo. Esta decadencia tendría variadas lecturas donde “la crisis” adquiría múltiples dimensiones (político, moral, social). En 1960 el escritor Mario Benedetti, un intelectual que en los años posteriores explicitó su compromiso con la lucha armada, escribió un ensayo llamado El país de la cola de paja que reflejaba el estado de animo de algunos sectores que interpretaban críticamente esta decadencia como una “ crisis moral” en que vivía el colectivo nacional,“un país de oficinistas” en palabras del autor. 5 Más allá de los aspectos subjetivos el estancamiento y la crisis tuvieron un efecto muy concreto: el crecimiento descontrolado de la inflación que a mediados de los sesentas alcanzó el 60% anual.6La inflación, que no pudo ser controlada por ninguno de los dos partidos tradicionales en el gobierno, tuvo un fuerte efecto sobre la distribución del ingreso perjudicando a los sectores asalariados. Esto promovió el crecimiento de la movilización sindical en reclamo por ajustes que adecuaran el descenso del salario real.

La casa La casa de Juan Paullier 1190 condensa gran parte de los aspectos más problemáticos y complejos de la historia reciente de nuestro país vinculados al pasado de violencia política y terrorismo de estado. La casa creada a principios del siglo XX fue comprada en1963 por un empleado bancario, José Luis Porras a través de un préstamo de la Caja Bancaria.

Desde el Estado las respuestas al crecimiento de la movilización social frente a la crisis fueron el incremento de la represión y el control poli-

5 Para un recorrido de las maneras que la noción de crisis fue utilizada en el período ver MARCHESI, YAFFÉ, 2010.

La trayectoria de la familia Porras es representativa de la vivencia de

6 INSTITUTO DE ECONOMÍA, 1969.

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cial. Un largo proceso que el cientista social Álvaro Rico ha denominado “el camino democrático al autoritarismo”. Entre 1960 y 1963 ciertos sectores del gobierno del Partido Nacional, así como de la oposición colorada emprendieron una campaña anticomunista especialmente enfocada en la amenaza que la revolución cubana representaba. Dicha campaña procuró sin éxito la proscripción del Partido Comunista, la reglamentación de la actividad sindical y la ruptura de relaciones con la Unión Soviética y Cuba. Entre 1962 y 1963 una oleada de grupos extrema derecha desarrollaron atentados contra militantes políticos, sociales, exiliados y judíos. En 1963 y 1965 se decretaron medidas prontas de seguridad que suspendían los derechos individuales a los efectos de reprimir huelgas sindicales del sector público. Dichas medidas habilitaron el encarcelamiento de cientos de activistas sindicales, y en algunos casos el desarrollo de prácticas de tortura sistemática nuevas en el contexto uruguayo.7El golpe de los militares brasileros en marzo de 1964 agregó un componente regional al incremento autoritario alentado desde sectores conservadores uruguayos. Entre 1964 y 1965 se denunciaron dos conspiraciones impulsadas por sectores civiles y militares que buscarían un golpe de estado en Uruguay ante la preocupación por la pasividad del gobierno frente al“accionar comunista”. Dichos grupos tomaban a Brasil como modelo. A la vez el general argentino Juan Carlos Onganía expresaba su preocupación por el riesgo de que la“subversión”tomara el poder en Uruguay. Nueve meses despues instalaría una nueva dictadura militar en Argentina.8 En la visión de ambas dictaduras Uruguay era la principal amenaza dado la fuerte presencia de exiliados y la inestabilidad política del país.9

En 1967 la muerte del presidente Oscar Gestido, y la asunción del vicepresidente Jorge Pacheco Areco incrementó la reacción autoritaria del gobierno contra el movimiento sindical y estudiantil. El 9 de octubre, un día después de la muerte de Guevara, el gobierno decretó medidas prontas de seguridad. Hubieron más de 400 detenidos mayoritariamente vinculados al movimiento sindical y también existió clausuras a periódicos de izquierda. En 1968 las políticas represivas a través del recurso constante de las medidas prontas de seguridad así como del uso de fuertes dispositivos policiales para reprimir las movilizaciones callejeras llevó a la muerte de tres estudiantes a lo largo del año y a una radicalización por parte de sectores sindicales y estudiantiles. Fue en ese contexto que una pequeña organización que estaba intentando desarrollar la lucha armada logró instalarse en la esfera pública. Al decir de uno de los ex líderes del MLN Tupamaros, Eleuterio Fernandez Huidobro, que ha escrito en una suerte de historia oficiosa: Pacheco fue el principal responsable del crecimiento de los tupamaros.10 A fines de los sesentas, en el contexto de una fuerte huelga de trabajadores bancarios duramente reprimida por Pacheco Areco, el propietario de la casa, José Luis Porras, ingresó al MLNT. Fue en ese momento que los tupamaros pensaron en desarrollar alguna estrategia que contuviera la fuerte acción represiva por parte del estado democrático. En el marco de lo que ellos llamaron la estrategia de “doble poder” surgió la posibilidad de crear “cárceles del pueblo”. Dicha estrategia procuraba desarrollar la idea de que paralelamente a la “institucionalidad burguesa” estaba surgiendo una institucionalidad “revo-

7.“?Otra vez la cisplatina?”, Epoca, 06/09/1965, 7. La noticia concitó la preocupación

7 Para un repaso general del período ver: ALONSO, DEMASI, 1986.

del cuerpo diplomático uruguayo en Argentina y Brasil. Ver “Declaraciones General

8 En Amembassy Montevideo “Joint Weeka n. 20” 22/05/1965. 3 en Uruguay, RG

Juan Carlos Onganía”Argentina, Carpeta Confidencial n. 20, 1965. Archivo Minis-

59, Box 2791. NARA, College Park.

terio de Relaciones Exteriores, Uruguay.

9 Ver “Entrevista Ongania-Costa: “Uruguay, un grave peligro”, Epoca, 01/09/1965,

10 FERNANDEZ HUIDOBRO, 1987.

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lucionaria”que interpelaba y en el mediano plazo destruiría al aparato estatal liberal. Las acciones armadas procuraban transmitir esa idea, fundamentalmente a partir de la propuesta de desarrollar formas de justicia revolucionaria. Las cárceles del pueblo eran un elemento fundamental de dicha estrategia, y condensaban simbólicamente la idea de que el doble poder estaba efectivamente funcionando.11 Entre los secuestros que tuvieron un mayor impacto internacional están los de Dan Mitrione, un asesor norteamericano denunciado como asesor en las técnicas de interrogatorio, y el del cónsul de Brasil Aloysio Dias Gomide a cambio de la liberación de presos políticos pero entre el año 1969 y 1972 los tupamaros secuestraron alrededor de 20 personas (políticos, empresarios, y miembros del personal diplomático).

humedad y la falta de luz. También los testimonios expresan el miedo ante una situación que podía culminar con la muerte de los mismos como había sido anticipada por los secuestradores ante la posibilidad del descubrimiento de la cárcel.12 El 27 de mayo de 1972 la cárcel fue descubierta por las fuerzas conjuntas se supone que como resultado de la delación de Hector Amodio Perez, un ex integrante de la dirección de la organización que se había pasado al bando militar. Ulises Pereira Reverbel y Carlos Frick Davies quienes estaban secuestrados en el momento del allanamiento de la casa fueron entregados por parte de los tupamaros. La casa quedó en manos de los militares. Los tupamaros que se entregaron en dicho operativo: Eduardo Cavia (1972-1985), Oscar Bernatti (1972-1984(fallecido en prisión)), Raquel Dupont (1972-1985) y Adriana Castera (1972-1985) asi como los dueños de casa fueron sometidos a la justicia militar y encarcelados hasta el retorno a la democracia en 1985. Bajo dicho procesamiento sufrieron múltiples malos tratos y torturas sistemáticas. Luego pasaron a ser confinados a los diferentes centros de reclusión donde también se practicaban múltiples formas de maltrato. Luego de 1973 Raquel Dupont fue considerada rehén por parte de la dictadura y fue sometida a una situación constante de maltrato por 12 años.

