SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
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Comida & Identidade SEMINÁRIOS
2010 2011 2012 2013
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Índice 08
Apresentação Josias Albuquerque
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A Missão do Seminário Comida & Identidade Ana Morais
11 12 24
1º Seminário Comida & Identidade (2010) - Um olhar sobre Pernambuco: açúcar Raul Lody
38 40
2º Seminário Comida & Identidade (2011) - Comida é patrimônio Raul Lody
50
3º Seminário Comida & Identidade (2012) - Companhia das Índias na história e identidade da culinária de Pernambuco Raul Lody
52 62
Presença holandesa na culinária pernambucana Enrique Rentería
74
4º Seminário Comida & Identidade (2013) - Cultura e civilização mediterrânea e suas projeções na cozinha pernambucana Raul Lody
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Alimentação e cultura na área mediterrânea: das adaptações locais aos pratos transnacionais F. Xavier Medina
94 101 105
Muito além do azeite de oliva, das azeitonas e do queijo de cabra Raul Lody
Açúcar: história, civilização e cultura Carlos Roberto Antunes dos Santos O açúcar nunca amargou: a Confeitaria Colombo e sua doçaria Renato Freire
A cozinha mexicana como fenômeno cultural José N. Iturriaga
Cia. das Índias e a cozinha pernambucana... Pois, nem sempre, é o que assim lhe parece Raul Lody
O Seminário Comida & Cultura migra para prazeres da mesa pernambucana Raul Lody Uma ação educativa na área de gastronomia Sandra Regina Marinho de Oliveira SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
Apresentação
C
aros leitores,
Nossa gestão tem a satisfação de publicar “Seminário Comida & Identidade (2010/ 2011/
2012/ 2013), que reúne textos especialmente produzidos por diferentes especialistas de renome, nacional e internacional, das áreas de: gastronomia, história, antropologia, mercado da alimentação, chefes, entre outros profissionais voltados ao entendimento plural da comida enquanto um importante tema de base social e econômica.
A publicação é uma obra que atesta os resultados desses seminários promovidos pelo SENAC
Pernambuco. Todos os Seminários estão voltados à cozinha pernambucana nos seus diferentes cenários culturais, gastronômicos e patrimoniais.
Assim, a publicação assume seu papel didático para atender alunos, profissionais da comida, e
demais interessados pela alimentação; e também valoriza a nossa identidade regional como um fator significativo para o desenvolvimento de Pernambuco.
Espero que todos tenham uma excelente leitura!
Josias Albuquerque Presidente do Sistema Fecomércio/ Sesc/ Senac
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A Missão do Seminário Comida & Identidade O
Senac é uma instituição de educação profissional reconhecida no Brasil pela sua história de responsabilidade e compromisso com a sociedade. Desde a sua fundação em Pernambuco, em 1946, inúmeros foram os projetos realizados em prol da qualificação profissional e da inovação pedagógica, especialmente na área de gastronomia, campo ao qual a regional de Pernambuco tem forte expertise.
O Seminário Comida & Identidade foi criado com o objetivo de promover a discussão da
identidade e a valorização da gastronomia brasileira, da cultura dos pernambucanos à mesa e da história da culinária pernambucana. A primeira edição do Seminário Comida & Identidade do Senac foi realizada em 2010. Devido à proposta inovadora de contextualizar a comida levando em consideração a cultura e a história de um povo, valorizando a gastronomia como patrimônio cultural a partir de estudos e pesquisas sob o enfoque da antropologia na alimentação, este evento ganhou destaque no cenário pernambucano e chegou, em 2013, à sua quarta realização.
Para definir a temática do Seminário Comida & Identidade, é realizada todos os anos uma
análise criteriosa pela equipe do Senac e pelo curador deste evento em todas as edições, Raul Lody, tendo em vista definir uma abordagem de grande relevância e interesse para a gastronomia local. Em 2010, o 1º Seminário Comida & Identidade teve a seguinte temática: “Um olhar sobre Pernambuco: açúcar”. Capitaneadas pelo antropólogo Raul Lody, as discussões sobre o açúcar foram bastante ricas, uma vez que este ingrediente teve uma grande importância na formação histórica e cultural do Nordeste, em especial em Pernambuco. No Capítulo “Um olhar sobe Pernambuco: açúcar”, o professor Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos e o chef Renato Freire discorrem sobre o tema, apresentando os textos “Açúcar: história, civilização e cultura” e “O açúcar nunca amargou”, respectivamente.
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 09
Em razão do crescimento da gastronomia, começam a surgir no cenário mundial projetos de “patrimoniali-
zação” dos ofícios e dos saberes no tocante à comida. Observam-se, nesta fase, o reconhecimento e a valorização dos ingredientes tradicionais, levando-se em consideração a biodiversidade, as receitas, as tecnologias e as singularidades. Neste afã, em 2011, o 2º Seminário Comida & Identidade tratou o tema – “Comida é patrimônio”, trazendo para Pernambuco a experiência do México, país reconhecido pela Unesco devido ao trabalho que desenvolve nesta área. No Capítulo “Comida é patrimônio”, o texto “A cozinha mexicana como fenômeno cultural”, do economista e historiador José N. Iturriaga, traz uma discussão mais aprofundada sobre o assunto.
No 3º Seminário Comida & Identidade, realizado em 2012, o evento tratou sobre a “Companhia das Ín-
dias na história e identidade culinária de Pernambuco”. Este tema foi escolhido por conta da forte influência que o Brasil vivenciou na formação da sua culinária, desde o período colonial, com destaque para a Companhia das Índias orientais e ocidentais. Atualmente as especiarias ainda exercem grande importância na cozinha pernambucana, fazendo parte da identidade da gastronomia local. Foram convidados para escrever sobre o tema Enrique Rentería e Raul Lody, com seus respectivos textos “Presença holandesa na culinária pernambucana” e “Companhia das Índias e a cozinha pernambucana”, dispostos no capítulo “Companhia das Índias na história e identidade da culinária de Pernambuco”.
O último seminário aconteceu em 2013 com o tema “Cultura e civilização mediterrânea e suas projeções
na cozinha pernambucana”, trazendo discussões importantes sobre os ingredientes e as técnicas culinárias desta região. Reforçando os estudos no assunto, os autores F. Xavier Medina e Raul Lody apresentam, respectivamente, no Capítulo “Cultura e civilização mediterrânea e suas projeções na cozinha Pernambucana”, os seguintes textos: “Alimentação e cultura na área mediterrânea: das adaptações locais aos pratos transnacionais” e “Muito além do azeite de oliva, das azeitonas e do queijo de cabra”. Ana Morais Diretora de Desenvolvimento Educacional
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1º Seminário Comida & Identidade (2010)
Um olhar sobre Pernambuco: açúcar Raul Lody
E
ste seminário, interdisciplinar e contemporâneo, fala sobre um dos temas mais importantes do momento que é a comida no seu contexto de cultura e história de um povo.
O seminário foi organizado tendo como foco as múltiplas possibilidades de se compreender
Pernambuco, a partir de um tema marcante que é o açúcar. Deste modo, a história social e econômica da cana sacarina, e sua trajetória do Oriente para o Ocidente, e o “novo mundo” motivaram diálogos com o público sobre o valor patrimonial das receitas tradicionais.
A partir do olhar da antropologia da alimentação, foi ampliado o campo que une a comida
à identidade, visto que o crescente mercado da gastronomia, quando agrega comida à cultura, à história e à ecologia, é fortalecido.
“Um olhar sobre Pernambuco - Açúcar” revelou-se como um seminário de muitas vozes, de
muitos sentimentos, dadas a riqueza e a abrangência do seu tema central – o açúcar.
O açúcar orienta e formaliza os processos históricos e culturais, digam-se multiculturais.
Pois, tratar deste tema é tratar da formação do povo brasileiro, em especial, do Nordeste, notadamente Pernambuco. SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
Açúcar: história, civilização e cultura Carlos Roberto Antunes dos Santos “O ato de comer é um ato global. Primeiro come-se com os olhos, depois come-se com o olfato; come-se com o tato; come-se finalmente com a boca, com o prazer, um sentido tão aguçado que já é um sentimento. Contudo, ainda se come simbolicamente, comendo-se a cultura, comendo-se a história, a civilização e, de uma certa maneira, comendo-se também o homem” ... Raul Lody (“Comer é pertencer”)
1. PRELÚDIO: DOCE QUE TE QUERO DOCE
Sinônimo de doçura, suavidade e brandura, em sua trajetória o açúcar já passou de herói
a vilão. Ganhou o mundo e, ao longo dos séculos, foi alvo de disputas e conquistas, simbolizando poder e riqueza para muitos países, empresas e pessoas. Passou a ser uma das mercadorias mais valiosas a entrar no comércio mundial. A função que possuía na Antiguidade e Idade Média, onde era chamado de “sal branco”, foi se estendendo até o período contemporâneo. Num processo histórico, foi considerado medicamento, condimento ou especiaria, depois assumindo o papel de gênero básico e indispensável na alimentação. Neste sentido, o açúcar entrou no mundo pelos laboratórios dos boticários, onde exerceu, como medicamento, um papel tão essencial que, como dizia Brillat Savarin, se faltasse algo essencial a alguém era como “boticário sem açúcar”. Nos próprios textos de Galeno, um médico grego dos gladiadores e depois médico particular do imperador Marco Aurélio, o açúcar aparece nas receitas que elaborava com plantas medicinais.
A obra “De re coquinaria” (Da Cozinha), escrita por Apicius, é considerada o principal liv-
ro de receitas da cozinha romana. Apicius foi conselheiro do imperador Nero (37-68) e produziu um manuscrito de 468 pratos, composto por uma variedade muito grande de matérias-primas que fazem parte das receitas. Muitas das matérias-primas ali adotadas revelam efeitos medicinais, pois a 12 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
O açúcar constitui uma substância conhecida na Antiguidade (cerca de
8000 a.C.), cuja disseminação pelo mundo se deu pelos egípcios e pelos árabes, mas foram os chineses que fizeram as primeiras experiências para transformar o sumo da cana em açúcar sólido.
As primeiras notícias na Europa sobre a cana sacarina atribuem-se aos che-
fes macedônicos de Alexandre Magno (300 a.C.), mas ela foi difundida na Europa pelos árabes, que a trouxeram para o Ocidente desde 936, sendo que a sua introdução efetiva só aconteceu depois do ano 1000, durante as Cruzadas.
Ainda na época das Cruzadas, os europeus foram aprender com os “infiéis”
as delícias do mel pagão. Para eles, tudo que adoçasse era mel. Pagão era aquilo que escapasse à cristandade, inclusive o açúcar, até então privilégio dos muçulmanos. A Europa passa, então, a descobrir as virtudes adoçantes deste produto e com isso o açúcar se valorizou. Era vendido pelos boticários da época e por ser considerado uma mercadoria rara, seu preço era muito elevado, dispondo de um amplo mercado em expansão. Os árabes, pensando no comércio europeu, iniciaram a plantação da cana-de-açúcar em Chipre, na Sicília, ao norte da África, e na Península Ibérica. Mas nem por isso o preço do produto baixou, ainda que a demanda fosse intensa. Só após o aumento da produção da cana-de-açúcar, inclusive na América recém-descoberta, o açúcar passava a ser acessível às camadas sociais mais pobres e começava a se popularizar. Entretanto, ainda na Idade Média, o mais importante manuscrito medieval de receitas foi escrito pelo chef Guillaume Térel, cognominado de Taillevent, sendo que grande parte de seus pratos gira em torno do elemento ácido, dando ele preferência ao gengibre em detrimento do vinagre, definindo assim um gosto tipicamente picante. Desta forma, no século XIV, numa Europa açucareira, as receitas do Le Viandier ficam distantes do sabor doce.
Até o século XV, o açúcar permaneceria no rol das mercadorias de luxo e
sua doçura seria um privilégio das camadas mais ricas, sendo tido inclusive como dote em casamento. As jovens donzelas guardavam entre linhos, fitas e rendas dos SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 13
enxovais, no fundo das arcas de madeira, uma caixinha de metal cheia de um precioso pó: o açúcar, um pó precioso. A Europa começa, então, a se encantar pelo exotismo e a se tornar refinada nas maneiras e nos desejos. A partir do século XVI, com a expansão da manufatura do açúcar de cana, porém, é que o açúcar se tornou presente e depois importante na alimentação do homem civilizado. No período do Renascimento, com a baixa dos preços, aconteceu a democratização do açúcar. Portanto, de produto medicinal passa a ser considerado gênero de primeira necessidade. Desta forma, o açúcar é introduzido na dieta dos países por onde passou, servindo como fonte de energia, bem-estar e prazer devido ao seu sabor doce, muito apreciado. O açúcar passou a ser um dos componentes mais importantes utilizados na culinária, pois ele dá consistência e liga apropriada aos doces e às massas, realçando o sabor, além de ser o adoçante mais apreciado do mundo.
A partir do século XVI, seria iniciado o plantio da cana em larga escala. Os portugueses já haviam exper-
imentado o cultivo e o comércio da cana nas ilhas de Cabo Verde e Madeira, obtendo bons resultados com uma produção que lhes permitia abastecer não só a metrópole, mas ainda a Inglaterra, os portos de Flandres e algumas cidades italianas. Portugal possuía indústria e equipamentos para engenhos açucareiros, tendo, portanto, todas as condições necessárias para tornar a colônia uma grande fonte de lucro. Seus interesses voltaram-se, então, para o cultivo da cana e da produção de açúcar no Brasil.
2. O AÇÚCAR FEZ O BRASIL
Portugal fez com que a cana-de-açúcar chegasse ao Brasil, cujo clima quente e úmido, aliado a terras abun-
dantes e férteis, favorecia o desenvolvimento dos canaviais. Após fixarem-se as condições para a apropriação das terras, partiram em busca de recursos para a construção dos engenhos e, principalmente, de mão de obra, o que significava trabalho escravo negro, visto que a escravidão indígena não deu resultados. Desta forma, vieram os negros africanos através do lucrativo tráfico de escravos promovidos pela Coroa no final do século XVI. Desta forma, o Nordeste brasileiro tornou-se mais apropriado para o cultivo da cana pelo seu solo de massapê e sua vasta rede hidrográfica. Na Capitania de Pernambuco, desenvolveu-se o primeiro centro açucareiro do Brasil, constituindo por muito tempo a principal atividade econômica da colônia, sendo que, no início do século XVII, existia em torno de 240 engenhos. No âmbito de uma sociedade estabelecida com base na produção de açúcar, as relações senhor-escravo, segundo Belluzzo & Heck, pelas dimensões que ele passou a alcançar, agregaram outras categorias sociais como pequenos lavradores, negros libertos, mulatos assalariados e artesãos, que consistiram na camada técnica dos enge14 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
nhos. Esse mundo dos engenhos resulta na formação dos primeiros conglomerados urbanos da colônia. Portanto, era o açúcar começando a fazer o Brasil. Durante o século XVII e início do século XVIII, a colônia se constituiu na maior exportadora de açúcar para a Europa, sendo que, ao longo do século XVIII, o Brasil e as Antilhas, que estavam nas mãos dos franceses e ingleses, proporcionaram todo o açúcar consumido na Europa. Uma das feições que assumiu a economia açucareira foi desenvolver, em Portugal, a popularização do uso do açúcar. Para Cascudo, o século XVI é o século do açúcar e o reinado da doçaria portuguesa. Consta que, no século XVII, Portugal se tornou o país mais famoso do mundo em matéria de doces e guloseimas, cujo preparo se esmeravam suas melhores cozinheiras.
Em Portugal, já existia uma tradição na arte da doçaria, decorrente da influência moura. Desde as técnicas de
conservação das frutas ou legumes através das compotas. Dos alfenins, preparados com uma massa de açúcar branco e água, que pode ser modelada; dos bolos de mel; da alféloa ou “puxa-puxa”, como é chamado no Brasil; das rabanadas, na época do Natal; dos doces em pasta, como os ladrilhos de marmelada, entre outros. Mas foi essencialmente nos conventos femininos que surgiram os doces com muitos ovos e muito açúcar, enfim, extremamente doces, uma tradição na doçaria portuguesa assimilada pelos brasileiros. Desta forma, uma grande parte desse patrimônio gustativo veio para o Brasil.
Acredita-se que o Brasil, diferentemente das outras colônias portuguesas, tenha assimilado a tradição dos
doces pelo fato de ter se constituído, já na primeira fase da colonização, num dos maiores produtores de açúcar. Em seu livro “Açúcar”, Freyre caracteriza o povo brasileiro através do Nordeste açucareiro e da sociologia do doce. Relata como o açúcar e os portugueses influenciaram os hábitos dos brasileiros em relação à doçaria. Retrata os doces consumidos nos engenhos açucareiros, a partir de receitas encontradas naquele período, guardadas como segredos de família e transmitidas às filhas de geração em geração, numa espécie de maçonaria das mulheres. As receitas eram aprendidas oralmente, sendo frequentemente misturadas com frutos tropicais e mandioca, que por serem fáceis de encontrar eram baratos. A assimilação da cultura alimentar foi recíproca. Os portugueses também inseriram elementos nativos em sua alimentação. Todo esse processo gerou uma grande parte da nossa cultura, pois as diversidades regionais não podem ser dissociadas do desenvolvimento do Brasil, visto que o açúcar permeia toda a história da formação da sociedade brasileira. Neste sentido, devem ser consideradas as contribuições indígena e africana, ambas com suas culturas nativas e com expressivos aportes culturais, principalmente na linguagem, religião, alimentação, práticas e produtos inseridos em nossa sociedade. A oferta de açúcar nos engenhos de cana permitiu a criação dos doces da cozinha nordestina que, apesar da base de suas receitas serem de origem portuguesa, soube com criatividade incorporar produtos locais. Passaram a utilizar a castanha-do-pará, o amendoim, em vez das amêndoas, usando o SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 15
leite de coco e as farinhas de milho e mandioca nas receitas. Importante ainda é incluir a rapadura no rol dos doces brasileiros. Surgiu no Brasil no século XVII, com os primeiros engenhos de cana-de-açúcar.
Logo ganhou estigma de comida de pobre. No passado, era predom-
inantemente consumida pelos escravos e, mesmo hoje, só eventualmente frequenta as mesas mais fartas. Apesar disso, seu valor calórico é riquíssimo, sendo ela considerada no Nordeste um dos doces mais característicos ligados à cana-de-açúcar.
Assim como em Portugal, no Brasil também se popularizou a festa
comemorativa de rua, ou religiosa, onde eram consumidos os doces mais populares, mais locais. Na Bahia, em seus tabuleiros, as negras quituteiras vendiam, entre tantas delícias, cocadas, pamonhas, quindins, beijus, mungunzá, canjicas, papas, pão de ló de arroz e “amoda”, de influência árabe, feito com farinha, rapadura e muito gengibre, ou mesmo de milho, entre tantas iguarias. Por outro lado, os doces mais tradicionais, na sua maioria, refletem a evidente mundialização que se deu em receitas de frutas e especiarias e no uso infinito do próprio açúcar.
Dessa forma, doces como pamonha, pé de moleque, canjica e ar-
roz-doce começaram a fazer parte do cardápio dos brasileiros. Depois da longa permanência dos doces na sociedade brasileira, atualmente alguns estão sendo menos produzidos e consumidos, pelo abandono da prática de fazer doces em casa e frente à praticidade de serem comprados prontos, além da multiplicidade de ofertas no mercado. De qualquer maneira, os doces ficaram na memória das gerações mais antigas. Na formação da sociedade brasileira, algo essencial a destacar é que há uma mestiçagem também na alimentação.
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3. A FILHA DILETA DO AÇÚCAR: A SOBREMESA
Dicionários da língua portuguesa definem sobremesa como “fruta, doce ou outra iguaria que se serve no
final de uma refeição”. Em francês, diz-se “dessert”. O termo tem origem no verbo “desservir”, que é o momento em que a mesa é retirada e que a refeição se finaliza. Entretanto, a sobremesa é muito mais do que o último prato de uma refeição. Ela se traduz e acontece em um momento imensamente carregado de símbolos, de sentidos e de significações. Na verdade, o ato de alimentar transcreve prazeres, desejos, satisfações e anseios, representando, enfim, o encontro da necessidade com o prazer, do homem biológico com o social, e a coexistência da fisiologia e do imaginário. A representação mais clara deste fato está exatamente no consumo de uma sobremesa. O ser humano tem uma necessidade fisiológica “x” de açúcar, aliás, de glicose, mas não de uma sobremesa. Esta última é consumida pela necessidade que o ser humano tem de sentir prazer, de saciar um desejo ou uma vontade. Entretanto, uma pessoa raramente faz uma sobremesa para comer só. O prazer da sobremesa não é simplesmente um prazer da boca, um prazer biológico, mas se trata de um prazer convivial. A sobremesa não é simplesmente um prato, é sim um momento amplamente carregado de sentido e de emoção. Verdadeiras necessidades, que são muito mais psicológicas e culturais do que fisiológicas. Esta é a importância e o real significado da sobremesa. Ela é, sobretudo, um símbolo de recompensa, um verdadeiro emblema do convívio e do conforto; muito mais um objeto de desejo do que um simples prato. Além de ser símbolo de prazer alimentar, a sobremesa remete frequentemente o individuo que a consome a gostos já saboreados e a sensações já vividas, ou seja, ela está estritamente ligada à memória gustativa.
Na linguagem popular se diz que sempre deverá existir um lugar para a sobremesa, ou que alguém num
negócio ficou com a parte da sobremesa, isto é, com um sabor açucarado. Do exposto, é importante destacar que a imagem e a reputação da sobremesa devem-se aos franceses e aos seus confeiteiros. Dentre eles, é importante destacar Antonin Carême (1783-1833), que foi o grande criador da doçaria mundial moderna. Em sua obra intitulada O Confeiteiro Real, tinha trabalhos célebres de confeitarias com bolos como as Ruínas de Atenas, evidenciando as colunas que restaram das ruínas gregas, inspiradas na sua segunda paixão que era a arquitetura. Era, na verdade, um apaixonado por doces. O Manual dos Anfitriões, publicado em 1808, é de autoria de Grimod de La Reyniére, considerado o pai da crítica gastronômica fazendo da gastronomia uma nova disciplina, seguido depois por Brillat-Savarin. O crítico Grimod de la Reyniére nasceu sem as mãos, apenas com cotos aos quais foram postas próteses para permitir que cozinhasse, sua grande paixão. Na obra, ele apresenta receitas de pratos preparados de acordo com as estações, as recomendações da polidez no momento da refeição, os conselhos de higiene e de receitas contra a obesidade, destacando as virtudes eróticas das trufas. Grimod era um seguidor de Carême, ao qual dedicava grande SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 17
admiração. E como destaque, A Fisiologia do Gosto, de Brillat Savarin, mais do que um livro de receitas é um livro de gastronomia, endereçado àqueles que recebem e utilizam o que o chef produz. Para Savarin, a comensalidade é tão importante que ele chega a afirmar que em torno da mesa nasceu a hospitalidade e deve ter sido as refeições que aperfeiçoaram as línguas, seja porque essas eram as ocasiões constantemente renovadas para reunir-se...1. Savarin afirma que o prazer de comer exige a fome ou, ao menos, o apetite, enquanto o prazer à mesa não depende nem de um e nem do outro, pois reflete a sensação que nasce das diversas circunstâncias de um fato, de lugares, de coisas e de pessoas que tomam parte numa refeição. No aforismo IV de A Fisiologia do Gosto, emitiu uma frase que ganhou o status de provérbio: “Dize-me o que comes e eu te direi o que és”. Sua obra destaca a comida e o uso do açúcar, dos doces, do café e do chocolate.
Importante ainda é destacar a obra Um Simples Livro de Culinária para as Classes Trabalhadoras, obra de
Charles Elmé Francatelli, publicada em 1852 em plena era vitoriana e escrita para uma determinada classe social, a dos pobres ingleses. Diante de uma sociedade da época que era preconceituosa e considerava os irlandeses, os negros e os pobres no mínimo irracionais, Francatelli publicou o livro para mostrar aos pobres “como preparar os alimentos diários, obtendo a maior quantidade de nutrientes e gastando o menos possível”.2 O autor, um inglês discípulo de Carême, na abertura do trabalho apresenta aos seus leitores equipamentos e utensílios necessários para a cozinha, com sugestões de gastar menos e poupar mais. As receitas apresentadas vão desde a feitura do pão e remédios caseiros, até o reaproveitamento das sobras das comidas. Suas receitas, dentre outras, elegem a carne, as sopas, os ensopados, os molhos, as costeletas de porco na chapa, os diversos tipos de feijão e arroz, muitos doces caseiros como os pudins, cabeças e miúdos de carneiro, e ainda ensinam a fazer sua própria cerveja. Francatelli era conhecido como “o economista culinário”, pois afirmava que poderia alimentar mil famílias por dia com o alimento que era desperdiçado em Londres. Ele usou e abusou do açúcar.
