Histórias do Interior

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Expediente TEXTO: ORIENTAÇÃO: Leonardo Branquinho Cíntia Siqueira REVISÃO/EDIÇÃO: DIAGRAMAÇÃO: Leonardo Branquinho drigo Moura Fernandes Bruno Vieira

Ro-

FOTOGRAFIA: PROJETO GRÁFICO: Igor Gabriel Rodrigo Moura Fernandes Leonardo Branquinho Bruno Vieira ARTE DE CAPA: Rodrigo Moura Fernandes IMPRESSÃO GRÁFICA: Craft Comics Books

Branquinho, Leonardo. Histórias de Interior / Leonardo Branquinho, 2018, 64p. Orientadora: Cíntia Siqueira Projeto Experimental – Centro Universitário Patos de Minas. Faculdade de Comunicação Social, Patos de Minas, 2018. 1. Morro do Cabeça 2. Livro Reportagem 3. Contos 4. Unipam I. Centro Universitário Patos de Minas. Faculdade de Jornalismo.II. Histórias de Interior

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SUMÁRIO Prefácio

Adão O Feiticeiro Cruz dos Osssos

A Morte dos Amantes Vingança

POSFÁCIO Fotos

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Para Heli Porfírio e Helena Branquinho, que me contaram tantas e tão boas histórias

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Tudo é escrita, ou seja, fábula. Mas para que serve a verdade que tranquiliza o honesto proprietário ? A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, literatura. (Júlio Cortázar) Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay. (Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem). (Ditado espanhol)

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PREFÁCIO

Os contos presentes em Histórias de Inte-

rior evidenciam acontecimentos mágicos e absurdos que transcendem a realidade concreta. O

mais interessante de tudo, é que por mais absurdos e insólitos que os fatos narrados nas histó-

rias possam parecer - e de fato são absurdos – eles são percebidos dentro da narrativa como sendo, as vezes, corriqueiros. A magia e a fantasia são

componentes de um cenário permeado de bele-

za e encanto. A realidade e a ficção se fundem, formando uma amálgama capaz de impressionar, tanto pelos fatos narrados, quanto pela

forma como os personagens reagem as situações as quais são submetidos. As seis histórias vão de

tramas cômicas e engraçados a enredos trágicos

e macabros. O que permeia o livro é, sobretudo a imaginação.

Todas as histórias presentes neste livro

foram narradas por pessoas lúcidas, que alegam

se tratar da “mais pura verdade”. E em momen-

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to algum se ousará duvidar da verossimilhança

de tais histórias, por mais cético que seja o leitor. Histórias de Interior não é necessariamente

um livro ficcional, mas poderia muito bem ser. Os relatos presentes aqui se um pouco lapidados dariam um belíssimo e pungente livro de contos

de caráter fantástico. Aliás, é bom que se diga: histórias e lendas populares foram os pilares do

realismo mágico. Um dos mais importantes mo-

vimentos literários da América Latina. Gabriel Garcia Márquez, um dos principais expoentes

da literatura latino-americana contava em entrevistas que as histórias sobre pessoas mortas

que apareçam para os vivos; sobre casas mal assombradas foram preponderantes para desenvolvimento de sua escrita.

Curiosamente a cultura popular sempre

foi baseada na narrativa oral. As histórias são contadas durante conversas, os relatos fluem e na imensa maioria das vezes obedecem a uma

ordem cronológica de tempo e espaço. Porém é importante lembrar, que tais histórias foram muito pouco escritas. Não há muitos livros so-

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bre histórias populares. E por isso mesmo foi fundamental registrar essas histórias através desse pequeno livro reportagem.

Entre as histórias mais interessantes

deste pequeno livro destacam-se algumas: Adão o Feiticeiro é um conto macabro capaz de deixar intrigado qualquer um que considere o relato. A

história de um bruxo que anda pelas ruas com

um pano amarrado ao rosto e diz ter poderes mágicos foi relata a mim como sendo verídica. O

personagem em questão de fato existiu. Cruz de Ossos relata uma trapalhada feita por um grupo de amigos e motivada pelo medo. E A Morte dos Amantes é que pode se vista como uma triste e

trágica história de amor. Uma peça de Shakespeare do cerrado mineiro.

Histórias de Interior é livros simples,

mas ao mesmo tempo provocante e belo. O leitor

que conseguir adentrar o cerne desses relatos não sairá incólume.

Leonardo Branquinho, 29 de novembro de 2018

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Adão o Feiticeiro

Quando o Adão chegou ao pequeno arraial

de Quintinos muitos se perguntaram de onde vinha aquele sujeito de feições e trejeitos peculiares. O andarilho, vindo de terras desconheci-

das, trazia consigo uma mulherzinha pequena e de feição entristecida, e mais dois moleques pe-

quenos, sardentos e ostentando pares de pernas finas como varas de assa-peixe. Os dois partilha-

vam de tamanha semelhança física que, logo se imaginou terem vindo ao mundo no mesmo dia.

Recém chegados, a família de andarilhos

se instalou em uma antiga choupana já corroí-

da pelo tempo e que diziam as más línguas, era

assombrada pela alma-penada vagante do um antigo morador. Um tal Lalado Cunha, pistoleiro-de-aluguel muito requisitado em vida para a

resolução de pendências e desavenças entre os

coronéis do distrito de Quintinos. Lalado Cunha falecera envenenado por uma viúva de um dos

homens que tivera a vida ceifada pelo revólver calibre 38, cano-longo, usado por Lalado em suas

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execuções. A partir de então, muitos relatavam

ter visto o fantasma do velho pistoleiro parado à porta da choupana.

A velha casa, situada em frente a praça

central, na rua Padre Queiróz era tida pelos mo-

radores do bairro como a mais antiga de todas as casas de Quintinos. Construída de madeira lavrada a machado e enchó. Os esteios e baldrames

eram de aroeira, o travamento de peroba rosa, os caibros de angico, as ripas de palmito-do-brejo,

o telhado de telhas francesas enfumaçadas, o assoalho de tábuas corridas, enormes portais de

madeira de bálsamo e portas envelhecidas e já corroídas de cedro. As paredes da velha choupana, feitas de adobe e os porões obscuros remontavam a um passado luxuoso e pujante no distrito de Quintinos.