La casa se comenzó a utilizar como una de las“cárceles del pueblo”en el marco de dicha estrategia. Fue así que se realizaron excavaciones en el interior de la casa para construir unas habitaciones subterráneas que funcionarían como la “cárcel del pueblo”. La “cárcel” constaba de 3 celdas de 1,20 x 3 metros, un hall de entrada de 3 x 3 metros donde estaba la guardia, y un pequeño corredor donde se encontraban los retretes para los encarcelados y los miembros de la guardia. Mientras en la superficie de la casa Porras junto con su esposa y sus cuatro hijas continuaba con su rutina cotidiana, en las habitaciones subterráneas vivían algunos de los secuestrados por el MLNT con sus respectivos guardias. Entre otros se sabe que el político Ulises Pereira Reverbel, y el abogado Carlos Frick Davies pasaron por esta cárcel. La cárcel nunca tuvo más de 3 personas que era su capacidad límite. En diversos testimonios los secuestrados declaran haber sufrido las consecuencias del encarcelamiento en un espacio tan pequeño que limitaba la movilidad de los individuos y afectaba su salud debido a la

La“cárcel”fue conservada por las Fuerzas Conjuntas como una suerte de botín de guerra. Su descubrimiento tenía una fuerte carga simbólica ya que interpelaba a la estrategia de doble poder propuesta por los tupamaros. Dicho operativo fue uno de los más significativos de un conjunto de acciones a través de los cuales las Fuerzas Conjuntas lograron derrotar al MLNT en 1972. Por dicho motivo es que durante la dictadura el sótano se mantuvo como un museo interno de la

11 ALDRIGHI, 2007.

12 JACKSON, 1974; PEREIRA REVERBEL, 1999.

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institución militar. La “cárcel del pueblo” se mantuvo inalterada y se agregaron carteles descriptivos de la misma. Además se realizó una entrada para asegurar la accesibilidad a la misma. En el año 1975 en el contexto de la XI Conferencia de Ejércitos Americanos la casa fue visitada por delegaciones extranjeras a las cuales los militares la mostraban como su botín de guerra.

de represión fue la desaparición forzosa el número ascendió a 167 desaparecidos 125 de ellos desaparecidos en Argentina. Aunque gran parte de los desaparecidos se dan afuera de Uruguay, la operación Morgan estuvo vinculada a la mayoría de los 32 casos de desaparición en Uruguay. Hasta hoy no hay ningún lugar de memoria que dé cuenta de dichas prácticas represivas. Mientras uno de los penales usados al inicio de la dictadura se ha transformado en un shopping center de un barrio residencial de la ciudad, los otros dos penales, el penal de Libertad y el de Punta Rieles, han sido reutilizados durante la democracia. En este sentido la casa de Juan Paullier también da cuenta de uno de los principales operativos represivos vinculados al terrorismo de estado sin embargo su reconocimiento en torno a dicha experiencia ha sido escasa. 14

Pero simultáneamente con esta transformación de la cárcel en una suerte de museo restringido a las autoridades del ejército durante la dictadura la casa también tuvo otras funciones. La casa fue utilizada como un centro clandestino de reclusión. Luis Alberto Lacalle ha contado que en julio de 1973 estuvo detenido en dicho lugar. A partir de 1975, unas semanas después de la arriba mencionada XI Conferencia de Ejércitos, la casa fue utilizada como uno de los centros clandestinos de detención en el marco de la operación Morgan desarrollada mayormente contra el Partido Comunista. Según algunos testimonios este lugar fue utilizado como uno de los lugares donde los detenidos eran sometidos a duros interrogatorios, con múltiples sesiones de tortura antes de ser entregados a la justicia militar. Por allí pasaron cientos de detenidos. La operación Morgan operación dejó un saldo de 23 desaparecido, 16 muertos en tortura, un asesinato en Argentina, 6 muertes en prisión y cárcel para cientos de militantes políticos. 13

Invisible en democracia En el retorno democrático los antiguos propietarios de la casa intentaron recuperar la vivienda pero la justicia decidió mantenerla en manos del Ministerio de Defensa. A pesar de los reclamos jurídicos realizados por los dueños anteriores nunca se les devolvió. Durante el segundo gobierno de Sanguinetti se les indemnizó a los propietarios con U$S 5.000 por los bienes que se encontraban en el momento del allanamiento. La existencia de la casa se mantuvo en relativo silencio y no surgieron mayores discusiones sobre el asunto en las primeras décadas.

La operación Morgan es solo un ejemplo del duro saldo de la dictadura en materia de violaciones a los derechos humanos. La modalidad mayor fue la cárcel política. Recientes investigaciones han señalado que la cantidad de presos políticos ascendió a alrededor de 6000 personas durante la dictadura en un país de 3 millones de habitantes. En su mayoría la prisión consistió en procesos prolongados marcados por torturas en el período inicial y luego continuaban los malos tratos psicológicos y físicos a lo largo del período. Otra modalidad importante

13 PRESIDENCIA, 2007.

14 Ver BROQUETAS, 2007; DRAPER, 2014.

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Durante las primeras dos décadas de la recuperación democrática existieron dos narrativas predominantes sobre lo ocurrido en los sesentas y setentas.15 La narrativa predominante de los gobiernos de los ochentas y noventas fue la promovida mayoritariamente por sectores conservadores cercanos al Partido Colorado, el Partido Nacional y los militares que enfatizaban las memorias de la “guerra” de los sesentas y tempranos setentas. En dicha versión la izquierda a través del accionar del movimiento guerrillero, el movimiento sindical había ido en contra de los valores democráticos de la nacion y eso explicaba la reacción golpista de los militares. Existían diferentes opiniones acerca de la actitud de los militares. Para algunos era una reacción justificada por la violencia del ataque de la izquierda a la democracia en los sesentas, para otros había sido excesiva. El punto en común de todos era el cuestionamiento a la izquierda y el movimiento sindical por haber originado los problemas que culminaron en la dictadura. Parafraseando a la “teoría de los dos demonios” de la transición argentina, aquí se podría hablar de la “teoría del demonio”. 16

partidos políticos y total derrota de la guerrilla. Los primeros presidentes de las transición democrática luego de liberar a los presos políticos y proponer una solución política que eliminaba la posibilidad de juicios a los militares se posicionaron entre la reivindicación de la memoria de la guerra y un silencio conciliador. A partir de la administración del Frente Amplio la memoria del “terrorismo de estado” comenzó a tener cierto espacio en las políticas estatales de verdad, justicia y memoria. 17 Aunque algunos sectores conservadores reconocían el carácter brutal de la acción represiva dictatorial preferían llamarse a silencio o discreción sobre el asunto. Argumentando que el silencio era una buena estrategia para cerrar las heridas del pasado. Sin embargo cuando existió posibilidad de criticar a la izquierda, sobre todo en períodos electorales dicho sectores retomaron la crítica. La izquierda y el movimiento sindical en su mayoría mantuvieron un bajo perfil sobre los aspectos más problemáticos de su accionar en los sesentas. En general el período fue presentado como una antesala del autoritarismo y su accionar como una resistencia al mismo. Pero para los sectores conservadores el accionar de la intensa movilización social y de la acción armada había sido la responsable de la caída de la democracia. Frente a esta acusación los activistas de izquierda no retomaban los múltiples análisis de aquel tiempo que daban cuenta de los problemas estructurales (inflación, crisis de los partidos, autoritarismo, corrupción) de la democracia uruguaya y optaban por no discutirla. El particular resultado de estas estrategias narrativas fue que en las luchas por la memoria los sesentas fueron un terreno ganado por los sectores conservadores y las visiones sobre la dictadura fueron un terreno ganado por las izquierdas en el espacio público.

Del otro lado estaba la memoria del “terrorismo de estado” defendida fundamentalmente por los movimientos sociales y la izquierda, y a partir del 2004 por los gobiernos del Frente Amplio que centraba sus denuncias sobre los delitos de lesa humanidad cometidos por la dictadura y evitaban hablar sobre las consecuencias de sus acciones revolucionarias y de protesta social de los sesentas y setentas. El fundamento que sustentaba esta estrategia discursiva era separar ambas experiencias históricas y establecer que no existía ningún tipo de justificación para el accionar represivo de las fuerzas armadas en dictadura en un contexto de prohibición de los movimientos sociales, los

15 MARCHESI, 2001; ALLIER, 2010. 16 Los textos mas sistemáticos de estas visiones son del ex presidente ver: SANGUINETTI, 2008; DE GIORGI, 2014.

17 Ver MARCHESI, WINN, 2014.

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Recién en 1999 en el contexto de la publicación de las memorias de Ulises Pereira Reverbel, uno de los políticos vinculados a Pacheco Areco que había estado secuestrado en la cárcel se volvió a hablar de la existencia de la casa de Juan Paullier.18 Diversas notas de prensa lo mostraban a sus 81 años recorriendo aquel pequeño lugar donde había estado recluido por varios meses en 1972. Pereira Reverbel fue el único que fue secuestrado en dos oportunidades por el MLNT, en 1968 y 1972. El viejo político luego de todo lo ocurrido reivindicaba su comportamiento en aquella década.