No Brasil, os livros e cadernos de receitas demoraram a aparecer. A obra O Cozinheiro Imperial constitui o
primeiro livro conhecido de culinária do Brasil, editado em 1840, sendo que o autor se apresenta apenas pelas iniciais do seu nome: RCM, chef de cozinha. As receitas de doces e pastéis são embelezadas por versos que tratam da comida em questão. Outra obra importante onde o açúcar constituiu um ingrediente importante foi O Cozinheiro Nacional, editada em 1875 no Brasil com um tom nacionalista e republicano, mesmo ainda em pleno período D. Pedro II. Nesta obra, como sobremesa é apresentado um cardápio que aporta torta de requeijão e um prato de doce açucarado. Com a chegada dos imigrantes europeus ao Brasil na segunda metade do século XIX, começaram a surgir as confeitarias e os 1 2
BRILLAT-SAVARIN, Jean. A Fisiologia do Gosto. Rio de janeiro: Salamandra, 1989, p. 162.
FRANCATELLI, Charles Elmé. Um Simples Livro de Culinária para as Classes Trabalhadoras. São Paulo: Editora Angra, 2001, p. 13. 18 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
salões de chá. A partir desses locais, foram inseridas novas receitas e novos doces no mercado como sorvetes, fios-deovos, papos de anjo, babas de moça, camafeus e os pastéis de Santa Clara. Os chamados doces finos, produzidos com as receitas de família trazidas pelos imigrantes, dos quais se destacam os portugueses, os alemães e os espanhóis.
Entretanto, uma obra que exerceu enorme influência no cotidiano das famílias brasileiras foi a coletânea de
Dona Benta (Comer Bem: 1001 Receitas de Bons Pratos), editada em 1948 ainda que seus primeiros livros datem de 1940. A personagem Dona Benta, que embalou diversas gerações de brasileiras junto à cozinha, era um personagem fictício de Monteiro Lobato, com receitas publicadas pela Editora Nacional. Devido ao seu alcance social e à sua permanência como literatura resistente e de ampla divulgação, a coletânea de obras de Dona Benta é considerada por BAIBICH como a criação e a sistematização da Cozinha Nacional Brasileira, entre 1940 e 1950.3
Enquanto variedade de literatura oral, as técnicas de preparação dos doces são sujeitas aos mesmos fenômenos
da literatura oral: esquecimento, mal-entendidos, improvisação, imprecisão, simplificação, mistura de elementos pertencentes a diversas receitas. Deste rico universo da precisão, a imprecisão é uma prática, como nos pesos e medidas: uma pitada, uma beirada, um prato fundo acima da beirada, um prato raso, uma colher de chá, uma conchinha, uma colher de sopa rasa, um pires, uma xícara mal cheia, um bocado, um copo e tantos outros que fazem das receitas um universo da criação, da liberdade da improvisação, do preparo e do gosto. E é dessa complexidade que se constrói um saber culinário que, muitas vezes, acaba por consolidar um certo padrão alimentar próprio da doçaria.
Cumpre destacar que no cotidiano brasileiro, o açúcar, juntamente com a cachaça e o limão, forma uma bebi-
da tipicamente brasileira chamada “caipirinha”, cuja história remonta à época da escravidão. Os escravos resolveram misturar à cachaça sucos de fruta que, junto com o limão, chegaram a uma espécie de batida de limão, precursora da caipirinha que permanece como um aperitivo extremamente popular, mas de fabricação essencialmente doméstica. Também foi neste período que as sobremesas passaram a ser um complemento das refeições, preparadas pelas donas de casa que mantinham as tradições de cuidar da casa, da família e da cozinha. No início do século XX, as donas de casa já podiam contar com mais facilidades em matéria de eletrodomésticos para auxiliar na cozinha. Embora essas mulheres frequentassem as confeitarias, não abriam mão de fazer as sobremesas em casa. No entanto, gradativamente as confeitarias começaram a atrair, como pontos de encontro, a burguesia brasileira e, com a popularização do açúcar e dos doces, sabores passaram a se constituir em espaços de sociabilidade para as famílias brasileiras. 3
BAIBICH, Edith G. Dona Benta e a Criação da Cozinha Nacional Brasileira (1940/1950). Israel: Univ. de Tel Aviv, Instituto de História da América Latina, projeto de dissertação de mestrado, 2008.
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Se a alimentação é símbolo da identidade de cada sociedade, de cada região e
de todo país, no Brasil ela é ainda mais do que isso, pois a atitude gastronômica não se limita à cozinha e às maneiras da elite. Ela constitui um patrimônio e é tida como um “fato social” de primeira importância para definir a formação da sociedade brasileira e sua organização. A culinária brasileira é rica pela sua doçaria e as suas sobremesas se constituem em verdadeiras obras de arte que satisfazem não apenas ao paladar, mas aos olhos e ao coração de seus consumidores. Tais substâncias são também princípios formadores da cultura brasileira, que representam e constituem a imagem deste país.
4. AS AMEAÇAS DO “TUDO PRONTO”
A evolução do consumo da comida e da sobremesa no Brasil, após o período
pós-guerra, tem demonstrado novos procedimentos devido à industrialização e às transformações ocorridas na nossa sociedade que acabam afetando a alimentação e nossos hábitos alimentares. No início dos anos 50, os refrigeradores chegaram às residências, as mulheres iniciaram sua entrada no mercado de trabalho e houve uma grande diversificação dos produtos alimentícios, assim como uma maior oferta desses produtos através dos primeiros supermercados. Surgia uma outra sociedade, onde é proibido perder tempo, pois isto significa perder dinheiro. Essa nova sociedade do trabalho, embalada por uma nova revolução da C&T, faz com que cada vez menos as refeições sejam realizadas em domicílio. Esta situação é geral, em termos de globalização, principalmente no mundo ocidental. Hoje se come tudo pronto e se dedica cada vez menos tempo para celebrar a boa comida (comer juntos), perdendo todos os graus de prazer e sociabilidade que daí decorrem. Na França, de acordo com J.P.Poulain, se em 1950 uma francesa dedicava quatro horas do seu dia para atividades culinárias, em 2000 ela dedica menos de uma hora diária para essas atividades. No mesmo ritmo, o consumo de produtos “semipreparados”, assim como de sobremesas semiprontas ou de preparo rápido, passou de 50%, em 1960, para 83%, em 1991. Neste contexto de transformações, os restaurantes fast food e por quilo chegam com grande força, se expandem e passam a ameaçar um ritual familiar, de grupos onde sempre se celebrou a boa comida, o bom 20 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
doce, enfim, a memória gustativa. Em consequência dessa “modernidade alimentar”, hoje alguns fenômenos fazem parte do nosso dia a dia: a “superabundância alimentar”, a diminuição dos controles sociais como a desestruturação das refeições, e a multiplicação dos discursos alimentares - e a contradição entre eles.
Nas suas diversas trajetórias, o açúcar tem assumido o papel de herói e de vilão. De herói por constituir os
sabores e os prazeres da vida; de vilão quando nesta virada de século, num verdadeiro universo do não comer em todos os discursos sobre alimentação moderna, o açúcar é condenado por causar danos à saúde. O açúcar adoçou tantos aspectos da vida brasileira que se pode salientar, na verdade, que existiu no país uma verdadeira civilização do açúcar. Sem dúvida, o açúcar acompanha toda a história da formação da civilização brasileira.
5. DOCE EPÍLOGO
Para se estudar a história do açúcar, foi importante recorrer aos cadernos de receitas, livros de culinária e de
gastronomia, que são fontes importantes para o conhecimento da história e da cultura da alimentação, considerando os estágios históricos da cozinha e da mesa permanentemente associados na esfera social. Tais fontes revelam as mudanças e permanências que a atividade culinária adquiriu perante as sociedades, o que permitiu e tem permitido para alguns uma mesa farta e para muitos outros uma mesa de migalhas. A trajetória do açúcar é revelada através das receitas com suas respectivas dimensões local, regional, nacional e internacional. As citadas fontes demonstram um enorme campo de possibilidades para estudos históricos que pensem o doce e o salgado, que possam mobilizar todos os sentidos - o paladar e o tato, a visão e o olfato, bem como as texturas e as temperaturas.
Desta forma, no presente texto, pretendeu-se demonstrar que através da história do açúcar se pode perseguir a
história da humanidade e destacar que todo o saber culinário que era preservado, sistematizado e transmitido de geração para geração, traz consigo categorias de análises como a identidade, a tradição e a comensalidade. Todo um “saber fazer” presente nos cadernos de receitas, incorporado aos padrões de cada época e que acabou recebendo algumas alterações em termos de acréscimos, substituições e abstrações. Desta forma, pode-se perceber as resistências na história de determinadas tradições, seja em termos de escolha de alimentos, seja em relação à sua elaboração. Neste sentido, aquelas receitas que incorporam os paradigmas de continuidade e permanência trazem a noção de que as práticas alimentares são ditadas por regras culturais engendradas na história de uma família ou de um grupo social. Muitas vezes as recei- tas, ao atravessarem gerações, expressam as realidades sociais em termos de adequação aos novos tempos. SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 21
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CARLOS ROBERTO ANTUNES DOS SANTOS Professor titular em História do Brasil, da Universidade Federal do Paraná. Mestre em História do Brasil pela UFPR e doutor em História pela Universidade de Paris X - Nanterre, França. Pós-doutor em História da América Latina pela Universidade de Paris III, França. Foi reitor da UFPR (1998/2002), presidente da Andifes, secretário de Educação Superior do MEC-Sesu, membro do Conselho Nacional de Educação e do Conselho Superior da Capes. Foi agraciado com o 16° Prêmio Paranaense de Ciência e Tecnologia. Ocupou o cargo de coordenador do Programa de Pós-Graduação em História/UFPR. É coordenador geral do site www.historiadaalimentacao.ufpr. br e coordenador do Grupo de Pesquisa em História e Cultura da Alimentação. Foi jurado sobre os melhores restaurantes de Curitiba, da Revista Veja Paraná. E membro da Comissão de Avaliação da Capes sobre Cursos de Pós-Graduação em História.
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O açúcar nunca amargou: a Confeitaria Colombo e sua doçaria Renato Freire
N
o ano de 1894, nascia a Confeitaria Colombo, que a despeito do nome sempre foi muito mais do que uma simples confeitaria, e sim um verdadeiro complexo gastronômico. Segundo seu primeiro contrato social, a casa “teria por fim a exploração do negócio de confeitaria, refinação de açúcar, molhados e qualquer outro gênero que lhe possa convir, montando o seu estabelecimento nesta cidade à Rua Gonçalves Dias, número 34 e 36”.
Alojada num prédio simples composto de loja e sobrado, a Colombo começou como uma
fábrica de doces, armazém de secos e molhados, restaurante, serviço de catering e ainda refinaria de açúcar. Com modestas instalações para abrigar tantas atividades, não chegou a chamar muita atenção de imediato. Mas o genial Lebrão tinha ideias e ações inovadoras. Primeiro ele viajou pelo Brasil e mundo afora para buscar os fornecedores dos melhores produtos que existiam na época, além disso foi buscar na Europa quase a totalidade da grande brigada de profissionais de cozinha e confeitaria. Vindos principalmente de Portugal, Áustria, Hungria, Alemanha e Suíça, esses profissionais foram fundamentais na formação do conceito de qualidade total imaginado por Lebrão.
Naquele tempo, o trabalho era árduo. Os empregados ficavam alojados no sobrado, trabalha-
vam sete dias por semana, com uma folga mensal. Não havia salários mensais, o dinheiro só aparecia no dia livre e era apenas o suficiente para dar um pequeno passeio. O pagamento que teriam que receber seria realizado de acordo com os resultados do balanço anual. Mesmo assim, todos trabalhavam com afinco e aprendiam com o mestre a arte do bem fazer e do bem servir. Lebrão, como ninguém à sua época, deu muito valor ao trabalho dos empregados, pois já no primeiro ano distribuiu entre eles 20% do lucro bruto obtido no ano. Além disso, deu cotas de participação na empresa para alguns 24 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
empregados, criando a figura dos interessados que, tempos depois, se tornariam sócios de Lebrão. Por isso, dizia-se na cidade: “na Colombo, se entra empregado e se sai patrão”.
A preocupação com a qualidade dos seus produtos era tamanha que Lebrão reservou uma área específica
apenas para fazer a refinação do açúcar, tanto para ser usado internamente como ingrediente na casa como também para abastecer a clientela do armazém. Para escolher as usinas que iriam lhe fornecer o açúcar bruto, Lebrão visitou os melhores centros produtores do Brasil e acabou decidindo por usar o açúcar de Pernambuco, que segundo ele e muitos conhecedores da época era o melhor que poderia ser encontrado por aqui. Segundo o Annuario Colombo, publicado em 1906, para divulgar a lista de produtos oferecidos pela casa, constava que na Colombo eram comercializados 11 tipos de açúcar: “assucar de beterraba em dados; assucar de beterraba em pães, assucar candi, assucar crystalizado de primeira, assucar crystalizado de segunda, assucar mascavinho, assucar mascavo, assucar refinado de primeira, assucar refinado de segunda e assucar refinado de terceira”. Neste mesmo anuário, além dos tipos de açúcar mencionados, havia um texto que explicava a importância do uso do açúcar na alimentação. Num dos trechos se diz: “O assucar completa e melhora uma infinidade de substâncias alimentares: corrige-lhes o sabor e facilita-lhes a assimilação. O assucar é o alimento dynamogeneo e reparador por excellencia. É alimento do trabalho, da energia physica e intellectual, da resistência e da fadiga”. Hoje, mais de cem anos depois, parece que o açúcar passou de herói para vilão, mas isto talvez se deva mais ao seu uso abusivo pela população do que por problemas inerentes ao produto.
Na fábrica de doces da Colombo, que em pouco tempo já era uma das mais afamadas do Rio de Janeiro
e do Brasil, só se admitia o uso dos melhores ingredientes. Seus profissionais, com grande experiência na Europa, eram capazes de produzir uma doceria de primeiríssima qualidade, não ficando devendo em nada às melhores confeitarias do mundo. No salão simples e acanhado, era servido um extenso cardápio, como era a prática da época. Do ponto de vista gastronômico, a grande sacada de Lebrão foi fazer a mistura das confeitarias francesa e portuguesa com toques abrasileirados. Do ponto de vista comercial, a jogada genial foi a criação de um local que pudesse ser frequentado pelas famílias, já que restaurantes, bares e cafés da época não eram locais que pudessem ser frequentados pela alta sociedade do Rio de Janeiro. Mulheres e crianças que vinham ao centro da cidade fazer compras, visitar médicos, dentistas e outros encontraram na Colombo o local apropriado para um lanche. Outra grande jogada de Lebrão foi ter o faro de criar um excelente serviço de marketing, quando abrigou na Colombo as maiores celebridades (no bom sentido) daqueles tempos. Grandes figuras da literatura como Olavo Bilac e Machado de Assis lá estiveram. Bilac era protagonista nas cenas e atraía uma legião de seguidores e aficcionados. Já SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 25
Machado, bem mais introspectivo, agia discretamente. Ele preferia comer os salgadinhos folheados acompanhados por limonada, enquanto Bilac gostava mais dos salgados empanados - sendo o de camarão o seu predileto, mas às vezes ele preferia uma mil-folhas de creme - quase sempre regados com água Caxambu.
A Colombo montou um grande serviço de catering para atender às solicitações de banquetes e piqueniques,
muito em voga naqueles tempos. Em 1897, Lebrão iniciava a primeira grande reforma. A refinaria de açúcar, parte da fábrica de doces e do armazém foram transferidos para uma filial na Av. Treze de Maio, perto de onde viria a ser a Cinelândia. A reforma levou cerca de três anos para ser completada, mas mesmo assim a casa não precisou ser fechada em dia algum, tudo funcionava bem, principalmente o serviço de banquetes. O Rio se afrancesava, a sociedade carioca se aprontava para tomar banhos de cultura e civilidade. Nos cafés, bares e restaurantes, a gastronomia francesa praticamente dominava a cena. Nos banquetes, então, a predominância francesa era quase absoluta. Durante décadas, os cardápios eram todos expressos em francês. Era chique ser francófilo. Segundo o mestre Marcelino de Carvalho, “há duas categorias de comida. As que se comem e as que a gente diz que come. As primeiras comem-se em português. As segundas em francês”. Nesta época, duas sobremesas clássicas, a Charlot russe e o Cabinet puding, faziam parte da maioria dos cardápios elegantes da cidade.
Toda reformada, a Colombo se transformou na denier cri do luxo e da elegância na cidade. Na noite de
reinauguração, a Colombo deu um presente ao Rio de Janeiro: uma confeitaria toda iluminada pelas primeiras luzes elétricas. A freguesia em júbilo ficaria admirada com a magia proporcionada pelas imagens refletidas nos espelhos da casa. A noite do Rio, que até então era iluminada por tochas e lampiões, ganhava um novo atrativo. O uso de geradores de energia elétrica como os da Colombo era algo inédito por esses trópicos. O uso pioneiro da eletricidade deu à casa ainda mais poder para se destacar perante a concorrência. A essa altura, a roda de Bilac na Colombo havia se tornado das maiores atrações da cidade. Antes da existência da ideia de lazer - numa época que não se ia à praia, sem calçadões para o trottoir e nem futebol e nem mesmo cinema, a Colombo passou a ser o local de encontro preferido da sociedade carioca.
A frequência da casa aumentou muito e as novidades chamavam a atenção. Três lindos balcões de metal
dourado e tampos de cristal causavam admiração. Um deles era o empadário, onde ficavam os diversos tipos de salgados. Opostos ao empadário ficavam os balcões dos doces, bombons, confeitos, bolos e muitas outras lambarices. Perto das portas e atrás dos balcões, foram montadas grandes vitrines com um inédito sistema de vedação para impedir a entrada de poeira e outros elementos estranhos. Com os balcões majestosos no lugar dos tabuleiros dos 26 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
primeiros tempos, os doces passaram a ser distribuídos de maneira graciosa e chamavam a atenção de todos que adentravam na casa. Latas de biscoito e de marrom-glacê lindamente decoradas enfeitavam as grandes vitrines, enquanto o balcão de bombons era atração à parte. Tanto que Lebrão chegou a afirmar: “Causa admiração ver a indecisão, misturada de avidez, com que uma senhora, conhecedora deste producto, percorre o olhar por sobre uma collecção variada de finíssimos bombons! Pois é essa indecisão, é essa avidez que se nota diariamente na Confeitaria Colombo, onde o sortimento de bombons é verdadeiramente maravilhoso”.
A partir daí, o sucesso da Colombo ganha uma nova dimensão.
A casa conquistou a preferência da elite da sociedade carioca. As famílias tinham, a partir daí, onde lanchar, comer um sanduíche ou uma empada, ou mesmo uma mãe-benta, num ambiente elegante, chique e frequentado por uma freguesia educada e respeitadora. A presença feminina provocou aumento na demanda por doces e afins. As crianças preferiam os sorvetes, servidos em taças chamadas de cups. Havia diversos tipos de cups, variando de acordo com uma combinação de cores e sabores. Sorvetes de pistache, baunilha, morango e chocolate eram guarnecidos com chantilly, fios-de-ovos, cerejas e variados tipos de biscoitos. As mocinhas preferiam as cups do perfumoso sorvete de bacuri espetado por um canudinho de biscuit.
Os balcões de doces da Colombo sempre foram um caso à parte,
tanto pela qualidade, quanto pela quantidade e variedade de produtos. A influência francesa era representada por mil-folhas, éclairs, tartelletes e babas, tudo disposto lado a lado com doces convencionais portugueses, quase todos preparados com gemas de ovos - subproduto da refinaria de açúcar que utilizava as claras para retirar as impurezas do açúcar bruto. Extremamente versáteis, as gemas eram a base para moldar doces nas formas de pingos, fatias, trouxinhas, fios, quindins ou balas. As gemas também SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 27
eram usadas para dar liga e cremosidade às queijadinhas, fatias da china e pastéis de nata. Doces de abacaxi ou caju, bom-bocados de aipim com coco, cajuzinhos de amendoim e outros mais davam tempero brasileiro ao maravilhoso balcão. O brasileiríssimo brigadeiro só iria aparecer no limiar dos anos 50.
Para competir com os produtos importados, a Colombo passou a fabricar seus próprios doces em pasta ou
compota. Para ter controle sobre todo o processo produtivo, Lebrão formou pomares e roças para produzir frutas e frutos variados. A marmelada, até então trazida de Portugal, foi o primeiro doce em pasta a ser produzido em grande escala em 1905, na fábrica instalada em Teresópolis. Em 1912, a Colombo abriu a fábrica de goiabada em Magé, mais tarde a casa passou a produzir também pessegadas, bananadas e pastas de polpa de laranja e maçã. Neste período, produzia-se cerca de mil toneladas de marmelada por ano, afora as 600 toneladas de goiabada, bananada e pessegada.
O serviço de banquete da Colombo tornava-se cada vez mais requisitado, até mesmo em outros Estados.
Em 1900, o Jornal do Commercio noticiava um banquete de inauguração da estação férrea da cidade de Castro, no Paraná: “Realizou-se o profuso almoço servido pela Confeitaria Colombo, desta capital, que caprichou na boa execução do serviço, apresentando uma bem montada mesa com peças artísticas e dispostas em forma de L. O banquete foi servido em duas longas mesas e nellas tomaram lugar 116 pessoas”. Comandando uma brigada de 19 empregados, lá estava o incansável Lebrão, com uma festa completa a quase mil quilômetros de distância.
O sucesso dos serviços de banquete da Colombo era cada vez maior e foi durante os primeiros anos do
século XX que a casa se firmou como o mais importante e requisitado serviço de catering do Brasil. Durante a gestão do barão do Rio Branco, a Colombo se tornou a principal fornecedora dos banquetes oficiais do Ministério das Relações Exteriores. Neste período, o Itamarati vivia um período de grande efervescência na diplomacia. As encomendas para almoços e jantares oficiais se multiplicaram. A gastronomia brasileira, que era sempre preterida nesses eventos, ganhou força com o barão. Para mostrar mais a cultura brasileira, ele exigia que os menus usassem ingredientes tipicamente brasileiros. Sua predileção era pelas caças de penas, por isso se tornou comum o uso de macucos, inhambus e jacus nos cardápios. O brasileiríssimo palmito também figurava em muitos dos menus da Colombo para o Itamarati. O bacuri, outra paixão do barão, também se tornou presença habitual nas sobremesas. Por ser muito versátil, a polpa perfumada do bacuri podia ser servida fresca sobre um leito de gelo (Bacury à la Neige) ou sob a forma de compota, sorvete, punch, bavarois, bombas, marquise, parfait, etc. Em 1912, inicia-se mais outra
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grande reforma, que assim como a primeira serviu para fazer uma transformação visual ainda significativa. Com ela, a casa tornou-se ainda mais bonita, elegante e requintada. O armazém foi transferido para a loja ao lado e seu estoque cresceu, ficando ainda mais variado e sofisticado. Contando com um eficiente serviço de entrega em domicílio, o armazém da Colombo abastecia as mais finas iguarias nas residências das mais poderosas famílias da cidade. As despesas eram anotadas em grandes livros e os acertos de contas eram quinzenais ou mensais. No armazém, podia-se encontrar de tudo e tudo que se encontrava lá era o melhor que se podia achar. A qualidade dos produtos da casa servia de baliza de comparação com produtos da concorrência. A marca Colombo era uma garantia de produto de melhor qualidade.
Com a nova reforma, construiu-se um bar em mármore Carrara, bem ao lado do empadário. O salão principal
foi ampliado e nas suas paredes foram colocados os gigantescos espelhos, dando ainda mais magia ao primoroso ambiente. Fugindo um pouco da influência francesa, a Colombo surpreende novamente ao aproveitar uma moda inglesa para apresentar um novo serviço - o famoso five oclock tea (chá das cinco), que chegava para transformar um hábito inglês em quase uma tradição carioca. A Colombo foi uma grande divulgadora deste costume. Servido no seu deslumbrante salão ou nas casas mais elegantes da cidade, os chás das cinco da casa passaram a ser uma das suas principais atrações. Eram famosos os chás servidos em Santa Teresa, na casa da granfina Laurinda Santos Lobo, grande mecenas e mais poderosa locomotiva da sociedade brasileira de então. As tardes da Colombo eram muito concorridas. Apesar de não gostar muito de música, Bilac com certeza deveria notar o virtuosismo de Villa-Lobos, que tocava violoncelo na pequena orquestra da casa. O salão estava sempre lotado, parecendo até pequeno para tanta gente. Para acompanhar os chás, foram lançados diversos novos produtos: salgadinhos, variedades de biscoitos, minisanduíches, brioches, casadinhos, bolinhos Rivadávia, petit fours, etc. As torradas Petrópolis eram feitas com largas fatias amanteigadas de um pão chamado Blumenau (brioche de forma). Eram e continuam sendo parceiras prediletas de um chá. Tempos depois foi criada uma variação chamada de torrada americana, a mesma torrada Petrópolis só que coberta com queijo ralado.
À medida que o tempo passava, a participação da Colombo no mercado de alimentos e bebidas se ampliava.