Nos primeiros dias no arraial, alguns há-

bitos peculiares do forasteiro Adão acabaram por chamar a atenção dos moradores de Quinti-

nos. O estranho hábito de andar sempre com um lenço amarrado na cabeça, cobrindo a boca e o

queixo deixava a todos intrigados. Logo come-

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çou a se falar que o andarilho não possuía boca.

Adão trabalhava como lavrador em fazendas, na colheita de milho e feijão, culturas predomi-

nantes na região à época. Quando lhe ofereciam comida nas fazendas, Adão recusava com veemência. Jamais foi visto comendo em público.

Depois de algum tempo descobriu-se ou-

tra peculiaridade do forasteiro: Adão era formado nas artes da feitiçaria e da macumba. Diziam

as más línguas, a boca pequena que Adão tinha parte com o Demo, e tendo vendido a alma passara a dominar as artes de encantamento exis-

tentes na feitiçaria. Em sua casa, dizem que guardava o diabinho da garrafa, pequeno demô-

nio nascido de um ovo e criado por um humano pactário. Depois de tais descobertas Adão passou

a ser conhecido em Quintinos como “Adão Feiticeiro”.

Mas a história mais intrigante e assus-

tadora aconteceu quando Adão feiticeiro foi

morar na fazenda de um conhecido e rico fazen-

deiro da região de Quintinos, Olegário de Matos. Contratado como peão e capataz da fazenda,

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Adão executava todas as funções de lida no campo. Um certo dia, Olegário de Matos descobriu

que, em suas costas, Adão cortava as macaúbas

da fazenda para comer. Enfurecido diante da

descoberta o fazendeiro não poupou Adão de sua brutalidade, aplicando-lhe um couro que o deixou em água-de-sal, com o lombo quente durante dias. Depois de apanhar, ainda padecendo

as dores das pancadas, Adão rogou uma praga a

qual Olegário de Matos haveria de lembrar para

sempre “Canalha, desgraçado! Você pagará caro

pelo que fez. Nunca mais em sua vida haverá de sentir prazer”.

Alguns dias depois Olegário de Matos foi

diagnosticado com um severo câncer peniano, que levou a amputação do membro. O aconteci-

do comprava os poderes obscuros de Adão. Era de fato um feiticeiro, e como tal passou a ser trata-

do a partir de então. Olegário de Matos viveria por mais vinte e cinco anos com uma sonda, até sua morte em 2016.

Requisitado por muitas pessoas do dis-

trito para trabalhos de feitiçaria e macumba,

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Adão logo abandonou o ofício de capataz e lavra-

dor, passando a viver unicamente da bruxaria. Recebia diversas incumbências como: desfa-

zer casamentos, encantar cobra cascavel, obter prosperidade financeira. Adão feiticeiro utiliza dos mais macabros rituais de feitiçaria; costurar boca de sapo, sangrar galinha preta, “firmar” vela vermelha por sete dias. Durante anos ficou

conhecido como o mais proeminente feiticeiro de Quintinos.

PARTE II

Um dos moradores de Quintinos, cha-

mado Leopoldino era fascinado pelas artes da feitiçaria. A muito procurando por alguém que

pudesse lhe ensinar os truques rituais práticos do feitiço, Leolpodino ouvira falar de Adão Feiticeiro. Depois de criar coragem, Leopoldino

resolveu procurar pelo feiticeiro e se oferecer

como aluno para iniciação nas práticas de bruxaria. Para convencer Adão Feiticeiro, ofereceu-lhe uma razoável quantia em dinheiro que

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seria pago após a iniciação. Diante da proposto o feiticeiro se viu seduzido e decidiu aceitar, impondo uma condição fundamental: o primeiro

feitiço de Leopoldino deveria ser praticado com

algum familiar ou pessoa próxima. O primeiro feitiço de um iniciado só será aceito pelas forças espirituais se praticado com alguém da família,

explicava Adão Feiticeiro. Reticente, mas entusiasmado com a ideia de tornar-se feiticeiro,

conhecedor das práticas ocultas e obscuras, Leo-

poldina decidiu aceitar a sugestão do feiticeiro.

A escolhida como vítima recebedora do trabalho foi Maria Aparecida, filha mais velha de Leopoldino e conhecido no arraial por sua beleza.

O trabalho consistia em colocar o nome

de Maria Aparecida, anotado em um pequeno

pedaço de papel, grafado com sangue de galinha dentro da boca de um sapo e costurar. Seguindo as orientações de Adão Feiticeiro, o aprendiz realizou todos os passos do ritual. Ainda ressabiado pelo executado com a própria filha, Leopol-

dino foi acalmado pelo feiticeiro que lhe disse que o encanto poderia facilmente ser desfeito,

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quando terminada a iniciação. Dentro de poucas se-

manas a jovem moça começou a padecer dos efeitos demoníacos do feitiço. Surgiam por todo o seu corpo calombos e nódulos avermelhados, de tamanho re-

gular parecidos com picadas de insetos, que quando espremidos expeliam agulhas de costurar. As dores

eram insuportáveis devido as pontas das agulhas que penetravam a pele de Maria Aparecida. Levada

pelo pai a diversos hospitais o resultado era sempre o mesmo: nada de anormal havia no corpo da moça.

Não existiam explicação racional e tangível

O emblemático e macabro caso de Maria Apa-

para o surgimento dos nódulos.

recida tornou-se logo conhecido em todo o arraial de Quintinos, e chegou a ser tema de uma matéria publicada revista semanal O Cruzeiro. Uma das mais importantes revistas brasileiras à época.

Ocorre que, chegado o momento desfazer o feitiço

perpetrado contra a filha, Leopoldino caiu em cama

doente e logo morreu, deixando Maria Aparecida refém do malévolo encanto para sempre. Assim se concretizou mais um mal feito de uma da figura mais

macabra a habitar o distrito de Quintinos, Adão feiticeiro o aprendiz do Diabo. O homem sem boca.