P: Con el paso de los años, ?Usted no cree haber cometido excesos? Al contrario. Creo que hice lo que tenía que hacer. Porque en aquella época eran una verguenza los directorios que no se animaban a decir que no a la gremial. Pacheco tuvo que intervenir. P:Se decretaron medidas prontas de seguridad, se militarizaron los servicios, fueron internados en cuarteles los trabajadores de UTE... Exacto. Porque cuando usted va a un cargo lo menos que puede hacer es que hay orden en ese organismo. Que mande el directorio, que fue designado y no lo que quieran los obreros. Aunque tengan razón. Aunque sea justo lo que digan. Yo puse orden.19

Ante la pregunta del periodista: “Porque cree usted que fue el primer secuestrado por los tupamaros en agosto de 1968” respondía: Yo siempre fui muy radical en mis opiniones. Nunca oculté mi ideología. Era íntimo amigo del presidente Jorge Pacheco Areco y ellos decían que yo era el ideólogo retrógrado que daba esa tónica a lo que ellos llamaban también un gobierno retrógrado. Cuando me liberaron recuerdo que me dijeron: Lo vamos a liberar porque se ha comportado con dignidad, pero si usted continua actuando en el gobierno con esas ideas retrógradas, la segunda vez va a ser mucho peor”.

El dirigente histórico del MLNT, en aquel entonces diputado, José Mújica Cordano consultado sobre la reaparición pública de Pereira Reverbel y de su libro decía: “el quid de la cosa era que nosotros queríamos demostrar a aquel gobierno que se sentía soberbio y omnipotente (...) que si metía presa a gente del movimiento popular, nosotros (los tupamaros) también podíamos meter preso a algún poderoso del gobierno (como Pereira Reverbel) (...)”claro, en la guerra se hacen tantas barbaridades que bueno...pero Pereira era lo peor, tenía ese tipo de mentalidad que terminó pudriendo por desgracia a este bendito país”.20

Periodista: Además de su amistad con Pacheco seguramente existían otros motivos. También me achacaban que yo había actuado de una manera totalitaria con los obreros de UTE y que les descontaba sueldos. Lo que es verdad, porque estaban acostumbrados a hacer huelgas y amenazaban con otra huelga si no se les devolvía todo. Entonces conmigo no, de ninguna manera.

El otro líder tupamaro, Eleuterio Fernandez Huidobro, respondía de una manera más defensiva:

19 Entrevista a Pereira Reverbel. 20/08/1999. Revista 3. p. 23. 20 “Memoria de los años de plomo” Luis Casal Beck en El Observador. Fin de Se18 PEREIRA REVERBEL, 1999.

mana. 4/9/1999. p 3-4.

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Largar este libro nada menos que el día de los desaparecidos, a dos meses de las elecciones, es una provocación del gobierno de Sanguinetti, intentando confundir otra vez a nuestro pueblo.21

sicos que en el pasado operaron como piezas claves en la espiral de violencia que desembocó en la destrucción de nuestro régimen de libertades, forma parte del proceso de reconciliación nacional. Se trata de trocar en símbolo de paz aquello que en su momento constituyó un icono bélico. ¿Qué mejor disparador -se nos ocurre- para un proceso de reflexión en torno a la importancia de abonar cotidianamente la convivencia democrática?

Los comentarios de Fernandez Huidobro eran pertinentes ya que la publicación del libro se daba en un contexto electoral que incluso venía siendo alimentado por entrevistas previas realizadas en algunos medios de prensa desde el año anterior. Una de las entrevistas se encabezaba con el titular “Jamás los imaginé gobernando”.22 Luego de la presentación del libro y de las elecciones del 2000, marcadas por el triunfo del candidato del Partido Colorado Jorge Batlle se dejó de hablar de la casa. Sin embargo a partir de ese año cíclicamente volvió a ser mencionada por sectores conservadores como el lugar donde debería realizarse algún sitio de memoria que diera cuenta de las violaciones a los derechos humanos cometidas por las organizaciones de izquierda.

Es por ello que, concretamente, a través del presente proyecto de ley, proponemos abrir a la ciudadanía todo el inmueble que en su momento constituyó la denominada “Cárcel del Pueblo” -donde varios ciudadanos fueron recluidos por el Movimiento de Liberación Nacional -Tupamaros- y que hoy es propiedad del Ministerio de Defensa Nacional, a partir de la creación allí de un “Museo de la Reconciliación Nacional”. Ese inmueble no puede -no debe- perdurar como un virtual “botín de guerra”, cuyo acceso le esté vedado al uruguayo corriente. Supondría continuar reproduciendo una lógica bélica que el país por fortuna ha superado.24

En el 2001 el presidente colorado Jorge Batlle instaló la primera comisión de verdad en la historia democrática del país. Dicha comisión pretendía averiguar lo ocurrido con el destino de los desaparecidos. Aunque el objetivo primario de la comisión era la verdad los discursos y la presentación estuvieron muy marcados por los valores de la reconciliación. De hecho la comisión se llamó Comisión para la Paz.23 Fue en ese clima que en el 2002 el diputado Washington Abdala propuso elaborar un Museo de la Reconciliación Nacional en la casa de Juan Paullier. Los considerandos de su proyecto decían:

Llamativamente en un momento donde no existía ningún museo que evocara a la memoria del terrorismo de estado y cuando lo que la Comisión para la paz estaba investigando era lo referente a las violaciones a los derechos humanos por la dictadura este diputado Sanguinettista proponía un museo de la reconciliación en un lugar que desde su perspectiva estaba asociado al origen de la violencia y narraba una sola de las memorias que estaban en debate en la so-

En tal sentido, la recuperación para toda la ciudadanía de ámbitos fí-

21 Ibid.

24 Museo de la Reconciliación Nacional. Poder Legislativo. Cámara de Represen-

22 “Jamás los imaginé gobernando”. El observador. Fin de Semana. 14/02/1998.p. 5.

tantes. Repartido 203. Abril del 2003. http://www0.parlamento.gub.uy/repartidos/

23 WINN, MARCHESI, 2014.

AccesoRepartidos.asp?Url=/repartidos/camara/d2005040203-00.htm

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ciedad uruguaya. Incluso el autor de dicho proyecto no mencionaba los aspectos asociados con la represión dictatorial que habían tenido el resultado mucho más dramático de la operación Morgan contra el partido comunista. Difícilmente dicha operación podía ser entendida como un gesto reconciliatorio por parte de los sectores de izquierda y de los movimientos de derechos humanos ya que en su lectura el museo no daba cuenta de la memoria del terrorismo de estado. Por dichos motivos la iniciativa fue leída como culpabilizante antes que reconciliadora y descartada por los organismos de derechos humanos y la izquierda.

nizaciones. El proyecto es administrado por la Intendencia y cogestionado por la Asociación de Amigos y Amigas del MUME. El museo fue inaugurado en abril del 2007 en una vieja mansión que perteneció al General Máximo Santos, un dictador de fines del siglo XIX. Cada salón contiene textos, recursos audiovisuales y objetos históricos. En conjunto construye una poderosa representación acerca de la memoria del terrorismo de estado. El corazón de la muestra está dedicado a la prisión política. En dicho salón se afirma que “el modo de represión en Uruguay era el encarcelamiento masivo y prolongado”, se describen los métodos de torturas y la prisión y se incluyen objetos de los presos como artesanías realizadas en la cárcel y las cartas que escribían a sus familiares. La narración que propone la visita y es reforzada por el guía, ignora las dimensiones conflictivas de los tardíos sesentas, enfatiza la “resistencia popular” y descuida la descripción de las políticas del régimen.

En el 2004 el Frente Amplio asumió por primera vez el gobierno. Uno de los cambios importantes tuvieron que ver con la política de derechos humanos en lo que el presidente Tabaré Vasquez llamó la política de memoria, verdad y justicia.25 Entre los logros de los gobiernos de izquierda se puede mencionar la habilitación de una nueva interpretación de la ley de caducidad que permitió juzgar a algunos militares y las investigaciones sobre los desaparecidos que permitieron encontrar restos de desaparecidos. También el desarrollo de ciertas políticas de memoria en el ámbito de la educación y de los archivos.