Em 1916, por iniciativa do Sr. Eloy Jorge, a Colombo lançava geleia de mocotó. No início, ela era usada apenas nos serviços de chás da casa, mas a grande aceitação do produto obrigou a Colombo a vendê-la no seu armazém e, em pouco tempo, em todo o Brasil. A grande novidade era uma embalagem reutilizável na forma de um estiloso e bonito copo. O sucesso da geleia de copo foi muito grande, pois além de deliciosa ela é um alimento nutracêutico e capaz de dar força e potência muscular. Um drinque preparado com uma mistura de conhaque com geleia de mocotó Colombo
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fez sucesso na época, tido como possuidor de poderosos efeitos afrodisíacos e um verdadeiro “levanta defunto”, que acabou se tornando um dos motores das muitas festinhas de embalo que iriam acontecer na famosa década de 20 que se aproximava. Talvez venha daí o motivo do assombro dos velhinhos sassaricando na porta da Colombo.
O ano de 1919 marca a saída de Manoel Lebrão da sociedade na Confeitaria Colombo. Ele deixou a confeit-
aria nas mãos de seus antigos empregados - o “França”, “Seu Jorge” e “Seu Corrêa” - e foi se dedicar mais à fabrica de doces Colombo, localizada nas proximidades da Praça da Bandeira. Mesmo com seu principal mentor fora da sociedade, a Colombo continuava a expansão dos seus negócios. No mesmo ano, teve início a produção de mais um sucesso da marca Colombo, o creme de arroz. Considerada um valoroso alimento infantil, a papa de creme de arroz era de fácil preparo, barata e nutritiva. Outros tipos de féculas e farinhas também eram comercializados com a marca Colombo, entre eles as féculas de batatas e de araruta, o sagu de mandioca, tapioca e as farinhas de aveia, cevada, centeio, ervilha, fava, lentilhas, feijão etc. Até hoje o creme de arroz é usado na Colombo para o preparo de acaçá, parceiro do vatapá, servido no bufê de almoço todas as quintas-feiras.
No ano de 1922, a Colombo é mais uma vez objeto de outra grande reforma, que iria deixar a casa com a
mesma cara que ela mantém até os dias de hoje. A principal mudança ocorrida foi a abertura de um novo grande salão, situado no segundo andar. Com o grande sucesso do chá das cinco, o salão principal ficou pequeno para atender toda a freguesia. Assim como nas outras grandes reformas, a Colombo apresentou uma grande surpresa para a sua festa de reinauguração. A casa que já havia deslumbrado a cidade outras vezes, primeiramente com a instalação das luzes elétricas e depois com os maravilhosos jogos de espelhos belgas, desta vez apresentou uma magnífica claraboia vinda da França e um dos primeiros elevadores instalados na cidade. Vivia-se a belle époque e o Rio havia se tornado uma Paris tropical. A cidade estava tão linda, limpa e bem cuidada que fazia inveja às melhores cidades europeias, em nada lembrando a sujeira e a insalubridade de anos atrás. A capital da República vivia tempos festivos e as noites cariocas eram fervilhantes.
Reis, rainhas, príncipes, imperadores, presidentes, cardeais, astros e estrelas de Hollywood ou nacionais se
deliciavam nos banquetes da Colombo. Entre os mais famosos, o banquete oferecido ao rei Alberto I, da Bélgica, em setembro de 1920. No menu servido, puderam-se destacar crevettes roses farcies (camarões recheados), Jam-
bonneaux de Poulet Villeroy (coxinhas de galinha) e canapés de patê de foie gras como pratos principais, além do onipresente Dindon à la Brèsilienne (peru recheado com farofa) e do Jambon de d’York (presunto de York). Como sobremesas, o Gâteau de Noces (torta de nozes) e a tradicional Charlotte à la Russe. Afora os queijos, biscoitos e 30 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
bombons que completavam a extensa carta de comidas. Dentre as bebidas, o champagne Moët & Chandon e outros vinhos, tais como St. Julien, Porto e Sauternes. Cervejas, licores, conhaques, refrescos e água Caxambu completavam a seleção de bebidas.
Em outubro de 1934, foi a vez da Colombo fazer um banquete para o cardeal Eugênio Pacelli, que se tor-
naria o papa Pio XII cinco anos depois. Neste ágape, foi servido de entrada Melon Rafraichi au Porto (melão gelado ao vinho do Porto), seguido de Consommé Riche em Tasse (consomê duplo), Feullettes de Langoustine (folhado de lagostim), Petit Chateaubriand Montpensier avec Fonds d’ Artichauts aux Pointes d’Asperges (filé mignon ao molho trufado, servido com fundo de alcachofras e pontas de aspargos), Pommes Byron (purê de batatas assado), Dinde
farcie Bonne Maman (perua recheada com purê de castanha da marca Bonne Maman), Salade Coeurs de Laitue (salada de coração de alface). Como sobremesa, foi servido Coupe Suzette (crepe Suzette em taça). Outro importante evento da história da Colombo foi o banquete servido a bordo para a rainha Elizabeth I, do Reino Unido, em 1968. A rainha deliciou-se com o sorvete de bacuri e a Colombo enviou ao seu magnífico iate Britannia caixas do sorvete para ser degustado na sua volta a Londres. Vale mencionar que, na realidade, a rainha Elizabeth nunca foi à Colombo - e sim a Colombo foi até ela.
Além dos banquetes oficiais, a Colombo atendia às solicitações de eventos empresariais para inaugurações
e lançamentos, festas familiares e piqueniques. Ao longo dos anos, foram milhares de festas, casamentos, bodas, batizados etc. Para atender à tamanha demanda, a Colombo tinha serviço completo de material de banquetes para atender até mais de duas mil pessoas servidas à francesa. Ela contava também com uma enorme brigada, especialmente treinada para serviços externos. Os famosos bailes de carnaval no Teatro Municipal, que se iniciaram em 1932, contaram com os serviços de comidas e bebidas da Colombo durante algumas décadas.
Os anos da década de 30 marcaram definitivamente a solidificação das mudanças socioculturais iniciadas
na década anterior. O novo papel das mulheres na sociedade deu a elas uma liberdade nunca vista e elas passaram a participar de forma ativa na vida social. As mulheres que até então viviam presas ao lar, passaram a praticar esportes, passear e fazer compras no centro da cidade, e até a frequentar sozinhas os bailes e outras festas noturnas. Com a descoberta da zona sul e da valorização da vida à beira-mar, houve uma descentralização da vida social na cidade. Os banhos de mar - antes vistos apenas como remédio - passaram a partir daí a servir como novos pontos de encontro, principalmente das famílias mais abastadas e com dinheiro suficiente para manter uma casa de veraneio em Copacabana. Nascia aí uma nova imagem do Rio de Janeiro, baseada na vida ao ar livre, no cuidado ao corpo, na prática de SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 31
esportes, tudo isso na praia, um ambiente descontraído e sensual. As mulheres já usavam trajes bem mais ousados, mostrando mais os corpos. Atenta à nova moda que viria a se firmar, a Colombo lançou uma linha de biscoitos dietéticos.
Com a inauguração do Copacabana Palace, a Colombo passaria a ter um concorrente nos serviços de ban-
que- tes oficiais do governo. Sobre esses banquetes, é interessante observar como as mudanças na política brasileira influenciaram a gastronomia palaciana. A influência europeia, principalmente a francesa, começa a declinar. Os menus passaram a seguir uma linha mais nacionalista e simplificada. Os números de pratos diminuíram, a influência das culinárias brasileira e americana cresceu e, além disso, alguns cardápios já eram escritos na língua de Bilac e não mais na de Proust.
Na década de 40, a Colombo continuava a servir a maioria dos banquetes oficiais do governo. Nesta ocasião,
a política passou a ter ainda mais influência nas escolhas dos menus. Eles tornaram-se ufanistas e personalistas; as festas tornaram-se cada vez mais populares, antevendo as mudanças políticas e sociais que estavam por vir. Em 10 de novembro de 1940, foi realizado o jantar de confraternização das classes produtoras do Brasil, em homenagem ao benemérito presidente Vargas, pela sua orientação política e pela paz social que conseguiu implantar no Brasil. O cardápio do jantar foi melão dos pampas, filé de robalo à baiana, camarões da Guanabara, peru à brasileira, presunto da “nova era”, salada bandeirante e sorvete Estado Novo.
Nesses anos 40, a influência americana na vida brasileira cresceu bastante. Em 1942, junto com uma grande
leva de outros produtos americanos, chega o refrigerante Cola-Cola e logo é vendido na Colombo. É importante mencionar que por recomendação do fabricante, esta bebida, ao contrário do hábito de então, deveria ser bebida bem gelada. As crianças mais propensas a aceitar novidades foram as primeiras a ousar trocar o guaraná tupiniquim - bebido em temperatura ambiente - pelo refrigerante americano. A novidade que vinha embalada numa garrafinha de formato sensual, tinha por detrás uma poderosa estrutura de propaganda e marketing. Além disso, o impacto provocado pela diferença entre as temperaturas do refrigerante gelado com e dos salgadinhos quentinhos provocava uma bela sensação por conta da harmonização por contraste. A partir daí, refrigerantes, refrescos, sucos de frutas naturais e a marmelada dissolvida com água - bebidas próprias para a criançada - ganharam um novo concorrente.
Em 1944, ano que completava o seu o cinquentenário, a Colombo inaugurou sua primeira filial desde o
fechamento da antiga loja da Av. Treze de Maio. A abertura da Colombo de Copacabana foi mais um acerto de 32 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
“Seu Jorge”. A loja ocupava os primeiros quatro andares do alto edifício construído para a sua instalação. No terceiro e no quarto andar, ficavam cozinha, copas, fábrica de doces e demais áreas de serviço. Composta por loja e sobreloja, ela era dotada de belos salões interligados por uma linda escadaria. Na loja, ficavam os lindos balcões repletos de salgadinhos e docinhos, além de um belo salão. Na sobreloja, ficava outro lindo salão iluminado por belos lustres de cristais. Na loja ao lado, foi aberto um armazém de comestíveis finos. A Colombo de Copacabana seguia uma linha gastronômica mais ousada do que a matriz. Sua cozinha e a fábrica de doces eram independentes da produção da matriz. A proximidade com a praia e os novos modos de comportamento social trazia à nova Colombo uma freguesia mais jovem, despojada e mais afeita às novidades. Com um tipo de serviço mais americanizado do que o estilo francês que predominou na loja do centro da cidade, a filial obteve grande sucesso por quase cinco décadas.
A década de 50 marcava um período marcante na história da Colombo, pois com
o retumbante sucesso da música Sassaricando, gravada por Virginia Lane para o carnaval de 1952, a casa tornava-se ainda mais famosa. Apesar disso no final desta década, a casa do centro começa a dar sinais de que o sucesso crescente obtido nas décadas anteriores já apresentava sinais de esgotamento. Enquanto isso, a filial de Copacabana vivia dias de glória em plenos “anos dourados”. Os cardápios nas duas casas, com pequenas diferenças, seguiam a mesma lógica da década anterior. Strogonoff, chicken pie, roast beef,
cassoulet, linguado à inglesa e salada de maionese são alguns dos pratos da gastronomia
É interessante observar como as mudanças na política brasileira influenciaram a gastronomia palaciana. A influência europeia, principalmente a francesa, começa a declinar. Os menus passaram a seguir uma linha mais nacionalista e simplificada. Os números de pratos diminuíram, a influência das culinárias brasileira e americana cresceu e, além disso, alguns cardápios já eram escritos na língua de Bilac e não mais na de Proust.
internacional que passaram a figurar nos menus, tanto no restaurante quanto no serviço de catering. Pratos da culinária brasileira também faziam sucesso, entre os quais se destacam o vatapá tradicional ou de galinha, a moqueca baiana, o cuscuz, o virado à paulista, o camarão com chuchu ou palmito, e o leitão à mineira. Nas sobremesas, alguns dos grandes sucessos da década anterior ainda faziam sucesso. Primeiro foi a Cassata Colombo, uma torta gelada feita com camadas de bolo intercaladas com sorvete de pistache e creme e marshmallow; depois o Spumone, uma sobremesa colorida feita com camadas de sorvete de morango, chocolate, pistache e creme chantilly, com frutas cristalizadas; e a Coupe Jacques, taça com salada de frutas servida com sorvete. A influência americana no pós-guerra se ampliou e a casa passou a servir milkshakes preparados à base de leite com SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 33
sorvete, ou de refrigerante com sorvete. A Vaca Preta, feita de sorvete de creme e Coca-Cola, era dos mais pedidos. As taças de sundae com sorvete de diversos sabores, guarnecidas com chantilly, frutas em compota, fios-de-ovos e biscoito, marcaram época. Os menus extensos dos banquetes do passado ficaram bem mais enxutos. No lugar das dezenas de opções de outros tempos, passaram a ser compostos apenas por entrada, prato de peixe e/ou de carne, e sobremesa.
A mudança da capital para Brasília, em 1960, causou esvaziamento na cidade e isto se refletiu na Colombo,
principalmente na matriz, pois em Copacabana a casa continuava a ter bastante movimento. Os serviços de banquete sofreram muito com a queda das encomendas do governo. Os menus da casa pouco mudaram em relação à década anterior. Nos balcões de doces, ganharam força o brigadeiro e as fatias inglesas e da China. Para a hora do lanche, a novidades ficava por conta dos waffles originários da Bélgica, mas que chegaram à Colombo via Estados Unidos. Nos restaurantes, os menus eram bastante ecléticos e misturavam pratos da culinária nacional, tais como o surubim na brasa, as moquecas, a carne-seca com abóbora etc. Outros preferiam uma culinária “internacionalizada”, tais como Badejo à Cleópatra (grelhado servido com champignon, camarões, aspargos e molho rosé), filé mignon bizantino (grelhado servido com couve-flor empanada e molho de champignon), feijoada marinha (feijão branco com frutos do mar), Frango à Havaí (grelhado servido com abacaxi empanado, ervilhas e aspargos) etc.
A partir daí e até o final do século XX, a Colombo sofreu um processo progressivo de esvaziamento. A
concorrência feita pelos supermercados abalou as finanças dos armazéns. O restaurante do centro foi fechado quase no final da década de 70, tendo sido transformado em um espaço onde eram servidos pratos rápidos que tempos depois seriam chamados de pratos executivos. Virado à paulista, lombinho assado com farofa, peru ao molho de champignon, filé de peixe com pirão são exemplos de pratos servidos neste novo espaço. Na mesma década, a fábrica de geleias lançava uma nova linha diet e a filial de Copacabana apresentava um novo tipo de serviço: almoço no sistema de buffet nos finais de semana e feriados. Nas décadas de 80 e 90, a situação da casa ficou ainda mais difícil. A diminuição drástica dos banquetes externos e o aumento da concorrência, principalmente das lanchonetes de fast
food e dos restaurantes por quilo, aprofundaram a crise da casa, agravada pelas mudanças dos hábitos alimentares e pelo esvaziamento do centro da cidade. Em 1992, a Colombo é vendida para uma grande indústria de alimentos e, neste ano, a filial de Copacabana foi fechada e uma nova loja foi aberta na Barra da Tijuca. Esta última filial teve vida muito curta, durou apenas cerca de dois anos. A fábrica de doces, geleias e féculas foi desativada e todo o seu maquinário foi despachado para Goiânia. Grande parte do acervo da casa acabou se perdendo.
34 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
De 1994 até o final de 1999, a casa havia se transformado numa pálida lembrança do que havia sido no
passado, pois boa parte do seu patrimônio foi sendo vendida. No ano de seu centenário, a casa se resumia apenas à confeitaria do centro - e parecia caminhar para um final melancólico, já que depois de viver décadas de glórias, corria sérios riscos de fechamento. Por conta da queda do movimento, a casa entrou num círculo vicioso, pois a diminuição da demanda provocou mudanças negativas nos processos produtivos, muitos dos produtos tradicionais da casa deixaram de ser produzidos, os balcões de doces e salgados já não ofereciam nem a variedade e nem a qualidade que fizeram a sua fama. Tentativas infrutíferas para reverter o difícil quadro foram feitas, tais como a criação de uma lanchonete fast food no local onde funcionava o armazém, a qual não surtiu efeito e a cada dia a Colombo parecia definhar.
Um pouco antes da chegada do ano 2000, a Colombo trocou novamente de mãos e iniciou-se um projeto
para a sua revitalização. Para minha felicidade, fui convidado para ajudá-los na árdua missão que, para muitos, era considerada impossível. Coube a mim a honra de ser o chef executivo, ocupando um cargo até então inédito na casa, com a incumbência de centralizar e cuidar de toda produção, tanto da fábrica de doces quanto da cozinha. Por conta da decadência vivida nos últimos anos, as condições de trabalho eram bastante precárias. As brigadas de cozinha e confeitaria eram pequenas e mal treinadas, os equipamentos eram antigos e muitos deles obsoletos. As instalações necessitavam de reformas estruturais para poder atender às novas normas e exigências de fiscali- zação sanitária. Por isso, a tarefa de recuperação exigiu altas doses de paixão e amor pela casa.
Para atacar os problemas crônicos da casa que já se arrastavam por anos a fio, foram desenvolvidas diversas
estratégias. Além das reformas para recuperação das instalações físicas e compra de novos equipamentos, contratação e treinamento da brigada, a principal estratégia para recuperar o prestígio da casa foi resgatar receitas e produtos tradicionais que haviam sido retirados de produção. Pesquisas realizadas nos velhos arquivos e conversas com funcionários e clientes mais antigos serviram para definir prioridades na recuperação de produtos e serviços que haviam sido abandonados. A reabertura do salão do segundo andar para abrigar o restaurante com um sistema de buffet nos mesmos moldes da antiga filial de Copacabana foi um grande acerto. Doces tradicionais que haviam sido retirados dos cardápios voltaram às vitrines, dentre eles os pingos de tocha, os pastéis de nata e os cajuzinhos. Os famosos
gaufrettes (biscoitos leque), juntamente com os bolos de Natal, os bolos de Reis e as Rivadávias, voltaram a ser produzidos. Além da recuperação de produtos antigos, foi desenvolvida uma linha de novos produtos baseada nas próprias tradições da casa, sem recorrer a invencionices e nem modismos passageiros. Receitas antigas foram adapta-
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 35
das aos novos tempos e lançadas com bastante sucesso. Quindins de camisola, pastéis de avelã, pastéis de caipirinha, beijos de açaí e de cupuaçu, entre muitos outros, tiveram grande aceitação da freguesia.
Apesar das grandes dificuldades, já no primeiro ano a casa apresentou resultados positivos e bastante prom-
issores. A partir daí, a cada ano que passa a casa vai retomando sua posição de destaque. Os serviços de banquetes retornaram com força total e as festas de casamento se multiplicaram. Afora isso, o movimento do dia a dia apresentou um crescimento vigoroso e a casa abriu uma nova filial, primeiro em Ipanema, que depois foi transferida para o Forte de Copacabana. Muitas coisas mudaram nesses últimos tempos, mas a essência foi mantida. É por isso que até hoje tudo na Colombo é preparado de maneira inteiramente artesanal. Para se modernizar, ela teve que recorrer ao seu passado e hoje, 12 anos depois, é para mim motivo de muito orgulho ter podido contribuir para a recuperação do mais famoso templo da gastronomia no Brasil.
Finalmente gostaria de agradecer aos organizadores deste maravilhoso evento a oportunidade de poder
divulgar um pouco mais sobre a Confeitaria Colombo aqui em Recife. E dizer que os laços entre um e outro são centenários. Foi graças ao açúcar pernambucano que a Colombo conseguiu energia para atravessar com sucesso esses anos todos.
RENATO FREIRE Nascido em Boa Esperança, o chef Renato Freire é um autodidata. Formou-se em Engenharia Química e Economia, e na década de 80 estagiou em restaurantes, misturando o estudo das ciências com o legado culinário de sua família mineira. Mudou-se para Holanda em 1990, onde trabalhou como chef de um restaurante brasileiro, e só depois passou para o Promenade Hotel, primeiramente como chef de partie, no restaurante francês, e depois como chef do restaurante italiano do mesmo hotel. Em 1995, foi eleito um dos “chefs do ano” pela revista holandesa de gastronomia Misset-Horeca. Voltou ao Brasil em 1997 e desde 2000 é chef executivo da histórica Confeitaria Colombo, no Rio de Janeiro. Foi jurado no Concurso Mundial de Gastronomia Bocuse D’Or, em Lyon, na França, em 2001. 36 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
2º Seminário Comida & Identidade (2011)
Comida é Patrimônio Raul Lody
N
o mundo globalizado, a comida é um dos temas de maior interesse, pois comida e fome acompanham a história da humanidade. No século XXI, vive-se uma “febre de gastronomia”. As cidades passam a disputar a posição de quem tem os melhores restaurantes. Os países passaram a exibir os seus sistemas alimentares como sendo “únicos”. Também são despejados anualmente, nos mercados do Brasil e do mundo, milhares de gastrônomos e chefs. É uma verdadeira disputa de “garfo e faca” para ver quem está na pole position, quem é o mais criativo, o mais tradicional, o mais fusion, o mais molecular, o mais, o mais, o mais...
Nesse território dos temperos, desperta-se para a comida que destaca as suas expressões
na cultura e na civilização, e deste modo crescem no mundo os projetos de “patrimonialização” dos ofícios e dos saberes referentes à comida. É o entendimento da comida como um símbolo das matrizes étnicas e das sociedades. É a valorização dos ingredientes tradicionais nos seus contextos de biodiversidade, de receitas, de tecnologias culinárias, de singularidades, pela identificação de “territórios” onde a comida exerce o seu papel de mediadora entre a pessoa e a cultura.
Para melhor compreender, guardar, salvaguardar, transmitir e conquistar “mercados”, vive-
se, no nosso século, um novo conjunto de ações referentes à comida com ênfase nas políticas de patrimonialização.
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
A patrimonialização da comida ocorre quando ela é apresentada como detentora de valores sociais,
históricos, culturais e gastronômicos, e se torna merecedora dessa “diplomação” e de um “projeto de salvaguarda”. É o seu reconhecimento por parte de uma cidade, de um Estado, de um país, ou por representar um “patrimônio da humanidade”, segundo a Unesco. Tudo isso visa a garantir as identidades e os saberes acumulados por múltiplos processos econômicos, culturais, ecológicos, bem como as técnicas que estão na agricultura, nas cozinhas e nos muitos rituais sociais que representam o ato de comer.
No Brasil, são reconhecidos e “registrados”, na recente Política do Patrimônio Imaterial, o “ofício das
baianas de acarajé”, o “modo artesanal de fazer queijo na região do Serro e da Serra da Canastra e do Salitre”, e o “sistema agrícola tradicional do Rio Negro” como patrimônios nacionais (Iphan/Minc).
Com as baianas de acarajé, tive a honra de coordenar o projeto de patrimonialização e iniciar o plano
de salvaguarda do seu ofício.
Como “patrimônio da humanidade”, a Unesco reconhece: “Dieta mediterrânea – Espanha, Grécia,
Itália, Marrocos”; “Refeição gastronômica dos franceses”; “Cozinha tradicional mexicana, cultura da comunidade, paradigma de Michoacán”.
Sem dúvida, o Brasil é também merecedor desse reconhecimento. Assim, o segundo seminário - “Comi-
da é patrimônio” – traz a experiência mexicana que mereceu o reconhecimento da Unesco, por tratar de temas referentes à manutenção de identidades na cultura gastronômica.
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
A cozinha mexicana como fenômeno cultural José N. Iturriaga
A cozinha mexicana: um sistema cultural
A cozinha mexicana é um sistema cultural que vai muito além dos aspectos meramente
gastronômicos, já que está inter-relacionada com a religiosidade, os rituais e as tradições de séculos, às vezes milênios, que continuam vigentes em pleno século XXI. É um fenômeno cultural que se relaciona diretamente com o ciclo da vida e, certamente, com o ciclo agrícola, de maneira destacada nos momentos mais relevantes como o nascimento e a morte, o plantio e a colheita. A comida mexicana é uma matriz de antigos conhecimentos enriquecidos em diferentes etapas da mestiçagem, que sobrevivem na atualidade não apenas nas cozinhas e mesas, como também de alguma maneira nos templos e cemitérios, em sulcos, berços e altares, nas rezas e costumes do povo, seja ele indígena ou não. Nossa cozinha é um conjunto cultural oriundo de usos e práticas comunitárias e familiares.
A cozinha mexicana é um fator de coesão social entre todos os estratos da população. É um
dos mais poderosos elementos da identidade nacional. Logo depois de consumada a conquista do México em 1521, o historiador Franciscano Bernardino de Sahagún iniciou suas investigações com anciãos indígenas, cuja vida havia transcorrido majoritariamente na época pré-hispânica; assim, resgatou do esquecimento uma enorme quantidade de informação. Sabemos que praticamente todas as cele-brações religiosas incluíam oferendas de comida ao extenso panteão dos deuses astecas. O alimento predominante eram os tamales (como os chamamos no México, na América Central, na Colômbia e em outros países; equivalem às hallacas da Venezuela, aos tayuyos ou aos bacanes de Cuba, aos mapiros de Porto Rico, às humitas da Argentina, Chile e Bolívia, às chapanas do Peru, aos 40 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
juanes e às pamonhas do Brasil, aos bollos do Equador). Os tamales de milho eram onipresentes nos seus rituais e, nas festas dedicadas aos mortos, que eram várias ao ano, esses pacotes comestíveis eram em absoluto indispensáveis. Ressalto estes dados históricos porque atualmente no México continua sendo da maior importância o Dia de Muertos, com altares nas casas e nos cemitérios, e os tamales continuam como ubíquos protagonistas das oferendas, depois de quando menos sete séculos de tradição ininterrompida. Hoje se realizam essas cerimônias tanto entre a população indígena como na mestiça, no campo e nas cidades, e mesmo que estejam presentes em todos os estratos sociais, predominam nos mais populares.