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Cruz dos ossos

Naquela noite de lua cheia, Sinésio, Zé do

Nelson e Nilsinho munidos de varas de bambu, anzóis, caniço e da velha carabina flobe calibre

36 partiram em direção ao córrego para uma noite de pescaria. O córrego fundo era conhe-

cido pelos bagres graúdos que eram capturados nas suas águas. Em noite de Lua clara a chance

de se dar bem na pescaria aumenta considera-

velmente. Os peixes ficam alvoroçados e sobem para o leito do córrego atrás de comida.

Ansiosos para chegar logo a margem do

córrego, os três amigos passaram pela mata es-

cura – um imenso capoeirão de mata virgem fechada, que poucos aventureiros haviam adentrado até então – e pela cruz dos ossos, sem desconfiar que naquela noite viveriam uma experiência medonha e aterrorizante, reservada à

aqueles que insistem em vagar em noite de lua cheia, contrariando os pais.

Sinésio, Zé e Nelsinho eram conhecidos

no arraial onde moravam pela coragem que ti-

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nham. Sempre que era noite de lua cheia os três

saiam rumo ao córrego do paiolão para pescar bagres e matar pacas. Não se importavam, nem temiam os relatos de ataques de onça-parda sofridos por muitos pescadores que frequentavam

o córrego durante a noite. Os três chegavam a

passar horas e as vezes viravam a noite pescando.

Mas essa noite, após algumas horas de

pescaria sem muito sucesso, haviam capturado

apenas meia dúzia de chorões, e por consenso unânime decidiram regressar ao arraial. No caminho de volta, entre brincadeiras e conversa

fiada, os três amigos já no princípio da embriaguez provocada pelos inúmeros goles de cacha-

ça-de-alambique trocavam passos pela estrada a fora.

Após algum tempo de caminhada, pró-

ximo da entrada da mata escura, de longe os

três avistaram um ser debruçado de joelhos em frente a cruz dos ossos. A distância de vários me-

tros não permitia saber do que se tratava, e na

iminência do susto, no temor de que pudesse ser

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uma criatura de outro mundo (Assombração), Sinésio atemorizado e num impulso repentino

sacou a carabina e desferiu um tiro certeiro contra o peito da criatura, que num tombo monumental caiu estirada no chão. Estava liquidada.

Mas o mais surpreendente para os três amigos

ainda estava por vir. Ao se aproximar da cria-

tura caída no chão, perceberam que na verdade,

quem jazia morta, ensanguentada no chão era a Narcisa Louca. Uma pobre coitada idosa, que padecia de problemas de sanidade mental e tinha o costume de vagar pelas noites. A velha Narcisa

ficara louca ainda criança e desde então criara o hábito de perambular pelas ruas feito alma penada em busca da redenção.

Ao ver o corpo da velha Narcisa estendido no

chão sem vida, Sinésio entrou em pânico. Em súbito desespero a única reação dos três foi par-

tir em retirada. E, a passos largos os três amigos evadiram em disparada para a casa de Sinésio, no arraial.

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PARTE II

O corpo da velha Narcisa já frio, foi levado para a

igreja do arraial e estendido em cima de um ban-

co para ser velado. As pessoas que passavam pela

igreja ficavam encantados ao ver o corpo miúdo e franzino da velhinha, ainda sujo de sangue, es-

tendido em cima do banco, ao lado de uma coroa de flores. O corpo foi enterrado na tarde do mesmo dia no cemitério do arraial.

A cruz dos ossos foi lembrada por muitos

anos como o local do fatídico acidente que viti-

mou a pobre Narcisa. Sinésio e os dois amigos só voltariam a pescar no córrego muito tempo

depois. Mas a história do assassinato acidental

da Narcisa louca acabou imortalizada em versos

escritos e contados por Nilsinho, que transcrevo aqui: v

“Fomos dar uma pescada no córrego do paiolão Na ida passamos por baixo

Na volta passamos pelo chapadão

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Topamos com uma mulher

Pensamos que fosse assombração O Sinésio deu um tiro nela Ela caiu e rolou no chão.

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Fazenda Morro do Cabeça

A fazenda Morro-do-Cabeça ficava a cer-

ca de quatro milhas de distância do distrito de

Quintinos. Situada ao pé de uma montanha de

elevadas altitudes e encostas íngremes que lhe conferiam uma certa nebulosidade e lhe dava

a alcunha de montanha mágica. A fazenda era conhecida por suas extensas hectares de terras

planas e férteis, onde eram cultivadas milho e feijão.

O proprietário da fazenda Pedro Barbosa,

homem rico e de posses de terra na região, mo-

rava em uma fazenda vizinha com a mulher e os filhos. Na fazenda Morro-do-Cabeça fora construído um grande barracão de tabuas corridas,

ripões e coberto com telhas francesas que servia para hospedar os peões durante o período da colheita. A enorme extensão das lavouras de milho

e feijão exigia a contratação de grupos de até 15 peões para realizar o trabalho da colheita.

Durante o outono daquele ano de 1971,

um novo grupo de peões chegava a fazenda mor-

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ro-do-cabeça para o início da colheita. O grupo era formado por jovens rapazes com faixa etária

entre 18 e 24 anos. O trabalho na lavoura era pesado e exigia muita força de quem o praticava.

Entre os peões recém chegados a fazenda

estavam os irmãos Hélio e Heli, Juca e Sermino,

conhecido por sua coragem. A primeira semana trabalho foi intensa devido a proximidade das

chuvas que ameaçavam a lavoura. Em apenas cinco dias várias sacas de milho e feijão foram

colhidas e armazenadas no barracão.as o trabalho a ser feito pelo grupo ainda era grande.

A noite na fazenda era marcada por con-

versas, regras a cachaça-de-alambique e nacos

de carne assada e próximo às 22:00 horas todos deitavam, para descansar e recuperar as energias para o dia de intenso de trabalho que nasceria dentro de algumas horas.