El MUME es un museo pero no un lugar de memoria ya que no tiene una relación material con el pasado que convoca a reflexionar. En Uruguay son prácticamente inexistentes los lugares de memoria vinculados al período dictatorial. Cuando en el parlamento se estaba discutiendo la transformación del Centro de Altos Estudios Nacionales (CALEN) del Ejército, un lugar que funcionó como centro clandestino de detención, en un lugar de memoria el senador y ex presidente Luis Alberto Lacalle propuso en el parlamento la necesidad de hacer algo con la casa de Juan Paullier. Nuevamente el planteo tenía aspectos comunes con el de Abdala del 2002. Su planteo era reactivo. Frente a la propuesta de hacer algo en el CALEN que estaba asociado con la memoria del terrorismo de estado Lacalle recurría a la“cárcel del pueblo” para hablar de otra memoria. Sin embargo en el contexto de un nuevo gobierno de izquierda las reacciones por parte de la coalición gobernante fueron más abiertas. El entonces diputado Alvaro Vega, cercano al MLNT, respondió:

En los primeros años de la llamada era progresista la discusión sobre la casa quedó en un relativo silencio. Mientras otras iniciativas vinculadas a museos comenzaron a tener cierto desarrollo. Se creó el Centro Cultural y Museo de la Memoria en la órbita municipal. La intendencia municipal de Montevideo a través de sus departamentos de cultura y planificación convocó en diciembre del 2005 a organizaciones sociales y de derechos humanos y al Ministerio de Educación y Cultura para pensar la concreción de un espacio destinado a la memoria. En ese contexto se creó la Asociación de Amigas y Amigos del Centro Cultural y Museo de la Memoria integrada por diversas orga-

25 MARCHESI, WINN, 2014; ALLIER, 2010.

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Frente a estas dificultades el MUME decidió realizar un convenio con la Universidad para que un equipo de historiadores elaborara una Propuesta de guion museológico. A partir de las primeras definiciones se propuso que el guion museológico estuviera concentrado en la historia de la casa. La estrategia narrativa de la muestra consistiría en contar la historia del país a través de la historia de la casa y de quienes la habitaron y sufrieron en los diversos momentos. En este sentido los recursos con los que se sostendrá la muestra serán testimonios personales recogidos en la época o elaborados por un equipo de investigación que trabajaría en torno a la elaboración de la muestra.

“¡Que no se haga ningún problema Luis Alberto! Hacemos dos museos, porque nosotros no tenemos nada que ocultar”.26 A la insistencia de Lacalle, se agregó la de un grupo de extrema derecha llamado Centro de Estudios de Derechos Humanos del Uruguay (CEDDHHU) que participó en las defensas legales de algunos de los militares juzgados y que en el 2012 solicitó al ministro de defensa y ex líder tupamaro Eleuterio Fernandez Huidobro, que le cedieran el local para elaborar un museo que contara la “otra historia”.27 Es asi que en el 2014 la ironía de la historia llevaba a que la “cárcel del pueblo” que había sido expropiada por los militares nuevamente estaba bajo la órbita de los tupamaros, esta vez en su condición de ministro de defensa. Tal vez apresurados por las demandas de los sectores conservadores y por esta situación relativamente irónica fue que el ministro, en el 2014, decidió realizar un acuerdo con la Intendencia Municipal de Montevideo y dar en cesión la casa al Museo de la Memoria.

Apenas se filtró a la prensa la iniciativa generó muchas incertidumbres y angustias por izquierdas y derechas. Por un lado sectores de derecha que suponían que el museo expresaría una visión apologética de la violencia revolucionaria de los sesentas, por otro lado grupos de antiguos militantes del MLNT que expresaban su desconfianza de que un museo de ese tipo banalizara los propósitos de su acción revolucionaria. Un capítulo aparte tiene que ver con algunos de los antiguos propietarios de la casa quienes expresaron sus temores ante una propuesta de ese tipo.28 Llamativamente en todas las intervenciones públicas no hubo ninguna mención sobre el papel de la casa en la dictadura, aunque estaba incluido en el proyecto que salió a la luz pública.

Como ya dijimos dicho museo había sido el resultado de un acuerdo entre la organizaciones de víctimas del terrorismo de estado y la Intendencia de Montevideo. Para el MUME las dificultades de musealizar algunas partes de la historia de la casa eran bastante evidentes. Algunos de los capturados en esta cárcel del pueblo como Pereira Reverbel pertenecían a los grupos que promovieron el autoritarismo en democracia y que lo siguieron apoyando en dictadura. Solo que en esta historia su lugar se invertía. No se trataba de perpetradores sino de víctimas.

26 La “Cárcel del Pueblo”, ¿el otro museo?. 19/09/2010. http://www.lr21.com.uy/ politica/424392-la-carcel-del-pueblo-el-otro-museo

28 Paredes que hablan. 04/11/2014. http://ladiaria.com.uy/articulo/2014/11/pare-

27 http://www.uruguaymilitaria.com/Foro/viewtopic.php?f=35&t=1844

des-que-hablan/

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A modo de cierre: La materialidad de la memoria

la casa genera malestar e incertidumbre. Una realidad material que hace recordar algunos aspectos de un pasado que no se quiere recordar y que ha sido el principal argumento histórico de sectores conservadores para justificar las violaciones a los derechos humanos cometidas en democracia y luego en dictadura. Sin embargo no hay un posicionamiento único sobre cómo enfrentarse a ese malestar. En este período de consulta a diferentes organizaciones de víctimas así como a algunos militantes políticos de los sesentas hemos encontrado visiones encontradas sobre el asunto. Desde aquellos que plantean que no se debería hablar de aquel pasado, y que habría que borrar todo lo relativo a aquellas historia hasta aquellos que lo reivindican y que creen que es necesario dar una discusión pública acerca de las razones que los llevaron a tomar las armas en la década del sesenta. La relación entre memoria y presente se hace evidente también por el hecho de que varios de los involucrados en aquella experiencia hoy son gobernantes y llevan adelante proyectos que guardan notorias diferencias con aquellas propuestas. Sin embargo también dentro de ellos existen visiones encontradas. Para algunos hay continuidades y para otros rúpturas entre aquel pasado y este presente. Por todos estos motivos la casa aparece como un convidado de piedra para varios militantes de izquierda. Sin embargo, algunos logran percibir las posibilidades que la misma puede generar en ampliar el debate sobre el cambio social, así como en entender las causas de la dictadura y erosionar las memorias de la guerra defendida por los sectores conservadores. En alguna medida el silencio de las izquierdas parece terminar ayudando a sostener el último bastión donde la derecha se siente fuerte en su discurso sobre el pasado.

y sus elusivas narativas. Mientras este artículo se está escribiendo el proyecto sobre la casa de Juan Paullier 1190 se suspendió. Las autoridades de la Intendencia Municipal de Montevideo decidieron postergar el convenio con la Universidad hasta que el nuevo gobierno municipal asuma su cargo a fines del 2015. Como hemos visto a lo largo de este repaso la casa con su carga histórica parece complicar múltiples narrativas. La narrativa de la derecha que intenta culpabilizar a los movimientos revolucionarios de los sesentas parece ser la que inicialmente estuvo más interesada en musealizar este lugar. Pero sin embargo cuando la idea de musealizar implicó darle voz no solo a las victimas sino también a aquellos que participaron en los proyectos revolucionarios de aquella época comenzaron a cuestionar el enfoque. La historia de la casa y la que cuentan los militantes que crearon la cárcel evidencia que la democracia en los sesentas estaba en una seria crisis y en una deriva autoritaria que ellos intentaron detener con otras prácticas que también eran autoritarias. Por otra parte la escala de la violencia ejercida (20 secuestrados, un solo ejecutado) por el MLNT así como el trato dado a sus“prisioneros” no guardan ningun tipo de parangon con la violencia ejercida desde el estado durante ese período y mucho menos en el periodo posterior a 1973.Esto en alguna medida erosiona los argumentos que intentan establecer algún tipo de simetría causal entre guerrilla y dictadura militar. Por último el hecho de que la casa fue un centro de detención asociado a uno de los mayores procedimientos represivos durante la dictadura complica aún más los argumentos de los sectores conservadores.

Por último volviendo a la pregunta inicial creemos que la casa también interpela a los discursos más institucionalizados sobre los derechos humanos que pretenden reducir la cuestión de los derechos humanos a un asunto ético descontextualizado de los conflictos políticos y sociales de una época, y proponen soluciones reducidas al mero recono-

Para la izquierda y grupos de derechos humanos la musealización de

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cimiento de la verdad y la justicia. En cierta medida la experiencia de los sesentas y setentas uruguayos muestra que las diferentes formas de violencia política y las violaciones a los derechos humanos cometidas por parte del estado tiene contextos históricos cuya comprensión resulta central para realmente proponerse un Nunca Más de las condiciones históricas que consagraron el horror.

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IMPACTO DE SITIOS DE MEMORIA

Definiciones

EN EL DESARROLLO DE POLÍTICAS

Para algunos, solamente se puede considerar sitio de memoria a un lugar donde sucedieron graves violaciones a los derechos humanos, como los sitios de reclusión clandestina, de tortura o de acciones represivas, que por medio de una acción ciudadana o estatal se convierte en un lugar de convocatoria pública para la rememoración y dignificación de las víctimas.

PÚBLICAS DE MEMORIA – EL CASO DEL CENTRO DE MEMORIA, PAZ Y

Para otros, sin embargo, la condición de sitio de acontecimientos represivos del pasado no es requisito para definir un sitio de memoria, sino que basta con la segunda condición, es decir un lugar físico que se convierte en sitio de convocatoria pública para la rememoración y dignificación de las víctimas.