O dia de San Isidro Labrador celebra-se nas zonas rurais com missas que incluem a benção das sementes que
serão semeadas, dos arados e demais instrumentos utilizados na plantação e no cultivo, e os bois que também são aspergidos com água benta. Os sacerdotes católicos com bom juízo reconheceram as tradições do povo para que a religião se mantivesse.
Entre muitos dos 62 grupos étnicos que o México tem (e que somam 13 milhões de mexicanos, 12% do
total), subsistem costumes francamente pagãos, e aqui não há nenhuma interpretação pejorativa. Ao contrário. Por exemplo, entre os huicholes sua vida cosmogônica gira ao redor do triângulo milho, veado, peyote (que é um cacto alucinógeno). Diz Fernando Benítez, um dos nossos maiores estudiosos dos indígenas: “Chegado o tempo da colheita, o chamán corta ou degola [a espiga], que é levada em um pano bordado e se organiza a cerimônia sacrificial… O sacerdote indígena e os convidados da festa choram de dor e o xamã diz: ‘Perdoa-nos, nossa mãe, pois foi dito que para que um índio viva, tu tens que morrer”. Os tzotziles cortam o cordão umbilical do recém-nascido sobre uma espiga e esse milho ensanguentado é semeado pelo pai para dar continuidade ao espírito comunitário. Os indígenas voadores de Papantla e dos outros povos totonacos encarnam os alimentos, que em perigosa acrobacia descendem do céu para benefício dos homens. Nahuas do altiplano oferecem e adoram o milho antes do plantio, em ato de reintegração à Mãe Terra. Em algumas regiões de Morelos, colocam-se cruzes no milharal para afugentar o demônio que prejudicaria a colheita, costume de clara raiz bicultural. Os mixtecos sacrificam um peru e derramam o sangue na semeadura para uma fertilização que enriquece a alma coletiva. Os tepehuas vestem as espigas, indivíduos diferenciados, e lhes fazem oferendas. Os tarahumaras e outros povos indígenas, quando vão dar um trago em qualquer bebida, primeiro molham com ela um dedo e salpicam em direção aos quatro pontos cardiais e ao chão, como oferecimento totalizador em direção ao universo. SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 41
Tudo isso remete ao livro sagrado dos maias, o Popol Vuh, onde se acredita que o homem mesoamericano
foi criado pelos deuses à base de milho: “…só a massa de milho foi utilizada para fazer a carne de nossos pais”. No Códice Chimalpopoca, observamos a coincidência no fundamental da tradição asteca com maia: “O milho, grão divino… foi o alimento que os deuses guardavam no centro de Tonacatépetl, o monte de nossa carne…”.
É pertinente rememorar que os astecas faziam ídolos de deuses à base de milho e outros grãos amalgamados
com o sangue das pessoas sacrificadas nos seus templos. Em certos momentos do calendário ritual, os sacerdotes rompiam uma das deidades e lhes davam de comer um pequeno pedaço da mesma a cada membro da comunidade. Os mesmos frades historiadores que confirmam essas informações consideraram que era uma espécie de transubstanciação equivalente à eucaristia, porém na qual se utilizava o milho. Assim faz constar o frei Diego Durán: “… comungavam com eles todo o povo, pequenos e grandes, homens e mulheres, velhos e crianças, e o recebiam com tanta reverência, temor e lágrimas, que era algo de se admirar, dizendo que comiam a carne e os ossos do deus”.
Os vários capítulos que dedica o frei Juan de Torquemada ao tema dos convites ou banquetes pré-hispânicos
mostram que a comida tinha um papel predominante em todos os eventos sociais. Desde o desmame de uma criança até uma morte, tudo era motivo para realizar um convite. Hoje continua o costume, mais no campo que urbano.
A vastidão da alimentação espanhola combinou de maneira idônea com os hábitos alimentares autóctones,
o que resultou na nossa cozinha e hábitos mestiços. Alguns usos surpreendem como este relatado pelo naturalista inglês William Bullock, em 1823: “Em Puebla, encontramos to¬das as razões para nos sentirmos satisfeitos com a nossa hospedagem: a mesa bem servida seguindo o autêntico costume espanhol, com cinco refeições diárias”.
A megadiversidade natural e cultural do México e da cozinha
O México tem uma situação privilegiada pela sua notável diversidade, tanto natural como cultural, com um
óbvio reflexo na riqueza culinária. De fato, nosso país ocupa o quarto lugar entre os mais importantes países megadiversos do mundo, pelo número de espécies vegetais e animais que alberga em seu território (os primeiros são Brasil, Colômbia e Indonésia). Paralelamente, o México é a segunda nação do planeta por sua diversidade cultural (depois da Índia). Este parâmetro deriva do número de línguas vivas originárias que subsistem, pois o indicador linguístico costuma ser aceito como representativo da cultura em geral: quando um povo conserva o seu idioma original, o mais 42 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
provável é que ele mantenha a maioria das demais manifestações culturais que o distinguem - tradições familiares e comunitárias, memória histórica, religião, expressões artísticas populares, música, gastronomia, etc., (a Índia tem 65 línguas vivas – idiomas tipificados como tais pelos especialistas, não dialetos, que são menos desenvolvidos; o México tem 62; e logo depois vem a China, com 54).
Com a enorme quantidade de ingredientes oriundos da flora e da fauna silves-
tres, além dos cultivos, os numerosos povos deram vazão à sua criatividade culinária.
O milho e a trilogia alimentar
Nesse marco excepcional de megadiversidade natural e cultural, há um pro-
tagonista histórico integrado em ambas as vertentes: o milho, uma gramínea nascida silvestre em meio ao edificante entorno biodiverso e transformado, graças à criatividade humana, no principal elemento de sobrevivência; o teocintle, que ainda subsiste e desde oito mil anos foi dominando com surpreendente genética empírica, dando lugar ao milho, alimento cotidiano que se tornou um símbolo.
Esse cereal foi fonte da vida espiritual e material. E justamente no século XXI, o
milho no México é religião e ritual, dogma e liturgia, história e lenda. É tradição e está vivo. É vida cotidiana, é moeda, é ornamentação e alimento, é sustento para a alma e para o corpo. É elemento essencial do patrimônio natural e do patrimônio cultural do nosso país.
O milho costuma se desenvolver acompanhado nos sulcos da plantação. Mil-
haral é como se chama o terreno no qual é semeado. Este é seu berço e morada que também abarca outros comestíveis tradicionais, chegando-se até a 80 diferentes espécies de plantas, principalmente feijão, pimenta e abóbora. O milharal é muito mais que um ecossistema: é, na realidade, um sistema de vida com uma continuidade histórica que perpassa milênios. Surpreende que os vegetais que se cultivam nele são complementaSEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 43
res com respeito às substâncias que retiram do solo e às que lhes fornecem, ocorrendo assim um equilíbrio ecológico com uma combinação de cultivos sustentáveis. Também é admirável que o sustento histórico do povo mexicano, a trilogia formada pelo milho, feijão e pimenta, “filhos” do milharal, possua também nutrientes complementares. A pimenta não é um mero aromatizante. Na verdade, ela cobre uma transcendente responsabilidade nutriológica ao potencializar a digestibilidade das proteínas que contêm o milho e o feijão. Esse complexo alimentício deu lugar a culturas tão desenvolvidas como as mesoamericanas, exemplos de evolução científica e artística na história universal.
Com o uso primitivo do milho, desenvolveu-se uma tecnologia ancestral para o
seu consumo, isto é, o nixtamal, palavra que denota sua origem nahua mesoamericana. O nixtamal se faz agregando cal e água quente ao grão, durante várias horas, o que suaviza e desprende sua cutícula ou fina casca, permitindo um aproveitamento nutricional maior. Essa técnica de nixtamalização continua idêntica até hoje. As tortillas de milho se fazem da mesma maneira há milhares de anos.
As cozinhas regionais do México
No México, há numerosas cozinhas regionais com características próprias bem
definidas, porém, não obstante, há um denominador comum que atua como padrão em todas elas: o já mencionado consumo de milho, feijão e pimenta, que abarca todo o território nacional.
O sistema cultural que subjaz na cozinha mexicana e continua plenamente vivo
no século XXI, ainda que possua raízes antigas, faz com que esta não seja una mera soma ou conjunto de cozinhas regionais, senão um conceito integral com características que identificam o todo com suas partes. Talvez se pareça com o caso da China, que tem cozinhas diferenciadas em cada região, porém todo o país compartilha o uso do arroz e da soja, em maior ou menor proporção. Certamente há muitos outros exemplos. 44 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
A cozinha popular e a “alta cozinha” mexicana
No México, a cozinha tradicional popular é a base da chamada alta cozinha. Esta bebe na fonte daquela. Por
exemplo, o prato festivo mais popular é o mole, que inclui até 25 ingredientes, todos moídos - por isto recebe tal nome. Cada província tem suas variantes; às vezes, cada povo - e não seria exagerado dizer cada senhora - tem sua própria receita. Utilizam-se diferentes variedades de pimentas secas, chocolate, canela, tortilla de milho tostado, pão e biscoitos de trigo, gergelim, açúcar - mesmo que seja um prato salgado, tomate, nozes, amêndoas e outras coisas, tudo frito em manteiga de porco e moído, integrado com caldo de peru já que se colocam pedaços deste animal. Os casamentos, as festas dos padroeiros e outros eventos relevantes na zona rural ou em bairros urbanos celebram-se obrigatoriamente com mole. Quando se quer qualificar um mole como muito bem feito, diz-se que ele se parece com um mole de pueblo.
Pois bem. Os mais elegantes e sofisticados restaurantes mexicanos têm o mole como uma especialidade. As
mais exclusivas refeições para convidados da high society, no caso de ser um almoço, podem incluir como prato principal um mole feito em casa. Não se trata de exotismos étnicos ou de curiosidades ocasionais. É comum que a alta cozinha se apresente de maneira suntuosa com os pratos da cozinha popular.
Outro caso parecido é o dos adobos (molhos), primos do mole (outro primo mais distante, porém não mui-
to diferente dos currys da Índia, Ceilão e outros países do Extremo Oriente).
Em todos os lares mexicanos de qualquer classe social se comem tortillas de milho diariamente; o que varia
é a quantidade per capita segundo o nível socioeconômico.
Originalmente as tortilhas se faziam manualmente e, nos povoados, continua sendo assim. Por outro lado,
nas cidades do país há cerca de 40 mil tortillerías, onde elas são feitas com uma máquina certamente de tecnologia mexicana. As famílias urbanas ricas se dão ao luxo de comer tortillas feitas em casa. Hotéis e restaurantes de cinco estrelas servem aos domingos um brunch (refeição no meio da manhã entre o breakfast e o lunch), com o buffet incluindo uma senhora fazendo tortillas na mão. Todo restaurante do país, de qualquer categoria, ainda que não seja especificamente mexicano, tem no seu cardápio como café da manhã pratos típicos da cozinha popular como as
enchiladas e os chilaquiles. SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 45
O que é popular perpassa toda a cozinha mexicana. As pessoas mais ricas de Yucatán comem com frequência
uma cochinita pibil (espécie de leitão assado em um forno escavado embaixo da terra), saborosa preparação que era servida para as pessoas de prestígio e posses na sociedade maia, que se expande aos mercados. Os grandes latifundiários do centro do país oferecem aos seus comensais como opulento prato um churrasco de cordeiro, cozido em um buraco na terra, de nítida origem pré-colombiana (naquela época era feito com carne de veado ou outros animais); notemos que os pedreiros festejam o seu dia, o da Santa Cruz, também com um churrasco, e todo o povo o come ao longo do ano. Um convite muito apreciado acontece quando, em um banco de jardim, se fazem carnitas de porco, popularíssima e singular forma de preparar este saboroso animal. Nos casamentos mais elegantes da cidade do México, servem um jantar internacional à noite e, pela madrugada, depois de várias horas de festa, servem-se outra refeição típica mexicana, à base de milho e pimenta: pozole ou chilaquiles.
Muito raros são os pratos importantes da alta cozinha mexicana que não provem das mesas do povo. No
momento, só me vêm à mente os chiles en nogada, inventados, de acordo com a tradição, para homenagear um efêmero imperador bastante ridículo que tivemos até 1822. A origem imperial do prato e o preço das nozes fazem dele uma refeição elitista.
Tudo isso nos leva a concluir que, no México, não há uma contraposição entre a alta cozinha e a popular.
Ao contrário. Certamente sempre há exceções, como quando o chique chega ao esnobismo ou sucumbe diante da moda passageira. Seria o caso de uma mal chamada nouvelle cuisine mexicaine que, entre outros desvios internacionalizantes, além do uso delicado e com mesura da fruta em pratos salgados, chega a excessos que falsificam a cozinha mexicana, derramando sem autocrítica overdoses de goiaba, manga ou tamarindo. A cozinha tradicional e os “antojitos” mexicanos
O termo “antojito” é usado diariamente porque diariamente o comemos. O mais comum é o taco, uma
mera tortilla de milho enrolada com alguma carne guisada dentro. Os antojitos são infinitas variantes de sanduíches deste cereal, de diferentes formas, com variados temperos e algum molho de pimenta picante que se coloca a gosto. Podem ser cozidos em um comal (disco fino de barro ou metal que se usa para cozinhar tortillas de milho, torrar café ou cacau, ou assar qualquer tipo de alimento), que é uma mera lâmina, ou podem ser fritos, geralmente com banha de porco. Podem ser como tortilla, com os ingredientes dentro da massa ou por cima dela; podem ser redondos ou alargados, finos ou grossos, brancos, amarelos, arroxeados ou azuis. Podem ser como bolos, podem ter recheio ou
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não, podem ser pequenos ou grandes. As guarnições mais frequentes são os feijões fritos, a carne de frango ou de porco desossada, a batata e o chorizo, a cebola ou a alface picada, o creme e o queijo e sempre seu molho. Alguns nomes de antojitos são reveladores como as gorditas e as pellizcadas. Há meio século, o antropólogo Eusebio Dávalos Hurtado realizou uma recontagem que alcançou 700 formas de comer o milho no México, certamente a maioria com antojitos, ainda que também se relacionem muitos pratos listados como bebidas frias e quentes.
Os antojitos são o mais fiel expoente da cozinha popular mexicana. São espelho da gastronomia pré-hispâni-
ca e de sua mestiçagem colonial de 300 anos, na qual por certo não apenas intervieram os genes culinários espanhóis que traziam oito séculos de invasão árabe, além das variadas porções de nossa terceira raiz, a negra, e de elementos orientais chegados com a nau da China ou o galeão de Manila, sobretudo especiarias. As influências europeias do século XIX, em particular as francesas, e as de muitos outros países ao longo do século XX não afetaram os antojitos.
Com respeito ao importante consumo de trigo e de arroz em nosso país, destaca frente a eles a preeminên-
cia do cereal nativo. Predominou a comida indígena na hibridação alimentar, pois o milho – que é a contribuição autóctone mais significativa – continua sendo o alimento fundamental na dieta atual de mais de cem milhões de mexicanos. Comemos o triplo de milho que de trigo, oito vezes mais que feijão e 12 vezes mais que arroz.
Permanência da cozinha tradicional mexicana. A globalização
A cozinha tradicional mexicana não se perdeu, nem tem uma tendência neste sentido. Os antojitos, e de ma-
neira destacada o taco, continuam sendo os alimentos da maior parte do povo mexicano. Muitos outros alimentos, pratos formais da gastronomia mexicana, também são habituais nas mesas populares e ilustres.
Entretanto, é necessário advertir que a globalização traz consigo uma invasão de alimentos com alto teor
calórico (junk food), apoiados com agressivo marketing. Insípidos hambúrgueres, pizzas e cachorros-quentes (adequados para paladares primitivos como o norte-americano) inundam as cidades. As classes média e alta os consomem ocasionalmente, com frequência por pressão das crianças, vítimas mais indefesas da brutal publicidade vinculada às instalações com jogos infantis e alimentos associados com brinquedos. De qualquer maneira, não obstante esses avanços do estrangeiro, a maioria da população mexicana continua preferindo os antojitos.
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 47
De passagem, notemos que nada é mais distante do que os antojitos e a bem chamada fast food. O prazer
de comer por desejo é a antítese de “comer rápido” alimentos fabricados em série para subsistir. Em uma reunião domingueira, é possível comer antojitos com calma, conversando saborosamente ao longo de horas.
Caberia analisar também a penetração da cozinha mexicana nos Estados Unidos, não só entre as mais de
20 milhões de pessoas de origem mexicana, como também de maneira importante entre a população anglo-saxã. Ademais, de várias dezenas de milhares de restaurantes supostamente mexicanos, atualmente os nachos (que não são mais que nossos totopos, pedaços de tortilla de milho frito) já ocupam o segundo lugar nos lanches desse país, depois das batatas fritas.
Diante da força do poderio global (que nos meus tempos se chamava simplesmente imperialismo), a verda-
deira defesa é estabelecida pela cultura. Que vejamos a força cultural da cozinha mexicana.
JOSÉ N. ITURRIAGA Economista e historiador, foi consultor da FAO e da Unesco, jurado do Prêmio Nacional de Pesquisa de Alimentos e presidente da Sociedade Mexicana de Gastronomia e Enologia. Obteve o Prêmio Internacional Slow Food 2003, na Itália. É vice-presidente do Conservatório da Cultura Gastronômica Mexicana, ONG que pre-parou o expediente aprovado em 2010 pela Unesco para declarar a cozinha mexicana como patrimônio cultural da humanidade. Iturriaga é autor de 46 livros, dez deles sobre temas da cozinha mexicana. 48 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
3º Seminário Comida & Identidade (2012)
Companhia das Índias na história e identidade da culinária de Pernambuco Raul Lody
N
a Idade Média, tamanha era a idealização sobre aroma e sabor das especiarias que o Jardim do Éden deveria ser seu endereço. Deste modo, a pimenta-malagueta, embora africana, ficou conhecida como “grão do paraíso”.
Ainda na Idade Média, acreditava-se que os pescadores recolhiam nas suas redes o gengibre,
o ruibarbo e a canela das águas do Rio Nilo. Já para os chineses, a canela era considerada a casca da “árvore da vida”.
E foi com os encontros entre o Oriente e o Ocidente que novos sabores, aromas, receitas,
bem como novos hábitos à mesa, se intensificaram nos períodos medieval e renascentista, que pela união das rotas comerciais dos árabes pelo Oriente longínquo, pelo Oriente Médio e pelo Mediterrâneo, nas costas da África e da Europa, levaram a grandes transformações sobre a comida.
A essas rotas se uniram as “guildas”, as sociedades, as fraternidades e as corporações, que se
organizavam como “companhias de comércio” que desde o século XII realizavam esse comércio.
Com ele chegaram as especiarias: pimenta-do-reino, ajowan, alecrim, almíscar, gengibre,
cravo, canela, açafrão, malagueta, asa-fétida, cominho, açúcar, noz-moscada, cardamomo, cúrcuma, SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
estragão, folha de curry, funcho, galanga, macis, orégano, sálvia, verbena, entre tantas outras, para a composição de várias receitas, numa verdadeira globalização de sabores e paladares.
Assim, desde a época da colônia, Portugal promoveu novos hábitos alimentares, e deste modo
atuou também na formação da cozinha brasileira.
Nesse amplo cenário social e econômico, destacaram-se a Companhia das Índias Orientais e a
Companhia das Índias Ocidentais, organizadas pelos “neerlandeses” (batavos), no século XVII, para se apropriarem dos caminhos marítimos e das rotas comerciais já traçadas por venezianos, genoveses, portugueses, e conquistarem também seus respectivos mercados.
Assim, motivados pelo açúcar e pelo controle do tráfico de africanos em condição escrava, esses
comerciantes neerlandeses chegaram ao Nordeste do Brasil, um Nordeste colonial português já com suas “cozinhas em processo”, que integravam os produtos “do Reino” com os produtos “da terra”. Sem dúvida, a chegada das muitas especiarias do Oriente para o Ocidente promoveu novas realidades sociais, econômicas e culturais.
Nos dias de hoje, nas cozinhas de autor, nas cozinhas tradicionais e étnicas, e na indústria alimen-
tar, as especiarias estão presentes em diferentes padrões de consumo e de consciência gastronômica.
Compõem a identidade da tradicional cozinha pernambucana o cominho, a pimenta-do-reino, a
erva-doce, o cravo, a canela, o gergelim, o colorau, as pimentas frescas, o coentro e tudo mais que traga símbolo, sabor, memória e contemporaneidade. se, no nosso século, um novo conjunto de ações referentes à comida com ênfase nas políticas de patrimonialização. SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
Presença holandesa na culinária pernambucana Enrique Rentería “Dez legoas de terra ao longo da costa da dita capitanya e gouvernança e entraram pelo sertam tanto quanto puderem entrar...” (Concessão acordada a Duarte Coelho em 10 de março de 1534, por João III, como donatário da Capitania de Pernambuco)
P
ara melhor entender a vinda holandesa para o território português na América e a possibilidade de sua influência cultural seja na área culinária ou outra, convém começar a colocar o evento no conjunto de ações e ocorrências provocadas pela expansão europeia da época. Essa atividade de pirataria que nos interessa pode ser considerada como concentrada no período de 1630 a 1654. Os eventos precedentes e consequentes ajudam a melhor cernir suas características.
A turbulência europeia
Desde muito antes das descobertas de Colombo, a Europa se agitava para explorar o comércio
de produtos que proporcionassem excitação dos sentidos e da sensibilidade. Durante as cruzadas, o Oriente Médio mostrou aos invasores a riqueza e o refinamento alcançado pelas civilizações do Oriente próximo e longínquo. Junto com a pimenta e o açúcar, vieram também o macis, a noz-moscada, a canela e o cravo-da-índia, o gengibre e também o betel, o almíscar, o arenque, o ópio, a salsaparrilha, o aloés. Enfim, todos os refinamentos da farmacopeia asiática com seus excitantes do sistema nervoso e afrodisíacos. Instrumentos de uma vida de luxo e prazer.
Algumas cidades mediterrâneas como Gênova, Pisa, Florença e Veneza dominaram o comér-
cio por via terrestre, fazendo de Alexandria, no Egito, um ponto de reunião das rotas percorridas pela 52 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
mercadoria. Como sabemos desde a escola, no meio dos esforços de vários países europeus, para alcançar fontes de riqueza fora do continente, incluindo bancos de pesca, Portugal tomou considerável dianteira desenvolvendo sua maestria na navegação de águas profundas e na construção de navios apropriados para uso militar e comercial.
A descoberta do continente americano em nome da Coroa espanhola alterou os termos da concorrência. Os
espa- nhóis passaram a receber volumes extraordinários de riquezas, inicialmente de ouro. O interesse em capturar uma parte, ou mesmo a totalidade, desse tesouro de além-mar deslanchou uma competição intensa e muito violenta entre os países com acesso fácil ao Oceano Atlântico.
Portugal constrói e completa seu primeiro império - o da África e das rotas da Índia, no período de 1480 a
1515, tendo começado em 1474, quando a descoberta e a exploração de novas terras passam para a administração direta da Coroa. O ano de 1530 veio a ser, para a Espanha, a data equivalente ao ano de 1474 para os portugueses.
O segundo império português, simultaneamente com o império espanhol, é então de começo relativamente
tardio. Quase meio século. Essa diferença nos dois tempos reflete a diferença de estruturas. O primeiro Império português teria sido comparativamente simples: rotas marítimas e feitorias, requerendo poucos homens e pouco espaço para manter e operar para efetuar trocas e comércio de mercadorias. O segundo Império português era, em todos os sentidos, maior e mais complexo. Mais oneroso, mais difícil e mais durável.
O caso do Brasil se apresenta a partir de 1530. Inicialmente, de 1501 a 1530, o Brasil foi apenas uma escala.