Era semana de lua cheia, e segundo os co-

mentários dos moradores da região as noites de lua reservavam a aparição da besta fera ceifado-

ra da carne e do sangue dos justos: o lobisomem. Muitas histórias sobre o lobisomem eram con-

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tadas na região de Quintinos. Dizia-se que eram homens, que tendo deitado em adultério com

as suas comadres eram amaldiçoados e passavam a ser portadores da chaga maldita, saindo

todas noites de lua cheia, metamorfoseados em

uma espécie de “cachorrão” para cumprir sua

penitência: percorrer sete cemitérios antes do primeiro cantar do galo, sobre pena de ficar não regressar a forma humana, caso o rito não fosse cumprido.

Na fazenda morro-do-cabeça eram fre-

quentes as aparições do lobisomem. Sempre que era noite de lua clara podia-se esperar pela aparição da besta-fera. Feroz e muito agressivo o

lobisomem é monstro que tem como hábito sair pelas fazendas comendo porcarias se confrontado por alguém pode até atacar. Segundo rezam

as lendas antigas, alguém que for mordido pelo

lobisomem e não encontrar a cura em menos de vinte e quatro horas, também será herdeiro da maldição.

Naquela última sexta-feira do mês de no-

vembro, os peões já haviam terminado o traba-

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lho árduo na lavoura após banho descansavam em volta da churrasqueira, enquanto aguarda-

vam pelo jantar. Todos sabiam da existência do lobisomem. A maioria acreditava, mas o assun-

to era sempre velado como algo que não podia ser dito. “As coisas do outro mundo não devem ser chamadas”, diziam.

Como a maior parte dos peões acreditava

na história do lobisomem, depois das oito horas da noite ninguém mais saia no terreiro. As portas do barracão eram fechadas cautelosamente

e travadas com retrancas de madeira. Os mais

medrosos costumavam dormir dentro das padiólas, afixadas nas travas do teto do barracão. Naquela noite de sexta-feira, por ironia do destino,

um dos que estavam deitados em uma padióla no teto era justamente Sermino. O mais corajoso da turma.

Passava da meia-noite quando surgiram

os prenúncios da chegada do filho do demônio que corre pelos matos. Instantaneamente a cachorrada pegou a latir, alvoroçados como se

anunciassem a chegada da besta-fera. E de re-

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pente a “latição” cessara repentinamente. Então começou a se ouvir, ao redor do barracão, o ronco

como de um cachaço e o barulho estridente dos pedaços de tijolo mastigados pelo lobisomem.

Dentro do barracão todos os peões, sem

exceção, acordaram com o alvoroço dos cães. A apreensão era generalizado. Os que conheciam a história e sabiam das aparições do lobisomem

acontecidas na fazenda morro-do-cabeça, logo

perceberam do que se tratava. Não podia ser

outra coisa. Podia-se ver o semblante do medo estampado no rosto até mesmo dos mais corajosos, como Sermino. Era evidente que presenciavam um ser que não pertencia a esse mundo.

Do lado de fora, a besta maldita rondava

o barracão a exprimir grunhidos e roncos horripilantes. Parecia estar com muita fome, ansioso

para devorar algo ou alguém. O assombro provocado pela presença do bicho podia ser sentido na pele.

Em determinado momento, enquanto

o lobisomem continuava sua algazarra do lado

de fora do barracão, Sermino, ainda deitado

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no alto, na trava do teto, movido pela coragem que tinha resolver espiar do lado fora. Com habilidade escalou a trava e retirou uma telha do teto, o suficiente para que conseguisse colocar o

corpo para fora do barracão. Ao olhar para bai-

xo, Sermino teve diante dos olhos uma imagem tão horripilante e assombrosa que lhe faltaram

as palvras, e depois de alguns minutos de paralisia emitiu palavras de incredulidade “ Que trem

mais feio do mundo. Não é um cachorro. Não é um porco. É uma mistura de cachorro e porco”.

O horror no rosto de Sermino evidenciava a mostruosidade vislumbrada. E, num ímpeto de

coragem súbita, desceu ao chão, apanhaou uma foice amolada e decidiu enfrentar a fera. Mas

o impulso de coragem logo se esvaiu e Sermino preferiu não arriscar.

A ronda do Lobisomem durou duas e lon-

gas horas, até que já próximo as duas horas da madrugada o bicho bateu em retirado sob os latidos alvoroçados dos cães, que dessa vez pareciam anunciar sua partida.

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A descrição feita por Sermino no outro

dia era de um híbrido de porco e cachorro - mais

parecido com porco - um enorme cachaço quase do tamanho de uma mula. A pelagem longa e

acinzentada e a cabeça com focinho de porco e

uma enorme boca cachorro, com dentes afiados. A descrição feita por Sermino não se parecia com a de nenhum animal habitante das matas em volta da fazenda. Só podia mesmo ser o lobisomem.

Diziam as más língua no em Quintinos

que o lobisomem do Morro do Cabeça seria Gon-

çalinho. Um pequeno fazendeiro que morava

próximo ao morro com a família, criava vacas e galinhas e cultivava feijão. Gonçalinho era alvo das suspeitas e fofocas dos moradores do arraial por já ter sido visto saindo de casa em direção á

mata altas horas da noite. Era um homem pacato e esbanjava cordialidade, apesar de ser meio

de lua, como diziam alguns. Não por acaso era acusado de atividades de licantropia.

O certo é que nunca se soube de fato quem

era o lobisomem do morro-do-cabeça. Suas apa-

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rições na fazenda continuaram frequentes e os

peões tiveram que aprender a conviver com o horror das noites de lua cheia. Muitos se quer

tinham coragem de sair do lado de fora do bar-

racão para fazer as necessidades fisiológicas básicas. A maioria resolveu dominar também

dentro das padiólas, nas travas do teto, onde era mais seguro.

O mais estranho nas aparições do Lobiso-

mem do morro-do-cabeça é que nunca nem um animal da fazenda foi devorado pela fera. Nem

as galinhas, nem os porcos, nem os cachorros. As aparições do amaldiçoado, da besta, da fera consistiam basicamente em um terror imensurável nos hóspedes da fazenda morro-do-cabeça.