RECONCILIACIÓN EN BOGOTÁ DÁRIO COLMENARES 1

Si nos acogemos a esta segunda definición más amplia, se pueden incluir no sólo los que fueron lugares de represión, como Villa Grimaldi en Chile o la ESMA en Argentina, sino también una amplia variedad de memoriales construidos para la conmemoración como el Ojo que Llora en Perú, o el Museo de la Memoria y los Derechos Humanos de Chile, el Centro de Memoria, Paz y Reconciliación de Bogotá, o el Parque de la Memoria de Buenos Aires. También caben dentro de esta definición los archivos de memoria, como el caso de Memoria Abierta o los archivos provinciales de memoria, que cumplen una importante función en la promoción de la memoria para el público ciudadano. Para la presente reflexión sobre la incidencia de los sitios de memoria en la conformación de las políticas públicas de memoria por parte de un Estado, es más conveniente adoptar esta última definición, ya que abarca todas las iniciativas construidas en espacios físicos y con acceso público que tienen una capacidad de incidir o desarrollar políticas públicas.

Con la presente reflexión queremos examinar algunas de las formas en que los sitios de memoria, desde su propia creación inciden en la transformación de las políticas públicas de memoria del Estado. En particular, orientaremos este análisis a partir del estudio del caso del Centro de Memoria, Paz y Reconciliación de Bogotá, un sitio de memoria que depende del gobierno local de la ciudad. Para comenzar, es necesario repasar algunas definiciones, o más exactamente establecer las que resultan apropiadas para este caso. En primer lugar es necesario precisar qué entendemos por sitio de memoria. Incluso dentro de la Red Latinoamericana de Sitios de Memoria hay discrepancias en esta definición.

1 Coordenador do Centro de Memoria, Paz y Reconciliación em Bogotá na Co-

En segundo lugar, es necesario establecer aquí qué entendemos por

lômbia.

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políticas públicas de memoria. Definir políticas públicas es relativamente sencillo, si consideramos que son todo aquello que hace o que deja de hacer el Estado, incluyendo la expedición y aplicación de normas, la conformación y operación de instituciones, la construcción de espacios y la celebración de actividades, pero también la omisión y el silencio. Se definen a partir de las acciones de un Estado, aun si éste no declara en ningún documento cuáles son sus políticas públicas. Hasta aquí todo parece bastante claro. Pero cuando se trata de políticas públicas de memoria, la definición se vuelve un poco más difusa, pues no resulta tan simple definir con exactitud la memoria de la que estamos hablando.

guerrillas y condenar solamente las acciones represivas del Estado. Este es un debate que todavía no se ha adelantado abiertamente en la Red Latinoamericana de Sitios de Memoria, ya que por el momento se ha preferido aceptar que las definiciones se aplican de manera diferente a los distintos contextos nacionales. Adicionalmente, esta delimitación de la memoria a hechos de violencia política y de resistencia a dicha violencia tampoco resulta particularmente útil en el trabajo de construcción de memoria histórica con pueblos indígenas, ya que, por lo menos en Colombia, la memoria para los pueblos indígenas abarca conceptos más amplios. Si bien ocasionalmente está referida a hechos de violencia, está fundamentalmente ligada más bien a la resistencia, a la identidad y a la persistencia de la cultura tradicional.

En una primera aproximación, podemos partir de una base común compartida por la mayoría de los sitios de la Red Latinoamericana de Sitios de Memoria, que cuando hablamos de memoria, nos referimos a la memoria de la historia reciente de nuestros países, y más exactamente a la memoria de los hechos de violencia política en la historia reciente, que se evocan en la cultura ciudadana para garantizar su no repetición. Hasta ahí, la definición parecería clara y suficiente. Pero surgen algunos problemas en la práctica al aplicar esta primera aproximación a la delimitación de la memoria comprendida en las políticas públicas de memoria. Cuando hablamos de violencia política ¿nos referimos solamente a la represión del Estado? ¿Y dónde queda entonces la violencia política ejercida contra la población civil por actores no estatales? En general para los miembros de la Red pertenecientes al Cono Sur, la definición de memoria en torno a la represión del Estado para garantizar que no se repita un régimen represivo parecería ser suficiente. De hecho, para algunos de los sitios de memoria del Argentina y Uruguay, los familiares de las víctimas de los hechos de violencia ejercidos por las guerrillas parecerían no entrar en la ecuación. Pero para los defensores de los derechos humanos en varios países de la región Caribe, como Colombia, El Salvador y Guatemala, resulta inadmisible justificar la violencia política de las

Ante este panorama difuso de la definición de la memoria, al menos podríamos establecer una generalización si planteamos que la memoria a la que se refieren las políticas públicas de memoria es aquella referida a la no repetición de las violencias políticas, a la resistencia contra las formas opresivas de poder, y a la reconstrucción y fortalecimiento de las culturas tradicionales. Así, las políticas públicas de memoria vendrían a ser todo aquello que los estados hacen o dejan de hacer en los campos de la cultura ciudadana para la no repetición de las violencias políticas, de la resistencia contra las formas opresivas de poder, y de la reconstrucción y el fortalecimiento de las culturas tradicionales. Con este punto de partida, podemos entonces proceder a examinar cómo los sitios de memoria inciden en la evolución de las políticas públicas de memoria. Aquí cabe establecer una diferencia entre la incidencia de los sitios de memoria de iniciativa ciudadana y aquellos de iniciativa estatal, ya que su capacidad de impacto sobre las políticas públicas difiere significativamente. Los sitios de iniciativa privada tie-

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nen sobre los oficiales la ventaja de la independencia en la definición de sus contenidos y metodologías, pero tienen mayores dificultades financieras para garantizar un impacto público que les permita incidir en las políticas públicas, es decir en las acciones estatales. La Red Latinoamericana de Sitios de Memoria tiene diversos ejemplos de iniciativas ciudadanas que en el pasado han incidido considerablemente en transformar las políticas públicas de memoria, como es el caso de Villa Grimaldi en Chile o Memoria Abierta en Argentina. En el caso de iniciativas cívicas, su capacidad de impacto está directamente relacionada con el desarrollo de lo que podría denominarse la “base de expectativa ciudadana”en torno a la memoria. Esta“base de expectativa ciudadana” es la medida equivalente al mínimo aceptable del comportamiento del Estado para que sus acciones estén revestidas de legitimidad. Esta medida no es unánime entre los ciudadanos, es difusa, ambigua y cambiante, pero al menos se puede constatar que en el campo de la memoria histórica su permanente evolución está influida directamente por las acciones públicas de los sitios de memoria.

la resistencia a las formas opresivas de poder, y a la recuperación y fortalecimiento de las culturas tradicionales. A la luz de esta nueva pregunta sobre el papel de un sitio de memoria estatal en el fortalecimiento de la cultura ciudadana en términos de memoria, podemos analizar en detalle el caso particular de un sitio de memoria desarrollado por el gobierno de la ciudad de Bogotá: el Centro de Memoria, Paz y Reconciliación. El Centro de Memoria, Paz y Reconciliación – CMPR fue desarrollado en medio del conflicto armado colombiano, como resultado de una iniciativa de organizaciones ciudadanas que fue acogida por el gobierno de la ciudad de Bogotá. Para ver más claramente las particularidades de este proceso, es conveniente repasar brevemente el contexto político en el que se desarrolló.