Do ponto de vista de Lisboa, a costa do Brasil era assimilada às partes menos acolhedoras da costa africana, não estando ainda integrada ao sistema português. Devido à distância da metrópole, a costa brasileira era de guarda mais difícil que a costa africana. Neste período, a frequentação francesa em busca de pau-brasil é comparável à portuguesa. O valor das cargas de pau-brasil, artigo volumosamente incômodo, não justificava uma navegação protegida e, nessas condições, o regime das costas brasileiras foi inicialmente de apoio à navegação, embora com pretensão de monopólio. Com a atenção portuguesa dominada pela proteção das rotas das especiarias no Oceano Índico, ficavam as costas brasileiras permeáveis a flamengos, espanhóis, holandeses, venezianos e franceses. Entretanto, sua importância como escala para garantir as rotas da Índia levou o governo português a realizar sua colonização efetiva, seguindo o modelo adotado nas ilhas atlânticas. Este trabalho é de Cristóvão Jacques, por volta de 1515 ou 1516, e culmina com a expedição de Martin Afonso de Sousa, em 1531. Como forma de baixar custos para manter os bons resultados que haviam sido obtidos, João III segmenta politicamente a costa do Brasil em 12 capitanias, territórios SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 53
de modelo feudal entregues aos cuidados de grandes senhores responsáveis pela defesa e pelo povoamento das áreas. Duarte Coelho foi donatário da Capitania de Pernambuco. Francisco Pereira Coutinho recebeu a Bahia e Martin Afonso de Sousa ficou com São Vicente, na região de São Paulo. Somente duas capitanias, graças ao cultivo da cana-de-açúcar, prosperaram: Pernambuco e São Vicente. Face à insuficiência de resultados, a partir de 1549 a Coroa assume a administração direta do território do Brasil. Em janeiro do mesmo ano, Tomé de Souza é nomeado governador-geral com autoridade sobre todas as capitanias. Os capitães-gerais, com exceção de Duarte Coelho em Pernambuco, submeteram-se sem protestar.
As monarquias ibéricas, numa competição de desenvolvimento e extensão de suas áreas de dominação fora
do continente, tornaram-se as principais potências europeias. Os outros países da Europa se adaptaram paulatinamente às novas condições econômicas e políticas, que muito dependem da situação geográfica de cada um. A Inglaterra, no século XVI, não tinha ainda uma posição de destaque, embora sua vocação marítima a levasse a desenvolver uma Marinha que alguns decênios mais tarde lhe dariam o domínio dos mares. O comércio exterior inglês era basicamente conduzido por venezianos e pela Hansa (liga de cidades comerciantes germânicas do norte da Europa). Enquanto as tentativas inglesas de colonização foram poucas, a preocupação com a expansão comercial adotou diversas formas. Representantes ingleses chegaram à Rússia pelo norte e acabaram estabelecendo uma rota que, passando por Moscou, chegava até Ormuz, na Pérsia, contornando as barreiras árabes e venezianas que impediam o acesso às riquezas orientais, especiarias, tecidos luxuosos, drogas e joias. A França, quando finalmente saiu de suas guerras de religião, dedica sua atenção principalmente à consolidação do território, fazendo poucos e malsucedidos esforços para se estabelecer nas novas terras descobertas. As grandes cidades italianas, afastadas do oceano pela sua situação em pleno Mediterrâneo, participam indiretamente da conquista e exploração de novos territórios, associando-se aos esforços ibéricos, seja como financistas, como peritos em geografia e navegação, ou mesmo como marinheiros.
Os países europeus manifestaram diferenças de atuação, de acordo com sua situação geográfica ao norte da
Europa ou mediterrânea. Neste contexto, os Países Baixos aparecem de forma específica. Com sua economia profundamente ligada a comerciantes da bacia mediterrânea, possuíam os principais portos que se tornaram centros de distribuição de mercadorias: Bruges durante a Idade Média, depois Antuérpia e finalmente Amsterdã. O século XVI foi decisivo para as províncias dos Países Baixos. Carlos V (Carlos I de Espanha) recebeu o que foi chamado de Países Baixos Espanhóis como herança borgonhesa, um conjunto de 17 províncias contendo um grande número de senhorias e cidades. É uma região de pequenas indústrias têxteis, com intensa atividade marítima, tanto de pescaria como de cabotagem, cuja população habita principalmente as cidades, sendo das mais urbanizadas e densas da Europa. Es54 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
tas características a destacam também como sendo das mais dinâmicas, motivo de orgulho para o Império, quando Carlos V transmite as 17 províncias a seu filho Felipe II, em 1555. A crise financeira no Império e a intolerância religiosa do novo rei provocam revoltas a partir de 1566, ocorrendo em 1568 a sublevação do mais nobre dos Países Baixos, Guilherme de Orange-Nassau, o Taciturno. A partir destas datas, as províncias vivem em constante estado de guerra contra a Espanha e em alianças variáveis com os vizinhos, que tentam tirar partido da situação. Em 1579, pelo tratado União de Utrecht, as províncias do norte fundam a República das Sete Províncias Unidas, rejeitando a dominação dos habsburgos espanhóis. Somente em 1609, já sob o comando de Maurício de Nassau, filho do “taciturno”, é assinada a Trégua dos Doze Anos, que reconhece a independência total das sete províncias separatistas. Surpreendentemente, é durante esse conturbado período em que o país toma forma que os holandeses se lançam numa política de exploração e conquistas comerciais em escala mundial, e constituem diversas companhias comerciais.
O Brasil (o Portugal) para os holandeses
A escolha do Brasil como alvo civil e militar dos holandeses decorre
de alguns fatores específicos enquadrados no ambiente de desenvolvimento colonialista dos países europeus. Trata-se principalmente de fenômenos de transferência. Primeiro, a tomada do comércio hanseático no Báltico, a ponto de praticamente dominá-lo; segundo, a transferência do comércio de grãos oriundos da Polônia e da Prússia para as províncias unidas, especialmente Amsterdã. Mas Amsterdã, além de tornar-se um grande mercado cerealeiro que serve para alimentar os holandeses e de centro de distribuição para o resto da Europa, recebe a sucessão do porto da Antuérpia, que foi literalmente sufocado pelos holandeses com o bloqueio do Rio Escalda e do seu acesso ao mar. É uma transferência geral de homens, de capitais e de atividades que SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 55
ocorreu no último terço do século XVI. As perseguições religiosas em outros países da Europa ajudaram as províncias unidas a se equipar de homens competentes, treinados e ambiciosos, em termos políticos, dispostos à violência quando necessário, mas desejosos de gozar um conforto espiritual tanto de ordem religiosa quanto artística. É natural que, observando os ibéricos carreando suas riquezas, de cujos benefícios participavam desde o começo - os comerciantes holandeses estavam presentes em Lisboa como transportadores das mercadorias que vinham da Ásia e da América e alguns tinham engenhos na Capitania de São Vicente, decidissem, no espírito piratesco da época, apropriar-se das mercadorias, das fontes e das rotas. Em 1595, um consórcio de comerciantes de Amsterdã enviou Cornelius Houtman com quatro navios para a “rota do sul”, isto é, a rota dos portugueses. Com a perda de um, os outros três voltariam abarrotados de especiarias. Foi o início de um tráfego crescente e do assalto, um por um, dos postos portugueses na Ásia. Para economizar esforços e evitar competição interna, em 1602 a República das Províncias Unidas, tendo Amsterdã na posição principal, reuniu as pequenas companhias comerciais que montavam expedições sob a Companhia Unificada das Índias Orientais, a VOC (de Vereenigde Oostindische Compagnie). A seguir, em 1609, ano também da assinatura da Trégua dos Doze Anos, fundou, para simplificar e melhorar o câmbio entre as muito variadas e diferentes moedas europeias no modelo veneziano, o Banco de Amsterdã. E assim, não obstante estar no meio de sua luta contra o enorme poderio espanhol, a república enriqueceu rápida e solidamente.
A união das Coroas da Espanha e Portugal, a partir de 1580, na pessoa do rei espanhol Felipe II, filho de
Carlos V e de uma princesa portuguesa - Yo lo heredé, Yo lo compré, Yo lo conquiste -, como se gabou o próprio Felipe, aumentou o interesse das Províncias Unidas de atacar as possessões portuguesas, especialmente depois que, em 1594, Felipe II proibiu em Lisboa o comércio com os holandeses rebeldes. Da pilhagem oportunística no século XVI aos ataques às possessões portuguesas no Atlântico, passam os holandeses a atacar com mais precisão pontos na costa americana. Em 1624, o corsário holandês Piet Hein toma a Bahia. Este e outros ataques são o prelúdio das ações da Companhia da Índias Ocidentais, a GWIC ou WIC (de Geoctroyeerde Westindische Compagnie), criada em 1621, ao renovar a guerra contra a Espanha no modelo da bem-sucedida VOC, que destruiu o comércio oriental de Portugal. Tal como esta, a WIC foi concebida como uma empresa de contrabando e pilhagem com a missão de capturar as riquezas espanholas e portuguesas na América. Para o Brasil, esta iniciativa culmina com a chegada de uma frota holandesa que ataca e captura áreas do litoral pernambucano. Esse confronto que inclui perdas e retomadas de territórios e povoados dura basicamente de 1630 a 1654. É durante esse contato quase sempre belicoso, mas por vezes pacífico, que as culturas opostas passam a se conhecer e ver indivíduos adversários vivendo situações semelhantes para ambos. Se houve influência, esta seria mútua e esse período de trocas intensas seria mais favorável. 56 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
Durante o conflito
Durante o conflito, havia calmarias, mas a convivência não era tranquila. Em-
bora os senhores de engenho precisassem se submeter - e os invasores perceberam que os senhores de engenho e suas equipes eram imprescindíveis, esse relacionamento não era satisfatório para nenhuma das partes. Mantinha-se um equilíbrio instável constantemente sacudido pelos esforços de Portugal para recuperar a sua colônia. Houve mesmo ocasiões em que portugueses e holandeses podiam se reunir durante uma cerimônia ou festividade. Nessas ocasiões, que ficaram em relatos de padres e comandantes militares que delas participaram, foi possível notar que a ideia de uma comida de qualidade ou de um banquete podia diferir em vários aspectos.
Os senhores pernambucanos viviam sobretudo de suas terras. Poucos eram os
produtos que compravam, especialmente se eram alimentos. Essa autarquia duraria até o século XX, segundo comenta Gilberto Freyre ao comparar o que consumia quando era jovem com o que encontrava mais tarde na fazenda. Devido a essa quase autonomia, os ocupantes do Recife ficavam dependentes de receber seus suprimentos da Europa. Importação necessária pela dificuldade que os comandantes holandeses encontravam de adquirir o suficiente de produtores locais e de fazê-los serem aceitos pelos soldados. Os víveres vieram a faltar criticamente em muitas ocasiões, principalmente no final da ocu-
Os senhores pernambucanos viviam sobretudo de suas terras. Poucos eram os produtos que compravam, especialmente se eram alimentos. Essa autarquia duraria até o século XX, segundo comenta Gilberto Freyre ao comparar o que consumia quando era jovem com o que encontrava mais tarde na fazenda. Devido a essa quase autonomia, os ocupantes do Recife ficavam dependentes de receber seus suprimentos da Europa.
pação. A situação chegou ao ponto em que os soldados estavam vestidos de farrapos e caçavam ratos para se alimentar. Para eles, sair de lugares militarmente protegidos como o Forte das Cinco Pontas, por exemplo, era expor-se a um ataque quase certo com os brasileiros, que rondavam os lugares sem dar-lhes descanso.
A intentona holandesa em Pernambuco foi um encontro de povos e de costumes
que, embora com origens em comum, divergiam ao longo dos séculos. Os holandeses habitaram uma região totalmente plana, exposta ao mar e aos ventos árticos; seus costumes, na língua, na comida e na religião, evidenciavam as influências germânicas. Os portugueses ocuparam espaços costeiros e montanhosos, com clima oceânico e algumas SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 57
características mediterrâneas que resultaram em numerosos microclimas e numa grande variedade de produtos. Usando um método gastronômico e impreciso, pode-se dizer que os primeiros são consumidores de cerveja, gordura animal e porco; já os portugueses podem ser vistos como consumidores de vinho, azeite e produtos do mar. Esclarecedora dessa divisão superficial é a análise dos pratos principais que são conhecidos como da época e dos atualmente consumidos nos dois países proposta a seguir.
Popularmente para muitos a passagem dos holandeses por Pernambuco se concentra em dois povos e um
indivíduo: portugueses, holandeses e João Maurício de Nassau. Este último, Johann Moritz von Nassau-Siguen, foi um nobre alemão, sobrinho bisneto de Guilherme, o Taciturno, que com 32 anos de idade foi contratado para conduzir a colônia Nieuw-Holland como governador-geral e comandante chefe. Como muitos outros nobres antes dele e contemporâneos dele, João Maurício era um condottiere que, como chefe de mercenários, fazia a guerra em troca de uma quantia prometida e uma parte do botim. Este mesmo papel foi desempenhado por outros famosos homens de guerra, nobres de condição elevada como Bernhard von Sachsen-Weimar e Albrecht von Wallenstein, que se distinguiram na Guerra dos Trinta Anos, na mesma época em que Johann Moritz agia.
A principal aspiração de um nobre era defender a honra e ganhar glória, tornando esta manifesta. A carrei-
ra das armas permitia alcançar ambos os objetivos. Relacionado com famílias dominantes do mundo germânico, Johann Moritz buscou fama e fortuna servindo senhores dinamarqueses, alemães e holandeses. Em Brandenburgo, encontrou uma acolhida ampla; o grande eleitor Frederico Guilherme, duque de Brandenburgo, o nomeou governador dos territórios de Kleve e Minden, na Prússia, e conselheiro de todas as questões envolvendo arquitetura e paisagismo, instrumentos fundamentais na manifestação da grandeza e glória de um senhor. Louise Henriette de Orange-Nassau, filha de Stadthouder Friedrich Heinrich, príncipe de Nassau-Orange, apoiou as atividades artísticas - construindo, escavando, plantando seus principais interesses declarados - de Johann Moritz, que em seu centro administrativo, na cidade de Potsdam, criou inúmeras avenidas, edifícios e uma famosa avenida (Unter den Linden), que serviram de modelo para outras cidades.
58 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
Cardápios comparativos Consultando o tradicional manual de Verstandige Kok (O Cozinheiro Sensato) ou um livro de receitas atual, vemos que o cardápio holandês incluía - e ainda pode incluir - um ou mais de um dos seguintes pratos:
boerenkoolstamppot - purê de batatas misturado com repolho. Servido com salsichas; erwensoep ou snert (sopa de ervilha) - é muito espessa, preparada com ervilhas verdes secas, aipo, cebolas, carne de porco, cenouras e batatas. Logo antes de servir, acrescentam-se pedaços de salsichas defumadas. A tradição pede que uma colher colocada na sopa fique em pé (de tão espessa que ela é);
balkenbreij - é um dos pratos mais tradicionais e antigos da Holanda. Usualmente é preparado a partir de um concentrado obtido pela fervura de salsichas como liverwurst (de fígado). O fervido é feito com sangue e farinha, que escurece até ficar preta, cortes de fígado, rins, pulmões e toucinho. Todas as carnes são cozidas duas vezes e moídas com especiarias, farinha ou aveia;
rookworst - “salsicha defumada”, típica salsicha holandesa, ingrediente essencial do stamppot “cozido”. Na Bélgica, onde também é consumida, esta salsicha é frita;
olienbollen - literalmente “bolas de óleo”. São preparadas retirando uma colherada de massa e dando-lhe forma, passando-a entre duas colheres. A massa é feita com farinha, ovos, fermento, sal, leite, uvas-passas e, às vezes, raspas de casca de laranja. Está presente em festivais e é dito que já eram consumidas pelas tribos germânicas;
pannenkoeken (pannenkoek no singular) - são panquecas típicas da Bélgica e da Holanda. Costumam ser grandes, com um diâmetro de 30 centímetros, e bastante finas. Podem ser doces ou salgadas, incorporando fatias de toucinho, maçãs, queijo, uvas-passas. Comumente são consumidas com xarope de beterraba ou maçã, ou então polvilhadas com açúcar de confeiteiro. Muitos consumidores enrolam as panquecas e as comem diretamente com a mão;
slavink “1/2-1/2” - é um prato holandês de carne, também chamado de “meio a meio”, por conter metade de boi e metade de porco. Essa carne é moída e acomodada em trouxinhas de toucinho não defumado, fritas em óleo ou manteiga. Uma variante - blinde vink - é feita usando uma fatia fina de vitela em lugar do toucinho não defumado; SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 59
zuurkoolstamppot - o “chucrute” (sauerkraut em alemão) é amassado junto com batatas, toucinho e uma salsicha defumada. É um prato consistente muito apropriado para o frio;
hete bliksem - “relâmpago quente” é um prato de inverno delicioso. Feito com toucinho, batatas, maçãs ácidas, maçãs doces, sal, pimenta e bastante melaço. Frequentemente é servido com pedaços adicionais de toucinho ou com chouriço de sangue. No leste da Holanda, este prato é conhecido como “céu e terra”, no norte, como doce de “guisado de maçãs”;
hutspot - “miscelânea” feita com batatas cozidas e amassadas, cenouras e cebolas, profundamente arraigada na tradição da culinária holandesa. De acordo com a lenda que sustenta essa tradição, a receita vem dos restos de batata cozida deixados às pressas pelos soldados espanhóis durante o sítio de Leiden, em 1574, na Guerra dos Oitenta Anos, quando os reforços libertadores estouraram diques para inundar os polders. Todo dia 3 de outubro, Leiden faz uma festa em lembrança da sua liberação. Na ocasião, consome-se hutspot com muito bife e costelas.
O interesse em comparar procurando pontos de semelhança e, se possível, heranças do convívio durante os
anos do conflito se completa com a análise de alguns pratos pernambucanos tradicionais: Buchada de bode; Sururu; Sarapatel; Arrumadinho; Cozido; Caldeirada de frutos do mar; Caldinho; Caranguejo; Cachaça/ batida; Cartola; Quibebe; Bredo de coco/ feijão; Bolo de rolo; Bolo de macaxeira.
Estes pratos famosos da culinária pernambucana são citados como exemplo de pratos representativos. A
receita de cada um sofre variações regionais. O fato de serem muito renomados torna dispensáveis as descrições. A seguir, dois quadros que mostram os principais ingredientes usados nas culinárias holandesa e pernambucana. Um exercício interessante do ponto de vista gastronômico é observar algumas propriedades desses conjuntos de ingredientes.
Uma primeira observação: embora muitos ingredientes sejam usados por ambas as culinárias, os princi-
pais diferem. Imediatamente vemos que os holandeses usam abundantemente a batata (às vezes, são chamados de “comedores de batatas”, o que também é uma referência ao célebre quadro de Van Gogh) e muitos frutos do mar. Os holandeses comem muito peixe, especialmente arenque, mas aparentemente não de forma elaborada. A forma preferida para consumir arenque é a mais direta e simples possível: inteiro, direto do balde, com eventuais pedaços de cebola. As frutas usadas são naturalmente diferentes. Levando isto em conta, as matrizes mostram que 60 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
os holandeses usam frutas com maior frequência. Há neles também uma grande preferência pelo porco, em forma de salsichas e outros embutidos. A defumação é corriqueira. De forma geral, pode-se dizer que a culinária holandesa atende às necessidades de um clima frio: muita gordura, toucinho, massa frita e batatas com legumes. A cozinha pernambucana serve-se dos ingredientes disponíveis, usando métodos rapidamente identificados como oriundos de Portugal. Um ícone da confeitaria pernambucana, o bolo de rolo, é resultado de modificações – na espessura da massa, por exemplo - e adaptações, tais como o doce de goiaba, que toma o lugar destinado às amêndoas.
Recife foi afortunado em receber um príncipe dotado dos mais relevantes atributos da nobreza europeia. Seu
modo de vida trouxe costumes que caracterizavam a aristocracia. Em meados do século, começava-se a evidenciar a crescente influência francesa. Mas as circunstâncias - guerra, carência e o empenho em destruir o inimigo e suas obras - não foram propícias a uma troca frutífera e durável.
A principal influência e a mais durável parece ter sido a metodologia de plantar, colher e beneficiar a cana-
de-açúcar desenvolvida pelos portugueses - declaração de Johannes Moritz e outros holandeses que compreenderam a situação: “Sem os senhores de engenho e seus especialistas não há açúcar”, metodologia que os holandeses aprenderam e levaram para as Antilhas e Java. Vieram pelo produto e levaram o procedimento que aprimoraram e utilizaram com grande proveito.
Enrique Raúl Rentería Guerrero Doutor em História (tese: Alimentação na República Velha) e criador dos cursos História da Alimentação (2003) e Design & Tradição na Gastronomia (2007), para alunos da PUC e externos. Autor de artigos sobre alimentação desde os anos 70. Presidente da Associação Brasileira de Gastronomia Molecular. Primeira tradução para o português de BRILLAT-SAVARIN, J-A. “A fisiologia do gosto”, Editora Salamandra, 1989. Autor de “A gastronomia na América Latina” in Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe - Editora Bomtempo, 2006. Pesquisador de costumes alimentares e história dos alimentos; apresentador de aspectos técnicos da alimentação; conferencista. SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 61
Companhia das Índias e a cozinha pernambucana... Pois, nem sempre, é o que assim lhe parece Raul Lody
A
s histórias são contadas conforme a verve de quem as conta, e certamente há um fascínio de muitos pernambucanos referente ao que se convencionou chamar de um “Brasil holandês”.
Um bom exemplo para começar essa saga de fome e de busca pelo que comer está no relato
de uma carta de um funcionário da Companhia das Índias Ocidentais, na época da invasão holandesa, que solicita que sua sede em Amsterdã envie comida para o Recife: “Aqui não há por enquanto víveres da terra, de modo que nós e todos
os que aqui estamos depositamos todas as esperanças de vida em prontas remessas de tantos víveres quanto possam imaginar que temos precisão; enviar-nos juntamente com vinho da Espanha um forte vinho francês, tanto branco como tinto, alguma cerveja, favas turcas, cevada, passas de Corinto e sobretudo grande quantidade de trigo” (Mello, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos. INL/Fundaj, 1987. p.42).
O cenário da invasão holandesa se dá em um lugar social onde a fome foi dominante. Mui-
tas pessoas no Recife, e em Maurícia, morreram de fome...
Administrar é preciso e manter as populações alimentadas também é preciso. Principalmente
manter alimentados os soldados e funcionários da Companhia das Índias Ocidentais. 62 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
Nesse cenário, durante a invasão, Maurício de Nassau, o administrador,
busca reproduzir alguns modelos da civilização dos Países Baixos e quer promover o cultivo de hortaliças e ampliar a fabricação de farinha de mandioca. Inclusive ele sugere que se deve “plantar farinha”.
Pernambuco era a capitania brasileira onde quase todos os alimentos eram
importados de Portugal e da costa do continente africano. Pois, aqui, vigorava a monocultura da cana sacarina e o plantio de mandioca era para a subsistência. Diga-se subsistência de senhores e escravos.
A mandioca, em forma de farinha, foi a opção mais imediata para dar “sa-
ciedade”. Farinha com tudo. A farinha seca era certamente servida com água, ou misturada com as possíveis frutas nativas como caju. E ainda podia ser acompanhada de peixe seco e salgado. A farinha era usada também em forma de pirão, entre tantas maneiras de se inventar o que comer.
Nesse período de dominação holandesa no Brasil, especialmente em Per-
nambuco, os documentos da Companhia das Índias Ocidentais relatavam que o Recife era um “monte de ouro” e que a população morria de fome nas ruas. Aliás, a palavra “fome” era a mais comum nas cartas dos holandeses invasores para Amsterdã. Contudo, a mandioca apresentava-se como uma das possíveis opções de “comer”.
Mercados
A administração da Companhia das Índias Ocidentais buscava reproduzir
os conceitos da matriz europeia e queria organizar o comércio de alimentos em um “vismarckt” (mercado de peixe), um “vleysmarckt” (mercado de carne) e um “groenmarckt” (mercado de hortaliças). Possivelmente essa estratégia de separar os mercados por tipologia era para atender a um princípio dos judeus nos seus SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
conceitos de alimentação religiosa (“kosher”). Nesse cenário, enquanto predominava a plantation da cana sacarina, a mandioca era a grande base da alimentação, sendo processada nas casas de farinha para se fazer a tão necessária farinha de mandioca - e ainda seus outros produtos como a massa “puba”.
Da Holanda, quando chegavam produtos necessários para a subsistência, estavam na relação carne de boi e
de carneiro salgada, toucinho, presunto, língua, salmão, bacalhau, arenque, farinha de trigo, vinhos, cerveja, passas, amêndoas. Existiam alguns produtos também importados da Espanha e da França. Certamente esta lista de produtos era para um consumo muito especial, exclusivo da classe dominante dos “batavos” invasores. Eram ingredientes para cardápios muito especiais.
Em uma das muitas cartas enviadas do Recife para Amsterdã, em 1648, há relatos que soldados holandeses,
para tentar aplacar a fome, apanhavam imundícies das ruas que nem os porcos queriam comer. Imagina-se, então, o que comia a população local, diga-se o povo e os “escravos”. Muitos soldados lançavam-se ao mar, pegavam jangadas para buscar peixe ou iam aos mangues catar caranguejos.
No cenário social desse período de “fome” no Recife e em Maurícia, cidades separadas, vigorava um inter-
esse exclusivo na exportação de açúcar pela Companhia das Índias Ocidentais, além do monopólio do açúcar e do tráfego de “escravos”.
Um açúcar nem sempre tão doce
Logo após a conquista “parcial” de Pernambuco, muitos engenhos estavam sem produzir. Já seus moradores
estavam sem condições de restaurá-los. Surgiam então os “campanhistas”, os incendiários, os bandos de soldados transformados em salteadores. Assim a fome provocava outras ações pela sobrevivência.