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A morte dos amantes

Naquela noite de verão, sob a luz da lua

cheia e a claridade das estrelas os dois deram-se as mãos como a muito tempo não ousavam,

e no fundo daquela grota rodeados pelas árvores e observados apenas pelos vagalumes, os dois se

entregaram de corpo e alma ao amor. E sob a trilha sonora do canto dos bacuraus os dois se amaram intensamente sem nenhum pudor. Foram

tantos beijos loucos, gritos roucos e gemidos alucinantes que, entretidos no amor José Wil-

son e Maria Inês nem se quer puderam perceber que eram alvejados. O disparo duplo e repentino

dizimou, de súbito, os namorados. A euforia e a paixão dos dois esvaiu-se, se expirou o fervor e paixão e após o duplo estampido restaram ape-

nas o silêncio da noite e o correr do sangue sob o calor dos corpos empapados de suor dos amantes. Morreram como dois passarinhos.

De todas as moças do pequeno arraial

de Quintinos, nenhuma era tão bela e graciosa

como Maria Inês. Os cabelos compridos, negros

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como a noite e de textura lisa. A pele morena e

delicada, os olhos cor-de-mel e a boca de lábios grossos e carnudos. Despertava desde cedo o interesse de todos os rapazes do arraial que se jo-

gavam aos seus pés na esperança de ganhar sua companhia nos bailes e festas do arraial.

José Wilson e Maria Inês se apaixonaram

desde a primeira vez que se olharam. Ele era um rapaz alto e de boa aparência. Os dois juntos formavam um belo casal. Mesmo com certa resistência o namoro foi aceito desde o início pela

família da moça. O pai de Maria Inês, homem sistemático e modos rústicos aceitara o namoro

impondo aos dois algumas restrições; uma delas manter a honra de Maria Inês intacta até o casamento, como era a praxe nas famílias tradicionais e que tinham um nome a zelar.

Os encontros entre José Wilson e Maria

Inês aconteciam sempre na casa da moça e sob

a tutela da mãe. A família Ferreira era conheci-

da em Quintinos pela valentia de seu patriarca José Ferreira e do filho mais velho João, considerados dois dos melhores atiradores do arraial. A

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fazenda da família Ferreira ficava localizada na encosta de um morro cercado de lendas e mistérios, conhecido como Morro-do-cabeça. Uma

das famílias mais tradicionais de Quintinos os Ferreiras se dedicavam a criação de gado e ao cultivo de lavouras de milho e feijão.

José Wilson era o filho mais velho de uma

família composta de cinco irmãos. O primogênito era o filho mais querido do pai, um fazendeiro rico chamado Chico Basílio que era proprietário de uma extensa fazenda também próxima ao

Morro-do-cabeça. As centenas de cabeças de boi

pertencentes a Chico Basílio conferiam a família Basílio importância e tradição na redondeza.

Chico Basílio fora o primeiro fazendeiro

da região a comprar um jipe em uma época onde

os veículos utilizados em Quintinos era em sua

ampla maioria os de tração animal. A opulência e a riqueza da família Basílio foi fator determi-

nante para que João Ferreira aceitasse - depois de certa relutância - o namoro da folha com José Wilson.

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Mas apenas o contato do toque das mãos

do casal de namorados fazia brotar o mais íntimo e recôndito desejo e fazia arrepiar os pêlos

dos braços. Quanto mais o tempo passava mais

aumentava o desejo dos corpos. Até que um dia, não suportando mais a vontade de se entregarem ao amor, os dois começaram a se encontrar

as escondidas ao cair da noite nas grotas próximas a casa de Maria Inês, onde os dois se amavam com toda intensidade da juventude.

Os encontros furtivos entre José Wilson

e Maria Inês nos fins de noite, quando todos na casa da moça se encontravam no mais profundo

sono. Maria Inês, que dormia acompanhada da irmã mais nova Fátima, se levantava com toda a

cautela do mundo e na ponta dos pés saia a pas-

sos curtos de casa e rumava para a grota funda, situada próxima fazenda onde José Wilson a esperava. E no meio da grota, o amor feito as pressas, o furor e o frenesi dos corpos compensavam

os riscos enfrentados pelo jovem o casal. Os dois de fato de amavam.

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Por mais incrível que pareça o pai de Ma-

ria Inês nem se quer desconfiava de seus encontros noturnos com José Wilson. Os dois namorados sabiam do risco que corriam, mas o desejo de se amarem tornava inevitável os encontros. O

velho João Ferreira mergulhava no mais inten-

so e profundo sono, de maneira que os amantes contavam com a tranquilidade da noite para os seus encontros.

Ocorre que uma certa noite as coisas não

acontecem como planejado pelo casal de namorados. José Wilson chegou a casa de Maria Inês

por volta das 8:00 da noite e após fazer cortejar a moça por algum tempo, como de costume despediu-se de todos na casa, e montado em sua mula cor pelo-de-rato - um presente do pai - partiu

em direção a sua casa. A despedida, no entanto, não passava de simulação, pois os dois namora-

dos haveriam de se encontrar naquele mesmo dia, no fim da noite, na grota funda, como de costume.

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Ao chegar em casa José Wilson tirou a sela

da mula, guardou as arreatas e esperou ansio-

samente pela hora do encontro com sua amada. Quando o relógio da sala badalou a meia-noite José Wilson saiu em direção a grota onde em alguns minutos se encontraria com Maria Inês.

Na casa da família Ferreira a moça percebendo que já passavam da meia-noite se levantou da cama com o mínimo cuidado para não acordar a irmã e partiu ao encontro de José Wilson.