Contexto histórico del caso colombiano

En el caso de las iniciativas estatales también se puede constatar su influencia sobre la “base de expectativa ciudadana”. Sin embargo, su mayor impacto, conforme a nuestra definición de políticas públicas, radica en que todas sus acciones son manifestaciones de éstas. La sola creación de un sitio de memoria por iniciativa estatal es una actuación de política pública, y a partir de su entrada en funcionamiento, las líneas de acción entran a ser inherentemente política pública. En tal sentido, la pregunta no debería ser cómo una iniciativa estatal (ya sea en el nivel nacional o local) incide en las políticas públicas de memoria, sino más bien de qué forma la política pública representada en las actuaciones de uno de estos sitios de memoria va encaminando la acción del Estado en materia de memoria hacia unos principios que entran a jugar con la “base de expectativa ciudadana”, y por lo tanto en una cultura ciudadana de promoción de esa memoria arriba definida, encaminada a la no repetición de las violencias políticas, a

El conflicto armado colombiano se originó hace más de 65 años, y a lo largo de las décadas ha atravesado varias transformaciones. Inicialmente se trató de un enfrentamiento entre el partido liberal en la oposición y el partido conservador que detentaba el poder. Una década más tarde, cuando los dos partidos llegaron a un acuerdo para poner fin al enfrentamiento armado mediante un mecanismo para compartir el poder y alternarse en la Presidencia del país cada cuatro años, las guerrillas liberales disidentes que no se sintieron representadas en los acuerdos se mantuvieron en armas y renovaron los contenidos de sus reclamos con el auge de las guerrillas comunistas que surgieron a comienzos de los años 60, influidas por el triunfo de la revolución cubana. Con la guerra fría, se consolidaron varios grupos armados

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que se diferenciaban según la orientación y el origen de su apoyo internacional, pero que recogían en todo caso el descontento de los reclamos sociales y políticos desatendidos desde décadas atrás.

las armas para acoger la lucha política. Finalmente, en 1990, varios grupos guerrilleros entregaron sus armas y se acogieron a las reformas políticas que se plasmaron en la reforma constitucional del 91. A partir de ahí, sin embargo, los grupos guerrilleros que permanecieron en armas, las FARC y el ELN, se radicalizaron y se escaló el conflicto con recursos financieros del narcotráfico y con la aparición de grupos paramilitares, inicialmente incentivados abiertamente desde el Estado como grupos de autodefensa contra las guerrillas . La población civil se volvió objetivo militar para los grupos paramilitares en su estrategia de control territorial y se generalizaron las masacres. Ante la necesidad de contrarrestar militarmente a los paramilitares, las guerrillas en repetidas ocasiones cayeron en la misma lógica de intimidar a la población civil y desarrollaron poderosas maquinarias bélicas con apoyo del secuestro extorsivo y del“impuesto al narcotráfico”.

El conflicto armado, sin embargo, no era el principal foco de violencia política en Colombia. En la década de los 70, pese a que las guerrillas eran muy débiles como para representar un peligro real de desestabilización del Estado, el gobierno utilizó el conflicto armado como una excusa para emprender una feroz persecución contra los sectores legítimos de oposición, como líderes políticos y activistas cívicos, por medio de métodos violentos, con la desaparición forzada, la tortura y el asesinato selectivo. Mientras en el cono sur se desplegaba el Plan Cóndor para aniquilar la oposición a los regímenes dictatoriales, en Colombia, con apariencia de democracia, el Estado aplicaba tácticas similares para suprimir la disidencia. Si Colombia no participó directamente en el Plan Cóndor, coordinado por las dictaduras militares del Cono Sur, fue debido a que su democracia de apariencia se lo impedía. Pero los militares colombianos desarrollaban sus métodos contrainsurgentes en la misma Escuela de las Américas, y el gobierno facilitaba el libre despliegue de las mismas tácticas, de los consejos de guerra contra la población civil, y de los métodos ilegales de tortura y desaparición forzada sin tener que rendirle cuentas a las instituciones judiciales.

Retos en la creación del CMPR Con estos antecedentes, podemos señalar varias características particulares del caso colombiano que plantean grandes retos en términos de reclamos de verdad y memoria: en primer lugar, hay numerosas víctimas de los paramilitares, de la guerrilla y del Estado. En segundo lugar, las narrativas de la violencia política abarcan varias décadas y una gran diversidad de relatos represados que buscan visibilidad. En tercer lugar, la memoria se debe construir en medio del conflicto, no sobre una etapa finalizada. En cuarto lugar, la memoria de la violencia política en Colombia no es un consenso social contra un régimen depuesto o derrotado.

En las décadas siguientes, la violencia política se agudizó en ambos frentes, tanto del conflicto armado como el de los crímenes de Estado contra la oposición legítima. Durante los 80 entró en juego un nuevo factor desestabilizador: el narcotráfico. Aunque se adelantaron diversos procesos de negociación con las guerrillas para poner fin al conflicto, el sector más militarista del Estado consolidó su poder y adelantó campañas de exterminio como el asesinato sistemático de activistas del partido Unión Patriótica, un movimiento producto de la negociación con el gobierno que buscaba que la guerrilla abandonara

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Considerando estos cuatro elementos diferenciadores del caso colombiano, podemos examinar más en detalle la evolución de las políticas públicas de memoria de este país en la última década, y específicamente entrar a analizar la incidencia del Centro de Memoria, Paz y Reconciliación en estas políticas públicas.

licitaban con insistencia a las diversas instancias estatales la creación de un espacio permanente para la memorialización, financiado por el Estado pero con una visión de completa independencia. A mediados de 2008, la administración de Bogotá decide acoger la iniciativa ciudadana, promovida por varias ONGs, de crear un Centro de Memoria para la dignificación de las víctimas de la violencia política en Colombia y para la construcción de paz a partir de la memoria de la historia reciente. Para su formulación, se convocan numerosas organizaciones de víctimas, académicos y entidades locales, nacionales e internacionales en una junta asesora que pudiera orientar su creación. Ese primer encuentro de organizaciones de víctimas no estuvo exento de retos:

Para comienzos del año 2008, cuando se inició el proceso de creación del CMPR, no existían políticas públicas abiertamente declaradas en términos de memoria histórica. En otras palabras, no existía un contexto normativo por parte del Estado para el desarrollo de una política pública de memoria. Pero si nos acogemos a nuestra definición amplia de políticas públicas, debemos reconocer que existían diversos informes sobre la violencia política en las distintas fases de la larga sucesión de conflictos armados desde mediados del siglo XX, uno en 1962 sobre los años 50, otro en 1987 sobre la violencia en los 70s y los 80s y otro en 1991 como resultado del acuerdo de paz entre el gobierno y la guerrilla del EPL. Además, existían estudios de caso de masacres de tiempos más recientes, comisionados al Grupo de Memoria Histórica por el gobierno, y un informe de la "Comisión de la verdad sobre los hechos del Palacio de Justicia del 6 y 7 de noviembre de 1985" encargado por la Corte Suprema de Justicia.

• Era la primera vez que se sentaban a la misma mesa las organizaciones de víctimas del Estado y de los paramilitares con las organizaciones de víctimas de la guerrilla, ya que hasta entonces se consideraban mutuamente irreconciliables. Poco a poco, sin embargo, se fueron reconociendo en sus principios similares de defensa de los derechos humanos y de defensa de una democracia ampliada, con garantías para disentir. El derecho a la verdad los unía, pues todas las partes compartían la importancia de reivindicar el derecho a la memoria y a resistirse a cualquier forma de opresión que atentara contra la libre expresión y que usara la violencia para conseguirlo.

Paralelamente, sin embargo, existían numerosas iniciativas ciudadanas de construcción de memoria que todavía no habían recibido un respaldo oficial del Estado. Cabe señalar aquí que la sociedad colombiana ha desarrollado a lo largo de largas décadas de resistencia a la violencia política un alto grado de movilización social en torno a los derechos humanos y la construcción de paz, en muchas ocasiones con el apoyo de las agencias de cooperación internacional. En ese difícil proceso de memorialización sin apoyo estatal, sin embargo, existían ya varios sitios de memoria de iniciativa cívica, como el Salón Nunca Más de Granada, y esfuerzos de documentación como la base de datos Colombia Nunca Más. Pero las organizaciones ciudadanas so-

• Otro gran reto fue aceptar el concepto de la reconciliación, ya que las víctimas por lo general rechazaban reconciliarse con los perpetradores. Sin embargo, con el tiempo se aceptó el concepto de la reconciliación entendida como una meta de reconciliación entre los sectores sociales, o entre los ciudadanos y el Estado cuando se dieran las condiciones para recuperar su credibilidad. • En aquel momento el gobierno nacional consideraba que no

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había conflicto armado y que los defensores de derechos humanos eran auxiliadores del terrorismo. Así, la junta asesora sesionaba en condiciones adversas en el ámbito nacional, pero favorables en el ámbito local de Bogotá, una ciudad que desde 1995 había sido administrada por partidos políticos independientes del gobierno nacional. De esta manera, la búsqueda de la paz, uno de los objetivos misionales del Centro, era una apuesta de la administración de Bogotá contrariando la posición de la administración nacional.

desde antes de entrar en operación en un lugar físico. Todas estas respuestas a los retos y definiciones de los modos de funcionamiento, por ser acciones del Estado local, se constituyeron en políticas públicas de memoria de Bogotá a partir de una base participativa. De hecho, el Centro de Memoria, Paz y Reconciliación en uno de sus primeros eventos convocó a las principales organizaciones de víctimas a aportar documentos donde expresaran claramente cuáles debían ser las políticas públicas de memoria para la ciudad.

• El otro gran reto era determinar la narrativa de la violencia que debería prevalecer en el guión museográfico, pues tras muchos años de violencia con narrativas represadas esperando su oportunidad para relatarse, y con tantas visiones contrapuestas, parecía casi imposible ponerse de acuerdo sobre la versión que el Centro de Memoria pondría a consideración de los ciudadanos.