Certamente, com exceção de Nassau, da parte da Companhia das Índias Ocidentais ou dos seus outros rep-
resentantes no Brasil, nunca houve interesse na aproximação entre holandeses e brasileiros. Destes esperavam apenas que produzissem muito açúcar, com o qual procuravam enriquecer a companhia. Quando da chegada dos invasores em Pernambuco, 137 engenhos fabricavam açúcar, havendo uma produção média anual de 700.000 arrobas por ano. 64 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
O que comia Maurício de Nassau
Essa dieta é um precioso relato dos hábitos alimentares da melhor mesa, à época, para os padrões culinários.
Certamente a casa de Nassau era o local onde se comia melhor, durante a invasão holandesa em Pernambuco.
Eis a relação dos produtos solicitados de Amsterdã para a cozinha do conde Maurício (1646):
“100 libras de carne de vaca ou 50 libras de carne salgada e 50 libras de carne de vaca; 20 ou 25 libras de toucinho, segundo a necessidade; 12 libras de manteiga; 4 galinhas e pombos, segundo a necessidade; 2 litros de vinho espanhol; 2 litros de vinho francês; 4 litros de cerveja; 11/2 litros de azeite; 4 litros de vinagre; 14 pãezinhos brancos e para cada uma das mesas tantos pãezinhos quantas pessoas houver, exceto a mesa de S. Exa., onde haverá pão e bebida sem conta certa; 3 litros de aveia; 5 litros de ervilha; 12 litros de carne de fumeiro” (Mello, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos. INL/Fundaj, 1987).
Uma possível sobremesa entre os presentes que os padres traziam para Nassau consistia em quatro barris de
conserva de mangaba, fruta nativa, “da terra”, na forma de doce em calda.
Um Brasil holandês com liberdade para judeus
O edital dos Estados gerais, de janeiro de 1634, garante a liberdade religiosa a católicos e judeus. Isto pos-
sibilitou a chegada dos “marranos” de Amsterdã para imigrar para Pernambuco: “Esta terra vai se enchendo de judeus”. Também os judeus portugueses assumiriam publicamente suas tradições religiosas. A congregação israelita do Recife, a chamada Santa Comunidade Tszur Yisrael, já estava organizada em 1642. Também na Ilha de Santo Antônio havia a sinagoga Maiguen Abrahan. Para os judeus, devem ser cumpridas as leis do “kashrut”, também orientadoras de “uma pureza alimentar”, de um conceito sobre o que comer e como comer.
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 65
Nesse contexto, observa-se que os hábitos alimentares dos judeus em Pernambuco, onde suas principais
celebrações religiosas que mantêm o elo da identidade se dão através de cardápios especiais, seguem um princípio “kosher”. Princípio de base alimentar, de higiene e de fundamento religioso.
Então, para se viver o “shabat”, “rosha hashana”, “yom kipur”, “sucot”, “shavuot”, “chanucá”, “purim” e
“pessach”, é basicamente necessário usar farinha de trigo para, por exemplo, fazer uma comida indispensável como o “challah” ou “khale”, um tipo de pão feito com farinha de trigo ou trigo integral, leite, fermento, ovos, açúcar ou melado, e água, cuja massa é trançada e polvilhada com gergelim ou sementes de papoula.
Referente também ao “matzá”, pão sem fermento da tradição judaica, nesse período foi necessária uma adap-
tação da receita, substituindo a farinha de trigo pela farinha de mandioca, que quando assada resultava em um tipo de bolacha, um beiju.
No cenário da relação entre a farinha de trigo e a farinha de mandioca, são determinados estilos e novos usos
para os produtos “da terra”, certamente imperando a mandioca. Assim, as formas de se comer encontram nesta raiz americana uma base fundamental.
Há ainda uma mitologia de relatos “heroicos” que senhoras de engenho nacionalistas, quando substituíram o
trigo por massa puba, buscavam uma “identidade” brasileira. Certamente a realidade econômica à época só oferecia mandioca.
Quartos das maravilhas
A visão de um “paraíso tropical”, pelo que de exótico ele possa oferecer, de imaginário e especialmente de
produtos, corresponde a plantas, animais, peças indígenas. Maurício de Nassau sempre buscava ampliar seus negócios na comercialização de produtos exóticos. Vê-se, nesse momento, uma Europa que “descobre” a África, as Américas, e desse “novo mundo” surgem os “gabinetes de curiosidades” ou os “quartos das maravilhas”.
66 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
Quartos das maravilhas ou gabinetes de curiosidades eram espaços
para reunir o novo, diferente, exótico, bizarro, raro, único, precioso, em testemunhos materiais de povos e regiões do mundo em “descoberta” e em pleno processo “colonial” no Ocidente e no Oriente.
Essa busca de objetos para a formação de coleções se dá na Europa dos
séculos XVI, XVII e XVIII, precedendo assim a organização dos museus.
Agregavam-se os conteúdos culturais e comerciais nos inventários e
para a formação de coleções na Europa, dando aos colecionadores lugares especiais e notáveis, no âmbito da cultura e do poder econômico e comercial.
Esses “gabinetes” formaram o imaginário de um mundo desconheci-
do - o “novo mundo”, que reunia elementos mitológicos com elementos da natureza real e da criação do homem.
Objetos, desenhos, animais e plantas do “novo mundo” vão relatando
o mito e a realidade da ciência, especialmente na “história natural”. São viajantes, pintores, desenhistas botânicos, entre outros, que se dedicavam a fazer esses registros.
Essas coleções possibilitaram registros de peças originais e deram um
novo valor à realidade. Também essas coleções mostraram um mundo em processo de descobertas e classificações.
São famosos alguns “gabinetes de curiosidades” na Europa: Colé-
gio Romano, 1615, Itália; Kuntskamner, 1654, Dinamarca; Rodolfo II de Habsburgo, Praga; Conde Moscaro, Itália; o livro Cosi più Notabili; Albertus Seba, 1734, Holanda, “Loccupletissimi Rerum Thesauri Accurata Descriptio”, obra que reuniu 13 ilustradores que trabalharam por 30 anos.
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 67
Nassau e suas “coleções” para vender para os gabinetes de curiosidades e para novos mercados de consumo na Europa
Johann Moritz von Nassau-Siegen promoveu um trabalho de recuperação de imaginários do Brasil no século
XVll, em Pernambuco, formando coleções de objetos e iconografia como os mapas para facilitar as rotas comerciais e lotear coleções, a fim de buscar novos mercados de consumo por produtos exóticos. Loteou e comercializou suas coleções quando do seu retorno à República das Províncias Unidas, nos Países Baixos.
Nesse período de organização de “acervos” e registros, também há publicações que relatam essa documen-
tação iconográfica, quando da permanência de Nassau em Pernambuco: • História Natural, de Guilherme Pilar e Georg Margrave; • História Naturalis Brasiliae e Memórias de Nassau, de Gaspar Barléus; • Rerum per Octennium in Brasilia et alib nuper gsetarum sub praefectura Illustrissimi Comitis I Maritti Nassoviae (1647), 27 gravuras de Frans Post e mapas de Marcgrave.
Um excelente mercado para as rotas comerciais e também para revelar o exótico, com destaque para os pro-
dutos comestíveis, são os ingredientes “da terra”.
Sabores telúricos ou o início da formação de “cozinhas regionais pernambucanas”
Algumas das possibilidades de comida no Brasil, nos séculos XVI e XVII, estão nos alimentos nativos, nos
produtos “da terra”. Há um olhar sobre a costa e a Mata Atlântica. Saberes ancestrais dos povos nativos, povos americanos. Certamente muitos encontros com as receitas de Portugal e do continente africano. Os cardápios “da terra”:
Mandioca - “Os mantimentos que sustentam os moradores do Brasil, brancos, índios, e escravos da Guiné são diversos. Uns bons e outros não tantos dos quais os principais e melhores são três, e destes ocupa o primeiro lugar a mandioca, que é raiz de um pau, que se planta, a qual, em tempo de um ano, está em perfeição de se poder comer, 68 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
e por este mantimento se fazer de raiz-de-pau, lhe chamam em Portugal farinha-de-pau (...) pois essa farinha é um excelente mantimento e tal que se lhe pode atribuir meritamente o segundo lugar, depois do trigo, sem exceder a todos os demais mantimentos, de que se aproveita no mundo” (Brandão, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Salvador, Progresso, 1956. p. 65).
Gilberto Freyre sugere que a primeira sobremesa feita no Brasil tenha sido a mistura da farinha de mandioca
com o “mel de engenho”.
Um dos registros mais antigos sobre a doçaria brasileira está no relato de Pero de Magalhães Gândavo,
quando ele se refere a um bolo feito de aipim, ovos e açúcar, louvando a carimã com a qual são feitos muitos bolos. Os portugueses, com essa carimã bem peneirada, fazem um bom pão e bolos amassados com leite e gemas de ovos. Desta mesma massa, fazem mil invenções de beilhós. Com a carimã, as cozinheiras portuguesas fazem seus doces tradicionais com frutas envoltas em massa doce; já com os beilhós, fazem bolinhos fritos e passados em calda de açúcar. Há muitas maneiras de fazer coscorões (massas fritas), tartes, empanadilhas, pastéis doces, queijadinhas de açúcar, misturando-se farinha de milho e de arroz.
Essas informações, tão fundamentais sobre a formação do doce brasileiro, estão no livro “Tratado da terra
do Brasil. História da Província Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil”, de Pero de Magalhães Gândavo, que foi impresso originalmente em Lisboa, em 1576.
Receita de beilhós - Cozinhe um pouco de carimã, bem peneirada, com leite, açúcar e uma pitada de sal; bata dois ovos e misture tudo nesta massa com a manteiga quente. Tal massa em forma de bolinhos é frita e, na sequência, é mergulhada em calda de açúcar. Só depois é pulverizada com açúcar e canela. Trata-se de uma adaptação da receita do livro de cozinha da infanta D. Maria. É uma receita procedente da civilização Magrebe, mais precisamente de uma comida chamada “rghaif ”, cuja farinha utilizada é a de trigo. Receita que chega à cozinha de Portugal com a civilização afro-islâmica, do norte do continente africano.
Batata-doce e amendoim - Também há opções com a batata-doce, destacando-se o inhame e o cará. O inhame, já no início do século XVI, chega da África, com a introdução de várias espécies vindas da costa da Guiné e de São Tomé e Cabo Verde. Outro ingrediente da “terra” é o amendoim, consumido de diferentes maneiras, conforme relatos de senhores de engenho. Quando comidos crus, apresentavam o sabor de grão de bico ou então eram cozidos, SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 69
assados com casca, tais como as castanhas, e também torrados fora das cascas, tais como as farinhas e paçocas com açúcar, entre tantas maneiras de se comê-lo.
Milho - O milho é um tema que traz muitas maneiras de se comer e de se beber. O Zea mays, americano, traz muitas possibilidades culinárias. Ele se une às tradições culinárias do “milhete” (milho-painço), do “sorgo” (milho-zaburro) e do tipo Bissau, da costa ocidental do continente africano, além daqueles cultivados pelos povos do Magrebe, no norte do continente africano. Nos relatos de Gabriel Soares de Souza, há referência ao milho como de uso cotidiano, acompanhando galinha, peixe - é “mais saboroso do que arroz”. No Brasil, os portugueses faziam pão e bolo de milho, entre tantas outras receitas.
Palmito - Outro caso saboroso é o palmito. Há relatos de viajantes que viam o palmito como uma espécie de tamarineira ou uma espécie mais selvagem. Relatam ainda que o palmito era encontrado em toda parte da África, da América e do Brasil.
Pimenta - Também “da terra”, as pimentas se apresentam frescas e assim são tradicionalmente consumidas. As nossas pimentas nativas pertencem à mesma família do tomate, da berinjela, do jiló. São muitas as pimentas conhecidas como “capisicum”, que estão nas receitas nativas dos nossos índios, no preparo de carnes e peixes.
Frutas nativas de Pernambuco, frutas da Mata Atlântica - Umbu, caju, pequi, mangaba, oiti, pitanga, maracujá, araçá, araticum, goiaba, cajá, pitomba, ingá, cajá-umbu, siriguela, abiu, sapoti, entre tantas consumidas in natura ou na forma de doces.
As tradições do queijo - A memória dos paladares portugueses, ainda nesse momento da invasão holandesa, certamente remonta à memória do queijo, como importante referência da tradição culinária “do Reino”.
Exemplos de queijos: cabra transmontano (cabra), Castelo Branco (ovelha), azeitão (ovelha), Évora (ovelha),
Nisa (ovelha), Serpa (ovelha), Serra da Estrela (ovelha), Ilha Graciosa (vaca), São Jorge (vaca). Nesses contextos, há ainda a tradição dos queijos holandeses no século XVll: Kruiden (cabra), Keruhem (vaca), Leidse kaas (vaca), Maasdam (vaca), Nagelkaas (vaca), Gouda (vaca). O “farmhouse” produz os melhores queijos Gouda com leite não 70 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
pasteurizado. Nos cenários da invasão holandesa, o gado bovino era quase monopólio de alguns conventos e engenhos para o consumo seletivo do leite.
Comer é sempre preciso
Certamente nesse período, o confronto dos batavos no Nordeste brasileiro possibilitou também “encontros”
com as tradições culinárias, com a fome, com as descobertas dos produtos nativos e, principalmente, de uma civilização em formação, a partir da cana sacarina e dos cardápios à base de mandioca. Então, vê-se que as cozinhas são processos econômicos, de busca de referência dos paladares e de conquista de novos sabores. Com a cozinha pernambucana o mesmo ocorreu, contudo a base portuguesa já revelava um grande encontro mundializado com muitas cozinhas do Ocidente e do Oriente.
Raul Lody Antropólogo, museólogo, representante no Brasil do ICAF - International Council Anthropology Food (2002-2012). É criador e coordenador do Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira (Fundação Gilberto Freyre). Coordenou o Projeto de Registro Patrimonial Imaterial do Ofício das Baianas de Acarajé (IPHAN). É curador da Fundação Pierre Verger (Bahia), do Instituto de Arte e Cultura (Ceará) e sócio efetivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Autor de vasta obra na área do patrimônio de matriz africana, da antropologia da alimentação e do legado de Gilberto Freyre. Há 40 anos realiza um extenso trabalho de etnografia no Brasil, em países africanos e na América Latina. SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 71
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
4º Seminário Comida & Identidade (2013)
Cultura e civilização mediterrânea e suas projeções na cozinha pernambucana Raul Lody
O
Mediterrâneo compreende civilizações milenares da Península Itálica, da Grécia, do norte do continente africano - Magrebe, da Espanha e do sul da França, que se distinguem como territórios detentores de patrimônios culinários que foram ampliados pela Europa e pelas Américas, reunindo assim importantes acervos gastronômicos que fazem a “dieta mediterrânea”. Destaque para as permanências culturais do norte do continente africano, que por quase oito séculos estiveram na Península Ibérica (Espanha e Portugal), numa verdadeira ação civilizadora afro-islâmica. Deste modo, estabeleceram as bases das “cozinhas” de Portugal e, consequentemente, do Brasil. A região mediterrânea, histórico ponto de encontro do Oriente com o Ocidente, é um cenário notável de mercadores e, em destaque, de árabes que realizaram rotas comerciais, atuaram na economia e promoveram a chegada das especiarias e do açúcar da cana sacarina na Europa. Esse açúcar tem a sua expansão na Península Ibérica, nas ilhas atlânticas de Portugal, no Brasil, especialmente no Nordeste e, particularmente, em Pernambuco. Dessa civilização mediterrânea, chegaram ingredientes, técnicas culinárias como o cuscuz, filhós, doces com açúcar e canela, arroz-doce, entre tantas outras maneiras e estilos de se fazer comida.Assim, o 4º Seminário Comida & Identidade vem apontar na história, na antropologia da alimentação e na gastronomia esses acervos que aproximam a civilização mediterrânea da mesa brasileira e, em especial, da mesa pernambucana. Pois antes de reconhecer as “cozinhas” de Pernambuco, é preciso conhecê-las.
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
Alimentação e cultura na área mediterrânea:4 das adaptações locais aos pratos transnacionais F. Xavier Medina
O
Mediterrâneo, como qualquer espaço, é uma construção sociocultural e política edificada sobre um ente geográfico dado. Do mesmo modo, falar de alimentação no Mediterrâneo implica também uma construção social e cultural concreta.
Enquanto isso, alimentos e comportamentos alimentares geralmente estão localizados dentro
do marco das sociedades que os produzem e recriam e, portanto, dentro de sistemas socioculturais específicos a partir do qual estão pautadas as características que os conformam.
Quanto às sociedades mediterrâneas, como observou Isabel González Turmo (1993:36-37): “Os hábitos que compõem a dieta e taxa de alimentação no Mediterrâneo foram consolidados ao longo dos séculos: o homem teve que ganhar terreno para compensar a geografia do Mediterrâneo como muitos espaços áridos, importou a maioria de seus produtos e expandiu os sistemas de irrigação. E tudo isso apenas para obter esse equilíbrio necessário e lhe condenou a sobriedade cotidiana, a parcimônia”.
A luta com o meio sempre foi uma constante na área mediterrânea, e apesar da relativa
amenidade do clima, as terras que a rodeiam nunca foram fáceis nem demasiado generosas. Entretanto, o Mediterrâneo sempre foi, por um lado, uma importante encruzilhada de caminhos e um 4
Este artigo recolhe reflexões que temos trabalhado ao longo das últimas duas décadas. Encontraremos aqui interpretações que partem
de reflexões que evoluíram ao longo dos anos e podem ser vistas em Medina (1996, 1998a, 1998b, 2000, 2004, 2009) e Contreras, Riera e Medina (2005).
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 75
grande centro integrador e redistribuidor de influências - não apenas alimentares - recebidas dos quatro pontos cardinais, e por outro, um campo de aclimatação excepcional, onde os produtos - a maior parte dos existentes hoje em dia - vindo de outros lugares mais ou menos distantes encontraram um meio adequado para serem cultivados e, desta maneira, esperarem sua aceitação e implantação definitiva dentro dos sistemas alimentares locais.
Nas linhas abaixo, tentaremos discorrer sobre os elementos que compõem a alimentação na área mediterrânea
a partir de uma perspectiva social, cultural e inclusive sociopolítica, prestando uma especial atenção na segunda parte do artigo - a margem sul e, em particular, o seu prato mais emblemático: o cuscuz. Um prato transnacional que, através dos séculos, viajou até o Brasil para se transformar hoje em dia em um dos elementos mais emblemáticos da cozinha recifense e pernambucana em geral.
Os alimentos do Mediterrâneo
O antropólogo francês Igor de Garine (1993: 11), como também já o fez um dia Fernand Braudel, em uma
de suas frases mais clássicas, nos diz que: “Talvez a distribuição do olivar marque os limites do que consideramos o mundo agrícola mediterrâneo. Há numerosas variações de matizes, do norte ao sul e do leste ao oeste, porém podemos definir, tranquilamente, a área mediterrânea como a que permite, sem sombra de dúvida, o culti- vo de cereais, de vinhas e de oliveiras em contrapartida à criação de gado, antigamente nômade, atualmente sedentária, com predominância de ovinos e caprinos”.
Como observou o escritor Néstor Luján (1996), na culinária grega encontramos as bases do que será a dieta
mediterrânea: azeite, cereais, às vezes fermentados na forma de pão, vinho, peixes e manipulação de carnes, começando com os galináceos e terminando com aquele que chegou por último, o coelho. Podemos dizer, em certa medida, que a alimentação na região mediterrânea é caracterizada pela presença e participação do que poderíamos chamar de comunidade de ingredientes, mas, acima de tudo, de comunidade de técnicas culinárias e preparações compartilhadas, que em seu conjunto permitem falar de um sistema culinário mediterrâneo (Contreras, Riera e Medina, 2005). 76 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
No geral, encontramos, por um lado, cereais preparados de diversas maneiras: na forma de pão ou massas,
e até mesmo de arroz, no norte do Mare Nostrum; mas também no Magrebe, sem ir mais longe. Como veremos, conservou-se um prato emblemático como o cuscuz ou o trigo pisado no pilão e fervido. Por outro lado, as verduras e os legumes frescos estão presentes em todos os países da bacia. O tomate, um americano que se tornou um elemento indispensável e muito comum nas cozinhas do Mediterrâneo. O mesmo poderia ser dito das frutas, que são encontradas em uma gama muito ampla. Os legumes, porém, que há alguns anos eram um dos alimentos básicos, sofreram alguma regressão geral.
As carnes, por sua vez, eram relativamente escassas historicamente, até o século XX. No entanto, seu valor
simbólico sempre foi forte e, ao mesmo tempo, “objeto de desejo”, aumentando a sua presença na dieta dos mediterrâneos para o desespero dos nutricionistas.
A trilogia mediterrânea
A trilogia mediterrânea - trigueiras, videiras e oliveiras - se tornou lendária. É necessário, no entanto, analisar
seus elementos em perspectiva, se queremos ter uma ideia mais concreta de qual era o seu verdadeiro papel ao longo do tempo, dentro da alimentação das sociedades mediterrâneas.
Certos aspectos revelam a importância diacrônica dessa trilogia na alimentação da área tratada, especial-
mente para a década de 50-60. Assim, no caso da Itália, a partir de fins do século XIX e até meados do século XX, o consumo de alimentos de vinho, trigo e derivados do azeite de oliva foi o único mantido constante, ao contrário de alimentos que tiveram um acentuado aumento como carne, frutas frescas, açúcar ou café. Ou outros que tenham sofrido um retrocesso até os dias atuais, tais como os legumes ou o milho (Sentieri, 1993: 51). Nesta mesma linha, González Turmo (op. cit.) expressa como a Espanha, até os anos 60 (o ano da grande industrialização), manteve uma dieta ajustada ao modelo mediterrâneo, ao passo que hoje está longe de ser esse protótipo.
O azeite é um dos alimentos mais emblemáticos da dieta mediterrânea. Já se transformou entre os gregos na
“graça fundamental por excelência” (Lujan, op. cit.). Por sua vez e desde os tempos clássicos, autores como Horácio ou Juvenal testemunharam a sua utilização no molho de peixes e vegetais, e Apício o usa na maioria de suas receitas: para fritar peixe, em molhos, cozido com legumes e até mesmo na pastelaria. SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 77
No entanto, não podemos generalizar. Romero de Solís (1993: 52) ob-
serva que, em tempos antigos, exceto os habitantes da costa, o resto da Península Ibérica não tinha conhecimento do pão e azeite, de forma que para untar os alimentos se utilizava o sebo animal. E este hábito culinário se estendeu por muitos lugares do Mediterrâneo ao longo dos séculos, não faz muito tempo.
Mas a importância do azeite excede a própria oferta. Sentieri (1993:
42) mostra como o óleo foi usado para alimento, para iluminação, para cuidados com o corpo e para as abluções. Autores como Montanari (1996) e Roque (1996) enfatizam a grande importância cultural do azeite, tanto no plano litúrgico - administração dos sacramentos, acesso do “iluminado” aos lugares sagrados - como no plano da saúde ou não religioso: a obrigação de abster-se dos produtos animais no período quaresmal e em ouros períodos do ano contribuiu muito para difundir na Europa uma cultura do azeite de oliva alternativa ao uso bastante estendido da banha. Neste sentido, e como recorda Contreras (1996), não é necessário que nos remetamos até cem anos atrás para observar que a banha, de porco e outros animais, foi uma graxa corrente para cozinhar a maioria dos nossos pratos e que as classes populares reservavam o azeite de oliva para comê-lo cru ou com saladas. Em nível religioso, o azeite de oliva é mais utilizado por muçulmanos e, sobretudo, judeus, de maneira que cozinhar com banha de porco ou com azeite de oliva se transformou também em um forte marcador da identidade religiosa.
Vemos, pois, através de tudo o que foi exposto, a importância que se
concede a esse alimento, tanto em nível sociocultural e simbólico, como no que se refere à ingestão alimentar propriamente dita - e muito especificamente nas reivindicações médicas e dietéticas: o azeite de oliva é o principal elemento saudável da dieta mediterrânea na sua versão mais medicalizada. Uma importância que, de maneira muito similar, compartilha com outro dos elementos emblemáticos da trilogia: o vinho.
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
O vinho é um alimento que só marginalmente pode responder a uma exigência nutritiva. Sua ação eufori-
zante, estimulante ou tonificante, e inclusive sua função festiva e de relação social, aparece, entretanto, como muito significativa em relação ao seu consumo.
Com respeito ao seu cultivo, convém estabelecer uma diferenciação entre os países da bacia mediterrânea e
os da Europa central, onde a viticultura possui características diferentes, principalmente por questões climáticas. No Mediterrâneo, as cepas alcançam uma maturidade total, e no momento da vendimia, a uva tem todos os elementos naturais necessários para a elaboração de um vinho de qualidade. Nos países da Europa central, e inclusive no centro e no norte da França, há que se recorrer muitas vezes ao uso da chaptalização (acrescentar açúcar aos mostos) para conseguir um equilíbrio adequado (Torres, 1996).