Naquela noite, uma sexta-feira de lua

cheia José Wilson trazia consigo uma capa-de-chuva de feltro que serviria para forrar o chão

onde os dois se entregariam ao amor. Já era uma hora da madrugada quando os dois de encon-

tram e escoltados pelos vagalumes adentraram na grota funda. Porém, na casa da família Ferreira algo não previsto por Maria Inês aconteceu: Fátima acordou de repente e ao perceber

a ausência da irmã na cama desatou a chorar e a soluçar de angústia. Os gemidos da menina acordaram o velho Ferreira que caminhou em

direção ao quartos das folhas para saber o que

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acontecia. Ao chegar no quarto, João Ferreira

teve um súbito espanto ao perceber a ausência da filha mais velha. O pranto da pequena Fátima foi acalentado pela mãe enquanto o velho Ferreira enfurecido acordava o filho José para irem em busca de Maria Inês.

Ao saírem do lado de fora da casa os dois

ouviram vindo da grota os gemidos e sussuros de José Wilson e Maria Inês. Em um repente de fúria e incredulidade pai e filho não tiveram dúvidas. Os dois passaram as mãos nas espingardas

Winchester calibre 36 e rumaram em direção a grota. Ao adentrarem a grota funda a imagem

do jovem casal nu, na consumação do desejo presenciada por pai e filho foi tão afrontosa e into-

lerável que não tiveram dúvidas: em um súbito repente alvejaram José Wilson e Maria Inês com

tiros certeiros. Pela noite afora se ouviu o estampido seco dos tiros desferidos com o casal de namorados.

Aquela sexta-feira de lua cheia ficaria

marcada para sempre como o dia da maior tragédia já acontecida nas redondezas de Quinti-

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nos. A imagem dos dois corpos nus estirados ao chão já sem vida ficaria presente no imaginário de todos aqueles que presenciaram a cena.

Desesperada e agoniada a mãe de Maria

Inês passou o resto da noite, até o amanhecer ao lado dos corpos na grota até o amanhecer.

Chico Basílio soube da tragédia por in-

termédio de seu irmão Artur Basílio. Diante da notícia da morte do filho o fazendeiro, como que

incrédulo se pôs a gemer como se também esti-

vesse a ponto de morrer. Depois da morte de José Wilson o fazendeiro Chico Basílio se entregaria

a uma profunda desilusão pela vida e em pou-

cos meses também morreu de desgosto. A mula de estimação de José Wilson passou a emitir um

relincho melancólico e triste semelhante a um uivo. A família Basílio angustiada decidiu doar a mula para a igreja de Água Suja como presente a nossa senhora da Abadia. João Ferreira e o filho

José passariam quase oito anos na prisão da cidade vizinha, Carmo do Paranaíba.

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Depois de sair da prisão João Ferreira de-

cidiu vender a fazenda e se mudou com a família

para Firminópolis - GO. A tragédia seria lembrado para sempre em toda região de Quintinos.

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Vingança

A grande vingança da família Quintinos

contras os Barcelos teve início logo que se descobriu o defloramento da jovem Ana. A rixa de família que durou muito tempo terminou em

longo banho de sangue. Uma verdadeira carnifi-

cina. E não tivesse o conflito se encerrado por do força do cansaço dos homens das duas famílias, provavelmente um dos lados teria sido extinto.

Em briga de família o que mais vale é a honra do nome. E muitas vezes essa honra é lavada com o sangue.

A família Quintinos era conhecida como

uma das mais tradicionais e importantes do distrito de Quintinos. Proprietário extensas fazen-

das de gado na região, viviam em antigo casarão situado no centro do arraial. Família grande –

como a maior parte das famílias da época – era

composta por sete pessoas: Nelson Timóteo e Ilda Quintinos os patriarcas da família; os fi-

lhos Lico, Ernande, Norita, Sueli e a caçula Célia. Uma família muito unida e formada nós moldes

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antigos; não toleravam desaforos apesar de da cordialidade para com as pessoas do arraial.

A família Barcelos também oriunda do campo, era assim como os Quintinos, bastante numerosa, nove membros ao todo. Os patriarcas da família Joãozinho Barcelos e Maria tiveram sete

filhos: Pedro, José, Luiz, Paulo, Hélio, Antônio e Wilson. Família abastada, eram proprietário de

terras onde cultivavam milho, feijão e café. No arraial de Quintinos eram conhecidos pela valentia dos homens da família.

A relação entre as duas famílias fora sem-

pre amistosa. Em muitas ocasiões os homens das duas família chegaram a dividir a mesma

mesa de bar. Ernande, Lico, Pedro e Luiz chegaram inclusive a jogar pelo mesmo time de fute-

bol, o Quintinos, formado por jovens moradores do arraial.

Ocorre que com o passar do tempo Wilson

Barcelos e Sueli começaram a trocar olhares nos

bailes e festas do arraial. Em pouco tempo começaram e se encontrar as escondidas. O temor da

reação do pai – homem severo – fazia com que

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Sueli preferisse manter a relação com Wilson oculta. E por vezes se encontravam nos cantos mais escondidos do arraial, onde longe dos olhos de todos podiam namorar em paz.

Wilson Barcelos não era flor que se cheira,

sua fama de don Juan corria solta em todo o arraial. Dizia-se que gostava de desvirginar moças

inocentes para depois deixá-las. Era tido como o filho problema da família Barcelos, chegado a

mesas de bar e a jogatina. Demonstrava desinteresse pelo trabalho e principalmente pelos estu-

dos. Por essas por outras a relação com Sueli era prenúncio de mau agouro para a moça.

Depois de vários encontros as escondidas,

convencida por Wilson a moça resolverá entregar a honra a tal amante. E depois de vários encontros foi consumado o amor dos dois.

Mas como é característica dos pequenos

arraiais de interior, a fofoca logo veio a tona. Di-

ziam os ociosos, a boca pequena de Quintinos que a filha mais velha da família Quintinos não era mais moça. Os cochichos e fuxicos pelo arraial

diziam que Sueli Quintinos havia sido deflorada

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pelo boêmio Wilson Barcelos. Quando a história chegou aos ouvidos de Nelson Timóteo a reação

do fazendeiro foi colérica. Mas podia acreditar no que ouvia. A primeira coisa a fazer foi tirar

satisfações com a filha pra saber se a história

procedia e depois de colocar a moça contra a parede obteve dela a confissão confirmando o que

se falava pelas bocas pequenas do arraial: não era mais virgem. E o responsável pela seu defloramento tinha sido Wilson Barcelos. Exasperado e colérico o fazendeiro mal podia conter sua

fúria, deu uma boa coça em Sueli que a deixou em água-de-sal por três dias. E depois de reunir

os filhos homens decidira se vingar do canalha deflorador de moças, Wilson Barcelos.