Una vez establecidos los principios fundamentales desde la junta asesora y las organizaciones de víctimas, se inició un largo proceso de asegurar la financiación, establecer definiciones técnicas, realizar el concurso arquitectónico y garantizar la obra para su construcción. Además, este desarrollo a contracorriente de las políticas públicas de memoria de Bogotá produjo impactos en las políticas públicas de otras ciudades. Al poco tiempo de iniciarse el proceso del Centro de Memoria, Paz y Reconciliación, en Medellín, la segunda ciudad de Colombia en tamaño, se inició un proceso similar desde el gobierno local con el desarrollo del Museo Casa de la Memoria.

En respuesta a estos grandes retos, la primera gran conquista fue asegurarle a una institución estatal, el Centro de Memoria, Paz y Reconciliación, un liderazgo y una credibilidad en las comunidades de víctimas de todas las tendencias políticas.

Cuando el edificio del Centro de Memoria estaba en plena construcción, se produjo un cambio significativo a nivel político en el país, pues con el cambio de gobierno del año 2010 se dio un viraje en la posición del gobierno nacional respecto a las iniciativas de memoria y de construcción de paz. Al poco tiempo, se promulgó la Ley 1448 de 2011 (también llamada Ley de Víctimas y de Restitución de Tierras) que creó un Centro Nacional de Memoria Histórica y ordenó la creación de un Museo Nacional de la Memoria Histórica, además de definir un marco para el Estado colombiano en el tema de la memoria. Por ejemplo, una de las principales virtudes de esta norma es que prohíbe que una entidad del Estado promueva cualquier forma de verdad oficial, con lo cual se reafirma la iniciativa establecida en la política pública de

La segunda gran conquista fue la decisión de que el Centro no tendría una colección permanente sino que ofrecería una plataforma para alternar muestras transitorias de todas las verdades ciudadanas que reclamaran ese espacio de visibilidad. Como resultado de este proceso inicial, el Centro de Memoria, Paz y Reconciliación quedó impregnado desde su creación de un carácter participativo y plural, y lo demostró al poco tiempo, antes de la construcción del edificio, cuando el Centro desarrolló numerosas actividades participativas en centros culturales, bibliotecas, universidades y espacios públicos, con lo cual fue posible conocer la dinámica de las organizaciones de víctimas, de derechos humanos y académicas

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memoria de Bogotá de limitar la acción del Estado a simplemente dar visibilidad a las verdades ciudadanas. Esto garantiza que todo proceso de memorialización oficial deba ser participativo en el futuro.

por esta norma, mientras que la prioridad del gobierno local de la ciudad de Bogotá está en la formación ciudadana para la no repetición de violencias políticas.

A partir de la Ley 1448 de 2011 se desarrollaron varios decretos que reglamentaron su aplicación, con lo cual se vio una rápida evolución de las políticas públicas de memoria. Pero lo que resulta más significativo para el desarrollo de estas políticas públicas es la creación de instituciones de la memoria y por lo tanto la evolución de sus correspondientes acciones.

En términos prácticos, esta diferencia no solamente se refiere al marco temporal, sino que plantea diferencias de conceptos de fondo. El CMPR no solamente aborda entre sus temas la violencia conectada al conflicto armado, sino que además abarca otras formas de violencia política como la tortura y desaparición de opositores al gobierno perpetrada desde los 70s, o la violencia contra periodistas y líderes sindicales, que no se puede atribuir expresamente al conflicto armado.

Las consecuencias de esta Ley de Víctimas y de Restitución de Tierras sobre la memoria histórica en el ámbito público merecerían un detallado estudio que nos apartaría del objetivo central de este análisis. Por ahora, es suficiente con registrar algunos de los dilemas que esta Ley plantea a las políticas públicas de memoria que en Bogotá se han desarrollado en el Centro de Memoria, Paz y Reconciliación.

El impacto de la entrada en funcionamiento del edificio del CMPR

En primer lugar, la definición de víctima que establece la Ley 1448 es mucho más restrictiva que aquella que desde varios años atrás utilizaba el Centro de Memoria, Paz y Reconciliación. Esta nueva definición se limita a las víctimas de hechos relativos al conflicto armado sucedidos a partir de 1985. La razón es muy simple, pues como el propio nombre de esta Ley de Víctimas y de Restitución de Tierras lo indica, esta norma ofrece un marco legal para los procesos de restitución que debe adelantar el Estado, que por motivos financieros debe estar limitado en el tiempo y en el alcance. Sin embargo, aunque la Ley establece el principio mínimo obligatorio, siempre es posible que algunas entidades del Estado a nivel local, como el CMPR, desarrollen políticas públicas más garantistas que ese mínimo obligatorio.

En 2012, unos pocos meses antes de la inauguración oficial del CMPR, el gobierno de Colombia inició formalmente los diálogos de paz con la guerrilla de las FARC, con lo cual el tema de la paz se convierte en el epicentro de la política nacional. Por lo tanto, desde la propia inauguración, el CMPR se convirtió en un centro de atención y de convocatoria para todas las iniciativas sociales e institucionales de construcción de paz y de debates en torno a este tema. Adicionalmente, el tema de la memoria histórica de la violencia política se ha convertido en un eje articulador del proceso de paz. Cada día cobra mayor protagonismo la voz de las víctimas que reclama a las partes de la negociación que se comprometan a revelar toda la verdad. Por eso, la aparición del CMPR no podía haber sido más oportuna. Los cálculos iniciales de asistencia de público, que estaban cerca de los 15,000 visitantes anuales, pronto fueron rebasados por una ava-

Estas diferencias se entienden con claridad si formulamos la pregunta “Para qué la memoria?” La Ley 1448 tiene como prioridad la reparación integral a un conjunto de víctimas del conflicto armado definido

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lancha de iniciativas de memoria y paz, llegando a las 60,000 visitas solamente durante el primer año.

Intervenciones en el espacio público

En este contexto, desde que abrió sus puertas al público, el Centro de Memoria, Paz y Reconciliación desarrolló un programa participativo en diferentes líneas de acción, que han fortalecido el impacto de las políticas públicas de memoria en Bogotá:

Con los mismos principios que rigen las exposiciones participativas que se exhiben en el CMPR, se han desarrollado intervenciones en el espacio público de la ciudad por medio de murales, marcaciones de sitios emblemáticos, etc.

Exposiciones participativas

Enfoque participativo de debates, conferencias, foros y celebraciones

El diseño de un guión museográfico con una narrativa desarrollada a partir de una colección permanente representaba muchos inconvenientes, no solamente porque contradecía el espíritu de la Ley que prohíbe expresamente a una entidad estatal promover una verdad oficial, sino porque tras muchas décadas de conflicto armado, con múltiples perpetradores de todas las partes (paramilitares, ejército, guerrilla), y de muchas otras formas de violencia política no directamente relacionada con el conflicto armado (crímenes políticos, desapariciones de opositores del Estado, persecución a periodistas y sindicalistas, narcoterrorismo, etc.), se han represado múltiples verdades ciudadanas que reclaman visibilidad, cada una con sus propios hechos emblemáticos. Por esta razón, el CMPR tomó la decisión de no tener una colección permanente, sino por el contrario ofrecer el espacio para alternar muestras temporales que reflejen las diversas verdades ciudadanas. Así, para establecer el carácter participativo del CMPR, la sala de exposiciones por lo general exhibe muestras desarrolladas en una curaduría conjunta entre organizaciones sociales y un equipo de apoyo técnico del Centro. Esta curaduría participativa representa en la práctica un gran reto metodológico, pero se ha convertido en uno de los sellos de identidad del CMPR, y por lo tanto de la política pública de memoria de Bogotá.

Los eventos que se realizan en el auditorio, en los salones de eventos y en los espacios exteriores frecuentemente son el resultado de solicitudes de las organizaciones, y en los demás casos, cuando las iniciativas son institucionales, por lo general se realizan en alianza con organizaciones sociales, y con instituciones educativas y culturales para garantizar convocatorias amplias. A este respecto, vale la pena señalar cómo, a partir de la sola existencia de un sitio de memoria con amplia participación pública, surgen nuevas iniciativas que vitalizan a las organizaciones y colectivos porque ven en estos espacios la oportunidad para desplegar estrategias de visibilidad. Así, el CMPR ha cumplido una función positiva en promover el crecimiento de la “base de expectativa ciudadana” no sólo en torno a la memoria sino en el campo de la construcción de la paz.