A vinha é espontânea no Mediterrâneo. Os gregos a implantaram no Mediterrâneo ocidental como cultivo
e terão uma grande influência na sua difusão entre os indígenas ibéricos. Os romanos farão, por sua parte, uma exploração intensiva.
Mas se a cultura da vinha e do grão é tão importante na Europa, e especialmente no mundo medieval,
também é forte pelo seu caráter ideológico que o pão e o vinho – como vimos atrás em relação ao azeite - são instrumentos do milagre eucarístico na tradição cristã. A propagação da nova fé também significou a disseminação da agricultura e da cultura do vinho, suporte técnico essencial da liturgia cristã.
Em nível mais geral, a importância do vinho é muito relevante. Segundo Riera (1996), o lugar central
atribuído pelos agricultores de vinho ao seu sistema alimentar explica cada exploração. O vinho local, rico em carbono, enriquecia em hidratos de carvão uma dieta pobre em lipídios e proteínas. Mas a importância do vinho não será reduzida apenas ao mundo cristão. Apesar das proibições do Corão, este será um item muito popular em Al-Andalus, a parte muçulmana da Península Ibérica na Idade Média, e não deixará de ocorrer ou de se vangloriar na literatura, apesar das proibições do Corão.
O vinho, especialmente o tinto, por muitos séculos, foi considerado saudável e terapêutico. Castro (1993:
61) mostra como o vinho era considerado no imaginário popular, não apenas como um nutriente vigoroso, mas também como um produto saudável. Atribuir propriedades terapêuticas ao vinho “parece ser parte do paradigma
SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 79
cultural ocidental desde os tempos bíblicos, na medida em que, na simbologia tradicional, o vinho e as uvas representam o sangue de Cristo.” Da mesma forma, “ao vinho tinto lhe foi atribuída a virtude de ‘criar’ sangue. Era, portanto, completamente saudável”.
Você pode ver como a construção de um imaginário terapêutico sobre o vinho é dada. Segundo o histori-
ador A. Riera (op. cit.), no século XV, no atual sul da França (Provence), e devido à escassez, procuraram-se vinhos no exterior para atender às necessidades dos muitos vizinhos doentes, que é um exemplo interessante das virtudes curativas atribuídas a este alimento no final da Idade Média. Castro (op. cit.) confirma, por sua vez, que a utilização do vinho nos hospitais europeus parece ter sido uma prática habitual, pelo menos desde o século XVI.
Hoje o discurso médico, mesmo que devido a razões muito diferentes, ainda é profícuo sobre a questão do
seu impacto na saúde. De acordo com a medicina atual e a nutrição, o vinho contém não apenas uma concentração moderada de álcool, como também antioxidantes naturais de ação múltipla. Assim, somos informados que o consumo moderado e responsável de vinho, e de preferência durante as refeições, tem efeitos cardíacos muito saudáveis, uma vez que fornece uma quantidade moderada de etanol e inúmeros polifenóis.
O terceiro elemento da trilogia é o trigo e, entre os seus derivados, se destaca, sem dúvida, o pão. No qual a
Europa tem centralizado, desde muito tempo, o seu sistema alimentar.
Já em Estrabão e Plínio encontramos que nas tribos da costa ibérica predominava o pão como base da ali-
mentação. O mundo romano, ideologicamente organizado em torno dos valores econômicos e culturais da agricultura, tinha pão como seu máximo “valor” alimentar, tomado como um símbolo da civilização (na língua de Homero, “comedor de pão” é sinônimo de “homens”).
No mundo islâmico, os cereais são destacados como a base da alimentação, tanto em relação ao pão como
na preparação de outros pratos: sêmola de mingau, cuscuz, massas, bolos e biscoitos etc.
Junto com o vinho, como vimos atrás, o pão tem um caráter fortemente ideológico como um instrumento
religioso na tradição cristã. Na Idade Média, o pão tornou-se um alimento tão essencial que já nos séculos X-XI lhe tinham atribuído um forte simbolismo religioso. Mas não é apenas na tradição cristã que podemos encontrar este aspecto. Como podemos ver no caso da Turquia (Leach e Leach, 1984: 85-86). “Embora o Alcorão não lhe conceda 80 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
destaque excessivo, o trigo ocupa um lugar de destaque das crenças religiosas turcas. É considerado uma bênção de Deus, pelo que ofendê-lo era ter que ser submetido a punições. Assim, o aviso que na maioria das vezes é feito às crianças para que não violem o tabu do trigo ou outras proibições: Allah carpa (Deus vai castigá-lo!). É proibido urinar, defecar ou realizar atividades sexuais nos campos de trigo e urinar ou defecar quando você transporta o trigo, especialmente na forma de pão. Ao comê-lo, deve-se fazê-lo sempre acima da linha do peito, dissociando-o da parte (“metade”) profana do corpo. É por isso que as plantas de trigo são colocadas sempre sobre as mesas e nunca sobre o chão. Nunca se pode permitir que o pão toque o chão e, se isto acontecer, pisá-lo duplamente é blasfêmia. As crianças turcas foram ensinadas a beijar o pão e tocar a testa com ele diante de Deus como uma desculpa. Muito mais do que qualquer outro alimento, o pão não deve ser deixado inacabado após uma refeição, e se sobrar, nunca deve ser jogado fora. Como destacam os mesmos autores, “os tabus de trigo ajudam a proteger as forças da fertilidade e são fundamentais para salvaguardar a boa relação entre Deus e o povo”. Não devemos nos esquecer, neste mesmo sentido, que o antigo costume existente no mundo cristão de beijar o pão depois de caído no chão provém deste mesmo vínculo com Deus e está ligado ao forte caráter ideológico e simbólico que o alimento possui.
Mas, na Europa, o consumo de trigo também funcionou como marcador social e, especialmente, durante a
escassez de alimentos. Não devemos esquecer que, nas palavras de Ignacio Riera, “a fome é um dos clássicos da cultura mediterrânica” e que, nos tempos frequentes de crise alimentar, o trigo tornou-se um escasso e valioso bem, além do alcance de uma boa parte da população. O prestígio e a centralidade do pão mantiveram-se inalterados durante séculos na Europa, e pode-se dizer que continuou até meados do século XX, tendo o seu consumo sido reduzido progressivamente até o presente momento.
O Mediterrâneo, um espaço de mestiçagem alimentar
O Mediterrâneo é e sempre foi um lugar de comunicação e contato. Nas palavras de Fernand Braudel, as
rotas deste mar interior são de terra e são de mar, e estão ligadas em um sistema de circulação que tem impulsionado todos os tipos de relações entre as várias empresas que se desenvolveram em suas margens.
Na verdade, a lendária trilogia clássica que dá o contexto da dieta mediterrânea é apenas parte de um todo
complexo e, obviamente, muito maior. Não há dúvida de que a área do Mediterrâneo é uma zona de mistura cultural. Vegetais que são a essência de suas cozinhas são quase todos de outras áreas: tomate, milho, batatas e pimentões SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 81
(americanos); arroz, pêssego ou laranja (asiáticos); alcachofra, espinafre e berinjela (árabes). E poderíamos mencionar uma longa lista da qual se salvariam basicamente o trigo, as vinhas e os olivais. Mas essa capacidade de integrar elementos também não é acidental. Não podemos esquecer que muitas das nossas cozinhas são feitas mais sobre procedimentos do que de receitas. Assim, temos uma grande facilidade para adotar novas matérias-primas para os pratos tradicionais. Por exemplo, nas palavras de González Turmo (op. cit.) foram introduzidos, em muitos guisados andaluzes, muitos legumes cozidos ou carnes que não os utilizam, sem alterar a sua essência. Em contrapartida, os países industrializados, cada vez mais famintos por uma comensalidade ritual, entronizaram esses modelos, quase litúrgicos, tão comuns na vida cotidiana e festiva dos povos do Mediterrâneo.
Como Garine expressa (op. cit.), alimentos vegetais, sejam crus ou cozidos,
foram e continuam sendo essenciais na cozinha mediterrânea. Os vegetais ou verduras serão o elemento essencial de sopas, tanto as que são servidas quentes quanto frias, que estão presentes de um lado para o outro do Mediterrâneo. Não é estritamente necessário que sejam acompanhadas por proteínas animais, podendo apenas utilizar o pão para engrossá-las. Nos livros de cozinha do século XV, é significativo, por exemplo, que nos textos da zona mediterrânea - entre italianos, provençais e catalães, seja maior a insistência no uso das verduras, das ervas e raízes de horta que em outros locais de toda a Europa. Como destaca A. Riera (1996), com legumes e verduras, dois produtos fáceis de obter no campo, as mulheres do campo preparavam sopas e ensopados, que eram dois pratos bem conhecidos em muitos lares. A couve, o alho-poró, o espinafre, a cebola e o alho – dos condimentos básicos e essenciais nas cozinhas mediterrâneas - entravam regularmente crus, cozidos, fritos ou fervidos nos pratos dos agricultores catalães, ocitanos e provençais.
Não podemos nos esquecer que falamos de uma alimentação em nível popular,
ou seja, dos níveis mais baixos da sociedade e não das camadas superiores. O baixo prestígio que certos elementos como a cebola, o alho-poró, o espinafre; ou mesmo, os recém-chegados americanos, tomate e batata têm tido tradicionalmente entre as classes 82 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
abastadas é notável. E são apenas os mais populares - aqueles que são mais frequentemente ameaçados por ondas de fome que muitas vezes usam esses elementos, ou são mais abertas, forçadas pela necessidade de introduzir novos alimentos à sua dieta.
Com relação ao mundo muçulmano, verduras e legumes – a cebola, o alho, a acelga, o espinafre etc., bem
como as frutas, serão fundamentais na cozinha andaluza, sem querer prescindir de outros elementos, tais como a carne ou o pão. Já no século XVI, o espanhol Diego de Torres, primeiro historiador dos xerifes marroquinos, comenta:
“Tanto o ambiente físico quanto o ambiente social parecem, aos nossos olhos, muito semelhantes ao que se pode ver na região da Alpujarra de Sierra Nevada. As aldeias situadas nas encostas do norte do Atlas eram abundantes em águas. Seus campos estavam cheios de laranjeiras e limoeiros nas partes mais baixas e mais abrigadas e dispunham de abundantes grãos cultivados nas encostas, além das árvores de fruto de tipo europeu” (Caro Baroja, 1956).
Também não se dispensa o arroz, cereal importante na dieta mediterrânea que já era conhecido na Península
Ibérica antes da chegada dos muçulmanos, mas que eles estenderam e aperfeiçoaram o seu cultivo. Ao longo da Idade Média, a cozinha mediterrânea só o reconheceu como verdadeiro – e assim continuou incrementando sua utilização até os nossos dias. Enquanto em outro lugar, permaneceu um produto equiparado às especiarias exóticas. Sem dúvida, portanto, atualmente apenas as cozinhas espanholas e italianas conseguiram forjar uma cultura do arroz em suas tradições culinárias. Enquanto isso, no lado sul do Mediterrâneo, o cultivo do arroz tem sido historicamente importante em áreas como o Magrebe central, o que é explicado principalmente pela presença dos turcos, acostumados com a sua utilização, assim como outros povos do Oriente (Rosenberger, 1994: 314-315). Com relação ao mundo judeu, é interessante remarcar que a maior parte das verduras, frutas, cereais e pescados é intrinsecamente kosher, e pode ser consumida sem nenhum tratamento específico por parte dos membros da comunidade.
O tomate e a pimenta são considerados hoje plantas mediterrâneas indissociavelmente ligadas às cozinhas de-
sta área. No entanto, eles encontraram resistências muito diferentes quando da sua chegada à Europa: a pimenta teve um sucesso quase que imediato, enquanto o tomate demorou a encontrar a posição relevante que goza hoje em dia; SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 83
sua adoção se deu, portanto, um pouco tarde. Não foi até meados do século XVIII que o tomate obteve o status de planta “útil”, pelo menos em tempos de fome. Mas com o passar do tempo, fez esquecer sua origem americana para que, finalmente, fosse aceito, até que se tornou uma parte inseparável da identidade alimentar mediterrânea.
Em tempos difíceis, havia outros produtos que foram úteis para os povos do Mediterrâneo como suplemento
alimentar. Foi o caso da batata e do feijão. Ambos são muito energéticos e capazes de substituir ou serem agregados aos produtos tradicionais do sistema alimentar local, ainda altamente valorizados e preservados (espinafre, aspargos, beterraba...). Hoje a batata ainda desempenha um papel importante no Mediterrâneo, tanto nas cidades quanto no campo. Se o tomate e a pimenta foram considerados gradualmente produtos mediterrâneos é porque eles contribuíram para a busca daquilo que veio a ser a base da alimentação dos países do Mare Nostrum: o sabor, a cor e a adaptação climática.
Mas se as verduras e hortaliças em geral fazem parte - com mais ou menos dificuldade que algumas delas -
da alimentação e das diversas cozinhas do Mediterrâneo, isto não é tão óbvio como outros hábitos alimentares. Os italianos influenciaram na cozinha de outros países: tanto na Inglaterra, onde introduziram o uso de legumes - quase desconhecidos antes do século XVII, como no Norte da Europa. Da mesma forma, em regiões não mediterrâneas do sul da Europa, como a Galiza e o norte de Portugal, certos alimentos tiveram uma entrada muito tardia em seu sistema alimentar: o arroz não começa a ser conhecido popularmente no país até o final do século XIX e os legumes como a cenoura, a berinjela e a abobrinha não começaram a ser consumidos até meados do século XX.
Mas esse modelo alimentar não se limita apenas às plantas. Carnes e peixes também são uma parte impor-
tante. Quanto à carne, sempre foi rara no Mediterrâneo e, em especial, nas zonas rurais. Riera diz-nos mais uma vez que a pequena presença de carne fresca na dieta diária dos tempos medievais produziu frustração entre as famílias menos credibilizadas que, como as outras classes sociais, consideraram o melhor alimento para o homem, um alimento que ajudou a preservar a saúde e vencer a doença. A título de exemplo, e como Bouza Koster (1984: 40) aponta para a Grécia, “a carne tem um papel menor na alimentação dos camponeses gregos - apenas se come nas festas mais importantes do ano”. Enquanto isso, Gast (1996) aponta para o norte da África que, enquanto a carne assada e frita é muito apreciada, representa um luxo que até mesmo uma família rica não podia pagar.
Ainda assim, a carne desempenhou e desempenha ainda mais hoje em dia um papel importante na área
do Mediterrâneo, e até poderia mencionar algumas peculiaridades: a carne, em geral, é menos abundante do que 84 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
em outros lugares (Cf. Sentieri, 1993: 217; De Garine, op. Cit.). Cordeiros, enchidos de porco e até mesmo carne de vitela são, no entanto, carnes bastante comuns e aves de capoeira e de caça também estão presentes em todas as zonas. Coelhos são muito apreciados.
A partir da Idade Média, como Montanari (1996) aponta, tudo se resume
à definição de um modelo europeu original. Decorre da confluência do encontro da cultura romana com a cultura germânica. Duas culturas muito diferentes, inicialmente, até mesmo conflitantes: a cultura dos campos contra a cultura da floresta, culturas cerealíferas, videiras e oliveiras contra a caça e a criação de gado selvagem, a cultura do pão, do vinho e do azeite contra a cultura de carne, cerveja e manteiga. Um mundo romano, ideologicamente organizado em torno de valores econômicos e culturais da agricultura, para que o pão fosse uma máxima de “valor” de alimentos, tomado como um símbolo da civilização. Um mundo alemão, que teve o seu ponto mais forte: não uma planta, mas um animal, o porco, em torno do qual não só o cuidado econômico e os hábitos alimentares, mas todo um universo de mitos e símbolos estava concentrado, além de rituais. Assim nascia um modelo alimentar “romano-germânico” na Idade Média, onde o valor principal é o porco, principalmente com valores igualmente primários de pão e vinho. Um modelo de combinação alternando óleo vegetal e gorduras animais.
Os povos do norte assumiriam um papel central na Europa do Mediter-
râneo. Tem que pensar em França, Espanha e Itália. A “cultura de presunto” se desenvolve, especialmente, a partir da Idade Média.
Engraçado como a carne de porco foi excluída - negada, pode-se dizer,
dentro dos vários tipos de comida mediterrânea, apesar da importância do seu consumo. A carne de porco levantada teve um papel importante, tanto camponesa quanto urbana, sobre o sistema alimentar da costa norte, que tem assegurado um fornecimento contínuo de carnes relevantes na dieta diária. SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 85
O fato de comer carne de porco também adquiriu o norte do Mediterrâneo, poderia até dizer - e até o abate
tinha um certo ar de ritual. De fato, o consumo de carne de porco torna-se uma demonstração implícita de ser “cristão velho”, ou, pelo menos, não ter nenhum judeu ou muçulmano.
Atualmente o consumo de carne suína nos países mediterrâneos europeus recebe maior importância em
salsichas na Europa central e do norte. Por outro lado, Dinamarca, Alemanha e Benelux são exemplos de consumo de carne de porco fresca, pois esta é mais abundante do que na área do Mediterrâneo, embora o consumo seja significativo em quase todos os países.
À medida que no mundo muçulmano, como Piera (1996) aponta, a carne não tem sido geralmente abun-
dante, apenas em casos excepcionais o óleo era e é a única gordura, fundamental em muitas refeições diárias. Ainda hoje, na cozinha mediterrânea muçulmana que relegou o porco, tão comum na cultura do outro lado da categoria de alimentos proibidos, a carne de aves é usada - pombos, perdizes, coelho, cordeiro e cabra.
O peixe, por sua vez, é frequentemente consumido. No Mediterrâneo ocidental, foram encontrados restos
de enguias, peixe-gato e truta que demonstram a continuidade da dieta dos peixes ao longo de muitos milênios. Atualmente alguns países como Portugal e Espanha estão entre os maiores consumidores de peixe do mundo, mas hoje é especialmente apreciado o peixe de água salgada: anchova, sardinha, atum e bacalhau (um peixe não Mediterrâneo, aliás ele apenas é preservado em sal). Eles se prestam a inúmeras receitas.
Quando falamos de comida mediterrânea, parece fora de dúvida que o peixe deve ser incluído como um dos
principais alimentos consumidos. A realidade, porém, é muito diferente. Não até o século XIX, com a Revolução Industrial e a melhoria das técnicas de redes de transporte e conservação, o peixe foi aberto para um mercado mais amplo. Além disso, foi restrito principalmente às áreas próximas aos locais de pesca.
De acordo com Antoni Riera (1996), dias de abstinência giravam em torno de queijos, ovos ou peixes ape-
nas consumidos frescos, em torno das numerosas pescas nos rios e litoral. As espécies mais acessíveis em regiões do interior foram truta, pescada, peixe-gato e tenca. Pescas foram mais saborosas e despertaram pouco entusiasmo entre amplos setores da sociedade, vendo-as como alimento de qualidade inferior circunscrito ao consumo de dias.
86 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
O peixe fresco, como Sentieri (Op cit.: 216) aponta, parece se concentrar em uma área para consumo local,
de difusão limitada. Até agora, no entanto, o peixe tinha sido mais amplamente preservado - seco, salgado ou defumado - e, neste sentido, era uma proteína barata e boa para uma parcela mais ampla da população.
Outros alimentos processados também são uma parte importante desses sistemas alimentares. Os produ-
tos lácteos são encontrados em todas as regiões: queijos frescos, de idade e fermentados anteriormente também são usados para substituir a já mencionada falta de carne. Devemos também mencionar as sopas e os ensopados cozidos, muitas vezes sem adicionar qualquer gordura extra. Se levarmos em conta os diferentes tipos de pratos, a cozinha mediterrânea apresenta o máximo de pequenas quantidades de proteína animal, como já evidenciado pelo uso generalizado de carne picada, legumes recheados com carne, ensopados e guisados de carne de todos os tipos e qualidades.
Alimentação mediterrânea, cozinhas nacionais e pratos transnacionais
Para aqueles que se perguntam sobre a capacidade de uma placa de fronteiras culturais transversais adaptar-se
às características de outras culturas alimentares, alguns exemplos como pizza, paella (Duhart e Medina, 2008/2010) ou cuscuz.
Esses pratos são consumidos hoje a partir do Mediterrâneo, onde foram criados para qualquer lugar do mun-
do, seja em casas e feiras livres, em menus econômicos ou pré-cozinhados e prontos para o aquecimento em forno de micro-ondas. Aprovados muitas vezes, às vezes “creolizados”, muitas vezes revistos, esses pratos foram caracterizados por uma capacidade de se adaptarem às condições de alimentação locais (ou “globais”, se preferir), em contextos muito diferentes.
Em cada local, a introdução ou a substituição de alguns ingredientes, bem como o estranho acomodar de
características dietéticas culinárias locais, permitiram e permitem que se tome conta cada vez mais do sistema cultural em que estão localizados, de forma eficaz, mantendo-se basicamente como pratos mediterrâneos de origem. Em um estudo anterior, a paella (Duhart e Medina, 2008) foi considerada um “prato camaleão” por causa de sua
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capacidade de adaptação. E o mesmo pode ser aplicado com dicas de alguns outros pratos como o cuscuz. Mas, além da imagem e do trocadilho, queremos promover que é possível uma reflexão mais geral sobre a complexidade dos destinos “globalizados” de certas preparações: paella, cuscuz, hambúrguer, pizza ou sushi são “pratos camaleões”? E se não o são, o que são eles?
O cuscuz: do Mediterrâneo à América
Cuscuz é um prato por excelência do norte africano; talvez dos mais emblemáticos, se não mais, do Magrebe.
É tradicionalmente feito a partir da argamassa do trigo esmagado, produzido e cozido no vapor, e, em seguida, servido com diversos elementos de apoio, principalmente vegetais, mas também carne (especialmente de cordeiro ou frango). Suas origens permanecem obscuras como o etnólogo francês Marceau Gast (1996: 212, 2010: 67-68) destacou. É um prato do Magrebe ocidental (há no leste da Líbia para além do Mediterrâneo e do norte, e não se estende para além da Península Ibérica), segundo fontes árabes do século XII, cuja existência entre os berberes é considerada muito mais cedo. Seu nome vem, de acordo com o mesmo Gast (1996: 213), de uma derivação do kaskasa árabe, verbo que significa “moer em pedaços pequenos”, derivando daí a palavra kuskusû.
É um prato muito popular e enraizado em todo o Magrebe. Apesar de hoje podermos encontrar muitas
receitas, o seu procedimento básico permanece: desfia-se trigo finamente em pequenos aglomerados, que mais tarde são encharcados de pequenas quantidades de água, e só depois cozidos no vapor. O apoio pode ser o mais comum: verduras e legumes (ervilhas, cenouras, abobrinha). Também acompanha carne, aves ou cordeiro.
É um prato familiar para compartilhar em festas. Diz o mesmo Marceau Gast (op. cit.: 77) que é o prato que
apresenta “atos dedicados de hospitalidade, em torno do qual tudo gira partindo dos alimentos (...)”. É um índice de cultura e refinamento social.
“O cuscuz entra na Península Ibérica, ao que parece, a partir de invasões berberes que ocorreram após o sé-
culo VII. Barboff (2010: 48) diz que a produção de trigo está documentada na região das ilhas dos Trás-os-Montes e do Madeira e Açores. A palavra couscous aparece no século XV, transferindo-se para a linguagem portuguesa. Muito mais tardiamente e depois da entrada em Portugal do milho, também se pode encontrar o cuscuz.
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Estamos particularmente interessados no fato da presença e da tradição de preparar o cuscuz em Portugal
sobre a sua transferência para terras brasileiras, onde, particularmente em Pernambuco e no Recife, o cuscuz é um prato da tradição popular que claramente possui forte presença. Cruzando o Atlântico e ligado à gastronomia portuguesa, transportada e recriada na América, o cuscuz aparece acompanhando a sua evolução para um novo território, tornando-se próprio e indiscutível.
Na Europa, entretanto, na grande imigração norte-africana para a França e outros países europeus (inclu-
indo, mais uma vez, Espanha e Portugal) e na repatriação dos franceses do norte da África, o cuscuz tornou-se, no último meio século, um prato popular altamente transnacional, que continua a atrair os comensais ao seu redor para comemorar o dia. Assim como outros pratos emergentes do Mediterrâneo como a paella mesmo, o cuscuz se adaptou a novos ambientes (como o recifense, no Brasil) e efetivamente se manteve como o prato mais original. O “camaleão” cuscuz transformou-se sem perder sua essência desde a origem afroeuropeia e adaptou-se aos ingredientes, ao gosto e à gastronomia pernambucana, sendo hoje considerado, sem dúvida, um prato próprio.
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F. Xavier Medina Doutor em antropologia social pela Universidade de Barcelona (2000). Diretor Acadêmico e de Programas do Departamento de Sistemas Alimentares, Cultura e Sociedade, Facultade de Ciências da Saúde, Universidade Aberta de Catalunha (UOC), Barcelona (Espanha) (2009 ate os dias atuais). Atualmente é Presidente para Europa da International Comission of Anthropology of Food (ICAF), desde 2006, e previamente foi presidente de ICAF-Espanha, representação española de International Commission on the Anthropology of Food (ICAF), entre 2000 e 2006.