Neste momento começou então a guer-

ra entre as famílias Quintinos e Barcelos. Uma

guerra que deixaria um enorme rastro de sangue no arraial. Depois de reunir os dois filhos;

Lico e Ernande, Zé Timóteo distribui a cada um uma espingarda carregada e exigiu que os dois cobrassem a honra ferida da irmã. Os irmãos saíram a procuro de Wilson Barbosa e o encon-

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traram no bar-da-praça, acompanhado de José Barbosa seu irmão mais velho. Com sangue nos olhos Lico e Ernande partiram para cima de

Wilson, que por sua vez tentava se esquivar. Mas

quando Lico empunhou a espingarda carrega-

da para desferir contra Wilson o tiro certeiro, José Barbosa atravessou na frente e foi alvejado

pelo disparo certeiro e letal no peito. O sangue

do rapaz jorrou em bicas no chão do bar. Depois de atirar, os dois irmãos Quintinos fugiram em disparada.

O corpo de José Barbosa foi velado e enter-

rado naquele mesmo dia e a tristeza fez se presente todo o tempo durante o velório. A mãe do rapaz, Maria chorava aos prantos e berrava de

incredulidade. Joãozinho Barbosa, o patriarca

da família movido de ódio e rancor prometia

vingar-se dos Quintinos. E a vingança foi ar-

quitetada naquela mesma noite, assim que o

corpo do filho morto foi enterrado. Luiz, agora o filho mais velho, foi o encarregado de cobrar o sangue do irmão. E passados três dias da morte de José, partiu para fazer vingança contra os

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Quintinos. Armado com um revólver calibre 38 cano longo, Luiz se escondeu nas imediações da

casa da família Quintinos a espera do momento certo para atacar. Em pouco tempo eis que

surge a oportunidade, Nelson Timóteo apareceu na sacada da casa, fumando um cigarro de

palha. Luiz não pensou duas vezes e acertou um tiro certeiro, mortal na cabeça do patriarca da

família Quintinos. O velho NelsonTimóteo bem

conseguiu ver do que morria, caiu duro no chão. O estampido do tiro fez sair a rua todos os moradores, curiosos para saber o que acontecia. Ilda

Quintinos chorava aos prantos sob o corpo ensanguentado do marido.

A morte do líder da família Quintinos foi

um choque para todos os filhos. A partir daquele dia a única luta de todos seria a fim de exter-

minar completamente a família dos assassinos. Acabar com a raça dos Barcelos era o mais im-

portante. Lico e Ernande os homens da família agora, fizeram o juramento de matar um por dos Barcelos. Seria a melhor forma de vingar a morte do pai.

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Lico se encontrou com Antônio na praça do arraial de Quintinos, uma semana depois do assas-

sino de seu pai Nelson Timóteo. Depois de uma breve troca de insultos, Lico não teve dúvidas, sacou o revólver e descarregou todo o tambor

no peito de Antônio Barcelos. O sangue jorrado

foi tanto que empapou toda a roupa do jovem Barcelos e fez uma enorme poça no chão. E assim ocorreu o terceiro assassinato decorrente

da rixa entre as famílias Quintinos e Barcelos. Houve choro, tristeza, lamento e juras de vingança, assim como nas outras mortes. Mas o último assassinato seria com certeza o mais trágico e triste em razão da inocência da vítima.

A jovem Célia tinha apenas quinze anos

e era a filha mais nova dos Quintinos. Era tida como a xodó da família. Uma menina bonita e alegre. Saia de casa todas as tardes para passear

na praça. É bem verdade que depois do início da

briga com os Barcelos e principalmente depois

do assassinato do pai, ficara reclusa em casa. Mas passado alguns meses, lá estava a jovem na rua a passear. Foi nessa tarde que aconteceu

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a última morte. Ao ver a garota a passear sozinha, Ernande ainda na ânsia de vingar a morte

do pai fez aquilo que chocaria todo o arraial de Quintinos. Em um lance de fúria desferiu con-

tra a moça um tiro de 38 na testa que acabou por desfigurar todo o belo rosto de Célia. Foi a morte

mais dolorosa, a que mais causou comoção e levou a família Quintinos a um luto eterno.

A briga das famílias acabou depois do

assassinato da garota Célia. Mas o maior mistério continuaria a existir. Muitos moradores

de Quintinos passaram a relatar ter avistado o

velho Nelson Timóteo montado em seu cavalo alazão, a galopar pela entrada do arraial a fora

nas noites de lua cheia. Em certa noite dois ami-

gos, Zizinho e João Preto andavam em direção a fazenda onde moravam quando de repente sentiram o vulto de um cavaleiro passando por eles

em alta velocidade. Ao reparar na figura do ca-

beleireiro perceberam se tratar do velho Nelson Timóteo já morto. A incredulidade tomou conta dos dois, que não sentiram medo por serem dois

homens de coragem. “Você viu o que eu vi?” dis-

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se Zizinho para João Preto. “Sim, é o Nelson Ti-

móteo montado a cavalo” “e vem voltando, olha”. João Preto já se preparava para cortar o fantasma do cavaleiro no chicote, quando foi repreendido pelo amigo “Não faça isso, é demônio”.

Durante muitos anos as aparições do

patriarca da família Quintinos continuaram

a ser relatadas por pessoas que andavam pelas

estradas próximas a Quintinos nas noites de lua cheia. Para a muitos a explicação se dá pelo fato de que alma de Nelson Timóteo não encon-

trou descanso e por isso continuava a vagar. Era uma alma penada. Outros acreditavam que o ve-

lho fazendeiro andava com pressa a cavalo para

guardar o túmulo da filha caçula assassinado durante a guerra com os barcelos.