Comunicación participativa El CMPR ha desarrollado diversos talleres de fortalecimiento de estrategias comunicativas de organizaciones y colectivos de víctimas donde pueden desarrollar capacidades para la creación de piezas comunicativas, producciones audiovisuales, programas de radio y en general

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Lecciones aprendidas

herramientas para ganar visibilidad. En esta línea de empoderamiento de organizaciones vale la pena resaltar los talleres de oficios de la memoria (“costurero de la memoria” – telas y retazos que cuentan historias,“sabores y saberes” con relatos a partir de cocina tradicional, “cartongrafías” a partir de la técnica del grabado y de la creación artesanal de libros) pues ofrecen un escenario para compartir historias de violencia, con el carácter reparador que esto representa, pero a la vez desarrollan en los participantes diversas capacidades para producir materiales expresivos y comunicativos que facilitan la divulgación de sus relatos.

El rápido posicionamiento del Centro de Memoria, Paz y Reconciliación a lo largo de poco más de dos años de existencia es el resultado de una confluencia de circunstancias, pero sin duda la principal fortaleza de este proceso es su carácter participativo, que ha permitido que un significativo sector de la ciudadanía se haya apropiado de este espacio y lo haya podido aprovechar para el fortalecimiento de la construcción de memoria y la promoción de la paz. Este sector de la ciudadanía no sólo comprende organizaciones de víctimas, sino ONGs, instituciones escolares, universidades, centros de investigación, medios de comunicación, comunidad internacional, ciudadanos individuales y hasta entidades estatales.

Herramientas educativas

El proceso, sin embargo, no ha estado exento de dilemas, algunos de ellos todavía por resolver. Para concluir este análisis podemos mencionar algunos de ellos:

EL CMPR ha desarrollado materiales de apoyo para las instituciones educativas en el campo de la memoria y los derechos humanos, como el mapa Bogotá Ciudad Memoria, un kit pedagógico, talleres de capacitación para radios escolares, etc. El principio que guía el desarrollo de estos apoyos es su desarrollo participativo, tanto de los contenidos como de sus formatos.

El principal reto quizás es la estructura de dependencia respecto al Estado. Aunque en principio esto parecería una fortaleza porque permite forjar día a día la política pública de memoria en Bogotá, en el fondo constituye una gran debilidad potencial porque la estabilidad de sus actividades depende de la voluntad política del gobierno de la ciudad. Un viraje radical en la voluntad política del gobierno local de Bogotá podría terminar modificando significativamente la capacidad de acción del CMPR. Por esta razón, una tarea urgente es modificar su estructura institucional para que no dependa de una oficina de la administración local, sino que tenga un estatuto de independencia, y a la vez conserve un apoyo financiero estatal.

Archivos de historia oral El CMPR ha emprendido la recolección sistemática de testimonios de víctimas de la violencia política para la conformación de una base de investigación, pero también en algunos casos orientados a su uso público en producciones radiofónicas, textos y materiales audiovisuales cuando las autorizaciones de uso lo permiten.

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Otro reto viene a ser la tensión que existe entre las políticas públicas de asistencia a víctimas y las políticas públicas de memoria. El CMPR en sus planteamientos estratégicos define que su público objetivo no son las víctimas sino todos los ciudadanos, donde por supuesto están incluidas las víctimas como ciudadanos de particular interés. Esta definición estratégica reivindica el valor de la memoria y de la construcción de paz mucho más allá de su simple papel en la reparación integral a las víctimas, que más bien haría parte de los programas asistenciales del Estado. Las implicaciones de esta tensión no se limitan a una simple separación de funciones del Estado entre dos oficinas con misiones diferentes. En la práctica, existe un riesgo de que las expectativas de asistencia por parte del Estado instrumentalicen los ejercicios de memoria. En el caso particular de los testimonios, existe el riesgo de que se adulteren para obtener beneficios asistenciales si no está claramente delimitada esta separación de funciones. En el caso del CMPR, esto es particularmente complicado porque el Centro depende directamente de la oficina responsable de la atención a víctimas. En las actividades con comunidades étnicas, por ejemplo, la expectativa de algunos líderes de comunidades de que el CMPR pudiera incidir sobre ayudas directas de apoyo financiero a estas organizaciones en programas de reparación integral ha introducido impedimentos para que se puedan desarrollar algunos de los programas de memoria.

mas de la memoria en Colombia exigen un paradigma diferente. Si bien es importante desmontar las narrativas hegemónicas de “verdad oficial” promovidas desde algunos sectores del Estado y de los “negacionistas”, hay que hacerlo con una señal de advertencia, ya que este“antidiscurso”, cuando se emite desde el Estado, aunque sea local en oposición al Estado de nivel nacional, también adquiere una pequeña pretensión de hegemónico, de “verdad oficial”, con su correspondiente dosis de olvido. Así sucede cuando omitimos la memoria de los pueblos indígenas porque los simplificamos clasificándolos de campesinos en lucha de clases, sin admitir que ha sido un conflicto entre formas de pensamiento, o cuando nos centramos únicamente en los crímenes de Estado y de los grupos patrocinados por el Estado. Si la memoria se hace para la no repetición, el sentido crítico hay que ejercerlo en todas las direcciones. Esto puede parecer extraño, y hasta políticamente incorrecto, pero se puede ver más claramente con un ejemplo más alejado de nuestro contexto racional, por ejemplo en países de Europa del Este como Polonia, o la antigua RDA donde el discurso antinazi de los regímenes comunistas servía de pretexto para justificar su propia represión política. En América Latina, donde pareceríamos estar lejos de tales riesgos conceptuales, es fundamental basar la cultura de la no repetición en el equilibrio de verdades ciudadanas. Así, la única salida posible es promover las VERDADES CIUDADANAS (en mayúsculas y en plural) en permanente debate, mediante un espacio participativo. El reto, en realidad, está en determinar cómo proceder para alternar las distintas visiones, y en partir de una definición amplia de memoria, no sólo en relación a la violencia, sino incorporar en ella la resistencia e identidades colectivas.

Otro reto, esta vez conceptual, consiste en la delgada línea de separación entre la construcción de memoria en una entidad estatal y la posible promoción de una verdad oficial. El modelo de lucha de la “memoria de la resistencia” contra la “memoria hegemónica” que un sector significativo de la izquierda da por hecho sin cuestionar está basado en modelos de memoria de países donde hubo un régimen opresivo depuesto, donde además es fácil señalar a un solo responsable estatal en el pasado, y se puede contar con que las víctimas fueron todas oprimidas por un mismo enemigo ya derrotado. Pero los dile-

Otro reto conceptual se refiere a las tensiones entre el mercado del arte, la política y la comunicación. Cuando hablamos de memoria, lo fundamental en los medios de expresión es la comunicación, la visibilidad que se le da a un reclamo de la sociedad o de las víctimas. Para la presentación pública de las formas de arte, siempre habrá la

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necesidad de elaborar en su aspecto formal, de fortalecer su capacidad simbólica, alegórica, metafórica. El propósito es crear ese “gesto” donde el espectador siente que está viendo una idea como si la viera por primera vez. Pero en esa búsqueda estética, el arte como forma de comunicación está amenazado por dos clases de estereotipos: por el mercado del arte que impone modas, y por las demandas de la política que le reclama promocionar ideas fijas. En algún lugar intermedio está la necesidad genuina de comunicar de las comunidades y las organizaciones, y el apoyo técnico que les puede ofrecer el CMPR. Finalmente, para recuperar la esencia de nuestra reflexión sobre la influencia de un sitio de memoria sobre el desarrollo de las políticas públicas de memoria, vale la pena regresar sobre un hecho fundamental, que se aplica a cualquier sitio de memoria, bien sea de carácter público o de iniciativa ciudadana: el simple hecho de que un sitio de memoria entre en funcionamiento necesariamente provoca eventos y debates, lo cual a su vez hace que surjan nuevas iniciativas ciudadanas que seguramente no se habrían materializado de no existir esta convocatoria permanente, este espacio para el diálogo y el debate. Para el caso del CMPR, otro tanto sucede con los foros y debates, con las muestras de las organizaciones que se desarrollan para las exposiciones, y con los materiales de divulgación que han confluido en el CMPR a lo largo de estos dos años de operaciones. Esto eleva ese mínimo aceptable de la “base de expectativa ciudadana”. Un sitio de memoria, estatal o ciudadano, dinamiza los debates de la sociedad, y estos a su vez reclaman el desarrollo de políticas públicas de memoria. En esa influencia de los movimientos ciudadanos sobre la esfera pública van avanzando las políticas públicas de memoria como consecuencia del aumento de la “base de expectativa ciudadana”, como lo expresaba una colega de un sitio de memoria de Buenos Aires, cuando explicaba que en Argentina pasaron del “Nunca Más” al “Nunca Menos”.

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ANEXOS

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POLÍTICAS PÚBLICAS DE MEMÓRIA NA ARGENTINA, BOLÍVIA, CHILE, PARAGUAI, PERU E URUGUAI

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