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Muito além do azeite de oliva, das azeitonas e do queijo de cabra Raul Lody “O que é o Mediterrâneo? Mil coisas ao mesmo tempo. Não uma paisagem, mas inúmeras paisagens. Não um mar, mas uma sucessão de mares. Não uma civilização, mas civilizações sobrepostas umas às outras. Viajar pelo Mediterrâneo é encontrar o mundo romano no Líbano, a pré-história na Sardenha, as cidades gregas na Sicília, a presença árabe na Espanha, o islã na Iugoslávia. É mergulhar nas profundezas dos séculos, até as construções magalíticas de Malta ou até as pirâmides do Egito (...) É, ao mesmo tempo, imergir no arcaismo dos mundos insulares e surpreender-se diante da extrema juventude das cidades muito antigas, abertas a todos os ventos da cultura e do lucro, e que há séculos vigiam e comem o mar” (BRAUDEL).
M editerrâneo e Magrebe são o moçárabe na civilização do açúcar
“O viajante que chega ao Recife por mar, ou de trem, não é recebido por uma cidade escancarada
à sua admiração (...). Com o recato quase mourisco do Recife, cidade acanhada, escondendo-se por trás dos coqueiros; e angulosa, as igrejas magras, os sobrados estreitos, alguns, ainda hoje, com quartinhas às janelas, com gaiolas de passarinhos, de papagaios e até de araras, junto às varandas de ferro rendilhado (...)” (FREYRE, Gilberto. Guia Prático, Histórico e Sentimental do Recife).
Profundamente moçárabe, esse Recife ibérico manteve muitos modos do então califado de Córdo-
ba, no sul da Espanha.
A mulher no islã é a mulher da casa, da comida, dos filhos e do marido. Em público, essa mulher
inunda-se de panos, pois o corpo é tema da privacidade.
As cores sóbrias das senhoras lusitanas e luso-brasileiras, quando publicamente seguiam para as
missas e outros acontecimentos como as grandes procissões - e entre elas a de Corpus Christi (certamente a mais teatral de todas), faziam apenas revelar, muitas vezes, chinelas de couro de ponta virada - à mourisca. 94 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
E ainda, as roupas de trabalho e do cotidiano dos escravos eram as roupas aproveitadas dos senhores, ou então
das festas. Exibiam bordados e até joias para mostrar poder. Sem dúvida, orientalismos fundamentais do imaginário barroco coformador dessa roupa. “Os trópicos áridos, por exemplo, possuem uma tradição de ruas estreitas e de arcadas, ruas às vezes totalmente cobertas, proporcionando sombra e alívio contra o calor e a claridade” (FREYRE, Gilberto. Novo Mundo nos Trópicos. p. 26).
Os panos protegem também do calor, criando entre o corpo e o pano uma temperatura mais amena, menor
do que a externa. Daí as roupas dos povos dos desertos, em especial, dos que vivem próximo do Saara exibirem uma grande quantidade de panos, para assim melhor proteger, guardar o corpo do sol.
Mulher, no Brasil do século XIX, era quase de burca, totalmente coberta, incógnita, sob o poder masculino na
posse e na guarda. Contudo, um poder foi exercido na casa, diga-se na casa-grande do engenho, pela mulher. Estava ela no comando das cozinhas com as comidas e, em especial, os doces. Fazer doce, um predicativo de valorização extrema de uma mulher idealizada como pálida, frágil, mas que nem sempre apresentava o biotipo clássico de um ideal grego. Mulheres gordas, suando muito e comendo muito açúcar, com dentes também nem sempre para serem vistos.
Roupas, comportamentos, formas de lidar e entender o próprio corpo atestam aspectos ainda carentes de
maiores leituras, que são os da marca matricial afro-muçulmana, afro-islâmica, moura, moçárabe ou Magrebe na vida e na civilização brasileira. “E não só o algodão, o bicho-da-seda e a laranjeira introduziram os mouros na península: desenvolveram a cultura da cana-de-açúcar (...). O mouro forneceu ao colonizador do Brasil os elementos técnicos de produção e utilização econômica da cana-de-açúcar” (FREYRE, Gilberto. Idem, ibidem. p. 289).
Sem dúvida, a colonização africana no Brasil ocorre por dois vetores. O primeiro é com o homem lusitano
sendo aculturado pelo Magrebe, por meio dos povos mediterrâneos do norte do continennte africano, que permanenceram séculos na Espanha e em Portugal, coformando a civilização ibérica. O segundo vetor ocorre com o tráfico de africanos em condição escrava, que se dava entre a costa ocidental, centro-atlântica e oriental africana e a costa brasileira. Isto se deu por 350 anos, a partir do século XVI.
Pode-se dizer, então, que o brasileiro é biafricanizado, mantém memórias, costumes e demais padrões cul-
turais de uma África islamizada, moura, além de muitas matrizes originárias de grupos étnicos da África ocidental, austral e oriental. SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 95
O Recife é construído por um açúcar de mão e inspiração muçulmana, embora
oficialmente de colonização europeia. Gilberto Freyre destaca as casas, os hábitos, as modas e os modos de uma sociedade patriarcal profundamente moçárabe, vivendo no cotidiano e nas festas as expressões que identificam modelos e comportamentos orientalizados - em especial, a mulher portuguesa, que assume um corpo e uma estética muçulmana.
Muxarabi são treliças de madeira que compõem espaços arquitetônicos, protegendo, guardando e dando total intimidade à mulher portuguesa, contudo moçárabe, africanizada. Essa relação entre corpo e espaço, interior e exterior, privado e público, casa e rua está fixada na roupa, cuja função é tapar totalmente o corpo, mantendo o mesmo princípio da casa protegida pelo muxarabi.
Destaque para a gelósia ou o muxarabi - treliças de madeira que compõem espaços
arquitetônicos, protegendo, guardando e dando total intimidade à mulher portuguesa, contudo moçárabe, africanizada. Essa relação entre corpo e espaço, interior e exterior, privado e público, casa e rua está fixada na roupa, cuja função é tapar totalmente o corpo, mantendo o mesmo princípio da casa protegida pelo muxarabi.
(texto adaptado do capítulo “Um Recife afro-muçulmano ou por debaixo dos panos”, do livro Caminhos do Açúcar. Ecologia, gastronomia, moda, religiosidade e roteiros turísticos a partir de Gilberto Freyre. Topbooks Editora, Rio de janeiro, 2011)
Agora à boca
O cuscuz é o prato nacional do Magrebe, ou seja, Marrocos, Argélia e Tunísia. De
procedência bérbere, o cuscuz é uma significativa especialidade local. O cuscuz, em si, é uma espécie de semolina extraída dos grãos do trigo. Até há pouco tempo, uma família carregava o moinho com seu grão adquirido no mercado, porque vinha já macerado, processado finamente, segundo a preferência. Depois, em casa, a mulher colocava o grão em uma grande gamela de madeira, pulverizando-o pouco a pouco com água, de modo que cada grão se umedeça. Isto se faz para que os grãozinhos permaneçam separados durante o “sucessivo” cozimento a vapor.
Hoje, por comodidade, quase todos adquirem a farinha já pronta. São infinitas
as versões, regionais e familiares, desse prato. Cada vez é diferente: as mulheres colocam à prova todas as suas habilidades para variar as receitas, porém são fiéis à tradição. O cozimento do cuscuz é feito no vapor, numa panela especial, que é colocada sobre uma 96 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
caçarola que contém um guisado ou um caldo. Esse guisado, em geral, é preparado com carne, habitualmente carneiro ou galinha, e diferen- tes legumes. Também, à parte, estão presentes o grão de bico e, às vezes, também uvas-passas. Frequentemente colore-se o caldo de vermelho com o uso de tomates, ou de amarelo por meio do açafrão. Também se colocam diferentes especiarias em quantidades, de modo que não se reconheça especificamente cada uma.
Com parte do caldo, prepara-se um molho marcadamente picante, com pimenta-de-caiena ou “chili” (pimen-
ta-malagueta), bem como um concentrado de pimentão vermelho chamado de “harissa” (pimentão vermelho picante, alho, coentro seco, sementes de cariz, menta seca, folha de coentro fresco, sal, azeite de oliva). Esse molho é servido à parte, colorindo com maior intensidade o prato, que fica mais apimentado para aqueles que desejam um sabor mais inflamado e inebriante.
Na cidade de Fez, no Marrocos, os guisados de carne são mais leves: os ingredientes vêm cozidos e condimen-
tados com muita delicadeza. Na Tunísia e na Argélia, são diferentes. São mais substanciosos e saborosos. A carne e, às vezes, também os legumes são previamente corados em azeite de oliva. Os tunisianos parecem preferir os molhos decisivamente picantes. Por isso colocam pimenta-de-caiena e “chili”. Os argelinos trazem do passado o tomate, todavia os marroquinos preferiram o perfume e a cor do açafrão.
Uma forte influência francesa sobre a cozinha argelina induziu as últimas gerações a usar, nos guisados, legumes
europeus como o feijãozinho, a ervilha e a cenoura.
A preparação do cuscuz é muito simples, entretanto pede um tratamento preciso: os grãozinhos de semolina
devem ficar inchados, leves, aveludados e bem separados um do outro. Não tomando cuidado, o cuscuz sairá grudado e pesado. Os grãos não devem cozinhar no caldo ou no molho, mas sempre no vapor. Também não pode tocar líquido na panela sobre a qual a cuscuzeira está colocada.
A cuscuzeira, ou seja, o recipiente tradicional, de cobre ou louça de barro, ou, com a inovação, de alumínio, é
constituída de duas partes. A parte inferior é um recipiente redondo no qual se cozinha o guisado. A parte superior tem uma forma semelhante, porém possui o fundo com “furinhos”. Aí se põe o cuscuz. Se não encontrar uma cuscuzeira tradicional, pode recorrer a uma panela a vapor ou a uma peneira metálica, que se adapte perfeitamente a uma grande caçarola. Molhe o cuscuz com um pouco de água fria, amassando-o com os dedos, de forma que não se formem grumos. SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE 97
Derrame-o na parte superior da cuscuzeira, quando faltar cerca de uma hora para terminar o cozimento do
guisado que está fervendo no recipiente inferior. Mexa os grãos com as mãos para organizá-los e permitir que inchem melhor. Deixe o cuscuz exposto ao vapor por cerca de 30 minutos. Depois passe-o para uma ampla terrina, borrifando-o abundantemente com água fria. Aí mexa com uma colher para esfarelar eventuais grumos e separa grãos que com água se juntaram e colaram.
Agora, desejando, pode acrescentar um pouco de sal (às vezes, contemporaneamente, une-se uma colherada
de azeite de oliva). Passe novamente o cuscuz para a parte superior da cuscuzeira e prossiga o cozimento a vapor por mais 30 minutos. Alguns preferem cozinhar o cuscuz expondo-o apenas ao vapor da água fervente. Então sirva-o com um guisado preparado à parte.
Existe hoje no comércio o cuscuz pré-cozido, cuja preparação pede pouquíssimos minutos. Siga as instruções
que encontrará na embalagem sobre o preparo do cuscuz.
(La cucina del Medio Oriente e del nord Africa. Cláudia Roden. Adriano Salani Editore. Milano, 2011. p. 304-305)
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Outros tipos de cuscuz Magrebe Cuscuz com nozes - É um prato delicioso. Pega-se a quantidade necessária de carne de vitelo, de carneiro e de galinha gorda. Faz-se cozinhar com as especiarias conhecidas (habituais). À parte, uma berinjela, inteira e pelada, é cozida em água salgada e depois escorrida e enxuta. Quando a carne e as hortaliças estiverem quase cozidas, procede-se a cozedura do cuscuz como indicado precedentemente. Depois, coloca-se o cuscuz em um prato e, usando as pontas dos dedos, esfrega-se suavemente com manteiga de nozes morna. Pilar o ásaro e a canela no almofariz, um pouco amassado. Dispõem-se as carnes e verduras, pulverizando-se canela e ásaro. E se consome, como Deus desejar.
Nota: ásaro (Asarum europaeum) - vegetal de uso medicinal, profilático, tradicional e popular, integrando uma das receitas Magrebe de se fazer cuscuz (Raul Lody).
Ghassanide - Necessita-se extrair da carne e das verduras cozidas o caldo. Filtrar o caldo eliminando os ossos e qualquer outra coisa. Reserve-o numa panela. Depois coloque dentro o cuscuz. Deixe-o até absorver todo o caldo. Coloque-o em um prato e, sobre ele, a carne e as verduras. Então se come.
Também se pode fazer esse cuscuz com um caldo de carne cozida com vinagre e açafrão, segundo as receit-
as do “tharid”; suas verduras serão a berinjela e a abobrinha. Trata-se certamente de uma receita que usa o cuscuz pré-cozido.
Nota: o “tharid” é um prato tradicional árabe, o preferido do profeta Muhammad. A base da receita é grão
de bico com temperos como cominho, pimenta e açafrão, entre muitos outros. E carne de carneiro. Tudo é cozido com muito caldo, que é derramado sobre fatias de pão e ainda ovos complementam a receita (Raul Lody).
Nota: ghassanide refere-se a um povo do sul da Arábia - Iêmen, também cristãos bizantinos que foram, a
partir do século III d.C., para a Síria e o Líbano (Raul Lody). (L’islam a tavola. Lilia Zaouali. Editore Lterza, Bari, 2007. p. 138 e 139)
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O Seminário Comida & Cultura migra para Prazeres da Mesa Pernambuco
O Seminário Comida & Cultura, na sua terceira edição em 2012, dando continuidade ao seu objetivo, que
é pensar a comida nas suas múltiplas possibilidades simbólicas e gastronômicas, nos seus contextos culturais, sociais e educacionais, migra para o evento Prazeres à Mesa.
Esse seminário tem a vocação de aproximar os temas da gastronomia da realidade histórica e regional de
Pernambuco.
Na preparação do seminário com seu novo formato, foram convidados chefs pernambucanos, de diferentes
tendências, para a realização de oficinas conceituais, de acordo com o tema escolhido para o evento.
Essas “oficinas” foram experiências que possibilitaram uma maior aproximação com o tema e uma melhor
interação entre os chefs e a equipe do projeto.
Dessa feita, o curador organizou textos introdutórios para serem discutidos nas “oficinas”, o que certamente
orientou a escolha dos pratos temáticos que foram apresentados pelos chefs.
Essa experiência preparatória será repetida nos próximos seminários, pois qualifica e possibilita uma maior
expressão criativa de cada chef, para expressar de maneira mais conceitual suas tendências.
Assim, o Seminário Comida & Cultura 2012, integrado ao evento Prazeres à Mesa, pode reunir um público
maior e diverso, com estudantes e profissionais da área de gastronomia e também profissionais interessados nas áreas de cultura, história, turismo e patrimônio.
Na edição de 2012, participaram os seguintes chefs: Cláudia Freyre, Duca Lapenda, Joca Pontes e César
Santos.
Por exemplo, no texto que se segue, a chef Cláudia Freyre mostra a sua interpretação gastronômica sobre o
tema do seminário.
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De acordo com o livro “O Brasil holandês”, de Evaldo Cabral de Mello, podemos destacar algo impor-
tante sobre a alimentação dos holandeses, na época em que eles viviam na Nova Holanda:
Em que se apoiava basicamente a economia do Brasil holandês? Quais eram as dificuldades enfrentadas pelos holandeses em relação ao aprovisionamento de comida? Quais produtos tinham de ser importados diretamente da Holanda?
As atividades econômicas apoiavam-se na produção do açúcar e na extração do pau-brasil, este um
monopólio da Companhia das Índias Ocidentais. Os problemas de alimentação ocorriam por falta de farinha de mandioca e de carne, que constituíam a base do cardápio, mas não eram produzidas a contento. Os holandeses, assim, tinham de importar principalmente víveres, isto é, alimentos e artigos de consumo para sobrevivência. Já a comunidade luso-brasileira preferia os manufaturados, tais como os panos de linho e tafetá e os artigos alimentícios processados, tais como vinhos, cervejas, azeites, queijos, carnes, bacalhau e sardinhas (Capítulo 13).
Quais foram as principais divergências de Maurício de Nassau com a Companhia das Índias Ocidentais, que levaram à sua dispensa do governo do Brasil-Holandês e ao seu retorno à Holanda? O que Nassau levou consigo quando do seu regresso em 1644?
As despesas pessoais e extraordinárias de Nassau, custeadas pela Companhia das Índias, eram vistas de ma-
neira muito desfavorável. Além disso, a restauração da independência portuguesa havia possibilitado uma trégua luso-neerlandesa, o que fez a companhia reduzir seu efetivo, isto é, seu corpo de funcionários e soldados em Pernambuco. Nassau veio a considerar um grave erro de cálculo, que criticou duramente. Ao retornar, levou na mudança as telas de Frans Post e Albert Eckhout, que ele havia encomendado, além das coleções de história natural e etnografia que reunira, junto com itens de procedência africana. Nassau levou consigo gêneros alimentícios e artigos pessoais como farinha de mandioca, frutas confeitadas, peças de madeira nativa, conchas e pedras do Cabo de Santo Agostinho. Até uma rede de deitar, que instalou em seu palácio na Holanda (Mauritshuis) (Capítulo 14).
Nassau quis transformar Recife em uma moderna capital. Determinou o projeto da cidade Maurícia
(Mauritsstad), responsável pelos atuais traçados urbanísticos dos bairros de Santo Antônio e São José, onde dre-
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nou terrenos, construiu canais, diques, pontes, palácios, jardins, um museu natural e um observatório astronômico. Organizou serviços públicos essenciais como bombeiros e coleta de lixo. Estabeleceu relações amistosas entre neerlandeses, comerciantes e latifundiários. Estes restauraram seus engenhos com empréstimos concedidos pela WIC, utilizados também na venda a crédito dos engenhos abandonados, visando a restabelecer a produção de açúcar. Nassau incrementou no Nordeste a economia açucareira e introduziu métodos aperfeiçoados de cultivo da cana-de-açúcar e do fumo.
Diante dessas informações, resolvi aprofundar a questão do
açúcar, principal motivo para a ocupação holandesa na época.
De acordo com alguns escritos, Maurício de Nassau era um
adorador de doces e ficou encantado com a quantidade de frutas que encontrou na época. Os “confeitados” a que Evaldo Cabral de Mello se refere, levados por Nassau de volta à sua terra, são os doces secos e cristalizados produzidos até hoje por aqui. Curioso é que a Ilha de Itamaracá é conhecida por suas passas de caju. Acredita-se que Nassau foi um estimulador da produção de frutas tropicais cristalizadas (caju e abacaxi são as principais), até então não exploradas. Na época, faziam-se doces cristalizados com frutas “europeias”, pois era mais fácil.
Isso serviu de inspiração para criar uma receita com fruta e
açúcar. O Speculaas, biscoito típico holandês, também me inspirou para finalizar a sobremesa, que leva especiarias. Só para lembrar, a organização da Companhia das Índias Ocidentais seguia os moldes da Companhia das Índias Orientais, que detinha o monopólio do comércio na Ásia desde 1602.
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Receita de compota de maçã e frutas secas com biscoito de especiarias Ingredientes para a compota • 6 maçãs tipo fuji, descascadas e cortadas ao meio (mantendo o cabinho) • ¼ xícara de damasco seco em pedacinhos; • ¼ xícara de uva-passa escura sem semente; • 2 xícaras de açúcar demerara; • 3 xícaras de água (o necessário para colocar a água até a metade das frutas); • 2 paus de canela; 1 cravo;1 anis-estrelado; • Folhas de hortelã para decorar.
Ingredientes para o biscoito • 1 xícara de açúcar; • 1 xícara de manteiga gelada; • 2 xícaras de farinha de trigo; • ½ xícara de castanha de caju em farinha; • 1 colher (café) de raspa de limão; • 1 pitada de cravo em pó; • 1 pitada de canela em pó; • 1 pitada de cardamomo em pó.
Modo de preparo da compota Coloque a água, a canela, o cravo, o anis e o açúcar em uma panela e leve ao fogo. Quando começar a ferver, coloque as maçãs. Deixe ferver por 15 minutos com a panela tampada. Adicione os damascos e as uvas-passas. Deixe cozinhar por mais cinco minutos. Desligue o fogo e deixe a panela tampada até esfriar.
Modo de preparo do biscoito Misture todos os ingredientes com as pontas dos dedos, formando uma farofinha. Coloque a mistura em uma assadeira e leve ao forno até dourar. Retire do forno, deixe esfriar e retire os pedaços. Sirva com a compota.
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Uma ação educativa na área de gastronomia Sandra Regina Marinho de Oliveira
A
alimentação tem papel fundamental na vida e na evolução humana. Este é também o entendimento de Franco (2001), quando afirma que “o início das civilizações está intimamente relacionado com a procura dos alimentos, com os rituais e costumes de seu cultivo e preparação, e com o prazer de comer”. A história da alimentação se confunde com a história da humanidade que, entre outras coisas, é marcada pela troca de alimentos e pela migração de plantas e animais.
Nesse sentido, Mauss (1974) afirma que dar, receber e retribuir é a chave explicativa das
relações sociais, pressuposto este que fortalece a ideia de que o contato humano começa como uma dádiva (potlach) que parte de alguém.
No início da civilização, o ato de alimentar-se consistia em satisfazer às necessidades fisiológi-
cas. Posteriormente, essa forma de “ser e estar” no mundo foi ampliada e seu significado passou a estar vinculado à religiosidade e aos festejos, entre outras manifestações socioculturais. Assim, o ato de comer passou a ter conotação de prazer e satisfação. E, desta forma, a simples mudança de necessidade para prazer fez surgir os termos gastronomia e culinária.
Os hábitos alimentares, segundo alguns autores, podem ser considerados patrimônio ima-
terial de um povo. Através da alimentação, é possível preservar tradições. A alimentação, enquanto memória, está associada aos sentidos (odor, visão, paladar e audição). Cada povo tem uma culinária envolvida por hábitos alimentares que espelham sua sociedade, tais como características geográficas, climáticas, socioeconômicas e culturais.
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Savarin (1995), em A Fisiologia do Gosto, afirma que “entreter um convidado é encarregar-se de sua felici-
dade durante todo o tempo em que ele estiver sob o nosso teto”. Assim, estreita-se a íntima ligação entre gastronomia e hospitalidade.
A gastronomia brasileira é o resultado dos ingredientes da terra, da presença dos colonizadores e dos imi-
grantes que chegaram ao Brasil.
E, para discutir a gastronomia brasileira e o resgate da identidade culinária, o Senac Pernambuco, em par-
ceria com a revista Prazeres da Mesa, realizou o 3º Seminário Comida & Identidade - “Companhia das Índias na história e identidade da culinária de Pernambuco”. Este evento contribuiu para a constituição de uma visão histórico-crítica, integrada e concreta da evolução da gastronomia e da história da culinária pernambucana.
De acordo com o Parecer CNE/CES 277/2006, o curso de Tecnologia em Gastronomia “encontra-se no eixo
da hospitalidade e do lazer”. Constitui uma modalidade acadêmica integrada à educação profissional e tecnológica. Por meio deste parecer, “o tecnólogo em gastronomia concebe, planeja, gerencia e operacionaliza produções culinárias, atuando nas diferentes fases dos serviços de alimentação, considerando os aspectos culturais, econômicos e sociais”.
A educação profissional e tecnológica, no cumprimento dos objetivos da educação nacional, integra-se aos
diferentes níveis e modalidades de educação e às dimensões do trabalho, da ciência e da tecnologia (Capítulo III Educação Profissional e Tecnológica - Art. 3).
Conclui-se que, na educação tecnológica, os cursos devem atender às expectativas do mundo produtivo, in-
tervindo de forma positiva na realidade social e contribuindo para a inserção no mercado de trabalho, sem esquecer dos princípios e valores para uma educação emancipadora e inclusiva, promotora da cidadania plena e multicultural.
O tecnólogo em gastronomia deve reconhecer e valorizar a diversidade dos saberes populares e dos saberes
construídos no trabalho, bem como das contribuições deixadas pelos povos originários, pelas comunidades quilombolas, pelos povos da floresta, entre outros.
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Indo além da especificidade da área de formação, compete às instituições de Ensino Superior promover
o desenvolvimento do ser humano em sua totalidade, preparando-o para o exercício da cidadania, com base na ciência, tecnologia, cultura e trabalho, mediante processos de educação inclusiva que contemplem as questões ambientais e tecnológicas, de modo transversal, estruturante e potencializador da educação transformadora (carta do II Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica - a Carta de Florianópolis/SC - Brasil - 2012). Este constitui, também, um princípio orientador da ação educativa promovida pela Faculdade Senac Pernambuco.
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SANDRA REGINA MARINHO DE OLIVEIRA Bacharelado (1961) e licenciatura em Nutrição (1983) pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialização em Nutrição (1986) e Antropologia da Saúde (2005) pela Universidade Federal de Pernambuco. Certificado de Suficiência Investigadora na área de Antropologia Social, pela Universidade de Salamanca, na Espanha (2010). Coordenadora do curso superior de Tecnologia em Gastronomia, da Faculdade Senac/PE, desde 2008. 108 SEMINÁRIOS COMIDA & IDENTIDADE
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