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Posfácio

Se alguém me dissesse “Eu não acredito

nas bruxas” eu logo responderia “Elas existem”.

Escrever este livro que colocou diante de uma situação dicotômica. Estive emparedado entre meu ceticismo racionalista e a descrença nas

coisas de outro mundo (características que me são tão presentes) e meu genuíno interesse pelo

universo da fantasia e das lendas, manifesto em

mim desde a infância. Eu, assim como a maioria das pessoas nascidas no interior de Minas,

ouvi desde cedo histórias, lendas e relatos contados pelos mais velhos sobre criaturas como:

lobisomens, assombrações, mulas-sem-cabeça e

fantasmas. Essas histórias povoaram meu imaginário durante muito tempo e foram, de certo

modo, o meu primeiro contato com algo parecido com a literatura.

Durante o trabalho de produção deste pe-

queno livro ouvi diversos e relatos e histórias. E

preciso registrar que em momento algum tratei os relatos que me foram feitos como sendo men-

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tiras, absurdos ou frutos da ausência de lucidez. O meu objetivo não era comprovar a veracidade

e racionalidade do fatos narrados por meus en-

trevistados. Essa não era minha preocupação. Durante as entrevistas me dispus a ouvir todas

as histórias como se fossem a mais da mais pura verossimilhança. Acredito que uma das características fundamentais do bom repórter é a

ingenuidade; acreditar em tudo que é relatado

pela fonte é uma condição sine qua non para o trabalho jornalístico. E, neste caso, preciso confessar que acreditei piamente em tudo o que me

foi contado durante as entrevistas que deram

origem às histórias que compõe este livro. O es-

forço de embarcar na fantasia e normatizar os absurdos já havia sido aprendido por mim desde que tomei contato com as obras do autores latino-americanas do chamado realismo mágico,

como: Gabriel Garcia Márquez, Júlio Cortázar

e Borges. De sorte, que não me foi difícil aceitar os relatos sobre eventos e seres de outro mun-

do, que destoam da realidade concreta presente no quotidiano como sendo possíveis e perfeita-

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mente encaixáveis em um contexto de realidade.

O interior de Minas Gerais é uma região

que abriga grande riqueza de histórias, lendas e causos. A cultura popular dessa região é de uma

beleza e importância ímpares. A histórias que

ouvi e as paisagens e cenários que por onde pas-

sei durante a produção do livro me encantaram a provocaram em mim a mais pura contemplação. Tudo que vi e ouvi nesses quase três de tra-

balho para produzir Histórias de Interior são retratos de um realismo mágico de raiz. A forma

como as histórias foram contadas me impres-

sionou mais ainda. As narrativas eram sempre muito sólidas, independente de quem fosse o contador. Não havia tergiversações, imprecisões ou mesmo contradições. Todas as histórias,

sem exceção, obedeciam a um critério severo de

relato, como se discorressem sobre a mais pura verdade. Algumas histórias eram narradas de forma engraçadas, com ares de comicidade. Em

outras era possível evidenciar o clima tenso de

apreensão nos olhos do contador. Mas todas,

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sem exceção me foram contadas com todo prazer e boa vontade do mundo.

O escritor argentino Júlio Cortázar con-

siderava que toda escrita era fábula e que toda verdade possível de ser invenção, ou seja litera-

tura. Seguindo a linha de raciocínio de Cortázar – com a qual concordo em absoluto – considero também que a vida sem um pouco de fantasia e

fabulação torna-se por vezes em enfado. É preciso fantasiar, inventar e acreditar em um outro

plano de realidade que comporte nossos sonhos e até uma pequena dose delírio. A histórias que

compõe este livro servem não apenas para serem apreciadas como meros relatos sobrenaturais. Quem se dispuser a penetrar no mais profundo e recôndito plano das narrativas

irá se deparar com uma forma de percepção da realidade que é capaz de explicar a vida e sua complexidade. O leitor não sairá incólume se o fizer.

O pequeno distrito de Quintinos, cenário

da maioria dos contos, fundado no ano de 1901

é um lugar pacato e tranquilo, como são todas

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as pequenas cidades e comunidades de interior. Seu passado é recheado de histórias, causos e

lendas. Muitos de seus moradores mais antigos guardam vivas em suas memórias relatos de um

período mágico na história do pequeno distrito. As histórias presentes neste livro foram acontecidas nas décadas de 1960 e 1970. Época onde

toda a região do Alto Paranaíba era pouco habi-

tada. A maior parte da população vivia na zona rural e não havia os meios tecnológicos existentes hoje. O único aparelho eletrônico que se co-

nhecia era o bom e velho rádio de pilhas. Talvez seja esse um dos motivo para o interior de Minas Gerais ter abrigado até hoje tantas histórias.

Gostaria de agradecer ao meu pai Heli Porfírio e ao meu tio Hélio, que se dispuseram a me contar tantas e tão boas histórias. Sem eles este livro não teria saído do universo das ideias. Os contos

presentes neste livro causaram em quem os ler diferentes tipos de reação: algumas são engra-

çados, cômicos e outros são trágicos e macabros. Mas todos sem exceção são histórias de qualida-

de inquestionável. Me esforcei ao máximo para

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transcrever todos os relatos que me foram feitos de forma a não perder a essência as peculiari-

dades de cada uma. Por isso em alguns contos fiz questão de detalhar as cenas até mesmo com certo lirismo. Espero ter conseguido retratar

de forma fiel todas as histórias que foram contadas durante o período de produção deste pe-

queno livro. Espero também ter conseguido dar aos personagens descritos nas histórias a carga de profundidade necessário e ao mesmo tempo retratar de forma fiel suas características e pe-

culiaridades. Histórias de Interior é, acima de

tudo, uma tentativa de resgate do que a de mais belo e encantador na cultura popular de nossa região.

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A praรงa do distrito de Quintinos, cenรกrio de vรกrias histรณrias

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Igreja de Quintinos

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Distrito de Quintinos cenรกrio das histรณrias contadas neste livro reportagem

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s

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